domingo, 11 de agosto de 2013 By: Fred

{clube-do-e-livro} Outros títulos e Mônica de Castro: A Atriz, Com Amor Não se Brinca e De Frente com a Verdade



A Atriz
Autor: Espírito Leonel
Médium: Mônica de Castro
Páginas: 515

Sinopse:

O que leva uma atriz sensual e famosa a abandonar uma vida de luxo e brilho para morrer em completa solidão? Por que um jovem rico e bem sucedido se distancia da
família e se entrega, impassível, à obsessão do passado? Que elo poderoso pode unir essas duas pessoas que, aparentemente nada têm em comum?
Glamour e decadência caminham lado a lado nesta história que se desenvolve em dois tempos, distantes na passagem dos anos, mas próximos nas experiências e sentimentos
ainda não resolvidos. Ódios nascem e são desfeitos; o amor se recolhe diante da indiferença, até que a dor traz a compreensão da vida e o perdão ressurge como chave
para libertar a alma dos grilhões do ressentimento.
A atriz vivencia a violência, a raiva e a decepção, transformando a morte numa passagem para o esquecimento e fuga. Mas morrer não é a solução dos problemas, e ela
descobrirá que só com coragem e amor é que poderá encontrar o caminho para a reconciliação consigo mesma.

Prólogo

Por entre as flores recém-desabrochadas, Tália caminhava a passos vagarosos, aspirando lentamente o delicado perfume que se espalhava no ar. De quando em vez, detinha
a caminhada e deixava o olhar vagar a esmo, como se buscasse algo que não podia definir no horizonte. Seria possível? Após tantos anos, já perdera as esperanças
de que um dia a encontrassem. Estava perdida para o mundo dos homens e não devia mais se preocupar com ele.
Ainda assim, seu coração se apertava a cada passo. Sentiu uma comichão pelo corpo e se encolheu toda, com um frio a lhe percorrer a espinha. Aos poucos, o frio foi
aumentando, como se alguém a estivesse desnudando ao vento. O que seria aquilo? Levara muito tempo para se acostumar a não ter mais aquelas sensações, e agora isso?
Olhou ao redor, mas nada lhe pareceu anormal. O ar estava tépido como sempre, e uma brisa suave refrescava sem enregelar. Se era assim, de onde vinha aquela sensação
gelada que parecia penetrar-lhe até os ossos?
Resolveu voltar para casa. Fazia já algum tempo que conquistara o direito de ter uma casinha só para ela, o que era muito bom. Seu lar era simples, porém bastante
asseado e claro. Lá, tudo parecia mais límpido e branco, e o ambiente era sempre agradável e sossegado. Talvez fosse melhor se deitar um pouco. Quem sabe não estava
ficando doente?
Doente? Não era mais possível ficar doente ali. No dia em que chegou, estava cheia de dores no peito, ardendo em febre e delirando. Logo adormeceu, e, quando despertou,
o peito parecia menos dolorido e a respiração, quase regular. Levou algum tempo para que se recuperasse de todo, mas finalmente conseguiu. As lesões em seu corpo
fluídico lentamente se foram, e ela começou a se interessar pela nova vida. Aos pouquinhos, foi deixando para trás as lembranças daquela outra vida, cheia de brilho
e de sofrimento.
Essas lembranças a entristeceram. Ninguém, em lugar nenhum do mundo físico, sabia o que fora feito dela. Nem ela sabia ao certo quantos anos haviam se passado desde
que deixara a terra; nunca pensara naquilo. O bem-estar da vida espiritual era tanto, que as coisas da matéria deixaram de lhe interessar. Contudo, uma pontinha
de tristeza começava a incomodá-la, despertando a dor de saber-se abandonada por aqueles com quem convivera tantos anos. Mas ela jamais retornara a terra para saber
o que fora feito dos seus. Como podia agora esperar que se lembrassem dela, se ela mesma os havia esquecido?
Balançou a cabeça vigorosamente, tentando afugentar as lembranças, e alcançou o portãozinho do jardim, surpreendendo-se com a presença de sua mentora e amiga parada
à sua porta.
- Sílvia! - exclamou. - Que surpresa boa. Vamos entrando.
Sílvia sorriu carinhosamente e beijou Tália no rosto, seguindo-a para dentro de casa. Sentou-se num sofazinho cor-de-rosa que havia perto da janela e esperou até
que Tália se acomodasse a seu lado.
- Muito bem - falou Tália, apertando os braços gelados e sentindo uma repentina tontura. - Essa visita inesperada tem algum motivo especial?
- Receio que sim - respondeu a amiga, fitando Tália com uma expressão indefinível.
- Do que se trata?
- Trata-se de você. Seu corpo está sendo encontrado na terra, neste exato momento.
Com ar de assombro, Tália se encolheu toda e desatou a chorar, sentindo na pele uma umidade glacial.
- Como isso é possível?
- Não está se sentindo estranha?
- Tenho calafrios... E as lembranças de minha vida na terra surgiram repentinas... Mas não pensei estar ainda ligada ao corpo físico.
- Você não está ligada. O pensamento de certa pessoa foi que formou uma ponte energética com você, trazendo-lhe as impressões do que tem se passado na terra.
- Uma pessoa? Quem?
De repente, Tália viu-se transportada, ao lado de Sílvia, para o casebre onde seus ossos jaziam esquecidos. Algumas árvores penetravam pelas janelas destruídas,
e o teto desabara quase por completo. O mato praticamente se fechara sobre o pequenino chalé e formara uma parede quase impenetrável ao redor. Alguns homens, com
machados e marretas, estavam derrubando a porta, emperrada pelas dobradiças enferrujadas.
A golpes de machado, os homens derrubaram a porta e entraram. A sala estava toda em ruínas, com os móveis comidos e apodrecidos pelo vento e a chuva. Os homens penetraram
devagar e foram percorrendo os ambientes do primeiro andar, passando pela sala, depois a cozinha e o lavabo minúsculo. Um deles se adiantou e experimentou o primeiro
degrau da escada de madeira, que rangeu sob seus pés.
- Vai subir? - perguntou Márcio, um dos rapazes.
- É perigoso - respondeu outro.
- Vou subir. Se há alguma possibilidade de que o corpo de minha avó esteja lá em cima, quero descobrir.
Tália sentiu um choque. Como assim, avó? Buscou os olhos de Sílvia, que apertou a sua mão e esclareceu com voz carinhosa:
- Sim, Tália, é o seu neto que está aí. Seu neto Eduardo, que hoje está com vinte e três anos de idade.
Com olhos úmidos, Tália se aproximou do neto, que sentiu um leve arrepio e foi envolvido por estranha emoção.
- O que houve Edu? - indagou Márcio. - Não está se sentindo bem?
- Não é nada.
Deixando de lado a emoção, Eduardo firmou o pé no degrau e começou a subir. A escada ia rangendo e alguns degraus afundaram, fazendo com que todos se sobressaltassem,
inclusive Tália.
- Não se preocupe - sossegou Sílvia. - Ele não vai cair.
Tália agradeceu com o olhar e subiu com Sílvia atrás do neto. Eduardo chegou ao andar de cima e olhou para baixo, onde os outros o fitavam ansiosos.
- E aí? - perguntou alguém. - Tem alguma coisa?
- Vou olhar agora - respondeu Eduardo, virando-se para um segundo andar destruído e escorregadio.
A escada terminava numa espécie de saleta, com três portas ao redor. Intuitivamente, Eduardo se dirigiu à do meio e empurrou. A porta imediatamente cedeu indo ao
chão com estrondo e fazendo com que todos lá embaixo começassem a gritar.
- Não foi nada - avisou ele, para acalmar os amigos. - Apenas uma porta que caiu.
Com certa ansiedade, Eduardo passou por cima da porta e entrou no quarto frio e úmido, tomando cuidado com as tábuas soltas no soalho.
Olhou de um lado a outro e viu algo envolto em trapos, sobre o que parecia ser uma cama de ferro. Tentando controlar os passos, caminhou para lá, e lágrimas lhe
vieram aos olhos ao contemplar aquela estranha visão. Misturados aos trapos sujos, vários ossos se encontravam dispostos, formando um corpo humano perfeito.
- Edu!
- Eduardo!
- Diga alguma coisa, cara, estamos preocupados!
Os amigos não paravam de chamar, mas Eduardo não conseguia responder, fascinado que estava com aquela fantástica descoberta. No plano astral a seu lado, Tália chorava
muito, fitando, pela primeira vez, os restos do que um dia fora o seu corpo. O neto, sem saber, captou-lhe as impressões e chorou também. Ajoelhado ao lado do colchão
desmanchado, passou os dedos de leve sobre os ossos e soltou um suspiro.
- Ah! Minha avó, então foi aqui que você se meteu, hein?
Em poucos instantes, Márcio alcançou o quarto e acercou-se de Eduardo.
- Puxa Edu! Porque não respondeu? Estávamos preocupados... - calou-se espantado, vendo o monte de ossos aos pés do amigo. - É... É a sua avó?
- É o que parece. Mas só um teste de DNA poderá nos dizer.
- Meu Deus! O que vamos fazer?
- Recolher os ossos, dar uma olhada em tudo e ir embora. O resto é com o laboratório.
Márcio foi correndo, na medida do possível, para buscar uma caixa. Voltou poucos instantes depois e ajudou Eduardo a colocar os ossos lá dentro. Com cuidado, foram
fazendo o caminho de volta, escolhendo as tábuas em que deveriam pisar para não cair. Os amigos embaixo ajudaram a descer o caixote, e Edu e Márcio desceram em seguida.
- Pronto - disse Eduardo, batendo as mãos para limpá-las. - Missão cumprida.
- Será que é mesmo a sua avó que está nessa caixa? - indagou um dos rapazes.
- Edu vai mandar fazer um teste de DNA - disse Márcio. - Não vai, Edu?
- Vou sim. Ainda que minha mãe não queira nem saber, tiro o meu sangue e mando analisar tudo. Tenho que descobrir.
Ao ouvir aquelas palavras, Tália fitou Sílvia com ar de interrogação.
- Faz muito tempo que você desapareceu - esclareceu Sílvia. - Ninguém nunca soube do seu paradeiro. Pensaram que você havia largado tudo e sumido no mundo. Depois
de algum tempo, começaram a desconfiar que você havia morrido. Procuraram daqui, indagaram dali, até detetive contrataram, mas ninguém conseguiu descobrir nada.
- Nunca encontraram esse lugar?
- Como poderiam? É longe de tudo, da cidade e das fazendas. Quando você comprou este sítio, usou seu verdadeiro nome, lembra-se? Maria Amélia Silveira Matos. Naqueles
tempos sem televisão, quem é que ouviu falar em Maria Amélia?
- Mas ninguém nunca nem desconfiou de que eu poderia ter-me escondido aqui?
- Como, Tália? Por que viriam a esse fim de mundo para procurá-la? Você nunca contou que havia comprado esse sítio.
- É verdade... - lamentou-se com pesar. - E como foi que me descobriram agora?
- Um homem comprou as terras vizinhas e se interessou por estas. Foi ao cartório da cidade, mandou fazer uma pesquisa e descobriu que o sítio havia sido comprado
por uma tal de Maria Amélia Silveira Matos. Tampouco ele sabia quem você era, mas não foi difícil descobrir. O detetive por ele contratado investigou e descobriu
que Maria Amélia era o nome verdadeiro de uma antiga e famosa vedete, Tália Uchoa, desaparecida na década de 1950. Com essa informação, o resto foi fácil. Ele achou
a sua filha no Rio de Janeiro, e ambos chegaram à conclusão de que a assinatura no livro do cartório era mesmo a sua. Sua filha vendeu as terras sem nem titubear,
mas seu neto, fascinado com as suas histórias, pediu para vir averiguar. O resto, você mesma viu.
Tália chorava de emoção ao ouvir falar de pessoas e coisas que há muito enterrara em seu passado. Sentiu que havia perdido uma grande parte de sua vida e olhou para
o neto, que ia longe com os amigos e a caixa contendo seus ossos.
- Minha filha... Pelo que pude perceber Diana não quer nem ouvir falar de mim.
- Ela ficou muito ressentida com o seu abandono e nunca conseguiu superar.
Tália balançou a cabeça, apertando os lábios para não soluçar, e indagou hesitante:
- Quem foi que a criou?
- O pai.
- Honório?
- Ela tem outro?
- Mas... Mas Honório não sabia que ele era o pai. Eu nunca contei...
- Você não contou, mas...
- Ione? - Sílvia assentiu. - Não pode ser! Ela me prometeu...!
- Você deixou uma filha órfã. O que esperava que ela fizesse?
- Não foi minha intenção abandoná-la.
- Mas a menina acabou ficando só, de todo jeito. Honório se revelou excelente pai, e Diana cresceu em um ambiente harmonioso e equilibrado, apesar de tudo.
- Ele criou Diana sozinho? Não acredito.
- Sozinho, não. Criou-a com a ajuda da esposa.
- Honório se casou? Quem diria... Com quem?
- Maria Cristina.
- O quê? Honório casou-se a minha irmã? Como ele pôde fazer isso comigo? Ele sabia que Maria Cristina e eu não nos dávamos bem.
- Pois ela se deu muito bem com ele, e melhor ainda com Diana.
- Não é à toa que minha filha me odeia.
- Ela não a odeia. Foi criada pela tia porque a mãe sumiu no mundo e a abandonou. Como esperava que ela se sentisse?
- Eu não a abandonei!
- Mas é nisso que ela acredita até hoje.
- A verdade se perdeu depois que eu parti...
- Cada coisa está no seu lugar, seguindo o curso que a natureza traçou. E depois, não vejo por que se preocupar com isso agora. Não foi você mesma quem quis assim?
- Não quis me matar - respondeu Tália acabrunhada.
- Mas você morreu e a vida teve que continuar sem você.
- Honório... - divagou Tália. - Foi há tanto tempo... Como será que ele está?
- Se essa pergunta é para mim, saiba que ele está muito bem, apesar da idade avançada.
- Ele ainda está vivo?
- Hã, hã.
- E Maria Cristina? E Ione? E... Os outros?
- Ele é o único que vive entre os encarnados. Os outros já partiram.
- Por que nunca os vi?
- Respeitaram a sua vontade de não ser incomodada e nunca a procuraram.
- E Honório?
- Está com mais de noventa anos e ainda goza de saúde regular para um homem de sua idade. Mas agora chega. Todos já se foram. Vamos embora também.
Tália olhou para a trilha aberta na mata por seu neto e os demais e percebeu que eles haviam desaparecido. Olhou mais uma vez ao redor e deteve o olhar por uns segundos
a mais sobre o local em que seus ossos haviam jazido e sentiu o peito se confranger. Perdera uma parte importante de sua vida, enfurnada no astral como se ele fosse
um campo de refugiados. Aquilo não era uma guerra. Os tempos de guerra eram parte do passado, assim como ela.



Capítulo 1


Maria Amélia e Maria Cristina sempre foram diferentes em tudo: na beleza, na inteligência, no temperamento, nos afetos. Enquanto Cristina, a mais nova, era extrovertida
e alegre, linda, esbelta e adorada por todos, Amelinha era tímida e retraída, cheinha de corpo e nada simpática. Cristina era a preferida da mãe, Tereza, enquanto
Amelinha era praticamente ignorada e tratada como se fosse uma aberração na família. Cristina era meiga e dócil, ao passo que Amelinha era agressiva e mal-humorada.
Não gostava da mãe, nem do padrasto, que considerava um estranho, nem da irmã, a quem via como inimiga. Essa era a sua família, com quem vivia na pequena cidade
de Limeira, no interior de São Paulo.
Naquela época, Amelinha acabara de completar treze anos, e Cristina estava para fazer onze. Amelinha não possuía amigas, e havia apenas uma menina com quem nunca
havia brigado e com quem costumava conversar de vez em quando. Chamava-se Cássia e tinha um irmão, Elias, de quinze anos, que era o sonho de todas as mocinhas da
cidade, inclusive de Amelinha, que o admirava em segredo.
Os garotos gostavam de se divertir e viam em Amelinha o alvo principal de suas piadas. Naquele dia, em especial, não foi diferente. Ao sair da escola e se despedir
de Cássia, Amelinha notou que alguém a seguia e virou-se para trás, dando de cara com Elias, que a acompanhava à distância. Imediatamente, sentiu o rosto arder e
estugou o passo, com medo de que ele pudesse ouvir o compasso acelerado de seu coração. Era um menino lindo, mas ela não tinha o direito de admirá-lo. Garoto feito
Elias era para sua irmã Cristina, a quem ele logo estaria cortejando.
- Amelinha! - ele chamou por cima de seu ombro, caminhando quase a seu lado. - Espere Amelinha, quero falar com você.
Amelinha parou onde estava, sem se voltar, tentando ocultar-lhe o rubor que subia pelas suas faces.
- O que você quer? - tornou envergonhada e ao mesmo tempo, cheia de felicidade por estar falando com ele.
- Por que a pressa, Amelinha? Gostaria de conversar.
- Sobre o quê?
Ele se postou em sua frente e questionou com olhar significativo:
- Você não sabe?
- Não.
- Por que não vamos a algum lugar onde possamos conversar melhor?
Ela olhou ao redor e respondeu hesitante:
- Não sei... Minha mãe pode não gostar.
- Mas é só um instantinho.
- Por quê?
- Venha. É importante.
- O que você pode ter de tão importante para me dizer?
- Não quero falar aqui. Alguém pode nos ver.
- E daí? O que tem isso?
- Venha Amelinha, por favor.
Saiu puxando-a pela mão, e Amelinha deixou-se conduzir, completamente inebriada pelas palavras dele. Seria possível que ele estivesse interessado nela? Mas como?
Elias nunca deixara transparecer nada. Ao contrário, sempre ria quando os outros meninos
debochavam dela e algumas vezes chegaram mesmo a lhe atirar piadinhas.
Sem nem se dar conta do lugar para onde ia, Amelinha ia seguindo-o em silêncio, presa na ilusão do conto de fadas que parecia estar prestes a viver. Na beira de
um regato, Elias parou embaixo da árvore mais frondosa que havia por ali e encostou-a no seu tronco áspero e grosso. Mal acreditando no que acontecia, Amelinha não
opôs nenhuma resistência. Estava tão inebriada pela paixão daquele momento que nem percebeu que não estavam sozinhos: em cima da árvore, dois moleques, amigos de
Elias, espremiam-se entre os galhos e as folhas para não despertar a atenção.
- Muito bem... - balbuciou ela. - O que você quer?
- Sabe, Amelinha, eu estive pensando. Não é certo o que os garotos fazem com você.
- Não?
- É claro que não. Ficam rindo de você só porque é gordinha.
Em cima da árvore, os meninos abafaram uma risada, enquanto Amelinha não sabia se se zangava com o que Elias dissera ou se felicitava por estar ali ao lado dele,
ouvindo suas palavras sinceras.
- Eu não penso como eles - sussurrou Elias, encostando os lábios em seus ouvidos.
- Não?
- É claro que não. Não creio que você seja gordinha. - encostou a boca na sua orelha e soprou, fazendo com que Amelinha sentisse arrepios por todo o corpo. - Nem
acho você feiosa, nem sem graça. Também não a acho estúpida.
Amelinha achava que Elias não precisava ficar repetindo aquelas coisas, mas não ousou protestar. Se ele se zangasse e fosse embora, ela jamais se perdoaria. De cima
da árvore, os outros garotos quase dobravam de tanto rir, esforçando-se ao máximo para não ser ouvidos.
- Na verdade, Amelinha - prosseguiu Elias, com voz melíflua, - não sei bem o que sinto por você. Quando a vejo, meu coração dispara.
- Você está falando sério? - ela mal podia acreditar. - Você gosta de mim?
- Hã, hã...
- Oh! Elias, você nem imagina a felicidade que estou sentindo. Pois eu sempre gostei de você!
- Não acredito.
- É verdade. Pensei que você não ligasse para mim, que fosse igual a todo mundo, mas agora vejo que não é.
- Não sou igual a todo mundo, Amelinha. Todo mundo a acha gorda e feia.
- Você não...
- Eu não acho.
- Você é maravilhoso, Elias! Acho que o amo... Estou apaixonada... Você é o garoto mais lindo da escola. Não! Da escola, não. Da cidade. Ah! Meu Deus será isso verdade?
- Sim. E eu é que fico o tempo todo pensando em como seria estar com você.
Enquanto falava, Elias ia roçando os lábios pelo seu pescoço e alisando o seu corpo, até que lhe tocou os seios.
- Não faça isso... - ela tentou protestar.
- Por quê? Não está gostando?
Amelinha não respondeu. Deixou que ele a acariciasse e a deitasse no chão, beijando-a por toda parte. Parecia que estava sonhando. Jamais, em toda a sua vida, sentira
algo semelhante. Por um instante, ficou imaginando o que a mãe diria se a surpreendesse ali, mas não se importou. Aquele momento único valia todos os castigos e
surras que pudesse levar. Mesmo que nenhum outro rapaz a quisesse depois daquilo, ainda assim, valeria à pena. Talvez até não precisasse mais de ninguém, porque
Elias a amava e, certamente, iria se casar com ela quando os dois tivessem idade bastante.
Estava tão embevecida com Elias que se deixou acariciar e beijar, aproveitando ao máximo aquele momento de felicidade. Olhos fechados, sentia-se flutuando nas nuvens.
Ao longe, ouvia os murmúrios do rapaz, que agora começava a levantar sua saia. Com um sorriso de prazer nos lábios, ela revirou o pescoço e entreabriu os olhos.
Queria olhar o céu e se sentir, realmente, nas nuvens.
Mas não foi o céu que ela avistou. Por entre os galhos e folhas das árvores, não havia nenhuma nuvem a lhe deleitar a visão. Ao invés disso, dois garotos estavam
deitados sobre os galhos, imóveis, um sorriso irônico nos lábios. Ao vê-los, Amelinha deu um salto, empurrando Elias para o lado.
- O que é isso? - espantou-se, recompondo-se e ajeitando o vestido. - O que vocês estão fazendo aí, seus moleques?
Na mesma hora, os garotos pularam para o chão, às gargalhadas, e Amelinha virou-se para Elias, certo de que ele a iria defender. Elias, porém, ria com os outros.
- Elias... - balbuciou ela. - O que está acontecendo? Do que é que você está rindo?
O garoto não respondeu, mas um dos meninos se adiantou e exclamou:
- De você, sua tonta!
- Apaixonada, hein? - debochou o outro. - O garoto mais admirado da escola, apaixonado pela mais gorducha. Será que dá para acreditar?
Amelinha sentiu o rosto arder. Olhou para Elias com ar de súplica, esperando que ele lhe dissesse que aquilo era mentira, mas ele nada disse.
- Diga que não é verdade, Elias - implorou. - Diga que você não está rindo de mim.
- E de quem mais poderia ser? - zombou Elias, com sarcasmo. - Da árvore? Não, deixe ver... Dos galhos das árvores, que criaram vida e pularam no chão às gargalhadas.
Enquanto falava, ia dobrando o corpo, apertando a barriga que já doía de tanto rir.
- Mas... Você disse que não era como os outros garotos... Que não pensava aquelas coisas de mim.
- Realmente. Não creio que você seja só feia, gorda e burra. Acho você horrorosa, balofa e, pelo que acabei de ver, uma tremenda idiota.
Ela não ouviu mais nada. Tapou os ouvidos e desatou a correr, chorando, o rosto enrubescido de vergonha e dor. Sentia-se traída e extremamente infeliz. Como fora
estúpida! Então não via que garotos como Elias nunca se interessariam por meninas feito ela? Elias era o bonitão da escola, e todas as meninas se diziam apaixonadas
por ele. Podia escolher quem quisesse. O que a fazia pensar que ele iria se interessar logo por ela? Como não percebera que tudo não passava de um embuste, uma armadilha
para se divertirem às suas custas?
Pior seria no dia seguinte. Na certa, todos na escola ficariam sabendo, e a risada seria geral. Por que Elias fizera aquilo com ela? Por que tivera que ser tão cruel
e sarcástico? Será que não tinha sentimentos?
Chegou a casa e entrou feito um furacão. A mãe estava na cozinha e a ouviu passar, chamando-a com voz estridente:
- Maria Amélia, venha já aqui!
Amelinha não respondeu. Atirou-se na cama e se deixou ficar, soluçando em desespero. Na cama ao lado, Cristina, debruçada sobre um livro, olhou-a com espanto e indagou
aflita:
- Pelo amor de Deus, Amelinha! O que foi que aconteceu?
- Não seja cínica, Cristina! Aposto como você sabia de tudo!
Na mesma hora, Tereza entrou no quarto, ainda com a colher de pau na mão, e, vendo o estado da filha, indagou perplexa:
- O que foi que houve Amelinha? Aposto como fez alguma besteira, não foi? O que foi desta vez? Meteu-se em alguma briga? É isso que dá ficar por aí feito uma moleca.
Se tivesse vindo para casa, nada disso teria acontecido.
Tomada pela revolta e o ressentimento, Amelinha não conseguiu responder. Ao contrário, chorava cada vez mais, até que Cristina resolveu intervir:
- Mãe, a senhora não vê que ela está nervosa?
- Não preciso que me defenda sua fingida! - esbravejou Amelinha, correndo para o banheiro e trancando a porta.
- O que deu nessa menina? - continuou Tereza, em tom de censura.
Cristina deu de ombros e retomou a leitura. Embora preocupada com a irmã, preferiu não dizer mais nada. Não entendia porque Amelinha não gostava dela e sentiu-se
magoada com a sua atitude.
- Vai ficar sem almoço, ouviu? - berrou Tereza, da porta do banheiro. - Assim talvez aprenda a se comportar e não se atrasar na hora das refeições.
Só muito mais tarde foi que Amelinha apareceu, o estômago doendo de tanta fome, sem nada para comer. A despensa estava trancada. No forno, apenas algumas panelas
vazias, e nada sobre o fogão. A mãe não estava por perto. Na certa, havia saído para fofocar com as vizinhas, como era seu costume.
Foi para o quarto e fechou a porta, atirando-se na cama, desolada. Cristina também havia saído. Terminara a lição de casa e fora brincar, de forma que ela podia
ter alguma paz, acabando por adormecer. Quando acordou, já era noite, e do outro lado do quarto, a irmã mudava de roupa, olhando para ela sem dizer nada.
- Que horas são? - perguntou Amelinha.
- Quase sete horas. Melhor descer para o jantar, se não quiser que mamãe se aborreça. E não se esqueça de trocar de roupa. Está de uniforme até agora.
O tom arrogante de Cristina quase fez com que Amelinha gritasse, mas conseguiu se conter a tempo, com medo de que a mãe ouvisse e ralhasse com ela. Além disso, o
padrasto, Raul, já estava em casa àquela hora, e ela não queria lhe dar nenhum motivo para puxar assunto. Não gostava dele, e, sempre que podia, evitava a sua companhia
e a sua conversa.
Trocou-se rapidamente e desceu para o jantar. Todos já estavam sentados à mesa, e Tereza enchia de sopa o prato de Raul. Ela chegou em silêncio e sentou em seu lugar
de costume.
- Já se lavou? - indagou Raul, reparando no seu rosto amassado.
Amelinha lançou um olhar breve para Cristina e respondeu sem muita convicção:
- Já...
- Ótimo - comentou a mãe. - Sabe que seu pai gosta de muita limpeza.
- Ele não é meu pai - murmurou Amelinha sem querer, levando um tapa na boca.
- Menina respondona! - vociferou a mãe. - Não foi essa a educação que lhe dei.
- Deixe Tereza - objetou Raul. - Amelinha não falou por mal, não foi, Amelinha?
- Ela apenas assentiu, sem encarar o padrasto. Ele parecia muito correto em tudo o que fazia. Era trabalhador e honesto, e não deixava que lhes faltasse nada. Acordava
cedo e ia para a vidraçaria onde era gerente e, de vez em quando, trazia-lhes alguns bombons, que a mãe não a deixava comer. Esperava que ela fosse para o quarto
e dividia os bombons entre ela e Cristina, alegando que era para Amelinha não engordar ainda mais. Nas primeiras vezes, Cristina tentou lhe dar alguns, mas ela recusou
com veemência. Na certa, a irmã fazia aquilo para, mais tarde, poder contar à mãe que ela comera sem autorização.
- Enquanto jantavam, Amelinha sentia os olhares do padrasto sobre ela, o que lhe causava imenso mal-estar. Por mais que Raul se esforçasse, ela não conseguia gostar
dele. A irmã e ele pareciam se dar muito bem, mas Cristina sempre fazia de tudo para agradar a mãe. Dar-se bem com o padrasto era algo que satisfazia muito Tereza,
certa de que encontrara o pai ideal para suas filhas.

***

No dia seguinte, Amelinha ainda tentou se fingir de doente, mas não adiantou. A mãe não se deixou convencer e obrigou-a a ir à escola. Se ela não tinha nenhum motivo
bastante sério para faltar, então que se aprontasse e fosse. Muito a contragosto, Amelinha teve que obedecer. Era costume Amelinha se retardar alguns minutos, só
para não seguir em companhia de Cristina, mas, naquele dia, a irmã resolveu esperá-la. Amelinha não queria seguir com ela, mas não teve jeito. A mãe lhe daria outra
bronca e gritaria que ela era uma irmã má e egoísta.
- Saíram juntas. Depois que dobraram a primeira esquina, Amelinha considerou mal-humorada:
- Por que não vai procurar suas amiguinhas, Cristina?
- Gostaria de saber o que aconteceu.
- Nada. Não aconteceu nada.
- Não é o que parece. Você está estranha desde ontem.
- Isso não é da sua conta! Garota intrometida, por que não se mete com a sua vida?
Cristina segurou as lágrimas nos olhos e adiantou o passo, indo ao encontro de outras meninas que caminhavam mais à frente. Amelinha tinha certeza de que a irmã
a espionava e contava tudinho à mãe. Mas não iria mais lhe dar a chance de rir dela pelas costas nem de se fazer passar por boazinha diante da mãe e do padrasto.
Ela não a enganava com aquela carinha de menina meiga. Era uma sonsa, cínica, fingida, a queridinha de todo mundo. Só porque era mais bonita, achava que podia tripudiar
sobre ela. Cristina podia ser a mais bonita, mas não era a mais inteligente. Ninguém via isso porque não lhe davam chance de mostrar o que sabia. A mãe só estava
interessada nas proezas de Cristina, e tudo que ela, Amelinha, fazia não servia para nada.
À medida que ia se aproximando da escola, seu coração começou a disparar. Parado no portão de entrada, Elias conversava com alguns garotos, dentre os quais, os dois
da tarde anterior. Novamente, Amelinha sentiu o rosto arder, mas procurou se encher de coragem e avançou. Os meninos apontaram para ela e começaram a rir, e suas
orelhas pareciam pegar fogo. Enquanto ia caminhando, mais e mais risadas se ouviam, agora de outras pessoas, inclusive de algumas meninas que ela nem conhecia. Entrou
apressada e foi para a sala de aula sem falar com ninguém, fugindo dos deboches e dos risinhos.
Na hora do recreio, foi obrigada a sair para lanchar e reparou que todo mundo ria dela. Algumas pessoas nem sabiam da história, mas o só fato de estarem rindo fazia
com que Amelinha pensasse que era dela que riam. Um grupinho de meninas da turma de sua irmã riu quando ela passou, o que a deixou furiosa. Cristina queria se fazer
passar por boazinha, mas estava lá entre as zombeteiras.
Na saída, ao voltar para casa, encontrou Cristina à sua espera. A irmã acercou-se dela e tentou contemporizar:
- Por que não conversa comigo, Amelinha?
- Para quê? Para debochar de mim ainda mais, como tudo mundo está fazendo?
- Não tenho nada a ver com isso.
- Será que não? Não está se divertindo?
- Não.
Ela estacou e fitou a irmã com frieza.
- Mentirosa.
Virou-lhe as costas e seguiu para casa. Cristina não se aproximou mais. Foi caminhando atrás dela, sem chegar muito perto. Também já não agüentava mais levar tanto
passa-fora. Amelinha entrou e, cinco minutos depois, Cristina também entrou. As duas foram lavar as mãos e trocaram de roupa, sentando-se para o almoço. Tereza estava
alegre e puxava conversa com Cristina, praticamente ignorando a presença de Amelinha. Quando lhe dirigia a palavra, era para fazer alguma recriminação ou comentário
maldoso, o que fazia com que ela odiasse Cristina cada vez mais. Por que só a irmã era perfeita, e ela era a que sempre fazia tudo errado?
Mais tarde, como sempre, Tereza terminou o serviço de casa e saiu para suas habituais conversas com as vizinhas. Voltou em seguida, furiosa, e adentrou o quarto
das meninas com os olhos chispando fogo.
- Sua ordinária! - esbravejou, estalando um tapa na face de Amelinha. - Então eu me esforço para lhe dar uma educação decente, e é assim que você me paga? Fica por
aí se esfregando com os garotos feito uma vagabunda?
- Não foi culpa minha - defendeu-se Amelinha, sem que a mãe lhe desse ouvido.
- E eu ainda tenho que escutar os comentários maldosos das vizinhas. Imagine a minha cara quando me contaram! Quase morri de vergonha. O que foi que você fez Amelinha?
- Não fiz nada...
- E ainda dá mau exemplo para a sua irmã, que é mais nova do que você.
- Mas eu não fiz nada!
- Por que não é como Cristina? Por que tinha que ser uma aberração? Não basta ser gorda e feia? Também tem que ser oferecida e vulgar? Ah! Mas isso não vai ficar
assim. Espere só até seu pai chegar.
- Ele não é meu pai!
- Cale essa boca, menina ingrata! Será que não pode mostrar um pouco de reconhecimento pelo que Raul tem feito por nós? Por você, inclusive?
- Mamãe, tenha calma - intercedeu Cristina, vendo que a mãe ameaçava bater em Amelinha novamente.
- Não quero você metida nisso, filha. Você ainda é muito novinha para se envolver com essa sujeira.
- Mas Amelinha não fez nada...
- Não preciso que você me defenda sua cretina! - berrou Amelinha.
A mãe virou-lhe nova bofetada no rosto, gritando histérica:
- Cretina é você! Então não vê que sua irmã ainda está tentando ajudá-la?
- Não preciso da ajuda dela! Não preciso da ajuda de ninguém!
Desvencilhando-se da mãe, Amelinha correu porta afora, esbarrando em Raul, que vinha chegando do trabalho.
- O que foi que houve? - perguntou ele. - Por que a pressa?
- Solte-me! Largue-me! Deixe-me ir!
Tereza veio correndo, seguida por Cristina, e esclareceu com raiva:
- Essa safada... Você não sabe o que essa safada fez Raul!
- O quê?
- Andou se esfregando por aí com um garoto.
- Como? Não acredito. Amelinha não faria uma coisa dessas.
- Pois é verdade. E sabe como eu descobri? A Gertrudes me contou. Logo ela, aquela fofoqueira. A filha dela estuda na mesma escola que Amelinha e disse que o comentário
do dia foi esse: que Amelinha ficou se insinuando para o rapaz, que é homem, e você sabe como os homens são suscetíveis a essas coisas. A sorte foi ter aparecido
alguém, ou ela teria se perdido!
- Amelinha - chamou Raul, em tom extremamente sério. - Isso é verdade?
- Não...
- É mentira! Sei que aconteceu!
- Não, não! Não fui eu. Foi ele que começou a me beijar e...
- E você bem que gostou, não foi, sua sem-vergonha?
- Eu não sabia... Pensei que não fizesse mal...
- Quer saber o que eu acho Tereza? - interrompeu Raul, com ar mais amistoso. - Que isso é coisa de criança. Logo passa.
- Criança? Amelinha já é uma moça!
- É verdade que Amelinha já está ficando uma mocinha, mas ainda é uma criança. E você não devia se importar com essas fofocas, Tereza.
- O quê? E o que acha que eu devo fazer? Nada?
- É isso mesmo. Não faça nada. Não dê importância e você vai ver como o assunto acaba. - Tereza fez cara de assombro, mas Raul não se deixou impressionar. - E agora,
por que não vamos todos jantar? Estou morrendo de fome.
Apesar do espanto, Tereza não contestou. Raul era o homem da casa agora, e não ficava bem discutir com ele na presença das filhas. Mais tarde, quando já estavam
recolhidos, ela retomou o assunto, mas ele parecia disposto a manter sua decisão.
- Você está sendo muito dura com ela.
- Mas Raul, ela quase se entrega ao rapaz!
- Aconteceu alguma coisa?
- Ao que parece, não. Mas estão todos falando.
- Pois então, deixe isso para lá. Se você não alimentar a fofoca, ela míngua e morre.
- Isso não está direito, Raul. Nossa filha, de sem-vergonhice com aquele moço.
- Ela é só uma criança.
- Ela não é mais criança! Já ficou até mocinha.
- Se é assim, por que não conversa com ela e não a esclarece sobre certas coisas?
- Eu?! Você sabe como é Amelinha. Ela não vai me ouvir.
- Francamente, Tereza, acho que você é que não tem paciência com ela. Só a vejo recriminando-a.
- É que ela não faz nada direito. Só pensa em comer e engordar.
- Você não repara mesmo em sua filha, não é? Ela está crescendo e botando corpo de mulher.
Tereza abriu a boca, indignada, e mudou o tom de voz:
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer que sua filha está virando mulher e você nem percebe.
- Ainda há pouco você disse que ela era só uma criança.
- É uma criança porque só tem treze anos, mas suas formas já estão mudando. A gordura da infância está dando lugar a curvas de mulher.
- Você reparou nisso?
- Só um cego para não reparar.
Havia algo no tom de voz de Raul que deixou Tereza preocupada. Ele falava de Amelinha com uma admiração que a impressionou. Seria possível que Raul estivesse de
olho na menina? Não, não era possível. Amelinha era apenas uma criança, e Raul, um homem de mais de quarenta anos. Além disso, era decente e honesto, não um daqueles
tarados que se aproveitavam das enteadas para lhes fazer mal. Raul não era desse tipo. Ou será que era?
Se fosse, era preciso dar um jeito naquela situação. Ela já estava ficando velha, e era só o que lhe faltava perder o homem para a filha. Não, de jeito nenhum perderia
seu marido. Se alguém tinha que ir embora dali, que fosse Amelinha. Tinha certeza de que Amelinha era culpada de tudo aquilo. Como estava crescendo, aproveitava-se
de sua juventude para provocar os homens, inclusive o padrasto. E ela, que sempre julgara a filha uma feiosa, agora estava em dúvida. Seria ela assim tão feia a
ponto de não despertar o interesse de nenhum homem? Para uma menina feia, até que já se envolvera com homens demais em tão pouco tempo. Primeiro, com o colega de
escola. Agora, com Raul. Ainda que o menino estivesse apenas caçoando dela, será que a teria escolhido se ela já não apresentasse formas de mulher?
Tereza não disse mais nada. Tinha medo de falar e chamara atenção de Raul. Talvez ele apenas estivesse tentando defender a menina, nada mais. De qualquer forma,
era bom não facilitar. Daquele dia em diante, não deixaria mais Amelinha sozinha com ele. Não lhe daria a oportunidade de estragar o seu casamento.


Capítulo 2


Conforme prometera a si mesma, Tereza não deixou mais Amelinha e Raul a sós. Daquele dia em diante, passou a reparar mais na filha. Realmente, suas gordurinhas iam
aos poucos desaparecendo e, em seu lugar, curvas femininas e graciosas iam surgindo. Amelinha nem se dava conta dessas transformações. Tudo o que sabia era que nem
a mãe, nem a irmã, gostavam dela, e os colegas da escola então, praticamente a detestavam.
Mas não foi apenas por Raul que as mudanças no corpo de Amelinha foram percebidas. Muitos dos rapazes também já começavam a reparar nela, principalmente os mais
velhos. Amelinha nunca foi magra, mas deixava de ser gorda. A cada dia, tornava-se uma moça mais bonita, de formas voluptuosas que passaram a despertar o interesse
de vários homens da região. O próprio Raul vivia alertando Tereza dos perigos de deixar Amelinha solta pelas ruas, pois o seu jeito ingênuo ainda acabaria lhe trazendo
problemas.
Tereza considerava excessiva aquela preocupação, mas não dizia nada. Tinha horror de que Raul soubesse de suas desconfianças e, mais ainda, de despertar nele qualquer
desejo ainda não reconhecido. Suas atenções voltavam-se todas para o marido, sem se importar com o que poderia acontecer a Amelinha. Estava tão cega de ciúme que
não dava importância ao que ele dizia. Para ela, suas palavras demonstravam um interesse latente pela filha, e era só isso o que lhe importava.
Foi num dia, na volta da escola, que Amelinha percebeu, pela primeira vez, o desejo que despertava nos homens. Os garotos mais jovens, ainda acostumados a zombar
de sua gordura, mal tinham notado as transformações de seu corpo. Mas os homens mais maduros não podiam deixar passar despercebida tanta mudança.
Como de costume, Amelinha despediu-se de Cássia na esquina e seguiu sozinha para casa. Muitos passos atrás, Cristina vinha conversando com uma amiguinha e, de vez
em quando, olhava para a irmã, que caminhava apressada, a fim de que ela não a alcançasse. Por onde passava, Amelinha causava certo impacto nos homens, e vários
foram os que se viraram para admirá-la. Mas Amelinha só notou mesmo quando o Chico, um mecânico bêbado que consertava caminhões, mexeu com ela quando passou.
- Fiu! Fiu! - assobiou excitado.
A primeira reação de Amelinha foi de indignação. Como aquele homem, um bêbado sem-vergonha, se atrevia a assobiar para ela? Amelinha parou e se virou para ele, pronta
a lhe dizer um desaforo, quando ele, passando a língua nos lábios, prosseguiu em tom lúbrico:
- Mas que gostosinha! Eta garotinha boa!
Ela achou aquilo um desrespeito, mas, naquele momento, algo despertou dentro de si. Chico podia ser um bêbado, um vagabundo que nem sabia consertar direito os caminhões
que lhe levavam, mas, assim mesmo, era um homem. Um homem que, apesar da linguagem chula e da grosseria, achara-a, pelo menos, interessante.
- Está falando comigo, seu Chico? - retrucou ela, entre indignada e envaidecida.
- Estou. Por quê? Você gostou? - disse ele, aproximando-se mais de Amelinha.
Assustada, ela desatou a correr. Não sabia bem o que ele queria, mas, certamente, não podia ser boa coisa. Aproximara-se dela com um estranho brilho no olhar, e
ela se sentiu despida diante dele. O que será que pretendia? Entrou em casa correndo e ofegante, e a mãe ralhou com ela, como sempre:
- Será possível que você só vive correndo? Veja se sossega ou vai acabar derrubando alguma coisa.
Nem uma palavra sobre o que estaria se passando. A mãe não se importava mesmo com nada que lhe acontecesse. Amelinha achava que podia até ser atropelada, que a mãe
nem ligaria. Logo após, Cristina também entrou, muito séria e calada.
- O que você tem minha filha? - perguntou Tereza, aproximando-se de Cristina e tomando-a nos braços. - Está sentindo alguma coisa?
- Não, mãe, estou bem - respondeu Cristina, olhando Amelinha de um jeito estranho.
- Por que está tão séria?
- Estou com fome.
- Ufa! Pensei que estivesse passando mal. Amelinha não pôde deixar de sentir uma pontada de ciúme. Ou melhor, de inveja. Não havia acontecido nada com a irmã, mas
a mãe se preocupava só porque ela não entrara com seu habitual riso de hiena. Enquanto ela, assustada com a atitude do Chico, não merecera sequer uma palavrinha
de interesse ou preocupação.
- Vão lavar as mãos - ordenou Tereza, alisando os cabelos de Cristina. - O almoço está quase pronto.
Em silêncio, as duas se dirigiram para o banheiro. Amelinha empurrou Cristina para o lado e ocupou a pia em primeiro lugar, ensaboando as mãos vigorosamente, esfriando
a raiva que sentia pela irmã ser tão querida.
- Vi você hoje falando com seu Chico - comentou Cristina, olhando-a pelo espelho. - O que vocês estavam conversando? - Amelinha não respondeu. - Mamãe não vai gostar
de saber. Ela diz que seu Chico é um bêbado vagabundo...
- Por que não se mete com a sua vida? - retrucou Amelinha, encarando-a com ar feroz.
- Estou apenas tentando avisá-la. Se mamãe souber que você andou falando com ele...
- E quem vai contar? Você? Vamos, pode ir. Vá correndo fazer o seu papel de queridinha da mamãe.
Cristina olhou-a magoada e saiu do banheiro sem lavar as mãos. Amelinha sentiu vontade de contar à mãe que Cristina não se lavara, mas achou melhor não dizer nada.
A mãe não acreditaria ou inventaria uma desculpa para não punir Cristina. Almoçaram em silêncio. A cada palavra de Tereza para Cristina, Amelinha se sobressaltava,
com medo de que a irmã dissesse algo sobre seu encontro com Chico. Mas Cristina nada disse e permaneceu quieta, apenas respondendo às perguntas triviais que a mãe
lhe fazia.
No dia seguinte e nos outros também, Chico continuou a mexer com Amelinha, assobiando e atirando-lhe piadinhas de mau gosto quando ela passava. Embora não lhe respondesse
nem parasse mais para falar com ele, Amelinha, no fundo, apreciava aquelas investidas. Chico podia não ser bonito nem perfumado, mas era um homem e estava interessado
nela. Não que Amelinha tivesse algum interesse nele. Apenas gostava de sentir-se admirada por alguém, ainda que por um bêbedo asqueroso e nojento.
Aos pouquinhos, Chico foi-se deixando dominar pela imagem de Amelinha, e um desejo surdo foi tomando conta de seu corpo. Acostumara-se a ficar na porta da oficina
só para vê-la passar. Assim que a avistava, soltava as ferramentas e colocava-se de prontidão. Amelinha, por sua vez, estufava o peito quando o via e empinava o
bumbum, requebrando os quadris mais do que o habitual. Fazia isso sem maldade alguma, apenas por instinto, esbanjando uma feminilidade quase animal. Amelinha ia
se transformando numa moça bonita, bem-feita de corpo e muito, mas muito sensual para os seus poucos treze anos. Só que não se dava conta disso. Sequer sabia que
podia ser assim.
Todas às vezes, Cristina vinha atrás e presenciava aqueles momentos. Amelinha passava toda rebolativa, e seu Chico assobiava e mexia com ela. Embora não aprovasse
aquele comportamento da irmã, Cristina não dizia nada, com medo de sua reação pouco amistosa. Pensou em contar à mãe, mas também desistiu, pois Amelinha acabaria
apanhando e ficaria com mais raiva dela ainda. Cristina também não imaginava o que poderia acontecer, mas, pelo que todos diziam seu Chico não era flor que se cheirasse,
e elas não deveriam se aproximar.
O silêncio de Cristina só foi rompido no dia em que Chico tentou agarrar Amelinha. A menina, como sempre, vinha com seu requebro quando o homem se aproximou e meteu
a mão na sua cintura, buscando beijá-la na boca. Apavorada, Amelinha tentou se soltar, mas ele começou a puxá-la para dentro da oficina e teria conseguido se Cristina,
vendo a cena, não desatasse a correr e a gritar. Com medo de ser surpreendido, Chico soltou Amelinha, que ofegava assustada, e entrou apressado na oficina.
- Viu só no que deu dar conversa para esse homem? - ralhou Cristina, mais apavorada do que zangada.
- Meta-se com a sua vida! - foi a resposta irada de Amelinha.
Fosse como fosse, o susto serviu para pôr um freio em Amelinha. No dia seguinte, ao avistar Chico na porta da oficina, atravessou a rua e passou sem o encarar, e
Chico também fingiu que não a vira. Foi assim nos outros dias também, até que Amelinha deixou de pensar em seu Chico e voltou a cruzar a frente da oficina, mas agora
sem o provocar.
Chico, no entanto, não se esquecia da pele macia de Amelinha. Desde que a apertara por alguns segundos, vivia assombrado com a lembrança do seu corpo suave e fresco
de menina-moça. Apesar de não mexer mais com ela e do seu fingido desinteresse, não havia dia em que, pelo canto do olho, não a observasse ao passar. Estava sempre
pensando nela, numa maneira de atraí-la para sua oficina, mas não sabia como. Além do fato de ela ter passado a evitá-lo, ainda tinha a irmã. Aquela garotinha metida
colocaria tudo a perder. Só se...
Balançou a cabeça para afastar aqueles pensamentos malditos, mas não conseguiu se desligar deles. Ficou observando Amelinha passar com o seu corpo ardente e se encheu
de desejo. Mais atrás, veio a irmãzinha. Era ainda muito novinha, e ele percebeu dois pequeninos botões sobressaindo por debaixo da blusa. A menina, apesar de criança,
já começava a botar peito, o que o encheu ainda mais de desejo. Por que não podia ter as duas?
Cristina, que ainda não despertara para as coisas do sexo, sequer virava o rosto para ele quando passava. Chico ficou observando-a também, imaginando como seria
bom se pudesse deitar-se com ela. Embora seu desejo maior fosse por Amelinha, que já tinha corpo de mulher, não faria mal nenhum ter entre os lábios aqueles botõezinhos
mal desabrochados.
Esses pensamentos o enchiam mais e mais de desejo. Todos os dias, lá vinham às duas. Amelinha, com a volúpia de um corpo ardente, e Cristina, com seus seios em miniatura
soltos por debaixo da blusa. Resolveu atraí-las. Se conseguisse pegar Amelinha, a outra, com certeza, viria logo atrás. Esperou até ver Amelinha despontando na rua
e escondeu-se atrás do balcão da oficina, tomando cuidado para que ela não o visse. Ao se aproximar, Amelinha estranhou não o ver parado ali, como era de seu costume,
e já ia passando em frente à oficina quando ouviu um gemido alto vindo lá de dentro:
- Ai! Socorro! Alguém me acuda!
Amelinha olhou, mas não viu nada. Começou a seguir avante, mas a voz a deteve novamente:
- Socorro! Por piedade, acudam-me!
Ela estacou, apurando os ouvidos. Era mesmo muito estranho que seu Chico não estivesse ali, e Amelinha espiou mais de perto. A oficina parecia escura e deserta,
e ela deu um passo para dentro. Da porta, ainda teve tempo de olhar para Cristina, que se aproximava rapidamente, e entrou hesitante:
- Olá! Tem alguém aí? O senhor está aí, seu Chico?
- Acuda-me, menina! - implorava a voz, de trás do balcão. - Estou ferido.
Sem pensar em nada, Amelinha largou a pasta escolar e correu para lá. Chico estava sentado, encostado no balcão, com as mãos nas costas, como se estivesse sentindo
dor.
- O senhor está bem?
- Eu caí e me machuquei. Pode me ajudar a levantar?
Certa de que ele estava mesmo ferido, Amelinha aproximou-se, estendendo as mãos para ajudá-lo a se levantar. Na mesma hora, ele segurou suas mãos e puxou-a para
si, derrubando-a de joelhos no chão. Rapidamente, subiu em cima dela, prendendo-lhe o corpo sob o seu, e tapou a sua boca com um pedaço de pano sujo. Com uma agilidade
fora do comum, Chico apanhou uma corda, estrategicamente colocada perto de onde eles estavam, e amarrou as mãos de Amelinha atrás do corpo.
Bem a tempo. Como era de se esperar, Cristina surgiu logo atrás. Vira Amelinha parar defronte à oficina e olhar para dentro, entrando logo em seguida. Cristina não
gostou nada daquilo e estugou o passo. Parou no mesmo lugar em que Amelinha antes parará e espiou para o interior da oficina, mas não viu nada. Da porta, chamou
baixinho:
- Amelinha, onde está você? Deixe de brincadeiras e vamos embora. Mamãe vai ficar zangada...
Das sombras, o vulto de Chico saltou sobre ela, puxando-a para dentro e trancando a porta com rapidez. A rua não era muito movimentada, mas, mesmo assim, alguém
poderia vê-los. Na oficina mal iluminada, Cristina começou a tremer, olhando para a porta, agora trancada.
- Onde está minha irmã? - perguntou ela trêmula. - O que o senhor fez com ela?
- Acha que sua irmã está aqui? - respondeu ele, passando a língua nos lábios como sempre fazia quando ardia de desejo.
- Eu a vi entrar. Onde ela está? Amelinha! Amelinha! Responda!
- Pode procurá-la, se quiser.
Ele começou a se aproximar, e Cristina foi chegando para trás, olhando ao redor, buscando para onde fugir. Foi quando ouviu um gemido abafado vindo de trás do balcão,
seguido de um baque surdo na madeira. Instintivamente, correu para lá e encontrou Amelinha amarrada e amordaçada no chão, chutando o balcão com vigor.
Sem dizer palavra, Cristina se abaixou ao lado dela e tentou tirar-lhe a mordaça, mas não teve tempo.
Chico segurou-a por trás e deitou-a no chão, quase ao lado de Amelinha. Atirou-se sobre ela e começou a rasgar seu uniforme, procurando-lhe os seios miúdos com a
boca. Cristina começou a chorar e a implorar que ele a soltasse, mas ele nem se importava com as suas lamúrias. De onde estava Amelinha chorava também e tentou acertá-lo
com um chute, mas ele parecia nem sentir. Divertia-se imensamente com aquela situação e falou com cinismo:
- Não precisa ficar com ciúmes, minha querida. Logo lhe darei o que você quer.
Não demorou muito, ele levantou a saia de Cristina e, violentamente, a estuprou. Cristina chorava desesperada e soltou um grito agudo de dor quando ele a penetrou
com violência, enquanto Amelinha se debatia, tentando em vão acertá-lo com os pés. Quanto mais elas lutavam e gritavam, mais ele se divertia, investindo furiosamente
contra o corpinho franzino de Cristina, apertando e mordendo os seus seios. Ela era tão pequenina que quase sumia debaixo dele, até que não agüentou mais e acabou
desmaiando de dor, ao mesmo tempo em que ele dava por encerrado o seu trabalho com ela.
- Agora é a sua vez - disse para Amelinha, aproximando-se dela e retirando-lhe a mordaça. - Deixei o melhor para o final.
Em breve, repetiu aquela cena grotesca. Deitado sobre o corpo de Amelinha, que, amarrada, quase não podia oferecer resistência, estuprou-a com ainda mais ferocidade
do que havia usado com Cristina. A menina chorava e se debatia, mas não conseguia se desvencilhar. Chico fez de tudo com ela: bateu, mordeu, seviciou-a... Ouvindo
os seus gritos e o seu pranto, Cristina voltou a si, mas não conseguiu se mexer. Não havia apanhado, mas o corpo todo lhe doía, como se lhe tivessem arrancado as
entranhas. De onde estava, ficou vendo Chico estuprar a irmã, chorando desconsolada.
Quando ele acabou, levantou-se triunfante e pôs-se a vestir-se em silêncio, olhando de uma para outra e sorrindo ironicamente. Enquanto terminava de afivelar o cinto,
ouviu a voz hesitante e trêmula de Amelinha:
- Você vai pagar por isso... Vai para a cadeia...
Ele não respondeu. Terminou de se aprontar e virou as costas para elas, indo apanhar uma pequenina mala que estava escondida a um canto da oficina. Olhou para as
duas e respondeu com desprezo:
- Ninguém vai colocar as mãos em mim. Vou-me embora desse lugar maldito, onde ninguém me trata feito gente, mas não sem antes me aproveitar da única coisa que presta
por aqui.
Cuspiu no chão com desdém e abriu a porta da oficina, saindo para a rua e trancando a porta ao passar. Cristina não parava de chorar, e Amelinha precisou gritar
para que ela a ouvisse:
- Pare de chorar e venha me desamarrar!
Ainda aos prantos e sentindo enorme dor, Cristina conseguiu se arrastar até onde Amelinha estava e a desamarrou. Segurando no balcão, Amelinha se levantou e puxou
a irmã pelo braço.
- Ai! - gemeu Cristina, arriando o corpo no chão novamente. - Dói demais!
Embora a violência usada em Cristina tivesse sido um pouco menor, ela era muito pequenina e estava toda machucada e dolorida, de forma que não conseguiu se manter
em pé. Amelinha, por sua vez, sustentada pelo ódio que sentia naquele momento, começou a caminhar em direção à porta. Experimentou a maçaneta, mas a porta não se
abriu.
- Estamos trancadas aqui dentro. E o maldito levou a chave.
Cristina redobrou o choro, com medo de que nunca mais as achassem ali. Sem lhe dar atenção, Amelinha começou a esmurrar a porta, sentindo uma dor lancinante espalhando-se
por todo o seu corpo. Mas não podia parar. Se quisessem sair dali, tinham que reunir forças e tentar. Demorou muito até que alguém a ouvisse. A mãe, vendo que elas
não chegavam, tinha chamado Raul e alguns vizinhos, e todos saíram à sua procura, percorrendo o caminho que elas faziam na volta da escola. Um dos vizinhos, ao passar
por ali pela décima vez, ouviu o barulho na porta e se aproximou, constatando que as meninas estavam presas na oficina do Chico. Logo chamou os demais e arrombaram
a porta.
Coberta de vergonha e dor, Amelinha sentiu as pernas tremerem e desabou no chão assim que a porta se abriu. E a última coisa de que pôde se lembrar mais tarde foi
do vulto da mãe, passando por ela horrorizada, os braços estendidos em direção à irmã.

***

Caminhando de um lado para outro, Tereza conversava com Raul em voz alta, esfregando as mãos nervosamente:
- Devia imaginar que algo assim ainda iria acabar acontecendo. Fui cega de não ver o que Amelinha estava fazendo.
- Você não vê que isso é um absurdo? Amelinha não teve culpa de nada.
- Aposto como ela o provocou de alguma forma... - divagou, sem nem prestar atenção ao que Raul dizia. - Foi assim com aquele menino também. E o pior não foi nem
ele ter feito com ela. Pior foi fazer com Cristina!
- Tereza! Será que você só está preocupada com Cristina? E Amelinha? É sua filha também. Não liga para ela?
- Ligo... - afirmou, sem muita convicção.
- Não é o que parece. Devia se envergonhar por tratar tão mal assim a sua filha.
Tereza oscilava entre o desgosto e a raiva. Não queria admitir, mas a verdade era que não gostava de Amelinha. Em alguns momentos, chegava mesmo a odiá-la e desejar
que nunca tivesse nascido. Desde que engravidara, sentia que jamais poderia amar aquela criança. No começo, até que se esforçara. Mas depois que Cristina nasceu,
parou de tentar, vendo que seriam mesmo inúteis os seus esforços.
- Não a trato mal - objetou secamente.
- Trata sim. E vive a acusá-la por qualquer coisa.
- Não a estou acusando de nada. E você? - revidou em tom acusador. - Por que será que a defende tanto?
- Eu? - tornou ele confuso. - Ora, a menina não tem pai. Sinto-me responsável.
- Será que é só isso mesmo?
- O que está insinuando, Tereza?
Tereza silenciou. Sua vontade era de gritar que ele estava de olho na filha, mas tinha medo de que ele se zangasse e fosse embora.
- Não estou insinuando nada. Perdoe-me.
Raul também não insistiu. Começava a perceber os pensamentos maldosos da mulher, mas achou melhor calar. De que ele gostava de Amelinha, não tinha dúvida. Achava-a
muito atraente e esperta, e até poderia se interessar por ela como mulher. O problema era que ela era filha de sua esposa e só tinha treze anos. Que tipo de homem
seria ele se se envolvesse com uma criança, quase sua filha?
Amelinha e Cristina saíram do hospital três dias depois. Tiveram que ir à delegacia prestar depoimento, mas nada pôde ser feito. Chico metera o pé na estrada e sumira,
e seria muito difícil encontrá-lo por aquele mundo afora. O inquérito foi arquivado, e ninguém mais fez perguntas, em respeito à dor das meninas. Algumas pessoas
passaram a olhá-las com certa recriminação no olhar, outras, com piedade, e outras ainda preferiam guardar distância.
Amelinha também se aproximou um pouco mais da irmã. A violência de que ambas tinham sido vítimas as uniu na dor e, se bem que não houvesse ainda uma forte amizade
entre elas, ao menos Amelinha já não brigava tanto com Cristina. A dor que haviam partilhado e ainda partilhavam as tornava cúmplices, e uma compreensão silenciosa
se estabeleceu entre elas.
De forma inocente, conduzida pelo interrogatório tendencioso de Tereza, Cristina acabou contando que vira Chico flertando com Amelinha, e que ele tentara agarrá-la
certa vez. Pronto. Era o que bastava para que Tereza tirasse suas conclusões e julgasse a filha precipitadamente, acusando-a de libertina e ordinária. Só não a confrontou
diretamente porque Raul a Impediu. Ele não acreditava que Amelinha houvesse agido com maldade ou malícia e proibiu Tereza de incomodá-la. Mais uma vez temendo desagradá-lo,
ela se calou, deixando que o ódio silencioso pela filha envenenasse cada vez mais o seu coração.
Se antes as duas já eram distantes, depois disso, Tereza foi-se afastando mais e mais de Amelinha, tratando-a com frieza e até com certa hostilidade, enquanto Cristina
era alvo de todas as suas atenções e carinhos. Comprara-lhe até uma boneca nova e nada para Amelinha, com a justificativa de que ela já estava ficando uma moça e
não se interessava mais por brinquedos.
Vendo isso, Raul lhe trouxe um bonito laço de fita de seda azul, e ela agradeceu com os olhos úmidos, começando a perceber quanto carinho ele sentia por ela. Presenteá-la
tornou-se um hábito, e as atenções que Tereza dispensava a Cristina já não incomodavam tanto Amelinha. Ela agora tinha o padrasto, a quem passou a admirar, afeiçoando-se
a ele mesmo sem saber.
Tanto interesse não passou despercebida a Tereza, que redobrou a atenção sobre ambos. Nunca os deixava sozinhos e acordava sempre que Raul se levantava no meio da
noite para ir ao banheiro ou beber água. Em silêncio, ela se levantava depois que ele saía e ia espiar pela porta entreaberta, mas ele nunca parou ou fez menção
de entrar no quarto das meninas.
O trauma que haviam vivido deixou marcas profundas tanto em Amelinha quanto em Cristina. Era comum acordarem gritando no meio da noite, dizendo que Chico estava
ali para pegá-las. Tinham pesadelos parecidos, o que aumentava a empatia que se estabelecera entre elas. Sempre que uma gritava, a outra procurava acalmá-la, dizendo
que Chico se fora e não voltaria mais. A mãe também aparecia e, quando o pesadelo era de Cristina, tomava-a nos braços e a acariciava, ao passo que, no caso de Amelinha,
limitava-se a sacudi-la e indagava se poderia voltar a dormir.
Ainda nem se havia passado um mês quando Amelinha contraiu uma forte gripe, que lhe provocou uma tosse seca e persistente, além de fortes dores no peito. Raul correu
a chamar o médico, que constatou sua primeira pneumonia. Amelinha foi internada às pressas e por pouco não morreu. Quando saiu do hospital, ainda estava fraca, e
o médico lhe recomendou repouso absoluto. Os pulmões estavam muito frágeis, e todo cuidado era pouco.
Presa na cama, não poderia ir à festa de aniversário de um primo que morava do outro lado da cidade, o que deixou Cristina decepcionada, e a mãe, furiosa.
- Não podemos mesmo ir, mamãe? - choramingava Cristina.
- Não. Sua irmã resolveu ficar doente justo agora.
- Ah! O tio Raul não poderia ficar com ela? Não poderia?
Cristina olhou para Raul ansiosa, e ele respondeu serenamente:
- Por mim, está tudo bem. Vocês podem ir que eu cuido de Amelinha.
- Nem pensar! - contestou Tereza. - Se você não vai, ficamos todos.
- Isso é uma bobagem, Tereza. Não vê que a menina está doida para ir?
- Mas a irmã está doente. O que podemos fazer?
- Já não disse que eu cuido de Amelinha?
- Não!
- Por que não, mãe? Qual é o problema?
- É, qual o problema? - repetiu Raul. - Por acaso não confia em mim?
Aquele não confia em mim era bem mais do que medo de que ele não cuidasse de Amelinha adequadamente. O que Tereza realmente temia era que ele, aproveitando-se de
sua ausência, tentasse alguma coisa com a filha e, pior, que fosse correspondido por ela.
- Não se trata disso, Raul - rebateu em tom de desculpa. - Sei que você é cuidadoso e responsável. Mas é que Amelinha é uma menina e pode precisar de certos cuidados
que só a mãe pode dar.
- Não vejo o que você faz por ela que eu não possa fazer.
- Por favor, mamãe, vamos! - insistia Cristina, alheia aos temores da mãe. - Tio Raul vai cuidar bem de Amelinha.
Por mais que ela não quisesse deixar os dois sozinhos, não podia negar um pedido à filha, e acabou concordando. Antes de sair, passou no quarto de Amelinha e constatou
que ela dormia.
- Deixe-a dormir - aconselhou a Raul. - E não permita que saia do quarto. Ela está muito fraca.
- Pode ir sossegada, que eu tomo conta de tudo.
Depois que elas saíram, Raul, certificando-se de que tudo estava bem, foi para a cozinha consertar algumas cadeiras que estavam com os pés soltos, indo a cada meia
hora verificar o estado de Amelinha. Tudo continuava tranqüilo e, quando Raul terminou sua tarefa, deitou-se no sofá para esperar que Tereza voltasse. Estava quase
pegando no sono quando um grito de pavor o despertou. Deu um salto do sofá e correu para o quarto de Amelinha, escancarando a porta e entrando esbaforido. A menina
se contorcia e gemia na cama, dizendo palavras sem nexo, a camisola empapada de suor. Raul experimentou-lhe a testa e constatou que ela ardia em febre novamente.
Chamou-a pelo nome várias vezes, até que ela despertou e o fitou com os olhos arregalados.
- O Chico...?
- Sossegue Amelinha, ele não está aqui. Foi só um pesadelo.
Depois de ajeitá-la novamente na cama, Raul foi buscar o remédio que o médico havia receitado em caso de febre. Amelinha tomou sem reclamar e ficou deitada, de olhos
fechados. Durante alguns minutos, Raul permaneceu olhando-a, enternecido com o seu semblante pálido. Aos pouquinhos, a febre foi cedendo, e Amelinha abriu os olhos.
- Sente-se melhor? - indagou ele.
Ela fez que sim com a cabeça e pediu numa vozinha miúda:
- Será que você pode me dar um copo de água?
A moringa ao lado da cama estava vazia, e Raul desceu para buscar um pouco na cozinha. Assim que ele saiu, Amelinha, sentindo o desconforto que a camisola suada
causava em seu corpo, levantou-se vagarosamente e foi ao armário buscar uma limpa. Sentiu a cabeça rodar, mas, apoiando-se na parede, chegou até o armário e o abriu.
Apanhou a camisola e começou a se despir, com gestos lentos e descuidados. Ao tirar a roupa úmida, sentiu um arrepio de frio, e seu corpo todo estremeceu. O quarto
começou a rodopiar, e Amelinha foi acometida por violento acesso de tosse. Cada vez mais zonza, percebendo que ia cair, ainda tentou se deitar na cama, mas a tonteira
não lhe permitiu alcançar o leito, e ela desabou ali mesmo, no meio do quarto, o corpo nu sacudido pela tosse e pelos calafrios.
Nesse momento, Raul entrou, trazendo nas mãos a moringa cheia e uma caneca limpa. Ao ver a enteada caída no chão, sem roupa alguma, largou tudo e correu para ela,
chamando assustado:
- Amelinha! Amelinha! - ajoelhou-se ao lado dela, e a menina tornou a abrir os olhos. - O que foi que houve Amelinha?
- Eu... Caí... - balbuciou ela. - Senti uma tontura... Não consegui chegar à cama...
- Você não devia ter saído da cama. - ralhou ele, mas com carinho, ajudando-a a se levantar. - O que pensa que ia fazer andando assim, nua, pelo quarto?
- Eu... Ia me trocar... A camisola estava úmida... Grudada no meu corpo.
Apoiada em seu pescoço, Amelinha se levantou, mas não conseguiu se sustentar. O corpo ainda muito fraco não resistiu, e ela já ia tombando novamente quando Raul
a ergueu no colo, totalmente despida, e começou a levá-la para a cama. Queria o mais depressa, cobri-la com o cobertor, para que seu estado não se agravasse. Aproximou-se
da cama e abaixou-se, depositando-a gentilmente sobre o colchão. Foi nesse momento, quando ele, debruçado sobre ela, começava a puxar o braço de debaixo de seu pescoço,
que a porta se escancarou, e uma Tereza furiosa e indignada irrompeu pelo quarto.
- Mas o que é que está acontecendo aqui? - esbravejou fora de si. - Eu sabia! Sabia que não devia tê-los deixados sozinhos! Sua desavergonhada!
- Tereza, calma - começou Raul a falar. - Não é nada do que você está pensando.
- Não estou pensando nada! Tenho certeza do que vejo.
- Mamãe, o que está acontecendo? - perguntou Cristina assustada.
- Saia daqui, Cristina! - berrou ela para a filha. - Vá para a sala e só venha quando eu mandar.
Assustada, Cristina desatou a correr e foi para a sala, chorando e com medo da fúria da mãe. Enquanto isso, Amelinha conseguiu se cobrir com o cobertor e juntou
forças para se recostar na cama, tentando contemporizar:
- Não fique zangada, mamãe. A culpa foi minha...
- Eu sei que a culpa é sua! Então não estou vendo?
Amelinha queria dizer que fora culpada por haver tentado se levantar sozinha para se trocar, o que havia causado seu quase desmaio no meio do quarto. Mas Tereza
entendeu de outra forma, envenenada por suas próprias desconfianças.
- Por favor, Tereza, tente se acalmar - intercedeu Raul.
- Como posso me acalmar vendo o que vejo? Minha própria filha! Minha própria filha seduzindo o meu marido!
- O quê?! - indignou-se a menina. - Não, mãe, não! A senhora não entende...
- Entendo muito bem! Entendo que você é uma vagabundinha. Aposto que adorou o que o Chico fez com você, não foi?
- Tereza! Cale-se, Tereza, você não sabe o que diz!
- E você? Seu safado! Onde já se viu deixar-se seduzir por uma criança?
- Se você se acalmasse, eu poderia lhe explicar o que está acontecendo.
- Não preciso de explicação nenhuma!
Magoada, Amelinha ocultou o rosto entre as mãos e desatou a chorar. Como a mãe podia pensar que ela se divertira com o Chico? Então não via o quanto havia sofrido?
- Por que está fazendo isso, mamãe? Eu não fiz nada.
- Ah! Mas fez sim! Provocou o Chico até ele não agüentar mais e estuprar você. E agora quer fazer o mesmo com seu padrasto. Mas Raul é o meu homem, entendeu? Meu
homem, não seu!
- Eu não provoquei ninguém!
- Provocou sim. Sua irmã me contou a forma como você se requebrava toda para o Chico.
- É mentira! Eu não fiz isso!
- Fez sim. Mesmo depois que ele a agarrou, você continuou se oferecendo. O que queria? Que ele fingisse que não a via? Que não reparasse no seu remelexo e nos seus
peitos empinados? Ele é homem, Amelinha, cabia a você se dar ao respeito e não o provocar. Mas não! A prostitutazinha não podia agüentar e se ofereceu para o primeiro
malandro que viu. Se quiser ser vagabunda, o problema é seu. Mas você não tinha o direito de carregar sua irmã com você...
- Pare Tereza, cale-se! - berrou Raul, sacudindo-a pelos ombros.
- Mas não adianta nada, viu? Não vou deixar que me tome o homem outra vez!
- Você está louca, Tereza? O que está dizendo?
Amelinha não conseguia mais falar, tomada pelos soluços que lhe embargavam a voz. Ficou escutando a mãe dizer aquelas coisas a seu respeito, um monte de mentiras
que ela havia inventado só para machucá-la. Tereza estava cega de ódio e surda à voz da razão, e continuava esbravejando e ofendendo Amelinha:
- Largue-me, Raul! Ainda não terminei. Não acabei de dizer tudo o que está entalado em minha garganta esses anos todos.
- Se você não se calar, Tereza, juro que vou embora daqui e nunca mais apareço.
- É isso mesmo o que você quer, não é? Sair de casa para viver com sua meretriz de treze anos!
- Pare com isso, Tereza, estou avisando!
- Pois não vou permitir, ouviu? Essa cadelinha no cio não vai tirar você de mim! Sou muito mais mulher do que essa ordinária!
- Pare Tereza!
- Vagabunda, prostituta, meretriz!
Sem saber mais o que fazer, Raul perdeu a cabeça e estalou uma bofetada no rosto de Tereza, que reagiu com espanto:
- Você me bateu... Por causa da prostituta, você me bateu!
- Tereza, perdoe-me - implorou Raul. - Eu não queria... Mas você estava fora de si. Você enlouqueceu Tereza! O que deu em você?
- Eu... Eu...
Envergonhada, Tereza rodou nos calcanhares e sumiu pela porta do quarto. Raul ficou aturdido, sem saber se ia atrás dela ou se acalmava Amelinha, que chorava sem
parar. Decidiu seguir a mulher. Amelinha estava em casa, medicada e sob as cobertas, ao passo que Tereza saíra desabalada, sabia-se lá para onde. Deu um sorriso
encorajador para Amelinha e saiu no encalço de Tereza, ainda escutando a vozinha miúda da enteada:
- O que foi que fiz à minha mãe?


Capítulo 3


Demorou muito para que Amelinha se recuperasse por completo daquela pneumonia. Depois da briga que tivera com a mãe, o médico precisou ser novamente chamado, e por
pouco Amelinha não voltou para o hospital. Tereza fingiu-se interessada nos conselhos médicos, mas depois que ele se foi, virou as costas à filha e encarregou Cristina
de cuidar dela.
A muito custo Raul conseguiu convencê-la de que nada havia acontecido naquele dia. Contou como Amelinha passara mal e tentara se levantar para trocar a camisola
molhada, desmaiando no meio do quarto antes de conseguir fazê-lo. Tereza não sabia se acreditava ou não naquela história. A cena que presenciara deixara-a extremamente
chocada e com raiva. Vira Amelinha, nua, nos braços de Raul, e era difícil convencer-se de que aquilo não era o que parecia.
Só não conseguia mais ficar perto de Amelinha. Se antes o relacionamento das duas já era difícil, agora então, tornara-se praticamente inviável. Evitava ao máximo
o contato com a filha, e até Raul procurava não ficar muito perto dela, com medo de provocar nova briga com a mulher. Isso fazia com que a menina sofresse imensamente,
porque Raul passara a ser o seu único amigo. Não tinha mais ninguém. Mesmo Cristina, com que começara a ter um relacionamento mais amistoso, voltara a ser a estranha
de sempre, visto que Amelinha não a perdoava por haver contado à mãe sobre seu pequeno e inocente flerte com seu Chico.
A escola em que estudavam agora era outra, para evitar constrangimentos às meninas, e Tereza passou a levá-las e buscá-las todos os dias. Naquele dia, as duas entraram
juntas em casa e seguiram direto para o banheiro, para lavar as mãos e almoçar. Amelinha, como sempre, empurrou a irmã e lavou-se primeiro, deixando Cristina de
lado, esperando a sua vez. Terminou de enxugar as mãos, pendurou a toalha no cabideiro e, sem dizer nada, correu para o vaso sanitário e vomitou. Cristina arregalou
os olhos de susto e abaixou-se ao lado dela.
- O que você tem Amelinha? Foi alguma coisa que comeu?
Com rispidez, Amelinha empurrou Cristina para o lado e se levantou, respondendo entre os dentes:
- Não tenho nada. Meta-se com a sua vida.
- Está precisando de alguma coisa? Quer que vá chamar a mamãe?
- Isso! Vá correndo fazer a sua fofoquinha, como sempre faz.
Magoada, Cristina deu as costas à irmã e foi para a cozinha, onde a mãe as esperava com o almoço. Amelinha nem conseguiu olhar para a comida. Só de sentir o cheiro
do ensopado, levantou-se da mesa e correu novamente para o banheiro, quase não tendo tempo de chegar ao vaso. Tereza acompanhou-a com um olhar silencioso e, após
ouvir o barulho da porta do banheiro batendo, perguntou a Cristina:
- O que é que ela tem?
Cristina deu de ombros e respondeu inocente:
- Sei lá. Ela chegou vomitando, mas disse que não era nada. Vai ver foi muito doce que comeu. Você sabe como Amelinha sempre foi gulosa.
Tereza não respondeu, mas olhou desconfiada para a porta da cozinha, onde Amelinha acabava de despontar.
- Não vou mais comer - anunciou ela, torcendo o nariz e evitando olhar para a mesa.
- Por quê?
- Não estou com fome.
Sem esperar pela resposta da mãe, virou as costas e seguiu para o quarto, indo atirar-se na cama. Estava passando mal, com náuseas e certa tonteira. Fazia dois dias
que se sentia assim, mas só hoje vomitara. Não podia ser nada que tivesse comido, porque aquele enjôo lhe tirara por completo o apetite, e ela mal se alimentava
às refeições. Para completar, seu período estava atrasado, o que deveria estar causando aquele inchaço nos seios.
Nos dias que se seguiram, seu estado foi piorando, e ela quase não conseguia comer. Não podia nem sentir o cheiro da comida que já passava mal. Chegava da escola
sempre enjoada e ia direto para a cama. Cristina, preocupada, levava-lhe frutas, que ela dispensava com má-criação.
- Tente comer alguma coisa - insistia a irmã, deixando a fruta na mesinha de cabeceira.
Mesmo contra a vontade, Amelinha forçava-se a ingerir um pedacinho de fruta, mas vomitava em seguida. Foi emagrecendo e despertando, cada vez mais, as suspeitas
de Tereza. À hora do jantar, ela sempre tentava participar da refeição, só para ficar perto de Raul, mas não conseguia comer. Dava duas, três colheradas no máximo
e empurrava o prato para o lado, dominada pela náusea. Não raras eram às vezes; em que saía correndo para o banheiro e vomitava, até que acabou chamando a atenção
de Raul.
- O que essa menina tem?
- Não sei - respondeu Tereza com azedume.
- Amelinha não anda passando muito bem - respondeu Cristina, prontamente. - Vive enjoada e vomitando.
O olhar de Raul para Tereza foi bastante significativo, mas a mulher fingiu não entender e não disse nada. Assim que Amelinha voltou do banheiro, Raul fez com que
ela se sentasse ao seu lado e indagou interessado:
- O que você tem Amelinha? Sua irmã nos disse que você não anda passando bem.
Amelinha fulminou Cristina com o olhar e respondeu vagamente:
- Nada. Não tenho nada.
- Desde quando está enjoada? - ela deu de ombros.
- Você foi vomitar agora?
- Fui.
- O que mais tem sentido?
- Nada.
- Pode falar Amelinha. Sou seu amigo e só quero o seu bem.
Pelo canto do olho, Amelinha fitou a mãe, que permanecia com a cabeça baixa, fingindo-se concentrada no prato de comida.
- Já disse que não tenho nada.
- Se não tem nada, então por que vive enjoada e está emagrecendo?
- Não sei.
- Será que ela tem vermes? - arriscou Cristina.
- Não seja estúpida! - contestou Amelinha.
- Não fale assim com a sua irmã! - censurou Tereza. - Ela não tem culpa do seu mau humor.
- Eu não estou de mau humor!
- A menina está doente, Tereza. Será que você não percebe?
- Ela não está doente - protestou Tereza, olhando para ela com ódio. - Sei muito bem o que ela tem, e você também sabe.
- O que é? - quis saber Cristina.
- Nada que lhe interesse, querida - cortou Tereza. - Isso não é assunto para você.
- Por quê?
- Porque não é assunto de criança.
Mesmo sem saber do que se tratava, Amelinha podia imaginar que era algo relacionado ao que acontecera entre ela e Chico. Só não sabia o quê, já que Tereza nunca
havia conversado com ela sobre sexo ou como eram feitos os bebês.
- Acho melhor você levá-la ao médico. Seja o que for, precisa ser tratado.
- Farei isso - concordou Tereza, com um estranho brilho no olhar.
No dia seguinte, quando voltaram da escola, Tereza deixou Cristina com a vizinha e partiu com Amelinha para o médico. Esperou a vez de serem atendidas sem trocar
uma palavra com a filha, que também não disse nada. Na vez de Amelinha, uma enfermeira mandou que ela entrasse, tirasse a roupa e se deitasse na maca, enquanto sua
mãe conversava com o médico. Alguns minutos depois, ele entrou e sorriu complacente, dizendo-lhe que se acalmasse e fizesse tudo que ele mandasse. Amelinha, que
nunca antes havia se submetido a um exame ginecológico, sentiu-se extremamente envergonhada quando aquele homem afastou as suas pernas e começou a mexer em suas
partes mais íntimas. Chorou de mansinho, mas não emitiu nenhum ruído. Não queria que ele ou a mãe atestassem o seu constrangimento.
- Muito bem, Amelinha, pode se vestir - disse ele, depois de encerrado o exame.
A enfermeira ajudou-a com a roupa e levou-a para a outra sala, enquanto a mãe terminava de conversar com o médico. Pouco depois, Tereza apareceu e saiu puxando Amelinha
pelo braço. A caminho de casa, não trocaram uma palavra, o que deixava Amelinha cada vez mais amargurada. Queria perguntar o que tinha, mas sabia que a mãe lhe responderia
com uma bronca qualquer.
Foi só à noite que ela descobriu o seu mal. Quando Raul chegou a casa e perguntou se Tereza a havia levado ao médico, a mãe lhe respondeu que sim.
- E então? - indagou ele ansioso, à mesa do jantar. - O que foi que o médico disse?
- O que você acha que ele poderia dizer? O que todos nós já sabíamos: que Amelinha está grávida.
Foi como se o mundo ruísse de repente. Como é que ela, que era solteira, poderia estar grávida? Em sua cabeça, só as mulheres casadas engravidavam, porque a mãe
jamais lhe contara como é que tudo acontecia.
- Grávida? - repetiu Amelinha, estarrecida. - Eu? Mas como?
- Não se faça de sonsa comigo, menina. Você sabe muito bem como.
Ela se calou e olhou para Raul, que a fitava com um misto de pena e compreensão.
- As moças engravidam quando têm relações sexuais - explicou ele, apesar do constrangimento por estar tratando daquele assunto diante de duas meninas.
- O que são relações sexuais? - indagou Cristina, de forma inocente.
- Vá para o quarto, Cristina - ordenou Tereza, sem responder à sua pergunta.
- Por quê?
- Porque isso não é assunto para uma menina feito você.
- Perdão, Tereza, mas Cristina passou pelas mesmas coisas que Amelinha. Não acha que está na hora de ela também saber o que é isso?
Ao invés de responder, Tereza elevou a voz e disse com raiva:
- Relação sexual é aquilo que você e o Chico fizeram Amelinha. E é por isso que você está grávida. Porque manteve uma relação sexual com seu Chico.
Ela ficou horrorizada e buscou apoio no olhar de Raul.
- É mais ou menos isso... Chico forçou vocês a manterem relações sexuais com ele...
- O senhor quer dizer, tio Raul - era Cristina -, que é assim que os bebês são feitos?
Raul não se sentia nada bem tendo aquela conversa com as meninas. Achava que aquele papel cabia a Tereza, mas ela não parecia muito disposta a dar as explicações
necessárias. Assim, teve que assumir aquela tarefa, e, tentando ao máximo deixar de lado o pudor e a vergonha, ia esclarecendo as dúvidas de ambas.
- Sim, Cristina, é assim que os bebês são feitos.
- Oh! Se for assim, não quero ter nenhum bebê. Dói! Dói muito fazer bebês!
Cristina começou a chorar descontrolada, e Tereza a abraçou e começou a acariciar seus cabelos.
- Viu o que você fez? Cristina é ainda uma criança. Não está preparada para ouvir uma coisa dessas.
- Eu só não queria que ela ficasse na ignorância, já que não é mais virgem.
- Ela pode não ser virgem, mas ainda é inocente!
- Vou ter um bebê também, mamãe? - perguntou ela, quase em desespero. - Estou... Grávida como Amelinha?
- Não, minha querida, você não vai ter nenhum bebê. Só a sua irmã é que está grávida.
- Por quê?
- Porque ela já é mocinha, e você, ainda não. Apesar de tudo, Cristina sabia o que era ser mocinha. Já vira Amelinha sangrando, e a mãe lhes explicara que aquilo
acontecia todo mês às mulheres. Não entendia bem o que aquilo tinha a ver com bebês e gravidez, mas sentiu-se grata por aquela ser a causa de não estar esperando
um bebê.
- E agora, meu bem, vá para o seu quarto e fique lá. Irei levar-lhe a sobremesa depois.
Assim que Cristina saiu, Tereza voltou ao seu lugar e encarou Raul e Amelinha, que, até então, não havia dito uma palavra, espantada que estava com aquela notícia.
O que faria com um bebê? Ainda mais sendo de seu Chico?
- Não quero ter um bebê - murmurou Amelinha.
- É claro que não! Não vamos ter nenhum bastardinho em casa!
Mesmo sem saber o que era um bastardinho, Amelinha silenciou. Uma coisa havia entendido: pela primeira vez na vida, a mãe estava de acordo com algo que ela dizia.
- Pense bem no que está dizendo, Tereza - protestou Raul. - Além de crime, o aborto é muito perigoso.
- O que é aborto? - perguntou Amelinha.
- Sh...! - ralhou a mãe. - Fique quieta.
Dessa vez, nem Raul teve coragem de explicar o que era um aborto.
- Falaremos sobre isso depois, querida - disse ele.
Aquele querida não agradou Tereza. Ainda que Raul o tivesse pronunciado sem nenhuma intenção, ela ficou pensando que havia intimidade demais em seu tom de voz. Será
que ele pretendia que Amelinha tivesse aquele bebê? Mas por quê? Uma criança, naquelas circunstâncias, não faria bem a ninguém. A menos que...
- Acho melhor você ir para o quarto também - falou Tereza.
- Não acho justo que decidamos o futuro de Amelinha pelas suas costas. Ela tem o direito de opinar sobre a sua vida.
- Ela não tem direito de nada! É menor de idade e vai fazer o que eu mandar!
- E você quer mandá-la fazer um aborto.
- E daí? O que é que tem? Você mesmo a ouviu dizer que não quer ter o bebê.
- O que não significa que esteja pensando em abortá-lo.
- Por que está tão interessado em que Amelinha tenha essa criança? Será que você tem algo a ver com isso?
De um salto, Raul se levantou da cadeira e começou a andar pela sala, nervoso e vermelho feito um pimentão. Amelinha não compreendia muito bem o que estava se passando,
mas ficou imaginando se aquela pergunta não estaria relacionada ao dia em que a mãe os surpreendera no quarto, quando ela passara mal, e ficara falando aquelas coisas
horríveis. Será que Tereza pensava que ela também tivera algo com Raul? Como gostava muito do padrasto, achou que era melhor esclarecer:
- Mãe, se a senhora está pensando que Raul e eu tivemos relações sexuais...
Ouvir aquelas palavras foi como se uma erupção eclodisse dentro de Tereza. Não podia nem imaginar a filha envolvida sexualmente com o marido e explodiu com uma fúria
descontrolada:
- O quê? Como se atreve, sua pirralha suja e nojenta? Quem foi que lhe deu essa intimidade de se referir assim ao seu padrasto, o homem que ficou no lugar de seu
pai?
- Eu... Eu... Não entendo...
Coberta de ódio, Tereza avançou sobre Amelinha e começou a esbofeteá-la, até que Raul a segurou por trás e começou a gritar com ela:
- Pare com isso, Tereza!
- Agora estou entendendo tudo. Você e ela... Vocês se deitaram juntos, dentro da minha própria casa. Terá sido em minha cama?
- Não diga asneiras, mulher! Amelinha é sua filha e é uma criança...
- Uma criança que espera um filho. Será que é seu?
- Cale-se! Você não sabe o que diz!
- Mas sei o que ouço. Ela ainda tenta defendê-lo, falando em relações sexuais, chamando-o de Raul!
- O que foi que eu fiz? - queixou-se Amelinha, que não entendia onde havia errado.
- Agora vejo por que tanta intimidade. Para Cristina, você é o tio Raul. Mas para Amelinha, só Raul basta.
- Cale essa boca, Tereza! Não vou permitir que coloque em dúvida a minha honra e a de sua filha!
- Como vocês se defendem, não é mesmo? Há quanto tempo estão me traindo? Estão apaixonados de novo?
Lá vinha Tereza com aquela referência ao passado, algo que Raul não podia compreender. Ela falava como se ele e Amelinha já tivessem sido amantes, o que era impossível.
- Não agüento mais, Tereza! Estou no meu limite. Não suporto mais o inferno em que a minha vida se transformou.
Com indescritível desgosto no olhar, Raul rodou nos calcanhares e foi direto para o quarto, onde apanhou a mala e começou a atirar suas roupas dentro.
- O que está fazendo, Raul? - berrou Tereza, que vinha logo atrás. - Aonde é que você vai?
- Para mim, chega! Não agüento mais as suas desconfianças nem o seu gênio. Só lamento por Amelinha, que terá que suportar a sua loucura sozinha.
- Vai embora? Vai me deixar? Vai me abandonar por causa daquela meretriz adolescente?
- Você me dá nojo. Devia se envergonhar de suas palavras.
- Você não pode fazer isso! Somos casados! Não pode me abandonar por causa de uma vadia. - Ele não respondeu. - Tudo isso só porque ela vai ter um filho? É isso
o que você quer? Um bebê? Posso lhe dar um filho. Já não sou mais jovem, mas ainda posso parir.
- Deixe de tolices.
- Se não é isso, então o que é? O meu corpo? É isso, não é? Cansou-se de mim só porque encontrou um corpo mais jovem e mais firme. Mas Amelinha é uma menina. Espere
só até ela crescer e pegar o gosto pelos rapazes. Vai deixar você e fugir com algum vagabundo de vinte anos.
- Está louca.
- Não! Não vá, Raul, eu lhe imploro. Faço qualquer coisa para não perder você de novo. Eu o perdôo. Perdôo você por ter dormido com Amelinha, perdôo até o filho
que ela carrega na barriga.
- Ouça bem o que vou lhe dizer Tereza - disse ele, segurando-a pelos punhos e olhando bem dentro de seus olhos. - O filho que Amelinha está esperando não é meu.
Eu nunca dormi com sua filha. Quem fez mal a ela foi o safado do Chico, não eu. Não sou um marginal.
- Está bem. Eu acredito. Acredito em tudo o que você disser. Sei que você não dormiu com ela, que você é um homem decente e que jamais me trairia com aquela vagabunda.
- E outra coisa: sua filha não é uma vagabunda, nem meretriz, nem prostituta. É uma menina que sofreu nas mãos de um tarado e continua sofrendo com a incompreensão
e as maldades da mãe. Francamente, ela merecia uma mãe melhor do que você.
Ela engoliu a raiva em seco e continuou a implorar:
- Está bem. Sei que errei e peço perdão. Tenho sido incompreensiva com ela, mas vou mudar. Prometo que não vou mais ralhar com ela, mas, por favor, Raul, não me
abandone. Faço o que você quiser para que não me deixe.
A essa altura, ela já estava chorando, agarrada às pernas do marido. Raul sentia tanto nojo que tinha vontade de empurrá-la e sair correndo dali o mais rápido que
pudesse. E teria feito isso, não fosse o olhar de súplica de Amelinha, que o fitava da porta. A menina, ouvindo a discussão, aproximou-se do quarto e acompanhou
toda a cena, sem que nenhum deles notasse a sua presença. Estava apavorada ante a idéia de que Raul pudesse deixá-la. Se o padrasto se fosse daquela casa, a mãe
seria bem capaz de matá-la de pancada. Ele era a única pessoa com quem Amelinha podia contar, e foi com aquela súplica silenciosa que lhe pediu para ficar.
- Está certa, Tereza, vou ficar - concordou ele, ainda encarando a enteada. - Mas com a condição de que você nunca mais repita essas barbaridades que ouvi hoje.
- Eu não direi. Prometo que nunca mais direi nada.
- Quero também que você me prometa que, daqui para frente, irá cuidar bem de Amelinha. Não baterá nela nem lhe dirá nada que possa ofendê-la.
- Prometo, prometo. O que você quiser meu bem, o que você quiser para ficar. Eu o amo, Raul, não poderia suportar viver sem você.
- Muito bem então. Que fique bem entendido que esta é a primeira e a última chance que lhe dou. Se voltar a nos agredir, a mim ou a Amelinha, vou-me embora e prometo
nunca mais voltar.
Ela aquiesceu e se levantou, atirando-se em seu pescoço e beijando-o sofregamente. Com uma voracidade sem igual, foi empurrando-o para a cama, já arrancando a sua
roupa. Preocupado, Raul ia lhe dizer que parasse que Amelinha os estava observando, mas, ao olhar novamente para a porta, não viu ninguém. Ela havia sumido.

***

Nos dias que se seguiram, Tereza procurou se esforçar ao máximo para tratar Amelinha com um pouco mais de tolerância. Ainda não estava bem certa se acreditava ou
não que ela e Raul não eram amantes. Se fossem, preferia não saber. Se soubesse, seria até capaz de matar a filha.
Tinha, porém, um assunto sério a resolver. A gravidez de Amelinha era um problema que necessitava de uma solução imediata. Se o filho era ou não de Chico, não pretendia
mais descobrir. No entanto, aquela dúvida era motivo mais do que suficiente para que ela se livrasse daquela criança. Raul era contra o aborto. Achava que o mais
correto seria permitir que Amelinha tivesse o filho e tentasse criá-lo. Se de todo isso lhe fosse muito penoso, a adoção seria o melhor caminho. E era isso mesmo
que ela pretendia fazer.
Quando a barriga de Amelinha começou a se avolumar, Tereza proibiu-a de ir ao colégio, receando a vergonha que a gestação da filha iria lhe causar. Não foi possível
completar o ano letivo, e ela acabou se atrasando na escola. Além disso, Tereza não gostava que ela saísse de casa, e Amelinha passava os dias sem nada para fazer,
ansiosa por se livrar daquilo que considerava um estorvo em sua vida.
Com tudo isso, não foi difícil convencer a filha a dar a criança para adoção. Quando o menino nasceu, ela sentiu uma tristeza sem fim, mas nem chegou a vê-lo. Com
medo de que Amelinha mudasse de idéia ao segurar nos braços o bebê, Tereza tomou-o da enfermeira assim que foi possível segurá-lo e entregou-o, pessoalmente, nas
mãos de uma irmã de caridade, recomendando-lhe que levasse o menino dali e que nunca, mas nunca mais lhe desse notícias de seu paradeiro.
Assim foi feito. O menino foi levado embora sem que Amelinha o visse uma única vez sequer. Ela sofreu com as dores do parto e escutou o seu choro quando nasceu o
que, num primeiro momento, encheu-a de emoção. Tomada pela exaustão, Amelinha ainda chegou a estender os braços e pedir que a mãe a deixasse vê-lo ao menos uma vez,
mas Tereza foi categórica. O filho não pertencia mais a ela, e ela não tinha nenhum direito sobre a criança. Ignorante e ingênua, Amelinha acreditou no que a mãe
lhe dissera e procurou ocultar as lágrimas no lençol que a cobria. Estava arrependida de abandoná-lo, mas agora era tarde. O filho pertenceria à outra pessoa, e
ela morreria sem o conhecer.


Capítulo 4


A família de Amelinha, embora fosse do interior de São Paulo, espalhara-se por todo o estado, e ela possuía vários parentes que viviam na capital. Certa vez, um
tio de sua mãe, dono de um dos muitos laranjais que dominavam a região, veio a falecer já bem velhinho. Esse tio possuía dois filhos que viviam em São Paulo, um
homem e uma mulher, ambos já beirando os sessenta anos. Os primos vieram para o enterro e o inventário, e Amelinha os conheceu no velório do tio-avô.
Juca, o primo, era um homem grande e rabugento, e não escondia o desagrado de ter que comparecer ao enterro do pai em momento tão inoportuno, em que os negócios
com sua fábrica de sapatos exigiam sua presença diária no escritório. A mulher fora quem o convencera a ir a Limeira, porque as terras do pai eram muitas, e Juca
devia cuidar do patrimônio da família.
A prima, de nome Janete, parecia uma mulher mais equilibrada, embora de feições austeras e olhar penetrante, que tudo parecia ver. Ela era muito comedida e quase
não sorria, e seu rosto impenetrável não permitia que se imaginasse o que estava sentindo. Era uma viúva sem filhos e vivia sozinha num casarão em São Paulo, que
herdara de um marido extremamente rico e muito mais velho do que ela. Janete fora uma moça muito bonita, e dizem que o marido se apaixonou por ela logo que a viu,
fazendo compras em companhia da mãe, numa de suas idas à capital.
Embora vinte e três anos mais velho, o marido era muito rico, e Janete aceitou desposá-lo quase que de imediato. Contava então dezessete anos, e ele, quarenta. Os
dois viveram juntos por mais de trinta anos, até que ele morreu de um ataque do coração, deixando-a com uma fortuna considerável, apesar de sozinha e sem filhos.
Essas histórias não interessavam muito Amelinha, que achou os primos muito antipáticos e pedantes. Eles também não pareciam se dar muito bem com Tereza, porque praticamente
a ignoraram durante todo o velório. Por isso foi uma surpresa quando, mais tarde, ao entrar em casa, Amelinha viu Janete sentada no sofá conversando com a mãe e
Raul. Tereza mandou-a para o quarto em companhia de Cristina, e ela não pôde participar de sua conversa.
- Você sabe como é difícil para uma senhora como eu viver sozinha - disse Janete. - Ainda mais em São Paulo, onde a vida é mais agitada, e os jovens só pensam em
se divertir.
Tereza apenas balançava a cabeça, enquanto Raul fumava seu cachimbo e a fitava com mal disfarçada repulsa.
- É por isso que, quando vi suas meninas, a idéia me ocorreu - prosseguiu Janete. - E não pense que faço isso só por mim. Em absoluto! Seria uma excelente oportunidade
para a menina estudar em bons colégios e ter uma educação mais refinada.
Raul pigarreou e começou a falar com certa irritação:
- Perdão, Janete...
- Dona Janete, se não se importa - interrompeu-a, fazendo com que Raul ficasse vermelho até as orelhas.
- Muito bem, dona Janete. Não sei se entendi direito, mas pelo que Tereza me disse, a senhora está interessada em levar as meninas para a capital...
- As meninas, não - cortou novamente. - Apenas Amelinha. É mais velha, já é uma mocinha e saberá cuidar melhor da casa.
- Então, o que a senhora quer, realmente, é uma empregada doméstica.
- Hum... Uma dama de companhia, digamos. Já estou ficando velha e preciso de alguém que me ajude.
- E por que Amelinha?
- Porque ela é parente e me parece bem educadinha. Além disso, é quieta e sossegada, como toda moça de boa família deve ser.
- Eu acho que seria uma ótima oportunidade para Amelinha! - rebateu Tereza, entusiasmada.
- Oportunidade de quê? - tornou Raul.
- Ora, de ter uma vida melhor, uma educação refinada, estudar em bons colégios.
- E, quem sabe, mais tarde, conhecer um bom rapaz e casar-se com alguém importante e rico. - considerou Janete. - Não faltam bons partidos para moças direitas e
finas.
Raul e Tereza se entreolharam, mas a mulher procurou ignorar o marido. Janete já estava a par do que acontecera a Amelinha, e aquele era mais um motivo para afastá-la
dali.
- Isso seria maravilhoso! - exultou. - Imagine só, Raul, nossa Amelinha casada com algum figurão do café!
- Você está sonhando, Tereza. Amelinha é só uma menina do interior...
- Mas que pode se tornar uma grande dama da sociedade paulista, com o meu auxílio - rebateu Janete. - E tudo isso em troca de quê? Apenas de companhia.
- Hum... Não sei - contestou Raul. - Amelinha ainda é muito criança para ir viver sozinha.
- E quem disse que ela vai viver sozinha? Prima Janete não está prometendo cuidar dela?
- Mas e ela? Será que quer ir? Será que não vai se sentir sozinha longe da família?
- Você sabe como Amelinha é... Independente. Ela nunca foi muito ligada à família mesmo.
- Não quero que tomem nenhuma decisão precipitada - replicou Janete. - Ficarei ainda por mais alguns dias, a fim de providenciar a venda das terras de meu pai. O
advogado de Juca vai tratar do inventário, e vou vender tudo para ele. Não entendo mesmo nada de fazendas ou de laranjas. Enquanto isso reflita na minha proposta.
Tenho condições de dar a Amelinha uma educação que vocês jamais poderiam lhe proporcionar. Seria uma oportunidade única para ela. Sei o quanto deve ser difícil para
vocês se afastarem dela, mas creio que deveriam pensar no futuro da menina. E depois, poderão visitá-la quando quiserem.
- Você tem razão, Janete - concordou Tereza, cada vez mais entusiasmada. - Seria o melhor que poderíamos fazer por Amelinha.
- Seu marido é que ainda não parece bem convencido. Mas não faz mal. Vou deixá-los à vontade para que decidam.
Depois que ela saiu, Raul fitou a mulher com profundo desgosto e revidou com desânimo:
- Por que está fazendo isso? Por que pune assim a sua filha?
- Eu não a estou punindo! Pelo contrário, estou pensando na vida de luxo e conforto que Janete pode lhe dar.
- Mas, e se ela não quiser? Se Amelinha preferir ficar aqui conosco?
- Isso seria uma tolice. Como mãe, tenho que pensar no que é melhor para ela.
- Talvez isso não seja o melhor para ela.
- Como não? Que garota não gostaria de ter uma oportunidade como essa?
- Por que não perguntamos a ela? Por que não deixamos que Amelinha mesma escolha o seu destino?
- Amelinha só tem quatorze anos e não está em condições de decidir nada. Vai fazer o que eu mandar.
- Não creio que essa seja a melhor solução. Não é direito tomar uma decisão dessas à revelia da menina. A vida é dela, e ela tem o direito de resolver.
Por mais que aquilo não lhe agradasse, Tereza não queria desgostar o marido. Precisava fazê-lo crer que seu único interesse era o bem-estar de Amelinha, e não afastá-la
dele o mais que pudesse.
- Está bem - concordou com um suspiro. - Se é assim que pensa, vamos falar com ela. Mas você tem que me prometer que, se ela quiser ir, não fará objeções.
- Não. Se for o desejo dela, dar-lhe-ei todo o meu apoio.
Foram falar com Amelinha. Ela e Cristina estavam no quarto, cada uma em sua cama, Cristina brincando de bonecas, e Amelinha deitada com o braço por baixo da cabeça.
- A prima Janete já foi? - indagou Cristina, penteando os cabelos da boneca.
- Já sim - respondeu Tereza.
- O que ela queria? Por que veio nos visitar?
- Na verdade, Cristina - falou Raul -, ela não veio propriamente nos visitar. Veio para falar de Amelinha.
- De mim? - indignou-se a menina. - Por quê? O que foi que fiz a ela?
- Calma, Amelinha, você não fez nada. Ela não veio aqui para se queixar de você. Veio nos fazer uma proposta que interessa a você, mais do que a qualquer um de nós.
- Que proposta?
- Ela pretende levá-la para viver com ela em São Paulo - esclareceu Tereza, a voz trêmula de ansiedade.
- Em São Paulo? - repetiu Amelinha.
- Fica muito longe, não é, mamãe? - tornou Cristina.
- Nem tanto - tranqüilizou Tereza. - E Amelinha poderá nos visitar nas férias, se quiser.
- Por quê? Por que ela quer me levar para São Paulo? Eu não conheço nada daquela cidade.
- Ela está pensando no seu futuro. Quer lhe dar uma educação mais refinada e ensiná-la a ser uma verdadeira dama.
- Que maravilha! - disse Cristina, já visualizando a irmã de vestido longo e cintilante, rodopiando pelos salões em companhia de algum príncipe galante.
- Mas por quê? - insistia Amelinha. - Ela nem me conhece. Por que está sendo tão boazinha? O que quer em troca?
- Não quer nada em troca. Apenas que você lhe faça companhia.
- Só isso? - tornou desconfiada. - Por quê?
- Por que, por que, por quê? Será que não pode se mostrar agradecida ao invés de ficar aí questionando tudo? Não vê que Janete só quer ajudar? Ela é uma mulher rica
e poderia contratar qualquer rapariga para lhe fazer companhia. Mas não. Pensou em você, que é da família, e achou que seria uma excelente oportunidade de lhe proporcionar
um futuro melhor.
- Mas você não precisa ir, se não quiser - esclareceu Raul.
- É claro que não. Mas pense em todas as coisas maravilhosas que estará perdendo. E tudo para quê? Para continuar enfurnada aqui, nesse fim de mundo, sem nenhuma
perspectiva para o futuro. Ainda mais depois do que lhe aconteceu.
A mãe tinha razão. Doía no coração de Amelinha ter que se afastar do padrasto. Por outro lado, o que mais tinha a perder? A violência que sofrerá nas mãos de Chico
parecia um estigma em sua vida. Quando passava, todos cochichavam e apontavam para ela, muito mais do que para a irmã. Talvez longe dali, as coisas melhorassem um
pouco. Iria para outro colégio, onde ninguém a conhecia, e conheceria outras pessoas, que jamais teriam ouvido falar de seu passado ou do que lhe acontecera. E depois,
tirando Raul, não sentiria falta de mais nada nem de ninguém.
- Então, Amelinha? - insistiu a mãe, cada vez mais exaltada. - O que me diz? Aceita a oferta de prima Janete?
- Eu... Não sei...
- Você tem que se decidir. Se não, ela vai embora e você nunca mais vai ter outra chance dessas.
- Não sei... Tudo aconteceu tão rápido... Não sei o que fazer.
- Não seja tola, menina! Não vê que essa é uma oportunidade única em sua vida? Que ninguém mais além de Janete poderá lhe dar uma educação melhor?
- Eu...
- Vamos, Amelinha, decida-se! Aceite logo essa oferta antes que seja tarde!
- Não precisa resolver nada agora - falou Raul com brandura. - Dona Janete ainda vai se demorar mais alguns dias na cidade e, até lá, você pode decidir.
Amelinha olhou-o agradecida. Uma parte dela queria partir, mas outra sentia medo do desconhecido e preferia ficar ali, na segurança de sua casa, ao lado do padrasto
amigo. Por outro lado, sentia a necessidade da mudança. A mãe a detestava e a irmã era uma fingida. Não tinha amigos na nova escola e sentia medo de se aproximar
dos garotos. Talvez o melhor para ela fosse mesmo partir para uma nova vida, levando consigo a única coisa que ainda lhe restava: esperança.
- Está bem - assentiu ainda em dúvida. - Se é o melhor para mim, é o que farei. Partirei com a prima Janete para São Paulo, e seja lá o que Deus quiser.
- Muito bem! - Tereza bateu palmas, já não conseguindo mais segurar a euforia. - Garanto que não vai se arrepender.
Ela não sabia bem. Talvez até já estivesse arrependida, a exemplo da decisão que tomara sobre o destino do filho, mas era tarde para voltar atrás. A alegria da mãe
lhe dizia que ela não era bem-vinda naquela casa, e partir lhe parecia agora à única opção.

***

Dali a duas semanas, Amelinha desembarcava em São Paulo, na companhia da prima. Chovia torrencialmente e fazia muito frio, e elas foram obrigadas a tomar um táxi
para a Avenida Barão de Limeira, no bairro de Campos Elíseos. Quando chegaram a casa, estavam molhadas e exaustas. Já era noite, e Janete mostrou a Amelinha o seu
quarto no sótão. De tão cansada, ela logo adormeceu. Somente no dia seguinte foi que pôde ver melhor o velho casarão em que passaria a morar.
Foi uma decepção. Amelinha esperava encontrar um palacete iluminado e limpo, em lugar daquele casarão velho e lúgubre, cheirando a mofo e naftalina. As paredes descascadas
davam mostras de desleixo, e as cortinas rotas e desbotadas anunciavam a decadência. Os tapetes puídos faziam uma trilha no lugar em que haviam sido mais pisados,
e alguns cristais foscos procuravam dar vida aos móveis lascados e sem brilho. Do lado de fora, o mato cobria o que um dia fora o jardim, e havia muitos vidros
quebrados nas janelas sem verniz.
- O que foi? - perguntou Janete de mau humor, notando o ar de desapontamento de Amelinha. - Não gostou?
- Não, prima... É que pensei que fosse... Diferente.
- Para você, eu sou Dona Janete, entendeu bem? Dona Janete. Não quero essa confiança de prima comigo.
Amelinha ergueu as sobrancelhas, espantada com a atitude de Janete. Então não eram primas?
- Não quero abusos comigo, menina - prosseguiu ela. - Ponha-se no seu lugar, e tudo correrá bem entre nós. E agora, venha cá. Experimente este uniforme.
Cada vez mais atônita Amelinha apanhou o uniforme que ela lhe estendia. Era uma roupa de criada, toda preta, com um avental de babadinhos branco.
- Para que é isso? - indagou Amelinha, ainda sem entender direito o que estava acontecendo.
- Que pergunta mais idiota é essa? É para você vestir, ora.
- Mas por quê? Não sou sua criada.
O grito que Janete deu em seguida foi tão alto que Amelinha chegou a sentir uma pontada nos ouvidos.
- Cale essa boca! Menina insolente, como se atreve a me responder?
- Mas prima... Dona Janete... Pensei que tivesse me trazido aqui para ser sua dama de companhia...
- Como espera que eu tenha uma dama de companhia com essa casa toda imunda? Primeiro você limpa e arruma depois me faz companhia. Sabe cozinhar?
Amelinha permanecia parada no mesmo lugar, recusando-se a crer no que estava acontecendo.
- Não... - respondeu ela timidamente, ainda sem se mover.
- Bem, isso é um espeto, mas não faz mal. Com o tempo, você há de aprender direitinho. E agora, o que está esperando? Ande, mexa-se, vá se trocar!
- Mas Dona Janete, e a escola?
- Que escola?
- A escola em que a senhora prometeu me matricular.
- Ah! Bom, depois vemos isso. Pensando bem, não sei para que uma moça precisa de estudo.
- Mas a senhora prometeu que eu ia estudar...
- Escute aqui menina, eu fiz um favor a sua mãe trazendo-a para cá. Você estava sendo um tropeço na vida dela e do seu padrasto. Pensa que não sei? Uma menina que
passou pelo que você passou, que já conheceu homem e gostou...
- Eu não gostei do que o Chico me fez! - protestou ela, o rosto coberto de rubor, surpresa porque Janete conhecia o seu passado.
A bofetada que Janete lhe deu foi tão rápida que ela custou a entender o que estava acontecendo. Sentiu o rosto arder, e lágrimas lhe vieram aos olhos. Só quando
a outra tornou a gritar foi que Amelinha percebeu que ela havia lhe batido.
- Não me interrompa! Jamais me interrompa quando eu estiver falando! Você já não é mais nenhuma garotinha. É uma mulher, conheceu homem, e o que você queria que
sua mãe fizesse? Que ficasse com você em casa e se arriscasse a perder o marido? Pois fez ela muito bem em se livrar de você antes que isso acontecesse.
- Minha mãe lhe disse isso?
- É claro que disse sua tonta! O que você pensou? Que eu bati o olho em você e resolvi trazê-la para morar comigo? Foi sua mãe que sugeriu isso. Com medo de que
você roubasse o marido dela, veio me procurar e me ofereceu os seus serviços, como criada, em troca de casa e comida. Nem salário preciso lhe pagar. E agora, deixe
de tolices e vá logo vestir esse uniforme. Há muito serviço a fazer nesta casa.
- A senhora não é rica. É uma mentirosa, pobretona, decadente...
- Chega Amelinha, já basta! Isso não lhe Interessa. Você está aqui para trabalhar para mim, e não para ficar especulando sobre a minha situação financeira. Vá logo
trocar essa roupa, antes que eu me aborreça e lhe dê outra bofetada.
- A senhora não é minha mãe! Não pode me bater.
- Ainda que sua mãe não houvesse me autorizado a usar com você todos os métodos necessários para lhe impor disciplina, ainda assim, posso bater-lhe quando bem entender.
Você está sob a minha responsabilidade agora.
- Isso não é justo - Amelinha começou a chorar. A senhora me enganou, minha mãe me enganou.
- Deixe de choradeiras e faça logo o que estou mandando. A casa está uma imundície, e você não tem o dia todo para limpar. Ande, deixe de fazer corpo mole e vá logo
trabalhar!
Naquele momento, Amelinha pensou se não seria melhor morrer. A vida que a esperava se mostrava bem diferente da que lhe prometeram, e um profundo desgosto foi tomando
conta de todo o seu ser. Não que não quisesse trabalhar. Não se incomodaria de arrumar a casa e limpar, desde que a prima a tratasse com carinho e respeito. Seria
sua companheira e criada, mas esperava em troca que ela cumprisse com o que lhe prometera. Queria estudar e ser alguém na vida, para não ter que se submeter às humilhações
por que vinha passando só porque já não era mais virgem. Mas aquele era um sonho que começava a ficar para trás. Pelo visto, Janete a levara ali para trabalhar quase
como uma escrava, sem precisar lhe pagar salário. Ela era uma menina, menor de idade e filha de sua prima. Isso era quase como ser propriedade dela.
Efetivamente, fora essa a intenção de Janete quando Tereza a procurara, logo após o enterro de seu pai, para lhe fazer aquela oferta. Ainda se lembrava das palavras
da prima, ao expor, de forma direta e sem rodeios, o que pretendia:
- Sei que você está bem de vida, prima. Por que não leva Amelinha para trabalhar com você?
- Não estou tão bem assim, minha cara - retrucou Janete a meia voz. - A fortuna de meu marido foi-se quase toda. Conto agora com minha parte na venda das terras
que eram do meu pai.
- Melhor ainda! Quero dizer, se você está passando por uma situação difícil, Amelinha será de excelente ajuda. Pode limpar e arrumar, e você nem precisa pagar-lhe
por isso.
- Quer que sua filha trabalhe de graça para mim?
- Bom, você teria apenas que lhe dar casa e comida.
- Posso perguntar por quê? Por que quer se livrar de sua filha?
- Não é que queira me livrar dela. É que aconteceram certas coisas...
Em breves palavras, Tereza contou a Janete tudo o que acontecera a Amelinha naqueles últimos tempos. Contou do estupro, do filho que ela tivera e fora entregue para
adoção e, finalmente, de seus temores com relação ao marido. Janete concordou com ela e acabou achando que seria uma boa idéia levar a garota como criada. Não tinha
mesmo condições de manter serviçais, e Amelinha poderia fazer todo o serviço da casa. Ela já estava ficando velha e não dava mais conta de nada. A casa estava uma
imundície, e ela não tinha mais forças para cuidar de uma mansão tão grande. Depois de tudo ajeitado, e com o dinheiro de sua parte na herança, poderia transformar
a casa em uma pensão, e Amelinha continuaria como camareira, arrumando as camas e as mesas para o jantar.
- A oferta até que é atrativa - disse Janete. - No entanto, a responsabilidade é muito grande. Amelinha ainda é uma menina, e eu não gosto de cuidar de crianças.
- Você é prima dela, pode fazer o que for preciso para que ela obedeça.
- Hum... Está bem, Tereza, convenceu-me. Quando é que posso levá-la?
- Esse será outro problema. Meu marido gosta de Amelinha e não vai concordar a princípio. Precisamos convencê-lo de que será a melhor coisa para ela e temos que
fazer com que ele acredite que a idéia partiu de você. Se ele souber que eu a procurei, nunca vai me perdoar.
Foi assim que Janete conseguiu levar Amelinha. Apesar de quieta e calada, a menina tinha um gênio difícil que precisava ser domado. Era rebelde e, pelo visto, não
gostava de trabalhar. Amelinha, no entanto, de tão desgostosa com tudo a que lhe aconteceu, não opôs muita resistência e logo se conformou com o seu destino. Durante
dias, lavou, esfregou, lustrou. Quando Janete recebeu a parte que lhe cabia na herança, arrumou o jardim, comprou cortinas e tapetes novos, pintou, consertou o que
estava quebrado e transformou a casa numa pensão, com quartos confortáveis, arejados e limpos para alugar. E tudo isso graças a Amelinha, que acabou se enfiando
no trabalho para esquecer a tristeza.
Quando a pensão foi inaugurada, logo apareceram os hóspedes. A casa era bonita, com um salão amplo onde eram servidas as refeições e uma cozinha de dar inveja a
muita gente. Janete não sabia cozinhar e contratou uma cozinheira, a única empregada na casa além de Amelinha. Enquanto Ione cuidava das refeições, Amelinha arrumava
e limpava os quartos e o resto da casa.
Em pouco tempo, quase todos os quartos já estavam ocupados. O preço do aluguel não era muito barato, o que fez com que a pensão fosse freqüentada, na maioria, por
senhores viúvos e solitários, como era o caso de Anacleto. Ele era um funcionário público aposentado, bem de vida, e tinha três filhos que não lhe davam a menor
importância. Por isso, vendeu a casa em que vivia e se mudou para a pensão. Apesar de solitário, era um homem alegre e vivia contando anedotas aos demais hóspedes,
que se divertiam com suas histórias engraçadas. Era assim todas as noites. Após o jantar, os hóspedes se reuniam na sala de estar para conversar ou tocar piano,
e Anacleto punha-se a contar suas piadas. De vez em quando, Amelinha via Anacleto de cochichos com Janete, ocasiões em que ela lhe lançava aqueles seus olhares indecifráveis,
e a menina não conseguia imaginar o que poderia estar se passando entre eles. Mas foi da pior maneira que descobriu.


Capítulo 5


Ainda era muito cedo quando Amelinha se levantou naquela terça-feira. Saiu do seu quarto no sótão bocejando, desejando ardentemente ter ao menos um dia de folga
na pensão, como acontecia com Ione. O trabalho era duro, mas Janete dera as terças-feiras de folga à cozinheira, porque não era um dia de muito movimento. Amelinha
não possuía folga alguma, e eram raras às vezes em que se divertia.
Em seus dias de descanso, Ione se levantava antes do raiar do dia e saía sem fazer barulho, deixando a Amelinha a incumbência de cuidar do café, enquanto que o almoço
era sempre preparado de véspera para ser requentado na hora de servir. Naquele dia, ao entrar na cozinha, sonolenta e arrastando os pés, Amelinha teve uma surpresa:
Janete lá estava ainda enfiada no seu robe de chambre roxo, bebericando uma xícara de café fumegante.
- Dona Janete! - espantou-se Amelinha. - O que faz de pé tão cedo?
- Não tenho que lhe dar satisfações, menina - respondeu a prima de mau humor. - No entanto, minha descida intempestiva à cozinha teve um motivo.
Amelinha notou que a prima esperava por uma indagação e retrucou com fingido interesse:
- Que motivo?
Janete fitou-a com olhar enigmático e deu um sorriso mordaz, que a menina não compreendeu muito bem. Tomou mais um gole do café, estalou a língua e, mirando Amelinha
de cima a baixo, falou com voz melíflua:
- Você já não é mais nenhuma menina, não é, Amelinha? - ela não respondeu. - Nós duas sabemos que dissabores você já experimentou na vida. - Fez uma pausa estudada
e prosseguiu com exagerada afetação: - Sei que sua experiência não foi das melhores, mas é preciso que saiba que nem todos os homens são iguais àquele Chico.
Ao ouvir o nome do homem que desgraçou a sua vida, Amelinha teve um estremecimento e encarou a prima com ar indagador.
- Por que está dizendo isso?
- Porque há homens mais cavalheiros do que aquele Chico. Ele foi um animal, é verdade, mas não quero que você se deixe impressionar por isso e se afaste de todos
os homens. Você não deve se fechar como uma ostra, minha filha.
Amelinha não entendia nada e se esforçava para que as palavras da prima fizessem algum sentido.
- Não entendo o que está querendo dizer, Dona Janete.
- O que quero dizer, minha filha, é que já é chegada a hora de você deixar eclodir a mulher que existe em você.
- Deixar o quê?
- Ora, não se faça de ingênua. Então não percebe que se transformou numa linda mulher?
- Não sei do que a senhora está falando, Dona Janete. Sei que nunca fui bonita.
- Ah! Mas isso foi antes. Sua mãe me contou como você era gorda e sem-graça - Amelinha engoliu o choro, enquanto Janete prosseguia: - Mas isso foi no passado. Veja
agora em que bela moça você se transformou.
Amelinha sentiu vontade de gritar: e daí? Mas achou que a prima não iria gostar e respondeu humildemente:
- A senhora está sendo bondosa comigo, Dona Janete.
- Bondosa, eu? Não, minha filha, estou sendo realista. E acho que você também deveria ser.
- Como assim?
- Venho percebendo o efeito que você causa nos homens desta casa.
Com medo de que a prima a estivesse censurando, Amelinha deu dois passos para trás e tapou a boca com a mão, respondendo apavorada:
- Não... Está enganada, Dona Janete. Eu não faço nada...
- Sei que não faz e nem precisa fazer. Seu remelexo mexe com os homens naturalmente.
- Remelexo? O que a senhora quer dizer com isso?
- Que você bota muita sensualidade no andar.
- Eu?
- Por que o espanto? Por acaso não nota como os homens a cobiçam?
- Dona Janete, a senhora deve estar brincando.
- Não estou não. De uns tempos para cá, tenho notado o fascínio que você exerce sobre os homens... Em especial, sobre um deles.
- Um deles? Quem?
- Nunca reparou?
- Não, nunca. De quem a senhora está falando?
- Do Anacleto.
Mais uma vez, Amelinha cobriu a boca com as mãos.
- Seu Anacleto? - indignou-se.
- Não precisa se fazer de inocente comigo, Amelinha, porque bem sei que você já reparou. Seria impossível não notar o jeito como ele a olha.
Embora Amelinha já tivesse percebido que Anacleto lhe lançava olhares furtivos, jamais lhe passou pela cabeça que ele a estivesse cobiçando. Ele devia ter idade
para ser seu avô, e ela nunca poderia imaginar um avô flertando com ela.
- Juro que nunca notei nada, Dona Janete. Nem lhe dei confiança, se é o que quer saber.
- Sei que não. O que é, realmente, uma pena.
Cada vez mais abismada, Amelinha ergueu as sobrancelhas e retrucou com visível indignação:
- Uma pena? O que a senhora quer dizer com isso?
- Olhe Amelinha, chega de rodeios e vamos direto ao ponto. Você já é uma mulher e não há de se chocar com o que vou lhe dizer. O caso é o seguinte: Seu Anacleto
está muito impressionado com você. O homem é viúvo, sabe como é, e gostaria de uma companhia.
- Mas tem tanta gente aqui na pensão!
- Ou você está se fazendo de tonta, ou é a menina mais estúpida que já vi! Então não percebe que seu Anacleto está de olho em você? Que ele a deseja e quer dormir
com você?
- O quê? - ela recuou aterrada. - O que está dizendo? Dormir comigo?
- E está disposto a recompensá-la com certa importância em dinheiro.
- Dinheiro? Ele está querendo me comprar? O que pensa que sou? Uma prostituta?
- Ora, ora, então você não é tão tola assim, não é mesmo? Já percebeu o que estou tentando lhe dizer.
- O quê? O que a senhora está tentando me dizer?
- Será que preciso ser ainda mais direta do que já estou sendo? Seu Anacleto quer dormir com você em troca de algum dinheiro.
- Não! De modo algum! Não sou nenhuma meretriz!
- A quem está tentando enganar? Você já não é mais moça, não tem nada a perder. Só a ganhar.
- Não, Dona Janete, não posso me entregar assim a qualquer um, por dinheiro. É errado.
- E daí? Que mal pode haver? Ninguém vai ficar sabendo mesmo.
- Mas eu sei! Não quero me prostituir. Não quero virar amante de ninguém!
- O que pretende Amelinha? Casar-se na igreja, de véu e grinalda? Depois do que lhe aconteceu?
Amelinha começou a soluçar e respondeu magoada:
- Não tive culpa do que me aconteceu.
- Será que não teve mesmo? Será que você não provocou o tal Chico?
- Não... - hesitou ela, não muito certa sobre se o havia provocado ou não.
- Isso não tem muita importância agora, não é mesmo? O mal já está feito e não tem mais como remediar. Virgem, minha filha, nunca mais você vai ser.
- Mas... Não sou vagabunda. Não posso me entregar a esse homem por dinheiro.
- E por que se entregaria então? Por amor? Não se iluda minha filha, amor não é para gente feita você. Depois do que lhe aconteceu, você só serve para uma coisa:
ser amante.
- Não! A senhora está errada! Sou uma moça direita, de família.
- Mas que família? Você nem tem mais família. Sua mãe a abandonou, e você não tem pai.
- Minha mãe não me abandonou... Mandou-me para cá, mas posso voltar quando quiser.
- Será que pode mesmo? Pois então, por que não experimenta? Será que ela está disposta a aceitá-la de volta?
- Meu padrasto vai convencê-la. Ele sempre a convence.
- Padrasto? Seu padrasto é um bêbado. Vive caído pelas sarjetas.
- Isso é um disparate! Raul sempre foi um homem digno.
- Até o dia em que você o deixou, não é mesmo?
- O quê? O que está dizendo?
- Você é uma tonta mesmo, não é? Não sabe de nada. Pois fique sabendo que, desde o dia em que você partiu, seu padrasto deu para beber. Perdeu o emprego e vive caído
pela rua. Sua mãe é que o tem sustentado, lavando e passando roupa para fora.
- Não pode ser... Está mentindo. Diz isso só para que eu faça o que a senhora quer.
- Se não acredita em mim, por que não experimenta telefonar?
- Minha mãe não tem telefone.
- Por que não liga para o antigo trabalho de seu padrasto?
- Não tenho o número.
- Pois então, pode acreditar em mim. Acho que seu padrasto não suportou a sua partida e se entregou ao vício. E sabe por quê? - ela meneou a cabeça. - Porque estava
apaixonado por você. Sua mãe percebeu isso e colocou você para fora de casa, só que não a tempo de evitar o mal. Você já o havia enfeitiçado, e ele se deixou arrastar
pelo desejo. Quantas vezes você e ele dormiram juntos, pelas costas de sua mãe?
- Isso não é verdade! Raul e eu nunca dormimos juntos! Ele nunca foi apaixonado por mim. Gosta de mim como filha. Como filha, ouviu?
- Ah! É? Então me diga: desde que você veio para cá, por que é que ele nunca a procurou?
- Provavelmente, porque minha mãe não deixa.
- Exatamente. E porque ele anda bebendo por sua causa, e sua mãe não está nada satisfeita.
- Como é que a senhora sabe disso? A senhora nunca mais foi lá, e não creio que minha mãe a procure para lhe fazer confidencias.
- Temos muitos parentes em Limeira, Amelinha. Parentes comuns que morrem por um mexerico.
Amelinha começou a sentir o estômago revirar. Aquela conversa a estava enojando, e ela não queria ficar ali nem mais um minuto para ouvir aquilo. Rodou nos calcanhares
e saiu correndo porta afora, subindo as escadas em disparada e batendo a porta do quarto. Atirou-se na cama e prorrompeu num choro longo e desesperado. Pensava nas
palavras da prima. Não podiam ser verdadeiras. Raul sempre gostara dela como filha, sempre a defendera e ajudara porque não concordava com as perseguições da mãe.
Não havia nenhuma outra intenção por detrás de suas atenções. Não podia haver.
Sentiu-se imensamente inquieta. Janete lhe dissera que ele se tornara um bêbado desempregado. Como seu Chico. Ele também era um bêbado e só não ficara desempregado
porque o irmão permitia que trabalhasse na oficina. E Raul? Não tinha irmãos. Onde é que trabalharia? Mas não podia ser. Janete inventara tudo aquilo. Raul era um
homem digno e trabalhador. Não se entregaria ao vício daquela maneira, ainda mais por causa dela.
Fazia mais de um ano que ela partira de Limeira, e ninguém nunca lhe havia mandado notícias. Da mãe, nem sinal, e Raul tampouco aparecera. Ninguém lhe telefonara
ou escrevera uma carta. Nem ela. O Natal passara, e ela pensou que o padrasto mandaria buscá-la, mas Janete lhe dissera que os tempos estavam difíceis e que ele
não poderia se ausentar do trabalho. Ela acreditou e foi ficando, certa de que, mais cedo ou mais tarde, quando tudo voltasse ao normal, Raul convenceria a mãe e
a levaria de volta.
Só que agora Janete lhe aparecia com aquela história terrível. Seria verdade? Será que Raul se apaixonara mesmo por ela? Seria por isso que sempre a tratara tão
bem? Não conseguia compreender. Gostava do padrasto como se fosse seu pai. Ou será que também nutria por ele algum sentimento camuflado? Não sabia o que pensar.
Acostumara-se a vê-lo como seu amigo e salvador. Como agora podia imaginar-se desejando o homem que aprendera a amar como pai? Só se não o amasse desse jeito. Mas
como poderia saber?
Havia uma única coisa a fazer naquelas circunstâncias. Precisava voltar a sua casa e ver com seus próprios olhos. Se, por sua causa, Raul se tornara mesmo um bêbedo,
vivendo à custa da mãe, precisava fazer alguma coisa. Não sabia bem o quê. Só o que sabia era que não podia viver com aquela dúvida e com aquela culpa a ameaçá-la.
Se fora mesmo responsável pela decadência do padrasto, iria descobrir.
Tomou uma decisão. Rapidamente, levantou-se da cama, enxugou as lágrimas e foi apanhar a pequenina mala encardida onde a mãe guardara suas roupas quando partira.
Em silêncio, começou a arrumar suas coisas e nem percebeu que Janete entrara no quarto.
- Vai viajar? - ela ouviu a prima perguntar.
- Preciso voltar.
- Para quê? Sua mãe não a quer por lá.
- Não acredito em uma palavra do que a senhora disse.
- Se não acredita, por que se dar ao trabalho de ir até lá?
- Quero ver minha família. Faz mais de um ano que não tenho notícias.
- E só agora lhe deu vontade de vê-los?
- Só agora ouvi esse absurdo.
- Posso saber como é que pretende ir? Você não tem dinheiro.
- E aposto que a senhora não vai me dar, não é mesmo?
- Não.
- Pois não me importo. Vou de qualquer jeito. Pego uma carona na estrada ou me escondo em qualquer trem de carga.
- Muito bem - exasperou-se Janete. - Faça como quiser. Vá até lá e veja com seus próprios olhos. Verá que não menti para você. E depois, volte correndo para mim.
- Não vou voltar.
- Vai sim. Quando descobrir que eu tinha razão, vai voltar correndo e fará o que eu quiser.
Amelinha não respondeu. Fechou a mala e ergueu-a com raiva, passando pela prima como uma bala. Desceu as escadas correndo e ganhou a rua, caminhando em direção à
estação de trem. Pediria uma carona num trem cargueiro. Não foi difícil. Amelinha fez cara de choro e o maquinista se condoeu, deixando que ela ficasse em um dos
vagões de carga. Ajeitou-se entre uns sacos de farinha e acabou adormecendo. Mal podia conter a ansiedade de voltar a ver sua família. Só então percebeu que sentia
saudades de sua casa, de seu quarto e, sobretudo, de Raul. Por que ele não se comunicara com ela naquele ano todo? Sentiu imensa vontade de vê-lo e começou a chorar,
imaginando-o caído na sarjeta com uma garrafa de pinga na mão. Aos poucos, a imagem foi-se distanciando, e ela ouviu o apito do trem soar à distância. Seus olhos
pesaram, e ela adormeceu.

***

Chovia torrencialmente quando Amelinha desceu do trem na pequenina estação da cidade de Limeira. Agarrada à velha maleta encolheu-se em um banco na plataforma e
esperou. A chuva não se decidia a diminuir, e ela foi ficando cansada, o corpo todo dormente da incômoda posição em que se encontrava. Trovões ribombavam à distância,
e luzes azuis de relâmpago lançavam uma claridade desconfortável sobre seus olhos. O vento se embrenhava em seus cabelos, atirando-os de um lado a outro, e enfunando
suas vestes, já encharcadas pelos grossos pingos de chuva que eram furiosamente atirados pela ventania. A cada rajada mais forte, Amelinha se encolhia mais, pedindo
a Deus que fizesse cessar aquela tempestade.
Mas a intempérie não parecia disposta a ceder, ou antes, desafiava Amelinha para um duelo de resistência. As horas iam-se passando, e nada de a chuva parar. O homem
do guichê conversava com outro, que parecia ser o chefe da estação, e apontava para ela com o queixo. Amelinha assustou-se. E se aqueles homens pensassem que era
uma ladra ou fugitiva e chamassem a polícia?
Resolveu ir embora de qualquer jeito. Enfrentando o mau tempo, Amelinha levantou-se do banco e saiu às pressas para a rua. A chuva a atingiu em cheio, e ela se apertou
toda dentro do casaco surrado, estreitando a mala contra o peito, sentindo um calafrio de febre a subir pelo pescoço. Foi caminhando apressada pela rua, olhando
de vez em quando para trás, para ver se alguém a estava seguindo, mas ninguém apareceu. Os dois homens, com certeza, não se animaram a enfrentar a tempestade por
uma menina desconhecida.
Foi subindo a rua lentamente, sem saber ao certo que direção tomar. Não costumava andar por aqueles lados e sentiu-se perdida num primeiro momento. Foi entrando
em ruas escuras, pisando nas poças enlameadas, até que chegou a uma pracinha conhecida. Finalmente encontrou o caminho certo para sua casa. Agora já sabia onde estava
e logo dobrou a esquina de sua rua. Sentiu o coração acelerar quando avistou sua casa mais abaixo. Foi andando rapidamente, quase correndo, até que chegou ao portão
e entrou. A casa estava toda escura. Não sabia que horas eram, mas, pelo tempo que ficara na estação, deduziu que seria bem tarde e todos deveriam estar dormindo.
Chegou à porta da frente e bateu uma, duas, três vezes. Ninguém parecia escutar, por causa do barulho da chuva e do vento, e ela bateu com mais força, quase esmurrando
a porta. Finalmente, depois de mais de quinze minutos, a porta se entreabriu lentamente, e ela reconheceu o nariz da mãe se insinuando na penumbra.
- Quem está aí? - perguntou Tereza, tentando ver na escuridão.
- Sou eu, mãe, Amelinha. Deixe-me entrar.
Na mesma hora, Tereza chegou para o lado, e Amelinha irrompeu na sala, toda molhada e tiritando de frio. Jogou a mala no chão e encarou a mãe, pensando em algo para
lhe dizer. Não foi preciso, porque Tereza se adiantou e foi perguntando com rispidez:
- O que está fazendo aqui? Você fugiu da casa de sua prima?
- Fugir? Não, mãe, não fugi. Vim apenas ver com estão as coisas.
- Assim, sem avisar?
Amelinha sentiu o rosto e os olhos arderem e leve vontade de chorar. Então ela passava mais de um ano fora, sem dar notícias, e era assim que a mãe a recebia? Nem
um cumprimento, nem um como vai? Nada? Ela e a mãe nunca haviam se dado bem, mas esperava que o tempo e a distância houvesse suavizado um pouco o seu coração de
pedra.
- Não está contente em me ver, mãe?
Tereza olhou-a de um jeito estranho e nem precisou dizer o que sentia para Amelinha saber o que lhe ia ao pensamento. Estava claro que a mãe não ficara nem um pouco
satisfeita de vê-la ali e nem se preocupava em esconder.
- Não devia ter voltado. Sua vida agora é em São Paulo, não aqui.
- Esta é a minha casa.
- Não é mais. No dia em que você partiu, esta deixou de ser a sua casa.
- Eu não parti mãe. Foi você quem me mandou embora.
- Muito bem. Por que voltou então?
- Para ver como estão às coisas, já disse.
- Mas por quê? O que a fez querer voltar? - Amelinha não respondia, sem saber por onde começar a contar à mãe as infâmias que Janete lhe dissera. - Não! Não me diga.
Já sei por que voltou. Depois de arruinar nossas vidas, voltou para rir da nossa desgraça. Eu devia era colocá-la para fora de casa a pontapés.
Naquele momento, Amelinha teve certeza de que as infâmias da prima não eram tão infâmias assim. Pela reação da mãe, tudo o que ouvira a respeito do padrasto deveria
ser verdade. Mas ela não tinha culpa, não sabia de nada daquilo. Talvez fosse apenas um mal-entendido, e já era hora de esclarecer tudo.
- Não sei do que está falando, mãe. Eu não fiz nada...
Nem teve tempo de terminar. A bofetada que a mãe lhe deu fez com que ela rodopiasse e se estatelasse no chão.
- Sua desavergonhada, ordinária, vagabunda! Não me chame de mãe! Como se atreve a me enfrentar? Apanhe suas coisas e vá-se embora daqui!
A gritaria acabou despertando Raul e Cristina, que chegaram à sala praticamente ao mesmo tempo. Ao ver a irmã caída no chão, à roupa toda molhada, os cabelos despenteados,
Cristina correu para ela e a abraçou, ajudando-a a se levantar.
- Amelinha! - exclamou animada. - Que bom que você está aqui. Senti saudades suas.
Amelinha não respondeu e deixou-se ajudar pela irmã, mecanicamente erguendo-se do chão. Tinha os olhos fixos em Raul, que estava parado na porta da sala, só de ceroulas,
sem camisa, a barba de muitos dias, os olhos inchados e vermelhos de beberrão.
- Raul... - chamou ela, chocada com a visão daquela figura feia e decadente, muito diferente do homem que era quando ela partira. - O que houve com você?
Ele não teve coragem de encará-la. Escondeu o tosto entre as mãos e desatou a chorar, ajoelhando-se no chão, o corpo magro sacudido pelos soluços, instintivamente,
ela se desvencilhou de Cristina e correu para ele, braços estendidos, num gesto simples de querer ajudar. Mas não foi assim que Tereza entendeu a sua atitude. Impediu-a
de aproximar-se, puxando-a pelos cabelos e jogando-a em cima do sofá.
- Fique longe dele! - vociferou ao mesmo tempo em que avançava para ela. - É por sua culpa que ele está assim, sua cadela! Está satisfeita? Vadia, prostituta!
Enquanto gritava, Tereza ia batendo no rosto de Amelinha, que se encolheu toda no sofá, tentando proteger-se daqueles golpes violentos. Assustada com a reação da
mãe, Cristina atirou-se sobre ela, tentando segurar-lhe o braço, gritando entre lágrimas e soluços infantis:
- Mãe! Pare com isso, mãe! Está machucando Amelinha! Pare! Pare!
Mas Tereza não parava. Parecia que, quanto mais Cristina gritava, mais prazer ela sentia em ferir Amelinha. A filha tinha o corpo enfraquecido e não conseguia forças
para reagir. O rosto parecia em chamas, e ela não sabia se por causa das tapas ou da febre que ia se elevando. Amelinha começou a ver e ouvir as coisas distantes,
quase como se estivesse sonhando, e os bofetões que levava já não doíam mais. As faces dormentes se acostumaram aos golpes, e cada nova bofetada apenas aumentava
a sua vermelhidão e dormência.
Aos poucos, Amelinha foi sentindo uma sonolência gostosa, e suas pálpebras começaram a tombar. O frio que lhe penetrava a espinha, percorrendo-lhe as veias e se
infiltrando nos ossos, começava agora a ceder, e um sopro morninho foi acalmando os pelos de seu corpo, que tornaram a se acomodar em cima da pele. Com muito esforço,
tentou manter os olhos abertos, mas o apelo confortável do sono foi mais forte, e ela deixou que as pálpebras caíssem de vez, desfalecendo sob a sanha furiosa da
mãe.
Ainda assim, Tereza não parava de bater. Nem percebera que a filha havia desmaiado. Só o que sabia era que precisava se vingar daquela mulherzinha sonsa e vulgar
que se disfarçara de sua filha para poder roubar-lhe o marido. Sim, era isso. Era uma vagabunda que tinha em suas mãos, não alguém que saíra de seu ventre e que,
supostamente, deveria amar. Continuava batendo, descontrolada, até que sentiu que mãos fortes apertavam os seus punhos, impedindo-a de continuar.
- Você enlouqueceu Tereza? - era Raul que, despertado pelos gritos e as súplicas de Cristina, saíra de seu torpor e segurava a mulher com veemência. - Quer matar
a sua filha?
Presa pelo marido, Tereza cessou as bofetadas e o fitou com ódio.
- Você ainda a defende, não é? - rugiu colérica. - Quer salvar a sua amante novamente? Mas dessa vez, não vai conseguir. Se eu não a matar, a peste se encarregará
de fazê-lo!
- O que está dizendo, mamãe? - choramingava Cristina, apavorada com a violência da mãe. - Está rogando praga para Amelinha?
Com um gesto brusco, Tereza se soltou das mãos de Raul e correu para Cristina, que chorava apavorada.
- Não chore minha filha - tentou consolar. - Não aconteceu nada de mais.
- A senhora... Matou Amelinha... - soluçava a menina. - Ela... Está morta... Não está?
Amelinha ardia em febre. Mais que depressa, Raul ergueu-a no colo e levou-a para o quarto, tirando-lhe as roupas molhadas e deitando-a na cama. Apanhou dois cobertores
e a cobriu, seguido por Tereza, que o olhava com ar de ódio e censura, sem dizer uma palavra. Cristina, agarrada a sua cintura, não parava de chorar, achando que
a irmã havia morrido.
- Venha cá, Cristina - chamou Raul. - Fique aqui cuidando de sua irmã, enquanto vou buscar o médico. Não quero que saia de perto dela nem um minuto, Ouviu?
Ela assentiu e retrucou temerosa:
- Ela está... Morta?
- Não, não está. Mas pode morrer, se nós não corrermos e chamarmos o médico.
Foi com imenso alívio que ela ouviu aquelas palavras, e, enxugando as lágrimas, respondeu:
- Pode ficar sossegado, tio Raul. Não largo Amelinha por nada.
- Ótimo. Você é uma boa menina. Tenho certeza de que vai cuidar muito bem dela.
Enquanto ele se vestia rapidamente, Tereza o observava, até que não conseguiu mais se conter e indagou, a voz fremente de ódio:
- Aonde é que você vai?
- Chamar um médico.
- Ela não tem nada. É só passar umas compressas de água fria no rosto, e amanhã estará boa.
- Sua filha está ardendo em febre, além de machucada com a surra que você lhe deu. Precisa de um médico, se não, vai morrer.
A vontade de Tereza era gritar: deixe que morra, mas temia que Raul se zangasse e a repreendesse novamente. Seguiu-o até a sala e, quando ele se aproximava da porta,
disse com aparente calma:
- Não se demore.
Ele estacou a mão na maçaneta, e se virou para ela, os olhos chispando de raiva. Aproximou-se, a respiração ofegante, as narinas fremindo de raiva, e disse em tom
ameaçador:
- Não se aproxime dela, ouviu bem? Mantenha distância de Amelinha, se não quiser se entender comigo e a justiça.
Ela mordeu os lábios e não respondeu. Ficou parada onde estava vendo Raul sair apressado. A chuva havia diminuído um pouco, mas ainda fazia muito frio. Em silêncio,
foi até a porta do quarto das meninas e olhou para dentro. Deitada na cama, Amelinha tiritava de frio sob os dois cobertores, o inchaço do rosto quase lhe cobrindo
os olhos, enquanto Cristina, a seu lado, dizia com sua vozinha miúda:
- Por favor, Amelinha, não morra. Gosto de você, quero que fique boa. Não morra. Pai nosso que estais no céu...
Intimamente, Tereza exultava. Não seria nada mau se Amelinha pegasse uma pneumonia e morresse. Ela ardia em febre, o que, certamente, não era conseqüência das tapas
que lhe dera. Nem batera tão forte assim. Ela é que era exagerada e fingira desmaiar só para chamar a atenção de Raul. Sentou-se na cama de Cristina para esperar.
O que diria o médico se percebesse a satisfação que sentia com o estado da filha?
Pouco tempo depois, Raul estava de volta com médico. Ele cumprimentou Tereza e afastou Cristina gentilmente, pondo-se a examinar Amelinha. Viu os hematomas e o inchaço
que lhe cobriam o rosto, mas não pôde se deter muito naquilo. A febre e o ronco de sua respiração eram sintomas que mereciam muito mais a sua atenção, e o diagnóstico
para aqueles sinais só podia ser um. Ajeitou os óculos sobre o nariz, virou-se para Tereza e Raul, e esclareceu apreensivo:
- Ela precisa ser internada imediatamente. Está com pneumonia.
- De novo? - assustou-se Cristina. - Faz pouco mais de um ano que ela teve pneumonia.
- Eu sei - comentou o médico. - Lembro-me bem. Vamos, depressa, não temos tempo a perder.
- Ela está sem roupas - adiantou-se Tereza, tentando evitar que Raul a visse nua novamente.
- Pois o que está esperando? Vista-a logo, vamos! Use roupas bem quentes.
O médico saiu puxando Raul pelo braço, deixando Amelinha aos cuidados da mãe e da irmã. Na sala, de pé diante da porta, o médico indagou:
- O que foi que houve com ela?
- Nós não sabemos - respondeu Raul, sem o encarar. - Ela chegou aqui assim e desmaiou.
O médico assentiu e não disse nada. Sabia que Amelinha estava morando em São Paulo com a prima, o que ela estava fazendo ali não era de sua conta, cabia-lhe, tão
somente, cuidar de sua saúde.
No hospital, foi constatada a pneumonia dupla, e Amelinha foi internada às pressas. Os médicos se desvelavam para salvar-lhe a vida, e, enquanto Cristina e Raul
oravam para que ela resistisse Tereza, em silêncio, invocava o poder das trevas para que ela morresse. Muitos seres das sombras acorreram ao seu chamado, mas havia
espíritos de luz interessados no bem-estar de Amelinha.
Por maior que seja o poder da treva, ele nunca será forte o bastante para se impor onde quer que haja um só pensamento de luz, e os espíritos que atenderam ao chamado
de Tereza não conseguiram levar Amelinha. Protegida por amigos luminosos, que envolveram seus pulmões numa campânula de luz, ela começou a reagir e, alguns dias
depois, já estava fora de perigo, livre de qualquer ataque da escuridão.
Os médicos do hospital quiseram saber a razão da surra que Amelinha havia levado. Sabiam que a pneumonia era decorrência da chuva que apanhara, mas não viam explicação
para os inchaços e hematomas em seu rosto. Tereza buscou o apoio de Raul, mas ele abaixou os olhos e não disse nada.
-Nós não sabemos ao certo - explicou ela, tentando demonstrar indignação. - Achamos que ela foi atacada por algum malfeitor quando vinha para casa.
Ninguém fez mais perguntas. Nem a Tereza, nem a Amelinha, nem a ninguém. A desculpa que ela arranjara fora suficiente, e a surra que Amelinha levara terminaram impunes.
- Se tornar a bater nela outra vez - alertou Raul, quando estavam a sós -, juro que a entrego à polícia e vou ser o primeiro a depor contra você.
Com medo das conseqüências, Tereza silenciou. Não queria ser presa nem perder o marido. Mas ainda podia expulsar Amelinha de sua casa assim que ela saísse do hospital.
E, com certeza, era isso mesmo que faria.


Capítulo 6


Levou algum tempo até que Amelinha se recuperasse. Mesmo contra a vontade de Tereza, ela teve que voltar para casa, ficando aos cuidados de Cristina. Aos pouquinhos,
foi melhorando e se fortalecendo, até que se restabeleceu por completo.
- Agora que ficou boa - disse Tereza, no primeiro dia em que ela pôde se sentar à mesa para almoçar -, já pode voltar para São Paulo. Janete deve estar sentindo
a sua falta.
- Acho que Amelinha não quer voltar, quer Amelinha? - indagou Cristina. - Podemos cuidar dela.
- Mamãe tem razão - concordou a menina, fitando a irmã com certo carinho. - Não há mais nada para mim aqui.
- Ah! Que pena.
- Não sei por que se importa tanto com sua irmã - censurou Tereza. - Ela não liga a mínima para você.
- Posso ser tudo, menos mal-agradecida - rebateu Amelinha.
Era a primeira vez na vida, ao menos que Cristina se lembrasse que a irmã tinha algum reconhecimento para com ela.
- Gosto de você, Amelinha. Somos irmãs. Sorriram amistosamente, e Raul entrou na cozinha cabisbaixo, indo sentar-se em seu lugar de sempre. Àquela hora, deveria
estar no trabalho, e se não estava, era porque a prima tinha razão, e Raul estava mesmo desempregado.
- Boa tarde, meninas - cumprimentou ele, servindo-se de um prato de feijão.
- Onde você esteve? - quis saber Tereza, olhando-o desconfiada.
- Fui procurar emprego.
Não disse mais nada. Comeram em silêncio, com Raul de cabeça baixa o tempo todo, evitando olhar para Tereza ou Amelinha, que estava louca para conversar com ele
a sós. Precisava que ele lhe esclarecesse sobre aquela história de paixão. A mãe praticamente já confirmara tudo, mas o que ela dizia não tinha muito valor. Tereza
sempre fora ciumenta, levantando suspeitas infundadas sobre ela e o padrasto. Que a acusasse de tentar roubar-lhe o marido não era nada de mais.
De qualquer forma, Raul não se parecia com o espectro que Janete dissera que ele se tornara. Quando chegara, Amelinha achou-o um pouco esquisito, com um jeito de
quem havia se embriagado, mas podia ser impressão causada pela febre. Ele não tinha cara de bêbado agora e, embora desempregado, não parecia acomodado na situação.
Contudo, por que havia chorado ao vê-la? Que sentimentos teriam açoitado seu coração quando a vira?
No dia seguinte, acordou cedo e saiu. Encostou-se numa árvore no fim da rua e esperou. Cerca de meia hora depois, Raul saiu de casa, de banho tomado, todo arrumado,
a barba feita e os cabelos penteados. Quando passou por onde ela estava, Amelinha saiu de trás da árvore e pôs-se a caminhar ao seu lado. Ele se surpreendeu com
a sua presença, mas não fez nenhum comentário. Sentia imensa alegria ao vê-la e não pretendia questionar por que ela estava ali.
- Olá, Raul - começou ela, para puxar assunto.
- Olá, menina. O que faz aqui fora tão cedo?
- Esperava-o para falar com você.
- Falar comigo? O quê?
- Está indo procurar emprego de novo?
- Estou.
- Por que você perdeu o seu emprego antigo? O que foi que aconteceu?
Ele deu uma meia parada e olhou-a com tristeza, pensando se deveria ou não lhe contar a verdade.
- Colocaram outro no meu lugar. Mais jovem e mais inteligente.
Era mentira, e ela sabia disso.
- Não foi isso o que ouvi dizer - arriscou.
- E o que você ouviu dizer?
- Que você foi mandado embora porque vivia bêbado.
- Quem foi que lhe disse isso?
- Minha prima Janete.
- Sei...
- É verdade, Raul? Você foi mandado embora por causa da bebida?
- Por que se interessa por isso, Amelinha?
- Foi por isso que voltei.
Ele estacou, fitando-a com cara de assombro.
- Você voltou por minha causa?
- Voltei porque precisava esclarecer algumas coisas que só você pode me dizer.
- Que coisas?
- Você sabe.
- Não, não sei.
- Minha prima disse que você deu para beber e que vive caído na sarjeta. Isso é verdade?
- É - respondeu ele secamente, engolindo indescritível angústia.
- Disse também que minha mãe é quem sustenta a casa agora.
- Não é bem assim. Estou tentando arranjar outro emprego.
- O que você fez para ser mandado embora?
- Será que não dá para imaginar o estrago que um bêbedo pode fazer numa vidraçaria? - ela assentiu. - Eu era gerente, Amelinha, não podia ter feito o que fiz.
- O que você fez?
- Eu estava com muita raiva naquele dia. Cheguei atrasado, e o patrão chamou minha atenção. Tínhamos vários pedidos para entregar, e a responsabilidade pelas faturas
era minha. Eu não sabia onde as havia colocado, havia me esquecido que as levara para casa. O patrão começou a gritar comigo, e eu, alterado pela bebida, perdi o
controle e comecei a atirar vidros e espelhos para todos os lados. Foi uma sorte ninguém ter-se ferido.
- O que foi que o levou a isso, hein?
- Você está me fazendo um tremendo interrogatório menina. Posso saber o motivo?
- É que minha prima disse muitas coisas de você...
- O quê, Amelinha? O que mais ela falou que a deixou tão preocupada?
- Quer mesmo saber, Raul? - ele assentiu. - Pois bem. Ela disse que você se entregou à bebida depois que eu parti porque estava apaixonado por mim.
- Ela disse isso?
- Disse. É mentira, não é? Você não se tornou bêbedo por minha causa, se tornou? Vamos, Raul, diga que não é verdade. Diga que Janete inventou tudo isso só para
me espezinhar.
- Por que acha que é mentira?
- Porque você é meu padrasto. É o homem que está no lugar do meu pai. Não pode me amar desse jeito.
Ele soltou um longo suspiro e retomou a caminhada.
- Infelizmente, as coisas nem sempre são como devem ser.
- O que está querendo dizer? Que ela tem razão?
- Sabe Amelinha, há coisas que acontecem na vida que foge ao nosso controle. Sentimento é uma delas... E eu, infelizmente, não pude controlar os meus.
- Por quê? - ela começou a chorar. - O que foi que eu fiz?
- Nada. Você apenas existe.
- É por isso que minha mãe me odeia. Ela pensa que você e eu...
- Sua mãe tem a mente suja e vive assombrada pelo ciúme. Eu jamais lhe faltaria com o respeito. Você é uma criança...
- Ainda assim, você me ama.
Ouvir aquelas palavras dos lábios de uma menina causou-lhe imensa comoção, e ele não pôde mais se conter. Virando-se de frente para ela, segurou-lhe os braços e,
olhando fundo em seus olhos, declarou emocionado:
- Sim, Amelinha, amo-a como jamais amei outra em minha vida. Quando você sofreu aquele estupro, fiquei furioso e pensei que seria capaz de matar o Chico. Queria
protegê-la, confortá-la, cuidar de você. Naquela época, nem eu conhecia o meu amor. Para mim, tudo não passava de zelo de pai, porque era isso que me julgava. Pensei
que a amasse como pai, e foi muito doloroso quando vi que o meu amor por você era de homem. Foi só quando você partiu que descobri o quanto a amava. E quando sua
mãe me procurava para o sexo, percebi que era você que eu desejava. Ao amar Tereza, era você que estava amando. Sentindo o corpo dela, eu fechava os olhos e imaginava
você em meus braços. Fiquei horrorizado comigo mesmo. Eu era casado com sua mãe, como podia amar você daquele jeito? Disse a mim mesmo que estava enganado, que era
a sua mãe que eu amava, mas não conseguia tirá-la de meus pensamentos. Você foi se tornando uma obsessão, eu não conseguia mais parar de pensar em você, de desejar
o seu corpo. Até do Chico senti ciúmes e inveja, porque ele pôde tocar o seu sexo, o que, para mim, era proibido, era quase um incesto...
- Por favor, Raul, não diga mais nada! - cortou ela, em lágrimas.
- Fiquei fascinado por você. Comecei a beber para tentar esquecê-la e me obrigar a amar sua mãe. Quanto mais eu bebia, mais eu a desejava e mais usava sua mãe para
tentar saciar o desejo que sentia por você. E mais eu a amava e queria. Fui enlouquecendo, bebendo cada vez mais. Bebia de cair, e era só então que eu conseguia
um pouco de paz...
- Oh! Raul pare!
Ela desatou a chorar, tapando os ouvidos com as mãos, tentando não escutar. Arrependia-se de haver ido até ali procurá-lo.
- Não chore Amelinha, não quero magoá-la.
- Mas está magoando. Não pensei que fosse assim.
- Não tenho culpa de amá-la. Não pedi isso, não esperava por isso. Tentei lutar contra mim mesmo, mas não consegui. Em um ano, cheguei à decadência total. Sua mãe
percebeu tudo antes mesmo de eu descobrir que amava você. Qualquer dúvida que pudesse ter se dissolveu quando eu chamei o seu nome na cama...
- Você o quê?
- Nós estávamos fazendo amor, e eu, em meu delírio ébrio, sussurrei o seu nome várias vezes ao ouvido dela, dizendo o quanto a amava e desejava.
- Meu Deus!
- Conhecendo sua mãe, você pode imaginar o escândalo que ela fez. Gritou, esbravejou, disse que ia me deixar. A muito custo conseguiu se acalmar, e as coisas, aos
poucos, voltaram a ser mais ou menos como antes.
- Até que eu reapareci.
- Até que você reapareceu. Ao vê-la, senti acender todo o amor e o desejo. E sua mãe demonstrou por você um ódio como eu nunca antes havia visto. Foi isso que me
incentivou a tentar me reerguer.
- O ódio de minha mãe?
- Por pouco sua mãe não a matou, e eu senti que a culpa disso tudo era minha. Você é uma criança inocente e nada sabia sobre meus sentimentos. Sua mãe nunca a amou
como devia, mas, não fosse a minha paixão, talvez ela não a odiasse tanto. Por isso, resolvi mudar. Por sua causa, eu lhe devia isso. Desde ontem não bebo, e hoje
é o segundo dia em que saio è procura de emprego.
- Não sei o que dizer Raul.
- Não precisa dizer nada. Você é uma menina muito boa e não merece a mãe e o padrasto que tem. Só Cristina é boa como você. Pena que você não consegue ver isso.
- Está apaixonado por Cristina também? - horrorizou-se.
- É claro que não! Cristina é uma menina meiga e muito bonita, e, a ela sim, consigo amar como filha.
- Oh! Raul, o que devo fazer? Depois disso tudo, não posso mais continuar vivendo aqui.
- Quer saber a minha opinião? No princípio, não queria que você fosse embora, por egoísmo, porque iria sentir a sua falta. Mas agora, acho que o melhor para você
é ficar longe de tudo isso. Volte para São Paulo e procure arranjar a sua vida por lá. Case-se com um homem bom, que a ame de verdade.
- Você quer que eu me case?
- Não pense que me é fácil dizer isso, mas quero o melhor para você. Sei que o meu amor é impossível, mas você pode ser feliz com alguém. Você merece isso.
- Não sei se poderei me casar. Janete me quer para um hóspede.
- Hóspede?
- É. Não sei se você sabe que ela transformou a casa em pensão, e tem um hóspede lá que está interessado em mim. Janete diz que é o melhor que posso arranjar.
- Não faça isso, Amelinha. Não deixe sua prima convencê-la de que você é uma prostituta, porque não é verdade. Você não tem culpa do que lhe aconteceu, e não é por
isso que tem que se entregar a qualquer um.
Chegaram ao centro da cidade e tiveram que se separar. Raul tinha alguns empregos para ver, e Amelinha não podia acompanhá-lo. Além disso, a mãe já devia ter dado
pela sua falta e talvez estivesse fantasiando alguma bobagem sobre ela e Raul.
- Não conte à mamãe que conversamos - pediu ela. - Ela não vai gostar e vai ficar imaginando o que não aconteceu.
- Pode deixar. É melhor mesmo que ela não saiba dessa nossa conversa. Agora, vá para casa e apronte suas coisas. Volte para São Paulo e faça como lhe falei.
- Você não quer que eu vá.
- Não. Mas é o melhor para você. Ficar longe de mim só lhe fará bem.
Despediram-se. Amelinha sentia uma imensa tristeza no coração. Ouvira o que Raul lhe dissera com grande pesar, principalmente porque não o amava como ele a ela.
Queria ficar, mas não podia. A mãe jamais a aceitaria de volta, e se de todo ela insistisse em ficar, trataria de infernizar a sua vida e a de Raul. Não. Tinha que
voltar para São Paulo, para a casa de Janete. A prima faria de tudo para que ela se tornasse amante de Anacleto, mas pretendia resistir. Raul acreditava nela. Ela
também deveria acreditar. Daria um jeito de estudar e arranjar um emprego honesto. Depois, encontraria um homem de bem que a aceitasse como esposa, e ela se dedicaria
ao marido, ao lar e aos filhos.
Mas estavam nos idos de 1930, e as coisas não eram tão fáceis assim...

***

À volta para São Paulo foi mais tranqüila do que a ida para Limeira. A mãe, ansiosa por ver-se livre da filha indesejada, logo tratou de comprar-lhe a passagem e
dar-lhe algum dinheiro para a viagem, de forma que Amelinha conseguiu retornar em paz. Chegou à pensão na hora do almoço e encontrou todos os hóspedes reunidos no
grande salão. Janete a recebeu com uma alegria afetada, e ela sabia que era por causa de Anacleto.
- Minha querida Amelinha - disse ela com exagerada euforia. - Senti tanta saudade de você! Chegou à boa hora. Vá se lavar e venha se sentar aqui junto a mim para
almoçar.
Era a primeira vez que Janete a convidava para sentar-se a sua mesa. Em geral, Amelinha comia na cozinha, junto com Ione, mas Anacleto almoçava com ela, o que justificava
tanta atenção. Amelinha lançou um olhar de desagrado para Anacleto, que lhe sorriu com cupidez, e respondeu secamente:
- Obrigada, Dona Janete, mas não estou com fome.
Virou as costas e tomou o caminho de seu quarto, com Janete atrás dela.
- O que pensa que está fazendo? - resmungou Janete ao seu ouvido, enquanto lhe dava um beliscão no braço. - Considero isso uma desfeita imperdoável.
- Lamento, mas não estou com a menor fome. Minha mãe me deu dinheiro, e fiz um lanche na estação.
- Escute aqui, garota! - exaltou-se Janete, virando-a bruscamente. - Esqueceu-se de quem é que manda aqui?
- Não.
- Pois acho bom. Você está sob a minha guarda, sou responsável pela sua educação.
- Isso é educação?
- Não me responda! Ordeno que vá se lavar e venha nos acompanhar ao almoço. Vamos! O que está esperando?
Amelinha olhou-a com um misto de ódio e mágoa, mas não respondeu. Qualquer coisa que dissesse só serviria para irritar ainda mais a prima, e não estava com vontade
de entrar em confronto com ela. Fez como Janete lhe ordenou. Foi para o quarto, lavou-se, pôs uma roupa limpa e desceu para o almoço. Demorou-se mais do que de costume
e, quando chegou ao salão, a maioria dos hóspedes já havia terminado. Apenas alguns retardatários ainda estavam comendo, e ela se dirigiu para a mesa de Janete,
que estava sentada em companhia de Anacleto, tomando calmamente uma xícara de café.
- Ah! Amelinha, que bom que chegou - falou Janete, com fingido interesse. - Venha, sente-se aqui junto a nós.
Em silêncio, Amelinha sentou-se na cadeira que Janete lhe indicava, mas não viu nenhum prato colocado para ela. Ao contrário do que dissera à prima, estava com muita
fome e pretendia ignorar Anacleto e almoçar tranqüilamente. Já ia perguntar onde estava seu prato quando ouviu a voz de Anacleto:
- Não vai almoçar Amelinha?
Antes que ela tivesse tempo de responder, Janete se adiantou e foi logo dizendo:
- Amelinha não está com fome. Coisas da juventude, se é que me entende.
Anacleto deu um sorriso compreensivo e levou a xícara de café aos lábios, olhando para Amelinha com visível interesse.
- Como foi à viagem? - prosseguiu ele. - Sua mãe está bem?
- Está - respondeu ela laconicamente, olhando para a prima de esguelha, imaginando se ela havia contado algo de sua vida àquele homem.
- Conseguiu o que queria? - tornou Janete com ar de desdém.
- Consegui.
- Eu tinha ou não tinha razão?
- Tinha - confessou Amelinha, após uma breve hesitação.
- Sobre o que é que vocês duas estão falando? - quis saber Anacleto, interessado.
- Ah! Nada de mais - informou Janete. - Assuntos de família que só irão aborrecê-lo.
Seguiu-se um silêncio embaraçoso, no qual Amelinha ficou fitando o chão, o estômago roncando de tanta fome.
- Não quer nem um café, Amelinha? - insistiu Anacleto, para puxar assunto.
- Um cafezinho, eu aceito.
Era para disfarçar a fome. Janete fulminou-a com o olhar e quase gritou: vá buscar você mesma, mas precisava manter a aparência diante de Anacleto. Ao invés de gritar,
apanhou a sineta de prata em cima da mesa e sacudiu-a brevemente. Segundos depois, Ione apareceu e correu para a mesa de Janete, surpresa com a presença de Amelinha
à mesa da patroa. Não fez nenhum comentário. Janete não gostava que fizessem perguntas na frente dos hóspedes e limitou-se a dizer baixinho:
- Mandou me chamar, Dona Janete?
- Traga um café para Amelinha - foi à ordem incisiva.
- Sim, senhora.
Antes que Ione se afastasse, Amelinha pediu rapidamente:
- Será que você pode trazer-me algo para comer? Estou com fome agora.
Nem ousou encarar Janete, para não ver o seu olhar de fúria. Apenas ouviu a voz de Anacleto, elevando-se entusiasticamente:
- Mas isso é excelente! Enquanto almoça, posso fazer-lhe companhia.
Amelinha não viu, mas Anacleto lançou significativo olhar para Janete, que pediu licença e se levantou, com a desculpa de que tinha que ver algo na cozinha. A situação
era extremamente constrangedora, e Amelinha começava a se arrepender de haver pedido aquela comida. A refeição chegou logo depois, e Amelinha pôs-se a comer em silêncio,
acompanhada pelos olhares lúbricos de Anacleto.
- Vejo que está com muita fome - observou ele, vendo a avidez com que ela devorara o ensopado de carne.
- Hã, hã.
- Fez boa viagem? - ele já havia perguntado aquilo, e ela apenas assentiu. - Dona Janete me disse que você e sua mãe não se dão muito bem.
Então Janete se atrevera a comentar de sua vida particular com aquele velho sovina. Como a odiava! Pelo jeito de Anacleto, Janete lhe dissera bem mais do que isso.
Se antes Amelinha já desconfiava de que ela lhe contara tudo sobre o estupro que sofrerá, agora já não tinha mais dúvidas. O homem oferecera dinheiro para dormir
com ela justamente porque sabia que ela não era mais moça. Só que não era prostituta. Podia não se casar mais na igreja, de véu e grinalda, mas ainda tinha chance
de conhecer um homem digno que gostasse dela e a aceitasse do jeito que era.
Com raiva da conversa de Anacleto e do seu jeito libidinoso, Amelinha soltou o garfo, limpou a boca com o guardanapo e revidou com frieza:
- Se me der licença, seu Anacleto, já terminei de almoçar.
Começou a se levantar rapidamente, mas Anacleto a segurou pelo braço e fez com que ela tornasse a se sentar.
- Não precisa ficar aborrecida. Não estou aqui para tecer comentários a respeito do seu relacionamento com sua mãe. No entanto, há certas particularidades de sua
vida que não me passaram despercebidas.
- Que particularidades? - perguntou ela mecanicamente, maldizendo-se por haver alimentado aquela conversa.
- O que lhe aconteceu, por exemplo - ela ameaçou fugir, e ele a segurou novamente. - Não precisa ficar com vergonha de mim.
- Não estou. Só não gosto de comentar assuntos pessoais com estranhos.
- Tem razão. Há certas coisas que só devemos contar aos mais íntimos. E é por isso que lhe estou oferecendo a minha amizade, para que você possa se abrir comigo
sempre que quiser.
- Agradeço muito, seu Anacleto, mas acho que o senhor é um pouco velho para ser meu amigo. Gosto mais de Ione.
A resposta não o agradou, e ele mordeu os lábios para não gritar com ela.
Você é uma mocinha muito sincera. Gosto disso. No entanto, creia-me, não sou tão velho que não possa ser seu amigo. E depois, posso lhe proporcionar certos... Prazeres,
que você dificilmente poderá obter na cozinha.
- Obrigada, mas não - respondeu ela rapidamente, levantando-se de chofre, antes que ele tivesse tempo de impedi-la.
- Espere! - gritou ele, vendo-a se afastar às pressas pelo corredor.
Mas ela não se deteve. Nem quando Janete se postou a sua frente. Esbarrou nela com vigor e saiu correndo em direção à cozinha.
Janete se aproximou de Anacleto, que tinha um brilho estranho no olhar.
- Não está sendo tão fácil como à senhora me garantiu - considerou ele com azedume.
- Tenha calma, seu Anacleto. A menina só está assustada.
- A senhora me disse que ela era experiente.
- Ela é. Foi violada por um bruto e depois manteve um relacionamento com o padrasto bêbedo. Não está acostumada a ser cortejada por homens distintos.
- Ela me desrespeitou.
- Ela é um pouco malcriada, mas posso dar um jeito nisso. Um corretivo é o de que ela precisa.
- Tem certeza de que ela vai me aceitar?
- Absoluta!
- Não sei, não. Ela me pareceu bastante decidida.
- Bobagem! Ela está acostumada com gente do tipo daquele Chico e do padrasto, que não têm a menor linha ou classe.
- Já estou ficando impaciente, Dona Janete. Gosto de Amelinha, mas se ela continuar me rejeitando, vou pensar em outra pessoa. Há muitas mocinhas por aí em situação
semelhante à dela que dariam tudo para cair nas graças de um homem feito eu.
- Não diga isso! Amelinha foi feita para o senhor.
- Pois então, trate de convencê-la.
- É o que farei. Se o senhor puder esperar um pouco mais...
- Uma semana, Dona Janete, é o prazo que lhe dou, e nem um dia a mais. Se, dentro de uma semana, Amelinha continuar me rejeitando, trato desfeito.
- Pode ficar sossegado que, em uma semana, ela vai implorar para que o senhor a leve para a cama.
- É o que espero.
Anacleto se levantou e foi para o quarto remoer a sua raiva. Morria de desejo por Amelinha, mas não podia permitir que uma pirralha feito ela o destratasse daquele
jeito. Ou Janete a convencia, ou podia esquecer a oferta que lhe fizera. Prometera-lhe certa importância em troca dos favores da menina, mas começava a duvidar de
que ela conseguisse convencê-la.
Janete, por sua vez, tinha certeza de que conseguiria convencer Amelinha a se entregar a Anacleto. Depois que ele se foi, saiu à sua procura e foi encontrá-la na
cozinha, conversando com Ione enquanto enxugava a louça.
- Não tem mais o que fazer não, Amelinha? - perguntou com rispidez. - Isso não é serviço seu.
- Desculpe-me, Dona Janete - adiantou-se Ione. - Amelinha só estava me ajudando porque os quartos já estão limpos.
- Não lhe perguntei nada, Ione. Meu assunto é com Amelinha.
A cozinheira sentiu o rosto arder e abaixou a cabeça, os olhos úmidos de lágrimas. Os de Amelinha também umedeceram, mas de raiva da grosseria da prima.
- Não precisa brigar com Ione - zangou-se - Amelinha. - Não é culpa dela se o seu plano não deu certo.
- Insolente! - berrou Janete, acertando-lhe uma bofetada na face, que logo se avermelhou. - Não lhe dou o direito de falar comigo assim dessa maneira.
- A senhora é que não tem o direito de me bater! Não sou mais nenhuma criança.
- Enquanto estiver sob a minha guarda, tenho todos os direitos sobre você, e você me deve obediência e respeito.
- E a senhora? Não me deve nada?
- Não. Não lhe devo nada, sua atrevida. Você é quem me deve. Deve-me o sustento, o teto, a cama, a comida. E creio que chegou à hora de pagar pela minha hospitalidade.
- Hospitalidade? Onde está à hospitalidade em me explorar sem nem me pagar salário? Em me dar sobras de comida e me fazer dormir num colchão cheio de buracos?
- Você é uma ingrata, menina. Bem que sua mãe me avisou.
- Não ponha minha mãe nisso!
- Saia, Ione! - ordenou para a cozinheira. - Vá arranjar o que fazer em outro lugar.
A moça nem respondeu. Soltou a bucha com que lavava as panelas, enxugou as mãos no avental e saiu apressada. Janete esperou até ter certeza de que ela não podia
mais ouvi-las e olhou ao redor, certificando-se de que não havia mais ninguém por perto. Aproximou-se de Amelinha e, olhos chispando de ódio, levantou a mão para
bater-lhe novamente, mas a menina, segurando-lhe o punho com vigor, rebateu com incontida fúria:
- Jamais ouse me bater novamente! Nunca mais vou permitir que a senhora encoste a mão em mim! Não sou mais criança, não sou sua filha nem sua escrava.
Apesar do susto e do medo, Janete conseguiu disfarçar e fitou-a friamente, puxando o braço e respondendo em tom glacial:
- Muito bem. Você tem razão: não é mais criança, nem minha filha, nem minha escrava. E é por isso que precisamos estabelecer algumas coisas. Não tenho obrigação
de sustentar você nem de lhe dar emprego. Por isso, se não está satisfeita com as condições em minha casa, pode ir arranjando outro lugar para ficar.
- Está me mandando embora?
- Estou dizendo é que ou você faz as coisas do meu jeito, ou pode ir embora, sim.
- Que coisas, Dona Janete? A que está se referindo?
- Refiro-me ao seu Anacleto. Já é hora de você parar com essas bobagens e dar-lhe a devida atenção. Se não...
- Tenho que ir embora.
- Exatamente. Você está começando a se tornar um estorvo para mim, e não tenho obrigação de aturá-la em minha casa.
- Isso não será mais necessário. Vou estudar, concluir o ginasial e me formar professora ou datilografa.
- Minha querida, você está se iludindo. Com que dinheiro pensa que vai se manter? Ou será que imagina que eu vou sustentar os seus caprichos em troca de nada?
Ela abaixou os olhos, consciente da veracidade das palavras de Janete. Sem auxílio financeiro, como poderia voltar a estudar e concluir o ginasial? Mesmo que arranjasse
um emprego de faxineira ou arrumadeira, não ganharia o suficiente para custear os seus estudos. E pior: onde é que iria viver?
- A senhora não pode ser tão ruim assim.
- Não sou ruim, Amelinha, apenas cuido dos meus interesses. Sou uma velha sem fortuna e sem amigos. Só o que me resta são esta casa e o lucro que tiro com o aluguel
dos quartos, que não é muito.
- Posso continuar trabalhando para a senhora. Apenas lhe peço que me permita estudar à noite.
- Agora estamos voltando a nos entender. É muito bom que você admita que dependa e precisa de mim.
Humilhada nas mãos daquela mulher mesquinha e arrogante, cuja única preocupação era o seu próprio bem-estar, Amelinha retrucou em lágrimas:
- Não sou uma prostituta, Dona Janete, e a senhora não pode me obrigar a me transformar em uma.
- Eu?! Obrigá-la a virar prostituta? Mas minha querida, se o que pretendo é justamente impedir que você se torne uma!
- Como? Empurrando-me para seu Anacleto?
- Ele vai cuidar de você. Vai lhe dar muitas roupas e coisas bonitas, e você vai até trabalhar menos. Vou lhe dar as noites e os fins de semana de folga. Você vai
se divertir e, quem sabe, não poderá ainda enriquecer?
- E isso não é ser prostituta?
- Não exatamente,
- Não tem que ser assim, Dona Janete. Raul me disse que posso ser alguém na vida, casar e ter filhos...
- Ah! Raul lhe disse, não foi? E o que Raul está fazendo por você? Nada. Encheu sua cabeça com essas bobagens de profissão e casamento, quando ele mesmo sabe que
você só serve para uma coisa.
- Isso não é verdade! Sou uma moça decente.
- Mas que decente? Já dormiu com Chico, dormiu com seu padrasto e sabe-se lá com quem mais.
- Eu não dormi com meu padrasto! E seu Chico me obrigou! - começou a chorar convulsivamente, ao mesmo tempo em que dizia descontrolada: - Por que é que ninguém acredita
em mim? Por que a senhora insiste em dizer que dormi com meu padrasto?
- Vê como tenho razão, minha querida? Ainda que seja verdade, ninguém vai acreditar. E sabe por quê? Porque você nasceu para isso, está no seu sangue. Você é daquelas
mulheres que foram feitas para agradar os homens. Está na sua aparência, no seu jeito, na sua voz. Mesmo que não se torne uma meretriz, todos lhe dirão que é.
- Mas eu não sou! Não sou!
- Não adianta tentar ludibriar o destino. Você nasceu para a vida, não para o casamento. Você atrai os homens mesmo sem sentir. Atraiu o Chico, atraiu Raul, está
atraindo Anacleto e vai ainda atrair muitos outros. É a sua sina.
- Não é verdade. A senhora não pode me convencer de que é verdade.
Lembrava-se dos conselhos de Raul, que lhe dissera para não se deixar levar pelas palavras de Janete, mas estava ficando difícil resistir. Tudo lhe parecia tão complicado,
e ela era apenas uma menina. Como lutar contra o destino com apenas quinze anos de idade?
- Pare de chorar feito uma tonta. Você não é desse tipo. É uma mulher voluptuosa e está pronta para se entregar...
- Não! Não! Não vou me entregar! Desesperada, Amelinha tapou os ouvidos com as mãos e correu porta afora. Não podia deixar Janete convencê-la de que ela era uma
prostituta, porque não era. Não queria ser. E Raul lhe dissera que ela não precisava. Se desejasse e tivesse força de vontade, poderia vencer na vida, casar-se e
ser feliz. Não tinha pretensões de ficar rica nem de se casar com alguém importante. Bastava um homem honesto, que gostasse dela e não a acusasse de algo pelo qual
não fora culpada. Era o que tencionava conseguir. Iria procurar outro emprego e vencer. Mostraria a todo mundo que era capaz de ter uma vida digna e honesta.



Capítulo 7


Os dias que se seguiram revelaram-se os mais desanimadores da vida de Amelinha. Disposta a arranjar um novo emprego e matricular-se no colegial, acordou cedo e se
vestiu com capricho. Já ia saindo sem nem tomar café quando encontrou Janete parada no fim da escada, vestida num robe de cetim rosa choque, fitando-a com ar de
reprovação.
- Aonde é que você pensa que vai? - indagou ela, tamborilando no corrimão.
- Vou sair.
- Não se faça de tonta comigo, menina! Quero saber aonde você vai.
- Procurar emprego.
- Ah! Vai, é? E o seu serviço?
- Faço depois.
- Enquanto não fizer, não come.
Passou por ela com ar arrogante e subiu para o quarto. Aquelas palavras, a princípio, não impressionaram Amelinha, que saiu mesmo assim. Andou durante todo o dia,
mas não conseguiu nada.
A crise econômica por que atravessava o país reduzira as ofertas de emprego e os salários, inviabilizando os planos de Amelinha. Ao voltar no fim da tarde, Janete
a esperava no salão e berrou logo que ela entrou:
- Amelinha! Venha já aqui!
Amelinha interrompeu sua subida rumo ao quarto e foi ao encontro da prima.
- O que a senhora quer? - indagou de má vontade. - Estou cansada.
- Tem trabalho esperando por você.
- Hoje não. Caminhei o dia todo.
- Isso é problema seu. Você tem suas obrigações e não pode deixar para depois. Os quartos estão todos por arrumar, e não quero que os hóspedes reclamem.
- Mas Dona Janete, estou cansada.
- Ninguém mandou você ficar andando por aí atrás de emprego quando já tem um.
- Nunca vi emprego sem salário. Só se for emprego de caridade.
- Caridade, quem faz aqui sou eu. Não fosse a minha benevolência, você estaria morrendo de fome. Por falar em fome, não esqueceu o que eu lhe disse, esqueceu?
- O quê?
- Sem trabalho, sem comida.
- A senhora não pode estar falando sério! Passei o dia todo sem comer.
- Isso não é problema meu. Não vou pagar para você passar o dia passeando por aí.
- Eu não estava passeando, estava procurando emprego!
- Dá no mesmo.
Levantou-se bruscamente e foi para a cozinha, deixando Amelinha estupefata em seu lugar. Não acreditava que a prima estivesse falando sério. Ela não podia ser tão
má assim. Resolveu primeiro tomar um banho e depois descer para comer. Demorou muito na banheira, deixando que a água morna lavasse seu corpo e sua alma do cansaço
de todo aquele dia. Quando saiu, o jantar já estava sendo servido no salão principal, e ela passou devagarzinho, tentando não ser percebida. Janete e Anacleto estavam
sentados à mesma mesa, e ela procurou não chamar sua atenção. Entrou na cozinha com pressa e foi apanhar um prato no armário, abrindo as tampas e cheirando as panelas.
- Hum... Que cheirinho bom. Estou com uma fome! Não comi nada o dia inteiro.
- Onde é que você esteve Amelinha? - questionou Ione, que mexia num panelão no fogão.
- Fui procurar emprego.
- Dona Janete ficou furiosa. Disse que você está proibida de comer.
- Dona Janete não está aqui para ver.
- Aí é que você se engana! - berrou uma voz, da porta da cozinha.
As duas meninas se viraram e viram Janete parada, de braços cruzados, com ar enfezado de poucos amigos.
- Dona Janete! - assustou-se Ione. - Não vi a senhora chegar.
- Muito bem, Amelinha, vá soltando esse prato e se afastando do fogão.
- O quê? Não acredito que a senhora esteja falando sério.
- Nunca falei tão sério em toda a minha vida. Arrancou o prato das mãos de Amelinha e fechou a panela com estrépito, enquanto Ione ainda tentava protestar:
- Mas Dona Janete, ela está com fome.
- O problema é dela, não seu. Enquanto não cumprir com as suas obrigações, Amelinha está proibida de comer.
- Isso não está certo, Dona Janete. É uma desumanidade.
- Quer fazer companhia a ela, Ione?
- A senhora não pode fazer isso com Ione! - objetou Amelinha, indignada. - Ela não é propriedade sua.
- Quer ver?
Seu olhar de fúria era tão grande, que as duas recuaram assustadas. Para não causar problemas a Ione, Amelinha preferiu se retirar. Com o estômago doendo, rodou
nos calcanhares e voltou para o quarto, passando pela sala feito uma bala, sem nem fitar Anacleto, que a seguia com o olhar. Já de volta, Janete sentou-se a seu
lado, e ele indagou curioso:
- O que foi que aconteceu?
- Nada que eu não possa controlar.
- Amelinha passou por aqui em disparada. Ela não vai jantar?
- Não. Faz parte do meu plano para fazê-la implorar a minha ajuda e, conseqüentemente, a sua.
Anacleto sorriu satisfeito e deu uma garfada no assado que tinha diante de si, imaginando se Amelinha não estaria sentindo muita fome. Na verdade, Amelinha estava
enjoada e com dor de cabeça, o estômago vazio digerindo o nada. Esperou até que todos se recolhessem e saiu do quarto de fininho. Caminhou vagarosamente pelo corredor
e desceu as escadas sem emitir nenhum ruído. A casa estava toda às escuras, mas ela não se atreveu a acender nenhuma lâmpada.
Na cozinha, entrou e fechou a porta às pressas, indo direto para o fogão. Ao contrário do que sempre acontecia, não havia panelas sobre ele nem no forno, e ela experimentou
os armários. Estavam todos trancados com correntes e cadeados. Por mais que os forçasse, não conseguiu abri-los e começou a chorar de ódio e de fome, até que Ione
a ouviu e apareceu.
- Está com fome, não está?
Ela assentiu.
- Não tem nada aí para comer? Nem um pedaço e pão?
- Dona Janete me proibiu de levar qualquer coisa de comer para o quarto. Até revistou meu armário e as gavetas para ver se eu não tinha escondido nada. Depois trancou
tudo e disse que, se me pegasse dando algo de comer a você, eu estaria na rua.
- Essa mulher é uma víbora!
- Olhe Amelinha, não tenho medo dela. Se tivesse conseguido guardar alguma coisa, daria a você. Mas ela vasculhou tudo.
- Não, Ione, eu não quero prejudicar você. Entrei nessa situação sozinha e pretendo sair sozinha também.
- É uma injustiça o que ela está fazendo com você.
- Estou morrendo de fome, Ione. Se não comer algo, acho que vou passar mal.
- E se eu lhe desse algum dinheiro? Você poderia comprar alguma coisa na rua.
- Onde? Está tudo fechado há essa hora. E depois, não quero o seu dinheiro. Você já ganha tão pouco...
- Não é possível. Tem que haver algum jeito.
- O jeito é eu ir dormir e esquecer a fome. Talvez o sono me alimente e eu não sinta tanto o estômago doer.
Voltou para o quarto com os olhos rasos de água e foi-se deitar, procurando não pensar na fome que a consumia. Esperava que, no dia seguinte, estivesse melhor e
mais disposta, e então poderia pensar em aceitar aquele dinheiro que Ione lhe oferecera.
No dia seguinte, o estômago doía mais do que nunca, mas ela não se deixou abater. Não podia desistir logo na primeira dificuldade que encontrasse. Vestiu-se novamente
e desceu para a cozinha. Se conseguisse chegar antes de Janete, poderia apanhar um pedaço de pão sem que ela visse. Mas Janete já se encontrava lá, fiscalizando
todos os atos de Ione.
- Bom dia, Amelinha - ironizou ela, mordiscando uma rosquinha. - Dormiu bem?
Amelinha não respondeu e olhou para Ione, que não desgrudava os olhos do fogão e dos bules de café.
- Já estou de saída - foi à resposta lacônica. Saiu sem dizer nada, apertando o estômago, que doía imensamente. Por que não aceitara, na véspera, o dinheiro que
Ione lhe oferecera? Não fosse tão orgulhosa, ao menos poderia comprar um pãozinho na padaria da esquina, o que serviria para diminuir um pouco aquela sensação de
vazio.
Tudo se passou como na véspera. Não havia empregos disponíveis naqueles tempos difíceis. Amelinha tentou matricular-se numa escola, mas a falta de um responsável
quase a levou, a um lar para órfãos, e ela desistiu. Voltou para casa no final da tarde, de mãos vazias, como na anterior. Só que com muito mais fome.
- Como foi o seu dia hoje? - perguntou Janete, vendo-a entrar arrasada.
Amelinha não respondeu e foi para o quarto. Tomou banho e bebeu um pouco de água da torneira. Era a única coisa que Janete não pensara em lhe tirar. Desceu para
a cozinha, mas Janete lá estava impedindo-a de se alimentar. O cheiro do frango assado quase a fez desmaiar, e ela já estava salivando quando ouviu a vozinha súplice
de Ione:
- Por favor, Dona Janete, deixe-a, ao menos, comer um pedaço de pão.
- Nem pensar! Sem trabalho, sem comida. Os quartos ficaram todos por limpar, e eu é que tive que arrumar tudo.
Ao virar as costas para as meninas e voltar para o salão, Ione aproveitou e enfiou uma moedinha na mão de Amelinha, que a apertou agradecida. Já era noite, e todas
as padarias e armazéns estavam fechados, mas ela conseguiu encontrar um bar aberto, onde comprou umas rodelas fininhas de salame. Não era muito, mas ao menos agora
não tinha mais aquela sensação de desmaio.
No dia seguinte, teve vontade de desistir, mas a imagem de Janete, parada na cozinha como uma guardiã implacável da comida, encheu-a de ódio e revolta, e ela decidiu
que tinha que vencer. Não podia contar com o dinheiro de Ione, que já era tão pouco e mal dava para ela, de forma que precisava conseguir um emprego naquele mesmo
dia.
As coisas, porém, não correram conforme o desejado. Perto da hora do almoço, Amelinha começou a sentir uma fraqueza dominando-a por inteiro. O corpo mole, as pernas
bambas, a vista embaciada e uma tonteira a confundir-lhe a cabeça. Foi preciso encostar-se num muro para não cair. Lentamente e com muito esforço, conseguiu fazer
o caminho de volta para casa.
Ao abrir a porta, o cheiro de comida invadiu suas narinas, e ela começou a chorar desesperada. Alguns hóspedes que conversavam na sala de estar ouviram o seu choro
e correram a ajudar. Amelinha teve vontade de lhes dizer o que estava se passando, que Janete a estava matando de fome, mas o medo a paralisou. Levaram-na para o
quarto e a deitaram na cama. Logo Janete apareceu, agradecendo aos hóspedes e pedindo gentilmente que saíssem e as deixassem sozinhas.
- Podem deixar que cuidarei dela agora - anunciou.
Depois que todos saíram, ela se aproximou de Amelinha e sentou-se na beira de sua cama.
- Como está? - perguntou.
Amelinha mal conseguia abrir os olhos e respondeu com voz fraca:
- Estou com fome... Muita fome...
- Ts, ts, ts. Sem trabalho, sem comida.
- A senhora está sendo cruel...
- Estou apenas cobrando pela comida que lhe dou. Não é o meu direito?
- Vou contar a todos o que a senhora está fazendo... Vão recriminá-la... Vão chamar a polícia...
- Menina tola, ninguém vai acreditar em você. E depois, quem se importa?
- Preciso comer... Por favor...
- Já disse: sem trabalho, sem comida.
- Eu.... Vou trabalhar... Faço o que a senhora mandar... Mas por favor, deixe-me comer. Se não, vou morrer...
- Você não vai morrer. Está fraca, mas não vai morrer.
- Por favor... Prometo que vou trabalhar...
- Vai deixar de lado essa bobagem de emprego e de estudo?
- Vou...
- Vai aceitar a oferta de seu Anacleto?
Ela hesitou e começou a chorar de mansinho, até que respondeu com pesar:
- Vou...
- Jura?
- Juro.
- Muito bem - finalizou vitoriosa. - Vou mandar Ione preparar-lhe uma refeição e trazer aqui para você. Pode descansar o resto do dia. Amanhã, arranjaremos tudo.
Assim que recebeu a ordem, Ione apressou-se em preparar um prato caprichado para Amelinha. Colocou arroz, feijão, carne assada, batatas, legumes cozidos, um pedaço
de pão, um bolo de frutas e suco de laranja. Ajeitou tudo numa bandeja e levou para Amelinha. A menina mal podia acreditar no que via.
Devorou a comida em poucos minutos, sem parar para respirar.
- Devagar, Amelinha - preocupou-se Ione. - Você está há muito tempo sem comer. Tanta pressa pode lhe fazer mal.
Naquele momento, Amelinha não conseguia pensar em mais nada que não fosse o prato de comida à sua frente. Só o que queria era acalmar a dor no estômago. Não se permitiria
jamais passar por aquilo novamente.

***

Às sete da manhã em ponto, Amelinha já estava na cozinha, tomando seu café como de costume. Sem esperar por Janete, apanhou a vassoura e o espanador e saiu a arrumar
os quartos dos hóspedes que, àquela hora, sabia estarem de pé. Muitos faziam o desjejum no salão, e ela evitou olhar para as mesas, com medo de encarar Anacleto.
Ele estava sentado sozinho à mesa de Janete, e Amelinha se perguntou por onde andaria a velha senhora.
À hora do almoço, já havia terminado de arrumar e limpar os quartos, e agora cuidava da prataria da sala. Janete chegou-se por detrás dela e ficou observando-a,
esperando que terminasse de lustrar um candelabro.
- Muito bem! - exclamou ela, assustando a menina. - Vejo que retomou suas obrigações.
- Sim, senhora.
- Bem, por hoje é só. Quero que venha comigo agora.
Sem dizer nada, Amelinha largou o pano com que fazia a limpeza e acompanhou a prima até o seu quarto no sótão. Logo que entraram, Janete fechou a porta e apontou
para uma caixa em cima da cama, dizendo toda animada:
- Vamos, abra. É um presente para você. Dentro da caixa, o vestido mais lindo que
Amelinha já vira, vermelho cintilante, junto com algumas peças de baixo também vermelhas, que a deixaram encabulada e confusa.
- Para que é isso?
- Você é mesmo uma tonta, não é? Acha que seu Anacleto vai querer você com esse uniforme preto, andando feito um urubu? Nada disso. Deu-me dinheiro para comprar-lhe
roupas novas e vistosas, com especial atenção às peças íntimas. Quero que vá tomar um banho bem caprichado e volte aqui. Vou ajudá-la a se vestir.
Amelinha mal conseguia crer no que via. Aquelas roupas eram bonitas, mas as peças de baixo eram escandalosas e vulgares. Apanhou o corpete de renda vermelha bordado
de preto, a liga e as meias, sentindo imensa vergonha só de olhar para aquilo.
- Dona Janete, não posso usar isto. Não tem anágua, e o corpete é... Indecente, escandaloso.
- Deixe de tolices, Amelinha. Seu Anacleto faz questão que você se arrume direito para a ocasião. Comprei-lhe até um colar e brincos de pedrinhas brilhantes. É claro
que não são jóias verdadeiras, mas até que não foram tão baratas. - Vendo que Amelinha não se mexia, começou a berrar: - Vamos, menina! O que está esperando? Vá
logo tomar esse banho e volte aqui para se vestir.
- Não posso...
- Será que os dois dias de fome já se apagaram de sua mente? - ela meneou a cabeça. - Ainda bem, porque não me custa relembrá-la de como se sentiu. É isso o que
você quer? Ficar sem comer? - ela meneou a cabeça novamente. - Ótimo. Pois então, faça como lhe digo, e tudo sairá bem.
Com lágrimas nos olhos, Amelinha apanhou a toalha e o roupão e desceu para o banheiro, que ficava no andar de baixo. Pouco depois, estava de volta, e Janete puxou-a
pela mão.
- Vista isso - ordenou, estendendo-lhe o corpete e as ligas.
Amelinha começou a se vestir desajeitadamente, pois não estava acostumada com aquelas coisas, e Janete precisou ajudá-la. Enfiou o vestido com rapidez e mandou que
ela calçasse sapatos de salto alto, o que quase lhe causou um tombo. A todo instante, Janete balançava a cabeça, recriminando-a por sua falta de classe. Em seguida,
puxou uma cadeira e disse-lhe para sentar-se, a fim de fazer a maquiagem e o penteado.
Quando Janete terminou, a menina levou um susto. Fitando-a do outro lado do espelho, estava uma mulher de faces rosadas e lábios carmim, as pálpebras pintadas de
preto e um sinal feito a lápis no canto do lábio, os cabelos presos no alto da cabeça em um coque mal ajeitado. Sentiu-se uma palhaça naquelas roupas extravagantes
e com aquela maquiagem ridícula. Pensou em protestar, mas Janete não lhe deu tempo, dizendo com voz incisiva:
- Você está ótima. Agora, fique aqui e aguarde. Seja gentil. Faça tudo que seu Anacleto mandar.
Saiu apressada, deixando Amelinha assustada, imóvel na cama, sem saber bem o que iria acontecer e o que deveria fazer. Quase meia hora depois, ouviu batidas leves
na porta, que se abriu lentamente, e Anacleto entrou com um sorriso de gula.
- Vejo que está me aguardando - disse ele, passando a língua nos lábios e aproximando-se da menina.
- Dona Janete mandou-me ficar aqui.
- E você foi boazinha e obedeceu, não foi? - ela assentiu. - Ótimo. Gosto de meninas obedientes. Seja boa comigo, e vamos nos dar muito bem.
Aproximou-se mais dela e puxou-a pela mão, levantando-a da cama. Amelinha estava com muito medo, imaginando o que iria acontecer entre eles. A única experiência
sexual que tivera fora aquela com Chico, e não gostara nada. Mal contendo a ansiedade, Anacleto segurou o seu queixo com força, dando-lhe um beijo sôfrego, que Amelinha
achou nojento. Ela tentou se afastar, mas ele a reteve nos braços e sussurrou em seu ouvido:
- Você está linda. Linda, linda! Quero que dance para mim.
- O quê? - surpreendeu-se ela, afastando-se dele um pouquinho. - Mas... Não sei dançar.
- Uma mulher bonita feito você há de ter os seus truques. Vamos, mostre-me o que sabe fazer.
- Truques? Como assim? Não estou entendendo. Não sei fazer nada além de arrumar a casa...
-Deixe de se fazer de difícil. Dona Janete me disse que você tem experiência, e é bom que tenha mesmo, ou vou exigir de volta o dinheiro que lhe dei.
O medo de voltar a sentir fome aplacou um pouco o ódio de Amelinha, que observou com ar mais amistoso:
- Não tem música.
- Não tem? É, não tem. Mas não se preocupe, vou arranjar.
Saiu e voltou logo em seguida, trazendo o gramofone da sala, junto com alguns discos. O som animado de uma modinha se elevou do alto-falante, e Anacleto olhou para
Amelinha, fazendo sinal para que começasse. A menina ficou embaraçada, sem saber bem o que fazer. Começou a remexer os quadris, com as mãos na cintura, timidamente
a princípio, mas, à medida que a música ia avançando, ela foi-se soltando mais e mais, movendo as pernas no mesmo ritmo. Logo, seus pés e todo o seu corpo a acompanhavam,
numa cadência graciosa e brejeira. Até mesmo os sapatos de salto altos não a incomodavam mais e era como se fizessem parte de seus pés.
- Muito bom! - elogiou Anacleto. - Você é uma dançarina inata.
Em pouco tempo, Amelinha não pensava em mais nada. Nem ela sabia que gostava de dançar. A experiência estava sendo maravilhosa, e ela se sentia bem, feliz, radiante.
Ouvia as palmas de Anacleto e desejou nunca mais ter que parar de dançar.
Mas Anacleto não estava ali para vê-la dançar e, quando a música acabou, desligou o aparelho e acercou-se dela, apanhando sua mão e levando-a aos lábios. Ela estava
ofegante e suada, e ria gostosamente, o peito arfante subindo e descendo sob o decote do vestido.
- Por que desligou? - indagou, toda sorridente.
- Acabou a música.
- Não pode ligar de novo?
Já ia saindo em direção ao gramofone, mas Anacleto apertou a sua mão e respondeu baixinho:
- Depois.
Puxou-a para si e a abraçou com força, beijando-a novamente, dessa vez com mais ardor e paixão. Foi como se ela, subitamente, se lembrasse do porquê de estar ali.
Janete a prostituíra e esperava que ela se entregasse àquele homem. Dera-lhe ordens expressas para fazer tudo o que ele mandasse. Foi acometida por nova sensação
de repulsa por aqueles lábios frouxos e excessivamente molhados e, instintivamente, repeliu-o com um empurrão.
- O que está fazendo? - contestou Anacleto, com raiva.
- Deixe-me em paz - murmurou ela, tentando fugir para um canto.
- Ora, deixe de bobagens comigo. Agora a pouco, você me pareceu bem excitada.
- Estava feliz com a música. Gostei de dançar.
- Também gostei que você dançasse. Você dança muito bem, mas não foi para dançar que vim até aqui. - Ela não respondeu. - Sabe para que vim, não sabe?
- Sei.
- Pois então, não fuja de mim. Não lhe trago nenhuma novidade. Dona Janete me disse que você tem experiência, por isso, não banque a santinha comigo. - Aproximou-se
dela novamente, que lhe escapuliu por entre as mãos. - Não se faça de difícil comigo, menina! Não tenho paciência nem disposição para correr atrás de você.
Assustada, Amelinha estacou onde estava e ficou olhando para ele, que se aproximou do gramofone e pôs outro disco para tocar, dessa vez uma música suave.
- Quer que eu dance novamente?
- Não. Quero que você se dispa para mim.
- Despir-me para o senhor? Não posso fazer isso.
- Pode e vai.
Ela não estava gostando nada daquilo, mas achou melhor obedecer. Lentamente, ao sabor da música, foi descendo o vestido pelos ombros, até que o deixou cair a seus
pés. Anacleto a acompanhava entusiasmado, surpreso com a naturalidade com que ela tirava a roupa. Por fim, só de corpete, ligas e meias, Amelinha parou de se despir
e encarou Anacleto. Não podia ir além dali. Já era bastante constrangedor estar diante dele só vestida em roupas íntimas.
Mas Anacleto queria muito mais e segurou-a pelo braço, puxando-a de encontro a si. Amelinha sentiu aquela boca flácida colada à sua, e as mãos de Anacleto começaram
a deslizar pelo seu corpo, apalpando-a em suas partes mais íntimas. Aquilo a lembrou de outra ocasião: o dia em que Chico a agarrara e a estuprara, agindo como um
brutamonte.
- Por favor, seu Anacleto, não faça nada comigo.
- Como assim, não faça nada? Você concordou em me receber. Não pode me excitar e depois tirar o corpo fora. Não sou nenhum idiota.
- Eu não disse isso. Gosto do senhor, mas não posso fazer o que me pede.
- Não estou pedindo, Amelinha, estou mandando. Paguei por você e paguei muito caro. Tenho meus direitos.
- Deixe-me! - suplicou ela, começando a chorar.
- Ah! Nada disso. Esperei muito por esse momento. Não vou deixá-la escapar agora.
- Por favor, não faça isso! Não faça... Anacleto não dava atenção às suas súplicas. Foi empurrando-a para a cama com certa violência, deitando-se sobre ela sem nenhum
constrangimento. Ela começou a lutar com ele, mas em vão. Apesar de velho, Anacleto era mais forte e logo a dominou. Amelinha esperneou e chorou, mas ele não se
comoveu. No auge do desespero, empurrou-o com violência, e ele, já cansado daquela resistência, desferiu-lhe um sonoro tapa no rosto, deixando-a estarrecida. Amelinha
afrouxou os braços e as pernas e permitiu que ele fizesse com ela o que bem entendesse. Não queria mais apanhar. Ainda sentia no corpo a dor dos golpes que Chico
lhe dera e tinha medo de que Anacleto a espancasse também. Por isso, achou melhor não mais resistir. Entregar-se a ele, pura e simplesmente, seria menos doloroso
do que uma surra. E depois, ele a subjugaria de qualquer jeito, e era melhor que fosse sem pancadas. Parecia que aquilo fazia parte de sua história. Fechou os olhos
e chorou.


Capítulo 8


O mais difícil foi o começo. Depois da primeira vez, Amelinha acabou se acostumando com Anacleto. Geralmente, ele era gentil e costumava lhe fazer muitos agrados.
Dava-lhe roupas e pequenas jóias, além de uns trocados de vez em quando. Se aborrecido ou contrariado, podia ser violento e perigoso. Amelinha se submetia a tudo
com uma raiva contida, porque Janete a proibira de responder ou reagir. Ela era sua mina de ouro; trabalhava em troca de nada e ainda lhe garantia a regia recompensa
que Anacleto mensalmente lhe pagava.
Como a maioria dos hóspedes era composta de senhores idosos e aposentados, Anacleto se sentia seguro, certo de que Amelinha não se interessaria por nenhum deles.
Afinal, ela era jovem e linda, e não seria difícil que se encantasse por algum moço bem-apessoado. Mas a pensão não era exclusividade dos velhos, e Janete não podia
impedir a entrada de nenhum jovem que lhe pagasse bem.
Foi assim com Mauro, um rapaz bonito e discreto, que dirigia uma casa noturna no centro da cidade. A princípio, Janete não quis recebê-lo, com medo de que ele fosse
um tipo malandro ou boêmio, mas o maço de notas que ele lhe exibiu foi mais do que suficiente para fazê-la mudar de idéia. Como Mauro trabalhava até de madrugada,
tinha por hábito dormir até mais tarde, o que comunicou a Janete. Mas ela, preocupada em contar o dinheiro que ia acumulando, nem se lembrou de avisar Amelinha,
que nada sabia a respeito do novo hóspede.
No dia seguinte à chegada de Mauro, logo após o término do horário do café da manhã, como de costume, Amelinha apanhou a vassoura e o espanador e foi fazer a limpeza
da casa. Foi distraída e mecanicamente entrando nos quartos, até que chegou àquele em que Mauro dormia. Por cautela, costumava dar uma batida de leve na porta e
entrar em seguida, apenas para avisar que estava chegando, caso alguém ainda estivesse lá dentro. Como todos já conheciam a rotina, nunca houve problemas.
Amelinha bateu à porta do quarto de Mauro e experimentou a maçaneta, que não estava trancada. Entrou no aposento escuro e dirigiu-se à janela, escancarando as cortinas
e deixando que a luz do sol inundasse o ambiente. Nesse momento, um gemido a assustou, e Amelinha se virou com a mão no coração, dando de cara com o rapaz deitado
na cama, esfregando os olhos para protegê-los da luz.
- Ei! - reclamou ele. - O que pensa que está fazendo? Será que é proibido dormir nesta pensão?
- Mil desculpas, senhor! - apressou-se ela a dizer, embaraçada. - Perdão, não sabia que ainda estava dormindo. Pensei que já tivesse saído. Desculpe-me. Perdoe-me.
- Não precisa ficar se desculpando. É que trabalho a noite e costumo dormir até tarde. Sua patroa não lhe disse?
- Não, senhor.
- Que horas são?
- Já passa das nove horas.
- É tarde para você, não é? - ela não respondeu. - Pois para mim, ainda é muito cedo.
Ele se sentou na cama e abraçou os joelhos, sorrindo para ela. Aquele sorriso tinha algo de encantador, e Amelinha se aproximou vagarosamente.
- O que o senhor faz? - perguntou ela, timidamente.
- Sou gerente de uma casa noturna.
- Casa noturna? O que é isso?
- Uma casa de espetáculos que só funciona à noite, para clientes muito especiais.
- Que tipo de espetáculos?
- Música, dança... Garotas. Gosta de música?
- Gosto sim. E de dançar também.
- Talvez um dia eu a veja dançar. Se você for boa, quem sabe não a levo para trabalhar comigo?
- Sério?
Ele riu gostosamente e fez um gesto com as mãos, acrescentando de bom humor:
- Quantos anos você tem?
- Dezesseis.
- Terá que esperar mais alguns anos antes de trabalhar para mim. Não posso aceitar crianças.
Se ele soubesse a experiência que ela já possuía, duvidava que a chamasse de criança novamente. Mas ele não sabia, nem ela iria lhe contar.
- O senhor não me parece muito velho - contrapôs ela, com interesse.
- Tenho vinte e quatro anos, o que é bem mais do que você tem. - Ela riu, e ele continuou: - Como se chama?
- Maria Amélia, mas todos me chamam de Amelinha.
- Amelinha? Hum... Não tem glamour. Para trabalhar para mim, vai precisar de um nome diferente. Deixe ver... Que tal Tália?
- Tália? Que nome mais esquisito.
- O que tem? É um bonito nome. Tália Uchoa, a grande atriz do teatro de revista...
Tália achou muita graça e desatou a rir. Suas gargalhadas soavam tão espontâneas e altas que podiam ser ouvidas até no corredor, e foi o que aconteceu. Anacleto
seguiu na direção de onde elas vinham e logo encontrou o quarto de Mauro. Sem bater, escancarou a porta e entrou, avaliando aquela cena com ar feroz. Mauro, sentado
na cama, falava e gesticulava em mangas de camisa e ceroulas, enquanto Amelinha, sentada a seu lado, retorcia-se de tanto dar risadas.
- O que é que está acontecendo aqui? - perguntou ele, zangado.
De um salto, Amelinha se levantou e correu a apanhar o espanador, caído a seus pés, enquanto gaguejava uma desculpa:
- Seu Anacleto... Nós estávamos... Estávamos conversando... Isto é... O seu Mauro me contava histórias...
- Saia daqui, Amelinha! Vá cuidar de seus afazeres em outro lugar!
- Um momento, senhor - interpôs Mauro, levantando-se também. - Quem lhe deu o direito de ir entrando assim no meu quarto e dando ordens como se estivesse em sua
casa? O senhor é o dono da pensão?
- Não, mas...
- É o pai dessa linda mocinha que aqui está?
- Não...
- É seu marido? Não, não pode ser, é muito velho. Então, deve ser o seu avô.
Amelinha abaixou os olhos e abafou o riso, enquanto Anacleto, rosto vermelho e afogueado, ergueu os punhos cerrados e esbravejou:
- Devia se dar mais ao respeito, meu jovem! Onde já se viu um homem se portar dessa maneira diante de uma moça?
- Perdão, mas foi ela quem entrou aqui. Eu estava tranqüilamente dormindo, após exaustiva noite de labuta, quando esta senhorita, repentinamente, irrompeu em meu
quarto e escancarou a janela, despertando-me de meu sono inocente.
O tom debochado de Mauro arrancou risos altos de Amelinha e provocou ainda mais a ira de Anacleto, que gritou descontrolado:
- Já mandei você sair daqui, Amelinha! O que está esperando?
Na mesma hora, ergueu a mão diante de seu rosto, e Amelinha se encolheu toda, pensando que ele ia bater-lhe. Para sua surpresa, o tapa não veio, porque Mauro segurava
o braço de Anacleto com força, ao mesmo tempo em que dizia:
- Não se atreva a bater na menina. Que era um idiota, eu já havia percebido. Mas que é também covarde isso é uma surpresa.
Amelinha gelou. Pensou que Anacleto fosse se engalfinhar com Mauro, mas ele apenas puxou o braço e respondeu com a voz fremente de ódio:
- Está se metendo onde não deve moço.
A situação parecia estar ficando deveras complicada, Mauro encarando Anacleto com ar ameaçador. Amelinha não queria que eles brigassem por sua causa e, além do mais,
tinha medo do que Anacleto faria com ela depois. Deu um passo adiante e se interpôs entre eles.
- Não precisa brigar por minha causa, seu Mauro. Sei muito bem o meu lugar e não pretendo virar motivo de desavenças.
Saiu de cabeça baixa, embora Mauro quisesse impedi-la. Anacleto olhou-o com ar de triunfo e saiu atrás dela, remoendo no íntimo um ódio feroz pelo desconhecido.
A menina foi andando apressada, pois sabia que Anacleto estava em seu encalço, e um medo atroz a foi dominando. Ao invés de seguir para seu quarto no sótão, virou
à direita no fim do corredor e começou a descer as escadas, tentando fugir do alcance de Anacleto. Mas ele não desistiu. Desceu atrás dela e segurou-a pelo cabelo,
rugindo entre os dentes:
- Volte aqui, Amelinha, senão vai ser pior para você.
Ela voltou. Queria sair correndo, mas não podia. Anacleto a mantinha firme, e o puxão de cabelo doía muito. Passivamente, ela deu um passo atrás e subiu de volta
os poucos degraus que havia descido, deixando-se conduzir para seu quarto. Assim que entraram, Anacleto jogou-a sobre a cama com um bofetão e começou a gritar:
- Nunca mais tente me fazer de idiota, sua vagabunda! Quem você pensa que é para me humilhar assim?
- Seu Anacleto, não fiz nada...
- Cale-se! - esbofeteou-a novamente. - Não se atreva a me responder!
Deu-lhe mais alguns bofetões e deixou-a chorando sobre a cama. Ela ouviu os seus passos pesados saindo, e o som de uma chave na lingüeta lhe deu a certeza de que
ele a havia trancado pelo lado de fora. Chorou angustiada. Anacleto desceu feito uma fera ao encontro de Janete, que estava no jardim, supervisionando o plantio
de umas novas roseiras.
- Dona Janete - chamou ele com voz grave. - Preciso falar-lhe.
Pelo seu olhar de fúria, alguma coisa muito séria devia ter acontecido. Ela deu as últimas ordens ao jardineiro e partiu com ele para a casa.
- O que foi que houve?
- Como a senhora pôde permitir a presença daquele descarado em sua casa?
- Que descarado? De quem o senhor está falando?
- Estou falando daquele janotinha para quem a senhora alugou um quarto. É um disparate!
- Ah! O senhor Mauro. O que é que tem ele?
- Ele me desrespeitou.
- Desrespeitou? O que ele fez?
Em minúcias, Anacleto narrou a Janete a discussão que tivera com Mauro, o que a deixou muito aborrecida, embora tentasse não demonstrar.
- Exijo que a senhora o mande embora agora mesmo - prosseguiu ele, em tom solene. - Esse homem é uma ameaça ao sossego deste lar.
Janete encarou-o por alguns momentos, até que retrucou com cautela:
- Ouça seu Anacleto, entendo que a situação foi desagradável...
- Desagradável? Foi constrangedora!
- Muito bem, constrangedora. Mas afinal de Contas, foi o senhor quem irrompeu no quarto do moço.
- Dona Janete, a senhora parece não estar entendendo. Ele estava em trajes sumários, contando piadas a Amelinha. Considero isso uma ofensa!
- Ele não sabe de seu relacionamento com Amelinha.
- E daí? Quem lhe deu o direito de tratá-la com tanta intimidade?
- Ora, seu Anacleto, ele pensa que Amelinha é apenas uma criada. E depois, pelo que o senhor me disse, ele não fez nada à menina.
- Mas isso é um perigo! Dona Janete, a senhora não vê? Não percebe que esse rapaz pode pôr em risco a minha segurança? Ele é jovem, bem-apessoado.
- Acho que o senhor está exagerando. Dê um aperto em Amelinha, ameace-a, faça-a compreender que não vai tolerar qualquer traição. Assuste-a, bata nela, faça o que
tiver que fazer para mantê-la na linha.
- A senhora sabe tão bem quanto eu que, quando uma mulher quer trair, não há ameaças ou surras que a impeçam.
- O senhor tem que aprender a controlar sua amante. O que eu não posso é abrir mão do dinheiro dos hóspedes.
- O que eu lhe pago não é o suficiente?
- O senhor sabe que não. O que me dá é satisfatório diante das circunstâncias, mas não é o bastante para me fazer recusar hóspedes. Ainda mais esse rapaz, que me
ofereceu uma quantia elevada pelo quarto.
- Mas Dona Janete, pensei que fôssemos amigos.
- Não confunda amizade com negócios. Preciso do dinheiro.
- Pois é muito bom que tenha dito isso, porque eu posso muito bem retirar a ajuda que lhe dou.
- E eu posso muito bem proibi-lo de subir ao quarto de Amelinha - abaixou a voz e continuou em tom apaziguador: - Vamos, seu Anacleto, esqueça isso. O moço trabalha
à noite, quase não vai encontrar Amelinha. Hoje foi por acaso, porque ela não sabia. Vou dar-lhe ordens para não perturbar o rapaz pela manhã e só arrumar o quarto
dele no final da tarde. Creio que isso resolverá o problema. Quanto ao senhor, trate de mantê-la em rédeas curtas.
Embora Anacleto não estivesse nada satisfeito, teve que aceitar o fim da discussão. De nada adiantaria ameaçar retirar o apoio financeiro que dava a Janete.
Ela sabia que ele não podia mais passar sem os favores de Amelinha, que, livre das ameaças da velha senhora, passaria a recusá-lo e acabaria se atirando nos braços de
Mauro.

***

Nenhum encontro, ainda que casual, entre Amelinha e o novo hóspede pôde ser notado por Anacleto ou Janete. Mauro dormia até tarde, levantava e ia direto almoçar.
Em seguida, saía e só voltava altas horas da madrugada, o que o impedia de se encontrar com Amelinha. Isso foi deixando Anacleto mais tranqüilo.
Além de gerente da casa noturna, Mauro também dirigia os espetáculos que eram apresentados pelas moças, bailarinas de ocasião, cujo requebrado, ginga e sensualidades
abriam as portas para o mundo artístico. Era nesse ambiente que Mauro se sentia mais à vontade, junto de belas dançarinas, embalado pela bebida e a boêmia. Não gostava
de morar sozinho, porque não tinha mulher que cuidasse dos afazeres domésticos, e optou por viver em pensões familiares, que lhe prestavam todos os serviços de que
um solteiro necessitasse, desde a arrumação do quarto até o cuidado com as roupas.
Certo dia, como acontecia quase todas as noites, Anacleto saiu do quarto de Amelinha por volta da meia-noite, desceu a seu dormitório e entrou cautelosamente, indo
direto para a cama. Quinze minutos depois, a porta do quarto de Amelinha se abriu sem produzir qualquer ruído. Pé ante pé, a moça desceu as escadas, tomando extremo
cuidado para não ser vista nem despertar nenhum hóspede ou Janete. Em silêncio, saiu para o ar frio da noite, apertou a gola do, sobretudo para proteger-se da garoa
e estugou o passo, virando a esquina com andar furtivo.
Tomou um bonde e seguiu em silêncio até seu destino. Ao chegar diante do night club que Mauro gerenciava, desceu e dirigiu-se para a porta dos fundos, entrando sorrateiramente.
Parecia uma mistura de teatro e cabaré, com pequenas mesas redondas diante de um pequenino palco, onde os espectadores se sentavam e podiam assistir ao espetáculo
ou então dançar. Com os olhos, Amelinha procurou Mauro, até que o encontrou rodeado de algumas moças vestidas com roupas coloridas e brilhantes. Aproximou-se hesitante,
e uma das moças apontou para ela com o olhar, o que fez com que Mauro se virasse e abrisse largo sorriso ao avistá-la.
- Olá, minha preciosidade - falou em tom maroto. - Que bom que chegou a tempo de assistir ao espetáculo.
- Vim o mais rápido que pude - respondeu ela, encarando-o com olhos brilhantes.
- Ninguém percebeu?
- Não.
- Ótimo. Quero que você se sente aqui junto a mim e preste bastante atenção às meninas.
Segurou-a pela mão, deu algumas instruções às moças e depois se dirigiu para uma mesa mais ao canto, sentando-se com Amelinha ao lado. Pouco depois, as luzes se
apagaram, e holofotes coloridos derramaram luzes faiscantes sobre o palco. As cortinas logo se abriram para dar entrada a meia dúzia de moças, que começaram a dançar
graciosamente. Amelinha ficou fascinada e, instintivamente, começou a balançar o corpo ao ritmo da música, acompanhando, sem sentir, a cadência das dançarinas.
Pelo canto do olho, Mauro a observava. Ela era bonita e esbelta, com seios volumosos que encheriam de graça o decote de qualquer vestido. Resolveu testá-la e levantou-se
da mesa, estendendo a mão para ela. Amelinha não entendeu e ficou olhando dele para o palco, até que Mauro, com um sorriso maroto, falou bem juntinho de seu rosto:
- Vamos experimentar os seus dons artísticos.
Completamente sem graça, Amelinha deu-lhe a mão e se levantou. Mauro começou a dançar com muito jeito, o que estimulou Amelinha. Em pouco tempo, já estava solta
nos braços dele e tirou o casaco, dançando com muita leveza, ritmo e, acima de tudo, sensualidade. Parecia que nascera com o ritmo no corpo, e seu remelexo foi enchendo
Mauro de admiração e desejo.
Quando o espetáculo terminou, Mauro fez um gesto imperceptível para a orquestra, que continuou tocando, e os holofotes foram direcionados para onde eles estavam
incidindo direto sobre Amelinha. Ela esbanjava alegria e sensualidade. Em pouco tempo, todos batiam palmas, e uma aglomeração se fez ao seu redor. Com cuidado, Mauro
puxou-a pela mão, levando-a mais para o centro do salão, e alguns homens afastaram as mesas, abrindo espaço para que ela dançasse. De tão envolvida pela dança, Amelinha
nem se dava conta de que se transformara no centro das atenções. Os homens gritavam e batiam palmas, alguns passavam a língua nos lábios, enlouquecidos com o corpo
e o requebrado de Amelinha.
Em pouco tempo, o vestido colou-se a seu corpo, e seus cabelos, molhados de suor, caíam-lhe sobre os olhos, emprestando-lhe um ar selvagem e sedutor. Quanto mais
sentia o calor a invadi-la, mais Amelinha se requebrava, deixando-se dominar pelo prazer daquele momento. Os gritos masculinos, as palmas veementes, os assobios
de admiração, tudo isso contribuía para que ela se colocasse cada vez mais à vontade num mundo que tinha tudo para ser o seu.
Quando a música enfim terminou, ela encerrou a dança com um passo elegante e encarou Mauro, arfando e sorrindo ao mesmo tempo. A explosão de aplausos que se seguiu
deu-lhe a perceber que era ela a estrela do espetáculo, vestida em suas roupas simples, com o cabelo despenteado e sem maquiagem de efeito.
Olhou ao redor, confusa, e foi andando para trás, buscando alcançar a mesa a que estivera sentada com Mauro. Os homens gritavam entusiasmados, e ela sentiu um beliscão
nas nádegas, outro na coxa, e alguém alisou os seus seios. Assustada, Amelinha disparou a correr, esquecendo-se até de apanhar o casaco. Foi empurrando a multidão,
sentindo as mãos sobre seu corpo, explorando suas partes mais íntimas, e lágrimas lhe afloraram aos olhos.
Estava quase chegando à porta quando um braço vigoroso apertou o seu. Já ia gritar com o atrevido quando percebeu que era Mauro quem a segurava e tomava a dianteira,
puxando-a para fora do teatro. A chuva fina ainda caía, e ele a envolveu com seu próprio casaco, caminhando com ela pela rua.
- Sou uma tola - balbuciou ela. - Não percebi que estava fazendo papel de meretriz.
- Não diga bobagens, minha querida. Você foi brilhante, divina, fantástica! O público a adorou!
- Mas eles... Eles... - engoliu um soluço e encostou o rosto no peito de Mauro.
- Eles abusaram de você, eu sei. Mas é porque os deixou loucos.
- E você? Não me achou vulgar?
- Claro que não. Você é o meu achado. Juntos, vamos fazer muito dinheiro.
- Do que é que está falando, Mauro? Essa noite foi um desastre. Sinto-me violada, humilhada...
- Não precisa ser tão dramática. Você é linda, dançou muito bem. O que esperava? Que ninguém reagisse?
- Não sou uma vagabunda.
- Não estou dizendo que é.
- Você pensa que pode me usar só por causa de seu Anacleto.
- Não estou pensando nada, Amelinha...
- Só porque danço para ele, não quer dizer que qualquer um pode chegar e ir me passando a mão. Sou uma moça direita.
- Sei que é.
- Mas seu Anacleto não faz nada de mais. Ele só gosta de me ver dançando e... foi por isso que vim aqui... Para ver as danças.
- Ei! Ei! Não precisa ficar se defendendo, porque não a estou acusando de nada. O que você faz com seu Anacleto não é problema meu.
- Não faço nada!
- Está bem, Amelinha, não faz nada. Não foi para falar de seu relacionamento com seu Anacleto que a chamei aqui. Queria mostrar-lhe o teatro, o espetáculo, a música.
E você gostou, não gostou?
- Gostei, não. Adorei.
- Você nasceu para o teatro. Tem a dança no corpo.
- Você acha mesmo?
- Tenho certeza. Com um pouco de treino, você vai ser imbatível. Ninguém mais dança feito você, tem o seu jeito, o seu carisma, a sua sensualidade. Foi por isso
que os homens enlouqueceram. Você é uma mulher especial, Amelinha, tem poder sobre os homens.
- Tenho?
- Você não faz idéia do futuro que tem pela frente, menina. Estou certo de que não será difícil engajá-la em algum teatro de revista.
- Mas eu não sei nada sobre teatro.
- Como disse você só precisa de um pouco de treino. Com o tempo, vai ser a melhor atriz de teatro de revista de que esse país já ouviu falar.
- Será?
- Serei o seu empresário, e com o meu auxílio e sob a minha supervisão, vamos ficar ricos.
- Não sei não, Mauro. Dona Janete não vai gostar, e seu Anacleto vai ter um chilique.
- Mas que Janete? Que Anacleto? Nada disso, meu bem. Se quiser ter um futuro no mundo do teatro, teremos que sair daqui.
- Sair daqui? Para onde iremos?
- Para o Rio de Janeiro. É lá que estão concentrados os maiores teatros de revista da atualidade. Vamos para lá e vamos enriquecer.
- Mas Mauro, sou menor de idade.
- E daí? Quem é que precisa saber? É só você pôr uma maquiagem mais puxada, e ninguém vai desconfiar. Com esse corpo, ninguém vai nem perceber a sua carinha de menina
assustada e ingênua.
- Dona Janete vai mandar me procurar. E seu Anacleto, então, vai até colocar a polícia atrás de nós.
- Dona Janete não tem motivos para sair por aí atrás de você, e Anacleto não tem moral para chamar a polícia. O que vai dizer? Que corrompeu uma menor para torná-la
sua amante? - Mauro notou o rubor subindo às suas faces e ponderou amável: - Não precisa ter vergonha de mim, Amelinha. Não sou cego, e, desde o dia em que você
entrou em meu quarto, percebi que havia algo entre você e Anacleto. Se há alguém que tenha do que se envergonhar é ele, que corrompeu uma menina que tem idade para
ser sua neta.
- Não faço isso por querer - tornou ela em tom de desculpa. - Dona Janete me obrigou. Ameaçou colocar-me na rua...
Calou-se, a voz embargada, e Mauro retrucou penalizado:
- Dona Janete deveria ir presa. Onde já se viu abusar de uma menina que nada mais é do que sua criada?
- Não sou apenas criada de Dona Janete. Na verdade, ela é minha prima... Quero dizer, prima de minha mãe.
- O quê? Não acredito.
- Pois pode acreditar.
Sentindo inexplicável confiança naquele homem que mal conhecia, Amelinha contou-lhe todos os detalhes de sua vida, desde quando morava em Limeira e sofrerá aquele
estupro, até as ameaças de Janete para que ela aceitasse o assédio de Anacleto. Contou de Raul e de seu amor, da mãe e de seu ódio, da irmã que sempre rejeitara,
do filho que entregara para adoção sem nem mesmo conhecer. Mauro ouviu tudo em silêncio, comovido com o seu relato, imaginando como seria dolorosa a vida de uma
menina já tão experiente e castigada pela vida. Quando ela terminou, ele puxou o seu rosto e pousou-lhe um beijo delicado e terno, que ela retribuiu emocionada.
- Tudo isso é passado, Amelinha. Estou lhe oferecendo a oportunidade de uma vida nova, longe de tudo e de todos.
- Tenho medo.
- Do que é que tem medo?
- De não dar certo. De ter que voltar e pedir a Janete que me aceite de volta. De sofrer mais humilhações.
- Isso não vai acontecer. Confie em mim. Você vai ser rica e famosa, e ninguém, nunca mais, poderá magoá-la seja de que maneira for.
Amelinha chorava baixinho, não sabendo ainda ao certo se acreditava em tudo o que Mauro lhe dizia. Não que duvidasse dele ou de suas intenções. Não tinha era certeza
se a vida lhe permitiria realizar os seus sonhos. Por outro lado, o que tinha a perder? Não agüentava mais as ordens de Janete e tinha nojo de Anacleto. O que poderia
ser pior do que aquilo?
- Está bem, Mauro. Vou confiar em você, confiar no destino. Pior do que está não pode mesmo ficar. Se for para tentar ser feliz, vale à pena enfrentar o medo e as
adversidades.
- Garanto que seu medo é infundado, e as adversidades não serão maiores do que as que você já enfrentou até aqui.
Ela lhe deu um sorriso forçado e redargüiu, entre ansiosa e hesitante:
- Quando partiremos?
- Dê-me um tempo para preparar tudo. Até lá, aja normalmente, não deixe que ninguém desconfie.
- Podemos contar com Ione.
- Ione? Nada disso, é perigoso.
- Ione é minha amiga e também sofre nas mãos de Dona Janete.
- Tem certeza de que ela é de confiança?
- Absoluta. Foi ela quem me ajudou a não morrer de fome.
- Hum... Está bem. Falarei com Ione e passarei a ela todas as instruções.
- Não podemos levá-la junto?
- Não.
- Por favor.
- Não é o momento, Amelinha. No começo, será difícil para nós dois. Mais tarde, quando você ficar rica, poderá mandar buscá-la.
- Você está certo. Ione ganha mal na pensão, mas ao menos consegue sobreviver. Não tenho o direito de tirá-la de sua vida para fazê-la arriscar-se nessa louca aventura.
- Muito bem, menina, está mostrando juízo - haviam chegado à esquina da rua em que moravam, e Mauro estacou. - Agora, volte para casa em silêncio e vá dormir. Amanhã,
faça como lhe disse. E lembre-se: nenhum comentário ou olhar perdido. Isso pode estragar tudo.
- Não se preocupe Mauro. Farei tudo direitinho como você mandou.
- Ótimo. Agora vá.

***

Levou um mês para que Mauro acertasse tudo. Fez alguns contatos, comprou as passagens, informou-se sobre os lugares aonde ir ao Rio de Janeiro. Durante esses dias,
Amelinha nem o encarava. Continuava a dançar e a se deitar com Anacleto, esmerando-se para agradá-lo.
Era uma segunda-feira quando recebeu a notícia da partida. Depois do café, Ione sentou-se a seu lado e esperou até que ninguém estivesse por perto para lhe dizer.
Mauro mandava avisar que estivesse pronta naquela madrugada. Que levasse o mínimo possível, para não chamar a atenção. Foi assim que ela fez. Às duas horas, quando
todos já estavam dormindo, saiu sorrateiramente de seu quarto, carregando apenas a costumeira maleta, com algumas poucas roupas, o dinheiro minguado e as jóias baratas
que Anacleto lhe dera. Foi descendo as escadas, pé ante pé, e levou tremendo susto ao avistar uma sombra parada perto da porta. Hesitou por alguns instantes, sem
saber se corria de volta ou se ficava parada, até que a sombra se adiantou, e ela respirou aliviada.
- Desculpe-me se a assustei, mas não podia perder a oportunidade de abraçá-la uma última vez - sussurrou Ione, os olhos cheios de lágrimas.
Andando o mais rápido que podia sem fazer barulho, Amelinha soltou a mala no chão e estreitou-a nos braços, chorando junto com ela.
- Quando estiver bem, mandarei buscá-la.
- Não precisa me fazer promessas que sabe que não poderá cumprir.
- Está enganada, Ione. Vou poder e vou cumprir. Você vai ver.
- Oh! Amelinha! Estarei torcendo por você.
- Obrigada. Você é a melhor amiga que alguém pode ter.
- Jamais a esquecerei.
- Nem eu, porque estaremos juntas mais tarde.
Alisou o rosto molhado de Ione e deu-lhe um beijo caloroso, sentindo nos lábios o sal de suas lágrimas.
Em seguida, abriu a porta e saiu, caminhando pela rua, apressada. Virou a esquina quase correndo e deu uma última olhada para trás. Ione havia fechado a porta, e
o casarão lá estava, uma silhueta lúgubre erguendo-se na sombra da noite. Um arrepio percorreu a sua pele, e uma onda de incertezas e alegrias invadiu o seu coração.
Estava partindo para o novo, o desconhecido, sem saber que destino o futuro lhe reservava. Mas algo dentro de seu peito lhe dizia que fazia a coisa certa.
- Tudo pronto? - indagou Mauro, quando ela se aproximou.
Ela apenas assentiu. Entregou-lhe a maleta e, chorando, agarrou-se ao seu braço, esforçando-se para não desabar em pranto. Mauro a susteve com ânimo, e partiram
rumo à estação de trem. Ao amanhecer, estavam embarcados, e o trem seguia a toda velocidade em direção à capital do país, entrelaçando e preparando a teia de seus
destinos.


Capítulo 9


Aquelas eram lembranças dolorosas, e Tália escondeu o rosto entre as mãos e deu livre curso às limas, chorando como há muitos anos não chorava, lá havia se passado
tanto tempo desde aquele dia! Aquilo fora em 1933, e agora estavam em 2005. Para onde é que fora o tempo? Morrer não era desculpa para o esquecimento que se impusera.
Desde o seu desenlace, havia mais de cinqüenta anos, deixara de pensar nos seus entes queridos. Deixara de lado as lembranças, olvidando-se de que era com elas que
poderia construir suas experiências, e optara por uma vida de reclusão e abandono. Seu espírito se acostumara à solidão, e ela procurara compensar o esquecimento
com horas de estudo e dedicação aos espíritos necessitados.
Tudo isso fora válido e a ajudara a compreender a necessidade de voltar ao passado, não para revivê-lo, mas para conseguir entender os muitos porquês para os quais,
em vida, não encontrara resposta. Por onde andariam aqueles que amara? Raul, Mauro, Ione, a filha, o filho que não chegara a conhecer? Não seria hora de tornar a
encontrá-los?
- Tudo tem a sua hora - falou uma voz vinda da porta, fazendo com que Tália erguesse as sobrancelhas e encarasse Sílvia.
- É verdade - respondeu ela com tristeza. - Mas creio que perdi a hora para tudo.
- Nada se perde na natureza, minha querida, seja no mundo corpóreo, seja nesse em que hoje nos encontramos. Tudo o que nos acontece é necessário, e não há cedo ou
tarde para as experiências do espírito.
- Como pode dizer uma coisa dessas, Sílvia? Revivendo agora o passado, sinto que me omiti durante todos esses anos. Minha filha e minha irmã possuem todos os motivos
do mundo para me odiar, e o homem que mais amei se casou com minha irmã.
- Cristina jamais a odiou, e sua filha pensa que você a abandonou.
- Eu desencarnei!
- Ela não sabia disso.
- Jamais consegui ser feliz... Mesmo com todo o dinheiro, toda a fama, todos os homens a meus pés. Com tudo isso, nunca pude ser feliz!
- Você não se permitiu a felicidade porque não acreditou que a merecesse.
- Você, mais do que ninguém, conhece todos os meus erros.
- Quem somos nós para falar em erros? Qual é o peso que eles têm ou deveriam ter? Ninguém passou pela vida sem dar a sua quota de erros, sofrimentos, crimes, desilusão.
É assim que se cresce e se aprende o valor dos sentimentos que lhes são opostos. Ninguém sabe o quanto vale uma réstia de luz sem que tenha mergulhado os olhos na
vastidão das sombras.
- Eu sei, não estou me culpando.
- Pois não é o que parece. Fala como se sentisse pena de si mesma.
- Não é justo, Sílvia. As marcas do sofrimento ainda estão impressas em meu coração.
- Você sempre se lembrou do quanto sofreu, mas parece que apagou da mente os bons momentos que teve. Por quê? Por que a lembrança do sofrimento é mais sedutora do
que a da felicidade?
- Não sei.
- São as nossas carências, Tália, que nos fazem usar o sofrimento em benefício próprio, para despertar a piedade alheia e compensar a dor com compaixão. Quem é que
não tem pena do sofredor? Até nós sentimos pena de nós mesmos.
- Não quero a piedade de ninguém.
Sílvia fez um gesto com as mãos e tornou amistosa:
- Está bem, não vim aqui para discutir. Vim apenas lhe dizer que é hoje que seu neto vai buscar o resultado daquele exame de DNA.
- E daí? Já conheço o resultado.
- Mas não conhece a reação dele nem de sua filha, nem de Honório - Tália hesitou, e Sílvia continuou: - Não foi você mesma quem disse que havia perdido muito tempo
com a sua solidão? Então? Não acha que está na hora de voltar à vida?
- Muito engraçado, uma morta dizendo isso à outra morta.
- Estamos mais vivas do que nunca, e você sabe disso. Então? O que me diz?
Tália considerou por alguns minutos, até que concordou:
- Está certo. Vou com você.

***

Em companhia da namorada, Eduardo ia caminhando pela rua, segurando nas mãos o envelope com o resultado do exame de DNA.
- Ande Edu - estimulou Gabriela. - Abra logo esse envelope!
Eduardo estacou e fitou a namorada. Queria abrir e não queria. Nem ele mesmo entendia por que é que sempre tivera aquela fixação na avó. Desejava ardentemente que
aquele cadáver fosse o dela, mas tinha medo de ler o resultado e descobrir que alimentara uma vã ilusão.
- E se não for a minha avó? - contrapôs hesitante.
- Se não for, tudo bem. Você não tem nenhuma obrigação de encontrá-la mesmo.
- Mas eu queria tanto que fosse ela!
- Então abra logo.
- O que você acha?
- Abra, Edu.
Como Eduardo não se decidia, Gabriela arrancou-lhe o envelope das mãos e abriu afoitamente. Ele não a impediu e permaneceu mordendo as unhas, esperando que ela terminasse
de ler. Gabriela desdobrou o papel e correu os olhos por ele, balançando a cabeça enigmaticamente. Encarou Eduardo com um sorriso e ergueu as sobrancelhas, fazendo
ar de mistério.
- E aí, Gabi, o que foi que deu? - tornou nervoso.
- Quer mesmo saber?
- É claro que quero.
- Tem certeza?
- Dê-me isso aqui - apanhou de volta o papel e leu com avidez. - Eu sabia! Sabia o tempo todo que era ela!
- Sua mãe vai ficar uma fera.
- Em compensação, meu avô vai adorar. Ele a amava muito.
- Por que será que nunca se casaram?
- Não sei bem. Essa parte da história é meio nebulosa. Não sei se meu avô mistura as coisas ou se não quer me contar. Só o que sei é que ela estava doente e sumiu.
- E por isso, sua mãe não a perdoa.
- Minha mãe não a perdoa porque acha que vovó a abandonou quando ela era ainda bebê. Mas agora nós sabemos que ela morreu naquele sítio e não pôde voltar.
- Sua mãe não sabia que ela estava doente quando desapareceu?
- Ela diz que vovô só falou isso para justificar o desaparecimento dela.
Chegaram ao prédio em que Eduardo morava e subiram direto ao seu apartamento. Diana estava ao telefone, mas ouviu quando eles entraram e desligou, correndo ao seu
encontro. Sabia que Eduardo havia ido ao laboratório buscar o resultado daquele maldito exame, e, embora não quisesse admitir, também tinha certa curiosidade em
conhecer o seu resultado. Ao encontrar Gabriela em sua companhia, torceu o nariz e abraçou o filho, cumprimentando-a com frieza.
- Como vai, Dona Diana? - falou Gabriela.
- Vou bem.
- Trouxe o resultado do exame, mamãe - interrompeu Eduardo. - Não quer saber?
- Na verdade, não.
- Que pena.
Eduardo deu de ombros e estendeu a mão para Gabriela, saindo com ela vagarosamente.
- Mas já que você o trouxe - apressou-se Diana pode me dizer.
- Muito bem - anunciou ele, em tom solene. Fique feliz em saber, Dona Diana, que o paradeiro de sua mãe já não é mais nenhum mistério. A ossada que encontrei naquele
sítio realmente pertence à Tália Uchoa.
Uma estranha emoção arranhou o coração de Diana, que fingiu nada sentir. Torceu o nariz e retrucou em tom gélido:
- Não posso dizer que esteja surpresa. Aquela mulher teve o fim que mereceu.
- Por que a odeia tanto, mamãe? Ela morreu sozinha naquele lugar ermo. Isso não a comove nem um pouco?
- Eu não a odeio, mas também não me comovo com nada que se refira a ela.
- Não acredito nisso. Você a odeia porque se deixou impregnar pelas barbaridades que a bisa contava dela.
- Minha avó a conheceu muito bem. Tália era uma vagabunda, ordinária, prostituta. Por que outro motivo teria me abandonado?
- Porque ela estava doente e morreu, por isso.
- Isso é história! Quem é que foge quando está doente? Essa foi à desculpa que seu avô arranjou para justificar a fuga daquela ordinária. Aposto como desapareceu
com algum malandro que lhe deu uma surra e a matou.
- Não acha que está sendo intransigente e rígida Dona Diana? - interrompeu Gabriela. - Edu pode ter razão.
- Em primeiro lugar, o nome do meu filho é Eduardo, e não Edu. Em segundo, não creio que os assuntos de nossa família sejam de seu interesse, mocinha.
- Mãe! Não precisa ser grosseira com Gabi. Ela só está querendo ajudar.
- Muito obrigada, mas não preciso da ajuda de ninguém, muito menos de uma estranha.
Deu as costas aos dois e voltou para o quarto, deixando-os decepcionados e tristes. Mais do que eles, Tália chorava a seu lado. Vira e ouvira tudo, o que a deixara
profundamente magoada e triste também.
Olhou para Sílvia a seu lado que, como a ler seus pensamentos, foi logo informando:
- Sua mãe morreu bem depois de você, Tália, carregando no coração todo o ódio que sentia pela perda de Raul.
- Não fui culpada pela morte de Raul.
- Não. Mas é difícil sufocar um ódio tão profundo, de tantos anos, que foi alimentado por mais de uma vida.
- Mas isso é injusto!
- Se você pensar bem, não existe injustiças no mundo. O que há são fatos conhecidos ou desconhecidos, o que nos leva a essa sensação de justiça ou injustiça.
Tália assentiu, e as duas foram ao encontro de Eduardo, que estava no quarto em companhia de Gabriela. Ela deu um beijo no neto e na moça e seguiu com Sílvia. Quando
elas partiram, Eduardo sentiu certo arrepio, embora não soubesse explicá-lo. Pensou na avó e correu a apanhar algumas fotos que seu avô lhe dera.
- Ela era linda, não era? - perguntou embevecido.
Gabriela alisou a sua mão, fixando o retrato amarelecido de Tália.
- Edu?
- Hum?
- Posso lhe perguntar uma coisa?
- O quê?
- Por que essa fixação em sua avó? Quero dizer, é natural a curiosidade, mas você fica vidrado em tudo o que se refere a ela. Por quê?
- Não sei Gabi, juro que não sei. Confesso que muitas vezes me fiz essa mesma pergunta, mas não encontrei resposta. No princípio, pensei que fosse influência de
meu avô, mas depois notei que não. Antes mesmo de ele me contar as suas histórias, e já era vidrado nela. Aliás, foi exatamente por causa do meu interesse que ele
me narrou todas aquelas coisas. Não sei... Sinto por ela algo inexplicável, como se a tivesse conhecido profundamente. Não acha isso esquisito?
- Não sei. Hoje em dia, não sei mais o que é estranho e o que não é. Acho que tudo é possível.
- Tem razão.
- Por que não procuramos ajuda em algum lugar? Podíamos ir a um centro espírita.
- Acha que adiantaria?
- Podemos tentar.
- Se minha mãe descobrir que estou pensando em ir a um centro vai ser um inferno. Ela detesta essas coisas de espiritismo.
- Ela não precisa saber. Podemos ir e procurar descobrir o paradeiro de sua avó. No mundo espiritual, quero dizer.
- Boa idéia, Gabi.
- Vou falar com minha irmã. Ela sabe tudo desses assuntos.
Beijaram-se novamente, agora esquecidos de Tália e das coisas do passado. Mas no peito de Eduardo, uma pequena esperança começava a luzir.

***

Já passava da meia-noite quando Gabriela chegou a casa, e a irmã estava em sua cama, ouvindo um CD e lendo um livro espírita, Nada é como parece, de Marcelo Cezar.
Gabriela entrou vagarosamente e acercou-se da irmã, que sorriu sem desgrudar os olhos da leitura.
- Oi - cumprimentou ela, colocando o marcador na página após alguns minutos e pousando o livro na mesinha de cabeceira.
- Oi, Eliane, tudo bem?
- Tudo.
- Sabe o que é Eliane? Eu gostaria de saber quando é que você vai àquele centro de novo.
- Que centro? O centro espírita?
- É lógico, né?
- Por quê? Está interessada?
- Estou. Na verdade, meu interesse pelo assunto surgiu de repente, por causa de Eduardo. Ele anda muito estranho. Quando soube da existência daquele sítio, ficou
desnorteado. Só pensava em ir lá e procurar pistas da avó perdida. Descobriu aqueles ossos e teve certeza de que eram dela.
- Já Saiu o resultado do exame de DNA?
- Saiu hoje cedo. O resultado não foi nada surpreendente, já era esperado. Mas a reação de Eduardo é que me preocupa. Ele parece fascinado pela figura da avó. Guarda
fotos em porta-retratos, coleciona recortes da época em que ela era atriz. Sabia que até a certidão de nascimento dela ele guardou?
- E daí, Gabriela? Pode ser uma simples admiração. Papai mesmo disse que ela foi uma vedete famosa no seu tempo.
- Não sei explicar, Eliane, mas sinto que Eduardo está ficando muito vidrado, fixado, sei lá. Parece até que está apaixonado por ela.
- Ah! Não vá me dizer que está com ciúmes de alguém que morreu há mais de cinqüenta anos! E pior, que era avó de Eduardo!
- Ele fala dela com uma admiração... É quase como se a tivesse conhecido e vivido intensa paixão.
- Sei. Tipo: Em algum lugar do passado.
- Não brinque Eliane, a coisa é séria. Estou preocupada, com medo de que isso vire uma obsessão.
- Já falou com ele?
- Perguntei-lhe hoje o porquê dessa admiração, mas nem ele soube responder. Foi por isso que pensei no centro espírita. Quem sabe não descobrimos alguma coisa?
- Como o quê, por exemplo?
- Não sei. Talvez eles tenham alguma ligação de outras vidas. Acha isso possível?
- Possível, sempre é. Nós não sabemos quem fomos ou como vivemos, mas podemos estar certos de que nossa vida é feita de reencontros. São eles que nos ajudam a crescer.
- Pois é. Pensando nisso, não será também possível que ela, de alguma forma, tenha se libertado do lugar em que estava presa e voltado para perturbar Eduardo?
- Nem sabemos se ela ainda está no mundo espiritual. E depois, que interesse teria ela nessa perturbação?
- É por isso que preciso da sua ajuda. Talvez o centro espírita nos dê algumas respostas.
- Ou talvez não dê nenhuma. É um erro pensar que o espiritismo, os guias ou qualquer outro processo mediúnico sejam a solução para nossos problemas. Precisamos descobrir
os remédios para nossos males dentro de nossas próprias forças...
- Eu sei Eliane, não estou querendo dizer que o centro vai solucionar esse problema. Aliás, eu nem sei se isso é um problema. O que quero são respostas.
- Mesmo as respostas não podem ser tidas como absolutas. Muitas vezes, não temos permissão para conhecer a verdade que procuramos. Há casos em que os guias e mentores
não podem nos ajudar da maneira como desejamos.
- Como assim?
- Nem sempre os espíritos têm autorização para responder aos nossos questionamentos ou atender aos nossos desejos. Tudo se processa de acordo com o equilíbrio que
existe na natureza. Se o que procuramos vai romper esse equilíbrio, os espíritos de luz não nos irão mostrar.
- Até parece. Tem gente por aí causando desequilíbrios muito mais graves do que esse.
- Desequilíbrios que deverão ser restabelecidos a qualquer momento. E, muitas vezes, restaurar o equilíbrio perdido pode ser muito doloroso.
- Está querendo dizer que podemos ser punidos por tentar descobrir a verdade?
- Punidos, não. Mas a dor que sentimos é, na maioria das vezes, causada pela nossa própria teimosia e imprevidência. Nesse caso, só estaremos recebendo aquilo que
nós mesmos desejamos encontrar.
- Em outras palavras, quem procura acha.
- Exatamente.
- Se entendi bem, podemos descobrir coisas que vão nos fazer sofrer?
- É. E talvez vocês não estejam preparados para o que vão descobrir.
Durante alguns minutos, Gabriela permaneceu em silêncio, fitando a irmã com certa perplexidade.
- Eu sempre pensei - prosseguiu Gabriela - que tudo o que acontecesse no mundo fosse pela vontade de Deus.
- E é.
- E fosse para o nosso crescimento.
- O que também é verdade.
- Se é assim, descobrindo ou não a verdade sobre Tália Uchoa, estaremos seguindo a vontade de Deus, e se isso nos trouxer sofrimento, também aí será pela Sua vontade
e para o nosso crescimento.
- Pode-se dizer que sim. A vontade de Deus é única: que aprendamos a amar. Agora, os meios que vamos utilizar para alcançar esse fim são aqueles que melhor atendem
aos nossos propósitos e que estão mais de acordo com nossa maturidade espiritual. Por isso, podemos sempre escolher aprender pelo amor ou pela dor.
- Mas, ainda assim, não será pela vontade de Deus?
- Deus deu ao homem o livre-arbítrio para que ele pudesse escolher o seu próprio caminho, colhendo, como resultado dessa escolha, as flores ou espinhos com que se
deparar.
- Já entendi Eliane. Ainda assim, vamos assumir esse risco. Já conversei com Edu e ele quer ir.
- Muito bem. Se for o que desejam, vou levá-los comigo na próxima sessão. Mas não posso prometer nada.
- É isso aí, irmãzinha. Obrigada! Ficou combinado que Gabriela e Eduardo iriam com Eliane ao centro na terça-feira seguinte, o que deixou o rapaz extremamente animado.
Era o primeiro sinal que recebia de que podia ter esperanças de se comunicar com a avó.

***

Em silêncio, Diana seguia para a casa do pai, concentrada em descobrir um jeito de afastar Gabriela de seu filho. Como se isso não bastasse, ainda havia aquele problema
com a mãe. Por que será que Eduardo cismara de saber a verdade sobre ela? Não lhe bastava o que o avô e a bisavó haviam lhe contado? Quanto mais pensava nela, mais
Diana se enchia de ódio.
Precisava falar com o pai. Apesar de tolo e apaixonado, o pai sempre cuidara dela e lhe dera amor. Cristina também fora muito boa com ela e era a única que merecia
ser chamada de mãe. Encontrou-o tomando sol no jardim e se aproximou dele, só então notando que ele tinha um álbum de fotografias nas mãos. Ao ver a filha, Honório
fechou o álbum e esboçou um sorriso alegre.
- Diana, minha querida, já era tempo de vir me ver. Pensei que tivesse se esquecido de seu velho pai.
- Não faça drama, papai - respondeu ela, beijando-o nas faces coradas. - Estive aqui no começo da semana.
- Só? Pensei que fizesse mais tempo.
- Você está ficando esclerosado. Não raciocina mais direito.
- Não fale assim com seu pai. Ainda estou saudável e lúcido.
- Você já vai fazer noventa e sete anos. Não é mais nenhum garoto.
- Ainda posso cuidar de mim.
- Já soube da novidade? - indagou ela, mudando de assunto.
- Que novidade?
- Da ossada que seu neto achou?
- Saiu o resultado do tal exame?
- Saiu. E adivinhe só! É mesmo daquela mulher.
- Sua mãe.
- Minha mãe se chamava Maria Cristina e morreu tranqüilamente ao meu lado.
Lembrando-se de Cristina, Honório enxugou duas lágrimas dos olhos e apanhou a mão da filha, erguendo-se do banco em que estivera sentado.
- Vamos caminhar um pouco - convidou. Diana pôs-se a caminhar ao lado dele e esperou alguns minutos até prosseguir no assunto.
- O que tem dito a Eduardo, papai?
- Nada, por quê?
- Ele cismou que precisa descobrir coisas sobre a vida da avó.
- Deixe o garoto. Que mal pode haver?
- Não o quero envolvido com aquela mulher.
- Aquela mulher era sua mãe e já está morta. Ela foi uma grande mulher.
- Grande mulher... Nem se casar com você ela quis. Largou-me para ser criada pela babá e sumiu no mundo.

- Ela estava doente quando sumiu. Mas agora nós sabemos o fim que ela levou, não é mesmo?
- Não sei se acredito nessa tal doença. Para mim, o que ela quis mesmo foi me abandonar. Cuidar de um bebê devia ser um tropeço para uma libertina feito ela.
- Você não conheceu sua mãe - ponderou ele, olhos úmidos.
- É. Ela não me deu essa chance.
- Mas você sabe o motivo que a levou a desaparecer.
- Tudo desculpa para fugir a suas responsabilidades de mãe.
- Por que a julga desse jeito?
- Porque ela não prestava. Era uma vagabunda, mãe desnaturada, filha ingrata. Não é à toa que ela e minha avó não se davam.
- Você bem sabe que sua avó não gostava dela e que foi a responsável pelo seu desaparecimento. Se não tivesse...
- Não tente acusar minha avó! - berrou Diana, interrompendo-o com exasperação. - Ela estava apenas tentando ajudar, mas Tália, ingrata como era, tratou logo de destratá-la!
E não quero que você conte isso a Eduardo. Não o quero com raiva da bisavó por algo de que ela não teve culpa.
- Está bem, Diana - suspirou desanimado. - Deixemos os mortos descansarem em paz.
- É melhor mesmo. Tudo isso está causando sérios problemas a Eduardo.
- Que problemas um moço saudável, recém-formado, com uma brilhante carreira pela frente e uma bela namorada pode ter?
- A namorada é um deles, mas não vim aqui para falar dela. Minha preocupação é aquela mulher. Não o quero investigando a vida de Tália, não é saudável. Você precisa
tirar isso da cabeça dele.
- Eu? E desde quando Eduardo me dá ouvidos?
- Se há alguém a quem ele dá ouvidos, esse alguém é você. Você sabe que ele o adora.
- Ai, ai, ai! - lamentou-se ele. - Vá lá, Diana, se é isso o que quer, verei o que posso fazer.
- Ótimo papai. Sabia que podia contar com você.
Com um gesto delicado, Honório deu o assunto por encerrado e convidou-a a entrar e tomar um refresco. Se ambos pudessem ver além do visível, teriam percebido a presença
de Sílvia e Tália ao lado deles, os olhos úmidos de saudade.
- Você o amava - afirmou Sílvia, notando a sua tristeza. - Por que não se casou com ele?
Tália voltou para ela os olhos brilhantes para, em seguida, dirigi-los novamente a Honório, que caminhava de braços dados com a filha.
- Por quê? - repetiu. - Porque minha vida se perdeu numa ilusão...
Fitou Sílvia de novo e balançou a cabeça, sumindo no ar em seguida.



Capítulo 10




Quando a terça-feira chegou, o clima era de euforia para Gabriela e Eduardo. A sessão começava às oito e meia e, às sete e meia, todos já se encontravam lá. Como
Eliane fazia parte do corpo mediúnico, foi apresentar os amigos ao dirigente, um senhor alto e de olhar bondoso, que se chamava Salomão. Ainda tinham tempo, e Salomão
dispôs-se a ouvir e conhecer os motivos que levaram Eduardo a procurá-lo. O rapaz contou-lhe tudo o que sabia sobre a avó, inclusive sobre a ossada recém-descoberta,
finalizando com a enorme atração que sentia por tudo que se referisse a ela. Salomão escutou com atenção e, ao final da narrativa, segurou as mãos de Eduardo e disse
mansamente:
- Meu jovem, talvez esse não seja o momento mais oportuno para você conhecer a verdade. Ou talvez a sua avó não possa ou não queira se comunicar.
- Isso aqui não é um centro espírita? Não é o local apropriado para a gente se comunicar com os que já morreram?
- As coisas nem sempre são como nós queremos, mas como devem ser de acordo com os desígnios de Deus.
- O senhor não está entendendo. Deus não tem nada a ver com isso. Sou eu que preciso me comunicar com a minha avó.
- Deus tem a ver com todas as coisas. E sua avó precisa de permissão para mandar uma mensagem ou se apresentar, mas pode ser que isso não seja oportuno agora, nem
para ela, nem para você.
- Por que não? Que mal pode haver em saber de seu paradeiro?
- Há coisas que é melhor não descobrir por enquanto. Tudo tem a sua hora, e talvez esse não seja o momento certo.
- O momento é sempre o certo quando se trata da verdade. E eu preciso descobrir a verdade. Já!
- Você está muito ansioso, meu rapaz. Não creio que a verdade lhe trará algum benefício. Ao menos enquanto você não estiver fortalecido e equilibrado.
- Ouça seu Salomão, sei que o senhor é muito bom e está preocupado comigo. Mas posso lhe assegurar que estou mais do que preparado para descobrir o que houve com
Tália. E seja o que for que tenha acontecido entre nós tenho maturidade suficiente para saber. Sou um homem crescido, dono do meu nariz.
- Não é desse tipo de maturidade que você precisa, mas de maturidade espiritual. E essa só vem com o estudo e a reflexão.
- Não precisa se preocupar, já disse. Nada de mal poderá me acontecer.
Salomão deu um suspiro de desânimo e retrucou com compreensão e carinho:
- Vá se sentar na assistência, meu filho, e mantenha-se em oração. Se sua avó quiser e puder se manifestar, ela o fará. Se não, conforme-se com a vontade de Deus
e esteja certo de que Ele tudo faz pelo nosso bem.
Ainda ansioso Eduardo foi se sentar na assistência com Gabriela, e do outro lado, uma mulher de seus trinta e poucos anos sorriu para ele e disse baixinho:
- Estou esperando para ser aceita no corpo mediúnico. Tenho grandes potenciais e quero dar a minha contribuição à espiritualidade.
- É mesmo? - interessou-se ele. - E o que é preciso fazer para ser aceita?
- Nada. Eles apenas estão avaliando minhas capacidades como médium.
- Ah...!
O som de um pequeno sino fez com que todos se calassem, e a iluminação fria do salão foi substituída por suaves luzes azuis, que davam um ar de serenidade ao ambiente.
A sessão transcorreu normalmente, sem que nenhum espírito se manifestasse para mandar qualquer mensagem a Eduardo. Ao final, Eliane se juntou a eles.
- Lamento Edu, mas não foi dessa vez.
- Não faz mal, Eliane. Sei que vocês fizeram o que puderam.
- Olá, Eliane - cumprimentou a mulher que estava ao lado de Eduardo.
- Ah! Tudo bem, Janaína?
- Tudo ótimo. Então, já apreciaram o meu pedido?
- Isso não é comigo, é com seu Salomão.
- É o meu pedido para ingressar no centro - esclareceu ela a Eduardo.
Eliane pediu licença e saiu puxando os amigos para fora, para tomarem um refrigerante na cantina.
- Está na cara que você não gosta da tal Janaína - observou Gabriela.

- Você tem razão, não simpatizo muito com ela. Janaína pediu para ingressar na casa, mas não está preparada.
- Por quê? Ela não é médium?
- Médiuns, todos nós somos, em maior ou menor escala. Mas o problema de Janaína não é bem esse. Ela é psicóloga e anda se aventurando no campo da TVP.
- TVP? O que é isso?
- Terapia de Vidas Passadas.
- Ela faz regressão? - indagou Eduardo, cético.
- Faz, mas seu Salomão não confia muito em seus métodos. Já soubemos de casos em que o paciente ficou pior do que já estava.
- Por que será? Será que ela não faz direito?
- Fazer, ela faz, e é por isso que as pessoas ficaram mal. Ela andou arranjando clientes aqui no centro, mentindo, dizendo que era com recomendação de seu Salomão,
que ficou muito aborrecido. Afinal, ele tem responsabilidade pelo encaminhamento espiritual dessa casa e de todos que a procuram.
- Acho que Eliane tem razão - concordou Gabriela. - Uma pessoa que mente para alcançar seus objetivos não é digna de confiança.
- É por isso que não a deixam entrar? - quis saber Eduardo.
- É. Seu Salomão não pode pôr em risco as pessoas que aqui vêm.
- Por que não dizem isso a ela?
- Já dissemos, mas ela prefere fingir que não entende.
- Terapia de vidas passadas... - divagou Eduardo. - Deve ser interessante. Imagine só, descobrir a relação que tivemos com outras pessoas, em outras vidas...
- Nem pense nisso, Edu! - cortou Gabriela, rapidamente. - Nem pense em procurar essa tal de Janaína para saber de sua avó.
- Eu não disse isso.
- Mas é o que está pensando. Posso ver pelo brilho dos seus olhos.
- Gabriela está certa, Edu. - concordou Eliane. - Pode ser perigoso. Você pode não gostar do que vai descobrir.
Eduardo silenciou. Não queria mais pensar naquilo, mas o fato era que ficara impressionado com as palavras de Eliane. Se aquela mulher era capaz de levá-lo a outra
vida, será que não valeria à pena arriscar? E depois, o que poderia haver de tão terrível em seu passado e no de sua avó que pudesse colocá-lo em risco? Será que
foram apaixonados? Talvez tivessem sido amantes. Isso não era assim tão horrível. Podia lidar com aquilo. Ao menos, era no que acreditava.

***

Terapia de vidas passadas parecia algo muito mais do que interessante; era tentador. Tentador demais para ser desconsiderado. Eduardo não conseguia parar de pensar
em Janaína e em seu trabalho. Talvez estivesse enganado ao procurar o centro espírita. Talvez a ajuda mais acertada para ele fosse uma regressão a vidas passadas.
Era exatamente do que necessitava. Veria e reviveria momentos importantes de sua vida, fatos passados em outras épocas e, muito provavelmente, desvendaria o mistério
que envolvia sua relação com Tália.
Eliane dissera que poderia ser perigoso, mas ele não pensava assim. Não era como aqueles fracos e desequilibrados que enchiam os consultórios dos psicólogos com
problemas pueris, cuja solução simples mal conseguiam enxergar. Para esses, a terapia de vidas passadas podia representar uma ameaça, porque não estavam prontos
para se defrontar com a dor do passado. Mas ele não. Era um homem forte e corajoso, determinado e destemido, e não havia nada que o pudesse intimidar. Esperaria
até a próxima sessão no centro espírita, quando poderia encontrar Janaína novamente. Daria um jeito de conseguir o seu telefone e marcaria uma consulta, sem que
ninguém precisasse saber.
No dia seguinte, acordou com o telefone tocando insistentemente a seu lado, na mesinha de cabeceira. Consultou o despertador: ainda faltavam quinze minutos para
as seis. Muito cedo para se levantar. Eduardo só entrava no trabalho às nove horas, de forma que não precisava madrugar. Como aquele era o seu número particular,
o telefonema só podia ser para ele mesmo. Espantando o sono, ergueu o fone e respondeu entre bocejos:
- Alô...
- Oi! Edu? Sou eu, o Márcio.
Márcio era o amigo de Eduardo que estivera presente quando da descoberta da ossada de Tália. Os dois haviam se formado em economia na mesma época e trabalhavam juntos
na mesma empresa.
- Márcio? Posso saber o que foi que houve para você me ligar tão cedo?
- Cedo? Já passa das dez horas. Esqueceu-se da nossa reunião? Todo mundo está perguntando por você.
- Dez horas?
Eduardo levantou-se de um salto e apanhou o despertador, encostando-o no ouvido. Parado!
- Não sei o que houve Márcio. O despertador está parado. Acho que deu defeito.
- Lembre-me de lhe dar um rádio-relógio digital no próximo Natal. Agora se apresse. Se vista logo e venha para cá.
- Já estou indo. Por favor, peça desculpas ao pessoal e diga que já estou chegando.
Embora atrasado, Eduardo gozava de prestígio na empresa, e o chefe não ficou muito zangado. A reunião transcorreu normalmente, e, no final do dia, os dois saíram
para tomar um chope e conversar.
- Está tudo bem com você, Eduardo? Você anda meio estranho ultimamente.
- Não é nada, Márcio, estou bem.
- Não sei não. Desde que descobriu os ossos de sua avó, você anda esquisito.
- É impressão sua.
- Será? Gabriela também pensa assim?
- Ela comentou alguma coisa com você?
- Olhe Edu, não leve a mal, mas ela me telefonou no outro dia. Está preocupada com você.
Uma sombra imperceptível de ciúme nublou a mente de Eduardo, que conseguiu disfarçar e retrucou com fingida displicência:
- Por quê?
- Não sei se é saudável você ficar nessa fixação pela sua avó. Ela já morreu cara.
- Só o que quero é descobrir o que aconteceu com ela.
- Você sabe que ela estava doente quando sumiu. Seu avô já lhe disse. Provavelmente, foi por isso que ela morreu.
- E daí?
- E daí que não sei se vale a pena você ficar revolvendo essa história. O passado está morto, e você nada pode fazer para mudá-lo.
- Não quero mudar o passado. Quero apenas compreender.
- O que mais há para compreender? Você não conheceu sua avó. Descobrir a ossada dela, confesso que foi uma aventura. Fazer o exame de DNA também foi compreensível,
porque tirou sua dúvida. Agora chega.
- Pode ter sido uma aventura para você, mas para mim foi algo muito sério. E depois, eu sou a pessoa mais indicada para definir o que é ou não importante para mim.
- Tudo bem, Edu, não quero discutir com você.
Mudaram de assunto, mas algo continuou martelando na cabeça de Eduardo. Quando foi que Gabriela telefonou para Márcio? E por que não lhe contou? Aquilo o incomodou.
Embora o amigo nunca dissesse nada, podia perceber os olhares que dava para ela. Mas não queria dar uma de namorado ciumento e criar um caso por nada. Pouco depois,
despediu-se de Márcio e resolveu ir à casa de Gabriela. Ainda era cedo, e podiam sair para jantar. Encontrou-a estudando em seu quarto e beijou-a apaixonadamente.
- Posso saber o motivo desse beijo ardente?
- Estive pensando, Gabi. Que tal se fôssemos acampar nesse fim de semana?
- Não vai dar Edu. Tenho prova na segunda-feira.
- Sei. É para isso que está estudando?
- É sim.
Ele assentiu e ficou rondando a moça, até que indagou:
- Não pretendo atrapalhar você, mas não quer sair para comer alguma coisa? Podemos ir ao Mac Donald's.
- Tudo bem. Estou mesmo com fome. Dê-me só um tempo para me vestir.
Eduardo saiu do quarto e ficou conversando com Eliane, que havia acabado de chegar. Poucos minutos depois, Gabriela apareceu, e ele percebeu o quanto ela era bonita
e como a amava.
- Você está linda! - elogiou embevecido.
- Obrigada.
- Aonde é que vocês vão? - indagou Eliane.
- Comer alguma coisa por aí. Quer ir?
- Não, obrigada, já jantei.
- Até mais então, Eliane.
Trocaram beijos de despedida, e os dois partiram rumo à lanchonete.
- Você ainda não me disse o que achou do centro espírita - falou Gabriela, assim que se sentaram para comer.
- Eu gostei. Fiquei um pouco desapontado, mas foi legal. Senti uma paz incrível.
- Eu também. Mas não gostaria que você ficasse decepcionado. Sua avó ainda pode aparecer.
- E se nada acontecer?
- Não será então o melhor?
- Não, Gabriela. Estou disposto a descobrir, ainda que contra a vontade de todo mundo. Até meu avô, que sempre defendeu minha avó, me telefonou outro dia para tentar
me convencer a não fazer nada. Aposto como foi idéia da minha mãe.
- Acho que você está insistindo em algo que a vida não quer lhe revelar.
- Se não quer, vou forçá-la a querer. Nada nem ninguém têm o direito de me impedir de descobrir a verdade sobre a minha família.
- Talvez a verdade não seja útil para você, afinal. Não nesse momento.
- Em que momento então? Quando eu morrer? - ela deu de ombros, e ele acrescentou: - Muito obrigado, mas não vou esperar tanto. Se tiver condições de descobrir hoje,
vai ser hoje mesmo que vou descobrir.
- Como?
- Darei um jeito. E agora, Gabi, por favor, será que podemos mudar de assunto? - ela silenciou e mordeu o sanduíche, e ele indagou com aparente displicência:
- Soube que você andou telefonando para o Márcio para falar de mim.
- Não é bem assim, Edu. Liguei para ele porque é seu amigo e pensei que poderia ajudar.
- Ajudar em quê? Não estou doente nem nada.
- Foi você quem quis mudar de assunto.
- Isso mesmo. Estamos falando do Márcio agora.
- Acho que não temos nada para falar do Márcio. O problema ainda é a sua avó.
- Foi o que ele me disse.
- Por que está tão zangado? Será que é algum crime preocupar-me com você?
- Não estou zangado. Só não sei se me agrada que a minha namorada fique telefonando para outros homens além de mim.
- O que é isso, Edu? Ciúmes agora? Pensei que Márcio fosse seu amigo.
- E é. Mas também é homem. E muito atraente, eu reconheço.
- Não estou entendendo aonde você quer chegar.
- A lugar nenhum. Esqueça. É besteira.
Eduardo sorriu sem jeito e virou a cabeça para o lado, fitando a rua pela janela envidraçada da lanchonete. Não sabia se Gabriela já havia percebido o interesse
de Márcio por ela e não pretendia chamar sua atenção. Jurara a si mesmo que não bancaria o namorado ciumento, mas o fato é que não podia evitar. Por mais que tentasse,
não conseguia parar de pensar em Márcio e nos seus sentimentos para com Gabriela. E se falasse com ele? Talvez, esclarecendo tudo, parasse de sentir ciúmes. Diria
ao amigo que Gabriela era sua namorada e que não ficava bem os dois se falarem por telefone. Mas que besteira! Márcio o julgaria ridículo. E depois, eles nem andavam
se falando por telefone. Pelo que ele sabia aquilo acontecera apenas uma vez e não iria se repetir. Decidiu não mais se importar.

***

Faltavam poucos minutos para o meio-dia, e Eduardo conversava animadamente com Márcio num bar à beira-mar, ainda de sunga e camiseta. Tinham saído da praia havia
pouco minuto para dar um pulo no barzinho e tomar uma bebida gelada, fugindo do sol escaldante.
- E a Gabi, como vai? - perguntou Márcio, tentando não demonstrar excessivo interesse.
Eduardo fitou-o desconfiado, mas desviou os olhos rapidamente, para que o outro não notasse a sua irritação. Deu um gole largo na cerveja e respondeu sem tirar os
olhos da mesa:
- Vai bem... - hesitou, mas a desconfiança foi maior, e retrucou com uma quase zanga: - Por que o interesse?
- Perguntei por perguntar - respondeu Márcio, percebendo que o amigo não havia gostado.
Foi preciso muito esforço para Eduardo não gritar com Márcio. Afinal de contas, ele não perguntara nada de mais. Em outras circunstâncias, nem teria se importado,
mas, de uma hora para outra, dera para ter essas desconfianças. Tinha certeza do interesse dele por Gabriela, o que o deixava irritado. A moça jamais lhe dera motivo
para desconfianças, mas, desde que telefonara ao amigo para falar dele, Eduardo começou a se sentir incomodado, e a sombra negra do ciúme principiou a avançar sobre
ele.
Tentou desanuviar a cabeça, mas estava difícil. Confiava muito em Márcio; eram amigos há muitos anos. E tinha toda confiança em Gabriela também. Mas o que dizer
de seu desempenho amoroso nos últimos tempos? Ela vinha se queixando de sua frieza e desinteresse. Estaria interessada no outro e, por isso, seus carinhos já não
a satisfaziam mais? Agora que percebera, sentia que havia algo estranho entre aqueles dois. Ou seria mera impressão?
Na verdade, Eduardo não conseguia enxergar os seres que, nessas horas, o abraçavam. Criaturas ligadas a sua mãe compraziam-se em incutir-lhe um ciúme crescente.
Cada vez que se deixava dominar por esse sentimento mesquinho e corrosivo que a bebida só fazia aumentar, as entidades se acercavam dele, enviadas pelos pensamentos
daninhos de Diana, que odiava Gabriela mesmo sem perceber. Eduardo alheio a esse fato e descuidado na vigília, era presa perfeita para esses espíritos, não lhes
opondo resistência nem qualquer dificuldade. Ia se tornando, a cada dia, mais e mais sugestionável a suas vibrações, que o instigavam à desconfiança e ao ciúme.
Assim envolvido por essas sombras, Eduardo dava vazão a sentimentos menos nobres. Fitava Márcio com um brilho de raiva no olhar quando avistou a mãe, que se aproximava
a passos largos.
- Graças a Deus encontrei você! - exclamou ela, pendurando-se em seu pescoço e cumprimentando Márcio com um aceno de cabeça.
- Por quê? Aconteceu alguma coisa?
- Não, está tudo bem. E que seu avô apareceu de repente lá em casa, para o almoço. Faço questão da família reunida à mesa.
- Que maravilha! Sabe que adoro conversar com vovô.
- Só não vá aborrecê-lo... - parou abruptamente e queixou-se, aborrecida com a chegada repentina de Gabriela: - Ora essa!
- Olá, olá! - cumprimentou a moça, beijando Eduardo nos lábios.
- Terminou de estudar? - indagou o namorado, puxando-a pela mão e sentando-a a seu lado.
- Graças a Deus. E aí, Márcio, como vai?
- Tudo bem.
- E a senhora, Dona Diana? Veio pegar um solzinho?
- Não tenho tempo para essas bobagens - respondeu ela com azedume. - Vim aqui só porque precisava falar com Eduardo. Temos um importante almoço de família em casa,
e não podia deixar de vir.
Mandaria um dos criados, mas não se pode contar com eles hoje em dia. Não fazem nada direito...
Foi só então que Diana percebeu que não havia ninguém prestando atenção em suas palavras. Gabriela acariciava a mão de seu filho, enquanto este, olhar reto, parecia
remoer alguma coisa. Seguindo o seu olhar, encontrou os olhos de Márcio que, por sua vez, fitavam Gabriela com ar de adoração. Num átimo de segundo, compreendeu
tudo. Gabriela parecia ou fingia não notar, mas Márcio não tirava os olhos dela, o que já fora percebido por Eduardo.
Ciúme. O monstro negro da destruição, inimigo dos amantes e aliados dos oportunistas. E ela era uma grande oportunista. Seria com o ciúme que contaria para minara
confiança de Eduardo naquela espevitada. Não podia perder aquela oportunidade.
- Você vai almoçar lá em casa? - escutou Eduardo dizer a Gabriela, que assentiu em dúvida. - Gostaria muito que você fosse.
Fascinada, viu quando Gabriela respondeu com todo o seu charme, que Márcio bebia como se fosse endereçado a ele:
- Se é o que você quer, vou sim.
- Podemos ir para o meu quarto depois - completou quase num sussurro inaudível, e ela sorriu sedutora.
Do outro lado da mesa, Márcio também parecia fascinado. Tentava não prestar atenção, mas não conseguia tirar os olhos da menina, talvez se imaginando no lugar de
Eduardo. E por que não?
- Por que não vem também, Márcio? - convidou Diana, esforçando-se para parecer gentil.
- Ah! Obrigado, Dona Diana, mas não vai dar.
- Você tem algum compromisso?
- Não, nenhum. Na verdade, estou sozinho em casa.

- Então, por que não vem? Tenho certeza de que Eduardo ficaria feliz.
Procurou não olhar para o rosto do filho, que se contraiu em desagrado.
- Domingo é dia de se almoçar com a família, mamãe - protestou Eduardo, apertando os lábios.
- Mas foi ele mesmo quem disse que está sozinho! Mais um motivo para vir almoçar conosco. Vocês sempre foram tão amigos, que é como se ele fizesse parte da família.
E depois, Gabriela não vem também? Ela não vai almoçar com a família, vai?
- Não sei Dona Diana - hesitou Márcio. - Não quero atrapalhar.
- Que atrapalhar, que nada! Assim fica mais divertido. Eduardo não tem tempo de aborrecer o avô, e vocês, jovens, podem se divertir, os três. Você tem um DVD novo,
não tem meu filho?
- Tenho - respondeu secamente.
- Então! Vamos, Márcio, Eduardo está precisando disso. Tem trabalhado demais.
Não era verdade. O trabalho não o incomodava nem o desgastava, e Eduardo não compreendia por que a mãe insistia naquilo. Quase gritou com ela para que parasse, mas
conseguiu se conter a tempo. Ela não tinha nada com suas desconfianças e fazia aquilo pensando que era para o seu bem. Finalmente engoliu a raiva e conseguiu dizer:
- Venha, Márcio. Podemos ver um bom filme, nós três.
- Se é assim - considerou Márcio -, eu vou.
- Ótimo! Agora, fiquem aí mais um pouco, enquanto vou para casa e mando pôr mais dois pratos à mesa.
Márcio consultou o relógio e tornou:
- A que horas é o almoço?
- Hum... - fez Diana. - Lá para uma hora, está bom?
- Já é meio-dia e vinte. Ainda tenho tempo de ir tomar um banho e me aprontar.
- Não precisa. O almoço vai ser servido à beira da piscina.
- Mesmo assim, Dona Diana, estou cheio de sal.
Levantou-se e despediu-se dos amigos, seguindo para casa sob o olhar contrariado de Eduardo. Gabriela chegou a notar seu desagrado, mas preferiu se calar. Em qualquer
outra ocasião, Edu ficaria feliz com a companhia do amigo e da namorada, mas, desde que ela telefonara a Márcio, ele andava esquisito. Ainda estaria com ciúmes?
- Você não precisa ir se arrumar - disse Eduardo, apertando a mão de Gabi, que fez menção de se levantar. - Pode ir agora comigo.
Gabriela não contestou. Estava de biquíni e saída de praia, mas iria assim mesmo. A saída mais parecia um vestidinho, e ninguém iria notar.

***

À uma e meia, sentaram-se para almoçar nas mesinhas colocadas no terraço da imensa cobertura de Diana. Eduardo, que quase não falara nada durante o almoço inteiro,
preocupado em tomar conta dos olhares de Márcio, acabou se esquecendo deles por alguns minutos, envolvido que fora na conversa do avô.
- Você não devia mais se ocupar tanto com o passado, Eduardo. Deve cuidar de viver o presente e planejar o futuro. Sua mãe anda aborrecida com esse seu interesse.
Sabe como ela se sente com relação a sua avó.
- Isso é problema dela.
- Você devia respeitar mais a sua mãe. Ela só quer o seu bem.
- Mas quem foi que disse que não a respeito? Só porque ela não gosta de vovó, não significa que eu também tenha que não gostar. E depois, é ela que não respeita
o meu desejo. Vive me recriminando...
- Ela é sua mãe. Quer o melhor para você.
- Foi ela quem lhe pediu para me falar essas coisas, foi? Porque se foi, não vai adiantar.
Continuaram a conversar, e, como sempre acontecia quando o assunto era Tália, Eduardo se esqueceu por completo de Gabriela, desligando-se momentaneamente dela e
de seu amigo Márcio. Deixada sozinha pelo namorado, a moça se aproximou do rapaz, que, debruçado na amurada, observava o movimento dos banhistas embaixo, na avenida.
Sentindo o seu perfume suave, Márcio virou-se para ela e deu um meio sorriso, tomando um gole do refrigerante que tinha nas mãos.
- Está fazendo um lindo dia, não está?
Ele assentiu e retrucou:
- Estou até pensando em dar um pulo lá embaixo e dar um mergulho. O que você acha?
- Você já não tomou banho?
- Mas estou de sunga por baixo.
- Por que não caímos na piscina?
- Não sei não, Gabi. Não estou vendo ninguém de roupa de banho por aqui.
- Tem razão. Podem nos achar intrometidos, não é? Ainda mais Dona Diana, que vive cheia de frescuras e etiquetas.
Márcio sufocou o riso e olhou para a mãe de Eduardo, que dava ordens a uma criada.
- Coitado do doutor Douglas - prosseguiu ele. - Merecia coisa melhor.
- É mesmo. Ele é tão legal!
Márcio assentiu e tornou a se virar para o terraço, apontando Eduardo com o queixo.
- Nosso amigo já foi perturbar o avô com aquela conversa de Tália.
- É verdade. Pior que, nessas horas, ele nem lembra que eu existo.
Naquele momento, Márcio se deu conta da enorme ternura que sentia por ela. Teve vontade de estreitá-la em seus braços e beijar seus cabelos, dizendo-lhe o quanto
ele se importava. Mas a fidelidade ao amigo não lhe permitia maior contato com Gabriela, e limitou-se a dizer:
- Ele não faz por mal. Mas, se lhe servir de consolo, sou seu amigo e estou ao seu dispor quando você quiser conversar.
Ela apertou a mão dele e agradeceu quase em lágrimas:
- Obrigada, Márcio. Você é um ótimo amigo. De onde estava Diana não perdia um só movimento dos dois. Nem se importava muito com a conversa do filho e de seu pai.
Ver a proximidade de Gabriela e de Márcio, sentir o interesse do rapaz por ela e a fragilidade da moça diante da quase indiferença do filho, era algo fascinante,
para não dizer prazeroso.
- E então? - prosseguiu ele. - Vamos ou não vamos dar um mergulho?
- Hum... Está certo, você me convenceu. Vou falar com Edu e já volto.
A passos largos, Gabriela se aproximou de Eduardo e, pedindo licença, informou-o de sua intenção de ir dar um mergulho em companhia de Márcio. De tão entretido na
conversa do avô, Eduardo mal lhe registrou as palavras. Limitou-se a assentir, dando-lhe rápido beijo nos lábios. Ela deu um sorriso amargo para Honório e se afastou,
sumindo em seguida em companhia de Márcio.
- Devia dar mais atenção a sua namorada - censurou-o. - Ou vai perdê-la para outro.
- Como assim? - tornou Edu, incrédulo.
-
- Sabe por que acabei me interessando por Maria Cristina?
A pergunta pegou Eduardo de surpresa. Eles mal falavam da tia-avó, a mulher de seu avô, irmã de sua verdadeira avó, e era a primeira vez que ele o escutava referir-se
a sua vida pessoal.
- Por quê? - repetiu ele, interessado.
- Justamente porque sua avó não me dava atenção. O sucesso, por vezes, ofuscava-lhe a visão, e eu ficava deixado de lado, vendo-a se divertir em festas na companhia
de outros homens. Nessas ocasiões, quem me consolava era sua avó Maria Cristina, que não tinha o glamour de Tália, mas que, à sua maneira, também foi uma grande
mulher.
- Mas você amava vovó Tália.
- Amava... Mas não há amor que resista à indiferença. Quando a carência aperta, pendemos para o lado daqueles que nos cobrem de atenções. Foi assim comigo e Maria
Cristina, e pode vir a ser assim com Gabriela e o seu amigo.
- Acha que eles podem me trair?
- Trair, não. Mas a distância que você está impondo a ela pode acabar aproximando-a do outro. E aí, ela pode simplesmente deixar você para ficar com ele. Troca não
é traição.
- Márcio é meu amigo...
- Mas é também um ser humano cheio de sentimentos, dúvidas, desejos. Não jogue com a sorte, menino, porque ela pode virar as costas para você.
- Você também trocou vovó Tália por vovó Cristina?
- Foi Tália quem me trocou por todos os outros homens... E Cristina... Ela me amava tanto...!
- Mas vocês só se casaram depois que vovó Tália sumiu, não foi?
- O que não quer dizer que não tenhamos nos envolvido antes.
- Quer dizer que você e ela tiveram um caso? Antes que a vovó sumisse?
- Era em seu colo que eu desafogava o pranto, e em sua cama que aliviava a tristeza que me consumia o coração.
- Estou... Estarrecido... - balbuciou ele. - Jamais poderia imaginar que você houvesse traído a minha avó.
- Eu não a traí. Apenas procurava consolo nos braços da única mulher que me amou de verdade e que estava sempre livre e pronta para mim. Era Tália quem me traía
com qualquer um que tivesse uma carinha bonita ou um pouco de sedução.
- E acha que pode acontecer o mesmo comigo?
- Se você não se cuidar, pode sim. Gabriela é jovem, bonita, inteligente, assim como o seu amigo bonitão. Ainda mais hoje em dia, que tudo é mais fácil. Na minha
época, nós ainda tínhamos que fazer tudo às escondidas, mas hoje, o sexo é natural e ninguém se importa com quem dormiu com quem.
- Não fale assim, vovô. Gabriela não seria capaz de dormir com outro.
- Você não sabe as coisas que um coração magoado e desprezado é capaz de fazer.
- E Márcio é meu amigo.
- Que também tem um coração e, pelo que pude perceber, e ele até possa tentar negar, quase arrebenta quando fica perto da Gabriela.
- Você percebeu?
- Na hora do almoço. Por mais que ele disfarçasse, não conseguia tirar os olhos dela.
Eduardo silenciou. As palavras do avô só vinham confirmar suas suspeitas. Então, Márcio estava mesmo interessado em Gabriela, e qual era a mulher que não gostava
de ser cortejada? Aquele pensamento o encheu de ódio. Olhou ao redor, procurando-os, e só então se lembrou de que ela havia lhe dito algo sobre ir dar um mergulho
na praia. Levantou-se apressado e correu até a amurada, procurando-os na areia lá embaixo. Impossível encontrá-los no meio da multidão e àquela distância.
- Vou lá embaixo procurá-los - disse, voltando para perto do avô. - Daqui a pouco estarei de volta.
- Não se preocupe comigo. Mas não vá brigar com ninguém, viu?
- Pode deixar.
Deu um beijo na testa do avô e saiu, remoendo ainda as suas palavras. Tinha que manter a cabeça fria e não se precipitar. Afinal, tudo podia ainda estar apenas na
intenção. Não acreditava que Gabriela e Márcio fossem capazes de traí-lo, mas, como dissera o avô, uma troca não seria propriamente uma traição. E ele tinha que
reconhecer que andava meio distante ultimamente. Fosse como fosse, tentaria lhe dar mais atenção.
Com esses pensamentos, atravessou a portaria do prédio e saiu.



Capítulo 11



O olhar de espanto e dor de Tália, que acompanhava esses diálogos do mundo espiritual, demonstrava claramente que aquelas revelações eram desconhecidas para ela,
deixando-a transtornada e confusa.
- Você não sabia? - indagou Sílvia.
- Não - respondeu com olhos úmidos, esforçando-se para não parecer excessivamente chocada. - Jamais poderia imaginar que Honório e Cristina tinham dormido juntos
enquanto eu vivia.
- Há muitas coisas que você não sabe, não é, Tália? Nunca se preocupou em descobrir nada. Viveu na vida espiritual alheia ao mundo em que trilhou sua jornada de
carne, como se ela nunca tivesse existido.
- Será que é errado tentar apagar o passado?
- Quem sou eu para dizer o que é certo ou errado? Mas o passado existe para nos auxiliar a cultivar o que foi bom e a modificar o que nos trouxe sofrimento.
Se você esquece, nega que viveu. Se não viveu, não experienciou, e sem as experiências, como definir o que deve ou não ser aproveitado ou modificado?
Tália encarou Honório com profundo pesar e se aproximou dele lentamente. Ao sentir a sua presença, os olhos dele encheram-se de lágrimas, e a sua lembrança invadiu-lhe
a mente. Como estaria sua amada? Não sabia se acreditava em vida após a morte, mas, durante todo aquele tempo, jamais sentira a presença dela como agora sentia.
Por mais que se lembrasse dela e que lhe chamasse o nome, ela nunca o atendera.
Naquele momento, a lembrança da amada voltou forte em seus pensamentos. Mais do que isso, uma sensação estranha, uma presença familiar parecia envolvê-lo como uma
bruma espessa. Era uma sensação tão forte que chegava quase a ser palpável, e Honório estendeu as mãos para frente, buscando tocar o invisível. Sem querer, atravessou
o corpo astral de Tália, que lhe registrou as vibrações e segurou-lhe as mãos com as suas, beijando-as sem quase as tocar.
A troca de fluidos foi tão intensa que, por uma pequenina fração de segundos, Tália fez-se visível a Honório, que estacou bestificado e balbuciou confuso:
- Tália...
De onde estava Diana escutou o seu apelo e olhou para ele com um misto de raiva e espanto.
- O que foi que disse papai?
- Sua mãe... Estava ali... Eu a vi.
- Você está ficando caduco. Não há ninguém ali.
- Mas eu a vi!
- Foi impressão. Viu uma das empregadas e se confundiu.
- Não, não! Era sua mãe, tenho certeza.
- Você andou tomando sol demais, papai. Ou será que bebeu às escondidas?
- Não estou bêbado! Vi Tália perfeitamente, como estou vendo você. Foi rápido, mas eu vi.
- Chega dessa bobagem! Isso é coisa da sua cabeça. Eu bem que desconfiava que sua esclerose está piorando.
- Deixe-o em paz - intercedeu Douglas, que também ouvira o chamado de Honório.
- Mas ele anda falando sandices!
- Ouça Diana, que mal pode haver? Se ele diz que viu Tália, deixe-o com sua visão. Não está prejudicando ninguém.
- Prejudica a cabeça dele.
- Não seja tão dramática nem implicante. Você está é com raiva porque seu pai ainda pensa em sua mãe.
- Será que vocês dois podem parar de discutir por mim? - contrapôs Honório. - Sei muito bem o que vi e não preciso de ninguém para me chamar de caduco ou louco.
- Ninguém está dizendo isso, Honório.
- Estão sim, os dois. Cada um a sua maneira. Mas não faz mal. Tália esteve mesmo aqui, eu sei, e não me importa se vocês acreditam ou não.
Com certa dificuldade, Honório se levantou da cadeira e foi caminhando vagarosamente em direção à escada que dava acesso à parte interior do apartamento. Enquanto
descia as escadas, Tália ia acompanhando-o, com Sílvia a seu lado. Chegaram è sala, e ele se sentou numa poltrona defronte à varanda. Pousou a cabeça no encosto,
cerrou os olhos e suspirou:
- Sei que era você, Tália. Eu vi.
Quase no mesmo instante, adormeceu, e Tália se afastou dali com Sílvia, para evitar que ele a visse novamente e ficasse ainda mais confuso. Em poucos minutos, estavam
na praia, acompanhando Eduardo, que caminhava pela areia escaldante.
- Não podemos ajudá-lo? - indagou Tália, preocupada com o ar transtornado do rapaz.
- Eduardo está se deixando levar pelo ciúme, atraindo criaturas de baixo padrão vibratório. É preciso que ele abra os olhos para as verdades eternas da alma e lute
contra esse sentimento daninho. Caso contrário, irá cada vez mais sintonizar com esses espíritos, poderosos aliados de sua mãe, e dar acesso a todo tipo de influência
perniciosa.
- Como disse? Esses espíritos são aliados de Diana? Como assim?
- Diana e Gabriela são inimigas de outra vida. Eduardo já foi marido de Gabriela, até que conheceu Diana e, apaixonado por sua beleza, deixou-se por ela seduzir
e tornou-se seu amante. Após algum tempo, a beleza vazia e fútil de Diana acabou cansando-o, e ele rompeu esse relacionamento, voltando para os braços da esposa.
Diana nunca se conformou. Movida pelo ódio e o ciúme, tirou a vida de Eduardo numa discussão e comprometeu-se a voltar como sua mãe, a fim de não apenas lhe devolver
a vida tirada, mas também de respeitar-lhe as escolhas e aprender a amar Gabriela.
- Não sei se ela vem fazendo isso muito bem, não é? Pelo que pude perceber, está muito empenhada em infernizar a vida da menina.
- Não nos cabe julgá-la, Tália. Diana procura fazer o melhor que pode, embora o apego excessivo a Eduardo lhe dificulte um pouco o raciocínio.
- E esses espíritos que você chama de seus aliados? Como foram se ligar a ela?
- Acompanham-na de outras vidas e se alimentam das vibrações densas emanadas por sentimentos inferiores. Como é esse o seu alimento, esforçam-se para levar Eduardo
a manter-se na mesma sintonia, reforçando, assim, a sua fonte de energia primitiva. E Eduardo, imprevidente e descuidado, vai-se entregando ao ciúme desmedido, fortalecendo-os
cada vez mais, fazendo exatamente aquilo que esperam dele.
- Mas então, ele não tem culpa! São esses espíritos inferiores que o levam a sentir isso.
- Culpa, propriamente, ele não tem. Ninguém é culpado por sentir, porque sentimento não se domina nem se fabrica. Mas não foram esses espíritos que se ligaram a
ele para induzi-lo a sentir ciúmes. Foi o ciúme de Eduardo que os atraiu, criando entre eles uma conexão que vai se fortalecendo à medida que ele dá vazão a esse
sentimento. No dia em que Eduardo conseguir educar o sentimento, vigiando seus pensamentos e exercitando o verdadeiro amor em seu coração, a sintonia será rompida,
e esses seres, privados do alimento que os vivifica, vão deixá-lo de lado e partirão em busca de outro encarnado que sirva melhor aos seus propósitos.
- E Gabriela? Será que gosta mesmo dele ou vai se envolver com Márcio?
- Sobre isso, não nos é dado especular. A vida deles somente a eles pertence.
- Mas Eduardo gosta tanto dessa moça!
- Deveria então se preocupar mais com ela, ao invés de gastar todo o seu tempo tentando desvendar a sua vida, Tália.
- É verdade. Ele tem verdadeira fixação em mim, não é mesmo?
- Isso não devia ser motivo de orgulho para você. O rapaz não sabe a ligação que vocês tiveram e pode ficar chocado com o que descobrir.
- Como assim? Nós já tivemos alguma ligação no passado?
- Só uma forte ligação pode explicar a adoração que ele tem por você.
- Mas eu não me lembro!
-
- Você mesma apagou da mente as lembranças. Quando quiser, vai se lembrar.
Tália não disse mais nada, mas começou a sentir-se inquieta com relação a Eduardo. Uma sensação de familiaridade a invadiu, e ela percebeu que realmente o conhecia.
Restava saber quando e de onde.

***

Eduardo pisava a areia quente da praia com uma quase fúria, olhando para todos os lados em busca de Gabriela e Márcio. Cumprimentou alguns amigos e pensou em perguntar-lhes
se os haviam visto, mas não queria que falassem que sua namorada estava perdida na praia com outro. Chegou mais para a beira e procurou na água. O mar, naquele dia,
estava um pouco mais manso do que o usual, e ele finalmente os avistaram mais no fundo, além da arrebentação. Sentiu um bolo no estômago ao ver Gabriela subindo
nas ondas, talvez impulsionada pelos braços de Márcio que, provavelmente, se prendiam ao redor da sua cintura.
Largou os chinelos ali mesmo, na beira, e se atirou na água com violência, espargindo pingos por todos os lados. Algumas senhoras que se banhava na beirinha se queixaram,
mas ele nem teve tempo de se desculpar. Movimentou os braços e as pernas e saiu vencendo as ondas, nadando o mais rápido que podia na direção dos dois. Parou quase
ao lado deles, fincou os pés no chão e ergueu a cabeça, sacudindo os cabelos e arregalando os olhos.
Gabriela logo o viu. Ergueu os braços acima do nível do mar e deu um mergulho vigoroso, emergindo com o corpo praticamente colado ao seu. Sem nada dizer, apertou-o
de encontro a si e deu-lhe um beijo ardoroso e salgado, que ele correspondeu com sofreguidão. Uma onda mais alta os apanhou de surpresa e os levou para cima, cobrindo
parte de suas cabeças, separando seus corpos e desfazendo seu beijo. Gabriela surgiu no meio da água e sorriu com alegria, voltando para junto dele. Passou os braços
ao redor de seu pescoço e disse com sinceridade:
- Que bom que você veio, Edu! Estava morrendo de saudades.
- Por que não me chamou para vir com vocês?
- Eu avisei que vinha. Por que não nos acompanhou?
- Não gosto que você fique sozinha com outro homem. Ainda mais nessa intimidade toda.
Olhou de soslaio para Márcio, que se mantivera afastado, observando-os em silêncio.
- Deixe de bobagens, Edu. Márcio é nosso amigo.
- Pelo visto, está se tornando mais seu do que meu.
- Será possível que você esteja mesmo com ciúmes? - virou-se para o amigo, que se mantinha afastado, e chamou: - Venha, Márcio! Venha se juntar a nós.
Meio constrangido, Márcio se aproximou. Cumprimentou Eduardo com um aceno de cabeça e falou desajeitado:
- Acho que vou sair um pouco, Gabi. Aproveitar o restinho do sol.
- Já? - tornou Eduardo, em tom irônico. - Logo agora que eu cheguei você vai embora? Por quê? Estou atrapalhando alguma coisa?
Apesar de notar o ar debochado de Eduardo, Márcio não entrou em sua sintonia. No fundo, compreendia o ciúme de Edu. Embora ele e Gabi não estivessem fazendo nada
de mais, em seus pensamentos, via-se abraçando a moça, beijando-a, transando com ela. E isso, para ele, equivalia a uma traição. Não tanto como a física, porque
sequer ousara tocá-la. Mas seus sentimentos para com ela cresciam cada vez mais, e estava ficando difícil disfarçar aquele amor.

Por isso, movido pela culpa, afundou a cabeça na água e, ao levantar, esfregou os olhos e contestou:
- Não, Edu. Sou em que estou sobrando aqui.
Aproveitou uma onda e saiu num jacaré, indo parar quase na beira. Eduardo desviou os olhos dele, centrando a atenção na namorada. Ela estava com um olhar de tristeza
indefinível, que ele traduziu como pena pelo afastamento de Márcio, mas que, na verdade, retratava o pesar que sentia por sua desconfiança.
- Por que falou assim com ele? - perguntou baixinho. - Não estávamos fazendo nada de mais.
- Você o está defendendo muito, não acha? Dá até para desconfiar.
- Desconfiar de quê? - ele não respondeu. - Vamos, Edu, pode falar. Do que você está desconfiado? De que Márcio e eu temos um caso? É isso?
Mal conseguindo sustentar o seu olhar, Eduardo desviou os olhos para o horizonte e respondeu envergonhado:
- Não. Confio em você, mas não sei se poderia dizer o mesmo de Márcio. Ele está interessado em você.
- Não diga uma coisa dessas.
- Sei o que estou dizendo e duvido muito que você não tenha percebido. Sei como as mulheres são espertas para essas coisas.
- E daí? E se ele estiver interessado em mim? Isso não quer dizer nada.
- Como não? É uma traição. Ele é meu amigo, devia me respeitar mais.
- Ele não fez nada para desrespeitar você.
- Ele a ama!
- Se isso for mesmo verdade, mais um motivo para confiar nele. Márcio é um homem decente e seria incapaz de qualquer atitude menos digna. Se realmente me ama, é
em silêncio que o faz, porque nada deixa transparecer e me trata com distância e respeito.
- Distância, sei! Eu os vi lá da areia. Ele estava com as mãos na sua cintura, não estava? Aproveitando o balanço do mar para tocar em você.
- Seu ciúme o faz ver coisas demais. Em nenhum momento Márcio encostou as mãos em mim.
- Pensei tê-los visto juntinhos, pulando as ondas.
- Estávamos próximos, não juntinhos.
- Por quê?
- Para que pudéssemos conversar sem ter que gritar.
- Sobre o que conversavam?
- Ah! Não! Recuso-me a lhe dar esse tipo de satisfação. Você não tem o direito de tentar controlar as minhas conversas.
- Não estou querendo controlar nada. Só quero saber sobre o que falavam. Será que isso tem alguma coisa de mais?
- Se fosse por mera curiosidade, com certeza que não, nem eu veria qualquer problema em lhe contar. Mas o que você quer é me controlar, e isso, não vou permitir.
- Está brigando comigo, Gabriela? Por causa de Márcio, vai brigar comigo?
- Foi você quem começou. E não estou brigando, estou me posicionando. É diferente.
Notando o seu aborrecimento, Eduardo voltou atrás. Estava se roendo de ciúmes, mas se brigasse com ela, aí sim é que Márcio se aproveitaria para conquistá-la. Tinha
certeza de que o outro estava apenas esperando uma oportunidade para se aproximar, dando uma de bonzinho, oferecendo-lhe o ombro amigo para chorar. Não iria lhe
dar essa chance.
- Vamos para a areia - cortou ele, puxando-a pela mão em direção à beira da praia.
Gabriela apertou a mão dele e esticou o corpo sobre a água, deixando que ele a puxasse. Em poucos minutos, estavam fora. Eduardo procurou por Márcio, mas não o encontrou
e deduziu que ele havia ido para casa.
- Márcio foi embora - disse Gabriela. - E eu também já vou.
- Agora não, Gabi. Vamos até lá em casa. Você pode tomar banho no meu banheiro, e eu lhe empresto uma bermuda.
- Não, Edu, obrigada. Já está ficando tarde, e eu preciso descansar para a prova de amanhã.
- Que pena. Pensei que pudéssemos nos curtir um pouquinho.
- Você sabe que não gosto que fiquemos juntos na sua casa. Sua mãe não aprova.
- Já sou um homem crescido, Gabi, e você, uma mulher adulta. Minha mãe não manda nas nossas vidas.
- A casa é dela, e acho que ela tem todo o direito de não gostar.
- Está me dispensando, não é? Por quê? Está pensando em outro?
- Vou fingir que não ouvi o que você disse. E agora, se me der licença, vou para casa. Tenho prova amanhã cedo e quero descansar.
- Vai descansar agora? Ainda não são nem seis horas!
- Por favor, Edu, estou cansada.
- Mas eu quase não fiquei com você hoje.
- Porque não quis. Preferiu gastar a tarde conversando com seu avô sobre sua avó.
- Você fala que eu sou ciumento, mas é você quem está com ciúmes da minha avó.
- Quer saber mesmo, Eduardo? Não tenho ciúmes da sua avó, não, porque seria ridículo sentir ciúmes de um fantasma. Estou é ficando cheia dessa sua fixação, porque
você se esquece de mim quando o assunto é Tália e depois se acha no direito de vir me cobrar coisas, como se eu é que não lhe desse atenção.
- Não é bem assim, Gabi...
- Vamos deixar essa conversa para outro dia. Como disse, estou cansada e tenho prova amanhã.
Deu-lhe um beijo rápido nos lábios, apanhou a saída de praia e saiu a passos largos. De onde estava Eduardo ficou observando-a se afastar, intimamente maldizendo-se
por ter dado vazão a seu ciúme.
Ao chegar a casa, a mãe o esperava na sala, lendo uma revista de modas.
- Vovô já foi? - indagou ele, notando o silêncio e o vazio no ambiente.
- Já sim - largou a revista no sofá e chamou-o com as mãos, fazendo com que ele se sentasse a seu lado. - E você, Eduardo? O que o está preocupando?
- Preocupando-me? Nada.
- Não venha tentar me enganar. Sou sua mãe e O conheço muito bem.
- Não estou tentando enganá-la, mas é que não há nada mesmo. Acho que estou um pouco cansado. Vou tomar um banho e ver um pouco de televisão no meu quarto.
- Seus amigos desistiram de ver DVD com você? Onde eles estão?
- Foram embora.
- Nem os vi sair. Não se despediram nem nada.
- É que foram dar um mergulho na praia e resolveram não voltar.
- Na praia? Ora essa, por que não usaram a piscina?
- Não sei.
- Que bobagem a deles, não é, meu filho? Podiam ter ficado aqui na piscina, junto de todo mundo, mas preferiram ficar sozinhos lá na praia. Será que estávamos atrapalhando
a conversa deles?
Por mais que tentasse, Eduardo não conseguiu disfarçar o desagrado, que Diana também notou muito bem.
- Não é nada disso, mamãe...
- Ah! Deixe para lá. Afinal, são amigos há muito tempo e devem ter lá os seus motivos.
- Que motivos?
- E eu é que sei? Vai ver, queriam conversar algum segredo.
- Você acha?
- Já disse que não sei, mas é natural que amigos troquem confidencias.
- Gabriela não precisa de ninguém para se confidenciar. Tem a mim.
- E Márcio? Também tem você?
- Tem.
- Ah! Meu filho, não ligue para isso. Vamos, vá tomar o seu banho. Está manchando o tapete.
Em silêncio, Eduardo partiu para o seu quarto, ainda remoendo as palavras da mãe. Será que ela havia desconfiado de alguma coisa? Seria possível que Gabriela e Márcio
estivessem de caso? Terminou o banho e, com a toalha enrolada na cintura, apanhou o telefone e discou o número da casa dela. Foi à irmã quem atendeu, e ele pediu
para falar com Gabriela.
- Ela ainda não chegou Edu - disse Eliane, do outro lado da linha. - Pensei até que estivesse aí com você.
- Não. Nós nos despedimos na praia, mas eu queria falar com ela.
- Quer que eu peça para ela ligar para você quando chegar?
- Não... Não é preciso.
Agradeceu e desligou. Pensou em ligar para o seu celular, mas tinha medo de que alguém mais atendesse. Largou o fone na base e se vestiu. Ligou a televisão e tentou
concentrar a atenção no filme que estava passando, até que, não conseguindo mais se conter, tornou a apanhar o telefone e discou, dessa vez para a casa de Márcio.
Foi ele mesmo quem atendeu, e Eduardo desligou em seguida. O que iria lhe dizer? Tentando não pensar mais naquilo, foi até o armário do banheiro e apanhou um comprimido
para dormir. Engoliu-o sem água e tornou a se deitar na cama. Em breve, as pálpebras começaram a pesar, até que, finalmente, adormeceu.




Capítulo 12





As provas na faculdade haviam terminado, e Gabriela estava sentada em seu quarto, conferindo as questões dos exames, quando Eliane bateu à sua porta.
- Posso entrar?
- Já está dentro - respondeu Gabriela, de bom humor. - Suas provas já terminaram?
- Graças a Deus!
- As minhas também.
- Pois é. Por isso vim procurá-la. Não gostaria de ir ao centro espírita hoje, de novo?
- Ah! Não sei Eliane. Acho que aquela sessão não fez bem ao Edu.
- Não diga isso. Escutar um pouco de doutrina, tomar um passe, beber água fluidificada... Desde quando isso faz mal a alguém?
- Não é por causa disso. Refiro-me à expectativa que Edu criou com relação à comunicação com a avó. Como não aconteceu, ele ficou frustrado.
-
- Isso vai passar. Com o tempo, Eduardo vai compreender que, às vezes, pode não ser bom tentar descobrir o passado e talvez desista dessa idéia.
- Você acha?
- Por que não liga para ele e o convida?
Eduardo adorou a idéia de voltar ao centro espírita. Estava louco para ir lá novamente, tinha esperanças de tornar a ver a psicóloga e apanhar o número do seu telefone.
- Passo aí na sua casa às sete e meia - falou animado, desligando em seguida.
Chegaram ao centro cinco minutos depois de iniciada a sessão. Sentaram-se num banco mais atrás e assistiram em silêncio. Como da outra vez, nada aconteceu. A avó
de Eduardo não mandava nenhuma mensagem, nenhum sinal de que estivesse por ali.
- Vai ver, ela já reencarnou - arriscou Gabriela. - Afinal, faz cinqüenta anos que morreu...
- Tudo é possível - esclareceu Eliane. - Nesse momento, não temos como saber.
- Que pena! - lamentou-se Eduardo. - Daria tudo para saber o seu paradeiro e a nossa ligação.
- Não tem jeito, Edu. Ela não parece estar disposta a se comunicar, e precisamos respeitar o seu momento.
- Jeito, tem - ouviram uma voz dizer do outro lado.
Todos se voltaram ao mesmo tempo e deram de cara com Janaína, que escutara tudo o que haviam dito.
- Você está nos espionando, é? - censurou Eliane.
- É claro que não. Ouvi o que diziam por acaso.
- Que jeito você acha que tem? - interveio Eduardo, interessado.
- Já ouviu falar em terapia de vidas passadas?
- Janaína, por favor - objetou Eliane -, gostaria que respeitasse as determinações de seu Salomão e não fizesse propaganda aqui.
- Não estou fazendo propaganda de nada. Quero apenas esclarecer o rapaz.
- Não precisamos de seus esclarecimentos - protestou Gabriela, com certa irritação. - Venha, Edu, vamos embora.
Por mais que Eduardo quisesse ficar e conversar com Janaína, Gabriela saiu puxando-o pelo braço, dando ainda a ela tempo de meter-lhe nas mãos um cartãozinho. Eduardo
apertou a mão e enfiou-a no bolso, largando ali o cartão amassado. Chegaram ao carro rapidamente, com Gabriela reclamando do atrevimento de Janaína.
- Deixe para lá - aconselhou Eliane. - Ela é uma pobre coitada que se acha melhor do que os outros só porque cursou uma faculdade de psicologia.
- Seu Salomão devia era proibir a entrada dela no centro, isso sim.
- Ele só não fez isso ainda porque sente pena dela e tem esperanças de que ela se emende.
- Emendar! Gente assim não muda nunca.
- Não devemos julgar Gabi. Todos nós temos nossos defeitos.
Continuaram a conversar, e Gabriela estava tão indignada com a atitude de Janaína que nem percebeu o silêncio de Eduardo. Por sua cabeça, mil coisas se atropelavam.
Fora mesmo ao centro com a esperança de reencontrar Janaína e, por um golpe de sorte, conseguira o que queria: estava de posse de seu cartão e poderia procurá-la
quando quisesse.
Já passava das onze horas quando chegou a casa. Acendeu a luz do abajur, retirou do bolso o papelzinho amassado, desdobrou-o cuidadosamente e fixou os olhos nos
telefones que ali estavam grafados. Havia dois convencionais, provavelmente da casa e do consultório, além de um celular. Ficou contemplando o cartão por alguns
minutos, até que apanhou o telefone. Apertou o botão para ligá-lo e comprimiu o dedo sobre o primeiro número. Hesitou. Será que deveria ligar àquela hora? Janaína
lhe dera o cartão no centro, não havia muito tempo, e não deveria ainda estar dormindo. Decidiu-se. Apertou os botões no fone e discou o número do seu celular.
Ela atendeu no segundo toque e logo reconheceu a voz de Eduardo.
- Mas que surpresa, meu rapaz! Não pensei que fosse me ligar tão cedo.
- Quero que me perdoe por ligar a essa hora, Janaína, mas é que fiquei extremamente interessado no que você me falou.
- Sobre terapia de vidas passadas?
- Sim.
- Tem interesse em alguma coisa em particular?
- Tenho.
- Em quê?
- Bem... - titubeou. - É que gostaria de saber que ligação tive com certa pessoa.
Fez-se um silêncio momentâneo do outro lado da linha, até que, finalmente, Eduardo a ouviu responder:
- Muito bem... Como é mesmo o seu nome?
- Eduardo.
- Muito bem, Eduardo. Façamos o seguinte: vá ao meu consultório amanhã, e verei o que posso fazer por você.
- O endereço é esse aqui no cartão?
- Esse mesmo. Sete horas, está bom para você?
- Estarei lá.
No dia seguinte, Eduardo mal conseguia esconder a ansiedade. Foi um custo concentrar a atenção no trabalho, e Márcio, várias vezes, teve que ir a seu socorro para
que não fizesse nenhuma besteira.
- O que deu em você hoje? Parece que está no mundo da lua.
- Não é nada, estou bem.
- Alguma coisa com a Gabi?
A forma íntima com que Márcio falava de sua namorada encheu-o de raiva, mas ele não tinha tempo para aquilo. No momento, o mais importante era a consulta que teria
com Janaína dali a algumas horas.
- Gabriela está ótima - respondeu de mau humor. - Nosso namoro está ótimo.
Afastou-se para não brigar, deixando Márcio com a sensação de que ele já sabia de seu amor por ela. Márcio sentiu-se mal com aquela idéia e pensou em procurar o
amigo para justificar-se, mas qual seria a desculpa para o que sentia?
O resto do dia pareceu arrastar-se. Quando finalmente Eduardo se liberou do trabalho, passavam poucos minutos das seis horas. Apanhou o carro e quase voou para o
consultório de Janaína. Chegou adiantado e deu o nome à secretária, que o fez sentar-se na sala de espera, um cômodo pequenino e escuro, num prédio antigo no centro
da cidade. As paredes amareladas ostentavam apenas um retrato com o vidro embaçado. Eduardo forçou a vista e leu abaixo do rosto austero: C. G. Jung.
A consulta anterior demorou mais do que o normal, e ele entrou dez minutos atrasado. Cumprimentou Janaína meio sem jeito e observou o ambiente em que se encontrava.
Como a ante-sala, o consultório era escuro e ostentava as mesmas paredes amarelecidas, só que sem qualquer quadro ou ornamento.
- Não repare na simplicidade do ambiente - disse ela, em tom de desculpa. - A vida de uma psicóloga nem sempre é fácil. Ainda mais se dedicando à área que escolhi.

- Refere-se à TVP?
- Sim. Nem todo mundo acredita nisso. Você acredita?
Eduardo levantou os ombros em sinal de dúvida e acabou por dizer:
- Acho que sim.
- Ótimo. Porque o primeiro passo para o sucesso do nosso trabalho é a sua crença nos resultados. Se você não acreditar que será bem-sucedido, nada poderei fazer
por você.
- Eu acredito - falou, mais para si mesmo do que para ela.
- Muito bem. Antes de começarmos, algumas informações são necessárias. Primeiro: minha secretária lhe deu o preço da consulta?
- Não. Esqueci-me de perguntar.
- Cobro R$ 250,00 por consulta, que você deverá pagar independente dos resultados.
Normalmente, o valor da consulta era R$ 90,00, mas, como Eduardo parecia um homem rico, Janaína resolveu cobrar-lhe um pouco mais.
- O preço não é problema - anunciou ele, ansioso para começar.
- Muito bem. Não questionar o preço é um bom começo, porque as questões materiais interferem sobremaneira no meu trabalho. Segundo: você assume o compromisso de
não comentar nada do que se passar aqui com ninguém no centro de seu Salomão. Ele não alcança o valor do que faço.
- Como quiser.
- Terceiro: tudo o que acontecer com você é responsabilidade sua. Se não gostar do que vir, o problema é seu. Vou levá-lo ao passado por sua própria vontade e não
quero que você venha me culpar se as lembranças forem dolorosas ou insuportáveis para você.
- Sem problema.
- Você é um bom rapaz. Gosto de lidar com gente que não fica questionando tudo.
- A única coisa que quero Janaína, é relembrar o passado.
- O quê, mais especificamente?
- Quero saber que relações tive com a minha avó.
- Sua avó?
- Sim. Não a conheci, mas não paro de pensar nela.
- Fale-me sobre isso.
Durante os vinte primeiros minutos, Eduardo pôs-se a falar das conversas que tinha com o avô sobre a avó, da ossada que descobrira, do exame de DNA, da admiração
que sentia por ela e da certeza que possuía de que já haviam sido amantes. Janaína escutou tudo com interesse, até que, em dado momento, diminuiu a luz da sala,
acendeu um incenso e colocou um CD, que ficava repetindo uma música monótona, acompanhada do som de sinos.
- Muito bem - disse ela, empurrando-o gentilmente para que se deitasse no sofá. - Agora, quero que você relaxe. Relaxe e inspire profundamente pelo nariz, soltando
o ar lentamente pela boca.
Ele ia obedecendo ao seu comando e sentiu que o corpo todo relaxava. Uma sonolência começou a pesar sobre seus olhos, e pensou que fosse adormecer.
- Ótimo, Eduardo, agora quero que você se imagine entrando num elevador e apertando um botão qualquer do painel. Pode fazer isso?
- Posso.
- Que número apertou? - ele hesitou, mas ela insistiu: - Que número apertou Eduardo?
- É um número estranho.
- Pode parecer estranho, mas não é. O painel mostra os anos, de 2005 para trás. Por isso, diga: qual foi O ano que você escolheu?

- 1990.
- Imagine agora que o elevador está descendo e, a cada andar, recua um ano de sua vida. Vai descendo, descendo, até parar no ano de 1990. O que você vê?
- Não quero ver nada em 1990.
- Acalme-se, estamos apenas começando. Deve haver algo importante em sua vida nessa data. O que é?
- Nada, não há nada...
De repente, como que num flash, Eduardo se viu abrindo um baú na casa do avô e dele retirando uma fotografia antiga, que mostrava uma moça muito bonita, uma corista,
de lábios carnudos e sorriso sedutor.
- O que você vê Eduardo?
- Minha avó. É uma fotografia antiga da minha avó.
- Excelente! Mais alguma coisa? - ele não respondeu. - Mais alguma coisa, Eduardo?
A imagem havia se desfeito, e só o que ele via agora eram brumas cinzentas ao seu redor.
- Estou perdido... - balbuciou. - Não sei onde estou.
- Você está diante do elevador. Pode vê-lo?
- Sim.
- Entre nele e aperte o botão de cima. É o 2005. Você vê?
- Não quero voltar.
- Mas é preciso. Está na hora.
- Não, não quero voltar. Quero ir ao passado. Desesperado, Eduardo imaginou-se apertando o botão de 1800, data provável em que deveria ter vivido com Tália em alguma
vida anterior. Esperou que o elevador retrocedesse, mas nada aconteceu. Ao invés disso, ele continuava parado e, por mais que Eduardo forçasse o pensamento para
o ano de 1800, nada acontecia. Tudo o que lhe vinha à mente não passava da sua imaginação, que criava cenas em que ele dançava com Tália, passeava com ela de carruagem
e até em que transava com ela sobre uma relva verde. Por mais que tentasse dizer a si mesmo que aquilo eram lembranças de uma vida passada, seu coração sabia que
tudo não passava de mera fantasia, do seu desejo quase que desesperado de estar junto dela.
Começou a chorar descontrolado e já não registrava mais os comandos de Janaína. Abriu os olhos e sentiu uma forte tonteira, tentando acostumar a vista à penumbra
do ambiente. O cheiro do incenso causou-lhe náuseas profundas, e ele correu para uma porta que julgava ser a do banheiro. Era. Ajoelhou-se diante do vaso e vomitou,
lutando para retomar a lembrança da avó.
- Tenha calma, rapaz - ouviu Janaína dizer. - Procure se reequilibrar.
Apanhou o copo de água que ela lhe estendia e sorveu tudo de um só gole. Ajudado por Janaína, ergueu o corpo e foi sentar-se no diva, afundando o rosto entre as
mãos.
- Eu a perdi - choramingava. - Estive pertinho dela e a perdi.
- Você está sendo muito afoito. Ninguém consegue relembrar tudo na primeira vez.
- Mas eu podia! Se você não tivesse me chamado, eu podia ter me encontrado com ela.
- Não é assim que as coisas funcionam. Precisamos ir devagar.
- Por quê? Por que não posso relembrar tudo logo de uma vez? Quero que você me leve de volta. Pago outra consulta, o que for, mas leve-me de volta.
- Primeiro: não vou levar você a lugar algum. Você não saiu daqui em nenhum momento. Apenas a sua mente viajou. Segundo: vou fazer as coisas do meu jeito, não do
seu. Terceiro: se não está satisfeito, pode arranjar outra psicóloga.
-




- Não, não... Não se ofenda, por favor. Perdoe-me. Não me mande embora. Faço o que você quiser, mas, por favor, não me mande embora.
Ela não tinha a menor intenção de despedi-lo. Ele representava dinheiro fácil, do qual Janaína não podia abrir mão. Seus métodos podiam não ser os mais éticos, mas
ela era boa no que fazia. Não entendia por que ainda não enriquecera. Conhecia muitos terapeutas que dariam tudo para conseguir os resultados que ela obtinha em
tão pouco tempo. Era boa, mas não conseguia se firmar. Por quê?
Porque, para Janaína, o uso de suas técnicas não representava nada além de promissora fonte de renda. Não que fosse errado querer ganhar dinheiro com a sua profissão.
Afinal, estudara e se preparara para aquilo, e tinha tudo para dar certo. Ela era inteligente e dotada de uma sensibilidade extrema, mas não sabia colocá-la a serviço
do bem. Limitava-se a induzir os pacientes a relembrar o passado, sem se preocupar com o aspecto moral e psíquico de todo o processo.
Por isso, sua carreira não progredia. Quando encarnara, assumira o compromisso de auxiliar pessoas que necessitassem da terapia de vidas passadas para se reajustarem
com elas mesmas. Comprometera-se a aliar seus métodos científicos à amorosidade espiritual, orientando os pacientes a buscar uma luz em si mesma. Para tanto, fora
encaminhada ao centro espírita, onde obteria os valiosos ensinamentos que poderia passar aos clientes em forma de conselhos e ensinamentos. Se desempenhasse sua
tarefa com cuidado e amor, o dinheiro fluiria em sua vida de forma abundante, como retribuição material pelo seu esforço e merecimento. Mas, no momento em que Janaína
elegeu o dinheiro como sua única meta, deixando de lado a finalidade do seu serviço, toda a corrente de abundância que poderia envolvê-la se desfez, restando-lhe
apenas elos minguados e de pouco valor.
- O que você tem? - indagou Gabriela, notando o acabrunhamento de Eduardo.
- Nada - foi à resposta seca.
Ela não insistiu. Havia alguns dias que Eduardo andava estranho, quase não falava e mal a tocava. Aquilo a estava matando. Por mais que tentasse se interessar pelos
seus assuntos, ele não lhe dava nenhuma brecha. Vivia carrancudo e mal-humorado. Não queria mais sair nem ir à praia, nem ao cinema. Ao centro espírita então, nem
pensar. Saía para o trabalho e voltava para casa irritado, sem falar nada com ninguém.
Os dois estavam sentados num barzinho comendo uma pizza e bebendo sangria, e Gabriela tentava, a todo custo, interessá-lo em alguma conversa. Mas não havia nada
que o prendesse, e tudo o que ela dizia só servia para irritá-lo.
- Por que não vamos para outro lugar? - sugeriu ela em tom sedutor, alisando-lhe as mãos.
- Deixe de ser oferecida, Gabriela! - censurou ele, puxando as mãos com fúria.
Ela sentiu o rubor cobrir-lhe as faces, e lágrimas vieram-lhe aos olhos.
- Oferecida? - indignou-se. - Até parece que nunca transamos.
- Mas eu não gosto de mulheres que ficam se oferecendo. Gosto de tomar a iniciativa.
- Desde quando você tem essas frescuras?
- Desde que comecei a reparar no seu assanhamento com... - calou-se abruptamente, desviando os olhos de seu rosto.
- Com quem? Vamos, Edu, pode falar. Assanhamento com quem?
- Não interessa.
- Interessa, sim. Já que começou a falar, vá até o fim.
Ele ainda vacilou por alguns minutos, mas o ódio que o consumia falou mais alto. Precisava descarregar a sua frustração sobre alguém. Já fazia um mês que freqüentava
o consultório de Janaína e, até aquele momento, nada havia acontecido. Só se lembrava de passagens sem importância de sua infância, nada que pudesse ligá-lo à avó.
Por mais que se esforçasse, nenhuma lembrança de Tália aparecia. Só a fantasia que sua mente imaginosa criava e que ele descartava após alguns instantes de reflexão.
E Gabriela ainda vinha irritá-lo com sua sedução barata. Como é que ela podia pensar naquelas coisas, quando ele se consumia de desejo de se lembrar das vidas que
vivera com a avó? Ainda gostava de Gabriela, mas ela estava passando dos limites. Vivia a aborrecê-lo com seus dengos, tentando convencê-lo a transar com ela. Mas
ele não queria! Não queria devotar a ela o amor que sentia por Tália.
Olhando para ela, sentiu vontade de fazê-la sofrer. Os espíritos que o cercavam lhe incutiam toda sorte de pensamentos menos dignos a respeito de Gabriela, incitando-o
à desconfiança. Já nem sentia mais ciúme de Márcio. O que antes fora ciúme agora se transformara em ódio. Pensou em terminar tudo com ela, mas ainda havia algo em
seu coração que os unia. Alguém precisava pagar pelo seu sofrimento, e Gabriela era perfeita. Escutou a sua vozinha irritante a penetrar-lhe os ouvidos como uma
flecha e terminou por disparar:
- Quer mesmo saber, Gabi? Não suporto mais o seu assanhamento com Márcio. Há dias venho notando o seu comportamento e o dele. Quantas vezes vocês já transaram?
- Ficou louco, Edu? Eu nunca tive nada com Márcio!
- Duvido muito. Você adora se oferecer para os outros, não é mesmo? E Márcio é um aproveitador. Vai usar você o quanto puder e depois vai descartá-la feito lixo.
Sem acreditar no que ouvia, rosto ardendo em fogo, Gabriela se levantou aos tropeções, derrubando a jarra de sangria sobre a mesa e disparando em direção à saída.
- Cadela! - murmurou Eduardo. - Ainda desperdiça o meu vinho.
Aos prantos, Gabriela saiu para a rua. Eduardo a apanhara em casa, de forma que ela estava sem carro. Não podia nem apanhar um ônibus, porque a condução ali era
bem escassa. Com o peito roído pela mágoa, tirou o celular da bolsa e ligou para a casa de Márcio. Ninguém atendeu, e ela tentou o seu celular. Atendeu a caixa postal,
e ela deixou um recado desesperado para que ele lhe ligasse. Cinco minutos depois, o rapaz telefonou:
- Gabi? O que houve? Você está com uma voz!
- Oh! Márcio! Foi o Edu! Você não faz idéia das coisas horríveis que ele me disse.
- Vocês brigaram?
- Hã, hã.
- Onde você está?
- Na rua. Você pode vir me buscar?
Por alguns instantes, Márcio hesitou. Estava jantando com uma garota e teve que ir ao banheiro para telefonar. Contudo, não podia deixar de atender a um pedido de
Gabriela. A moça com quem estava era linda, e fazia já algum tempo que queria chamá-la para sair. Mas Gabriela era dona do seu coração, e não havia mulher no mundo,
por mais bonita que fosse que o afastasse dela.
- Dê-me o endereço. Em meia hora, estarei aí.
Ela estava perto da praia e foi caminhando para um quiosque conhecido, onde ficaria aguardando-o. Márcio deu uma desculpa esfarrapada para a moça e levou-a para
casa, rumando em disparada ao encontro de Gabriela. Encontrou-a sentada a uma mesinha, bebendo uma Coca-Cola.
- Oi - cumprimentou ele, sentando-se ao seu lado e notando os seus olhos vermelhos e inchados. - Quer me contar o que foi que houve?
Entre um soluço e outro, Gabriela narrou a Márcio tudo o que se passara entre ela e Edu, desde as insinuações a respeito deles dois, até as coisas horrorosas que
lhe dissera.
- Ele enlouqueceu Márcio. Anda estranho, quase não fala comigo. Por que me tratou desse jeito? O que foi que lhe fiz?
- Eduardo está doente, Gabi. Só ele é que não percebe.
- Doente de quê? Só se for da cabeça.
- Acho que é isso mesmo. No trabalho, anda desligado e confuso, não faz nada direito, e o chefe já está até reclamando.
- Não sei mais o que fazer para ajudá-lo. E depois do que ele me disse hoje, nem sei se ainda quero.
- Ele gosta de você.
- Se gostasse, jamais teria dito aquelas coisas. Ofendeu-me e me magoou.
- Tente compreender, Gabi. Eduardo está confuso.
- Fiz o máximo que pude Márcio, mas também tenho meu amor próprio. Edu passou dos limites.
- É uma pena. Vocês pareciam um casal tão feliz!
- Éramos até essa tal de Tália entrar em nossa vida. Foi ela quem virou a cabeça dele.
- Você não sabe o que está dizendo. Essa mulher já morreu há mais de cinqüenta anos. Como pode culpá-la pelo comportamento de Edu, se ele nem a conheceu?
- Oh! Márcio tem razão. Já nem sei mais o que digo. Sinto-me tão sozinha e arrasada!
- Não precisa se sentir assim. Lembre-se de que sou seu amigo e estou do seu lado para o que der e vier.
- Aprecio a sua amizade, mas não sei se seria justo me aproveitar dela assim.
- Por quê? Será que eu não sirvo para ser seu amigo?
- Não é isso...
- O que é então?
Ela estava visivelmente sem graça, mas acabou falando o que pensava:
- Não quero que pense que sou pretensiosa, Márcio, mas já tem algum tempo que noto o seu interesse por mim. Não é verdade?
Agora foi ele quem ficou confuso e envergonhado, como uma criança surpreendida com o pote de biscoitos na mão.
- Gabi, eu... Não dá mais para esconder, não é?
- Acho que nunca deu. E Edu também já notou.
- Eu sei. Pelas coisas que diz, pelo jeito como me olha, é visível o seu ciúme, embora eu nada tenha feito que pudesse desagradá-lo.
- Seu coração fala tão alto que é impossível não ouvir.
- Só posso dizer que lamento Gabi. Quisera eu poder escolher a mulher por quem me apaixonar. Jamais teria escolhido a namorada do meu melhor amigo.
- Não sou mais namorada dele.
- Isso vai passar, tenho certeza, e vocês vão ficar bem de novo.
- Você é um homem maravilhoso - declarou, afagando sua mão por cima da mesa. - E é por isso que não acho justo aproveitar-me de sua amizade, agora que tenho certeza
dos seus sentimentos por mim.
- Será que você nunca vai se apaixonar por mim?
- Nunca é um tempo longo demais para se medir. Digamos que, no momento, embora ferida e magoada, meu coração ainda pertence a Edu. Vou fazer de tudo para tentar
esquecê-lo, mas não posso me envolver com outro homem por enquanto. Não estaria sendo honesta comigo nem com você.
- Não estou lhe pedindo isso nem vou lhe cobrar nada. Só o que peço é a sua amizade, assim como estou lhe oferecendo a minha.
Ela sorriu e apertou sua mão. Queria muito apaixonar-se por ele, mas não podia mandar no seu coração. Por mais que Eduardo a tivesse magoado, precisava ser honesta
consigo mesma e admitir que era a ele que amava.

***

Depois que Gabriela se foi do barzinho, Eduardo pagou a conta e saiu trôpego, resultado da enorme quantidade de vinho que ingerira. Sem que percebesse, sombras cada
vez mais espessas se aproximavam dele, deixando-o tonto e confuso. Seus pensamentos embaralhados só pensavam em duas coisas: reencontrar o passado perdido com Tália
e vingar-se de Gabriela e Márcio por terem-no traído.
Apanhou o carro e foi para casa, mal enxergando o caminho por onde passava. Por sorte, não provocou nenhum acidente e chegou a salvo. Entrou fazendo ruído e derrubando
coisas, indo direto para o quarto. A mãe estava acordada e, ouvindo aquela barulheira, correu para ver o que estava acontecendo.
- Meu filho! - exclamou assustada. - O que foi que houve?
- Nada, mãe - respondeu, a voz pastosa e engrolada. - Quero dormir.
- Você está bêbado.
- Novidade!
- Aconteceu alguma coisa, se aconteceu. Vamos, quero saber o que foi.
- Não foi nada.
- Foi a Gabriela, não foi?
- Não fale no nome daquela vadia na minha frente!
- Eu sabia. Ela andou aprontando, não foi?
Ele começou a balançar a cabeça vigorosamente, de um lado para outro, e foi falando de forma atropelada:
- Ela estava me traindo, mãe, me traindo! A mim, que sempre fiz tudo por ela. E sabe com quem? Com o Márcio. Ela e o Márcio, meu melhor amigo, bem debaixo do meu
nariz!
- Eu bem que lhe avisei que essa menina não prestava, mas você não quis me ouvir. E agora, veja só no que deu.
- Ah! Se minha avó estivesse viva...
- O que sua avó tem a ver com isso, menino?
- Ela saberia me consolar, me abraçar, me seduzir...
Não conseguiu terminar a frase, pegando no sono instantaneamente. Diana não compreendia o que ele queria dizer com aquele me seduzir e ficou extremamente intrigada.
Onde já se viu uma avó seduzindo o neto? Resolveu não ligar. Ele bebera demais e não sabia o que dizia. Descalçou-lhe os sapatos e tirou suas calças, deixando-o
só de camisa e cuecas, ligou o aparelho de ar condicionado, desligou o seu celular e o telefone. Apagou a luz e fechou a porta, voltando rapidamente para seu quarto.
Assim que fechou a porta do quarto, Tália se aproximou da cama em que Eduardo estava deitado e afagou-lhe os cabelos. Sílvia havia imantado o ambiente, de forma
a não permitir o acesso das sombras que o acompanhavam, e ele agora dormia tranqüilo.
- Pobre menino - comentou Tália, com pesar. Não sabe o que está fazendo.
- Ele foi avisado para não buscar ajuda com Janaína. Apesar de possuir a técnica da terapia de vidas passadas, falta-lhe elevação moral para complementá-la.
- E veja só no que deu. Ficou mais perturbado do que já estava.
-

-
- Janaína apenas lhe deu os meios para trazer à tona a fixação que antes já sentia por você. Em assim o fazendo, abriu ainda mais as portas para os espíritos menos
esclarecidos, que se associaram a ele para sugar-lhe as energias.
- Tudo isso é culpa minha. Jamais devia ter permitido que ele se embrenhasse nessa aventura.
- Você nada podia fazer. Foi decisão dele de buscar o passado.
- Talvez, se não tivesse me aproximado, ele acabasse me esquecendo.
- Não se culpe Tália. A ligação entre vocês foi muito forte.
- Sei disso, Sílvia, e não creio que seja bom para ele descobrir. Não está preparado.
- Você se lembra?
- Lembrei-me numa daquelas sessões da psicóloga. Acho que também eu regredi.
- Se você se lembra, tente ajudá-lo a superar. Se ele insistir, vai acabar se lembrando também e, como você mesma disse, não está preparado para isso.
- Farei o que puder para que ele não sofra.
- Pois então, para começar, junte-se a mim em oração. Vou dar-lhe um passe e depois partiremos.
- E aqueles espíritos? Não vão penetrar aqui?
- Por enquanto, o ambiente está protegido.
Fizeram juntas uma breve oração, pedindo equilíbrio e serenidade para Eduardo. Em seguida, após espargir mais fluido benéfico no ambiente, Sílvia deu a mão a Tália
e partiram juntas, deixando Eduardo entregue a seus sonhos e lembranças latentes.




Capítulo 13


Uma chuvinha miúda começava a cair do céu quando Eduardo deixou o consultório da psicóloga. Coração oprimido, foi andando pela rua como se nada estivesse vendo.
Caminhava com pressa, dando passadas pesadas, sem ver aonde ia. Esbarrou em um senhor troncudo, que o encarou com antipatia e resmungou um palavrão. Mas Eduardo
não ouvia. Trazia no peito a lembrança da última sessão com Janaína, perguntando-se o que faria agora que descobrira a verdade. Então fora para isso que se esforçara
tanto? Fora para se deparar com aquela verdade que ele se dedicara a Tália de corpo e alma?
Chegou ao local onde havia estacionado o carro e entrou. Deu partida ao motor e foi guiando até sua casa, correndo feito louco. Entrou com o carro na garagem e saiu
a pé, em direção a um bar conhecido seu. Sentou-se sozinho a uma mesa e começou a beber, remoendo as lembranças que praticamente o haviam espancado momentos antes.
Quanto mais pensava, mais bebia. Depois de muito tempo, tendo gasto seu último tostão, levantou-se cambaleando e foi para casa.
Entrou sem trocar uma palavra com ninguém e tomou o caminho do quarto, apoiando-se nas paredes para não cair. A mãe dava ordens para o jantar e chamou assustada:
- Eduardo! Aconteceu alguma coisa, meu filho?
Ele não respondeu. Parou e olhou para ela com profunda mágoa. Abaixou os olhos e foi direto para o quarto.
- Mas o que será que deu nesse menino?
A criada deu de ombros e não respondeu. Curiosa, Diana deixou-a sozinha e foi atrás do filho. Bateu várias vezes, mas ele não atendeu. A maçaneta da porta estava
trancada, e ela o chamou insistentemente, sem nenhum sinal de sua parte. Encostou o ouvido na porta, e o ruído do chuveiro ao longe informava que ele estava no banho.
Não fazia mal. Voltaria mais tarde.
Debaixo do chuveiro, Eduardo deixou que a água batesse com força sobre a sua cabeça, tentando refrescar os pensamentos. Estava confuso e atordoado, e uma raiva intensa
ia tomando conta dele. Então fora assim que Tália lhe pagara o seu amor? Tratando-o daquele jeito, levando-o àquela morte horrenda e ingrata? Sempre achara que ele
e Tália haviam vivido um amor forte e sincero, daqueles que atravessam os tempos, e que agora se encontravam separados por algum motivo que lhe escapava à compreensão.
Só não podia esperar... Aquilo!
O ódio começou a consumi-lo, e nem percebeu as estranhas sombras que se colavam a ele. Soltos pelo consultório de Janaína, esses espíritos ficavam à espera de alguém
a quem pudessem se associar, alimentando-se dos sentimentos difíceis que ali eram liberados. E as vibrações de ódio de Eduardo funcionaram como um ímã, atraindo-os
para junto de si e deixando o rapaz cada vez mais confuso e perdido. Eram mais espíritos a perturbá-lo, além dos muitos que já atraíra com o seu ciúme e a bebida.
Enquanto isso, em seu consultório, Janaína meditava sobre o que acontecera. Eduardo saíra dali extremamente transtornado e revoltado. Mudara do amor ao ódio em questão
de segundos, e, pior, acusando-a de ser a responsável pelo seu infortúnio. Mas ela não era responsável. Não fora ela quem criara aquela situação. Vira-se como amante
daquela atriz famosa em uma vida mais remota e assustara-se ao constatar que estivera envolvido com ela havia menos de cem anos.
Efetivamente, o rapaz não estava preparado para descobrir aquelas verdades. A cena do assassínio fora muito forte, e ela ainda se lembrava dos gritos lancinantes
que ele dera ao ver-se ingerindo o veneno. Contudo, não havia nada que ela pudesse fazer. Antes do início de cada sessão, alertava-o sobre sua escolha, eximindo-se
de qualquer responsabilidade pelo que ele recordasse. As conseqüências do que ele via eram seu problema, não dela. Não assumira o papel de psicóloga, propriamente,
mas apenas de uma terapeuta que o auxiliava a ver o passado.
Com essa sua atitude, Janaína abria as portas de seu consultório não apenas aos clientes imprevidentes, mas a espíritos ávidos por uma presa que lhes alimentasse
os sentimentos menos dignos. Nada disso ela via. Julgava-se isenta de qualquer responsabilidade e nem sequer de longe imaginava que seu consultório servia de morada
para aqueles espíritos sombrios. No centro, seu Salomão tentara alertá-la, mas ela nunca lhe dera ouvidos, julgando que ele queria impedir o seu trabalho por pura
ignorância. Não conseguia perceber que Salomão apenas buscava fazer com que ela enxergasse o perigo de uma regressão sem um acompanhamento psicológico e espiritual
sério. Para ela, o dirigente do centro não a compreendia e, por isso, tinha medo do que ela fazia, achando que mexia com espíritos das trevas ou fazia feitiços.
Todas as vezes que pedira para fazer parte daquele centro, seu Salomão lhe dissera que a condição para que fosse aceita seria estudar mais sobre a vida espiritual
e sobre seu próprio ofício, porque, enquanto psicóloga, deveria se preocupar mais com o bem-estar de seus pacientes, evitando fazer com eles experiências perigosas.
Deveria se preparar mais para realizar a TVP, a fim de alcançar maturidade e equilíbrio para orientar e confortar os pacientes após as regressões, auxiliando-os
a compreender as dificuldades do passado e a transformá-las em algo útil para sua vida futura.
Mas nada disso Janaína queria fazer. Tinha preguiça de estudar e achava que nenhum espírito se intrometeria em seu consultório. Por mais que seu Salomão falasse,
não acreditava que os sentimentos difíceis liberados ali funcionassem como ímãs para espíritos em sofrimento, ainda mais para aqueles já ligados aos clientes por
algum motivo. Para ela, psicologia e espiritismo possuíam princípios distintos e estanques, e não conseguia perceber que todas as coisas estão interligadas, servindo
umas de suporte às outras. Não há na vida compartimentos estanques, porque tudo o que se faz agita as emoções, e as emoções não ficam limitadas a uma só pessoa ou
a um só momento de vida.
Nenhum dos pacientes que ajudara a regredir voltara para lhe dizer como se sentia com relação a tudo o que vira. Em geral, continuavam a freqüentar as sessões até
descobrirem o que queriam, para depois se afastar para sempre. Alguns ainda prosseguiam por mais algum tempo, mas depois também acabavam sumindo. Em todos os seus
quinze anos de profissão, ninguém jamais voltara para reclamar de nada, o que a levava a crer que estava tudo bem. Mas será que estaria mesmo?
Com Eduardo, as coisas pareciam diferentes. Saíra dali transtornado e abalado, como ninguém jamais saíra. Ela ainda tentou fazer com que ele ficasse e se acalmasse
um pouco, mas ele não quis lhe dar ouvido. Pagou a consulta e deixou o consultório chispando fogo, dizendo que fora traído por aquela mulher que amara com paixão
e loucura. Janaína ainda pensou em lhe dizer que aquela mulher fora sua avó e estava morta, mas desistiu, com medo de que ele a agredisse. E depois, não era problema
dela. Cumprira o trato que fizera com ele. Se quisesse saber mais alguma coisa, que a procurasse. Se não, que não aparecesse mais.

***

Tália e Sílvia presenciaram a tudo sem nada poder fazer. As recordações ainda estavam muito vividas na mente de Eduardo, e não foi preciso muito esforço para ele
se lembrar.
- Ele está me odiando! - indignou-se Tália. - Não fiz nada, e ele me odeia!
- Ele se lembrou de apenas uma parte da história esclareceu Sílvia. - Não sabe o que aconteceu realmente.
- Mas devia saber. Depois que desencarnou, deve ter visto a verdade.
- Em espírito, ele viu só que se esqueceu. No momento, pensa que já viu tudo o que havia para ver. Deu-se por satisfeito com essa lembrança dolorosa e interrompeu
o tratamento.
- Mas ele só recordou parte da história! Preciso lhe contar o restante. Vou esperar que durma e lhe direi.
- Ele não vai nem ouvir você. Vê as sombras que o acompanham? - ela assentiu. - Pois elas vão formar uma barreira entre vocês dois, e Eduardo não vai nem perceber
a sua presença. Só o que vai sentir é mais e mais ódio.
- Isso não está certo! Eduardo vai ficar obsidiado?
- Vai ficar envolvido pelos afins que atraiu, que só conseguirão incutir-lhe o ódio porque o seu coração já está cheio desse mesmo ódio. Na verdade, eles vão apenas
reforçar um sentimento pelo qual Eduardo se deixou envenenar.
- O que posso fazer Sílvia? Não posso ficar aqui parada e permitir que ele me odeie por algo que eu não fiz.
- Vamos rezar Tália.
- Não! Rezar só não adianta. Preciso fazer alguma coisa - pensou alguns segundos e acrescentou: - Vou pedir a ajuda de Honório.
Encontraram Honório recostado na cama, lendo um livro. Assim que entraram, ele percebeu a sua presença, embora não soubesse definir o que sentia. Tália se aproximou,
e ele pousou o livro sobre o colo, lembrando-se da última vez em que a vira. Ela estava doente e furiosa, gritando com ele e com Cristina por causa de Mauro.
- Eu estou aqui, Honório - sussurrou ela.
Como que ouvindo as suas palavras, Honório respondeu em voz alta:
- Não, Tália, você nunca mais vai voltar para mim.
Honório julgava falar consigo mesmo, ignorando a presença da ex-amante. Enxugou duas discretas lágrimas e jogou o livro para o lado, deitando-se na cama. Estendeu
a mão e apagou a luz do abajur, dormindo logo em seguida. Não tardou muito e o corpo fluídico de Honório se desprendeu parcialmente da matéria física, deixando-a
plácida sobre a cama. Por uns instantes, ele pareceu confuso, mirando a mulher bonita que tinha diante de si. Olhou dela para Sílvia e para seu corpo, sem nada entender.
- Estou sonhando?
- Nem uma coisa, nem outra - respondeu Sílvia. Você está parcialmente liberto do corpo físico que, nesse momento, se encontra adormecido.
- Quem são vocês? - tornou ele, pouco impressionado com os esclarecimentos de Sílvia.
- Não me conhece, Honório? - retrucou Tália. Não sabe mais quem eu sou?
- Você se parece com alguém que conheci há muitos anos e que já morreu.
- Quem?
- Tália Uchoa.
- Pois sou em mesma, Honório! Não se lembra?
Com olhar incrédulo, Honório fitou-a, lembrando-se de que a vira na casa da filha.
- Vi você outro dia... - balbuciou. - Mas não quis acreditar... E continuo não querendo.
- Por quê? Sou eu mesma, vim aqui para vê-lo.
- Tália morreu há mais de cinqüenta anos. Seu espírito jamais apareceu para mim.
- Estou aparecendo agora.
- Não acredito. Você é alguém que se parece com ela, mas não pode ser ela. Tália se esqueceu de mim, apesar de todo o amor que lhe devotei.
- Quero que me perdoe Honório... - calou-se, a voz embargada.
Nesse momento, Sílvia achou que já era hora de intervir:
- Por que não acredita nela, Honório? Tália desencarnou e esteve um tempo reclusa, preparando-se para este momento.
- O que ela quer comigo?
- Pedir a sua ajuda - foi à própria Tália quem respondeu.



- Minha ajuda? Para quê? Não vejo o que possa fazer por você.
- Por mim, não. Por nosso neto.
Aquele nosso neto tirou-o de seu torpor, e ele a fitou com menos desconfiança.
- Edu? O que tem ele?
- Está correndo perigo, distanciando-se das verdades da alma.
Ele a olhava curioso, sem saber se acreditava ou não no que ela dizia. No entanto, ela falava que Eduardo estava em perigo, e aquilo já era suficiente para fazê-lo
interessar-se.
- O que posso fazer?
- Convença-o a se tratar, a procurar ajuda espiritual.
- Não sei se acredito nessas coisas.
- Está falando comigo, não está?
- Não sei com quem estou falando.
- De qualquer forma, aconselhe-o. Convença-o a buscar ajuda espiritual.
Honório ficou ali parado ao lado da cama, fitando-a com um misto de dúvida e esperança. Queria muito que aquela mulher diante dele fosse mesmo a sua Tália, mas temia
estar sendo vítima de algum tipo de alucinação senil. Pensou por alguns minutos, até que tornou a indagar:
- Por que está tão interessada em Eduardo?
- Porque me preocupo com ele. É meu neto.
- Então, você não é mesmo Tália. Tália nunca se preocupou com ninguém.
Sem esperar resposta, Honório deu-lhe as costas e voltou imediatamente para o corpo físico, que estremeceu, e ele abriu os olhos. Esfregou-os vigorosamente e se
levantou, caminhando em direção à cozinha. Apanhou um copo de água e sentou-se à mesa, lembrando-se vagamente do sonho que tivera, com alguém que lhe dizia ser Tália.
Não podia ser.
Uma coisa, porém, conseguira reter na mente: a súplica de Tália para que ajudasse Eduardo. Sem nem se lembrar da conversa que haviam tido, esse pedido ficara gravado
em seu inconsciente, e ele, sem querer, pegou-se pensando no neto, preocupado com algo que pudesse estar lhe acontecendo.
Do lado invisível, Sílvia dizia a Tália, magoada com as últimas palavras de Honório:
- Ele não falou sério. Está sob a impressão das lembranças que tinha quando chegamos, de você esbravejando com ele e Cristina. De toda sorte, conseguimos alcançar
o nosso objetivo aqui.
Embora frustrada com aquela recepção, Tália sentia-se grata e reconfortada. A preocupação com o neto e o desejo de ajudá-lo havia ficado gravada na memória de Honório,
que já pensava em procurá-lo. E era isso o que importava.

***

Eduardo ouviu o telefone na mesinha de cabeceira tocar insistentemente, forçando-o a sair do torpor causado pelo sono e o excesso de bebida da noite anterior. Pegou
o fone com fúria e falou em tom pude:
- Alô!
- Edu? É você? Está com a voz diferente.
- Sou eu mesmo. Quem é que está falando?
- É a Gabriela. Está tudo bem com você?
- Gabriela? O que você quer?
- Saber como você está. Você sumiu...
- Eu estou bem. Ocupado, mas bem.
- Ando preocupada com você. Não tem ido à praia nem apareceu mais no centro espírita. Por que não tem me ligado?
- Não tenho mais o que falar com você.
- Edu, por favor... - replicou ela, em tom de quase súplica. - Vamos conversar e esclarecer alguns mal-entendidos.
- Não há nenhum mal-entendido.
- Você está pensando coisas a meu respeito que não são verdades. Não fiz nada...
- Ouça Gabi, não estou pensando nada - cortou ele, rispidamente. - E depois, o que você faz ou deixa de fazer não é problema meu. Não temos mais nada um com o outro.
Dessa vez, ela não conseguiu se conter e começou a chorar, lutando para não soluçar pelo telefone. Já ia dizer mais alguma coisa quando ouviu um até logo frio e
breve, e Eduardo desligou. Gabriela soltou o fone e atirou-se na cama, chorando convulsivamente, magoada com a forma como ele a tratara. A porta do quarto se abriu
e Eliane entrou assustada.
- Meu Deus, Gabi, o que foi que aconteceu?
- Foi o Edu, Eliane! Precisava ver o jeito como ele falou comigo ao telefone.
- Edu a está fazendo sofrer, não é verdade? - ela assentiu. - Você precisa sair um pouco, espairecer. Por que não vamos dar uma volta? Que tal uma compras?
- Não estou com vontade.
- Vamos ao Barra shopping. Não há nada melhor do que umas comprinhas para desanuviar a cabeça.
- Ah! Não tenho ânimo para compras.
- Vamos, Gabi, faça um esforço. Você se esquece um pouco do Edu e se distrai. Eu prometo, você vai ver.
Gabriela forçou um sorriso e acabou aceitando a sugestão da irmã. Não adiantava mesmo nada ficar em casa remoendo as grosserias de Eduardo. Ainda meio contrariada,
levantou-se e foi se aprontar, maquiando-se com cuidado para disfarçar os olhos de choro. Vestiu-se rapidamente e saiu.

***

Do outro lado da linha, Eduardo também soltava o fone, já arrependido pela forma como a havia tratado.
Afinal de contas, eles tinham namorado durante muito tempo, e o mínimo que ela merecia era um pouco de consideração. Pensou em lhe ligar de volta, mas as sombras
a seu lado fizeram uma pressão em sua cabeça, já enfraquecida por tantos pensamentos comprometedores, e ele atirou longe o fone, sentindo a raiva dominá-lo. Os espíritos
lhe sugestionavam toda sorte de idéias tenebrosas, fazendo-o lembrar-se do dia em que vira Gabriela e Márcio na praia, reacendendo o ciúme que sentira então.
Facilmente, Eduardo deixou-se dominar, envenenando seu coração com um ciúme doentio e irracional. Sentiu raiva de Gabriela e Márcio, mais até do que sentia de Tália.
A avó, ao menos, estava morta, enquanto que a namorada e o amigo o estavam traindo e rindo dele pelas costas. Como é que aquela vagabunda ainda se atrevia a lhe
telefonar? Será que não estava satisfeita com a humilhação que o fizera passar?
Pouco depois, o telefone tocou novamente, e ele correu a atendê-lo. Queria que fosse Gabriela, ao mesmo tempo em que o irritava a sua insistência. Apertou o botão
com fúria e respondeu aos gritos:
- Alô!!!
- Credo, Eduardo, o que foi que deu em você?
Era o avô, e Eduardo sentiu o corpo relaxar.
- Ah, vovô, como vai? Tudo bem?
- Eu estou bem, e você?
- Eu também.
- Não é o que parece.
- Não? Por quê?
- Você está com uma voz estranha.
- Não é nada. Bebi um pouco mais ontem à noite, nada de mais.
- Não sei não, meu filho, mas eu ando desassossegado, achando que algo com você não vai bem.


- Não se preocupe comigo, vovô, eu estou um pouco cansado, mas vou bem.
- Por que atendeu ao telefone com tanta raiva?
- Eu estava com raiva?
- Era o que parecia.
- Não foi nada. Já passou. E você, por que está me ligando?
- Quero falar com você. Acordei com um aperto no peito tão grande! Aconteceu alguma coisa? Foi com a sua avó?
- Não quero falar sobre isso - respondeu o rapaz, com visível irritação.
- Por quê? Antes, era só no que queria falar. O que foi que houve para você se voltar contra sua avó?
- Quem foi que disse que me voltei contra ela?
- O seu jeito de falar já diz tudo.
Ele hesitou por alguns instantes antes de responder:
- Não quero falar sobre isso, vovô. Só o que posso lhe dizer é que Tália foi, para mim, uma grande decepção.
- Como alguém que você nem conheceu pode decepcioná-lo?
- Não quero falar sobre isso, já disse.
- Você devia se cuidar mais, Edu. Está ficando muito rabugento. Desse jeito, quando chegar á minha idade, vai estar insuportável.
Eduardo riu do jeito do avô, esquivando-se de sua insistência, e desligou, não sem antes prometer visitá-lo no dia seguinte. Permaneceu ainda alguns minutos, com
o telefone na mão, até que ligou novamente para a casa de Gabriela. Foi à mãe quem atendeu e informou o de que ela havia ido ao shopping com Eliane. Ele agradeceu
e desligou. Tentou o celular, mas Gabi não atendeu. Ligou para o de Eliane, que não atendeu também. As duas, envolvidas com as compras e com o burburinho
das lojas, não escutaram os celulares tocando, e Eduardo acabou desistindo. Novamente, as
sombras se acercaram dele, reacendendo as vibrações de ciúme e despertando o desejo da bebida.
A sugestão do invisível surtiu o efeito desejado, e Eduardo foi para o bar de costume, onde os companheiros de sempre lhe deram as boas-vindas, tomou um lugar à
mesa, de frente para a rua, com a tulipa de chope na mão, e ia bebendo e conversando, rindo das piadas que os amigos contavam. As horas foram se passando, a noite
caiu, e Eduardo continuava sentado à mesma mesa, bebendo e beliscando petiscos. Os amigos se revezavam, indo e vindo, sem que ele resolvesse ir embora. Em dado momento,
ao erguer o copo, avistou um carro passando lentamente, diminuindo a marcha até parar no sinal, bem defronte a eles. Eduardo levou um choque. Dentro do carro, Gabriela
ia sentada, bem-vestida e maquiada, ao lado de um homem que ele deduziu ser o Márcio. Embora não visse o seu rosto, conhecia muito bem o seu carro e não tinha dúvida:
Gabi e Márcio continuavam a traí-lo.
Virou o rosto para o lado, tentando ignorá-los, mas uma onda de ciúmes começou a invadi-lo. Ao mesmo tempo em que bebia, ia imaginando-a nos braços do outro, o que
o encheu de ódio. Mas como sentia ódio, se fora ele mesmo quem terminara o namoro com ela? Gabriela estava apenas tentando levar a vida e esquecê-lo, porque fora
ele mesmo quem dissera que não a queria mais.
Só que ela o esquecia muito rápido. Ainda pela manhã, telefonara para ele, chorando e quase implorando que a encontrasse. E agora, poucas horas depois, já estava
no carro de outro, a caminho, provavelmente, de algum motel. Será que iriam a algum lugar que eles já haviam freqüentado? Será que Gabriela teria a cara de pau de
levar Márcio aos motéis em que costumavam se amar?
Aquele pensamento o inquietou, e ele perdeu o sossego. Talvez ainda desse tempo de segui-lo. Levantou-se apressado, quase derrubando o chope, e correu para a calçada.
O sinal abrira, e o carro de Márcio havia sumido no fim da rua. Aonde teriam ido? Pensou em apanhar seu automóvel e segui-los, mas seria perda de tempo. Àquelas
horas, provavelmente, já deviam estar chegando a algum motel, e ele não teria mais como os encontrar.
Voltou para o seu lugar, acabrunhado, e pediu mais um chope. Depois tomou outro, e outro, e outro, até não conseguir mais concatenar os pensamentos. Estava bêbado,
ele sabia, mas a sensação que a embriaguez lhe causava era fascinante. De madrugada, esgotado, pagou a conta e saiu cambaleante. Alguns amigos ainda quiseram ajudar,
mas ele recusou. Era um homem, não precisava de ninguém. Tropeçou no próprio calcanhar e desabou no chão, machucando o queixo na queda. Depois disso apagou.



Capítulo 14



Com olhos embaciados, Tália acompanhava a decadência do neto, embriagado e atirado sobre a cama, rodeado de sombras cinzentas e pouco amistosas.
- Temos que fazer alguma coisa! - suplicou ela.
- Vamos tentar a mãe - sugeriu Sílvia. - Diana pode ser uma mulher tempestuosa e arrogante, mas ama o filho o quer o seu bem.
Aproximaram-se dela, que fingia ler uma revista de modas no sofá, ao lado do marido, que lia o jornal com certa impaciência, consultando o relógio a todo tempo.
- Tem algum compromisso? - perguntou ela em tom mordaz.
- Nenhum - respondeu Douglas. - Por quê?
- Não para de olhar o relógio.
- É que estou com vontade de ir à praia.
- Você nunca vai à praia.
- Por isso mesmo. Hoje estou pensando em ir.
- Sozinho?
- Vou ver se Edu quer ir comigo.
- Eduardo não está bem. Deixe-o dormir.
- O que é que ele tem?
- Bebeu além da conta ontem à noite.
- Bebeu? Você quer dizer que ele chegou aqui bêbado? - ela assentiu. - Muito bêbado?
- Bom, alguns amigos o trouxeram para casa. Disseram que ele apagou. Mas não vejo motivos para se preocupar. Coisas de rapaz, você entende.
- Não entendo, não. Ele sempre foi um rapaz ajuizado e equilibrado. Nunca deu para beber, e agora volta para casa de cara cheia. O que será que está acontecendo?
- Acho que é aquela garota, a Gabriela.
- Eles brigaram?
- Parece que sim. Tudo indica que ela o trocou pelo Márcio.
- O quê? Não acredito.
- Pois é o que parece. Eu bem que avisei que ele andava de olho nela.
- Você teve algo a ver com essa história, Diana?
- Eu?! Mas que idéia é essa? Imagine se eu ia me intrometer na vida de meu filho.
- Imagine se não ia...
Enquanto os dois discutiam, Sílvia fez sinal para Tália, chamando-a para perto de Douglas.
- Ele é mais acessível. Um bom médium, ponderado e justo, ainda que não conheça os seus potenciais.
Facilmente, Douglas percebeu a influência de Sílvia, que o induzia a ir ao quarto do filho ver como ele estava passando. Douglas encontrou-o ainda dormindo e sentiu
uma leve tonteira ao se aproximar dele.
- Ele está péssimo! - reclamou. - Está com cara de bêbedo.
- Não precisa exagerar - objetou Diana, que vinha logo atrás. - Ele está apenas dormindo.
- Isso não está certo. Olhe só o jeito dele.
- Não vejo nada de mais. Apenas um rapaz adormecido.
Com o barulho, Eduardo acabou por despertar. Abriu os olhos lentamente, piscando várias vezes, bocejou e viu os pais parados perto dele. Demorou alguns segundos
até que compreendesse o que estava se passando. Recostou-se na cama, ainda sonolento e zonzo, esfregou os olhos e disse, com a voz um pouco pastosa:
- Está tudo bem? O que vocês dois estão fazendo aqui?
- Eu é que pergunto meu filho - era Douglas. O que é que você anda fazendo da sua vida?
- Eu? Nada. Quero dizer, o de sempre. Por quê? Aconteceu alguma coisa?
- Soube que você chegou bêbado ontem à noite.
- Bêbado? Ah! Aquilo? Não foi nada. Passei um pouco dos limites, é só.
Em quaisquer outras circunstâncias, o episódio teria passado despercebido, tratado apenas como um arroubo da juventude. Quem é que nunca havia tomado um porre na
vida? O próprio Douglas já havia bebido umas doses a mais, o que não era motivo de alarde. Por que é então que o estado de Eduardo lhe causava tantas preocupações?
Para qualquer pessoa, inclusive Diana, aquilo não passava de um episódio isolado, sem maiores conseqüências, resultado de alguma farra de rapazes numa noite de sábado.
Para Douglas, era algo além.
Na verdade, Sílvia lhe inspirava o perigo a que Eduardo se submetia. Mesmo sem compreender o que se passava com ele, Douglas captava vibrações de baixa intensidade
partindo de seu corpo. Não sabia definir o que era aquilo, mas uma apreensão muito grande foi tomando conta de seu íntimo, um indescritível medo de que o filho estivesse
se embrenhando por um caminho sem volta.
- Ele precisa da sua ajuda - soprava Sílvia em seu ouvido. - Está sendo vítima de espíritos perturbadores. Não pensa mais sozinho. Seus pensamentos estão sendo compartilhados
com criaturas daninhas.
- Você está estranho, Edu. Parece até que está mal acompanhado.
- O quê? - indignou-se Diana. - Acha que meu filho está endemoninhado?
- Não foi isso o que eu disse. Apenas estou achando-o esquisito.
- Ele está estranho - prosseguia Sílvia. - Está enfraquecido e não consegue dominar-se a si mesmo, de forma a afastar os perturbadores.
- O que posso fazer por ele? - respondeu Douglas mentalmente, julgando que respondia a seus próprios pensamentos.
- Conduza-o no caminho da oração. Procure um centro espírita.
- Você tem rezado meu filho?
- Rezado, eu? - espantou-se Edu. - Você sabe que eu nunca fui dessas coisas.
- Será que não era bom você ter algum tipo de religião?
- Eduardo é católico - interrompeu Diana. - Fez a primeira comunhão e tudo. Não se lembra?
Douglas não respondeu. Estava confuso com aqueles pensamentos. Ele mesmo nunca fora muito religioso. Por que agora cismara de pensar em oração?
- Levante-se daí, vamos. Está um lindo dia, e não é bom desperdiçar o tempo na cama.
- Ah, pai, hoje é domingo.
- Domingo é dia de missa! - irritou-se Diana, que nunca ia à missa. - Por que não vão à igreja, os dois?
- Isso mesmo - estimulou Sílvia. - Todo templo religioso é sagrado, e toda oração é ouvida por Deus.
- Sua mãe tem razão - concordou Douglas, para espanto de Diana. - Um pouco de oração não faz mal a ninguém.
- Ah, pai, essa não! Desde quando você gosta de missa?
- Se ele não quer ir à missa, leve-o à praia - prosseguia Sílvia. - O mar é grande repositório de energia e vai auxiliar a eliminar aquelas que o estão prejudicando.
- Hum... - fez Douglas. - Por que não vamos à praia?
- Você vai à praia?
- Se você quiser me acompanhar...
Eduardo quis. Subitamente, sentiu-se animado com a perspectiva de poder ir à praia em companhia do pai, algo praticamente inédito em sua vida. Diana não quis ir.
Tinha horror de pegar sol, pois temia estragar a pele. Os dois seguiram sozinhos. Levaram uma barraca e duas cadeiras, acomodaram-se na areia e puseram-se a conversar.
- Como vai sua namorada? - indagou Douglas, com cautela.
- Não tenho namorada - respondeu Eduardo de mau humor.
- Não? E a Gabriela? Não vá me dizer que vocês brigaram.
- Nós terminamos se é o que quer saber. Gabi agora está interessado em outro.
- Que outro?
- O Márcio.
- Não me diga! Ela disse isso a você?
- Não.
-
- Então, como é que você sabe? Você os viu juntos?
- Não preciso. Só de olhar para eles, dá para adivinhar o que estão fazendo.
- Quer dizer que você agora virou adivinho, é?
Irritado com o rumo que a conversa estava tomando, Eduardo se levantou da cadeira e retrucou, antes de correr para a água:
- Ah, pai, não me amole!
Douglas ficou observando-o entrar na água, pensando no que estaria acontecendo e qual seria a melhor forma de ajudar. Lembrou-se de que havia sugerido uma religião
e espantou-se consigo mesmo. Embora acreditasse em Deus, nunca seguira nenhuma religião nem pensara nisso mais a sério. Por que então fora dar essa idéia a Eduardo?
Estava perdido em seus pensamentos quando ouviu uma voz que o cumprimentava:
- Como vai, doutor Douglas?
Olhou para a dona da voz e ficou gratamente surpreso ao ver que era Gabriela.
- Olá, menina. Como vai você? Anda sumida lá de casa.
Ela sorriu meio sem jeito e respondeu:
- Tenho andado ocupada. E o Edu? Veio com o senhor?
- Ele está na água.
- Ah...! E ele está bem?
- Por que não lhe pergunta?
Eduardo vinha voltando, sacudindo os cabelos para secá-los um pouco. Viu Gabriela parada junto ao pai e contraiu o rosto, visivelmente contrariado.
- O que você está fazendo aqui? - indagou com azedume.
- Eduardo! - repreendeu o pai. - Isso são modos de tratar a moça? Ainda mais sendo sua namorada?
- Ela não é minha namorada - não esperou resposta, voltando-lhes as costas em seguida. - Vou dar uma caminhada.
Afastou-se a passos rápidos, deixando Gabriela com lágrimas suspensas nos olhos.
- O que está acontecendo entre vocês? - tornou Douglas, mostrando-se interessado.
- Ah, doutor Douglas, o senhor nem queira saber! Eu mesma não sei bem o que dizer.
Ela aceitou o lugar que ele lhe oferecia, na cadeira de Eduardo, e passou a narrar-lhe tudo o que vinha acontecendo com ele desde o dia em que descobrira a ossada
da avó. Contou de sua obsessão, do centro espírita e de sua mudança repentina, até a cisma que passara a ter de Márcio.
- Mas você e Márcio não têm nada um com o outro?
- Nadinha. Somos apenas amigos. Ele tem me dado a maior força nessa situação.
- Sei. E por que vocês não contam isso ao Edu?
- E o senhor acha que já não o fizemos? Acontece que Edu é cabeça dura e não acredita em nós.
- Estranho, muito estranho. Não combina com o temperamento do meu filho.
- Não combinava. Antigamente, Eduardo era alegre e gentil. Agora, tornou-se carrancudo, mal-humorado e desconfiado.
- Mas você deve ter alguma idéia do que esteja acontecendo, não tem?
Ela olhou para os lados, um pouco sem graça, até que retrucou:
- Quer mesmo saber?
- Se não quisesse, não estaria perguntando.
- Promete que não vai rir nem me chamar de tola?
- É claro que prometo.
- Bom, nós andamos indo ao centro espírita que minha irmã freqüenta, porque Edu cismou de ter notícias da avó.
- Como é que é?
- É isso mesmo. Eduardo achou que, indo ao centro, poderia se comunicar com o espírito dela. Acontece que ela não apareceu, e ele foi se frustrando. De repente,
desistiu de ir e foi ficando desse jeito esquisito.
- Não aconteceu nada nesse centro que pudesse tê-lo afetado?
- Que eu saiba, não.
- Ninguém que o tenha impressionado ou confundido?
- Não. Todos lá são muito legais... - parou abruptamente. - Só se... Mas não, não é possível.
- O que não é possível?
- Acho que não tem nada a ver.
Estimulada por Sílvia, a curiosidade de Douglas ia aumentando cada vez mais, enquanto ela lhe incutia a idéia de que estava no caminho certo.
- Talvez tenha - insistiu ele. - Por que não me conta?
- Bom, doutor Douglas, é que nós conhecemos uma moça que trabalha com TVP. Já ouviu falar em terapia de vidas passadas?
- Já.
- Pois é. Dizem que ela até que é boa nisso, mas é uma pessoa sem muita moral. Por isso, seu Salomão, que é o dirigente de lá, a havia proibido de arranjar clientes
nas dependências do centro.
- E você acha que meu filho teve contato com essa mulher?
- Ela o andou cercando lá no centro, mas eles nunca se encontraram fora dali.
- Tem certeza?
Ela hesitou:
- Bem, certeza, certeza, não posso ter. Edu nunca me falou nada a respeito.
- Curioso. Gostaria de conhecer essa mulher, Gabi. Pode me levar a esse centro?
- Posso.
- Em que dia funciona?
- Terça feira.
- Ótimo. Quero ir lá nessa terça mesma, se você puder ir.
- É claro que posso! Tudo o que puder fazer para ajudar Eduardo, esteja certo de que farei.
- Sei que você gosta muito dele, e ele, de você. É uma pena estragar esse amor por causa de uma bobagem.
- Oh, doutor Douglas, que bom que o senhor apareceu! Ao senhor, tenho certeza de que ele dará ouvido.
- É o que espero minha filha, é o que espero.
Gabriela saiu dali mais animada. O encontro com Douglas fora providencial. Ela nem estava pensando em ir à praia naquele dia, mas, de repente, sentira uma vontade
louca de dar um mergulho e tomar um pouco de sol. Ela não sabia, mas a influência benéfica do invisível havia provocado aquele encontro, que nada tinha de casual.

***

Na terça-feira, Douglas marcou de se encontrar com Gabriela no centro espírita. Anotou o endereço e, meia hora antes de iniciar-se a sessão, ele lá estava, sentado
na assistência, aguardando ansioso a chegada da moça. Dez minutos depois, ela entrou em companhia da irmã e foi cumprimentá-lo. Gabriela sentou-se a seu lado, enquanto
Eliane seguia para tomar seu lugar junto ao corpo de médiuns.
- Foi difícil encontrar a rua?
- Não. Achei-a com facilidade. E então? A tal moça está aí?
- Infelizmente, doutor Douglas, minha irmã me disse que Janaína não tem aparecido há algum tempo.
- Janaína? É esse o nome dela?
- É sim. Eliane ficou de ver com seu Salomão se ele tem o endereço do consultório dela.
Embora contrariado, Douglas teve que esperar até o final da sessão para ter alguma notícia de Janaína. Enquanto esperava, ia ouvindo a palestra de seu Salomão e
começou a interessar-se. Ele falava coisas bonitas, exortando os presentes a ser mais otimistas e amorosos. Falou do casamento e dos laços de família, levando os
ouvintes a refletir sobre a necessidade de amor e compreensão dentro do lar. Aquilo o agradou, e ele ficou tão interessado que nem sentiu o tempo passar. Logo chegou
a hora do passe, que ele experimentou pela primeira vez na vida, sentindo imenso bem-estar diante do médium simpático que o atendeu. Ao final da sessão, sentia-se
completo e mais feliz, pensando em Diana de maneira um pouco diferente da que estava acostumado a vê-la.
- E então? - perguntou Eliane, que se aproximava deles. - Gostou da sessão, doutor Douglas?
- Fiquei encantado!
Eles sorriram, e Eliane estendeu-lhe um papelzinho.
- É o telefone de Janaína. Ao menos, é o último de que seu Salomão tem notícia. Espero que a encontre.
- Irei procurá-la amanhã mesmo.
Saiu agradecido, disposto a telefonar para aquele número e marcar uma consulta. No dia seguinte, logo pela manhã, ligou para o número que seu Salomão lhe dera. Uma
moça atendeu, anunciando o consultório da doutora Janaína, e ele quase pulou de alegria. Queria marcar uma consulta para o mais breve possível. A moça disse que
havia um horário disponível naquele mesmo dia, às seis horas da tarde, e ele aceitou. Na verdade, Janaína tinha quase todos os horários livres, porque os clientes
iam minguando cada vez mais, e até a secretária ela teve que despedir.
Mal contendo a ansiedade, Douglas esperou à hora marcada. Quando chegou ao seu consultório, Janaína o recebeu com um sorriso, fazendo-o entrar diretamente em sua
sala.
- Não repare o atendimento - desculpou-se ela. - É que dei férias à secretária e não tive tempo de treinar ninguém para ficar no seu lugar, de forma que tenho que
me arranjar sozinha.
- Não se preocupe.
- Sente-se, por favor - esperou até que ele se sentasse, apanhou um caderninho e prosseguiu:
- Muito bem, Douglas, o que o trouxe aqui?
- Meu filho - respondeu ele prontamente.
- Está tendo problemas com seu filho?
- Não. Ele é que está com problemas.
- Que tipo de problemas?
- Não sei. É o que espero que a senhora possa me responder.
Janaína pousou o caderninho sobre o joelho e encarou o homem à sua frente. Será que ele ainda não compreendera que ela fazia terapia de vidas passadas? Não era conselheira
nem psicóloga, propriamente.
- Acho que você não está bem informado sobre o meu trabalho - continuou ela. - Sou psicóloga, mas trabalho com TVP, ou seja, terapia de vidas passadas...
- Sei muito bem o que a senhora faz, e é justamente por isso que resolvi procurá-la.
- Ah! Muito bem, vamos então fazer sua ficha primeiro.
- Isso não será necessário, doutora Janaína. Na verdade, peço que me perdoe se lhe dei a impressão de que seria um paciente. Não foi para isso que vim.
- Não? Mas você marcou uma consulta...
- Porque precisava muito falar com a senhora. Como disse, meu filho está com problemas, e pensei se a senhora não poderia nos ajudar.
- Quem não está entendendo sou eu, Douglas. Como espera que ajude seu filho se você não quer se tratar?
- Na verdade, pensei se ele não a teria vindo procurar.
- A mim? - ele assentiu. - Como se chama o seu filho?
- Eduardo Pompeu Leão. Freqüentava o centro de seu Salomão, que você também já freqüentou.
Ela soltou o bloco nervosamente e se levantou, pondo-se a caminhar de um lado para outro no consultório.
- Fiz o que ele me pediu - justificou-se. - Avisei-o de que a responsabilidade não era minha. Foi ele quem quis saber.
- Quer dizer então que ele esteve aqui?
- Esteve. Faz já alguns meses que sumiu. Isso acontece às vezes, depois que o paciente descobre o que quer.
- O que foi que ele descobriu?
- Não posso dizer. É segredo de profissão.
- Ora, vamos, doutora Janaína, já obtive informações suficientes a seu respeito para saber que a senhora pode ser tudo, menos profissional.
Ela mordeu os lábios com raiva e retrucou insegura:
- Não sei o que quer dizer com isso. Meus pacientes são todos maiores de idade e vêm aqui livremente. Que eu saiba, não há nada na minha conduta que possa ser considerado
não profissional ou antiético.
- Não estou aqui para julgá-la, doutora. Só o que me interessa é ajudar o meu filho.
- Lamento não poder fazer nada pelo senhor - arrematou ela com frieza, agora emprestando um tom excessivamente formal à voz.
- Pode fazer, sim. Pode me dizer o que foi que ele viu.
- Por que não pergunta a ele?
- Porque ele está confuso e agressivo. Não quer falar com ninguém.
- Se ele não quer lhe dizer, não serei eu a trair sua confiança. Não fui paga para isso.
Douglas olhou para ela com ar de desdém e meteu a mão no bolso, dele retirando a carteira. Abriu-a e começou a contar algumas cédulas. Depois, tirou um maço de notas
e colocou-o sobre a mesa, dizendo com desprezo:
- Aqui tem mil reais, doutora. Será que não é o suficiente pela sua confiança?
Ela hesitou um pouco, mas acabou apanhando as cédulas. Sem as contar, guardou-as na gaveta da mesa e se virou para ele:
- Muito bem, doutor Douglas. O que quer saber?
- Tudo. Quero que você me conte o que aconteceu com meu filho.
Com um suspiro profundo, ela narrou tudo o que acontecera a Eduardo desde que ali chegara, culminando com as últimas reminiscências de sua avó. Douglas escutou tudo
atentamente e ficou estarrecido com as revelações que ela lhe fizera. Não sabia bem se acreditava em tudo aquilo, mas algo em seu íntimo lhe dizia que era verdade.
Havia vida depois da morte, os espíritos sobreviviam à carne e depois retornavam para cumprir aquilo que ainda não tinham conseguido completar.
Saiu do consultório de Janaína completamente transtornado, sem saber bem que atitude tomar com relação a Eduardo. Falar com ele seria um desastre. Com Diana, então,
de nada adiantaria. Poderia ir procurar Gabriela novamente, e talvez ela lhe indicasse uma solução. A solução estava no centro espírita, uma voz lhe dizia. Era ali
que eles poderiam reunir forças e conhecimento suficientes para enfrentar aquela situação.
A sugestão de Sílvia foi bem aceita por Douglas, que se dispôs a procurar Gabriela e sua irmã o mais rápido possível.
- As coisas agora estão começando a melhorar - disse Tália.
- Graças a Deus, Douglas ouviu nossos conselhos. É um bom médium e tem tudo para explorar seus potenciais. Se resolver se dedicar ao trabalho mediúnico, vai poder
ajudar muita gente.
- Será que ele vai conseguir convencer Eduardo a ir?
- Não sei. Talvez o rapaz não lhe dê ouvidos, porque Douglas nunca foi religioso. De toda sorte, ainda temos Honório, e pode ser que seja mais fácil para ele, que
já anda mais em contato com o mundo sutil, convencer o neto.
- E nós, Sílvia? O que faremos agora?
- No momento, você precisa repousar. Está muito desgastada energeticamente.
- Tem razão. Os acontecimentos dos últimos meses têm me afetado muito.
- Vamos voltar para nossa cidade. Lá, você terá melhores condições de se refazer.
Num piscar de olhos, estavam de volta a sua cidade astral, e Tália se viu sentada em seu jardim, cercada das flores que espalhavam no ar um perfume suave e doce.
Sílvia não a acompanhara provavelmente presa a seus afazeres. Tália sentou-se no banco de sempre e aspirou aquele aroma delicado e prazeroso, lembrando-se de sua
última encarnação na terra. Tanto tempo havia se passado! Todos aqueles com quem convivera, à exceção de Honório, estavam agora desencarnados. Tinha ainda uma filha
que a odiava e um neto que não a compreendia. O que poderia fazer?
Sua vida sempre fora uma mar de turbulências, e ela, uma gotinha perdida naquele oceano de luxo e paixões. Onde estariam os que um dia disseram que a amavam? E Mauro?
Por onde andaria? Um dia ele lhe dissera que a amava, mas ela sabia que ele mentira. Mauro fora o único que realmente conquistara o seu amor, mas ela o perdera,
ou melhor, ele se fora. Ela muito sofrerá com a sua partida e mais ainda quando ele não retornara. Ainda podia ouvir o apito daquele navio, levando-o embora do Rio,
para nunca mais voltar à terra natal. Há quanto tempo fora aquilo? Quarenta anos? Cinqüenta? Sessenta? Mesmo perdida na esteira dos anos, a dor daquele momento lhe
avivava lembranças que jamais conseguiria apagar.




Capítulo 15





Quando Amelinha e Mauro desembarcaram no Rio de Janeiro, vinham cheios de sonhos e projetos a realizar. O teatro de revista estava em alta na capital, e as chances
da menina eram realmente muito boas.
- Você precisa se acostumar com seu novo nome - orientava Mauro. - De agora em diante, você se chama Tália Uchoa. Não se esqueça disso. A Amelinha que você conhecia
ficou lá em São Paulo. Aqui você é Tália, uma atriz glamorosa do teatro de revista. Entendeu?
Amelinha, ou melhor, Tália, limitou-se a assentir. Estava fascinada com a nova cidade, com suas luzes e cores e, principalmente, com o ar irreverente das mulheres.
- É tudo tão bonito, Mauro!
- É sim. O Rio de Janeiro é diferente de tudo o que você já viu em termos de arte.
- Nunca vi nada...

- Pois então, vai conhecer do melhor! E veja que chegamos à boa época. O carnaval está próximo, e a cidade está em polvorosa.
- Vamos brincar?
- Melhor, minha menina. Vamos nos engajar num bloco qualquer, ou num rancho, para você aparecer bem. Aposto como vai chamar a atenção.
- Bloco? Rancho? Não entendo nada disso.
- E nem precisa. É só arranjar uma fantasia e requebrar do jeito que você sabe.
Dito e feito. No domingo de carnaval, lá ia Tália em sua fantasia de colombina desfilando pela Avenida Central, no que se poderia chamar de projeto de escola de
samba. Para garantir a sua segurança, Mauro foi com ela. Acanhada a princípio, Tália quase não se mexia, assustada com os foliões e com a chuva de confetes e lança-perfumes
que se espargiam sobre ela. Mas Mauro a incentivava, pegava a sua cintura e rodopiava com ela, envolvendo-a no ritmo frenético da batucada do samba. Ela adorou.
Em pouco tempo, foi-se soltando e, de menina tímida e desajeitada, passou a sambista de primeira, requebrando os quadris com graça e sensualidade, despertando a
atenção e o interesse dos demais sambistas.
Alguns tentaram se aproximar dela, mas Mauro não permitiu. Visava não apenas a sua incolumidade, mas também despertar a atenção de algum dono de teatro que estivesse
por ali. Durante o trajeto na avenida, Tália parecia não perceber nada além daquela música estonteante e animada. Entregou-se por completo, sentindo-se segura sob
a proteção de Mauro, que não desgrudava dela. Tanta beleza e sensualidade não podiam passar despercebidas pela avenida. Não foram poucos os que a notaram, e alguns
diretores e donos de teatro logo se interessaram por ela. Enquanto ela sambava, eles se aproximavam, tentando falar-lhe, mas Mauro os impedia, apresentando-se como
seu agente e segurança. Choveram convites, e Mauro começou a coletar os cartões que lhe ofereciam.
Ao final do desfile, Tália estava exausta. Sambara e se divertira como nunca em sua vida. Ciente do efeito que produzia nos olhares masculinos, entregara-se por
completo àquela loucura, remexendo-se com uma sensualidade nunca antes vista. Nem de longe lembrava aquela menina feia e gordinha que era alvo das chacotas dos garotos
em Limeira. Possuía agora formas exuberantes de mulher brejeira e dotada de uma sexualidade à flor da pele.
- Você gostou? - perguntou Mauro, satisfeito com o seu desempenho.
- Nossa, Mauro! Nunca me diverti tanto.
Foram para casa, Mauro sentindo os olhares de inveja dos outros homens ao vê-lo passar com Tália pelo braço. Entraram no pequenino quarto de pensão que seu dinheiro
conseguira pagar, e ele tirou do bolso os cartõezinhos que coletara.
- O que é isso? - indagou ela, curiosa.
- Isso, minha menina, é a porta para o nosso futuro.
- Como assim?
- São cartões de donos de teatros e diretores de espetáculos de revista, todos interessados em você.
- Sério? Como foi que você conseguiu tudo isso?
- Então você não sabe? - ela meneou a cabeça. Você é mesmo muito tontinha, menina. Estava se acabando no samba e nem se deu conta dos olhares de cobiça da rapaziada,
não é mesmo?
- Bem, confesso que reparei nos olhares, sim. Mas o que isso tem a ver com os cartões? Foi naquela hora que você os conseguiu?
- Enquanto você se divertia, eu estava trabalhando. Os sujeitos a viram e ficaram enlouquecidos. Todos querem você nos seus espetáculos.

Ela soltou um gritinho e deu um pulo de alegria, atirando-se no pescoço de Mauro.
- Conseguimos, Mauro? Vou ser realmente, atriz?
- Calma, minha menina. Por enquanto, só temos os cartões. É preciso que você se apresente e faça alguns testes para corista.
- Mas que testes? Então eles já não me viram dançar?
- Uma coisa é sambar na avenida. Outra, bem diferente, é dançar num palco, com roupas pequeníssimas e iluminadas pela luz dos refletores. Não basta saber rebolar.
É preciso ter desenvoltura e intimidade com o palco.
- Você acha que eu dou para isso?
- Não tenho dúvidas! Mas eles ainda não sabem que você é perfeita. Espere só até a verem dançando sozinha no palco.
- Oh! Mauro, você é maravilhoso!
- Faço isso porque gosto de você.
- Mentiroso. Faz isso porque eu sou a sua mina de ouro.
Com um gesto carinhoso, ele a puxou pela mão e fê-la sentar-se em seu colo. Alisou seus cabelos sedosos, deu-lhe uma mordida de leve nos lábios e, olhando-a com
seriedade, disse em tom solene:
- Vou lhe confessar uma coisa, Tália. Você é minha mina de ouro, é verdade. Mas essa mina em nada me interessaria, não fosse o amor que sinto por você. Sou um homem
arrebatado, e não há nada que faça que não seja movido pela paixão. Meus interesses não são mesquinhos. A minha vida é impulsionada pelos sentimentos, e, para mim,
o que vale é viver intensamente cada minuto que respiro. E é você, Tália, que me estimula a viver, porque por você, o meu coração dispara cada vez que a vê.
Tamanha sinceridade a emocionou, e ela o abraçou com fervor.
- Também o amo muito, Mauro. Acho que, enquanto viver, nunca vou amar outro como amo você.
- Diz isso agora, porque sua vida de glamour mal começou. Mas depois que você estiver no auge, rica e famosa, vai me esquecer e encontrar outro à sua altura.
- Nunca! Você é e sempre será o único e verdadeiro amor da minha vida. Ainda que tenha outros amantes, por nenhum deles sentirei o amor que sinto por você.
Ele também se emocionou. Abraçou-a com paixão e levou-a para a cama, amando-a com loucura e ardor.
Tiveram que esperar até quarta-feira de cinzas para começar a se apresentar nos teatros, em busca de uma chance para um show. Engajado naquela vida já em São Paulo,
Mauro tinha conhecimento de alguns nomes mais expoentes no ramo e buscou-os nos cartões que recebera. Encontrou muitos deles ali e selecionou os mais conhecidos,
guardando o resto sem os descartar, para o caso de não conseguirem nada nas casas mais renomadas.
Ajudou Tália a se vestir. Escolheu o seu vestido, orientou-a no penteado e na maquiagem, e partiram para as entrevistas, com a recomendação de que não revelasse
sua verdadeira idade. Para todos os efeitos, tinha dezoito anos completos.
O primeiro teatro a que chegaram não os agradou. O dono era um português arrogante e devasso, que foi logo oferecendo a Tália um lugar no grupo de coristas, em troca
de algumas horas de prazer. Mauro quase o esbofeteou e saiu de lá irritado, arrastando Tália pelo braço.
- Quem ele pensa que é? - bufou. - Você é uma dançarina, não uma prostituta.
- Não dá no mesmo?
- Não, não dá! E nunca mais repita isso. Você não é nem nunca será uma prostituta.
Em outro teatro, o resultado também não foi o esperado. O dono estava interessado apenas no corpo de Tália e demonstrou isso com muita naturalidade.
O teatro era apenas uma fachada para uma pequena casa de encontros que ele possuía, e Tália seria uma excelente aquisição nesse ramo. Choveriam clientes interessados
em sustentá-la e dar-lhe uma vida tranqüila. Mauro poderia continuar agenciando seus encontros, em troca de uma percentagem razoável para o dono do teatro.
Daquela vez, Mauro não resistiu e acertou violento soco no queixo do homem, que cambaleou e caiu. Os seguranças do teatro, ouvindo a gritaria, acorreram aflitos,
mas Mauro conseguiu segurar Tália pelo braço e correr com ela para a rua.
- Mas será possível? - lamentou-se. - Será que não há mais gente decente hoje em dia?
- Será que nesse ramo isso é possível?
- Não desanime. Ainda vamos encontrar alguém que lhe dê o devido valor.
No terceiro teatro que visitaram, Tália foi mais bem acolhida. O diretor do espetáculo estava encantado com ela e pediu que dançasse para ele. Tália fez o que mais
sabia. Subiu ao palco e soltou o corpo, remexendo-se daquela forma sensual que só ela conhecia. O homem quase enlouqueceu e queria contratá-la de imediato. Chamou
Mauro a um canto e foi logo oferecendo uma quantia exorbitante. Mauro ficou bastante animado, achando que, finalmente, haviam conseguido uma boa chance.
- Só tenho uma exigência a fazer - decretou o homem, subitamente. - Que Tália se encontre comigo uma vez por semana, em meu apartamento no centro da cidade.
- Como é que é? - Mauro estava surpreso. - Não estou entendendo.
- Creio que o senhor compreendeu muito bem. É de praxe que minhas meninas se deitem comigo ao menos uma vez por mês. E não faça essa cara de espanto. Não vai querer
me convencer de que essa Tália é virgem, não é mesmo?
Mauro estava abismado. Pensou em acertar aquele homem também, mas já estava começando a ficar cansado daquela história. Virou-lhe as costas e foi chamar a moça,
saindo com ela para a rua.
- O que foi que houve? - quis saber ela.
- O de sempre - foi a resposta seca.
Depois disso, foram a uma casa de espetáculos em que Tália teria que trabalhar em trajes sumários, atendendo as mesas dos clientes. Em outra, teria que tirar a roupa
em um quarto reservado, longe dos olhares do público e, numa terceira, sua função seria a de uma boneca em exposição e consistiria em ficar parada na frente do teatro
para atrair a freguesia.
Tália estava exausta. Aonde ia, o resultado era sempre o mesmo: queriam explorar seu corpo maravilhoso sem lhe dar a chance de mostrar seus dotes artísticos. Mauro
não podia concordar com aquilo. Não a tirara do jugo de Anacleto, naquela pensão em São Paulo, para transformá-la em prostituta oficial no Rio de Janeiro. Não. Tália
tinha valor. Dançava como ninguém, tinha charme e carisma. Não iria se prestar a servir de objeto para nenhum velho devasso.
Os proprietários de casas de espetáculo que ele julgava grandes, ao que tudo indicava, não eram lá assim tão grandes. Havia outros, realmente famosos, que ele tentara
contatar, mas fora barrado logo na porta. Só lhe restavam os teatros menores. Abriu a gaveta em que havia guardado os cartões secundários e folheou-os. Alguns nomes
ali eram conhecidos, em outros, nunca ouvira falar. O que poderia fazer? Não lhe restava alternativa senão tentar os teatros e casas noturnas de menor expressão,
Foi o que fizeram. Depois de algumas respostas negativas, finalmente conseguiram uma colocação em um teatro menos conhecido. Mauro gostou do lugar. As moças que
trabalhavam ali eram direitas e não possuíam aquele ar vulgar e arrogante de estrelas de segunda categoria. Além disso, Darci, o dono do teatro e diretor do espetáculo,
era um homem gentil e muito profissional, interessado apenas em fazer progredir o seu negócio.
Tália também gostou. O teatro não era glamoroso como esperava, mas era onde teria a chance de mostrar suas qualidades profissionais. Não possuía mesas, mas era espaçoso,
com um palco razoavelmente grande e lugar para cerca de duzentas pessoas. Podia não ser o ideal, mas era o que tinha para começar.

***

A noite estava agitada naquele sábado. Desde que começara a trabalhar no teatro de revista, Tália vinha se firmando como a mais nova sensação do momento. Sua fama
de sambista atraente e sensual logo se espalhou pela cidade, e a platéia no teatro começou a aumentar, recheada de homens que iam lá só para ver o seu rebolado.
Com a chegada de Tália, as coisas começaram a mudar para Darci. A moça trazia uma musicalidade que a diferenciava das dançarinas que conhecia, aprendeu a cantar,
e a dança parecia sair de seu corpo com naturalidade, como se o seu corpo todo fosse feito para aquilo. Além disso, as idéias de vanguarda de Mauro elevaram-no ao
posto de diretor dos espetáculos, e ele passou a atuar não apenas nos shows de Tália, mas nos de todas as outras vedetes.
- Vamos logo com isso - anunciou Darci, apressando Tália no camarote. - Faltam cinco minutos.
- Como está a platéia?
- Casa cheia, meu bem, como sempre.
Em cinco minutos, lá estava ela no palco, para delírio da platéia. Executou o seu número com esmero e maestria, de olhos semicerrados, cantando e dançando como se
estivesse nas nuvens e seus pés mal tocassem o chão. Quando Tália se entregava à dança, parecia que nada mais havia no mundo; apenas ela, a melodia e o ritmo. Entregava-se
de corpo e alma, e sua beleza exuberante despertava não apenas a atenção dos presentes, mas, principalmente, o desejo de muitos homens.
Mas Tália e Mauro se amavam como loucos, e não havia outro homem que a atraísse, ou mulher que ele desejasse. Ao final do espetáculo, os dois seguiam para casa de
mãos dadas, felizes com o rumo que suas vidas estavam tomando. Com o sucesso do seu numero, o cachê de Tália aumentou, e Mauro também não ganhava mal como diretor.
Afinal, era ele o responsável pela coreografia e o cenário daquele show maravilhoso, que ia elevando o nome de Darci rumo ao ápice do mundo teatral.
- Por que não nos casamos? - perguntou ela pela manhã, após se amarem intensamente.
- Não vai ser bom para os negócios. Vedetes casadas despertam menos interesse, e você ainda é menor.
- Você não gosta mais de mim - queixou-se ela, fazendo beicinho.
- Não é verdade. Amo-a como jamais amei ninguém. E depois, nós podemos não ser casados de papel passado, mas você é minha mulher e eu sou seu marido. Não fazemos
tudo o que outros casais fazem?
Ela não respondeu. Fez cara de aborrecida e foi para a cozinha preparar o café.

- Precisamos arranjar uma empregada - falou Mauro, chegando por trás e beijando-a no pescoço.
- Acha que já podemos pagar?
- É claro. Não estamos ricos, mas estamos vivendo bem. Conseguimos alugar esse apartamento, que não é assim tão mau e, em breve, estaremos nos mudando para nossa
própria casa.
- Será?
- Você vai ver. Vamos juntar mais um pouco e partiremos para uma casa só nossa. Uma casa, não, uma mansão, com piscina e tudo.
- Piscina? Nunca vi um luxo desses.
- Pois vai ver. No momento, porém, estou pensando em algo mais imediato: uma empregada, para que você não tenha que estragar suas unhas com o serviço doméstico.
Afinal, você agora é uma atriz, quase famosa, e não deve se ocupar com essas coisas.
- Onde vamos arranjar alguém de confiança?
- O que não falta por aí é gente querendo trabalhar. Ponho um anúncio no jornal, e logo aparece alguém.
- Estive pensando em outra coisa...
- O quê?
- Lembra-se de Ione?
- O nome não me é estranho...
- Era cozinheira na casa de Dona Janete.
- Ah! Ione, isso mesmo, agora me lembro. Por quê? Não vá me dizer que pretende ir buscá-la.
- Eu prometi. Quando saí da casa de Janete, prometi que a buscaria assim que estivesse bem.
- Mas querida, Ione mora lá em São Paulo. Não podemos viajar agora.
- Não, mas eu posso escrever-lhe uma carta, enviando-lhe o dinheiro da passagem e o endereço. Aposto como virá.
- É o que quer?
- É sim. Ione sempre foi minha amiga e me ajudou quando eu mais precisava.
- Será que ainda trabalha lá?
- Não custa nada tentar. Se ainda estiver trabalhando naquela pensão horrorosa, aposto como virá. Ela também não gostava muito de Dona Janete.
- Muito bem, seja feita a sua vontade. Escreva-lhe o nosso endereço numa carta, sob nome falso e sem remetente, para saber se ela ainda trabalha lá. Não queremos
que dona Janete descubra o nosso endereço, não é? - ela meneou a cabeça, assustada, pois não havia considerado aquela hipótese. - Depois, se ela responder, enviamos-lhe
o dinheiro. Que tal?
- Excelente idéia! Farei isso agora mesmo.
Um mês depois, Ione desembarcava no Rio de Janeiro, munida apenas de uma trouxinha de roupas e muitas saudades da amiga. Quando a viu, atirou-se em seus braços,
chorando copiosamente. Tália a estreitou com ternura, dando-lhe as boas-vindas à capital federal.
- Você vai amar o Rio de Janeiro! Vou levá-la à praia, ao Corcovado, ao Pão-de-Açúcar...
- Ah! Amelinha, nem acredito que estou aqui. Você cumpriu a sua promessa. Mandou me buscar...
- Só que aqui não sou mais Amelinha, Ione. Como lhe disse na carta, chamo-me Tália Uchoa. É meu nome artístico e é assim que quero ser chamada.
- Tem razão, desculpe. É que ainda não me acostumei. Mas vou chamá-la de Dona Tália, que é para impor mais respeito.
- Não precisa da dona, não. Somos amigas, e não é porque agora estou ficando rica que vou ficar besta.
Ambas riram e se abraçaram. Tália chamou um táxi e levou Ione para seu apartamento, mostrando-lhe tudo.
- Por enquanto, você vai ficar aqui - disse indicando-lhe o quartinho de empregada que ficava ao lado da área de serviço. - Mas não se preocupe. Quando nos mudarmos
para uma casa maior, terá seu próprio quarto do lado de dentro, como uma governanta.
- Não precisa tanta coisa, Ame... Quero dizer, Tália. Aqui está ótimo.
Tália ajudou Ione a se acomodar, e enquanto ela ia guardando suas poucas roupas no armário, iam conversando:
- Teve notícias da minha família? - indagou Tália com interesse.
- Ouvi Dona Janete dizer que a vida da sua mãe anda muito difícil, desde que seu padrasto se entregou à bebida. Parece que nem trabalha mais.
Tália abaixou os olhos, pensativa, lembrando-se da última vez que estivera com o padrasto. Ele estava saindo para procurar emprego, e, já naquela época, andava se
entregando ao álcool.
- É por minha causa, não é? - tornou com ar triste.
- Dona Janete diz que sim. Ela e sua mãe disseram que você desgraçou a vida de todo mundo e vai continuar desgraçando a de quem mais cruzar com você.
Aquilo a magoou imensamente. Durante toda sua vida, não fizera nada para desgraçar a vida de quem quer que fosse, embora muitos houvessem contribuído para desgraçar
a sua: a mãe, Elias, seu Chico, Janete, seu Anacleto e tantos outros que a viam como uma perdida. Tália não disse mais nada. Esperou até que Ione terminasse de se
ajeitar e deixou-a descansando. Só começaria a trabalhar no dia seguinte.
Mais tarde, foi encontrar-se com Mauro no teatro. Estava acabrunhada e triste, o que despertou a atenção de todos.
- O que você tem? - indagou Mauro, preocupado.
Ela apenas deu de ombros e foi-se aprontar para o espetáculo. Desempenhou seu papel como sempre, embora Mauro conseguisse notar seu semblante de tristeza. Depois
que o show terminou, voltaram para casa, como sempre faziam.
- Então? - perguntou ele. - Como foi à chegada de Ione?
- Ela já está instalada e bem. Amanhã, começa a trabalhar.
- Alguma notícia ruim de São Paulo? Algo com Dona Janete?
- Não, Mauro, na verdade, minha família é que não vai bem.
- Por quê?
Em breves palavras, Tália narrou tudo o que Ione lhe contara.
- Preciso ajudá-los - arrematou.
- Por quê? Por que ajudar quem sempre a prejudicou?
- Raul é meu amigo.
- Mas foi por causa dele que sua mãe expulsou você de casa.
- E tem a minha irmã. Ela não tem nada com isso.
- Você nunca se deu bem com sua irmã. Por que a preocupação agora?
- E minha mãe?
- O que tem ela? Pelo que você me contou, foi à pior de todos.
- É minha mãe - ciciou hesitante, como a se desculpar por aquele fato.
- E daí?
- Por mais que tenha me maltratado, não posso deixá-la passando necessidades. Estou bem de vida agora, não é justo que eles passem privações se eu tenho condições
de ajudá-los.
Mauro pensou por alguns momentos, até que considerou:
- Talvez você esteja certa. Logo, logo vai ser famosa, e não vai ficar nada bem para a sua imagem abandonar a família. As pessoas gostam de estrelas bondosas e generosas,
principalmente com os familiares. Com a mãe, então, nem se fala!
- Não é por isso que quero ajudá-los, Mauro.
- Sei disso, mas ninguém mais precisa saber. Podemos usar esse fato em nosso favor, se necessário.
- Acha que minha mãe aceitaria a minha ajuda?
- Você tem dúvidas?
- Não sei. Quando saí de lá a última vez, ela estava com raiva de mim.
- Experimente mandar-lhe dinheiro. Não há raiva que resista a um bom e gordo maço de notas.
- Acho que você tem razão. Farei isso amanhã mesmo.

***

Ao receber a carta de Tália, Tereza sentiu um misto de alívio e ódio. Alívio, porque o dinheiro seria bem-vindo naquela situação de quase penúria em que se encontravam.
Ódio porque, se a filha lhe mandara dinheiro, era porque estava bem de vida, ao contrário do que ela desejava. O carimbo no envelope indicava a cidade do Rio de
Janeiro, mas ela não colocara o endereço do remetente. Raul, bêbado como sempre, sequer vira a carta ser entregue, e apenas Cristina sabia que a irmã, finalmente,
dera notícias.
- Onde você acha que ela está? - perguntou Cristina, lendo a carta e contando o dinheiro.
- No Rio de Janeiro, é o que diz o carimbo dos correios.
- Ela podia ter-nos mandado um endereço qualquer. Não podemos nem responder.
- E o que lhe diríamos? Que estamos quase morrendo de fome?
- Posso trabalhar mamãe.
- Você ainda nem tem dezesseis anos, e moça de família não trabalha para viver. Pretendo que você faça um bom casamento e nos tire daqui.
Ouviram um barulho nas escadas e se voltaram ao mesmo tempo. Raul vinha chegando, cambaleante como sempre, trazendo sob o braço a garrafa de pinga.
- O que é isso? - perguntou, a voz pastosa.
- Isso o quê?
- Essa carta... De quem é?
- Não é da sua conta - cortou Tereza, ríspida. Por que não vai trabalhar, ao invés de ficar se embebedando pelos cantos?
- Eu quero... - lamentou-se ele, atirando-se no sofá - mas ninguém quer me dar emprego...
- Isso é porque você vive bêbado. Pare de me roubar às escondidas e experimente largar a bebida, e logo o emprego aparece.
- Está enganada, Tereza. Eu tentei, mas ninguém me dá uma chance. Diga a ela, Cristina. Diga a ela que eu tentei...
Penalizada, Cristina se aproximou dele e tentou retirar-lhe a garrafa da mão, mas ele relutou e não deixou que ela a pegasse.
- Solte isso, tio Raul - falou ela, com carinho. Não vê que só está lhe fazendo mal?
Por fim, ele soltou. Cristina tinha um jeito meigo de falar que sempre o convencia. Era como uma filha dedicada cuidando do pai enfermo.
- Não sei o que faço com esse homem - reclamou Tereza. - Não serve para mais nada.
- Não sirvo mais, não é? Antes, você dizia que me amava, mas agora que estou inválido, você se queixa e quer me abandonar. Você quer me abandonar, Tereza? Quer me
deixar na rua da amargura?
Tereza olhou para ele com desdém, enfiou a carta de Tália no bolso do avental e subiu correndo para o quarto. Como ainda tolerava aquele homem? Devia tomar coragem
e colocá-lo para fora, mas não conseguia. Apesar de tudo, até mesmo do nojo que o seu insuportável cheiro de álcool lhe causava, não podia se desligar dele. Depois
de tudo por que passara, não era justo que o perdesse. Amor por ele, não sentia mais. Era impossível, dado o seu estado de constante embriaguez, que até impotência
lhe causara. Mas sentia-se apegada a ele, como se estivessem ligados por algo muito mais poderoso do que o amor.
Ela sabia o que era: o ódio que sentia de Amelinha e a posse que tinha com relação a Raul, fruto do orgulho de não admitir que ele a deixasse por outra. Fora por
causa de Amelinha que perdera o seu homem. Mesmo depois que ela se fora, Raul continuara a pensar nela. Depois que sumira da pensão de Janete, então, ele quase enlouquecera.
Entregara-se de vez à bebida e fora se tornando abjeto e asqueroso. Aos poucos, foi deixando de lado os hábitos mais comezinhos do ser humano, abrindo mão de se
lavar, pentear os cabelos e manter as roupas limpas. Vivia caído pelos cantos, e não raras eram às vezes em que ele voltava para casa carregado pelos companheiros
de copo.
Não podia, contudo, largá-lo. Separar-se dele seria como admitir que Amelinha vencera. Seria dar a ela o sabor da vitória, a certeza de que conseguira sobrepujá-la
uma vez mais, tomando-lhe o homem que lhe pertencia. E isso, ela não podia deixar acontecer. Perdera o interesse por Raul, mas jamais permitiria que ele fosse da
filha. Mesmo que Amelinha não o quisesse, ainda assim, não correria o risco de vê-lo solto e livre para rastejar atrás dela, lambendo seus pés feito um cachorrinho.
Não. De forma alguma aceitaria que seu homem se tornasse o brinquedinho da filha, ainda que isso lhe custasse à dignidade e a vergonha.



Capítulo 16


Mal o dia havia amanhecido, e Tália apareceu na cozinha, estendendo para Ione uma carta recém-selada.
- Será que você podia postar uma carta para mim? - indagou.
- É para sua mãe?
- É sim. O final do mês se aproxima, e estou certa de que ela fica esperando essa carta com a maior ansiedade do mundo.
- Sua mãe deve estar curiosa para saber de você. Até hoje não sabe que você virou atriz.
- Não sou propriamente uma atriz, Ione.
- Não importa o nome que você dê. O fato é que sua mãe não sabe nada a seu respeito. Você escreve para ela e manda dinheiro, mas não lhe conta nada da sua vida e
nem tem como saber como anda a vida dela. E se ela já estiver morta e você continuar mandando dinheiro para uma defunta?
-
- Credo, Ione, que idéia!
- E depois, tem a sua irmã. Só a vi uma vez, quando ela esteve na pensão com sua mãe, depois que você fugiu. Que moça linda! E tão meiga!
- E daí?
- Ela é mais nova do que você, não é?
- É sim. Está agora com dezessete anos. A idade que eu tinha quando cheguei ao Rio.
- Fico imaginando como uma moça bonita feito ela deve estar desperdiçando a vida ao lado de uma mãe problemática e de um padrasto bêbado.
- O que é que eu posso fazer Ione? Trazê-la para morar comigo?
- Até que não seria má idéia.
- O quê? Você só pode estar brincando.
- Não estou não. Lembro-me de como fiquei feliz quando você mandou me buscar. Para mim, era um sonho, poder viver longe daquela pensão e da mesquinhez de Dona Janete.
Ganhei vida nova, Tália, e sei muito bem o que significa, para uma moça, ter uma vida melhor.
- Você mereceu estar aqui, Ione. É minha amiga.
- E ela é sua irmã.
- Já a estou ajudando. Mando dinheiro para ela todo mês.
- Mandar dinheiro é uma maneira muito fácil de acalmar a consciência. Você não se envolve e pode dizer a si mesma que está fazendo um bem a ela.
- E não estou?
- Está. Mas será que é só disso que ela necessita?
Durante alguns minutos, Tália ficou refletindo sobre a pergunta de Ione. Cristina nunca havia lhe feito nada. Ela sempre fora tão linda, tão pura, tão boa! E ficava
se exibindo o tempo todo, como se fosse uma princesa de contos de fadas, e ela, Tália, a eterna Gata Borralheira, sem direitos nem chance de ser feliz.
Tudo aquilo não passava de desculpas. Na verdade, nem Tália sabia por que antipatizava tanto com Cristina. A irmã sempre tentara ajudá-la, o que só servia para irritá-la
ainda mais. Lembrava-se de quando tivera a segunda pneumonia, logo após ter sido espancada pela mãe em sua única ida a Limeira depois que fora para São Paulo. Cristina
cuidara dela com desvelo e amor, dedicando-lhe toda atenção e carinho. Na época, ainda conseguira sentir por ela um pouco de simpatia e gratidão. Mas depois, a vida
as afastara novamente, e agora ela pensava que a única coisa que ainda tinham em comum era o estupro de que haviam sido vítimas juntas.
- Está escutando o que estou falando, Tália?
- Estou, não precisa gritar.
- E então? Não me diz nada?
Tália se virou para a janela e, olhar perdido, acabou por responder:
- Acho que você tem razão, Ione. Vou viajar a Limeira e ver como estão às coisas por lá. Se Cristina quiser, trago-a para o Rio comigo.
- Assim é que se fala garota!
- Vou falar com Mauro a respeito, mas tenho certeza de que ele não irá se opor.
- Quer que eu vá com você?
- Não. Quero que fique aqui e cuide de tudo.
- Pode ficar sossegada.
Alguns dias depois, Tália embarcava sozinha para Limeira. Mauro quis acompanhá-la, mas aquilo era algo que ela tinha que fazer sozinha. Não sabia o que iria encontrar
em sua cidade natal e tinha medo de que a mãe fizesse alguma desfeita para ele. Cuidaria de tudo à sua maneira e voltaria para casa logo em seguida, levando Cristina
consigo.
Ninguém sabia ainda que ela se transformara em atriz. Chegaria em grande estilo, bem-vestida, maquiada e usando penteado da moda. Na bagagem levava alguns recortes
de jornal e presentes para todos: um vestido novo para Cristina, um xale elegante para a mãe e uma garrafa de licor para Raul. Só depois que comprara os presentes
foi que se dera conta de que não devia dar bebida alcoólica ao padrasto, para não alimentar o seu vício, mas a garrafa já estava comprada e não seria um pouco de
licor que agravaria o seu estado.
Chegou a Limeira de surpresa. Desceu na estação de trem e riu satisfeita com os olhares de admiração que lhe endereçavam. Como ainda não havia táxis, foi caminhando
em silêncio, admirando as ruas, que continuavam as mesmas. Logo avistou sua casa e sentiu um leve calafrio. Não guardava boas lembranças dali, e voltar para lá,
ainda que em boa situação financeira, não estava sendo assim tão fácil.
Tália estava exausta de caminhar carregando a mala e rumou direto para a porta da frente. Atravessou o portãozinho e notou que ele agora rangia, o que não acontecia
na época em que ela morava ali, pois vivia com as dobradiças sempre lubrificadas. Subiu os degrauzinhos que levavam à pequena varanda da frente e bateu à porta.
Demorou alguns minutos até que alguém abrisse, e ela se espantou ao reconhecer, naquele rosto envelhecido que a recebia, o rígido semblante da mãe. Tereza também
quase não reconheceu, vestida naquelas roupas vistosas e elegantes. Pensou tratar-se de alguma moça parecida com Amelinha, só que muito chique e requintada.
- O que deseja? - perguntou Tereza, desconfiada.
- Mãe! - exclamou ela, surpresa com a reação de Tereza. - Não me reconhece?
Aquela voz era inconfundível, e Tereza abriu a boca num assombro mudo. Escancarou a porta, dando lhe passagem, e ficou vendo-a entrar com seu andar de mulher feita
e senhora de si.
- Você está diferente... - conseguiu, enfim, balbuciar.
- Sou outra mulher agora.
Aquele mulher espantou Tereza ainda mais. Ao sair dali, Amelinha era apenas uma menina, e mesmo agora, não contava mais de dezenove anos. Contudo, sua aparência
e seus gestos haviam abandonado os trejeitos da infância, e ela se portava e falava como uma mulher adulta e experiente.
- Você está muito bem... - continuou ela, começando agora a sentir uma pontinha de inveja. Arranjou alguém que a sustente?
Tália fuzilou-a com o olhar, mas conseguiu manter a calma. Não fora ali para brigar com a mãe e não precisava mais se indispor com ela. Estava agora por cima da
situação e trataria de mostrar-lhe isso.
- Arranjei um emprego que me sustenta e hoje não dependo de ninguém.
- Emprego? Mas que emprego é esse que a deixou... Desse jeito?
- Sou uma atriz, mamãe. Apresento-me numa casa de espetáculos e estou começando a ficar conhecida. Quer ver?
Ela assentiu maquinalmente, enquanto Tália se sentava e abria a bolsa, dela retirando os recortes de jornal que levara. Estendeu-os para a mãe, que os apanhou e
olhou embasbacada. Neles, a foto da filha se destacava acima dos comentários de seus shows.
- Tália Uchoa? - ela leu. - Mas que nome é esse?
- É o meu nome artístico. Ninguém mais me chama de Amelinha.
Tereza leu todos os recortes e fitou Tália com assombro. Aquilo superava todas as suas expectativas. Desde que a filha sumira da pensão de Janete, ficara especulando
sobre o que lhe teria acontecido. Depois, quando começara a lhe mandar dinheiro junto com as cartas lacônicas e nada reveladoras, pensou que ela havia se amasiado
com algum político ou comerciante rico lá no Rio de Janeiro. Mas jamais poderia imaginar que ela ingressara no mundo artístico, o que não a excluía, propriamente,
do grupo de mulheres que ela classificava como sendo de vida fácil.
- Por que resolveu voltar?
- Soube que vocês estão passando muitas privações e quis ajudar.
Tereza engoliu em seco aquela humilhação, lutando contra a vontade de gritar com ela e dar-lhe uns bons bofetões.
- Quem foi que lhe disse isso?
Ela apenas sorriu e respondeu lacônica:
- Tenho amigos em São Paulo.
- Não sei o que andam lhe falando, mas as coisas não são bem assim...
- Tem recebido minhas cartas com o dinheiro? - cortou ela, sem dar atenção a suas palavras.
- Tenho.
- Espero que a tenha ajudado.
- Ajudou... Raul anda passando por uma fase difícil, e Cristina ainda é muito jovem...
- Por falar nisso, onde é que eles estão?
- Raul está pela rua... Procurando emprego... E Cristina não tarda a chegar. Foi à mercearia com uma lista de compras que encomendei.
Tália assentiu e levantou-se do sofá, apanhando a mala e a valise que levara.
- Vou descansar um pouco em meu antigo quarto, se não se importa. Vim caminhando da estação até aqui, carregando as malas, e estou exausta.
Sem dizer nada, Tereza ficou vendo-a se afastar, e Tália foi subindo as escadas, tomando a direção do quarto. A casa estava muito diferente, nem parecia à mesma
de que a mãe cuidava com tanto capricho. Os móveis estavam surrados e sem brilho, e as paredes amareladas davam mostras de que não viam tinta há muitos anos. As
cortinas haviam sido trocadas por outras, de tecido velho e vagabundo, e estavam desfiadas e puídas nas pontas.
No quarto, somente se via a cama de Cristina. A sua, há muito fora vendida para pagar as contas atrasadas. Tália pousou a mala e a valise no chão, perto da antiga
cômoda, e sentou-se na cama, quase chorando diante da decadência que invadira seu antigo lar. Recostou-se na cabeceira, sentindo os buracos no colchão, pensando
que tomara a decisão certa ao resolver tirar a irmã dali. Ela era muito jovem e tinha a vida toda pela frente, mas não teria vida alguma se a desperdiçasse naquele
buraco lúgubre e cheirando a mofo. Apesar do desconforto, estava cansada e sentiu que as pálpebras começavam a pesar. Apanhou o travesseiro e dobrou-o cuidadosamente,
ajeitando-o debaixo da cabeça. Deitou-se de lado, admirando a única coisa que parecia viva naquela casa, e adormeceu voltada para o sol que começava a se pôr do
lado de fora da janela.

***

- Amelinha! Amelinha!
Lentamente, Tália abriu os olhos, forçando-os a ver na quase penumbra que se espalhava pelo quarto. Piscou algumas vezes, tentando lembrar-se de onde estava e por
que a estavam chamando de Amelinha se ela agora era Tália, uma atriz cobiçada por todos e que começava a ficar famosa. Pensou que estivesse sonhando com o passado
e tornou a fechar os olhos, fingindo que não escutava. Talvez a voz se cansasse e fosse embora. A voz, contudo, não parava de gritar o seu nome de menina, e ela
foi forçada a arregalar os olhos e, finalmente, fitar com atenção o rosto radiante da moça que lhe sorria.
- Cristina! - exclamou por fim, dando um salto da cama. - Como você cresceu!

Cristina sorriu orgulhosa e abraçou a irmã, que correspondeu ao abraço meio sem jeito.
- Mal pude acreditar quando mamãe me contou! Pensei que você nunca mais fosse voltar aqui.
De forma gentil, Tália se desvencilhou do abraço da irmã e, olhando ao redor, respondeu com um pouco de pressa:
- Na verdade Cristina, só voltei por você.
- Por mim?! Por quê?
- Quero tirá-la desse lugar. Estou bem agora e tenho condições de lhe dar uma vida melhor.
Era a primeira vez que Tália demonstrava algum interesse por Cristina, e ela se emocionou.
- Você quer me dar uma vida melhor? - repetiu ainda incrédula.
- Se você quiser...
Aquilo parecia um sonho. É claro que Cristina sonhava em sair daquela cidade sem perspectivas, mas jamais se imaginou indo morar no Rio de Janeiro.
- Mamãe disse que você agora é atriz.
- Sou dançarina. Trabalho num teatro no Rio.
- O que você faz lá?
- Danço e canto.
- É teatro de revista?
- É, sim.
- Que maravilha, Amelinha! Quer dizer que você agora é famosa?
Tália sorriu da ingenuidade da irmã e respondeu paciente:
- Em primeiro lugar, meu nome agora não é mais Amelinha, é Tália. Tália Uchoa.
- Tália Uchoa? Que nome mais esquisito.
- É um nome artístico. Vá se acostumando com ele. Em segundo lugar, não sou famosa ainda. Estou começando a ficar reconhecida no meio, mas ainda falta muito para
a verdadeira fama.
- Você tem seu nome escrito em algum cartaz?
- Não apenas em cartazes, mas também nos jornais. Quer ver?
- Jornais? É claro que quero!
Tália apanhou os mesmos recortes que mostrara à mãe e exibiu-os a Cristina, que os leu sofregamente, demonstrando imensa alegria com os comentários acerca do desempenho
da irmã. Vendo a sua genuína alegria, Tália se comoveu. Fora até ali mais por senso de dever do que, propriamente, por devoção ou amor. Sentia-se responsável pelo
bem-estar da família, principalmente da irmã, mas não possuía muitas afinidades com ela. O relacionamento entre ambas sempre fora difícil, e Tália chegou a pensar
que não fosse conseguir lidar com ela naturalmente. Mas agora, depois daqueles anos todos, via em Cristina apenas uma mocinha ingênua e sonhadora, e não aquela menina
falsa e esnobe que ela julgara um dia ter como irmã.
- Você se transformou em uma moça realmente bonita - observou impressionada.
- Você acha? - ela assentiu. - Não tanto quanto você.
- Ora, Cristina, você sempre foi bonita.
- Você é que é linda! E agora então, vestida desse jeito elegante, ficou mais linda ainda!
- Tem namorado?
- Não - seu rosto enrubesceu, e ela abaixou os olhos, envergonhada. - Mamãe não deixa.
- Por quê? Você é jovem e linda. Duvido que não tenha ninguém interessado em você.
- Mamãe teme que eu estrague meu futuro. Quer que eu me case com alguém importante.
Aquilo não fazia sentido, diante de tudo o que lhes havia acontecido. Cristina podia ser uma menina ingênua, mas já não era mais virgem, e a mãe sabia disso. Não
havia, portanto, mais nenhum futuro para se estragar.
- Será que ela já se esqueceu...?
- Não! - cortou ela, rispidamente. - Ela não se esqueceu e também não me deixa esquecer.
- Como assim?
- Depois que você se foi, Amelinha...
- Tália. Não se esqueça de me chamar de Tália,
- Muito bem... Tália... Depois que você fugiu da pensão de prima Janete, ela começou a me perseguir, com medo de que eu fizesse feito você. Eu já havia me tornado
mocinha, e ela passou a me vigiar constantemente, apavorada com a possibilidade de que eu escolhesse a mesma vida que você.
- Ora essa, mas que graça! - irritou-se Tália. - Será que ela já se esqueceu de que foi ela quem me atirou nessa vida? Depois que o Chico nos violentou, ela passou
a me tratar feito uma meretriz, e a você como uma coitadinha.
- Não se irrite comigo, Ame... Quero dizer, Tália. Tive tanta culpa quanto você.
- Ninguém teve culpa de nada. Mas mamãe não devia ter feito o que fez comigo. Você sabia que Janete praticamente me vendeu para um hóspede, seu Anacleto? Fez-me
dormir com ele para ganhar dinheiro?
- Prima Janete disse que foi você quem o seduziu...
- Essa é boa! Imagine se eu ia seduzir aquele velho!
- Não se zangue, Ame... Tália. Não acreditei em nenhuma delas.
- Não?
- Nem em Janete, nem em mamãe. Pensa que sou tola? Que não percebi o que mamãe estava fazendo com você?
- Percebeu?
- É lógico. Sempre notei a diferença de tratamento entre nós duas, mas quero que você saiba que nunca aprovei.
- Sei que não.
- Embora você não compreendesse isso na época, nunca fiquei com raiva de você.
- Por que acha que eu não compreendia?
- Pela maneira como me tratava.
Tália sentiu-se envergonhada. De fato, não conseguia gostar da irmã porque ela era a preferida da mãe e sempre a achara, por isso mesmo, arrogante e esnobe. Mas
Cristina jamais tripudiara sobre ela como julgara. Ao contrário, tentara ser sua amiga, e ela é que não nunca conseguira aceitar sua amizade.
- Não fazia por mal, Cristina - tornou, em tom de desculpa. - Eu era criança também. Tinha ciúmes de você, raiva porque mamãe não gostava de mim...
- Ela é uma mulher doente, Tália. Você não tem idéia das coisas que tenho passado aqui.
- Que coisas? Você sempre foi a sua preferida.
- Esqueceu-se de tio Raul? Ela enlouqueceu por causa dele.
- Como assim?
- Ninguém me disse nada, mas eu sei que ele se entregou à bebida por sua causa. Ouvi os dois discutindo, e mamãe o acusou de haver dormido com você...
- Isso é mentira! Raul e eu nunca tivemos nada!
- Sei disso, Amelinha, embora mamãe não acredite.
- Tália! Meu nome não é mais Amelinha, é Tália! Pelo amor de Deus, será que é difícil para você entender isso? Amelinha morreu! Morreu e ficou enterrada no passado!
Eu sou Tália! Tália, ouviu?
Ela começou a chorar descontrolada, e só então Cristina pôde ter a exata noção do quanto havia sofrido. Por isso deveria ser tão importante, para ela, mudar de nome,
porque Amelinha estava associada ao sofrimento, e Tália representava a esperança e o futuro.
- Desculpe-me, Tália, não falei por mal. É que ainda não me acostumei. Vamos, não chore.
Abraçou a irmã com ternura e pousou a cabeça dela sobre seu colo, alisando seus cabelos, despenteados.
- Nunca tive nada com Raul - declarou Tália chorando. - Mamãe nunca quis acreditar em mim ou nele, mas nós nunca nem nos beijamos.
- Eu sei e, no fundo, ela também sabe. Mas tio Raul é apaixonado por você, e isso ninguém pode negar.
- E que culpa eu tenho disso? Não fui eu que pedi para ele se apaixonar.
- Mamãe teve que culpar alguém para poder suportar a indiferença do marido. Como o amava muito, jogou toda a culpa em você.
- Devia me amar também. Afinal, sou sua filha.
- Mamãe só amava tio Raul. Mas até isso acabou. Tio Raul agora é um bêbedo e não trabalha. Perdeu o respeito e os amigos, e mamãe mal o tolera. Vive com ele entre
o amor e o ódio. Ao mesmo tempo em que o repele, apega-se a ele com unhas e dentes.
- Raul está de olho em você?
- Não, não. Ele me trata como se eu fosse sua filha.
- Isso não é ambiente para você, Cristina. Acho que está mesmo na hora de você sair daqui.
- Não sei se mamãe vai permitir.
- Ela não quer para você um futuro melhor?
- Sim, mas acho que não vai aprovar a idéia de eu ir morar com você.
- Porque ela me julga uma perdida? É isso? Cristina assentiu timidamente. - Pois sou uma perdida com dinheiro. Isso deve fazer alguma diferença.
- Talvez... Nossa situação tem andado bastante ruim. Não fosse o dinheiro que você nos manda, não sei como iríamos nos arranjar.
- Por falar em dinheiro, trouxe uma coisa para você - levantou-se e abriu a mala, dela retirando alguns pacotes meio amassados e estendendo um para Cristina. - Não
sei se é do seu agrado.
Era uma caixa grande, embrulhada com papel de seda vermelho, e Cristina a apanhou com euforia.
- É para mim?
- Já disse que é. Vamos, abra.
Cristina desembrulhou cuidadosamente a caixa e levantou a tampa, puxando um vestido de noite lindíssimo, todo branco e enfeitado de pedrinhas brilhantes.
- Tália! Nunca vi nada tão bonito!
Satisfeita porque a irmã, finalmente, a havia chamado pelo seu nome artístico, ao invés de Amelinha, Tália sorriu e levou-a para frente do espelho, avaliando com
ar crítico:
- Você vai ficar deslumbrante nesse vestido.
- Acha mesmo?
- Todos os homens vão cair a seus pés.
- Oh! Tália, nem sei como lhe agradecer.
- Não precisa. E agora, vá experimentando o vestido, enquanto vou levar o presente que trouxe para mamãe. Comprei algo para Raul também, mas acho melhor não dar.
- O que foi que lhe trouxe?
- Para Raul? Uma garrafa de licor. Sei que não devia, mas, na hora, nem me lembrei do seu vício.
- Acho melhor mesmo você não dar. Mamãe vai ficar muito aborrecida.
- Tem razão.
Guardou a garrafa de volta na mala e saiu à procura da mãe. Mal chegou à escada e ouviu vozes altercadas, partindo do andar de baixo, e logo deduziu que Raul havia
chegado e que eles estavam discutindo. Durante alguns segundos, hesitou sem saber se devia ou não ir ao seu encontro. Um clique soou mais atrás, e Cristina saiu
do quarto e caminhava em sua direção. Nem tivera tempo de experimentar o vestido novo.
- Você também ouviu? - perguntou Tália.
Cristina apenas assentiu. Passou por Tália sem dizer nada e começou a descer os degraus, com a irmã logo atrás.


Capítulo 17


Tereza mal conseguia dominar o ódio que, naquele momento a invadia. Tinha diante de si um Raul completamente alterado pela bebida, ansioso pelo reencontro com a
enteada.
- Você é um bêbedo, devasso! - gritava Tereza. Mal se agüenta em pé e ainda pensa em fazer sexo com a cadelinha!
- Você está... Imaginando coisas... - balbuciou ele, a voz meio engrolada. - Nunca fiz sexo com Amelinha... Nunca...
- Velho idiota! Pensa que ela agora vai querer você? Está mudada, vistosa, elegante. Virou atriz, pode imaginar quantos homens têm freqüentado a sua cama?
- Isso... Não me interessa... O fato é que... Ela voltou...
- Pensa que voltou por sua causa? Quanto atrevimento! Ela veio para me ver, a mim, que sou a mãe dela! Você não passa de um velho nojento e asqueroso.
Raul passou por ela cambaleante e foi em direção à cozinha. Precisava raciocinar com mais clareza, não entendia bem o que Tereza lhe dizia. A mente, toldada pelo
efeito do álcool, não concatenava os pensamentos de forma a lhes dar compreensão. Abriu a torneira da pia e enfiou a cabeça debaixo da bica, deixando que a água
fria lhe refrescasse as idéias. A voz de Tereza retumbava em seus ouvidos, e ele tentou fugir, mas não tinha para onde ir. Avistou o bule sobre o fogão e foi servir-se
de uma xícara de café frio e sem açúcar, enquanto a mulher continuava a berrar:
- Não o quero andando atrás dela, ouviu? Fique longe dela!
- Deixe-me em paz, Tereza! - conseguiu ele, finalmente, gritar.
- Deixá-lo em paz, não é? Para quê? Para você ir correndo para os braços dela? Isso é que não. Você pode ser um bêbado idiota e repulsivo, mas ainda é meu marido!
Não o quero envolvido com aquela ordinária!
- Ela é sua filha, mulher, sua filha!
- E você é meu marido. Dê-se o respeito o mantenha-se afastado.
- Por que está fazendo isso comigo, Tereza, por quê? Será que os anos não foram suficientes para você esquecer?
- E você esqueceu? Se a houvesse esquecido, não teria se entregado à bebida e se tornado o porco que você é!
- Deixe-me em paz!
Num gesto impensado, Raul ergueu a mão e desferiu-lhe violenta bofetada na face, fazendo com que ela desabasse no chão com estrondo. Na mesma hora, arrependeu-se
e correu para ela, choramingando com seu jeito de beberrão:
- Perdoe-me, Tereza... Perdi a cabeça, não fiz por mal.
- Afaste-se de mim! - vociferou ela, empurrando-o com as mãos. - Ousa bater-me de novo, por causa daquela vagabunda?
- Foi sem querer...
- Sem querer, uma conversa! Você me bateu de propósito, porque conheço os seus pensamentos imundos.
- Não é verdade, Tereza, eu perdi a cabeça. Você estava me acusando de algo que eu não fiz, me perseguindo...
- E por isso você me bate, cachorro?
- Não fiz por mal. Por favor, Tereza, acredite em mim. Perdoe-me! Perdoe-me!
Ela já ia responder com mais impropérios quando ouviu uma voz familiar atrás de si:
- Posso saber o que está acontecendo aqui? Era Tália, que havia chegado à cozinha em companhia da irmã.
- Tio Raul, o senhor bateu em mamãe? - indignou-se Cristina, correndo para ela.
Mas Raul já não a ouvia. Tinha os olhos presos na silhueta esguia e elegante de Tália, que o mirava com um misto de nojo e piedade.
- Amelinha... - balbuciou ele, aproximando-se dela. - Você está tão bonita!
Tália pensou em dizer-lhe que não se chamava mais Amelinha, mas que diferença faria? O estado do padrasto era repugnante, mas ao mesmo tempo lhe despertava piedade,
e ela se afastou quando sentiu o seu hálito de bebida.
- Por que foge de mim? - prosseguiu ele, estacando ao perceber o seu ar de repulsa.
- Raul... - ela se esforçou para falar - por favor, acalme-se.
- Eu estou calmo. Senti sua falta, Amelinha. Soube que você agora é uma atriz famosa. Está casada?
Ela olhou para a mãe de soslaio, notando, de imediato, o seu ar de reprovação.
- Não - respondeu hesitante -, não estou casada... Mas tem alguém em minha vida, se é o que quer saber.
- Um homem? - ela assentiu. - E ele a trata bem?
- Ele é maravilhoso.
- Saia daqui, Raul! - ouviu Tereza berrar de repente. - Vá-se embora!
- Não - objetou Tália, penalizada com o estado do padrasto. - Deixe-o ficar. Afinal, vim visitar a família, e ele é parte da família também.
- Ele me bateu - protestou Tereza, o rosto inchado e vermelho, não tanto da bofetada quanto da raiva que sentia. - Isso não é jeito de um marido tratar a esposa.
- Já lhe pedi desculpas! - rebateu Raul com irritação. - Não aceita porque não quer.
- Pensa que é assim, é? Não sou mulher de ficar apanhando, não, ouviu?
Ante aquela discussão, Tália sentiu vontade de sair correndo dali. Jamais deveria ter voltado. Sem querer, piorara a situação entre eles. As coisas não andavam nada
bem, mas a presença dela só servira para acirrar ainda mais os ânimos já exaltados.
- Deixe-o ficar, mãe - insistiu ela. - Não vê que ele não sabe o que faz?
- Vai justificar a sua covardia com a bebida?
- Não o estou justificando, mas não quero que vocês briguem por minha causa. Não foi para isso que vim.
- Ah! Não foi mesmo - retrucou Tereza. - E já que comentou, gostaria de saber por que veio. Por mim é que não foi. Será que não foi para provocar Raul?
Tália engoliu aquela acusação e quis lhe falar de sua intenção de levar a irmã para morar com ela no Rio de Janeiro, mas Cristina interveio em tom conciliador:
- Tália lhe trouxe um presente, mamãe.
- Tália? - resmungou Raul. - Mas quem, diabos, é Tália?
- Sou eu, Raul - respondeu ela, calmamente. - Esse é o meu nome artístico, e é por ele que gostaria de ser chamada agora.
- Mas...
- Mostre a mamãe o presente que lhe trouxe sugeriu Cristina, tentando desfazer o clima de mal-estar.
Sem nenhuma vontade, Tália entregou à mãe o pacote, que ela atirou para o lado sem nem mesmo o olhar. Foi Cristina quem o desembrulhou e revirou nas mãos o xale.
- É muito bonito, mamãe - elogiou a moça, forçando a mãe a olhar. - Tália tem muito bom gosto.
- Se é o que de melhor o dinheiro dela pode comprar...
- Ah! E ela me deu um vestido maravilhoso! Você precisa ver!
- Como ela é generosa! E para Raul? O que foi que lhe trouxe? Vai lhe dar algo de presente além de... - não concluiu a frase, engolindo em seco a raiva que inundava
o seu coração.
O tom de ironia e ódio de Tereza causou imensa indignação e raiva em Tália, que teria virado as costas e ido embora naquele momento, não fosse o olhar de expectativa
de Cristina e a postura derrotada de Raul.
- Não precisa se preocupar com isso, Amelinha objetou Raul. - Sabe que não ligo para presentes.
Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, a mãe prosseguiu com o seu sarcasmo:
- É claro que ela não lhe trouxe nada, velho idiota. Quem se preocuparia com um bêbado inútil feito você?
Aquilo já era demais. Tereza não precisava humilhá-lo daquele jeito.
- Na verdade, Raul, trouxe-lhe um presente, sim - afirmou Tália, encarando a mãe com ar de desafio.
Raul parecia aniquilado e não disse nada, mas Tália virou as costas e foi direto ao quarto, voltando em seguida com o embrulho da garrafa nas mãos. Ainda ouviu a
voz insegura de Cristina tentando protestar, mas não lhe deu ouvidos. Segurou a mão de Raul e nela depositou a garrafa, acrescentando com preocupação:
- Tome cuidado. Não é para beber feito água.
Ele desembrulhou o pacote mecanicamente e, ao revelar o seu conteúdo, apertou a garrafa de licor contra o peito, já sentindo a boca salivar.
- Ora, vejam só! - desdenhou Tereza. - Então é isso que ela tem para lhe dar? Que presente melhor para um bêbado do que álcool para alimentar o seu vício?
- É um licor, mãe - defendeu-se Tália. - Um licor fino. Não é para se embebedar, mas para saborear em ocasiões especiais.
- Todas as ocasiões são especiais para ele, não é, Raul? Todo dia é dia de degustar uma boa dose de pinga!
- Mamãe, Tália comprou a bebida sem nem se dar conta... - esclareceu Cristina.
- Não precisa me defender! - objetou Tália, já sentindo a antiga rivalidade assomar novamente. - Comprei o licor porque queria dar a Raul algo que ele gostasse,
e não é culpa minha se ele não sabe impor seus limites.
- Por que foi que veio aqui, Amelinha? - tornou a mãe com fúria. - Por que quer desgraçar ainda mais a nossa vida? Veio rir de nós, trazendo-nos presentes caros
e de nenhuma utilidade para a nossa miséria? - Ou será que quer destruir de vez a vida de Raul, para se vingar porque ele não me abandonou e a seguiu?
- Você é doente, mãe. E me dá nojo.
- Se é assim, não deveria ter vindo.
- Tem razão. Jamais deveria ter voltado aqui.
- Pois vá-se embora! Ninguém a chamou, você não tinha nem motivos para vir. Volte para sua vida de libertina lá no Rio de Janeiro.
Tália chegou a girar o corpo na direção da escada. Queria apanhar a sua mala e sumir dali. Mas o olhar de súplica de Cristina a deteve, e ela se endireitou e ajeitou
a saia. Não podia abandonar a irmã depois da promessa que lhe fizera, da esperança que lhe dera de seguir com ela para uma vida melhor.
- Ouça mamãe - falou ela com vagar, esforçando-se para parecer mais comedida. - Não vim aqui para brigar nem tive intenção de ofendê-la, nem a ninguém. Vim com um
propósito específico e não gostaria de partir antes de concluí-lo.
- Mas que propósito? - tornou Tereza desconfiada, fitando Raul pelo canto do olho.
- Na verdade, gostaria de levar Cristina comigo.
- Levar Cristina? - repetiu ela, entre incrédula e atônita. - Para o Rio de Janeiro?
- Sim, para o Rio de Janeiro. Para onde mais haveria de ser?
- Isso é algum tipo de piada? Pois se for, é de muito mau gosto.
- Não é nenhuma piada. Cristina vai gostar de morar no Rio e...
- De jeito nenhum! Jamais vou permitir que minha filha parta para aquele antro de perdição!
- O Rio não é nenhum antro de perdição. E a capital do país e é onde estão as melhores chances de trabalho.
- Só se for para gente feito você, que não tem vergonha na cara e fica exibindo as pernas para um monte de homens devassos.
Tália engoliu a ofensa e prosseguiu, esforçando-s ao máximo para não gritar com Tereza novamente:
- Está enganada, mãe. Posso dar uma vida melhor a Cristina...
- Vida melhor? Como a que você levou em São Paulo?
- Não compare as coisas! - rebateu Tália com raiva. - Só porque você me vendeu para Dona Janete não significa que vou fazer o mesmo com minha irmã!
- Eu não a vendi para ninguém. Você foi para uma casa de família, mas preferiu se perder a levar uma vida honesta, com um trabalho digno.
- Trabalho digno? Dona Janete me fazia trabalhar sem descanso e nem me pagava salário! E ainda me atirou para aquele velho nojento que era o seu Anacleto.
- Foi você quem se entregou a ele porque quis, por dinheiro. E depois fugiu com aquele boêmio. Pensa que Janete não me contou?
- Está bem, mãe, não vou discutir. Se for o que quer acreditar, acredite, eu não me importo. Só o que lhe peço é que me deixe levar Cristina comigo.
- Por favor, mamãe, deixe-me ir - implorou Cristina. - Tália vai cuidar de mim.
- Ela não soube nem cuidar dela direito. Como é que vai cuidar de você?
- Ao que me conste, me saí muito bem sozinha.
- Mas a que preço!
- Pare de fazer teatro, mamãe, não é você a atriz aqui. Não precisa mais encenar essa preocupação excessiva. Todos sabem o quanto você se importa com Cristina, mas,
por favor, deixe-me levá-la comigo.
- Jamais! Cristina é menor de idade e só sai desta casa com a minha permissão.
- Deixe a menina ir... - balbuciou Raul, que até então se mantivera calado. - É o que ela quer. Não desconte nela a sua frustração e deixe-a ser feliz.
- Não se meta nisso, Raul! - vociferou Tereza, sentindo o ódio recrudescer com a intervenção do marido. - Cristina é minha filha. Sou eu quem vai decidir o seu futuro.
Só eu sei o que é melhor para ela!
- Porque está fazendo isso, mamãe? - questionou Tália desanimada. - Só porque me odeia, não precisa descontar em Cristina.
- Não estou descontando em ninguém, muito menos em Cristina. Acontece que você não é o que se pode chamar de uma educadora apropriada.
- E você, por acaso, é? Qual foi a educação que nos deu? A mim, particularmente? Mandou-me para uma velha decadente que só quis me ensinar a ser mulher da vida.
- Atrevida! Sou sua mãe, você não tem o direito de falar assim comigo.
- Agora se lembra de que é minha mãe, não é? Quer que eu a respeite, mas se esquece de que sou sua filha e que é seu dever me respeitar também.
- Filha? Mas que filha? Não preciso de uma filha feito você.
- Ah! Não? Vamos ver se vai continuar pensando assim quando eu parar de lhe enviar dinheiro.
- Você seria bem capaz disso, não é? Seria capaz de enriquecer e matar a mãe e a irmã de fome. Pois eu não preciso do seu dinheiro, ouviu? Posso trabalhar e sustentar
esta família!
- Pense bem no que está dizendo, mãe - objetou Cristina. - A senhora já se esqueceu como as coisas estavam difíceis para nós antes de Tália nos ajudar?
- Isso não é motivo para ela me insultar! Se é para me ofender dessa maneira, prefiro que me deixe morrer à míngua!
- Você é muito mal-agradecida, mãe. Mas não faz mal, eu não me importo. Desde que deixe Cristina ir comigo, continuarei a lhe mandar dinheiro, como se nada tivesse
acontecido.
- Pensa que pode me comprar com o seu dinheiro sujo, pensa? Nada disso! Cristina não sai daqui nem por todo ouro do mundo.
- Egoísta como sempre, não é, mamãe? Duvido muito que essa sua relutância em deixar Cristina ir tenha algo a ver com preocupação. Você tem é medo de ficar sozinha
e quer que ela permaneça ao seu lado eternamente, ainda que tenha que sacrificar a sua felicidade!
As palavras de Tália, de certa forma, fizeram efeito em Tereza, que se calou e a encarou com fúria.
Foi Cristina quem falou:
- Por favor... Tália, não diga mais nada. Não quem que você e mamãe se desentendam de novo, ainda mais por minha causa. Deixe isso para lá. Agradeço o que está tentando
fazer por mim, mas não vale à pena. Eu vou ficar. É o que mamãe quer, e eu tenho que obedecer.
Tereza inflou o peito e continuou a olhá-la, dessa vez com ar de triunfo. Puxou Cristina para seu lado a, com a mão pousada em seu ombro, arrematou com frieza:
- Vá embora, Amelinha. Aqui não é o seu lugar, e você jamais deveria ter voltado a esta casa.
A mãe vencera, ela sabia. Não tinha mais argumentos para tentar convencê-la nem pretendia mais sacrificar o sossego de Cristina e Raul. Com os olhos úmidos, lutando
para não chorar na frente de Tereza, Tália concluiu com pesar:
- Você tem razão, eu não devia ter voltado. Hoje mesmo parto para o Rio e pretendo nunca mais pôr os pés nesta casa enquanto viver. Só lamento não poder levar Cristina
comigo.
- Sua irmã vai ter uma vida decente, coisa que você não soube ter.
- É isso mesmo. Dê-lhe a vida que deseja para ela. Só espero que isso não a faça infeliz.
Rodou nos calcanhares e saiu, sentindo o calor das lágrimas que agora começavam a escorrer.

***

Depois que a porta se fechou, Tereza voltou para dentro com o ódio ardendo em seus olhos. Se pudesse, mataria a filha. Ela fora até sua casa só para humilhá-la e
mostrar a sua superioridade. Mas ela não era nada. Podia se fazer de importante para os homens da capital, mas, para Tereza, ela não passava de uma prostituta de
luxo.
Olhou para Cristina, que permanecia sentada no sofá, os olhos baixos e úmidos, tentando disfarçar a decepção.
- Você não tem motivos para ficar triste - aborreceu-se Tereza. - Fiz-lhe um favor em não deixá-la ir. Acabaria se tornando uma ordinária feito sua irmã.
- Tália não é ordinária... - rebateu.
- Tália... Até o nome soa como o de uma vagabunda. Se fosse decente, não mudaria de nome.
- Ela agora é uma artista, mãe. E artistas usam nomes assim.
- Artista, sei... De qualquer forma, soa melhor do que prostituta.
- Não é verdade! Tália não é prostituta.
- Não se iluda minha filha, é o que todas as atrizes são. E você, dê-se por feliz por ter uma mãe que se importa com você e que a livrou desse destino. Você é linda
e vai se casar com um bom rapaz, que irá tirá-la dessa vida e lhe dar outra muito melhor. Você vai ver. - Fez uma breve pausa, olhou ao redor e indagou com desdém:
- E Raul, onde está?
- Acho que foi para o quarto.
Tereza começou a subir a escada e, sem se voltar, ordenou à filha que fosse para a cama. Alcançou o quarto e, sem fazer barulho, empurrou a porta e entrou. Para
sua surpresa, Raul estava debruçado sobre a escrivaninha, escrevendo o que parecia ser uma carta. Um pouco mais atrás, na mesinha de cabeceira, a garrafa de licor
jazia intocada.
Aquela cena provocou um ódio incontrolável em Tereza. Pelos suspiros que ele exalava, ela nem precisava ler a carta para saber que Raul escrevia a Amelinha. O que
será que dizia? Contar-lhe-ia de sua louca paixão, da sombra de homem em que se transformara depois de sua partida? Tereza sentiu ímpetos de agredi-lo pelas costas.
Seria bem-feito, depois de todas as humilhações por que a fizera passar. Ainda sentia na face a ardência do tapa que ele lhe dera havia pouco. Não fora propriamente
dolorido, mas a dor da humilhação não passaria jamais.
Se tivesse uma faca, Tereza certamente a cravaria nele. Contudo, nada tinha em mãos, e não havia por perto nenhum objeto que servisse a seus propósitos. E depois,
pensou, não queria ir para a cadeia por causa daquela ordinária. Mas como seria bom se Raul morresse! Tereza já não podia mais suportar a loucura que era o amor
que ele sempre sentira pela filha. Com o passar dos anos e a ausência de Amelinha, aquela paixão acabara por consumi-lo, levando-o à derrocada física e moral. Raul
hoje era um bêbedo vagabundo o asqueroso, e tudo por causa da filha.
Já ia tornar a sair quando ele amassou o papel que escrevera e atirou-o no chão, choramingando feito um covarde:
- Não posso! Não tenho coragem!
Raul levantou-se de um salto, e Tereza, assustada, recuou pelo corredor, indo esconder-se no quarto de Cristina.
- Mamãe! - assustou-se a menina, já deitada na cama, tentando dormir. - O que foi que houve?
- Nada... - balbuciou ela, o coração aos pulos. - Durma...
Tereza espiou pela porta entreaberta, mas Raul já havia descido as escadas aos tropeções. Cuidadosamente, saiu do quarto, ao mesmo tempo em que ouvia a porta da
frente bater. Ele havia saído. Mais que depressa, voltou para seu quarto e apanhou o papel amassado no chão. Desdobrou-o avidamente e leu:

Minha querida Amelinha,
A vida sem você tem sido um suplício. Desde sua partida, não passa um dia sequer em que não pense em você e sinta, em meus sonhos despertos, o calor de seu corpo
e de seus beijos. Isso está me levando à loucura... Sinto imensa culpa por não poder amar sua mãe, mas é a você que eu amo. Sempre amei. Assim que entrei nesta casa,
apaixonei-me por você. Você era ainda uma menina, linda aos meus olhos, e não pude deixar de sentir o que senti. Por que não me casei com você? Sei que é loucura,
mas quantas vezes eu desejei que você estivesse no lugar de sua mãe, só para poder tê-la em meus braços e em meu leito?
Não posso mais suportar. Entre viver essa meia-vida e não viver, prefiro não viver. Não quero que você se sinta culpada pelo que vou fazer, mas é que já não agüento
mais. Sua mãe também não está feliz e quer fazer sua irmã infeliz também. Isso não é justo. Não quero mais essa culpa. Não quero ainda ser responsável pela infelicidade
de Cristina. Peça a sua mãe que me perdoe. Tentei amá-la como devia, mas não pude, e não será ela a última pessoa em quem estarei pensando no derradeiro instante
de minha vida. Sei que Tereza vai me odiar ainda mais pelo que vou fazer, mas é a única saída. Para mim, para ela, para você...
Fico imaginando como será deixar de existir...
Em breve saberei. Levarei como última lembrança a imagem da Amelinha criança que eu sempre protegi e amei.
Amo você mais do que a própria vida, e é por não poder ter o seu amor que não me julgo no direito de viver.
Adeus.
Raul.

A cada linha, o ódio consumia mais e mais pedaços do coração de Tereza. Ao terminar de ler a carta toda, parecia que um ácido lhe queimava as entranhas. Então o
idiota do Raul deixava uma confissão escrita de sua leviana paixão por Amelinha. Mas como era estúpido! Covarde, para não dizer coisa pior. Choramingava porque não
tinha nem coragem de se matar!
Tereza tornou a amassar a carta e já ia rasgá-la quando uma idéia brotou em sua mente desvairada. Naquele momento, o ódio lhe inspirou o crime. Atirou o papel amassado
de volta ao lugar onde o havia apanhado, deu uma olhada rápida na garrafa de licor e desceu correndo para a cozinha. Abriu a despensa com sofreguidão e apanhou uma
cadeira, revirando a prateleira do alto, onde guardava os produtos de limpeza e outras substâncias perigosas. Na ponta dos pés, sem nem enxergar onde remexia, sentiu
que seus dedos tocavam uma superfície lisa e fria, percebendo que era um vidro. Esticando-se o mais que podia, puxou para fora o vidro e virou-o nas mãos. A palavra
VENENO apareceu nítida e alarmante, e ela apertou o frasco entre os dedos. Era daquilo mesmo que precisava.
Desceu da cadeira e fechou a porta da despensa, voltando para o quarto com um saca-rolha e o vidro bem apertado nas mãos. Entrou e fechou a porta, olhando novamente
para ele. Era veneno para ratos, e ela sabia que podia ser fatal. Apanhou a garrafa de licor na mesinha de cabeceira, descolou o lacre de papel e tirou a rolha com
cuidado, para que não se esfacelasse. A rolha cedeu com facilidade, e ela destampou o frasco de veneno. Levou-o às narinas e sentiu o seu cheiro forte, mas duvidou
que Raul percebesse alguma coisa. Além do aroma e do sabor açucarados do licor, voltaria mais bêbado do que quando partira e não sentiria nada. Só o prazer do álcool
descendo pela sua garganta.
Olhando para o vidro de veneno, hesitou ainda por alguns instantes. Vira alguns ratos se contorcendo sob seu efeito e imaginou o quanto aquela morte podia ser dolorosa.
Será que teria coragem de assistir às contorções do corpo de Raul e deixá-lo morrer naquela agonia? Sua mão se conteve por alguns instantes, em que ela refletia.
E se, após ministrado o remédio, se arrependesse? Teria tempo de salvar-lhe a vida? Não, não podia se arrepender. A polícia iria desconfiar e fazer perguntas, e
logo descobriria que fora ela quem misturara o veneno ao licor. Não podia correr aquele risco. Ou despejava o veneno, ou levava-o de volta para a despensa.
A carta continuava jogada a um canto, o que reavivou todo o seu ódio. Deixar Raul viver significava permitir que ele continuasse amando Amelinha, e isso, ela não
podia mais tolerar. Tinha a carta de suicídio, assinada por ele, e ninguém colocaria em dúvida a sua inocência. O frasco de veneno ao lado do licor mostraria que
ele, deliberadamente, o havia ingerido, e ela sairia ilesa. Ninguém iria desconfiar. Nem Amelinha. Pena que não podia acusá-la. Se tentasse fazer com que ela parecesse
haver assassinado o padrasto, alguém poderia começar a investigar e acabaria descobrindo a verdade. Não. O melhor seria vingar-se daquela maneira. Mataria Raul,
não sem antes lhe impingir uma tortura moral, e deixaria que Amelinha se sentisse culpada pela sua morte, uma culpa que carregaria pelo resto de sua vida. Seria
perfeito!
Sem mais dúvidas, despejou o conteúdo do frasco na garrafa de licor e agitou-a bem, tornando a ajustar a rosca no gargalo. Escondeu o frasco de veneno e o saca-rolha,
trocou de roupa e deitou-se na cama, para esperar Raul voltar. Por volta das três da madrugada, ele apareceu mais bêbedo do que nunca, fazendo o maior estardalhaço
para subir. Tereza sentiu o coração disparar, com medo de que Cristina acordasse com aquela barulheira. Mas a menina, que havia ido dormir mais tarde do que o habitual,
ferrara no sono e não ouvira nada.
Raul entrou no quarto cambaleante, vendo tudo rodar a sua volta. Já nem se lembrava mais da carta que havia escrito e atirara a um canto. Saíra desatinado pela rua
até o primeiro bar que encontrou aberto e só voltara para casa depois que todos os bares haviam fechado.
- Onde esteve? - perguntou Tereza, demonstrando uma animosidade excessiva.
- Por aí - foi à resposta seca.
- Bebendo, como sempre.
- E... Daí...?
- Quando é que vai deixar essa vida?
- Não me amole, Tereza...
- Você não se cansa de ficar por aí se embebedando? Não tem vergonha? Não tem consideração por mim?
Era preciso provocá-lo um pouco para que ele voltasse a pensar no álcool, o que não foi nada difícil.
- Deixe-me em paz... - tornou ele, a voz enrolada e pastosa.
Já ia se virando para sair novamente quando viu a garrafa de licor, propositalmente colocada em posição que chamasse a sua atenção. A passos incertos, passou a mão
nela e por pouco não a deixou cair, quase levando Tereza ao pânico. Se ele quebrasse aquela garrafa, todo o plano iria por água abaixo.
Raul levou a garrafa aos dentes e facilmente arrancou a rolha, nem percebendo que o lacre já havia sido rompido e a rolha, recolocada. Entornou o liquido na boca
com avidez, e ele desceu queimando pela sua garganta. O gosto era estranho, mas Raul não desconfiou de nada e tomou outro gole longo, que desceu queimando ainda
mais que o primeiro. Subitamente, uma pontada no ventre fez com que ele levasse as mãos ao estômago, e, num primeiro momento, achou que já havia bebido demais. As
náuseas o fizeram pensar que iria vomitar, mas nada aconteceu. O estômago é que agora parecia queimar, e ele dobrou o corpo sobre si mesmo, apertando a barriga com
mais força.
Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, Tereza se adiantou, indagando com fingida surpresa:
- O que está acontecendo, Raul? Não se sente bem?
- Não sei... - balbuciou ele. - Sinto uma queimação...
- Você já bebeu demais. Dê-me essa garrafa. Tereza tomou-lhe a garrafa das mãos e cheirou- a, fazendo cara de nojo e espanto.
- Isso tem cheiro de veneno de rato! - exclamou, afastando-a rapidamente do nariz.
- O quê? Co... Como...?
- Meu Deus, Raul! Amelinha o envenenou!
- Isso... Não é possível...
A dor agora era insuportável, e ele foi dobrando o corpo cada vez mais, até se ajoelhar, para, em seguida, deixar-se tombar no chão, de lado, contorcendo-se horrivelmente.
Parecia que uma fogueira fora acesa em seu estômago, corroendo-lhe a carne e fazendo o sangue borbulhar.
- O que... Está... Acontecendo...? - conseguiu ainda articular.
Depois disso, não conseguiu dizer mais nada. Sentia uma dor terrível, os músculos do abdome se contraindo todos ao mesmo tempo. O ar começou a lhe faltar, a garganta
seca o impedia de respirar. Parecia que todo o seu corpo se agitava em convulsões, enquanto a dor se alastrava pelo ventre.
- Ela envenenou você! - ainda ouviu Tereza gritar. - Amelinha envenenou você! Foi ela! Deu-lhe de presente uma bebida envenenada. E é essa a mulher que você diz
amar! Foi ela, Raul! Ela envenenou você! Assassina! Amelinha é a assassina! Assassina...!
Raul já não ouvia mais nada. Tereza continuava a gritar, mas um torpor indescritível começou a tomar conta dele. A dor foi cedendo lugar a um formigamento, e todo
o seu corpo foi sendo tomado por uma dormência de morte. Em breve, seus ouvidos ensurdeceram, os olhos perderam o brilho e os músculos se distenderam numa rigidez
prematura. Raul estava morto. Levava consigo a lembrança de Amelinha, nas palavras de Tereza, acusando-a de assassina.

***

De posse do bilhete de suicídio, a polícia encerrou o caso sem maiores indagações. Estava claro que o homem, por não poder mais suportar a paixão pela enteada, dera
cabo da própria vida. Todos acreditaram naquela versão, inclusive Cristina e a própria Tália, que não podia deixar de se sentir culpada. Se não tivesse partido daquele
jeito, talvez aquilo não houvesse acontecido.
Como Tália ainda estava na cidade, hospedada no único hotel então existente, não foi difícil localizá-la. Ela assistiu ao sepultamento com pesar, sem trocar uma
palavra sequer com a mãe ou a irmã. Depois que o caixão baixou à cova, voltou para o hotel, apanhou as malas e deixou a cidade de Limeira, aonde pretendia nunca
mais retornar.
Intimamente, Tereza se regozijava. Conseguira a sua vingança. Não sentia nem uma pontinha de arrependimento, e ver Raul morrer, ao contrário do que a princípio imaginara,
causou-lhe indescritível prazer. A tortura mental que lhe infligira nos instantes finais de sua vida deixou-a como que inebriada com O seu poder. Raul morrera achando
que Amelinha O matara. Se questionara ou não o porquê daquele crime, era algo que ela jamais iria descobrir e que não tinha muita importância. O que importava era
que ele ouvira as suas acusações e registrara na mente, em seus derradeiros momentos de vida, que Amelinha o envenenara propositadamente.
Ninguém sabia disso. Nem Cristina, que nada presenciara. Ferrada no sono, só despertou no dia seguinte, para encontrar a mãe na sala, de camisola, deitada no sofá.
Tereza lhe dissera que adormecera esperando Raul, mas que não o vira chegar. Levantou-se sonolenta, espreguiçou-se e subiu para o quarto, onde sabia que ele jazia
morto, com o frasco de veneno ao lado da garrafa caída e a carta de confissão atirada mais além.
A encenação de Tereza foi comovente. Chorou, esperneou, disse que não acreditava que aquilo tivesse acontecido a ela. Até Cristina se emocionou com tanto desespero.
Mesmo Tália, que não acreditava no seu amor, não pôde deixar de se sentir penalizada. Os parentes e amigos foram unânimes em dizer que ela sempre fora o sustento
daquela família e que aturara de Raul muito mais do que qualquer mulher poderia suportar. E tudo por amor a ele.
Tália voltou para o Rio de Janeiro com o coração partido e amargurado, torturada pelas acusações que Tereza lhe dirigia. Mauro e Ione tentavam consolá-la de todas
as maneiras, dizendo que ela não podia ser responsabilizada pelo ato impensado de Raul, mas ela se sentia culpada por ter provocado o seu amor. Aos poucos, Tália
foi se acostumando com a fatalidade, embora a mágoa daqueles dias permanecesse impressa em seu coração por muitos anos adiante.
- Pare de pensar nos mortos - disse Ione certa vez. - É com os vivos que precisa se preocupar.
- Que vivos?
- Sua irmã, por exemplo.
- Cristina é coisa do passado. Minha mãe foi categórica: não vai deixá-la vir morar comigo nunca. Ainda mais depois do que aconteceu.
- Pode ser. Mas ela deve estar sofrendo muito, ainda mais com a mãe que tem.
- Não posso fazer nada.
- Por que não lhe escreve uma carta?
- Para quê? Para lhe mandar mais dinheiro? Não, Ione, não farei mais isso. Ela e minha mãe que arrumem outra trouxa para sustentá-las.
- Você está transferindo para sua irmã a mágoa que sente de sua mãe. Cristina não tem nada com isso.
- Tem razão, Ione. Mas é que minha mãe não se cansa de me agredir.
- Sua mãe, não sua irmã. Vamos, Tália, escreva para ela. Dê-lhe o seu endereço. Aposto que, se você pedir, ela não contará a sua mãe e ficará muito satisfeita de
poder se corresponder com você.
Tália acabou ouvindo os conselhos de Ione e, daquele dia em diante, ela e Cristina passaram a manter correspondência regular. Até que, cerca de dois anos depois,
Tália recebeu uma carta em que a irmã lhe dizia que a mãe estava doente e precisava se tratar na capital, que era onde ficavam os melhores hospitais e médicos. Tália
refletiu muito em tudo o que Cristina dissera. Por mais que detestasse a mãe, não podia deixá-la morrer à míngua. Afinal, era sua mãe e era graças a ela que estava
viva, ainda que fosse essa a única coisa que lhe devesse. Tália acabou por ceder. Escreveu outra carta, oferecendo ajuda, e Cristina respondeu, aceitando.
Ficou combinado que as duas se mudariam para o Rio de Janeiro. Tália era agora uma pessoa influente e muito rica, e comprou uma casa para elas, não muito próxima
da sua. Poderia cuidar da mãe sem envolvê-la em sua vida. Tereza aceitou a contragosto. Embora detestasse a filha, seu estado de saúde inspirava cuidados, e ela
tinha medo de morrer. Por mais que dissesse a si mesma que não sentia remorso pelo que fizera, temia encontrar Raul na outra vida.
Depois de desencarnar, Raul não se demonstrou um espírito renitente nem empedernido. Passou alguns anos no astral inferior, mas logo foi resgatado, submetendo-se
a um tratamento intensivo, para desintoxicação dos efeitos deletérios do álcool. Não demonstrava intenção de se vingar de Tereza, mas sentia ainda muita raiva pelo
que ela lhe fizera. Ele não queria morrer. Escrevera aquele bilhete num momento de desvario, mas não pretendia levar a cabo o seu intento.
Tereza desconhecia esses fatos, mas, mesmo assim, tinha medo de que o fantasma de Raul a estivesse esperando do outro lado, e pretendia retardar a sua morte o mais
que pudesse. Com o tratamento, começou a melhorar. Sofria de reumatismo e diabetes, mas a medicação e os cuidados adequados colocaram tudo sob controle, e ela pôde
levar uma vida mais tranqüila, principalmente porque Tália não deixava que lhe faltasse nada.
Aos pouquinhos, tudo foi retomando a normalidade. Mesmo próxima Tália não permitia que a mãe interferisse em sua vida, e Tereza, por sua vez, preferia mesmo manter
distância. Não conseguia sentir-se grata pelo que a filha fazia, achava mesmo que era sua obrigação, mas procurava não entrar em embates com ela. Tália a ajudava
porque era seu dever de filha, e ela não via motivos para lhe demonstrar gratidão.




Capítulo 18



Por essa época, os espetáculos de Tália começaram a ganhar repercussão internacional, e ela chegou a viajar várias vezes para se apresentar em países como a Argentina
e a França. Sempre que podia, Mauro a acompanhava, mas havia algo nele que a estava deixando deveras intrigada. Ele continuava caloroso como sempre, embora demonstrasse
um quê de tristeza no olhar que ela não compreendia nem conseguia definir. Não raras eram às vezes em que ele evitava os compromissos sociais, deixando que ela comparecesse
sozinha a jantares e festas.
Sua desculpa era sempre o cansaço, porque ninguém se esforçava tanto para o sucesso de Tália quanto ele. Darci praticamente colocara o teatro em suas mãos, consumindo-lhe
tempo e forças muito além de sua capacidade. Mauro se alimentava pouco e quase não dormia. Trabalhava incessantemente, para que os espetáculos fossem sempre admirados,
e Tália, mais e mais reconhecida.
Tália foi ficando famosa e cada vez mais rica. Os homens a idolatravam e as mulheres a invejavam, mas Tália não se deixava impressionar por nada disso. Tinha muitos
fãs, que viviam a assediá-la, fazendo-lhe convites para jantares e oferecendo-lhe fortunas em troca de atenção, coisas que sempre recusava. Seu amor por Mauro permanecia
intocado, e nada nem ninguém poderia se sobrepor ao que sentia por ele. Tudo parecia correr bem, e eles começavam a falar em casamento, até que veio a guerra na
Europa...
As notícias da guerra causavam espanto a todos. A Europa enfrentava as forças inimigas com coragem e ousadia, e uma vitória dos aliados era esperada para pôr fim
àquele combate sangrento. Vários navios brasileiros haviam sido afundados em águas brasileiras e internacionais, e o Brasil acabou por declarar guerra ao eixo em
1942.
Os espetáculos de Tália tinham então grande repercussão, fazendo referência, por vezes, a episódios, de guerra. Ela agora começava a experimentar uma beleza mais
madura e definida, que ainda continuava a impressionar homens e mulheres. Choviam convites para espetáculos e até para apresentações em festas da alta sociedade,
e Tália fazia apresentações particulares em clubes só para homens e festas reservadas. Com isso, sua fortuna ia aumentando, e ela começou a sentir necessidade de
alguém que a ajudasse a administrar sua vida.
- Acho que sua irmã é a melhor solução - sugeriu Mauro.
- Cristina? Não sei. Isso é trabalho para quem entende do assunto.
- Pois acho que Cristina daria uma ótima secretária e é alguém em quem podemos confiar.
- Você acha?
- É claro. Veja bem: Cristina é de confiança, jamais iria nos enganar ou trair. Podemos deixar tudo por conta dela. Ela pode cuidar de toda a sua parte financeira,
agendar seus compromissos, datilografar sua correspondência...
- O que você acha Ione? - indagou ela à amiga, que vinha entrando na sala.
- Do quê?
- De contratar Cristina como minha secretária particular?
- Excelente idéia! Ela é uma moça inteligente e fina, e pode ajudar muito você. Sem contar que não a inveja nem quer tomar o seu lugar.
- Viu, Tália? - tornou Mauro. - Até Ione concorda comigo.
Tália pensou por alguns minutos, mas já estava decidida. Embora ela e a irmã não fossem propriamente amigas íntimas, Cristina era uma boa pessoa e sempre fizera
tudo para ajudar. Já estava com vinte e quatro anos e só ficava em casa, cuidando da mãe doente.
- Será que minha mãe não vai se opor? - disse Tália, mais para si mesma do que para os outros.
- Depois que ficou doente não larga Cristina para nada.
- Você pode colocar uma enfermeira para ela - aventou Mauro.
- É uma possibilidade.
- Olhe, Tália - acrescentou Ione -, sua irmã é uma moça muito bonita e já está passando da idade de se casar. Não é justo o que sua mãe está fazendo com ela.
- É verdade - concordou Mauro. - Cristina é uma bela mulher e está sozinha até hoje porque sua mãe não lhe dá chance de conhecer ninguém. Vai ser bom para ela ter
um pouco de liberdade.
Eles tinham razão. A mãe sempre dissera que esperava para Cristina um bom casamento, mas nunca lhe permitira se aproximar de nenhum rapaz. Principalmente depois
que Raul morrera, ela fazia as mais variadas chantagens para atrair a atenção e a piedade de Cristina. Com medo de que algo de ruim lhe acontecesse, Cristina acabava
sempre cedendo e permanecia ao seu lado, deixando de viver a própria vida.
- Sabem de uma coisa? Vocês estão cobertos de razão. Vai ser bom para Cristina desgrudar um pouco de mamãe. Terá chances de conhecer um bom rapaz e ainda ganhará
o seu próprio dinheiro.
- E será ótimo para você também, não se esqueça - completou Mauro.
- Sim, será.
No mesmo dia, Tália foi ao encontro de Cristina. A irmã estava sentada com a mãe no jardim, ajudando-a com um bordado, quando ela chegou. A criada que Tália contratara
para auxiliar no serviço doméstico levou-a até elas e se retirou. Quando Cristina a viu chegar, soltou sua parte no bordado e levantou-se para abraçá-la:
- Tália, mas que surpresa! Há quanto tempo não vem nos ver.
Tália correspondeu ao seu abraço e olhou para a mãe, que nem levantou os olhos do bordado.
- Como está passando, mamãe? - perguntou ela, tentando parecer cordial.
- Como Deus quer.
- Você me parece muito bem disposta.
Ela não respondeu e continuou o que estava fazendo, mas Cristina, tomando o braço de Tália, fez com que ela se sentasse no banco, a seu lado.
- Diga-me, Tália, o que foi que a trouxe aqui. Não se trata apenas de uma visita, suponho.
- Imagine se sua irmã ia se dar o trabalho de parar sua vida para vir nos visitar! - retrucou Tereza, com ar de mofa. - Sua irmã é uma mulher muito ocupada, Cristina,
não tem tempo a perder.
Procurando não dar atenção a suas ironias, Tália não respondeu. Virou-se para a irmã e falou pausadamente:
- Vim aqui, especialmente, para falar com você, Cristina. Gostaria de lhe fazer um convite.
- Um convite? O que é? Uma festa?
- Não, não se trata de festa. Trata-se da sua vida. Eu andei pensando... Você já é uma mulher e está presa aqui...
- Sua irmã não está presa aqui! - rebateu Tereza, agora furiosa. - Ela é livre para ir aonde bem entender. O que acontece é que o Rio de Janeiro é uma cidade muito
perigosa para uma mocinha.
- Cristina não é mais nenhuma mocinha - protestou Tália, lutando para não se descontrolar. - É uma mulher agora. Bonita e inteligente, e está desperdiçando a vida,
trancada nesta casa.
- Ela gosta de cuidar de mim. E não está trancada. Pode sair à hora que quiser.
- Ouça, mãe, não vim aqui para discutir com você. Vim para falar com Cristina, e gostaria de falar na sua frente, para que ela não tenha que repetir tudo depois.
O fato é que vim até aqui para lhe oferecer um emprego.
- Um emprego? - indignou-se Tereza. - De quê? De corista no seu teatro? Nada disso! Bem sei que tipo de emprego pode haver onde você trabalha.
- Por favor, mamãe! - zangou-se Cristina. - Está ofendendo Tália e falando do que não sabe. Deixe-a terminar o que veio dizer.
Tália lançou-lhe um olhar agradecido e continuou:
- Como eu ia dizendo, vim lhe oferecer um emprego. É para trabalhar comigo, como minha secretária particular. - O espanto no olhar de Cristina foi tão genuíno que
Tália achou que havia dito algum absurdo. - Veja bem, Cristina, não me leve a mal. Eu só pensei que você talvez gostasse de ter o seu próprio dinheiro e, mais do
que isso, ter uma vida social. Como é que pensa em arranjar um marido se não sai de casa? Mas se você não quer, não faz mal... Posso arrumar outra pessoa...
- Não, não! - cortou Cristina, agora conseguindo dominar o espanto. - Estou encantada! Trabalhar com você é tudo com que poderia sonhar.
- Você quer dizer que aceita?
Ela olhou para a mãe, que observava a cena com o ódio transbordando no olhar, e hesitou uns instantes:
- E quanto à mamãe? Ela não pode ficar sozinha, e a empregada não dá conta.
- Vou pagar uma enfermeira para cuidar dela. Não vai lhe faltar nada.
Podia-se perceber claramente o entusiasmo de Cristina. Ela se dividia entre o desejo de aceitar aquela oferta maravilhosa e o medo que sentia de que a mão não aprovasse.
- Cristina! - berrou Tereza, notando a sua hesitação. - Não vá me dizer que você vai aceitar esse trabalho indecente!
- O que há de indecente em secretariar uma atriz - replicou Tália, agora bastante irritada. - Indecente, para mim, é uma mãe velha que não se importa do ver a filha
perdendo a juventude e que só pensa em si. Será que não lhe ocorreu, mamãe, que a sua vida está no fim, mas que Cristina ainda tem muito que viver?
- No fim? Por quê? Pretende me matar corria matou seu padrasto?
- Eu não o matei! - vociferou Tália, levantando se de um salto. - Não é culpa minha se ele se suicidou
- Você viu o bilhete! Ele se suicidou por sua causa! Porque você o enfeitiçou com esse seu jeito de... Meretriz!
Por pouco Tália não a esbofeteou. Foi preciso reunir todas as forças de que era capaz para conseguir se conter.
- Não tenho mais o que fazer aqui - respondeu ela com frieza. - Cristina, o convite está feito. Pense bem e depois me dê uma resposta. Mas cuidado: pense com a sua
cabeça, faça o que é do seu desejo. Não deixe que mamãe a convença a viver numa sepultura.
Deu as costas e saiu apressada. Não podia agüentar nem mais um minuto a presença da mãe. Por que ela tinha que ser tão insuportável? Porque a odiava tanto? Cristina
ficou vendo-a se afastar, remoendo o desagrado com as palavras da mãe. Depois que ela desapareceu, virou-se para Tereza e, com ar decidido e aborrecido, declarou:
- Mamãe, sempre fiz tudo pela senhora, o que me pediu e até o que não pediu, porque está doente e sozinha. Mas Tália tem razão. Não é justo que eu deixe de viver
a minha vida para que a senhora viva a sua.
- Filha ingrata! Depois de tudo o que lhe fiz como pode voltar-me as costas?
- A senhora está sendo teatral, mamãe. Tália disse que vai pagar alguém para cuidar da senhora, nada vai lhe faltar. E depois, não vou me mudar. Vou trabalhar e,
quando terminar, volto para casa.
- Você vai me deixar. Vai encontrar um homem e vai se perder, como sua irmã.
- Não diga bobagens, mãe. Não vou me perder. E depois, já não sou mais uma garotinha. A maioria das moças, na minha idade, já está casada.
- Mas você ainda pode arranjar um bom partido. Não se deixe enganar pelas facilidades que Amelinha Oferece.
- Ela não está me oferecendo facilidade alguma. Ofereceu-me trabalho. A sua mente distorcida é que está colocando intenções escusas onde só existem bons propósitos.
E depois, ela tem razão: como posso me casar se não saio de casa, não vou a lugar algum?
- Deus coloca a pessoa certa no nosso caminho, minha filha. Não precisa sair correndo atrás de ninguém.
- Pode até ser. Mas como descobrir que a pessoa certa está no meu caminho se eu não sigo caminho nenhum? O fato, mamãe, é que a senhora, lá no fundo, não quer que
eu me case porque tem medo de ficar sozinha. Mas isso não vai acontecer. Garanto-lhe que, enquanto viver, não deixarei de lhe dar assistência.
- Diz isso agora. Depois que conhecer um homem que lhe virar a cabeça, nem vai mais se lembrar de que eu existo.
- Não é verdade. Não sou uma pessoa egoísta e nem mal-agradecida.
Tereza percebia, nitidamente, que estava perdendo terreno para a filha. Ela parecia mesmo decidida a aceitar o emprego que Tália lhe oferecia, o que significava
que começaria a sair mais e, provavelmente, em breve conheceria alguém. Ela era bonita e inteligente, e não lhe iriam faltar pretendentes. Mais um pouco e se casaria,
deixando a casa e a ela. Não adiantava gritar nem discutir. Ela estava começando a perder a autoridade sobre a filha, que já não era mais criança e saíra de seu
controle.
- Por favor, Cristina, não aceite esse trabalho - ela quase implorou, deixando que as lágrimas lhe umedecessem os olhos. - Vou ficar abandonada e só. O que será
de mim com uma enfermeira estranha o fria? Ninguém vai cuidar de mim como você.
- A senhora está exagerando. Até parece que é inválida. A enfermeira será mais uma dama de companhia, assim como eu estou sendo.
- Por favor... Não pense só em você, pense um pouquinho em mim.
- Estou pensando em nós duas, e é por isso que vou aceitar o emprego.
- Não faça isso, eu lhe imploro.
- Não adianta mãe. Já está decidido. Quer a senhora aprove ou não, vou trabalhar com Tália.
- Maldita Amelinha! - vociferou ela, atirando ao chão o bordado. - Tirou-me o marido e a felicidade. Quer tirar-me também a filha!
- Ela também é sua filha, por mais que a senhora não goste e nunca se lembre disso.
Cristina apanhou do chão o bordado que ela atirara, passou a mão para limpá-lo e tornou a colocá-lo no colo de Tereza. Gentilmente, acariciou-lhe o rosto, deu-lhe
um beijo suave e entrou em casa. Tomou banho, vestiu-se e saiu ao encontro de Tália, disposta a iniciar uma nova vida, a se transformar em mulher.

***

Em uma semana, Cristina já havia aprendido todo o serviço. Familiarizara-se com a conta bancária, a correspondência, a agenda, os compromissos. Como era inteligente
e caprichosa, logo colocou a vida da irmã em dia, deixando-a satisfeita, sem que tivesse que se preocupar com nada. Tinha duas pessoas de confiança trabalhando para
ela: Ione, que cuidava da casa, e Cristina, que cuidava de sua vida pessoal. Agora podia dedicar-se à dança com muito mais tranqüilidade, sem se deter nos afazeres
que a vida diária lhe impunha.
Tália partiu para o teatro mais satisfeita do que nunca naquela noite de sábado, mas notou algo estranho ao chegar. Darci, dono da casa noturna, estava acabrunhado
e arredio. Mal a cumprimentou, evitando encará-la de frente.
- O que foi que houve Darci? - perguntou ela, tintando puxar assunto.
- Nada. Depois do espetáculo, falaremos.
Tudo transcorreu normalmente, como sempre. Tália dançou como nunca, e os aplausos se derramaram sobre ela, junto com uma chuva de flores. Depois que todos se foram,
ela se juntou a Mauro e ao resto da companhia, para esperar Darci. Estavam todos ali presentes, desde as estrelas do espetáculo até os rapazes da bilheteria.
- O que será que está acontecendo? - indagou uma corista.
- Não sei - respondeu outra. - Será que vamos todos ter aumento?
- Vai ver, seu Darci foi convocado para a guerra - gracejou um rapazinho de óculos.
- Por que não esperamos para ver? - tornou Mauro, irritado com aquela conversa.
- Você sabe o que é - sussurrou Tália ao ouvido dele.
Nesse momento, Darci entrou em companhia de outro homem, bonito, elegante, discreto, usando uns óculos fininhos, que lhe emprestavam um ar maduro e intelectual,
o tipo do gentleman.
- O motivo de eu ter reunido todos aqui - começou Darci, sem nem cumprimentar os presentes -, é para anunciar que, a partir de hoje, vocês terão um novo patrão.
Trata-se do senhor Honório Passos Pompeu, aqui presente, novo dono do teatro...
Com um gesto de mãos, Darci apresentou Honório, que deu um passo adiante e cumprimentou a todos com um sorriso espontâneo.
- Boa noite - falou ele, com uma voz suave e, ao mesmo tempo, firme e segura. - Darci já me apresentou, por isso, não vou ficar me repetindo. Sei que, para muitos
de vocês, será difícil conviver com um novo patrão. Mas quero que saibam que estou disposto a trabalhar pelo melhor, e as modificações que pretendo empreender não
prejudicarão nenhum de vocês.
- O que o senhor quer dizer com isso? - perguntou uma dançarina mais ousada.
- Quero dizer que não pretendo despedir ninguém, a não serem aqueles que não se adaptem ao meu ritmo de trabalho.
- E que ritmo é esse?
Ele estendeu os braços e deu de ombros.
- Pretendo renovar o espetáculo, e todos vocês passarão por mudanças. Aquilo a que estão acostumados, podem esquecer. Tenho idéia de fazer um espetáculo no nível
daqueles exibidos na Europa, onde a nossa estrela, eu sei, já teve oportunidade de se apresentar.
Disse isso e apontou para Tália, que o observava em silêncio, sem saber o que pensar. Mudanças no ritmo do espetáculo poderiam implicar em muitas coisas, principalmente,
a despedida de Mauro. Ela balançou a cabeça, pigarreou e ergueu a mão, perguntando em seguida:
- Senhor Honório, por favor. Um espetáculo como os exibidos na Europa requer um coreógrafo familiarizado com os padrões europeus. Tem alguém assim em mente?
- Você não entendeu minha cara. Quando digo Europa, estou me referindo à qualidade do espetáculo, à organização, ao vestuário, à orquestração e iluminação. Mas a
coreografia há de ser sempre a nossa. Somos nós que temos o melhor samba, as melhores modinhas, a melhor música e, conseqüentemente, o bailado mais exuberante, do
qual a senhorita é nossa mais ilustre representante.
Seu jeito de falar agradou Tália, que sorriu embevecida.
- O senhor quer dizer com isso que eu, particularmente, não serei atingido pelas suas mudanças? - era Mauro quem perguntava.
- Exatamente. Sei, por Darci, que o senhor é excelente coreógrafo e não pretendo me desfazer de seus serviços. Ao contrário, espero que possamos trabalhar juntos.
- E quanto a nós? - tornou uma corista.
- Como eu disse, vocês não precisam se preocupar com nada. Não pretendo despedir ninguém, seja em que função estiver. Se obtiver colaboração, todos podem contar
com seus empregos.
Durante o resto da madrugada, continuaram conversando, fazendo perguntas que Honório ia respondendo de forma desembaraçada e cativante. Ao final da reunião, já havia
conquistado a simpatia de praticamente todos os empregados. Já estava quase amanhecendo quando se despediram, e Tália seguiu para casa em companhia de Mauro, agora
em seu automóvel importado.
- Por que não me contou? - indagou Tália.
- Contar o quê?
- Você sabia que Darci tinha vendido o teatro. Por que não me disse nada?
- Eu não sabia. Tinha esperanças de que isso não acontecesse.
- Mas você sabia que ele pretendia vender?
- Darci está mal de dinheiro. Coloca a culpa na guerra, mas eu sei que é porque ele gasta tudo o que tem em jogatinas. Endividou-se até a alma a agora não tem como
pagar o que deve. Eu ainda tentei contemporizar, dizendo que a féria dos espetáculos daria para cobrir suas dívidas, mas toda ela já estava comprometida com os credores.
Até nossos salários corriam o risco de ser cortados, e ele disse que ia hipotecar o teatro, para evitar a falência. Hoje, porém, apareceu aqui com esse Honório,
e quando disse que queria conversar conosco, eu já imaginava o que iria acontecer.
Ela suspirou e olhou pela janela do automóvel.
- Você não gostou de Honório, não foi?
- Não é que não tenha gostado. Há algo nele que não me agrada.
- Ele é um cavalheiro. Viu como falou de mim?
- Você está impressionada porque ele a cortejou, só isso.
- Ele não me cortejou! Elogiou o meu talento.
- Ele está de olho em você, como todo mundo. Só espero que você não se deixe atrair pelo seu tipo galante e conquistador.
- Você está com ciúmes.
- Estou sim. Não gostei do modo como ele falou de você.
- Ele não disse nada que você já não tenha ouvido de outros.
- Não foi o que ele falou, mas a maneira como falou. Senti o seu interesse.
- Interesse que você, ultimamente, não tem demonstrado...
Mauro pisou no freio e o automóvel parou bruscamente.
- O que foi que disse?
- É isso mesmo, Mauro. Tenho notado a sua distância.
- Isso não é justo. Trabalho duro para poder lhe dar uma vida confortável.
- Você sabe que não preciso disso. O que ganho é suficiente para nós dois.
- Sou homem, sempre trabalhei para ganhar meu sustento. Não posso agora viver à sua custa.
Quando eu a conheci, você era uma menina assustada e indefesa, e precisava de mim. Eu descobri a sua beleza e ajudei a revelar o seu talento. Acreditei e investi
em você, ensinei-lhe tudo o que você sabe. E você aprendeu muito bem, porque está no seu sangue, você nasceu para isso. Hoje você ganha muito dinheiro não precisa
mais de mim.
- Não preciso? E o amor, onde é que fica, Mauro? Não percebe que preciso de você mais do que qualquer outra coisa no mundo?
Ele deu um sorriso irônico e rebateu com desdém:
- Será que precisa mesmo? Ou será que está presa ao passado, à gratidão que sente pelo que fiz por você?
- Como pode dizer uma coisa dessas? Eu o amo!
- Tenho medo de ter me transformado mais em pai do que em amante para você.
Com a ponta dos dedos, ela cerrou os seus lábios, impedindo-o de falar, e retrucou em tom de súplica:
- Case-se comigo.
- Não sei se isso é o melhor para nós.
- Eu amo você.
- Não sei...
- A não ser que você não me ame.
- Não diga isso nunca mais! Pois se tudo o que fiz e faço é por amor a você!
- Se é verdade, então se case comigo...
Não havia como negar que Mauro amava Tália profundamente, e apesar de temer que o amor dela fosse algo passageiro ou ilusório, ele não tinha como recusar. Estava
irremediavelmente preso a ela, e seus olhos encheram-se de lágrimas quando a tomou nos braços e, ao invés de responder, perguntou entre o gracejo e a ternura:
- Quantos filhos você quer ter?
- Oh! Mauro! Isso quer dizer que você quer se casar comigo? Você quer, não quer?
Ele apenas assentiu e a beijou, mas ela se esquivou eufórica e começou a divagar:
- Faremos um casamento em grande estilo. Já estou até vendo as notícias: "Tália Uchoa e Mauro Sodré em enlace matrimonial coberto de glória e pompa. '' Vai ser maravilhoso!
- Faz questão de que seja assim?
- Por quê? - decepcionou-se ela. - Você não quer?
A vontade de Mauro era lhe dizer que não queria nada daquilo; só uma cerimônia pequena e íntima, com apenas alguns poucos convidados, mas Tália estava radiante com
a possibilidade de brilhar novamente nos jornais. Aquilo não tinha a menor importância para ele, mas Mauro não tinha coragem de estragar a sua felicidade. Não era
justo pedir-lhe que abrisse mão do brilho a que tinha direito só por causa de suas cismas e do complexo de inferioridade que sentia com relação a ela, complexo que
ela nem suspeitava existir.
Incapaz de negar o que ela pedia, Mauro afagou o seu rosto e respondeu com uma tristeza que ela, envolvida pela felicidade do momento, não conseguiu perceber:
- Está bem, Tália, faremos como você quer.

***

Como Cristina não costumava ir ao teatro, eram poucos os amigos de Tália que ela já vira, sendo que, alguns, só conhecia por telefone. Era o caso de Honório, com
quem ela nunca se encontrara pessoalmente. No dia da festa de noivado de Tália e Mauro, ele foi dos primeiros a chegar e foi recebido por ela, que fazia às vezes
de anfitriã, enquanto a irmã terminava de se aprontar. Tália tencionava entrar no salão quando a festa já estivesse iniciada, a fim de causar efeito nos convidados.
- Boa noite, senhor Honório - cumprimentou ela, lendo seu nome no convite. - Finalmente nos conhecemos.
- Você só pode ser Cristina, irmã de nossa estrela - respondeu ele, beijando de leve a sua mão. - Estou, realmente, encantado.
- Obrigada. Tália fala muito bem do senhor.
- Por que não deixamos o senhor de lado? - ela riu do seu jeito galante e o introduziu no salão praticamente vazio. - Vejo que cheguei cedo. É um dos meus defeitos,
Cristina, ser pontual, seja em que ocasião for.
- Não creio que pontualidade seja defeito. Para mim, é uma qualidade admirável.
- Não tão admirável quanto a sua beleza.
Ela corou violentamente. Não estava acostumada a receber elogios assim tão diretos.
- Está sendo gentil... - gaguejou.
- Estou sendo sincero. Espero que não se aborreça nem me ache muito atrevido, mas ouso dizer que você e sua irmã são as mulheres mais bonitas que já conheci em minha
vida. Sua irmã já tem dono. Mas você...
Ela corou mais ainda, assustada com a sua ousadia. Honório era um homem muito atraente, fino e elegante, mas não era nada conservador. Filho único de um magnata
da indústria cafeeira herdou as indústrias e, com elas, uma grande fortuna, que se dispôs a gastar com algo que lhe desse prazer. Deixou a indústria nas mãos de
um primo, muito mais interessado nos negócios do que ele jamais seria, e passou a dedicar-se exclusivamente às artes. Comprou galerias, montou uma livraria e uma
escola de música, comprou um teatro. Investia em tudo o que fosse artístico e, como era inteligente, empreendedor e dotado de excelente visão dos negócios, soube
multiplicar o dinheiro que investiu, obtendo retorno certo com uma atividade que era puro prazer.
Despido de preconceitos e avesso às convenções sociais, Honório se entendia bem com todo tipo de gente, desde os mais humildes até os mais poderosos, Bastava que
fossem pessoas interessantes para que ele entabulasse uma conversa agradável e cativante. Acima de tudo, amava as mulheres e a boa música, não perdendo nenhuma festa,
a que ia sempre |acompanhado de alguma beldade.
No noivado de Tália, foi diferente. Até então, nenhuma mulher o havia impressionado tanto quanto sua estrela favorita, mas agora, conhecia Cristina. Olhando para
o seu rosto, pôde notar algumas semelhanças entre ela e Tália, embora não fossem, propriamente, parecidas.
- Ora, ora, se não é o nosso querido chefinho que já chegou - ele ouviu uma voz dizer atrás de si.
Ao se virar, Honório encontrou um Mauro sorridente e descontraído, radiante de tanta felicidade.
- Boa noite, Mauro - cumprimentou ele, polidamente. - Linda casa, a sua.
- Minha e de Tália - a inclusão da noiva foi proposital, uma forma de dizer ao outro que Tália e ele, há muito, já estavam comprometidos. - Mas seja bem-vindo. Vejo
que já conheceu a minha futura cunhada, Cristina.
- Seria impossível não conhecer. Uma moça assim tão linda logo me chamou a atenção, e você sabe como me comporto diante de mulheres bonitas.
- O senhor Honório é muito galante - observou Cristina, ainda ruborizada, tentando se acostumar ao seu jeito despojado.
- Cuidado com ele, Cristina. Nosso chefe é famoso por cortejar mulheres bonitas.
- Creio que você não está lhe fazendo justiça, Mauro. Todas as mulheres perdem o brilho se comparadas à beleza de Cristina.
Era verdade que Honório achava Cristina uma mulher muito bonita, contudo, não era propriamente para ela que endereçava tantos elogios. De forma inconsciente, ao
exaltar sua beleza, era para Tália que falava, declarando para Cristina tudo aquilo que tinha vontade de dizer à sua irmã.
- Muito bem, meu amigo - contrapôs Mauro, que não pôde deixar de sorrir. - Lembre-se apenas de que Cristina é irmã de Tália, vai ser minha cunhada e, portanto, minha
irmã também.
- Não se preocupe meu caro, porque não pretendo lhe tirar nenhum pedaço.
Todos riram, e Mauro foi recepcionar os outros convidados, já que Cristina se encontrava presa ao magnetismo de Honório. Seria até bom que ele se aproximasse dela.
Mauro não precisaria mais se preocupar com o seu interesse por Tália, e ele seria um bom partido para Cristina. Seria excelente idéia juntar aqueles dois.
Quando a festa já ia a meio, Tália resolveu aparecer, deslumbrante em seu vestido de seda marfim e brincos de brilhantes. Quando surgiu descendo as escadas, os convidados
emudeceram boquiabertos ante a sua beleza estonteante. Ela foi descendo devagarzinho, olhando para todos e sorrindo sedutoramente. Os convidados começaram a bater
palmas, e Honório, tentando conter a admiração, ouviu Cristina dizer baixinho:
- Essa minha irmã... Parece até cena de fita americana.
- Está com ciúmes de sua irmã, minha querida? - ele soprou ao seu ouvido.
- Não. Ao contrário, acho-a exuberante e corajosa. Uma mulher para se admirar e respeitar.
Tália chegou ao pé da escada e logo foi envolvida pelos convidados, que se apinhavam para dar-lhe parabéns. Ela estendeu a mão para Mauro, que a abraçou e a beijou
longamente na boca.
- Senhoras e senhores - disse ele -, minha noiva dispensa maiores apresentações. Sejam bem-vindos a nossa casa e aproveitem a festa.
Durante o resto da noite, Honório não largou Cristina um minuto sequer. Sentia-se atraído por ela como se ela fora Tália, e nenhum dos dois percebia isso.
- Notou como nosso chefe se interessou pela sua irmã? - perguntou Mauro a Tália.
Tália não havia notado. Estava ocupada em controlar a mãe, para que ela não dissesse nada desagradável a ninguém, e nem teve tempo de reparar em Cristina.
- O que foi que disse?
- Honório. Não tira os olhos de Cristina. Aliás, nem os olhos, nem as mãos. Dançou com ela a noite inteira.
Foi só então que Tália reparou nos dois, dançando juntinhos no meio do salão. Aquela visão não a agradou, embora soubesse que deveria se sentir satisfeita por ver
a irmã encontrar um admirador que estivesse à sua altura. Algo, porém, não caiu bem em seu sentimento. Não sabia se era ciúme, inveja ou despeito. Achava que Honório
era seu admirador incondicional, e vê-lo todo derretido nos braços da irmã causou-lhe estranha comoção.
- Isso não está certo - recriminou ela. - Honório não é para Cristina.
- Porque não? - surpreendeu-se Mauro. - É rico, charmoso, bem relacionado. O que mais ela poderia desejar?
- É mulherengo. Sua fama é de todos conhecida.
- Não exagere Tália. Honório é mulherengo porque ainda não encontrou mulher que lhe ponha cabresto. Quem sabe Cristina não é essa mulher?
- Que jeito mais vulgar de falar, Mauro...
Sem que eles percebessem, Tereza havia se aproximado por trás e escutara parte do que diziam, intrometendo-se em sua conversa:
- Quem é aquele que está dançando com sua irmã?
Não fosse a intervenção de Mauro, Tália teria lhe gritado um desaforo.
- Aquele é Honório Passos Pompeu, Dona Tereza, o dono do teatro em que trabalhamos.
- Humpf... - fez ela baixinho. - Mais um vagabundo.
- Mamãe, por que tem que ser tão desagradável? Por acaso o conhece para falar assim desse jeito?
- Tenha calma, Tália. Sua mãe está apenas preocupada com Cristina, não é isso, Dona Tereza?
Ela não respondeu. Não gostava de Mauro. Sabia que fora ele o responsável pela fuga de Tália da pensão de Janete em São Paulo, o que já o transformava num quase
marginal. E depois, eles viviam juntos naquela casa, em pecado carnal, como se casados fossem.
- Eu bem que avisei a ela que acabaria tendo o mesmo destino de Amelinha.
- Tália, mamãe, Tália! - exaltou-se ela. - Porque é tão difícil para você me chamar pelo meu nome?
Tereza deu de ombros e foi sentar-se numa poltrona mais perto do salão de danças, para melhor observar o homem com quem Cristina estava dançando. Mauro ficou vendo-a
se afastar e segurou Tália pelos ombros.
- Procure se acalmar, querida. Hoje é um dia especial para nós. Não deixe que sua mãe estrague isso.
- Não sei por que fui convidá-la. Ela é desagradável e ofende nossos convidados. Seria melhor se não tivesse vindo.
- Mas ela está aqui e temos que lidar com isso. Vou pedir a Ione que fique de olho nela e cuide para que não destrate ninguém.
- Obrigada.
Enquanto Mauro saía ao encontro de Ione, Tália ficou vendo a irmã e Honório dançando, rindo do que diziam um ao outro. Não conseguia compreender por que a visão
dos dois juntos não a agradava. Procurou Mauro com os olhos e encontrou-o falando com Ione, dando-lhe instruções a respeito de Tereza. Sentiu imensa ternura por
ele e um forte desejo de estreitá-lo. Olhou novamente para Honório e teve a mesma sensação de desagrado, virando-se de novo para Mauro. O que sentia ao vê-lo era
diferente. Só Mauro fazia seu coração disparar, enchia seu corpo e sua alma de felicidade, causava-lhe imenso desejo de estar com ele e amá-lo para sempre. Fosse
o que fosse que Honório provocasse nela, não era amor.
Enquanto isso, Cristina ia se deixando envolver mais e mais pelo charme de Honório. Ele era uma pessoa cativante e divertida, e tudo o que dizia lhe causava graça.
De tão distraída, nem notou que a mãe a vigiava à distância e que Tália a observava discretamente. Só o que lhe importava era a sensação prazerosa que a proximidade
de Honório lhe causava.




Capítulo 19


Sob a direção de Honório, os espetáculos de Tália ganharam ainda mais repercussão do que já possuíam. As transformações por que o teatro e o elenco passaram foram
muitas: Honório renovou o guarda-roupa das coristas, fez alterações em penteados e maquiagens, contratou novos músicos para trabalhar em arranjos mais modernos,
colocou mocinhas vendendo cigarros, bem ao estilo americano, e inovou a platéia, introduzindo mesas em lugar de cadeiras de auditório. O teatro passou a ser uma
verdadeira casa de espetáculos, onde as pessoas podiam ir para assistir um bom show, beber e comer à vontade, sem aquele formalismo dos teatros tradicionais.
Para Mauro, contudo, as coisas eram diferentes. Embora Honório não estivesse muito satisfeito com os passos de dança que ele criava, não se atreveu a desfazer-se
dele, com medo de desagradar sua estrela favorita. Sabia que Tália romperia o contrato com ele se despedisse Mauro e optou por conservá-lo no teatro, embora procurasse
mantê-lo informado sobre todas as novidades no mundo dos espetáculos, dando opiniões e fazendo sugestões baseadas no que havia visto em outras casas de sucesso.
Por mais que detestasse aquelas interferências, Mauro era muito cauteloso no trato com Honório. Não que temesse ser despedido ou substituído por outro coreógrafo
mais talentoso. O que não queria era afastar-se de Tália, embora se sentisse incomodado pelo fato de estar vivendo à sua sombra, como ele mesmo sempre dizia. Silenciou
para não a perder, mas vivia insatisfeito com a sua vida, longe da realização profissional com que um dia sonhara.
Até que, numa tarde chuvosa do verão de 1944, a vida de Mauro se modificou. Ele teve a triste notícia de que estava sendo convocado a servir na Força Expedicionária
Brasileira, devendo apresentar-se imediatamente para treinamento e posterior embarque para a Itália.
- Não pode ser verdade! - lastimava Tália, entre o desespero e a raiva. - Não podem convocá-lo assim desse jeito. Nós vamos nos casar!
- O exército não quer saber disso, minha querida - objetou Mauro, tentando ser forte para dar-lho ânimo. - Mas não se preocupe. Vá continuando com os preparativos.
Em breve estarei de volta, e você vai estar se casando com um herói.
- Não quero me casar com nenhum herói. Quem você do jeito que é, mas vivo. Não é justo. Essa guerra não é nossa, estamos bem longe do conflito. Por que é que você
tem que ir?
- Porque o governo me convocou. Não posso me recusar.
- Mas é perigoso...
- Nem tanto. Vou só dar uns tirinhos e depois volto. Você não acha que eu vou morrer por lá, acha?
- Não, claro que não - objetou ela acabrunhada. - Tenho certeza de que você vai voltar. Mas ficar longe de você todo esse tempo... E no meio de um conflito tão cruel!
Vou morrer de preocupação e medo.
- Pois não deve. Confie em mim, e logo essa guerra acabará e eu voltarei para você.
- Promete?
- Prometo.
Tália esboçou um sorriso forçado, aninhando-se em seus braços, os olhos úmidos de medo. Não podia sequer imaginar que Mauro corresse o risco de perecer naquele conflito.
Para ela, a guerra era quase uma abstração, e não parecia viável que alguém tão próximo fosse perder a vida naquele país longínquo, lutando por pessoas que nem conhecia,
em uma terra à qual não pertencia. Tudo parecia um pesadelo, mas ela estava segura de que, no fim da guerra, Mauro voltaria ileso para os seus braços, e eles poderiam
então se casar. A morte, apesar de tudo, soava como uma fantasia distante, da qual Mauro e seu mundo não faziam parte.
No dia da partida, Tália levou Mauro ao porto, acompanhada de Cristina, Ione e Honório, que, em função de sua miopia, não foi convocado. Depois de muitos abraços
e beijos, Mauro conseguiu afastar-se de Tália um pouco e puxou Honório pelo braço.
- Gostaria de lhe pedir uma coisa - começou ele, olhando de soslaio para Tália.
- O que quiser, meu amigo.
- Cuide de Tália por mim. Enquanto eu estiver fora, cuide para que não lhe falte nada. E se algo me acontecer... - calou-se, como que antevendo um futuro funesto.
- Nada vai lhe acontecer - encorajou o outro.
- Ouça Honório, eu estou partindo para uma guerra! Não vou viajar a negócios nem a passeio. Tália parece ainda não se ter dado conta da situação, mas eu sei os riscos
que corro. Voltar e não voltar são alternativas percentualmente idênticas.
- Não diga isso. Mauro. Você está temeroso, eu sei, mas tenho certeza de que vai voltar são e salvo.
- Não sei. Algo em meu coração me diz que estou partindo para encontrar o meu destino. Se isso acontecer... Se isso acontecer, por favor, não saia do lado de Tália.
Sei o quanto você gosta dela e sei também que ela não lhe é de todo indiferente.
- Mas que bobagem. Mauro, Tália o ama.
- Jamais duvidei disso, mas ela pode vir a amar você também. Se eu não voltar, por favor, cuide para que isso aconteça. Se a ama de verdade, procure fazê-la feliz.
- Você não devia falar assim. Pode dar azar.
- Não acredito em sorte nem em azar. Creio apenas no destino. E o meu, acho que já está traçado.
Voltou os olhos para o navio que estava ancorado no cais e olhou para o mar em seguida, como que a indicar que seu destino seria levado através das águas por aquela
embarcação.
- Quisera eu que nada disso estivesse acontecendo - comentou Honório.
- Mas está. É a realidade, e não podemos fugir a ela.
- Se eu pudesse fazer alguma coisa...
- Você pode: prometa-me que vai cuidar de Tália. Ainda que se case com Cristina, prometa-me que vai cuidar dela. Se me prometer, poderei partir tranqüilo e confiante
para enfrentar o meu destino.
Honório fitou-o com os olhos embaciados, sentindo profunda admiração por aquele homem que, até então, invejava em silêncio, por possuir a única coisa que ele desejava:
a mulher de seus sonhos.
- Se é assim, vá em paz, meu amigo - falou emocionado, estendendo-lhe a mão num gesto amistoso. - Cuidarei de Tália e a defenderei com a própria vida, se necessário.
Também emocionado, Mauro tomou a mão que ele lhe oferecia, puxando-o em seguida e o envolvendo num abraço comovente.
- Obrigado - sussurrou, tentando conter as lágrimas. - Jamais vou esquecer esse gesto.
- Posso saber o que os rapazes estão fazendo aqui, escondidos? - indagou Tália, que finalmente os encontrara no meio da multidão.
- Nada - respondeu Mauro, enxugando os olhos discretamente. - Estava me despedindo de Honório.
Embora não soubesse definir, Tália sentiu uma pontada no coração, um pressentimento de que algo na conversa daqueles dois fora mais do que uma simples despedida.
Não teve tempo de indagar nada de Mauro. Era hora de embarcar, e ele foi convidado a subir a rampa de acesso ao navio. Despediu-se de todos e demorou-se muito no
abraço de Tália, como se aquela fosse à última vez em que a teria em seus braços.
- Você vai voltar logo - disse ela, confiante. - Tenho certeza.
Para que ela não o visse chorar, Mauro beijou-lhe os cabelos, apanhou sua bolsa e começou a subir a rampa, o coração disparado, lamentando muito mais a perda da
amada do que da própria vida. Da amurada, acenou em despedida e continuou acenando até que o General Mann cruzou a barra e sumiu de vista, levando consigo 6.000
homens para um futuro incerto e desconhecido, que se iniciaria ao desembarcarem no porto de Nápoles.

***

Começou, então, para Tália, a agonia da espera. Tinha como certo que Mauro iria voltar a qualquer momento e, todos os dias, conferia a caixa do correio, a fim de
verificar se ele lhe enviara alguma correspondência. Toda vez que recebia uma carta de Mauro, seu coração disparava de alegria e respirava aliviada, sabendo que
ele estava vivo e bem.
Buscando atender ao pedido de Mauro, todas as noites, Honório jantava em casa de Tália, ficando visível o seu interesse por ela. Tália ia se acostumando com aquelas
visitas e nem percebeu que Cristina, depois que Mauro se foi, passou a jantar com ela também, para poder desfrutar um pouco mais da companhia de Honório.
O tempo foi passando, e nada de Mauro retornar. Já fazia quase um ano que partira quando, subitamente, cessaram as cartas que lhe escrevia. Tália quase desesperou.
Tinha certeza de que ele voltaria com vida, mas a falta de correspondência começava a lhe tirar as esperanças. No exército, não conseguira nenhuma informação. O
nome de Mauro não estava em nenhuma lista de mortos, sendo considerado, até então, desaparecido.
- Isso não é assim tão ruim - consolava Cristina.
- Ele pode ter sido ferido...
- Pode até estar sendo cuidado por alguém aventou Ione. - Quem sabe uma mulher piedosa não o encontrou e cuidou dele?
- Mas se é assim, por que ele não me escreve?
- Ora, Tália, o correio, na guerra, não deve ser assim tão eficiente - rebateu Ione.
- E depois, ele pode estar impedido de escrever - acrescentou Cristina. - Vamos esperar notícias. Um dia, alguém vai ter que nos dizer o que aconteceu.
Mas esse dia nunca chegava. Por mais que Honório se esforçasse para ajudar e tentar localizar o paradeiro de Mauro, a resposta era sempre a mesma: desaparecido em
combate.
- Não podemos perder as esperanças - estimulava Ione. - A guerra ainda não terminou.
- Ele pode até estar preso - imaginou Cristina.
- Ele prometeu que ia voltar - choramingou Tália. - Mauro nunca deixou de cumprir uma promessa.
- Tenha calma, querida. Vamos ser pacientes.
O tempo continuou a passar, e novas listas de mortos eram divulgadas pelo governo, mas o nome de Mauro nunca se encontrava entre eles. Os dias iam se sucedendo,
e as esperanças de Tália começaram a perecer. Parecia-lhe mesmo impossível ter notícias de Mauro. Corria o ano de 1945, e a guerra já estava praticamente no fim.
Com a rendição da Alemanha e a libertação definitiva da Europa, as esperanças de Tália voltaram a crescer. Vários prisioneiros foram resgatados dos inúmeros campos
de concentração, e talvez Mauro estivesse entre eles. Não foi isso, porém, o que aconteceu. Tália esperou ainda um pouco mais, certa de que ele talvez estivesse
sob a proteção da resistência e pudesse, enfim, ser localizado. A espera foi inútil, e Mauro ainda continuava desaparecido.
Finalmente, quando os americanos bombardearam as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, encerrando de vez o conflito, Mauro foi dado oficialmente como desaparecido,
e cessaram os esforços para encontrá-lo, vivo ou morto. Estavam encerrados os sonhos de Tália. A guerra lhe ceifara a única oportunidade que tivera de ser feliz.
Mauro era o homem que amava. Sentia que, depois dele, jamais poderia amar outro.
Sozinha em seu quarto, com a carta de pesar oficial do governo brasileiro em mãos, Tália chorou muito. Apanhou o retrato de Mauro em cima da mesinha e, agarrada
a ele, fez a si mesma o juramento que iria cumprir pelo resto de sua vida:
- Ninguém, Mauro, ninguém, por mais que eu viva, e sofra, e me sinta só, ninguém, eu juro, jamais irá tomar o seu lugar. Você foi e ainda será o meu único e verdadeiro
amor. Se não posso tê-lo em vida, esperarei para estar em seus braços depois da minha morte. Nunca mais amarei outro como amei você. Eu juro!
Agarrou-se novamente ao retrato e chorou em desespero, como se quisesse fazer da lembrança de Mauro uma parte de seu coração.

***

Sentado em seu escritório, Honório pensava na melhor maneira de ajudar Tália, atendendo à promessa que fizera a Mauro, naquele dia, no porto, quando este se encontrava
prestes a embarcar rumo à Itália. Sentia-se responsável por ela, achava que devia fazer algo para aplacar a sua dor. Dera-lhe uns dias de folga no trabalho, colocando
uma das coristas secundárias em seu lugar. Embora a moça não estivesse a sul altura e os fregueses estivessem reclamando, era o mínimo que podia fazer por ela. Tália
precisava de um tempo só para si, para se acostumar àquela perda e encontrar a melhor maneira de sobreviver sem uma parte de seu coração.
Mas não era propriamente a promessa que fizera a Mauro que o impulsionava a ajudá-la. Ele mesmo não podia parar de pensar em Tália. Apaixonara-se por ela desde o
primeiro instante em que a vira. Apaixonara se pela sua beleza, pelo seu corpo, pelo seu trabalho sensual e carismático. Acima de tudo, apaixonara-se por algo de
puro e genuíno que havia dentro dela que ele não conseguia explicar. Por isso, doía-lhe vê-la sofrer.
Dando uma tragada longa em seu charuto, apanhou o telefone em cima da mesa e discou o número da casa dela. Foi Ione quem atendeu, e ele pediu para falar com Tália.
- Olhe, seu Honório, foi bom o senhor ter ligado. Tália está que é uma tristeza só, e não há nada que a faça sair daquele quarto. Já tentei de tudo, mas não há jeito.
Cristina está lá com ela nesse momento, fazendo lhe companhia, mas ela não quer nem conversar.
Ele fez silêncio durante alguns minutos, até que tornou a perguntar:
- Será que eu poderia falar com Cristina?
- Só um minuto, que vou chamá-la.
Depois de algum tempo, Cristina atendeu ao telefone:
- Alô, Honório, como vai?
- Vou bem, Cristina, e você?
- Não posso estar muito bem, vendo minha irmã nessa tristeza. Ela precisa reagir.
- É sobre isso que gostaria de falar com você. Será que não poderíamos nos encontrar?
- Quando?
- Pode ser agora? Posso passar aí e apanhá-la para almoçar. O que você acha?
O coração de Cristina disparou só de pensar que iria se encontrar com ele novamente. Embora estivesse interessada em ajudar a irmã, rever Honório seria maravilhoso.
Desde que o conhecera, não parava de pensar nele um minuto sequer.
Cristina estava certa de que Honório sentia-se atraído por ela também. Notara o seu interesse na festa de noivado da irmã. Ele fora gentil e atencioso, e ela tinha
certeza de que ele só não lhe fizera a corte em respeito à Tália. Mauro também lhe dissera que tinha fama de mulherengo, mas ela não se importava. Se o seu interesse
por ela fosse sincero, ele deixaria de lado as outras mulheres e centraria nela a sua atenção.
Honório jamais lhe revelara seus sentimentos, talvez devido à pressão de Mauro, tentando proteger a futura cunhada, pensava Cristina. Mas agora, com o seu desaparecimento,
Honório sentia-se mais à vontade para procurá-la, e a saúde de sua irmã, se bem que lhe inspirasse preocupações e cuidados, não deixava de ser um pretexto para falar
com ela e convidá-la para sair.
- Acho que seria uma ótima idéia - respondeu ela, tentando não parecer ansiosa demais. - Estarei pronta em meia hora.
Em exatos trinta minutos, Honório estava parando o carro no portão da casa de Tália. Pouco depois, Cristina apareceu. Era uma moça realmente bonita, e Honório não
entendia por que ainda não havia se casado. Tália mencionara algo sobre a mãe possessiva, mas ele não conhecia Tereza e não imaginava como poderia ela impedir a
felicidade da filha.
Antes que ela chegasse perto do automóvel, ele já havia saído e estava abrindo a porta para ela. Beijou-a de leve na face, o que lhe causou um rubor passageiro,
e ajudou-a a se sentar. Em seguida, sentou se ao volante e deu partida ao motor, dirigindo-se a um restaurante próximo. No trajeto, trocou apenas algumas poucas
palavras sobre a saúde de Tália. Foi só depois de pedirem o almoço que começaram, realmente, a conversar.
- Ele agora está tentando encontrar a melhor maneira de dizer que me ama - pensou Cristina, certa de que ele a chamara ali para se declarar. - Já cumpriu o seu papel
de patrão e amigo, interessando-se pela saúde de Tália, e agora vai confessar que me ama.
- Você sabe o quanto me preocupo com sua irmã - disse ele, alheio aos sonhos de Cristina. - Mais do que qualquer um possa imaginar.
- Sei disso - falou ela, mal escondendo a decepção. Ainda não era agora, ele precisava de um pouco mais de tempo.
- Não, você não sabe. Ninguém sabe o quanto gosto de Tália.
- É natural - prosseguiu ela, começando a sentir uma pontada de ciúme pela forma como ele se referia à irmã. - Afinal, Tália é sua maior estrela.
- Não é por isso... Você não sabe... Ninguém sabe... Fiz uma promessa a Mauro. Prometi-lhe que, se algo lhe acontecesse, cuidaria de Tália pessoalmente.
- Uma promessa! - Então era isso, pensou. Não havia motivos para ciúmes. Honório estava preso a um compromisso de honra, o que era muito louvável.
- E agora, não sei o que fazer para ajudar.
- Você não deve se culpar, Honório. Acho mesmo que não há muito a fazer. Tália vai acabar se recuperando, você vai ver. É jovem, linda, rica e talentosa. Não vão
lhe faltar namorados.
- Mas ela amava o Mauro. Não sei se haverá lugar para outro em sua vida.
- Como pode ter certeza? Talvez ela conheça alguém carinhoso, que a ame tanto quanto Mauro a amou.
- Você acha?
- É claro. E depois, Tália não é o tipo de mulher que viva sozinha. Ela é muito... Fogosa, se é que me entende.
Ele entendia. E isso era mais um motivo de preocupação. Depois que a tristeza passasse, e ela se acostumasse à ausência de Mauro, talvez fosse procurar consolo nos
braços de outro homem. De outro, não dele.
- Será que ela dará chance a outro?
- É claro que sim.
Cristina voltou a se impacientar com a insistência de Honório. Ele não parava de falar em Tália e não parecia que iria se declarar.
- Cristina... - prosseguiu ele, meio acanhado. - Você sabe o quanto a considero, não sabe?
- Sei.
- Aprecio a sua amizade, e foi por isso que a chamei aqui hoje, para conversarmos. Há algo que está me sufocando há bastante tempo, e sinto que não poderei mais
silenciar a respeito disso.
- Pode dizer Honório. Estou preparada para ouvir, abra o seu coração.
- Bem, o problema é exatamente esse: o meu coração. Estou apaixonado... - calou-se, um tanto envergonhado com aquela revelação.
Ela sentiu o coração disparar e retrucou com meiguice:
- Eu já sabia Honório. Desde a festa de noivado de minha irmã, pude perceber...
- Você já sabia? - ela assentiu. - É tão visível assim?
- Talvez não para os outros. Mas de mim, que sou mulher e sensível a essas coisas, foi impossível esconder.
- Acha que Tália também já percebeu?
- Ela nunca me disse nada - tornou ela, amuada porque ele introduzira a irmã novamente na conversa. - Embora eu note certa apreensão em seu olhar.
- Ela não me aprova - falou desapontado.
- Tenho certeza de que não é isso. Ela apenas fica preocupada, por causa da sua fama de mulherengo.
- Isso é porque eu ainda não encontrei a mulher que me arrebatou o coração. Quero dizer, até esse momento...
Cristina pensou que seu coração fosse sair pela boca. Era agora! Ele ia, finalmente, se declarar. Em seus devaneios, ela nem se dava conta de que Honório falava
de seu amor por Tália, e ele, cego pela paixão que sentia por esta, não percebia que Cristina interpretava as suas palavras como se endereçadas a ela.
- Agora você está apaixonado - falou Cristina calmamente, aproximando seu rosto do dele -, e todas as outras mulheres perderam o sentido para você, não é mesmo?
- Fico feliz que você me entenda - disse ele, mal reparando na aproximação dela, tamanha era a sua concentração em Tália.
- Por que não se declara de uma vez? Não faria bem ao seu coração?
- Tenho medo de ser incompreendido ou rejeitado.
- Isso não vai acontecer.
- Afinal, fiz uma promessa a Mauro. Você não acha que seria traição se, ao invés de cuidar da mulher dele, lhe declarasse o meu amor?
- Declarar o seu amor... Por Tália? - repetiu ela atônita, mal crendo no que ouvia.
Alheio à sua surpresa e ao seu desapontamento, Honório prosseguiu abrindo seu coração:
- Desde que a conheci, senti que Tália era a mulher da minha vida. Mas ela estava apaixonada por Mauro, ia se casar com ele. E depois, tem aquela promessa. Prometi
cuidar dela, e é exatamente o que pretendo fazer: cuidar dela até o fim de meus dias, se preciso for. Pretendo me casar com ela. Será que ela vai me aceitar? Diga-me
Cristina, você que a conhece: acha que eu tenho alguma chance?
- Não... Não sei... - ela conseguiu balbuciar, lutando para não chorar nem gritar.
- Foi você mesma quem disse que ela já percebeu os meus sentimentos. E se teme pelo fato de eu ter muitas mulheres, é porque tem algum interesse em mim. Se não,
nem se importaria com isso. Mas ela não precisa se preocupar. Amo-a profunda e sinceramente, e pretendo viver só com ela e para ela. Estarei cumprindo a promessa
que fiz a Mauro, ao mesmo tempo em que serei o homem mais feliz do mundo.
Ele continuava falando de seu amor por Tália, mas Cristina já não o escutava mais. Sentia uma ardência no coração, como se a cada palavra de Honório, um pedacinho
dele fosse se queimando, atirando seus sonhos nas cinzas da desilusão. Estava certa de que ele a chamara ali para declarar o seu amor. Nunca se enganara tanto. Honório
estava realmente apaixonado, mas não era por ela. Apaixonara-se irremediavelmente por Tália, e ela nada mais representava do que uma amiga leal e sincera, para quem
ele podia confiar os seus maiores segredos.
Daquele momento em diante, não conseguiu mais falar. Ouvia o que ele dizia como se escutasse algo à distância, como se pegasse partes de uma conversa entre duas
pessoas estranhas, que nada tinham a ver com ela. Os pratos foram servidos, e ela foi comendo maquinalmente, engolindo a frustração e o orgulho junto com cada garfada,
tentando não deixar transparecer a sua dor, o seu engano.
- Cristina? - Honório a chamava, libertando sua dor da clausura do pensamento. - Está me escutando?
Ela meneou a cabeça e deu um sorriso forçado, os olhos brilhantes de lágrimas retidas, prestes a derramar.
- Está se sentindo bem? - prosseguiu ele.
- Eu estou bem - conseguiu articular.
- Seus olhos parecem úmidos. Você está chorando!
- Não estou chorando. Estou emocionada, é só.
Ele não disse nada. Foi só naquele momento, vendo a tristeza estampada no rosto de Cristina, que percebeu como fora insensível e mesquinho. Pelo seu ar de desapontamento,
compreendeu tudo. Cristina pensava que ele a amava e que a convidara para sair para declarar o seu amor. Como não percebera isso antes? Será que estava tão cego
por Tália a ponto de não notar que Cristina o amava? Como fora estúpido! E fora justamente a ela que resolvera confidenciar sua louca paixão por Tália.
- Cristina... - disse baixinho, coberto de vergonha - sinto muito.
- Não! - fez ela, parando-o com um gesto de mãos. - Não diga nada.
- Mas você... Eu não sabia...
- Não há o que saber - prosseguiu ela, erguendo a cabeça e encarando-o de frente. - Você disse que está apaixonado por Tália, não precisa se desculpar. Só não me
peça para ajudá-lo a conquistar o seu coração, porque isso, não sou capaz de fazer.
Nem conseguiu terminar a refeição. Atirou o guardanapo sobre a mesa e levantou-se trêmula, deixando o restaurante a passos rápidos. Honório chamou o garçom às pressas
e retirou algumas notas do bolso, jogando-as sobre a mesa e correndo atrás de Cristina, chegando à rua bem a tempo de vê-la entrar num táxi e desaparecer na primeira
curva.

***

Ao invés de ir para a casa da irmã, Cristina seguiu direto para sua casa. Não conseguiria encará-la depois daquilo. Tampouco queria se encontrar com Honório novamente.
Depois daquela tarde, achava mesmo que jamais conseguiria encará-lo de novo. Sentia-se triste e envergonhada ao mesmo tempo, ferida em seu orgulho e em sua vaidade
de mulher. Entrou em casa feito um furacão, correndo direto para o quarto. A mãe escutava uma novela de rádio na sala e espantou-se com sua entrada intempestiva
e estrondosa. Desligou o aparelho e foi atrás dela, mas a porta do quarto estava trancada.
- Abra essa porta, Cristina - ordenou.
- Deixe-me em paz! - gritou ela lá de dentro, entre soluços angustiados.
- Sou sua mãe e exijo que me deixe entrar. Quero saber o que aconteceu.
- Não aconteceu nada. Será que não tenho o direito de ficar sozinha?
- Abra já essa porta, menina! - exigiu colérica, torcendo a maçaneta várias vezes. - Estou mandando!
O comando de Tereza era muito forte para que Cristina resistisse, e ela acabou cedendo. Abriu a porta devagar e voltou para a cama, afundando o rosto no travesseiro.
- Quero saber o que foi que houve - prosseguiu Tereza, sentando-se ao lado dela.
- Não houve nada.
- Ninguém fica nesse estado por nada. Aconteceu alguma coisa.
- Não foi nada, já disse.
- Brigou com sua irmã? Aquela vagabunda lhe fez alguma outra desfeita?
Lá vinha a mãe com suas costumeiras ofensas a Tália, mas ela não se sentia com forças para levantar a voz em sua defesa, como sempre fazia.
- Tália não me fez nada. Está doente.
- Está doente, sei! Ela está triste porque perdeu o amante, e agora nenhum homem decente vai querer saber mais dela. Só os vadios que costumam freqüentar aquele
antro de perdição.
- Você não sabe o que diz mamãe.
- Sei muito bem o que digo. Sua irmã não presta, e é bem-feito que aquele vagabundo do noivo tenha morrido na guerra. Onde já se viu um homem, ao invés de trabalhar,
ficar inventando passos para um monte de ordinárias dançarem?
- Como pode ser tão cruel e insensível? Como pode falar assim da filha que a sustenta e lhe dá tudo?
- Não faz mais do que a obrigação dela. Se não fosse eu, ela não tinha nascido.
- E se não fosse ela, a senhora já tinha morrido. Será que não pode mostrar um pouco mais de gratidão?
Tereza levantou a mão para bater-lhe, mas parou em meio. Tinha medo de que Cristina fosse embora e a deixasse sozinha, por isso, preferia não abusar.
- Vou relevar o que você disse por que sei que está nervosa. Mas que isso não se repita, ouviu Cristina? Ainda sou sua mãe e exijo respeito.
- Será que posso ficar sozinha agora?
- Não vai me contar o que aconteceu?
- Não aconteceu nada.
Aquilo cheirava a homem. Só podia ser. Cristina andava mesmo estranha, parecia caminhar nas nuvens. Na certa, apaixonara-se por algum tipo suspeito, que se aproveitara
dela e depois a largara.
- Você não andou fazendo nada de errado, andou? - indagou Tereza, cautelosa.
- Como o quê, mamãe?
- Você sabe.
- E se tivesse feito?
- Você é quem sabe. Se quiser estragar a sua honra e acabar com as suas chances de arranjar um bom casamento, isso é com você.
- Mas que honra mãe? Esqueceu-se do que me aconteceu na infância? Será que não se lembra do que Tália e eu passamos nas mãos daquele tarado?
- Isso foi há muito tempo.
- Mas aconteceu! Foi ele quem nos deflorou, a mim e a Tália. Não somos mais virgens, mamãe, nem ela, nem eu! Não tenho mais honra para defender, não tenho mais do
que me preservar.
- Você ainda é uma moça decente.
- Exatamente, mamãe, somos decentes, Tália e eu. Não é por causa do que nos aconteceu que viramos prostitutas.
- Sua irmã virou, e é o que estou tentando evitar que aconteça com você.
- Já não sou mais criança. Na minha idade, os homens não se preocupam mais com isso.
- Você é quem pensa.
- Deixe de bobagens, mamãe! E pare de me atormentar. A senhora não manda mais em mim.
- Você é minha filha, e sou responsável pelo que acontece a você.
- Caso tenha se esquecido, eu sou maior de idade, trabalho e ganho o meu próprio dinheiro, você quem vive sob a minha responsabilidade e de Tália agora.
- Ótimo. Mais uma para me jogar favores na cara.
- Não estou lhe jogando nada na cara. Só o que quero é que me respeite e me deixe viver a minha vida.
- Não a estou impedindo de viver a sua vida. Quero apenas protegê-la, mas você parece não entender isso.
- Entendo e agradeço, mas não precisa.
Irritada com aquela conversa, Cristina atravessou o quarto e foi trancar-se no banheiro, sem dizer mais nada. Pensou que a mãe fosse novamente atrás dela, mas isso
não aconteceu. Tereza se retirou, refletindo em tudo o que a filha dissera, tentando imaginar o que seria da sua vida se Cristina se casasse e fosse embora. Não
podia deixar aquilo acontecer. No passado, sonhara para ela um grande casamento, mas agora, não podia mais se dar o direito de sonhar com bobagens. Tinha que ser
prática. Cristina era a única que ainda se importava com ela e a obedecia. Sem ela, ficaria sozinha, e Tália bem seria capaz de interná-la em algum asilo.



Capítulo 20



Enquanto isso, Honório remoia o seu arrependimento. Fora precipitado e insensível, fizera Cristina sofrer. De volta ao seu escritório, ficou andando de um lado para
outro, tentando imaginar a melhor forma de se desculpar. Qualquer palavra que dissesse poderia piorar a situação, mas tinha que fazer alguma coisa. Não podia simplesmente
casar-se com Tália, passando por cima dos sentimentos de uma mulher tão maravilhosa e doce como Cristina. Ela não merecia.
De qualquer forma, tinha que se desculpar. Ela saíra do restaurante transtornada e aflita. Como poderia encará-la depois de tudo o que dissera? Ele a levara a crer
que estava apaixonado por ela, deixara que se enchesse de esperanças para, no fim, revelar-lhe sua paixão pela irmã. É claro que ela estava desapontada e até mesmo
com raiva, e ele não podia fingir que nada acontecera. Não amava Cristina, mas ela era uma pessoa importante para ele, e só não se casava com ela porque estava apaixonado
por Tália.
Pensou em lhe ligar, mas só então percebeu que não tinha o seu número. Eles nunca haviam se falado por telefone, a não ser quando ela atendia em casa de Tália, que
era onde passava a maior parte do seu tempo. Sequer sabia onde ela morava. Cristina não devia ter ido para a casa de Tália, mas era o único lugar que ele conhecia
onde poderia encontrá-la. Foi diretamente para lá.
Ao chegar, Ione lhe informou que Cristina não voltara desde a hora do almoço, e Tália estava sozinha em seu quarto. Na mesma hora, sentiu imenso desejo de vê-la,
de falar com ela nem que fosse por um minuto apenas. Bateu de leve na porta e esperou até que ela o mandasse entrar.
- Honório! - surpreendeu-se. - O que faz aqui há essas horas?
Ela estava linda naquele négligé branco, contrastando com sua tez morena e os cabelos negros derramados por cima do ombro. Aproximou-se dele, o corpo exuberante
movendo-se numa sensualidade natural por debaixo da transparência do négligé, enchendo-o de desejo. Envolvido pelo encanto de Tália, Honório rapidamente esqueceu-se
do principal motivo que o levara até ali.
- Tália... - balbuciou. - Você está deslumbrante.
Ela deu um sorriso encantador e foi se sentar numa poltrona, cruzando as pernas com graça o exibindo, parcialmente, as coxas bem torneadas.
- Só um bom amigo para ver beleza onde só há dor - disse ela com pesar, sem nem se dar conta de como o seduzia.
- Não fale assim, Tália. A dor vai passar.
- E a beleza também...
- Por que não sai um pouco desse quarto? Está fazendo uma tarde muito bonita.
- Sei o que está tentando fazer por mim e não pretendo ser aquela mulher depressiva que se queixa de tudo e não vê graça em nada. No momento, é mesmo como me sinto,
mas vocês estão enganados se pensam que vou ficar assim para o resto da vida. Isso tudo vai passar, a dor sempre passa, porque o tempo é o seu maior inimigo, ou
amigo, não sei bem. Mas por enquanto, o que quero mesmo é ficar imaginando como seria a minha vida com Mauro se ele não tivesse morrido. Quando considerar satisfeitos
os meus sonhos, vou voltar para o mundo.
- Seus fãs a aguardam ansiosamente. Sabe disso, não sabe?
- Diga-lhes que não me esqueçam, que vou voltar. Eu só preciso de um pouco mais de tempo. A ferida é profunda e custa a cicatrizar.
- Está certo, garota. Vou fazer como me pede. Mas por favor, não se demore. Todos os seus admiradores e eu estamos morrendo de saudade.
Ela sorriu novamente, dessa vez com um pouco mais de energia.
- Vá agora, por favor. Preciso pensar.
Tália voltou à atenção para o jardim lá embaixo, e Honório precisou de todas as suas forças para não a abraçar, não beijar seu pescoço, não cheirar seus cabelos.
Conseguiu se controlar e saiu em silêncio. Já estava na porta da rua quando subitamente se lembrou de Cristina, e logo o seu coração se anuviou. Movido pelo remorso,
foi procurar Ione na cozinha.
- Seu Honório! - assustou-se ela. - Quis me pregar uma peça, foi?
- Desculpe-me, Ione, não quis assustá-la. Gostaria de lhe pedir um favor.
- Pois não, pode pedir.
- Será que você não poderia me dar o telefone e o endereço de Maria Cristina? Preciso falar com ela, mas não tenho nem o seu número, nem sei onde encontrá-la.
- E Pra já.
Ione correu a anotar o endereço e o telefone de Cristina, entregando o papel nas mãos de Honório.
- Obrigado.
Ao telefonar para ela naquela noite, Honório ficou sabendo por que Tália dizia que a mãe era uma mulher possessiva. Tereza crivou-o de tantas perguntas que ele quase
desistiu de falar com Cristina. Quem ele era, o que fazia, onde vivia, de onde conhecia sua filha, o que queria com ela. Honório já estava ficando embaraçado quando,
por sorte, Cristina puxou o fone da mão da mãe e atendeu:
- Alô? Honório é você?
- Ufa! - ela o ouviu suspirar. - Nunca pensei que fosse preciso passar por um interrogatório antes de conseguir falar com você.
- Peço que perdoe minha mãe - pediu ela, fuzilando a mãe com o olhar. - Ela não faz por mal.
- Não tem importância. Escute, será que podemos nos encontrar?
- Para quê?
- Gostaria de me desculpar com você pelo ocorrido hoje, no almoço.
Ela abafou o bocal do fone com a mão e sussurrou para a mãe:
- Será que a senhora pode me dar licença? É particular - depois que a mãe saiu, voltou a falar baixinho: - Você não tem do que se desculpar. Não me fez nada.
- Mesmo assim. O que ocorreu foi um terrível mal-entendido.
- Já disse que não tem do que se desculpar. As coisas estavam muito claras, eu é que não consegui enxergar.
- Não. Eu é que não tive a sensibilidade suficiente para perceber que você...
- Por favor, Honório, não vamos mais remexer nesse assunto. Acho melhor deixarmos tudo como está. Se não, vai ficar muito mais difícil para mim.
- Cristina... Sinto muito...
- Não sinta. Só gostaria de lhe pedir que não tocasse mais nesse assunto.
- Por quê?
- Preciso mesmo responder a essa pergunta? Ou será que está sendo insensível de novo?
- Não. Perdoe-me.
- Adeus, Honório. E, por favor, não diga nada disso a Tália. Ela já está sofrendo demais. Não quero que se sinta mal por minha causa.
- Não lhe direi nada, fique sossegada.
- Obrigada.
Desligou e, por algum tempo, permaneceu com a mão parada sobre o fone, lutando contra o desejo de chorar. Mas a mãe, que ficara tentando escutar a conversa, percebendo
que ela desligara, voltou correndo para a sala, indagando com uma curiosidade quase doentia:
- Quem é esse tal de Honório?
- Não interessa mãe. E por favor, não se meta.
- Honório... Já ouvi falar nesse nome. Não é o dono do teatro onde Amelinha trabalha?
- É ele mesmo.
- O que ele queria? Vocês estão saindo juntos? Está apaixonada por ele? Mas é claro que está. Bem se vê pelo jeito como ficou. Ora, Cristina, francamente!
- Mamãe - falou ela, os dentes rilhando, tentando não se descontrolar -, conviver com a senhora está se tornando insuportável. Já não estou agüentando mais.
Antes que Tereza pudesse responder, Cristina rodou nos calcanhares e saiu para a rua, sentindo no rosto o vento frio da noite. Daria tudo para conseguir um pouco
de paz e privacidade, mas a mãe estava disposta a infernizar a sua vida enquanto vivesse. Precisava de liberdade, mas em companhia de Tereza, Cristina jamais poderia
ser livre.

***

Com os olhos voltados para o horizonte, Tália pensava em sua dor. Os últimos meses haviam se passado quase como num sonho, pois a ausência de Mauro parecia algo
irreal. Era como se lhe tivessem arrancado uma perna ou um braço: embora já não os possuísse, podia ainda senti-los. A dor, porém, foi aos poucos diminuindo, e ela
começou a sentir falto do rebuliço do teatro, das luzes dos refletores, do assédio dos homens ao final de cada show. Ainda que a saudade no peito fosse muito forte,
começou a tornar-se suportável, e ela pensou que já era hora de sair do casulo e tornar a abrir as asas para o mundo.
Em menos de uma hora apresentava-se no escritório de Honório. Sorriu para a secretária o balançou a cabeça, indicando-lhe que não queria ser anunciada. A moça sorriu
de volta, e Tália abriu a porta sem bater, caminhando para dentro com a mesma graça e desenvoltura de sempre.
- Tália! - exclamou Honório, surpreso. - Esse, sim, é um dia especial. Pensei que nunca mais você fosse pisar no teatro novamente.
- Como dizem por aí - respondeu ela, oferecendo lhe a face para que ele a beijasse -, a vida continua. E chegou à hora de eu retomar a minha.
- Fico feliz que pense assim. Seus admiradores já não agüentam mais a sua ausência, e confesso que já estava começando a ter prejuízo.
- Como assim?
- Ora, Tália, você é que é a estrela do show Sem a sua presença, o espetáculo não é o mesmo, e por mais que as outras meninas tentem, nenhuma delas jamais conseguiu
se igualar a você.
Tália sorriu satisfeita. Gostava de ser especial, tinha consciência do seu talento e do efeito que produzia sobre os homens.
- Pois pode anunciar a minha volta.
- Farei isso imediatamente! Hoje é segunda-feira, e se você se dedicar aos ensaios, no sábado poderemos estrear um novo espetáculo.
- Não acha que é muito pouco tempo para eu me preparar?
- Ora, o que é isso, minha querida? Você é uma dançarina nata. É só subir no palco e deixar a natureza agir, que seu corpo faz o resto. - Ela fez um gesto de dúvida,
e ele riu largamente. - Mesmo assim, não se preocupe, tenho um novo coreógrafo. Venha, vou apresentá-la a ele.
Honório sempre desejou contratar um novo coreógrafo e só não o fizera antes em consideração a Tália, para não tirar de Mauro o único emprego que possuía, na única
coisa que realmente sabia fazer. Ela não pôde esconder a tristeza, que Honório logo reparou.
- Ele não é tão bom quanto Mauro foi... - começou a dizer.
- Não precisa se justificar - cortou ela, enxugando os olhos. - Você fez o que devia fazer. Como podia continuar com as apresentações sem um bom coreógrafo?
Ele não disse nada. Apanhou-a pela mão e foi apresentá-la ao rapaz. Logo começaram os ensaios, e Tália se dedicava a eles de corpo e alma. Pouco depois, Cristina
também apareceu avisada por Ione de que a irmã estaria no teatro. Entrou satisfeita e cumprimentou Honório com um aceno de cabeça, que ele correspondeu meio acanhado.
- Finalmente! - disse ela, tentando parecer o mais natural possível. - Fiquei muito feliz quando Ione me disse que Tália havia vindo para cá.
- E eu, então! Ela entrou no meu escritório sem se anunciar. Pode imaginar a minha surpresa? Sua irmã tem a dança no sangue. Isso é para poucas.
Cristina suspirou e olhou para ele com certa amargura. Foi quando Tália a viu e interrompeu o ensaio por uns instantes.
- Olá, Cristina - falou ela, aproximando-se com passos cadenciados pela música.
- Você está ótima, Tália. Fico feliz por estar de volta.
- Eu também. Bem, vamos ao que interessa. Preciso que você faça algumas coisas para mim hoje.
Rapidamente, deu instruções a Cristina, que saiu em seguida, para alívio de Honório. Embora gostasse muito dela, sentia-se mal pelo que a fizera passar e não conseguira
ainda se perdoar por haver sido tão insensível.
Depois que ela se foi, Tália voltou ao ensaio, sem nem se dar conta do clima de mal-estar que havia entre os dois.

***

Conforme o programado, Tália estreou naquele sábado, lotando a casa de espetáculos de Honório. Os homens faziam fila para entrar, todos queriam ver a sua estrela
preferida de volta aos palcos após aquela prolongada ausência de quase quatro meses. O show fez um sucesso ainda maior do que fazia quando sob a direção de Mauro,
e até mesmo Tália teve que reconhecer que o novo coreógrafo se saíra muito bem. Ao final de seu número, Tália sentou-se a uma mesa reservada, em companhia de Honório
e de Cristina.
- O que vocês acharam? - perguntou ela, olhando ao redor.
- Você ainda pergunta? - tornou Honório. - Foi sensacional!
- E você, Cristina, o que achou?
- Concordo com Honório. Você esteve deslumbrante e maravilhosa, como sempre.
Tália sorriu satisfeita e apanhou o drinque que o garçom havia colocado à sua frente. Levou-o aos lábios num gesto genuinamente sensual e levantou os olhos lentamente,
fixando-os em Honório, que a observava com olhos brilhantes. Ele estava fascinado por ela, sem conseguir desviar a atenção de sua boca vermelha e carnuda. Tália
percebeu isso e continuou a fixá-lo, passando a língua pelos lábios ao final de cada gole. Na mesma hora, todos os sentidos de Honório se aguçaram, e ele, instintivamente,
pousou a mão sobre a dela, que tamborilava em cima da mesa. Ela cessou o tamborilar e virou a palma da mão, que ele segurou com força.
Logicamente, aqueles gestos não passaram despercebidos a Cristina, que começou a ficar constrangida, sentindo-se demais ali naquela mesa. Uma pontadinha de ciúme
foi espetando-a aos poucos, e ela olhou para Honório com raiva, mas este parecia nem perceber, tamanho o seu envolvimento com Tália naquele instante.
- Acho que já está na hora de eu ir embora - anunciou Cristina, a voz trêmula de raiva e ciúme. - Já está ficando tarde, e mamãe deve estar preocupada.
- Chame o motorista para levá-la - disse Tália, sem desviar os olhos de Honório.
Cristina levantou-se apressada, tomando o cuidado de não derrubar nada, louca de vontade de sair correndo dali. Honório nem se despediu dela. Estava tão absorvido
pela sedução de Tália que parecia mesmo que Cristina não existia.
- Por que não saímos daqui? - sugeriu Tália, assim que Cristina se afastou. - Para comemorarmos o sucesso do espetáculo.
- Só nós dois?
- Só nós dois.
Na mesma hora, Honório se levantou e, tomando-a pela mão, foi com ela para seu carro. Entraram, e ele seguiu para sua casa. Tália não queria dormir com ninguém no
quarto e na cama que fora dela e de Mauro, e pediu para que não fossem para lá.
Naquela noite, amaram-se feitos loucos. Apesar de sair com outras mulheres, era em Tália que Honório pensava todas as vezes que se deitava com elas, e Tália, represada
por tanto tempo, deu livre curso ao desejo, entregando-se à paixão. Os dois estavam felizes, embora de maneiras diferentes. Tália preenchia um pouco o vazio que
Mauro deixara, e Honório tinha nos braços a única mulher por quem já sentira amor em toda a sua vida.
- Minha querida - falou ele, emocionado. - Não sabe o quanto esperei por esse dia.
- Por quê?
- Você não sabe? - ela balançou a cabeça. - Não sabe que a amo?
Tália estava debruçada sobre o seu peito e olhou-o de forma séria.
- Por favor, Honório - retrucou -, não me ame.
Aquilo o chocou.
- Por que não? Seria impossível não a amar.
- Não quero que você sofra.
- Por que eu sofreria? Você agora é uma mulher livre, e nós podemos assumir um compromisso público e formal.
- Não quero compromisso com ninguém. Ninguém vai ocupar o lugar de Mauro em minha vida.
- Não acha que está exagerando? Sei o quanto você amou Mauro e ainda ama. Mas ele está morto, não vai mais voltar. Não é justo que queira se enterrar junto com ele.
- Ela começou a chorar de mansinho, e ele prosseguiu: - Perdoe-me se estou sendo duro com você, mas é que não acho justo que você se feche para a vida assim, desse
jeito. Você é ainda muito jovem para se entregar a esse tipo de desilusão.
- Aí é que está, Honório, não é desilusão. É mesmo uma falta de sentimento. Fazer sexo com você foi ótimo, você é um grande amigo, e eu gosto muito de você. Não
estou lutando comigo mesma para não ficar com você nem sendo depressiva ao ponto de me tornar pessimista e achar que nunca mais vou amar de novo. Mas isso é algo
que sinto. Não é uma vontade, é um sentimento.
- Mas você pode estar enganada!
- O tempo dirá Honório.
- Esperemos a resposta do tempo, então.
- Não me incomodo de esperar e até torço para que seja assim como você diz. Só que o meu coração está me dizendo outra coisa...
- Você não tem como prever o futuro. Hoje, a dor ainda é grande, mas amanhã, pode desaparecer.
Tália silenciou. Não queria discutir aquilo com Honório, porque ele bem podia estar certo, e aquela resistência em amar novamente fosse apenas um reflexo da falta
que Mauro lhe fazia. Seria por isso que lutaria. Não queria mesmo passar o resto da vida cultuando a imagem de um fantasma cujo cadáver nem chegara a ver.

***

Apesar de suas atividades não serem muito desgastantes, Cristina sempre voltava para casa com desânimo e ar cansado. O romance entre Honório e Tália parecia progredir,
e ela sofria em silêncio. Como sempre, Tereza percebia a sua tristeza, mas já não perguntava tanto, porque Cristina se esquivava e respondia com evasivas. Quando
ela entrou, a mãe a observou discretamente e esperou até que ela começasse a subir as escadas para dizer, tentando aparentar desinteresse:
- Chegou uma carta para você. Está em cima da cômoda do seu quarto.
- Obrigada.
Se fosse em outros tempos, Tereza teria aberto a sua correspondência, mas agora, com medo de ser abandonada, não se atrevia a desrespeitar os direitos da filha.
- Não tem remetente. - comentou Tereza - De quem será?
Sem muito interesse, Cristina rasgou o envelope e desdobrou o papel, arregalando os olhos de espanto.
- É de uma amiga lá de Limeira - apressou-se em dizer, para cortar logo a curiosidade da mãe.
- Que amiga?
- A Cássia. Lembra-se dela? Era amiga de Tália.
- O que ela quer?
Após um silêncio de dúvida quase imperceptível, Cristina respondeu hesitante:
- Dizer que o Chico reapareceu...
- O quê? Como alguém se atreve a escrever para você para dar notícias daquele canalha criminoso? Ele devia era estar preso! Eu devia chamar a polícia! Onde já se
viu...?
Sem dar atenção à aparente indignação da mãe, Cristina fechou a porta do quarto e foi sentar-se em sua cama, com a carta nas mãos. Leu-a toda, diversas vezes, e
lembranças pipocaram em sua mente. Terminou a leitura, dobrou a carta, guardou-a na gaveta da penteadeira, junto com suas jóias, e trancou-a a chave. Em seguida,
atirou-se entre os travesseiros e chorou.
Durante quase toda a noite, Cristina não conseguiu dormir, pensando na surpreendente notícia contida naquela carta. Ao amanhecer, partiu para a casa de Tália. Como
naquele dia não havia ensaio, as duas combinaram de ir juntas às compras. Tália se queixava das roupas velhas e queria renovar o guarda-roupa.
- Chegou cedo. Ainda nem estou pronta.
- Não faz mal, eu espero - tornou Cristina, pensando se deveria ou não lhe contar da carta que recebera.
Achou melhor não dizer nada. Aquela notícia só serviria para atirar Tália em novo estado de depressão.
- Vamos? - Tália chamou, afastando aquela preocupação da mente da irmã.
A manhã de compras foi muito divertida, e quando voltaram, na hora do almoço, Ione já as esperava com uma caprichada refeição.
- Assim não vale Ione - queixou-se Tália. - Você quer que eu fique gorda?
- Você nunca vai ser gorda. Ah! Ia me esquecendo. Seu Honório ligou.
Sentaram-se para comer, e Tália nem percebeu o brilho que passou no olhar de Cristina.
- Como vai o namoro entre você e Honório? - sondou ela.
- Namoro? Isso é coisa de garotinhas.
- Vocês estão saindo juntos há bastante tempo. Não vá me dizer que não é sério.
- Nada pode ser sério depois de Mauro, mas se você quer saber se eu gosto dele, sim, gosto dele.
Cristina sentiu uma pontada no coração, mas conseguiu disfarçar.
- Mas não o ama.
- Não, não o amo.
- Ele, porém, está apaixonado por você.
- Sim, está. Ao menos, foi o que me disse.
Cada vez que ela falava isso, o coração de Cristina se oprimia, e ela tudo fazia para que a irmã nada percebesse.
- Acho mesmo que vocês formam um lindo casal.
- Escute aqui, Cristina, por que você, ao invés de ficar tentando me casar com Honório, não pensa em arranjar alguém?
- Não aparece ninguém por quem me interesse.
- Isso não é verdade. Vejo como os homens a olham. Você é que não lhes dá a menor importância.
- São todos fúteis e tolos. Não quero um tolo por marido.
- Minha querida, quem foi que disse que você precisa se casar? Você tem idade suficiente para cuidar da própria vida. Você me entende?
Ela entendia.
- Está sugerindo que eu arranje um amante?
- Estou sugerindo que você saia com alguém. O que tem a perder, Cristina? Esqueceu-se de que é como eu?
- Mamãe diz que ninguém vai me querer...
- Não acredite nas idiotices que mamãe diz. Você e eu perdemos a inocência ainda na infância, só que eu me adaptei a isso, e você, não. Vive como se ainda fosse
virgem, com medo de se perder. Você já é uma mulher e, cá entre nós, não tão jovem assim. Do que tem medo?
- Não sei.
- Só porque você sofreu com o que Chico lhe fez não quer dizer que não aconteceu. Eu, melhor do que mamãe ou qualquer outra pessoa posso muito bem entender o que
você sente, porque eu também senti, e ainda pior. Minha prima Janete me transformou numa prostituta, com a conivência de mamãe, e, mesmo assim, conheci Mauro e fui
feliz com ele. Mauro jamais se importou com o que Chico ou seu Anacleto me fizeram. O seu amor foi maior do que todas as dores, e eu não tive medo de me entregar
a ele. Mauro foi o homem da minha vida, e eu fui a mulher da vida dele, independente do que Chico me fez.
Aquela conversa estava lhe fazendo incrível mal, e Cristina tentava não se lembrar da carta que recebera.
- Sou diferente de você, Tália. Você é mais vivida, mais extrovertida, mais espontânea.
- Engraçado, não é, Cristina? Quando nós éramos crianças, eu costumava ser o patinho feio da história, e você sempre foi o lindo cisne. Era alegre, jovial, comunicativa.
O que aconteceu para você ficar assim?
- Não sei. Acho que nada. É que mamãe...
- Mamãe, mamãe! Por que é que sempre tenho que ouvir falar em mamãe? Deixe que eu mesma responda: mamãe fez de você uma mulher triste e amargurada. Transformou-a,
da menina alegre que era, nessa moça medrosa e insegura. Não deixe que ela faça isso com você, Cristina. Eu não permiti que ela me convencesse de que eu era uma
prostituta. Não deixe que ela a convença de que você não é ninguém.
- Mas eu vivo com ela, Tália.
- Quer vir morar aqui comigo?
- Como? E ela?
- Pode muito bem viver sozinha.
- Mas ela é uma pessoa doente.
- Podemos colocá-la num asilo.
- Você não faria isso! Não teria coragem.
- Por que não? Ela não fez pior comigo? Por que haveria de me importar com ela?
- Porque você tem um coração. Ela, não. Aquelas palavras mexeram com Tália. Cristina tinha razão. Por mais que sentisse ódio pelo que a mãe lhe fizera, por mais
que dissesse que não gostava dela e não se dessem bem, tinha uma índole generosa e não poderia abandoná-la à própria sorte.
- Mesmo assim, você podia sair com alguns rapazes. Sei de uma dúzia de homens que dariam tudo para ter um programa com você.
- E o que eu faria?
- Quer um conselho? - ela assentiu. - Durma com eles. Você vai gostar.
- Não posso - sussurrou amedrontada. - Não sei se conseguiria permitir que alguém me tocasse.
- Você ficou foi com trauma do Chico. Mas nem todos os homens são feito ele. Se você conhecer um homem carinhoso, vai ver como é bom estar entre braços másculos
e vai gostar de ser bajulada e adorada por ele.
Nesse instante, a porta se abriu e Honório apareceu. Olhou para as duas, meio constrangido com a presença de Cristina, mas entrou mesmo assim.
- Como vão as minhas meninas preferidas? Deu um beijo nos lábios de Tália, que se virou para Cristina e comentou sorrindo:
- O que foi que eu disse?
Cristina limitou-se a assentir, evitando olhar para Honório, que indagou curioso:
- Perdi alguma coisa? Do que é que vocês estavam falando?
- Eu estava dizendo a Cristina que ela deveria arranjar um namorado. O que você acha?
- Concordo plenamente com você. Uma mulher linda feita Cristina não deveria ficar escondendo tanta beleza do mundo. Por que não experimenta a vida artística? Posso
arrumar uma colocação para você no show de Tália.
- Eu?! Deus me livre! Não nasci para isso, Honório. E depois, gosto do que faço. Gosto de secretariar minha irmã.
- Muito bem, muito bem. Não está mais aqui quem falou. Eu só pensei em ajudar.
- Ajude encontrando alguém a sua altura - pediu Tália. - Quero que Cristina seja feliz.
- Bom - arrematou Cristina -, é ótimo conversar com vocês, mas tenho coisas a fazer. Preciso ir ao banco e depois à costureira. Se não me apressar, não terei tempo.
Levantou-se e sumiu pelo corredor, deixando Tália e Honório a sós. Presenciar as cenas de amor entre os dois era extremamente doloroso, e ela faria o possível e
o impossível para poupar-se daquele sofrimento.



Capítulo 21


O tempo cura a dor das lembranças, e Tália foi-se acostumando à ausência de Mauro e à companhia de Honório. Ele era um homem interessante e agradável, e ela apreciava
os momentos que passavam juntos. Embora não conseguisse amá-lo, tinha por ele um carinho especial, o que não a impedia de reparar nos outros homens que a cercavam.
Era dia de espetáculo, que, como sempre, transcorreu maravilhosamente bem, com a platéia levada ao delírio pelo requebrado natural e sedutor de Tália. Ela dançava
em roupas pequeníssimas, agitando-se freneticamente no compasso do samba, brilhando sob as luzes multicoloridas dos refletores. A casa estava lotada, e Tália reparou
no homem sentado a uma mesa na primeira fila. Era elegante, fino e de um louro quase branco, com translúcidos olhos azuis. Provavelmente, um estrangeiro, o que era
comum nos seus shows. Muitos europeus e americanos se deliciavam com a sensualidade das vedetes, e Tália já fora, inclusive, assediada por vários deles. Nunca lhes
dera muita importância, mas algo naquele homem lhe chamou a atenção.
À medida que dançava, procurava se posicionar bem defronte a sua mesa, requebrando de maneira mais provocadora do que de costume. O homem foi à loucura. Batia palmas
e gritava o seu nome a plenos pulmões, quase saltando da mesa para o palco. Não fossem os seguranças, provavelmente, era o que teria feito.
Ao final do espetáculo, Tália recebeu um bilhete no camarim. Estava escrito num português terrível, mas ela compreendeu que ele a convidava para sua mesa. Resolveu
aceitar. Honório não iria gostar, mas era seu dever tratar bem os fregueses. Sentou-se à mesa com ele, ignorando os olhares de Honório, que a chamavam para junto
de si.
Por cerca de meia hora, engatilharam uma conversa lacônica, cheia de Yes e No, porque Tália falava muito pouco inglês, e o homem quase nada entendia de português.
Depois de muitas risadas, conseguiram se compreender pelo olhar, e ele a levou para seu quarto de hotel.
Honório assistia a tudo com impaciência, sem nada poder fazer. Um escândalo provocado por ele seria a ruína do seu negócio, e, além do mais, Tália não iria gostar.
Por medo de perdê-la, engoliu o ódio e assistiu aos seus gracejos em silêncio, assim como silenciou quando ambos passaram por ele, e Tália mal lhe dirigiu o olhar.
Não conseguiu nem agüentar o resto da noite e foi para a casa de Tália. Como imaginava, ela não estava lá, e ele foi direto para o bar. Apanhou uma garrafa de uísque
e foi sentar-se numa poltrona, bebendo tudo em menos de uma hora. A cada segundo, olhava para o relógio, mas era como se ele não tivesse se mexido.
As horas iam se passando, e nada de Tália aparecer. Cansado de esperar, e amortecido pela bebida, acabou por adormecer.
Quando acordou, na manhã seguinte, o sol já ia alto, e ele sentiu o corpo todo moído. Levantou-se do sofá, espreguiçou-se e olhou ao redor. A casa estava vazia,
e o único ruído que se ouvia vinha da cozinha, onde Ione preparava o almoço. Seguiu para lá ainda tonto, sentindo a cabeça doer e rodar, e sentou-se à mesa.
- Seu Honório! - exclamou Ione. - Que susto o senhor me deu. Não sabia que estava aí.
- Dormi no sofá, Ione. Estou todo dolorido.
- Eu nem vi o senhor.
- Tália já voltou?
Ela percebeu que os dois não haviam saído juntos, e, pela cara de Honório, quase que adivinhou o que havia acontecido, mas não fez nenhum comentário.
- Está lá no quarto.
- A que horas ela chegou?
- Isso, eu não sei, seu Honório. Acho melhor o senhor perguntar a ela. Quer um gole de café?
Bem lentamente, ele bebeu o café que ela colocou à sua frente, sentindo que a dor de cabeça começava a diminuir.
- Obrigado - disse, levantando-se um pouco mais refeito.
Foi direto para o quarto dela e abriu a porta. Tália dormia serenamente, a roupa da noite anterior atirada sobre uma poltrona. Honório se aproximou da cama e ficou
a mirá-la. Como era linda! Linda e rebelde. Fez menção de acordá-la e exigir-lhe satisfações, mas precisava esfriar a cabeça. Não queria discutir com ela, com medo
de perdê-la. Deu-lhe as costas e foi tomar banho, deixando que a água fria e forte do chuveiro lhe batesse na nuca e nas costas. Depois de lavar-se, enxugou-se calmamente
e voltou para a cama, só de toalha. Sentou-se do outro lado e alisou os cabelos de Tália, que se remexeu com um gemido.
- Tália - sussurrou ao seu ouvido. - Acorde, vamos, já é dia claro. Tália!
- Hum...? - fez ela, virando-se para o outro lado.
- Acorde, Tália, vamos conversar. Vai ficar aí o dia todo?
- Deixe-me dormir - queixou-se ela, colocando a mão sobre os olhos. - Estou cansada.
Aquilo o foi irritando. Ele queria falar com ela, mas ela, exausta da noite anterior, nem se dava conta da sua presença.
- Vamos, Tália, hora de acordar! - falou mais alto.
- Não quero... Quero dormir...
- Você já dormiu demais. Agora chega. Vamos, levante-se!
- Quer parar de gritar no meu ouvido? - esbravejou ela, finalmente. - Se você não está com sono, vá embora, mas deixe-me dormir.
- Eu falei para você se levantar! - fremiu ele irritado, arrancando-lhe as cobertas e escancarando as janelas.
- Ei! O que foi que deu em você?
- Acorde, Tália, quero falar com você!
- Hum! Está bem, está bem! O que é?
- Você ainda pergunta? Não sabe do que se trata?
- Honório! - espantou-se, como se só então percebesse a sua presença ali. - Mas o que foi que houve meu Deus?
- Você não sabe mesmo, não é?
- Saber o quê? Aconteceu alguma coisa?
- Não se faça de cínica, Tália! Passa a noite fora e ainda vem com gracinhas? Onde é que você esteve?
Ela o olhou com frieza e respondeu em tom glacial:
- Isso não é da sua conta. Sou livre para ir aonde quiser.
- Você tem um compromisso comigo. Tenho o direito de saber.
- Meu compromisso com você é profissional, e não há nada no nosso contrato que me obrigue a lhe dar satisfações.
- Você é minha mulher - rosnou ele entre os dentes, segurando-a firme pelo braço.
- Solte-me! - gritou ela, puxando o braço e levantando-se da cama. - Você não tem o direito de encostar a mão em mim! Não é meu marido e, mesmo que fosse não é meu
dono.
Honório passou as mãos pelos cabelos, sentindo a perturbação que as palavras dela lhe causavam.
- Perdoe-me, Tália, não queria machucá-la. É que estou feito louco. Desde ontem... - calou-se, encarando-a com uma interrogação no olhar.
- Ficou assim porque quis. Eu não pedi para você me esperar nem para vir para cá.
- Por que saiu do teatro daquele jeito, sem falar comigo?
- Desde quando preciso da sua permissão para sair?
- Não é isso. Mas você podia, ao menos, ter-se despedido, dizer aonde ia...
- Dizer aonde ia? Queria que lhe dissesse que estava indo para o quarto de hotel do inglês para dormir com ele? Era isso que queria que lhe contasse Honório?
Ele ficou chocado. Jamais poderia imaginar que Tália confessasse que dormira com outro homem de forma tão aberta e direta.
- Você... Você... Dormiu com ele?
- Foi o que você ouviu.
- Mas por quê? - ele estava estupefato.
- Porque eu quis, porque me deu vontade.
- Mas... Mas... E eu? E nós?
- Você não queria que eu o levasse, queria?
- Não acredito que esteja ouvindo isso. Você sai com um estranho, passa a noite com ele e ainda confessa tudo?
- Não foi você quem perguntou? Se não queria realmente saber, não perguntasse.
- Não entendo você, Tália. Nós parecíamos estar bem, pensei que você estivesse feliz, que gostasse de mim.
- Mas eu estou feliz e gosto de você!
- Então, por que teve que dormir com outro?
- Porque eu quis, já disse.
- Não consigo entender. Pensei que você me amasse.
- Nunca disse que o amava. Falei que gostava de você e gosto. Continuo gostando do mesmo jeito. Só que senti vontade de dormir com o estrangeiro e fui. Só isso.
- Só isso? Você me traiu!
- Se você quiser entender assim...
- Ah! Não? Como chama isso então?
- Não chamo de nada. Ouça Honório, eu até entendo que você esteja chateado e decepcionado. Nós estávamos realmente nos dando bem, mas você não é o único em minha
vida. Você não é Mauro. Só ele conseguia conter o meu amor e o meu desejo.
- Já sei, já sei! Não precisa repetir o quanto você o amava.
- Perdoe-me se não correspondo ao seu amor, mas eu nunca o enganei.
- Como espera que eu aceite isso, Tália?
- Não estou lhe pedindo para aceitar nada. Eu apenas saí com o homem porque tive vontade. Foi com ele, como poderia ser com qualquer outro.
- Por que não comigo?
- Porque ele estava lá e chamou a minha atenção. Porque era alguém que eu não conhecia, era algo novo em minha vida.
- Você está buscando em outro o que perdeu. Ele também não é Mauro.
- Sinto muito se o magoei, Honório. Deus sabe o quanto gosto de você. Mas nunca lhe prometi nada, nunca disse que seria sua.
- Mas foi o que pensei. Pensei que tínhamos um compromisso.
- Lamento se o levei a pensar assim. Você é meu amigo especial, e não gostaria de perder a sua amizade. Mas não tente me dominar ou me prender. Ninguém poderá me
possuir.
- Já entendi Tália, eu não sou Mauro. Só a ele você pertencia. Já estou ficando cansado de ouvir isso, de escutar você me comparando a ele o tempo todo. Amo-a profundamente,
mas não sei se estou disposto a me humilhar para recolher as suas migalhas. Posso não ser tão bom quanto Mauro, mas, com certeza, sou melhor do que o seu estrangeiro
ou qualquer um com quem você venha a dividir a cama por uma noite. Porque sou seu amigo, sou sincero e leal.
- Sei disso, Honório, e valorizo muito a sua amizade. Mas não posso me prender a você do jeito que você deseja.
- Se é assim, nada mais tenho a fazer aqui. É melhor ir embora. Não posso ficar e ver você sumir com outro. Não posso ficar esperando você terminar de fazer amor
com outro para voltar para mim. Também tenho a minha dignidade. - Olhou-a com ar magoado e finalizou: - Quando quiser, sabe onde me encontrar.
Não havia mais o que dizer. Honório soltou a toalha e apanhou suas roupas, vestindo-as desajeitadamente. Em seguida, sem dizer palavra, rodou nos calcanhares e saiu.

***

Por algum tempo, Tália e Honório só se encontravam nos dias em que ela ia ao teatro, e nenhum dos dois tocou mais naquele assunto. Ele sentia imensa saudade dela,
mas não conseguia se aproximar, ferido em seu orgulho e em sua dignidade. Ela, por sua vez, por mais que desejasse estar com ele, não se atrevia a lhe pedir nada,
com medo da sua reação.
Os compromissos sociais também eram muitos, e era comum que se encontrassem em festas e jantares, quando então mal se falavam. Cristina sabia que eles haviam se
desentendido e, embora não concordasse com a atitude da irmã, sentia certa euforia vendo os dois separados, alimentando a esperança de conquistar Honório.
- Você e Tália continuam brigados - comentou ela com Honório, vendo a irmã numa roda, cercada de admiradores.
- O que você esperava?
- Ainda é por causa do inglês?
- Acha que é pouco?
- Tália está magoada. Diz que você não a compreende.
- Eu não a compreendo? Ora, Cristina, francamente!
- Não fique com raiva de Tália. Ela é assim mesmo.
- Não estou com raiva. Estou apenas triste. Você sabe o quanto a amo.
Em dado momento, os olhos de Honório cruzaram se com os de Tália, e ela os desviou, encarando o homem a sua frente.
- Não gostaria de sair daqui? - convidou com ar sedutor, saindo de braços dados com o rapaz.
Na outra semana, ao final da apresentação, Honório viu-a deixar o teatro em companhia de um rapazinho de seus dezenove anos, ainda com espinhas no rosto, e sentiu-se
realmente enciumado. Ela possuía domínio sobre todos os homens, jovem ou velho, mas sair com um garoto já era demais. No entanto, Tália não ligava para isso. Fazia
o que tinha vontade e com quem a interessasse.
Depois que todos se foram do teatro, Honório foi sentar-se sozinho em seu escritório. Estava amargurado e triste, queria não se importar com o que Tália fazia, mas
não conseguia. O amor que tinha por ela superava a sua razão, e, por mais que tentasse não demonstrar, sentia-se desmoronar por dentro.
Mais uma vez, logo que o show terminou, Tália se vestiu e saiu em companhia de outro homem, de trinta e poucos anos, forte, bonitão, o típico playboy carioca, rico,
que não trabalhava e desperdiçava os anos nas areias da praia de Copacabana.
- Devia deixar de pensar em Tália - ponderou Cristina, logo que ela saiu.
- Tália é maior de idade e solteira. Pode fazer o que bem entender.
- Você já viu os comentários sobre ela? A imprensa a chama de libertina.
- Se Tália não se importa com eles, não sou eu que vou me importar.
Por instantes, uma onda de ternura aqueceu o coração de Honório, que só então se deu conta da mulher linda e maravilhoso que possuía diante de si.
- Vamos sair daqui - pediu ele, pousando a mão sobre a dela.
- Aonde quer ir?
- A algum lugar em que possamos conversar.
- Conversar?
- Podemos jantar também, se você quiser.
- Será que não sirvo para mais nada? Você só se lembra de mim quando quer chorar suas mágoas?
Ele se assustou com o aquele desabafo repentino e voltou atrás em seu pedido. Estava sendo egoísta, pensando apenas em seu bem-estar, certo de que Cristina sempre
estaria a seu lado, atendendo a todos os seus pedidos. Mas ela era mulher e também devia sentir-se humilhada e rejeitada, tendo que ouvir o homem que amava falar
o tempo todo de outra mulher.
- Você está certa, Cristina - concordou ele, com certo pesar. - Venha, vou levá-la para casa.
Não era aquilo que ela pretendia, mas achou melhor não questionar. Apanhou a bolsa e falou, com olhos úmidos e magoados:
- Vamos.

***

O som da campainha soava estridente aos ouvidos de Honório, que mal conseguia abrir os olhos, tamanho o cansaço que sentia. Depois que deixara Cristina em casa,
partira direto para o seu apartamento e se atirara na cama. Olhou o relógio da mesinha de cabeceira e espantou-se com a hora. Eram quase seis e meia, e ele havia
praticamente acabado de se deitar. Quem poderia estar tocando a campainha de sua casa àquela hora?
Muito contrariado, levantou-se da cama e saiu aos tropeções para a sala. Morava sozinho, e a empregada só chegava por volta das 08h00min. Além disso, ela possuía
a chave da cozinha e não precisaria tocar daquela forma tão desesperada. A campainha soava estridente, e ele acabou berrando, irritado:
- Já vai, já vai! Será que não pode esperar? Abriu a porta pronto para dar uma bronca em quem quer que fosse, mas parou a meio. Em pé à sua porta, com o rosto inchado
e vermelho, Tália chorava, apertando as mãos nervosamente.
- Meu Deus! - exclamou ele, estarrecido. - O que foi que houve com você?
Ela passou para o lado de dentro, levando a mão à roxidão que se espalhara por toda a sua face, e conseguiu dizer entre soluços:
- Ele me bateu...
- Quem? Quem foi que lhe bateu?
- Maurício...
- Mas quem é Maurício? Maurício de quê?
- Não sei... Só sei que se chama Maurício. Levou-me para um quarto de hotel. Nós fizemos amor, parecia estar tudo bem. De repente ele ficou feito louco e começou
a me bater...
- Canalha! Precisamos ir à polícia.
- Não! O que quer que lhes diga Honório? Eu nem sei quem era o homem. Só sei que se chamava Maurício, se é que esse era o seu verdadeiro nome. E depois, como é que
vou explicar o que estava fazendo com ele naquele hotel?
Ela começou a chorar descontrolada, e Honório a abraçou.
- Sh...! Calma, Tália, não fique assim. Vou cuidar de você.
Levou-a até o banheiro e, com cuidado, limpou o seu rosto e colocou um pouco de gelo.
- Não posso me apresentar assim, Honório. Todos vão saber o que me aconteceu.
- Vou lhe dar uma semana de folga. Deve ser o suficiente para esse hematoma sumir.
- Mas e o espetáculo? E os fãs?
- As meninas podem cuidar disso. Digo que você está doente, e todos vão entender. Todo mundo adora você.
- Oh! Honório! Você é tão bom para mim. Lentamente, ele virou o rosto dela para ele e, olhando fundo em seus olhos, declarou:
- Isso é porque eu amo você.
Beijou-a de leve nos lábios, e ela se deixou beijar. Sentia o rosto arder e a honra despedaçada.
- Ele me bateu com força... Foi como seu Anacleto... Pior... Foi como o Chico... Pensei que nunca mais fosse passar por isso outra vez.
Embora Honório não compreendesse bem o que ela dizia, deduziu que ela já havia apanhado de outros homens antes, talvez antes de conhecer Mauro. De qualquer forma,
não convinha fazer-lhe perguntas naquele momento. Ela precisava de apoio e carinho, não de um interrogatório.
- Esqueça isso, minha querida. Eu estou aqui e não vou deixar que nada de mau lhe aconteça.
Ela se abraçou a ele com um quase desespero, e Honório foi afagando os seus cabelos, até que ela dormiu. Gentilmente, acomodou-a na cama e deitou-se ao seu lado,
acariciando a sua cabeça com ternura. Como a amava! Depois que ela surgira, todas as outras mulheres haviam perdido a importância para ele. De vez em quando, saía
com alguma desconhecida só para saciar a fome de sexo, mas não queria nada, além disso. Com Tália, era diferente. Ele e amava e faria de tudo para que ela o amasse
também.

***

Recuperada da surra, Tália voltou a desfilar pelas rodas sociais em companhia de Honório, e os comentários maldosos a respeito de sua vida amorosa esfriaram um pouco.
Ele passava os dias em sua companhia e praticamente se mudara para a casa dela, o que deixou Cristina desapontada e triste.
Naquele dia, a agenda de Tália estava lotada, inclusive, com uma entrevista para uma revista famosa. A entrevista foi tranqüila, e os repórteres pararam de especular
sobre a vida sentimental de Tália quando ela lhes disse que tinha um compromisso sério com Honório. Ela falou com muitas pessoas e recebeu inúmeros convites, inclusive
para trabalhar no cinema.
- Você acha que eu devia aceitar? - indagou a Cristina.
- Acho que sim. É uma ótima oportunidade para você se tornar ainda mais conhecida do que já é.
Alguns acertos depois, mais um tempo para os ensaios e algumas aulas de atuação, e Tália já estava pronta para estrear no cinema. Era uma fita carnavalesca e açucarada,
que a crítica, pejorativamente, chamava de chanchada, e, apesar de Tália não estrelar no papel principal, fez enorme sucesso com o seu jeitinho sensual e despojado.
Sua fama foi então crescendo. O número de seus admiradores quase triplicou, e uma multidão delirante a perseguia sempre que era reconhecida.
Foi numa das muitas festas que freqüentava que ela retomou sua vida desregrada. Por um instante, quando dançava com um dos atores do filme, deixou-se levar pelo
desejo e saiu com ele, sem que Honório percebesse. Apenas Cristina a viu sair, e, embora tentasse chamá-la à razão, Tália, como sempre, não lhe deu ouvido.
- Cadê a Tália? - perguntou Honório a Cristina, depois de havê-la procurado por toda festa.
- Saiu - foi à resposta seca.
- Saiu?
Cristina apenas abaixou a cabeça e assentiu. Sentia vergonha pela irmã e certa raiva pelo que ela fazia a Honório. Não entendia como alguém podia fazer aquelas coisas
com um homem maravilhoso feito ele. Se Cristina estivesse no lugar de Tália, jamais o trataria daquele jeito. Honório tampouco falou qualquer coisa. Nem precisava.
Também ele sabia o que ela havia ido fazer. Com profunda tristeza no olhar, deu um beijo no rosto de Cristina e saiu.
- Vai me deixar aqui sozinha? - perguntou ela, correndo atrás dele.
- Não - respondeu ele, hesitante. - Tem razão, Cristina, seria uma descortesia. Você veio conosco, e é minha obrigação levá-la para casa.
Saíram, e enquanto Honório dirigia, Cristina ia pensando no que lhe dizer. Ele nada falava, mas sua tristeza e sua decepção eram visíveis. Sentiu vontade de abraçá-lo,
de confortá-lo, de dizer-lhe que ela estava ali pertinho, pronta para ser dele. Bastava que ele a quisesse.
Em breve, chegaram ao portão da casa de Cristina, e Honório freou o automóvel.
- Está entregue - falou, mas ela não se mexeu. - Algum problema?
- Honório, eu... - ela se encheu de coragem e, finalmente, disse o que há muito sentia vontade de dizer: - Não quero ir para casa. Gostaria de passar a noite com
você.
- Sua mãe não a espera? - retrucou ele, mais para ter o que dizer do que propriamente pensando em Tereza.
- Não sou mais criança. Posso cuidar de mim e fazer o que bem entendo.
Ela se aproximou dele mansamente e pousou-lhe um beijo apaixonado nos lábios, que Honório não conseguiu ignorar. Puxou-a com força e beijou-a com sofreguidão, envolvendo-a
num abraço caloroso e cheio de desejo. Deu partida no motor novamente e seguiu direto para sua casa.
Para Cristina, foi maravilhoso, algo com que jamais poderia sonhar, muito diferente do que a mãe dizia ou do que Chico lhe fizera. Depois de se amarem, ela se apertou
a ele e começou a chorar de mansinho.
- O que foi que houve? - perguntou ele. - Fiz algo que a desagradou?
- Você não fez nada de errado. É que foi tão maravilhoso! Nunca senti nada parecido.
Ele a estreitou com ternura e os dois permaneceram abraçados por muito tempo. Durante o resto da noite, ficaram a conversar, e Cristina lhe contou tudo o que lhes
acontecera na infância, a ela o a Tália, chorando muito a cada palavra. Honório ouviu em silêncio, lembrando-se de que Tália, ao apanhar daquele playboy, mencionara
o nome Chico, que ele julgou ser um antigo amante. Ao final da narrativa, ele estava emocionado e beijou-a com carinho.
- Pobre menina. Creio que, para você, foi mais difícil de superar do que para Tália.
- Tália é mais forte do que eu.
Ele beijou a sua cabeça e respondeu com carinho:
- Não é verdade. Você é apenas mais sensível.
- Oh! Honório, você é tão maravilhoso! Não sei como Tália pode pensar em trocá-lo por outro.
- Vamos contar a ela sobre nós?
- Não sei... - ela hesitou. - Talvez seja melhor esperarmos um pouco. Tália é possessiva, não sei se iria gostar.
Foi um alívio para Honório. Contar a Tália podia ser a atitude mais correta, mas ele temia que ela rompesse com ele para sempre, fosse por ciúme ou posse, fosse
para deixar o caminho livre para Cristina. O medo de perdê-la fez com que ele se calasse, e Honório apenas aquiesceu em silêncio.


Capítulo 22


Conforme o esperado, Tália não apareceu no dia seguinte nem no outro. Surgiu apenas no próximo, porque tinha ensaio no teatro e não podia faltar. Cristina não estava
com ela, e Tália entrou apressada, trocou de roupa e subiu ao palco, pronta para ensaiar. Durante todo o tempo, não disse nada a Honório que não se referisse ao
seu número.
Uma semana depois, rompido o namoro com o ator, Tália já circulava pelas rodas sociais de braços com Honório novamente, para angústia de Cristina. Podia até ser
que Honório não aprovasse a sua própria atitude, mas a reação passiva de Cristina, que parecia ficar à espera que ele voltasse para ela, serviu de estímulo para
que ele deixasse que os fatos se explicassem por si mesmos. Não era preciso dizer nada nem Cristina precisava ouvir para saber o que acontecia.
No mês seguinte, Tália se encantou por um jogador de tênis paulista, e, enquanto conversavam sobre sua terra natal, logo descobriram muitas afinidades, passando
a sair juntos desde então. Para afogar sua mágoa, Honório acabou voltando para Cristina, dando início a um relacionamento secreto e conflitante, interrompido sempre
que Tália brigava com seu novo amante e retornava para ele. Aos poucos, aquela situação foi assumindo ares de normalidade, e ambos se acostumaram à vida dupla de
Honório, que ora estava com Cristina, ora com Tália, sem que esta jamais percebesse nada.
Apenas Tereza desconfiava de algo. Há muito suspeitava de um relacionamento secreto de Cristina, embora não fizesse idéia de quem poderia ser o seu amante. Estava
certa de que só podia ser um homem casado, pois a filha nunca o levara para conhecê-la e se recusava a dizer o seu nome ou onde morava.
- Com quem você está saindo? - indagou Tereza a Cristina, vendo-a se arrumar defronte ao espelho.
- Uma amiga.
- Por que ela não entra para me cumprimentar?
- Ela é muito ocupada.
- É um homem casado?
- Não. É uma amiga, já disse.
- Você está dormindo com ele?
- Não durmo com amigas.
- Que amiga qual nada! Aposto como é um homem. E é casado.
- Por que não se mete com a sua vida, mamãe?
- E aposto como sua irmã está acobertando essa pouca-vergonha.
Cristina terminou de se aprontar quando o telefone tocou lá embaixo, e ela correu para atender.
- Alô?
- Cristina? - era Honório, falando aos sussurros. - Tenho que falar rápido. Não vou poder passar aí.
Tália me chamou, ela está deprimida... Estou em sua casa. Ela está vindo, tenho que desligar. Adeus.
Cristina recolocou o fone no gancho e correu para o quarto, trancando a porta e atirando-se na cama para chorar, sem dar importância aos gritos da mãe, que exigia
saber o que acontecera. Para Tereza, aquilo só vinha a reforçar suas desconfianças. Somente homens casados cancelavam um encontro na última hora, para atender às
exigências domésticas e não despertar a atenção das esposas. Cristina, contudo, não ligava para as suspeitas da mãe. Ela estava muito longe da verdade, mas, se a
descobrisse, não perderia a oportunidade de ir correndo contar a Tália, só para ver a sua cara de surpresa e raiva.
Enquanto isso, Tália acabava de preparar dois drinques e estendia um para Honório, que o pegou e começou a beber. Ele conseguira desligar o telefone antes que ela
voltasse ao quarto, de forma que ela não o escutara falar com Cristina. Rompera com o tenista e voltara para Honório.
Mas a volta não foi duradoura. Logo ela se interessou por um rico fazendeiro da Bahia, em férias no Rio de Janeiro para se recuperar de um desquite traumático e
que lhe custara quase metade de sua fortuna. O romance durou pouco. Em uma festa de aniversário, Tália conheceu um diplomata austríaco e teve um caso passageiro
com ele. Pouco depois, já estava nos braços de um jogador de futebol e, em seguida, encantou-se por um jovem carteiro, cujos atributos físicos a haviam impressionado
sobremaneira certa vez, quando ele deixava a correspondência em sua caixa de correios.
Foi em meio a esse romance que ela descobriu algo que a deixou aterrorizada: estava grávida. Pelo tempo de gestação, a criança não podia ser do carteiro nem do jogador
de futebol. Muito menos do diplomata ou do fazendeiro. Quem sabe, do tenista? Mas não, era de Honório. A gravidez já ia avançada, e o tempo de gestação coincidia
com a época em que estivera com Honório pela última vez. Aquilo a deixou mais transtornada do que nunca. Ainda se lembrava do filhinho que tivera em Limeira e que
lhe fora arrancado sem que ela sequer tivesse chance de o ver. Desde aquele dia, jurara a si mesma que jamais tornaria a ser mãe.
Resolveu viajar. Sem dizer a ninguém aonde ia, comprou uma passagem de ônibus e seguiu para Minas Gerais. Queria encontrar um lugar bem tranqüilo, onde pudesse pensar.
Desceu na rodoviária de Belo Horizonte e foi para um hotel. Comprou um mapa e foi olhando as cidadezinhas, até que encontrou uma que lhe pareceu adequada, sendo
quase uma vila. Depois de muito custo, conseguiu chegar lá. Era perfeita: pequena e afastada da civilização. Por ali, ninguém a conhecia. Não havia teatro de revista
e, muito menos, cinema. Utilizando-se de seu verdadeiro nome, comprou um pequeno chalé num sítio distante, só voltando ao Rio depois de dois meses de solidão.
- Graças a Deus, Tália! - exclamou Ione, vendo-a parada no batente da porta, com duas malas e uma barriga que já começava a se avolumar. - E... Minha Nossa Senhora!
Você está grávida!
- Ajude-me aqui, Ione - pediu ela, empurrando uma das malas para dentro. - Depois você reza.
Ione ajudou-a a levar a bagagem para cima, espantada com o ventre intumescido de Tália. Ajudou-a a desfazer as malas e preparou-lhe um banho quente. Quando ela desceu,
Ione já havia posto a mesa com um lanche saboroso e nutritivo.
- Venha, sente-se aqui para comer. Foi o melhor que pude arranjar, porque, desde que você viajou, não faço muitas coisas gostosas.
- Está ótimo, Ione, obrigada.
Ela se sentou e começou a devorar o café feito às pressas, o pão e o bolo comprados na padaria naquela hora.
- Posso saber onde foi que você esteve? Ficou fora por quase dois meses.
- Descobri um lugar secreto. Um lugar tranqüilo, aonde posso ir para descansar e pensar.
- Pensar em quê?
- Na minha vida, sei lá.
- Olhe Tália, tenho sido sua amiga por muitos anos, não tenho? Desde que nós morávamos naquela maldita pensão de Dona Janete.
- É verdade.
- Por isso, sinto-me no direito de lhe dizer uma coisa.
- O que é?
- Não adianta você dormir com tudo quanto é homem que conhece, porque nenhum deles vai ser igual ao Mauro. Você só vai se frustrar.
- Não consigo me apegar a mais ninguém, Ione. Só a ele.
- Acontece que ele morreu. E seu Honório é um homem muito bom, que a ama de verdade.
- Gosto de Honório, mas ele não é o homem da minha vida.
- E essa criança? - perguntou Ione, apontando para a barriga de Tália.
- É um bebê.
- Isso, eu estou vendo. Mas... De quem é?
- Não imagina?
- É de seu Honório? - ela assentiu. - Eu sabia! Só podia ser. Ele vai ficar radiante quando souber.
- Vamos ver.
- Por que não aproveitam e se casam? O bebê vai precisar de uma família decente.
- Calma, Ione, uma coisa de cada vez. Casamento não faz parte dos meus planos. Ele também não é Mauro.
- Quando vai lhe contar?
- Hoje mesmo. Vou subir para descansar e, mais tarde, telefono a ele e peço que venha até aqui.
Honório quase desmaiou quando ouviu a voz dela ao telefone. Havia acabado de entrar e combinara de buscar Cristina em sua casa, de forma que teve que ligar para
ela desmarcando tudo. Não podia lhe dizer que Tália havia voltado, porque ela lhe pedira para não falar com ninguém por enquanto, então, precisou inventar uma desculpa
para não ir.
Quando viu Tália parada no meio do quarto, levou um susto. Jamais poderia esperar encontrá-la naquele estado, com aquela barriga de cinco meses de gestação. Sentiu
um ódio indizível naquele momento, julgando que o filho fosse de qualquer um dos vagabundos com quem ela dormira. Jamais poderia supor que fosse dele.
- Mas o que significa isso, Tália?
- Estou grávida, não está vendo?
- Isso já foi longe demais! - explodiu ele, liberando toda raiva que sentira de si mesmo ao longo daqueles anos, por haver-se submetido às traições de Tália. - Tenho
feito tudo por você, tudo! Aceitei as suas traições, cuidei de você, nunca questionei os seus romances.
- E daí?
- E daí? Será que não foi o suficiente aceitar as suas migalhas, ouvir as piadinhas dos colegas todas as vezes que aparecia com você, logo após você ter rompido
mais um de seus casinhos infames? Ter suportado a humilhação de ser abandonado sempre que aparecia um playboy vagabundo e galante? Isso não bastou? Não bastou eu
ter perdido o orgulho, a dignidade, meus brios de homem? Fiz tudo o que você quis porque a amo. Mas agora, você foi longe demais. Isso está acima das minhas forças.
Não me peça para aceitá-la de volta assim nesse estado. Não, carregando no ventre o filho de outro homem!
Aquilo foi inesperado. Nunca passou pela cabeça de Tália que Honório pudesse pensar que o filho que ela esperava fosse de outro.
- Honório, escute-me... - ela tentou argumentar.
Queria lhe dizer que o filho era dele, pedir-lhe que esquecesse o passado e que criassem juntos aquela criança, mas Honório não parava de falar. Ele estava descontrolado,
tomado de fúria, e ela escutava atônita as barbaridades que ele dizia:
- Ordinária! Vagabunda! O que você pensa que sou? Seu capacho? Uma marionete, que você pode manipular como bem entende? Pois sou um homem, ouviu? Chega! Estou cansado
de ser um joguete em suas mãos, de ter que atender aos seus caprichos! A partir de hoje, não tenho mais nada com a sua vida. Esqueça-me! Finja que eu nunca existi!
Volte para os seus amantes e leve com você o seu filho bastardo!
- Saia daqui! - conseguiu ela, finalmente, gritar. - Saia da minha casa, seu monstro, animal!
Tomada pela ira, Tália atirou-se sobre ele e começou a bater-lhe e arranhar-lhe as faces. Honório apenas se defendeu. Conseguiu imobilizá-la e atirou-a cuidadosamente
sobre a cama.
- Vou sair. E pretendo nunca mais pisar nesta casa. Vou poupar a mim mesmo o desgosto de assistir ao nascimento desse bastardinho indesejado.
Com passos rápidos, Honório desceu as escadas, pulando os degraus de par em par. Do andar de baixo, Ione escutara tudo, atônita com o desenrolar dos fatos.
- Seu Honório - chamou ela, assim que ele passou feito uma bala.
Ele nem lhe deu ouvidos. Seguiu em frente, alucinado, e saiu batendo a porta. Com medo do que pudesse ter acontecido, ela subiu correndo para o quarto de Tália,
encontrando-a na cama, chorando descontrolada.
- Tália! Tália! Pelo amor de Deus, o que foi que aconteceu? - ela não respondia. - Você está bem? Ele lhe fez algum mal? Ele bateu em você? Por Deus, Tália, fale
comigo!
- Ele... - soluçou ela - ele nem me deu chance de falar, Ione. Começou a esbravejar e a berrar imprecações. Humilhou-me, ofendeu-me. Nem pude lhe dizer que o filho
é dele.
- Precisamos chamá-lo de volta. Esclarecer essa situação.
- Não! Nunca! Jamais, enquanto eu viver, Honório saberá que esse filho é dele.
- Mas Tália, isso não é direito.
- E o que ele fez comigo é direito?
- Seu Honório está com raiva. Você sempre o traiu e depois voltou para os braços dele, para ele ficar com as sobras. Quando foi embora, você estava tendo caso com
outro homem. Não acha natural que ele pense que o filho não é dele?
- Por que ele não me deu chance de explicar, Ione? Eu teria lhe dito que era dele.
- Ele está com raiva. Ao ver o seu estado, ficou fora de si. Mas isso passa. Se você o procurar, tudo vai se esclarecer.
- Já disse que não. Honório nunca saberá que é o pai dessa criança.
- Mas Tália...
- Não, Ione, mil vezes não! E você tem que me prometer que jamais lhe revelará a verdade. Nem a ele, nem a ninguém.
- Eu? Não posso fazer isso.
- Pode e vai. O filho é meu, ninguém tem o direito de se meter na minha vida. Nem você. Vamos, prometa.
- Não posso Tália, não é certo.
- Prometa!
- Nem para Cristina?
- Nem para Cristina.
Ione suspirou profundamente e fixou os olhos na barriga de Tália, sentindo imenso pesar naquele momento.
- O que vai dizer a seu filho quando ele perguntar quem é o pai dele?
- Que pode ser qualquer um.
- Você não tem coragem.
- Isso não vem ao caso. Quero apenas que me prometa: não vai contar nada a Honório, nem a Cristina, nem a ninguém. Prometa, vamos. Prometa!
- Está bem, está bem! Se é o que quer...
- Diga: eu prometo.
- Eu prometo. Pronto, está satisfeita?
- Estou. Confio em você. E agora, por favor, ligue para Cristina e a avise que voltei. Quero falar com ela ainda hoje, se possível. Preciso pensar no meu futuro
e no do bebê.

***

Por mais que Cristina insistisse, Tália jamais lhe revelou quem era o pai daquela criança. Nem a ela, nem a ninguém. Ione também manteve a palavra e, mesmo quando
a menina nasceu, permaneceu em silêncio, olhando a pequenina Diana, que se agitava nos braços da mãe.
- Ela não é linda? - afirmou Tália, mais do que perguntou.
- É uma beleza. Tem os olhos do pai.
Tália lançou-lhe um olhar severo, e Ione se calou. Não queria que Cristina e Tereza, que também estavam presentes na maternidade, soubessem de nada.
- Quem é o pai dessa infeliz? - indagou Tereza, torcendo o nariz para a criança. - Aposto como é algum de seus amiguinhos bêbados e desempregados.
- Mamãe! - berrou Cristina, em tom de censura. - Será que não pode ser agradável ao menos uma vez na sua vida? É a sua neta que ali está ali.
- Deixe Cristina - objetou Tália. - Ela não consegue evitar ser desagradável porque essa é a essência de sua alma. Por isso é que ninguém gosta dela.
Antes que Tália pudesse continuar e perguntar por que ela fora até ali, Tereza deu-lhe as costas e saiu para o corredor, dizendo para Cristina:
- Vou esperar lá embaixo, onde tem um jardim.
- Não ligue para ela - disse Cristina, depois que a mãe se fora.
- Eu não ligo. Só não gostaria que ela tivesse vindo.
- Eu não queria que viesse, mas ela insistiu.
- Está bem, deixe para lá. Afinal, o que importa é essa coisinha linda que está aqui.
Durante muito tempo, as três mulheres ficaram observando a menina, e Tália rezava para que ela não se parecesse com o pai. Desde a briga que tiveram, ele não aparecera
mais, e ela estava sem trabalhar desde então. Com a barriga se avolumando, não havia lugar para ela no palco, e ninguém também queria contratá-la para fazer filmes,
apesar de ter recebida uma série de convites para depois do parto.
Quando Diana completou seis meses, Tália voltou ao trabalho. Não agüentava mais ficar em casa e sentia falta do rebuliço do mundo artístico em que se enfronhara.
Aceitou o convite para um filme, que fez enorme sucesso, e começou a se distanciar do teatro. Honório via com tristeza aquela separação, mas não sabia como contornar
a situação. Dissera-lhe coisas horríveis num momento de raiva; deixara-se levar pelo ciúme, despejando sobre ela a frustração acumulada ao longo de tantos anos.
Mas agora, com a cabeça fria, conseguia raciocinar com mais clareza. Ainda que aquela criança não fosse sua filha, era um serzinho inocente que nada sabia dos desvarios
da mãe. E bem poderia ser dele, poderia ser de qualquer um. Aquilo não lhe importava. Amava Tália tão intensamente que seria capaz de cuidar dela e da filha, ainda
que fosse filha de outro homem.
Precisava contar-lhe isso, mas não via como. Depois das coisas horríveis que lhe dissera, não sabia como voltar atrás. Desculpar-se seria o melhor caminho, e resolveu
falar com ela. Precisava saber o que ela pensava, o que sentia, se o rejeitaria e o expulsaria de sua casa. Tomou uma decisão: se Tália o rejeitasse, ele daria um
novo rumo à sua vida e se casaria com Cristina. Se não, aceitaria cuidar da filha que ela tivera com outro homem, fazendo o que pudesse para ser um bom pai.
Ao chegar a sua casa, foi avisado por Ione que ela ainda não havia voltado da gravação de seu novo filme. Embora Tália houvesse dado ordens expressas para que ela
não o deixasse entrar, Ione não foi capaz de obedecer-lhe. Estava diante do homem que era o pai da pequena Diana, e ele parecia estar em sofrimento. Sua ida até
ali só podia significar uma coisa: ele estava disposto a se desculpar e voltar para Tália. Se for assim, merecia uma segunda chance, e Diana tinha direito à presença
do pai.
Tália voltou antes do almoço e, assim que Ione abriu a porta, logo notou que havia algo errado.
- O que foi que aconteceu?
- Desculpe-me, Tália - declarou Ione. - Sei que não devia, eram ordens suas, mas... Você tem uma visita.
Mal terminou de dizer isso, correu para a cozinha, e Tália foi direto para a sala de estar. Honório estava sentado no sofá, tendo nos braços a pequena Diana.
Aquela cena a chocou e emocionou ao mesmo tempo, e ela não sabia se gritava para que ele largasse a menina ou se chorava por ver a filha no colo do pai.
- Psiu! - fez ele, logo que a viu parada na porta, - Não faça barulho. Ela está dormindo.
Tália se aproximou a passou a mão na cabecinha de Diana, que dormia placidamente no colo de Honório, como se soubesse que podia se sentir segura nos braços do pai.
Por vários minutos, permaneceram assim, admirando a criança, as mãos de Honório tocando as de Tália juntamente com o corpo da filha. Aqueles momentos foram cruciais
para Tália. Os três ali, junto, davam-lhe a impressão de uma família, e ela sentiu o coração disparar ao fitar os olhos emocionados de Honório. Havia tanta emoção
em seus gestos, que ela chegou a pensar que Ione tinha lhe contado a verdade.
Depois de algum tempo, gentilmente, ela retirou a menina das mãos de Honório e saiu com ela, para entregá-la aos cuidados de Ione. A moça estava na cozinha, sentada
à mesa e choramingando.
- O que foi que você disse a ele? - indagou Tália, bem baixinho para não acordar Diana.
- Nada. Ele pediu para esperá-la e perguntou-me se podia ver a menina.
- E você deixou...
- É o pai dela.
- Mas ele não sabe! - zangou-se, aos sussurrou. - A menos que você tenha lhe contado.
- Devia era se preocupar com a saúde, ao invés de ficar fazendo guerra ao moço - rebateu Ione também sussurrando. - Está com cara de doente.
- Não mude de assunto, Ione.
- Já disse que não falei nada.
Tália sabia que Ione estava dizendo a verdade. Ajeitou o bebê nos braços dela e voltou para a sala. Ela e Honório tinham muito que conversar. Depois do que ele lhe
dissera, Tália pensou que, se o encontrasse de novo, reagiria com agressividade e rispidez, gritar-lhe-ia impropérios e o humilharia, reduzindo-o a nada. Mas estranhamente,
vê-lo com Diana nos braços retirou-lhe toda a vontade de maltratá-lo. Ele lhe dissera coisas horríveis, era verdade, mas, afinal de contas, fora ela quem lhe dera
os motivos, entregando-se a qualquer homem para depois voltar para os seus braços.
Lentamente, aproximou-se e parou diante dele, olhando-o com um misto de ternura e respeito. Ele sentiu a mesma coisa, porque seu coração disparou, e começou a dizer
com a voz embargada:
- Tália, eu... Vim aqui para me desculpar. Sei que lhe disse coisas horríveis, mas tente entender. Ninguém a ama como eu, e foi difícil ver você voltar, trazendo
no ventre o filho de outro, o filho que eu gostaria que fosse meu. - Fez um breve silêncio e tomou fôlego antes de continuar: - Mas isso não importa. Amo você mesmo
assim e quero cuidar de você e da menina, ainda que não seja minha filha. Nem sei se ela é minha... Mas prometo tratá-la como se fosse, e se você me aceitar, vou
transformar o impossível em possível para vê-las felizes.
Não conseguiu terminar. As lágrimas toldavam-lhe a visão e os soluços presos engasgavam a sua fala. Respirou fundo novamente e ia tentar continuar, mas Tália não
permitiu. Colocou um dedo sobre seus lábios e foi deslizando-o lentamente pelo seu queixo, até que lhe deu um beijo apaixonado.
- Não precisa dizer mais nada - murmurou ela, colando o corpo ao dele. - Apenas me ame novamente...
Ele a ergueu no colo e subiu com ela para o quarto. Amaram-se como se o mundo não fosse viver um novo amanhã. Foi maravilhoso para ambos. Para Honório, porque a
amava mais do que a própria vida. Para Tália, porque sentia a segurança da sua presença. Precisava contar-lhe a verdade, e tê-lo-ia feito naquele momento se, um
pouco resfriada, não tivesse adormecido em seus braços.
Apesar da emoção e do desejo de estar com ela, Honório tinha assuntos pendentes a resolver. Aproveitou que ela dormia, beijou o seu rosto e saiu, informando Ione
que voltaria para jantar. Disse que pretendia pegar algumas coisas em sua casa, mas a verdade é que precisava conversar com Cristina, ser honesto e romper com ela
de vez, agora que ele e Tália iriam se acertar.
Honório convidou Cristina para um drinque, e pelo tom de sua voz ao telefone, ela bem podia imaginar o que iria lhe dizer. Com a mágoa estampada no olhar, ela se
vestia em frente ao espelho. Queria ir e não queria. Pensou em inventar um desculpa só para evitar aquele encontro e, conseqüentemente, o rompimento de sua relação,
mas sabia que estaria apenas protelando um fim que já era inevitável.
Estava tão voltada para seus próprios pensamentos que nem ouviu a mãe entrar em seu quarto.
- Vai sair? - perguntou ela, para puxar assunto.
- E o que parece - respondeu Cristina, de mau humor.
- Com a amiga misteriosa?
- Não é da sua conta.
- Aprendeu a ser malcriada com a sua irmã, não foi?
Cristina pousou a escova sobre a penteadeira e voltou-se para ela:
- Mamãe, por que não torce para que Tália e eu sejamos felizes? O que a senhora lucra com a nossa infelicidade?
- Torço por você, não por ela. Foi por causa de Amelinha que você se envolveu com esse homem casado.
- Não me envolvi com homem casado nenhum. Será possível?
De tão aborrecida, Cristina apanhou a bolsa no armário e nem se lembrou de trancar a gaveta da penteadeira, onde costumava guardar suas jóias e a correspondência,
mantendo-a fora do alcance da mãe. Tereza não se moveu. Ficou ouvindo os passos da filha se afastando pelo corredor e ouviu a porta da frente bater com estrondo.
Quando se levantou para sair, Tereza deu de cara com a gaveta entreaberta, que Cristina se esquecera de trancar. Uma excitação doentia foi invadindo o seu coração
e a sua mente, e ela riu maldosa. Não podia perder a chance de bisbilhotar as coisas da filha e encontrar algo que saciasse a sua curiosidade sobre o misterioso
homem casado com quem ela andava se encontrando. Não sabia nem ao certo o que procurar, mas começou a remexer a gaveta, até que achou um maço de cartas atadas com
uma fita de cetim azul, que ela desamarrou com pressa, em busca de uma carta de amor.
Foi quando reparou num envelope cor de creme, sem remetente, e olhou o carimbo do correio. Levou um susto. Como pudera se esquecer daquela carta que Cristina recebera,
cerca de dois anos atrás, trazendo notícias do Chico? Lembrava-se de que, na época, havia estranhado a sua procedência, que ela observara pelo selo e o carimbo apostos
no envelope. Mas Cristina dissera que era de uma amiga de Limeira, e ela deduzira que a moça não morava mais lá e que lhe mandava notícias de sua nova cidade.
Tereza leu a carta avidamente, sentindo um prazer mórbido a cada linha. Terminada a leitura, apoiou-a no colo e mirou-se no espelho, deixando escapar um sorriso
mordaz. Como fora tola na época! E como estava satisfeita agora. Pensara descobrir os segredos de Cristina, mas acabou se deparando com uma arma poderosa com que
poderia destruir a felicidade de Amelinha.



Capítulo 23

Honório levou Cristina a sua casa e serviu-lhe um drinque, apanhando outro para si. Tomou alguns goles do uísque e estalou a língua, observando a moça pelo canto
do olho. Cristina bebericava o seu Martini em silêncio, aguardando que ele tomasse a iniciativa de falar. Passados alguns minutos, muito pouco à vontade, Honório
começou a dizer:
- Eu lamento muito, Cristina. Não queria que as coisas terminassem assim, mas não posso viver sem Tália.
- Você voltou para ela?
- Sim. A vida sem ela não vale a pena.
- E eu, Honório? Será que não conto nada para você? O que vivemos não teve nenhum significado?
- Significou muito. Você foi à melhor amiga que um homem poderia ter.
- Amiga... É só o que sou para você? Uma amiga tola e apaixonada, sempre disponível para ouvir as suas lamúrias e aplacar a sua dor e a sua fome de sexo? Quem quer
uma amiga mais conveniente do que essa? Entrega-se ao amante sem reclamar, ouve seus queixumes por causa de outra mulher e depois pode ser descartada sem cobranças
ou queixas.
- Não é nada disso... Eu... Gosto de você, Cristina, gosto muito. Não fosse por Tália...
- Já sei! Não fosse por Tália, nós poderíamos ter-nos casado. Isso não serve de consolo.
- Perdoe-me, Cristina, não foi minha intenção que isso acontecesse. Sempre amei Tália, nunca escondi isso de você.
- Tem razão, você nunca me escondeu nada. Eu é que quis enganar a mim mesma.
- Não se trata disso. Tália tem uma filha agora, precisa de mim.
- Sim, Diana é uma menina linda e maravilhosa, mas você já se perguntou quem é o pai dela?
- Isso não importa...
- Não mesmo?
Ele a olhou desconfiado e retrucou:
- Você sabe quem é?
- Não. Tália nunca me contou. Acho que jamais contou a alguém.
Aquela conversa já estava lhe fazendo mal, e Honório queria acabar logo com aquilo. Achou melhor não prolongar mais o assunto, porque nada que dissesse poderia apagar
a mágoa que Cristina sentia naquele momento.
- Sinto muito, Cristina... - balbuciou, envergonhado. - Lamento se a decepcionei. Mas...
- Não se lamente - cortou ela, levantando-se endurecida e pousando o copo de Martini sobre a mesa. - Não se lamente por suas escolhas, porque eu apesar de tudo,
jamais me lamentei pelas minhas.
Honório fechou os olhos, para não ser obrigado a encarar o seu olhar acusador. Quando tornou a abri-los, Cristina não estava mais ali. Partira numa nuvem de silêncio.

***

Depois que terminou de ler a carta, Tereza a recolocou no envelope, amarrou novamente o maço com a fita e guardou-o de volta na gaveta da cômoda. Correu a seu quarto
e se vestiu apressada. O que tinha a fazer não podia esperar nem mais um minuto. Chegou à casa de Tália pouco antes do jantar, para surpresa da filha.
- Mamãe! - exclamou Tália com desagrado. - O que faz aqui?
- Tenho algo muito importante a lhe mostrar.
- Francamente, mamãe, não vejo o que você possa ter que me interesse. A não ser a distância é claro.
- Isso, fale com sua mãe como se fosse sua inimiga.
- E não é isso que você faz questão de ser? Não me infernizou a vida inteira e, quando pode, me inferniza ainda mais? O que quer? Mais dinheiro?
- Filha ingrata! Eu agora tenho uma neta. É meu direito visitá-la.
- Desde quando você se interessa por Diana?
- Desde que você é a mãe dela e não tem condições de criá-la.
- Essa é boa! Mas que disparate! Vir a minha casa para me insultar e fazer exigências. Ora essa, francamente! E quer saber? Vá embora. Estou esperando alguém.
- Não se preocupe com isso, Amelinha. Não vim porque quis. Vim apenas para lhe mostrar isto.
Antes que Tália pudesse repetir que não tinha interesse em nada que a mãe pudesse lhe mostrar, Tereza já havia lhe estendido o envelope que furtara da gaveta de
Cristina. Instintivamente, Tália apanhou a carta e leu o nome da irmã.
- Isso não me pertence - disse, secamente. - Está endereçada a Cristina. É a ela que tem que entregar.
- Não lhe pertence, mas lhe diz respeito - retrucou Tereza com ar maldoso, aproximando-se da filha e apontando, com o dedo ressequido, o carimbo aposto no selo.
- Isto não lhe sugere nada?
Tália voltou os olhos novamente para o envelope e leu no carimbo, sobre o selo italiano: Nápoles. Olhou novamente para a mãe, com uma indagação no olhar, tentando
entender o que significava tudo aquilo. Tereza sorriu intimamente. A filha estava começando a juntar as coisas, embora não estivesse ainda em condições de avaliar
o que significava. Mesmo sem entender, o instinto levou Tália a abrir o envelope cuidadosamente, e, sem pressa, começou a ler:

Nápoles, 25 de maio de 1949. Querida Cristina,

E com grande pesar que lhe escrevo esta carta; para você, e não para Tália, como gostaria. Sei que ela jamais entenderia por que tomei a decisão que tomei, mas a
vida me impulsionou a isso e não tive escolha.
Fui ferido na guerra e, durante algum tempo, vaguei sem memória, até que fui recolhido por uma mulher de extraordinária bondade, que cuidou dos meus ferimentos até
que eu me refizesse e estivesse em condições de me lembrar do que ocorrera. Logo que recuperei a memória, quis me apresentar novamente ao meu regimento, mas a dedicação
de Giannina (este é o nome dela) foi me mantendo preso ao seu lado. Tive medo de cair nas mãos dos alemães, e ela sugeriu que eu ficasse escondido ali, em sua casa,
até que a guerra terminasse.
Pois bem. Com o fim da guerra, pensei em voltar, mas, a essa altura, meu envolvimento com Giannina já havia superado o desejo de rever o Brasil. Durante muito tempo,
fiquei dividido entre o amor que sentira por Tália e o que agora sinto por Giannina. Tália se transformou numa grande estrela, rica e talentosa, e creio que eu passei
a segundo plano em sua vida, vivendo à sua sombra, aceitando os favores dos outros só por causa de minha ligação com ela. Pensa que não sei que Honório só me manteve
no teatro em consideração a ela?
Com Giannina, tudo foi diferente. Ela é uma moça doce e perdeu os pais na guerra, ficando com uma fazenda e dois irmãos pequenos para cuidar. Fui auxiliando-a nessa
tarefa, até que me senti útil. Por isso, com o fim da guerra, comecei a adiara minha volta e fui ficando. Imagino que meu nome deva constar de alguma lista de desaparecidos,
porque, obviamente, meu corpo jamais foi encontrado. Imagino também como deve ter sido difícil para Tália aceitar a minha "morte". Mas ela é uma mulher forte, com
uma carreira brilhante, e independente. Não precisa de mim como Giannina precisa, como as crianças precisam.
Depois de muito pensar e sofrer, e me torturar, e me culpar, decidi que o melhor para todos nós seria que eu continuasse aqui. Libertaria Tália do fardo de ter que
me carregar pelo resto da vida e teria a oportunidade de fazer outra mulher feliz. Alguém que, realmente, precisa e depende de mim. Antes de partir, pedi a Honório
que cuidasse dela e é o que espero que ele esteja fazendo.
Peço que me perdoe se, depois de todos esses anos, reapareci qual um fantasma para lhe relatar esses acontecimentos tristes, mas não posso mais viver com o remorso
de deixar que todos pensem que morri. Achei que ao menos você, que sempre foi uma pessoa boa e confiável, deveria conhecer a verdade. Sei que estou sendo covarde
e não tenho o direito de lhe pedir nada, mas não gostaria que você contasse isso a Tália. Ela iria sofrer ainda mais do que tenho certeza que já sofreu, e em vão.
Haja o que houver, não vou mais voltar. Não é por outro motivo que escrevo sem declinar o endereço do remetente, para que ninguém sofra tentando me encontrar.
Só o que me resta agora é pedir perdão pela minha covardia, a minha traição, a minha falta de valor. Sempre que Tália falar de mim, procure dissuadi-la da imagem
de perfeição que ela construiu a meu respeito. Faça-a ver que eu sou um ser humano falível e sujeito a erros como todo mundo, talvez até muito mais do que outros.
De qualquer forma, confesso que a amei loucamente, e talvez ainda ame, embora não mereça o seu amor.
Mais uma vez, peço perdão pelo que fiz: a você, a Tália, a Deus. Perdão a mim mesmo por ter sido fraco e indigno do amor de sua irmã. Hoje, posso dizer que sou um
homem feliz, embora triste, porque essa culpa me atormenta dia após dia, lembrando-me o covarde que fui e que sou até hoje.
Não guarde rancor de mim e lembre-se de mim em suas orações.
Novamente lhe peço: não diga nada a Tália nem a ninguém.
Sinceramente,
Mauro.


Ao terminar a leitura, Tália fitou a mãe com visível confusão no olhar, tentando não acreditar no que lia. Em questão de segundos, sentiu a vista embaçar, e Tereza
foi se distanciando de seu campo de visão. A sala toda pareceu rodar, e aquele papel queimava em suas mãos. Um calor sufocante a invadiu, e sua garganta começou
a sufocar. Levou a mão ao pescoço e olhou para a mãe mais uma vez, mal a reconhecendo por detrás da vista turvada de lágrimas. Quis gritar, mas sua voz não mais
lhe pertencia, e ela fechou os olhos, sentindo que um leve torpor ia tomando conta de todo o seu corpo. Não viu nem se lembrou de mais nada. Desmaiou.
Com ar exultante, Tereza parou ao lado dela e ficou olhando o seu corpo tombado no chão. Ela respirava com dificuldade, e Tereza foi para a cozinha, onde Ione terminava
de preparar o jantar. A seu lado, no carrinho, Diana dormia tranqüilamente. Tereza olhou a neta com desdém e, virando-se para Ione, falou com azedume:
- Acho melhor ir ver sua patroa. Ela não está se sentindo bem.
Na mesma hora, Ione largou a colher de pau dentro da panela, deu uma olhada rápida no carrinho, certificando-se de que Diana dormia, e correu para a sala. Encontrou
Tália caída no chão, tendo ao lado um pedaço de papel meio amarelado. Com muita dificuldade, conseguiu erguê-la e deitá-la no sofá. Experimentou-lhe a testa: estava
ardendo em febre. Mais que depressa, correu ao telefone e discou o número do médico.
Meia hora depois, ela já estava em sua cama, medicada e descansando.
- O que ela tem doutor?
- Ela está com febre muito alta, e a respiração está falha. Creio que é uma gripe muito forte, que inspira cuidados.
- Meu Deus do céu! Eu bem que percebi e a avisei, mas Tália não me deu importância. E olha que ela já teve duas pneumonias.
- Mais um motivo para se cuidar. Não quero que ela saia para nada nem que se levante da cama. Recomendo repouso absoluto. Qualquer coisa é só me chamar.
- Obrigada, doutor.
Depois que ele saiu, Ione foi-se sentar numa poltrona perto da cama de Tália, acomodando Diana no bercinho ao lado. Na mesinha de cabeceira, colocou a carta que
encontrara caída e que não lera, sem desconfiar de que estava ali o motivo da enfermidade da amiga. Honório chegou por volta das dez horas e estranhou o silêncio
que imperava na casa. Levou sua mala para cima e, ao abrir a porta do quarto, espantou-se com o que via.
- Mas o que foi que houve aqui?
- Não sei seu Honório - foi à resposta de Ione, que se levantou sussurrando. - Já chamei o doutor, e ele a examinou e medicou. Disse que ela está com uma gripe muito
forte e que devemos tomar cuidado. Ela já teve duas pneumonias! Eu disse que ela estava com cara de doente e que devia se cuidar, mas ela não quis me ouvir. O senhor
sabe como Tália é teimosa, não escuta ninguém. Brinca com a saúde...
- Está bem, Ione - cortou ele. - Obrigado.
- Ah! E também achei esse papel aí, caído no chão ao lado dela. Acho que foi Dona Tereza que o deixou cair.
- Dona Tereza esteve aqui?
Ione assentiu, apontando a mesinha, e Honório apanhou a carta, reconhecendo-a de imediato. Cristina a havia mostrado a ele, pedindo sua opinião sobre se deveria
ou não mostrá-la a Tália. Juntos, decidiram que o melhor seria respeitar a vontade de Mauro e não dizer nada. Honório pensou que Cristina a houvesse destruído, mas,
pelo visto, ela a guardara em lugar não muito seguro, pois Tereza a encontrara e fora correndo mostrá-la à filha, num gesto cruel e vingativo, que só serviu para
deixá-la doente.
- Pode deixar que cuido dela agora - disse ele a Ione. - E acho melhor levar Diana daqui. Não sabemos se o que ela tem pode ser prejudicial ao bebê.
Ione saiu do quarto levando Diana, e Honório sentou-se ao lado de Tália, acariciando seus cabelos. Dentro em breve, ela despertou. A muito custo conseguiu fixar
os olhos nele e, aos poucos, foi se lembrando de tudo.
- Honório... - balbuciou ela. - Você não sabe o que aconteceu! Mauro... Mauro... Ele está vivo! Está na Itália, em Nápoles... Vivendo com outra mulher.
Começou a chorar convulsivamente, e Honório a estreitou de encontro ao peito.
- Não pense nisso, minha querida - procurou consolar. - Mauro escolheu o caminho dele.
- Ele me enganou... - tornou em lágrimas. - Deixou que eu sofresse esses anos todos sem motivo. Como eu sofri por Mauro! Você sabe Honório. Você, mais do que ninguém,
sabe o quanto sofri por ele.
- Eu sei meu amor, mas procure esquecer.
- Nunca vou poder esquecer. Os homens que conheci, os amantes que tive, o mal que fiz a você... Tudo isso porque jamais consegui aceitar o fato de que Mauro havia
morrido, e não pude arrancá-lo do meu coração. E durante todo esse tempo, ele estava vivo. Vivo! Como pôde ser tão egoísta e indiferente? Como pôde esquecer assim
o nosso amor?
- Não pense mais nisso, Tália, não lhe fará bem.
- Eu o amava! Por que ele fez isso comigo, Honório, por quê? Eu teria dado tudo por ele, tudo! Por que ele teve que me trair e me abandonar desse jeito?
- Eu não sei. Cada pessoa tem os seus motivos. Ele também deve ter tido os dele.
- Mas não foi justo! Ele foi mesquinho, egoísta. Só pensou nos seus sentimentos.
- Acho melhor esquecermos isso, Tália. Mauro está longe, nem sabemos onde. E não vai mais voltar.
- Se eu pudesse... Mauro... Minha loucura... E agora... Minha filha... Honório... A Itália... A guerra terminou...
Tália começava a falar coisas sem nexo, e Honório continuou alisando os seus cabelos, tentando fazer com que ela se aquietasse. Ainda sob o efeito dos remédios,
aos pouquinhos, ela foi se acalmando, até que adormeceu. Novamente, Honório sentiu o calor que emanava de seu corpo e deduziu que ela ainda devia estar com muita
febre. Apanhou o telefone e ligou para a casa de Cristina, que logo atendeu:
- Alô?
- Cristina? É Honório. Tália já sabe de Mauro. Sua mãe esteve aqui hoje e lhe contou tudo. Venha assim que puder. Ela está muito doente.
Um choque percorreu a espinha de Cristina, que desligou o telefone, espantada. Como a mãe conseguira aquela carta? Será que vasculhara a sua gaveta? Sim, só podia
ser isso. Cristina saíra e deixara a gaveta aberta, e Tereza não perderia a oportunidade de bisbilhotar as suas coisas. Sua vontade era de confrontar a mãe, mas
estava preocupada com a irmã. Apesar de doente, Tália lhe cobraria uma explicação sobre o motivo pelo qual ela não lhe mostrara aquela carta quando a recebera. O
que poderia lhe dizer?

***

Durante dois dias, Tália permaneceu presa ao leito, com febre alta e respiração ofegante, além de uma tosse seca, que não cedia. O médico ficou deveras preocupado,
pensando em interná-la, ainda mais porque ela já havia sofrido duas pneumonias extremamente graves. A internação, contudo, não foi necessária. Após quase uma semana,
a febre cedeu, e Tália começou a dar sinais visíveis de melhora. Honório, Cristina e Ione não saíam do seu lado, e apenas Tereza parecia regozijar-se com o mal que
lhe causara.
- Não sente remorso pelo que fez mamãe? - indagou Cristina, logo depois do ocorrido, mal contendo a raiva.
- Você é que devia se sentir culpada por lhe esconder a verdade. Eu só quis ajudar.
- Tália pode até morrer. Como vai se sentir se isso acontecer?
Tereza conteve o ímpeto de dizer: "satisfeita", e não respondeu, dando de ombros e se afastando.
Quando Tália despertou, Ione tratou logo de preparar-lhe uma refeição nutritiva e fortificante, pois ela estava muito fraca e pálida. Tália tomou toda a sopa de
legumes que Ione lhe oferecera e se sentia um pouco mais fortalecida. Já conseguia falar. Esperou até que Cristina e Honório estivessem juntos no quarto, encarou-os
em dúvida e começou a questionar, não sem esconder sua raiva e indignação:
- Por que não me contou?
- Eu não podia - sussurrou Cristina, envergonhada feito uma criança surpreendida em sua arte. - Mauro me pediu...
- Mauro lhe pediu? E desde quando você faz o que Mauro manda?
- Não se trata de mandar. Eu só achei que revelar a verdade não lhe traria nenhum benefício.
- Eu não teria perdido o meu tempo chorando a sua morte. Mas que morte? Enquanto eu estava aqui, sofrendo feito louca, sentindo que o mundo havia despencado sobre
a minha cabeça, ele estava lá, de férias permanentes em Nápoles, se refestelando na cama de uma vadia italiana!
- Não fale assim, Tália. A moça salvou-lhe a vida.
- Pois devia tê-lo deixado morrer! Preferia que ele estivesse morto a vê-lo nos braços de outra mulher.
- Tália! Que horror! Não diga uma coisa dessas, você pode se arrepender.
- A única coisa de que me arrependo foi de ter perdido o meu tempo chorando por aquele ingrato.
-
- Por que não deixamos isso para lá? Mauro se foi, não vai mais voltar.
- Sim, ele se foi. Foi-se porque era mesmo um covarde! Não soube conviver com o meu sucesso. Como se eu estivesse lhe cobrando alguma coisa, como se isso fosse importante
para mim. - parou abruptamente e apontou o dedo para Cristina, trilhando os dentes: - E você...! Você compactuou com ele, deu cobertura a essa sem-vergonhice.
- Eu? Mas que disparate! Só soube disso anos depois.
- E devia ter-me contado. Devia ter-me mostrado aquela maldita carta!
- Para quê, Tália? Para fazê-la sofrer ainda mais?
- Ao contrário. Para acabar com o meu sofrimento, para tirar-me da ilusão. Sofri durante anos pela morte de um homem que está vivo e feliz ao lado de outra mulher.
Acha isso justo?
Um clarão penetrou pela janela, e Tália aproximou-se, os olhos fixos nos relâmpagos que caíam ao longe. Trovões começaram a espocar à distância, e logo desabou uma
chuva torrencial, com ventos fortes sacudindo as venezianas. Tália ficou olhando a chuva batendo no vidro e sentiu imensa tristeza, ao mesmo tempo que um ódio desmesurado
foi crescendo dentro dela.
- Tália - interrompeu Honório que, até então, mantivera-se calado -, você é que está sendo injusta com a sua irmã. Ela só quis protegê-la.
- Você também sabia dessa história? A pergunta tomou-o de surpresa. Quando Cristina lhe mostrara a carta, ele não imaginara o que faria se Tália descobrisse a seu
respeito e lhe cobrasse a verdade não revelada. Não queria se envolver naquilo, queria mesmo nunca ter posto os olhos naquele maldito papel. Mas Cristina lhe mostrara,
e agora Tália lhe cobrava uma atitude, uma resposta convincente sobre o motivo que o levara a não lhe contar de sua existência.
- Tália - começou ele, tentando escolher as palavras -, gostaria que você entendesse...
- Você sabia! - afirmou ela, ante a sua reação evasiva. - Esse tempo todo, você sabia e me ocultou a verdade.
- Tália, nós só estávamos tentando protegê-la - ponderou Cristina, quase em desespero. - Não era para você saber da existência dessa carta.
- Se não era para eu saber, por que então você não a destruiu? Por que a deixou intacta, para cair nas mãos de mamãe e servir-lhe de arma para me atingir?
- Não era isso que eu queria... Jamais poderia imaginar que ela...
- Saiam daqui - ciciou ela, o ódio preso nos dentes trincados. - Saiam daqui, os dois! - berrou, por fim.
- Tália, escute - Cristina insistia.
- Vão embora! Saiam da minha casa, seus traidores, falsos, hipócritas!
- Acalme-se, Tália - falou Honório, tentando segurá-la.
- Não me toque! Jamais se atreva a colocar as mãos em mim outra vez! Odeio vocês, odeio! Saiam daqui!
A gritaria foi tão grande que atraiu a atenção de Ione, que estava no quarto ao lado, fazendo Diana adormecer. Ela veio correndo ver o que estava acontecendo e se
surpreendeu com a aparência de Tália. A palidez de antes cedera lugar a um rubro de ódio tão intenso que Ione se assustou.
- Meu Deus, Tália, o que foi que aconteceu? - indignou-se ela, aproximando-se da amiga.
- Mande-os sair! Os dois! Tire-os daqui, Ione, faça-os ir embora!
Ela olhou de Cristina para Honório, atônita, ainda sem entender o que havia acontecido.
- Acho melhor vocês irem embora - balbuciou ela, sem saber bem o que fazer. - Tália está nervosa...
- Saiam, saiam! - continuava Tália a gritar, as mãos apertando os ouvidos, como se não quisesse mais escutar nada que viesse deles.
Certos de que a presença deles ali só serviria para irritá-la ainda mais, Cristina e Honório fizeram a sua vontade e saíram. Tália espumava, de tanto ódio. Seu amante
e sua irmã, as duas pessoas em quem ela mais confiava, davam-lhe friamente uma punhalada pelas costas, causando-lhe uma dor da qual nunca poderia se curar.
- O que foi que houve Tália? - indagou Ione espantada, logo depois que eles saíram.
- Eles me traíram, Ione. Você sabia?
Ione meneou a cabeça, e Tália se agarrou a ela, deixando que as lágrimas lhe lavassem a alma, enquanto os soluços sacudiam seu corpo debilitado. Ione sentiu o calor
que partia dela e colocou a mão em sua testa.
- Você está com febre de novo. Venha deitar-se.
Mas Tália se desvencilhou e correu para o armário. Apanhou a mala e, ao acaso, foi colocando umas roupas dentro dela.
- O que está fazendo? - prosseguiu Ione, atônita. - Aonde pensa que vai?
- Preciso sair... Não posso mais ficar nessa casa. Sinto-me sufocada.
- Mas você está doente. E está chovendo torrencialmente.
- Chuva não mata ninguém.
- Mata, sim. Ainda mais no estado em que você está.
Ione aproximou-se, tentando impedi-la de arrumar a mala.
- Deixe-me, Ione! - gritou colérica. - Não se meta na minha vida!
Terminou de jogar as coisas dentro da mala e empurrou Ione para o lado bruscamente. A moça caiu no chão e fitou Tália terrivelmente assustada. Jamais a vira com
tanto ódio nem nunca fora tratada com tamanha agressividade. Tália olhou-a, hesitando entre o arrependimento por tê-la empurrado e o desejo de sumir dali.
- Sinto muito - lamentou-se e saiu.
Nem parou para ver a filha. Passou a mão na mala e desceu as escadas como uma bala, saindo para a rua feito louca. A chuva atingiu-a em cheio, e um arrepio percorreu-lhe
o corpo quente de febre. Estava frio, e ela começou a tremer. Foi caminhando debaixo daquele temporal, até que um táxi parou adiante para que um passageiro saltasse.
Ela correu o mais que pôde, gritando e agitando os braços. O motorista a viu pelo espelho e aguardou. Tália entrou apressada, molhando o estofado do automóvel.
- Para onde, madame? - perguntou ele meio contrariado, vendo o estrago que ela estava fazendo em seu banco.
- Para a rodoviária.
Seguiram em silêncio até a estação. A chuva havia diminuído um pouco, e ela, apesar do enorme cansaço, conseguiu saltar com relativa facilidade e caminhar até o
guichê, onde comprou uma passagem para Belo Horizonte. Estava tão ensopada e despenteada, que ninguém a reconheceu. Apanhou o bilhete e ainda teve que esperar quase
uma hora até que o ônibus partisse.
Em Belo Horizonte, o tempo não estava melhor.

Parecia mesmo que chovia mais ali do que no Rio de Janeiro. Tália saltou do ônibus e apanhou outro até o vilarejo. De lá, conseguiu uma carona na caminhonete de
um fazendeiro, que a conduziu até a estradinha que levava ao sítio, de onde ela seguiu a pé embaixo da chuva e arrastando a mala na lama.
Quando finalmente conseguiu chegar, estava exausta, ardendo em febre e com uma tosse rouca e insistente. Tália subiu a pequenina escada que levava ao andar de cima
do chalé e atirou-se na cama, vestida e molhada como estava. Na mesma hora, caiu num sono profundo. Teve sonhos estranhos, com Mauro e uma mulher loura e linda,
que lhe dizia:
- Este é o meu homem, Tália. Lembra-lhe alguém?
Depois Mauro se transformou na mãe, e ela revia Tereza parada em sua sala, estendendo-lhe a carta e dizendo:
- Você não tomou o meu homem? Pois encontrou alguém que lhe tomasse o seu. É bem-feito.
Em seguida, Cristina desapareceu coberta por um véu esbranquiçado e chorando, agarrada a um caixão. Nele, o rosto de Mauro surgiu lívido e cadavérico, para depois
se transformar no dela própria, envolto numa espécie de névoa cinzenta.
- Não, não! - ela gritava no sonho.
- Você escolheu o seu destino, Tália - Honório lhe dizia, abraçando Cristina. - E selou também o nosso.
Honório beijou Cristina no rosto, e ela, ainda no caixão, continuava gritando que não, tentando se levantar, sem conseguir. Acordou apavorada, engasgando de tanto
tossir. Sentiu um gosto estranho na boca e correu para o banheiro, cuspindo sangue. Olhou ao redor, procurando ajuda, mas estava sozinha naquele sítio longínquo,
onde ninguém sabia de seu paradeiro.
- Amanhã devo estar melhor - disse para si mesma, voltando a se deitar e cobrindo-se até o pescoço.
Dormiu a noite toda, sonhando as coisas mais estranhas. Quando amanheceu, a febre ainda não havia cedido, e ela sentiu uma dor lancinante no peito. Estaria de novo
com pneumonia? Ou a febre teria evoluído para algo pior? Resolveu não pensar naquilo. Fosse o que fosse, acabaria depois do repouso. Tornou a adormecer e dormiu
o dia inteiro, só se levantando de vez em quando para ir ao banheiro e beber água.
Sentia muita sede, mas descer as escadas era algo penoso e extremamente cansativo, e ela levou uma moringa com água para o quarto. Mas, após algum tempo, a moringa
secou, e a fadiga extrema a impediu de descer novamente, de forma que deixou de beber água. Permaneceu deitada, procurando respirar mansamente para que o peito não
doesse muito. Depois de algum tempo, um leve torpor começou a espalhar-se pelo seu corpo, e suas pálpebras mal conseguiam se levantar. O sono ia-se aprofundando
cada vez mais, e ela passou a ter menos momentos de consciência. Abria os olhos de vez em quando, para tornar a fechá-los logo em seguida, porque até esse esforço
estava se tornando penoso demais para ela suportar. Até que, na manhã do terceiro dia, seus olhos não se abriram mais.




Capítulo 24



Tália abriu os olhos no mundo espiritual, sentindo o rosto úmido pelas lágrimas que por ele desciam. Olhou ao redor e reconheceu o quarto branco da pequenina casa
com jardim que ocupava na cidade astral em que vivia. Aquelas lembranças eram tão dolorosas que ela, voluntariamente, optara por não mais as ter. Mas não podia apagar
sua vida para sempre, porque aqueles fatos realmente tinham acontecido, e não havia meios de fugir à realidade do que vivera.
Estava assim chorando e refletindo quando ouviu uma leve batida na porta, e Sílvia entrou com um sorriso confortador:
- E então, minha querida? - perguntou ela, abraçando Tália com carinho. - Sente-se melhor?
- Estou muito triste.
- Por isso vim até você. Senti, em meu coração, a tristeza que emana do seu.
- Não queria que as coisas tivessem acontecido daquele jeito.
- Foi o jeito que você escolheu. Desistiu da vida porque não pôde suportar suas próprias escolhas.
- Por que Sílvia? Por que não pude ser feliz?
- Quer se lembrar de sua vida anterior?
- No momento, não. Estou ainda muito abalada para enfrentar outra realidade que deve ter sido bem mais dura do que esta.
- Você é quem sabe. Não se apresse, faça as coisas do seu jeito e há seu tempo. Mas lembrar-se de sua encarnação anterior vai ajudá-la a compreender os sofrimentos
desta.
Tália enxugou os olhos e apertou a mão de Sílvia.
- O que aconteceu depois, Sílvia? Depois que eu morri?
- Você não sabe? - ela meneou a cabeça. - Bem, durante muito tempo, Honório e Cristina empenharam-se em encontrá-la. Contrataram os melhores detetives da época,
checaram hospitais, aeroportos, o necrotério e tudo o mais que você possa imaginar. Ficaram desesperados. Mas você havia se enfurnado naquele sítio, que comprara
usando seu verdadeiro nome, e nenhum detetive do mundo pensaria em procurá-la num vilarejo esquecido no interior de Minas Gerais. Você sempre foi uma mulher glamorosa,
amante das festas e dos eventos sociais, e nunca passou pela cabeça de ninguém que você tivesse se retirado para um lugar reservado e desconhecido. Por outro lado,
a população local jamais ouvira falar em Maria Amélia Silveira Matos, e mesmo Tália não era muito conhecida por lá.
- Mas eles não me encontraram. O que foi que passou pela cabeça deles então?
- Que você havia abandonado tudo. Ninguém pensou que você estivesse morta, porque o seu corpo não apareceu em lugar nenhum. Pensaram até que você havia partido para
a Itália em busca de Mauro, mas seu nome não constava das listas de embarque de navios ou aviões. Seu passaporte, ademais, continuava na gaveta em que você o guardara,
logo, todos deduziram que você não saíra do país.
- Eu estava morta, e eles desistiram de me encontrar...
- Depois de muito tempo, continuaram com suas vidas. A pequena Diana precisava de cuidados, e Cristina se desvelava para tomar conta dela, com a ajuda de Honório.
Até que um dia, vendo a dedicação de ambos, Ione achou que não era justo esconder-lhes a verdade e, quebrando a promessa que lhe fizera, contou aos dois que Honório
era o pai da menina.
Embora não estivesse surpresa, Tália não pôde conter um comentário de protesto:
- Ela não podia ter feito isso. Confiei-lhe o meu segredo, e ela me traiu.
- O que você queria? Que Diana crescesse órfã?
Em seu íntimo, Tália sabia que Sílvia estava com a razão e que Ione não tinha outra opção a não ser contar a verdade, de forma que deixou o orgulho de lado e soltou
os braços ao longo do corpo, retrucando com resignação:
- Você tem razão, Sílvia, como sempre. Eu é que não devia ter-me deixado levar pela raiva e me afastado daquela maneira. - Tália respirou fundo e continuou, num
sussurro: - E depois?
- Você nem pode imaginar a felicidade que Honório sentiu. Ele e Cristina resolveram se casar, e Diana passou a ser criada por eles, como filha verdadeira de sua
irmã.
- Cristina não teve outros filhos?
- Não. Dedicou-se exclusivamente a Diana. Infelizmente, porém, sua mãe foi viver com eles. Depois do tempo necessário para declarar você ausente, eles venderam a
sua casa, e Cristina e a menina se mudaram para a casa de Honório. Só que Tereza foi junto, e você pode imaginar a influência que ela teve sobre Diana.
- Quer dizer que foi minha mãe quem a colocou contra mim.
- Exatamente. Tereza imprimiu em Diana uma imagem tão negativa de você que nem Honório, nem Cristina conseguiram desfazer.
- Pensei que Cristina ainda a ajudasse a alimentar essa imagem. Afinal, pelo que pude perceber, ela sempre foi apaixonada por Honório.
- Engano seu, minha querida. Cristina é uma alma nobre e sempre foi sua amiga. Ao contrário do que você pensa, ela só fez falar bem de você para Diana, mas, como
eu disse, a imagem negativa que Tereza lhe passou foi muito forte. Ainda mais porque ela possuía um argumento incontestável: de que você a havia abandonado e que,
provavelmente, estava feliz vivendo ao lado de outro homem. Era impossível esconder-lhe os seus excessos em termos sexuais, e Tereza relatou à neta todas as suas
aventuras com os homens, o que contribuiu para que Diana visse em você a imagem da libertina, cujo exemplo jamais deveria ser seguido. O sentimento de rejeição,
aliado à vergonha de ter uma mãe vagabunda, como Tereza dizia, alimentou o ódio que ela sente de você até hoje, mas que não surgiu apenas nessa vida.
- E Eduardo?
- Se tudo correr bem, esperamos que ele possa recebê-la como filha, mais tarde.
- Eu? Filha de meu neto?
- Ele não é propriamente seu neto. Os espíritos não se ligam por laços de sangue, embora o amor que deles aflore permaneça para sempre.
- Filha de Eduardo...
- É apenas uma sugestão, que você não precisa seguir se não quiser. Mas pense nisso. Seria uma excelente oportunidade para você e para ele, principalmente. Não gostaria
de ajudá-lo?
- Gostaria, é claro. Ainda mais porque sei quem ele foi e o quanto sofreu nas mãos de minha mãe.
- Ele não sofreu nas mãos de ninguém, senão nas de si mesmo. Ele e Tereza têm muitas coisas a acertar, mas nessa vida não será possível. Sua mãe precisa ainda amadurecer
antes de voltar.
- Por falar nisso, onde ela está?
- Infelizmente, sua mãe desencarnou com o coração cheio de ódio e ressentimentos, tanto de você quanto de Raul. Não se encontra numa situação muito boa nesse momento,
embora esteja pronta para ser resgatada.
- Resgatada? Por quê? Ela está no astral inferior?
- Exatamente. Desde que tudo isso começou, com a descoberta de seu corpo por Eduardo, parece que Tereza também sentiu e passou a pensar em vocês insistentemente.
Está com medo e cansada do sofrimento que ela mesma se impôs.
- Por quê? Ela foi escravizada?
- Escravizada por suas próprias culpas. Mas antes de irmos ao seu encontro, gostaria que você fosse comigo a outro lugar. Há algumas pessoas que gostaria que você
encontrasse.
Tália hesitou por alguns instantes. Sílvia a levaria direto ao encontro com o passado, e ela não sabia se estava preparada para defrontar-se com aqueles que, um
dia, compuseram o cenário da triste peça que fora a sua vida.
- Imagino aonde vai me levar, Sílvia. Contudo, há algo que preciso saber, antes de mais nada. Algo que, durante muito tempo me atormentou, embora eu procurasse não
tocar no assunto.
- Diga o que é.
- O filho que eu tive e abandonei. Onde está?
- Refere-se à criança, fruto do estupro que você sofreu?
- Sim. O que foi feito dele?
- Compreenda que ali, você foi somente um instrumento. Aquela criança era um espírito muito empedernido que pediu, desesperadamente, uma oportunidade para reencarnar.
- Pediu para ser fruto de um estupro? Para ser rejeitado e abandonado pela mãe? Por que alguém faria isso?
- Você não faz idéia da quantidade de espíritos que suplicam por uma nova oportunidade. Alguns estão tão desesperados para voltar à vida na carne que aceitam as
formas mais violentas e degradantes, aos olhos do mundo, de renascer. Digo aos olhos do mundo porque para nós, espíritos desencarnados que estamos conscientes das
dificuldades e necessidades de muitos seres reencarnantes, é honroso e digno de respeito o desprendimento de mulheres que cedem o seu corpo para auxiliar os mais
empedernidos, que não encontram pais amorosos que os queiram receber. Por isso, todo nascimento é sagrado, ainda que pareça, a princípio, provir de um gesto vil
e odioso como o estupro.
- E quem o criou? - perguntou Tália, admirada.
- Ninguém. Ele viveu num orfanato, sozinho, como era de seu desejo.
- Oh! Sinto que fiz muito mal em tê-lo abandonado.
- Você não lhe fez mal algum. Ao contrário, fez-lhe tremendo bem. Não fosse por você, e ele, muito provavelmente, não teria conseguido a oportunidade que teve. Ninguém
estava disposto a aceitá-lo como filho, porque foi um espírito muito odiado no passado, e as pessoas com quem conviveu não estavam ainda prontas para assumir nenhuma
responsabilidade por ele. Não se esqueça de que Deus não dá a ninguém fardo maior do que seus ombros possam suportar. Por isso, seus companheiros de jornadas passadas
foram respeitados, e ninguém lhes impôs a obrigatoriedade de receber um inimigo. Mas ele estava firme no propósito de voltar ao mundo e se regenerar. Você foi muito
corajosa, emprestando-lhe o corpo para que ele fosse gerado.
- E ele conseguiu?
- Digamos que avançou alguns passos em sua escalada de evolução.
- Fico feliz... Apesar de tudo, Sílvia, ele foi meu filho.
- Quer vê-lo?
- Ele está vivo?
- Sim, está. Casou-se e hoje já é avô.
- Gostaria de conhecê-lo, se possível.
No mesmo instante, Sílvia e Tália se transportaram para uma casa simples, no que parecia ser um subúrbio da cidade de São Paulo. Sentado em uma cadeira de balanço,
um velhinho de seus setenta e poucos anos contava histórias a um menino de cerca de cinco.
- É ele? - indagou Tália, emocionada.
- Sim. Ele é funcionário público aposentado e, embora tenha auferido renda de algumas propinas e subornos, não é de todo mau. Foi irresponsável e inconseqüente,
mas conseguiu, ao menos, manter-se dentro de um padrão de razoável retidão de caráter, dentro daquilo que se esperava dele. Pode parecer estranho, sabendo-se que
ele foi um tanto quanto corrupto, mas, em vista do que foi anteriormente, pode-se dizer que evoluiu em muitas coisas, e seria exigir demais que alguém tão comprometido
se recuperasse de todos os seus desequilíbrios em apenas uma vida.
Tália aproximou-se dele e fitou-lhe o rosto enrugado, admirando ainda a criança em seu colo.
Eram pessoas de quem nada sabia e com quem jamais se relacionara, mas sentiu-se grata por ter, de alguma forma, contribuído para o seu progresso. Ele não lhe registrou
a presença, embora a criança houvesse percebido algo estranho no ar.
- Vamos embora, Sílvia. Já vi o bastante e não quero perturbar o menino.
Em um piscar de olhos, já estava de volta à casa de Tália, que sentiu como se lhe tirassem enorme peso dos ombros.
- Sinta-se gratificada por isso, Tália. Foi um gesto muito nobre o que teve para com aquele espírito desconhecido e estranho para você.
Ela sorriu satisfeita, sentindo a alma fortalecida pela elevação que só as atitudes dignas são capazes de gerar.
- E agora? - indagou. - Para onde é que vamos?
- Vamos a uma reunião onde nos esperam.
Novamente, com a velocidade de um pensamento, viram-se em uma ampla sala redonda, rodeada por uma bancada coberta de flores brancas. Uma suave luz azul se derramava
do alto, e no centro, alguns espíritos conversavam. Quando se aproximaram, todos se voltaram para elas, e Tália ficou olhando-os, tentando imaginar quem seriam.
Alguns espíritos as cumprimentaram e se afastaram, permanecendo apenas duas senhoras banhadas pela luz azul.
- Não nos reconhece? - falou uma delas, estendendo as mãos para Tália.
- É porque ela não nos viu envelhecer - observou a outra, aproximando-se também.
Na mesma hora, as feições de ambas se transformaram, e elas reassumiram a forma que tinham quando jovens, como da última vez em que Tália as vira.
- Cristina! Ione!
Trêmula de emoção, Tália atirou-se nos braços das duas, e elas permaneceram enlaçadas por alguns instantes, deixando que a emoção fluísse de um a outro coração.
- Não acredito! - prosseguiu Tália. - Depois de tanto tempo...
- O tempo aqui não passa de uma ilusão, minha querida - observou Cristina. - Para nós, foi ontem a última vez que nos vimos.
- Perdoem-me - falou Tália, a voz embargada. - Não fui justa com vocês, principalmente com você, Cristina, a irmã que sempre me amou e que eu jamais pude compreender.
- Isso não é verdade. Ajudou-me quando eu mais precisei.
- E você, Ione? Não sabe o quanto me arrependi daquele empurrão que lhe dei.
- Aquilo? Não foi nada.
- Você sempre foi minha amiga.
- Fui não. Sou. Sempre fomos, Cristina e eu.
- É verdade - concordou Cristina. - Desde que desencarnamos, sempre perguntamos por você. Mas sabíamos que você não queria contato com o passado e respeitamos a
sua vontade, embora muito quiséssemos reencontrá-la.
- Sílvia dizia que você logo sairia de seu retiro e viria nos procurar - completou Ione. - E ela tinha razão.
- Fico muito feliz em vê-las - disse Tália. - Há tantas coisas que temos para conversar! Quero saber como foi depois que eu desencarnei. Minha filha, meu neto, tudo.
- Com calma, nós lhe contaremos - tranqüilizou Cristina.
- Faz muito tempo que estão aqui? - retrucou Tália.
- Estou aqui há nove anos - esclareceu Ione. - E Cristina, há seis.
Tália sorriu satisfeita e abraçou-as novamente,
- Mas que alegria ver vocês de novo! - exclamou. - Não sei o que me deu para ficar tanto tempo escondida de todo mundo.
- Você sempre foi um espírito arredio, Tália. Amadureceu há seu tempo, como todos nós.
As três estavam realmente felizes. Sentaram-se e passaram o resto do dia falando sobre os velhos tempos, e Tália se admirava com as coisas que Cristina e Ione iam
lhe narrando. Ao cair da noite, despediram-se, com promessas de se reencontrarem mais vezes para conversar. Eram como amigas que se haviam separado na juventude
e que se reencontravam anos depois, cheias de saudades e confissões a revelar.

***

Depois desse encontro benfazejo, Tália resolveu procurar novamente o neto. Sentia-se responsável por ele e queria muito ajudá-lo. Encontrou-o sentado diante de seu
chefe, que o advertia severamente:
- Você sabe o quanto admiro o seu trabalho, Eduardo, mas francamente, não sei o que está acontecendo.
- Não está acontecendo nada.
- Você anda relaxado, relapso, chega sempre tarde e deixa o serviço pela metade. Está com algum problema que não queira me contar?
- Problema nenhum. Eu apenas ando meio cansado, é só.
- Quer tirar uns dias de licença?
- Eu posso?
- Tudo se resolve. Você e Márcio são meus melhores economistas. Não posso prescindir de nenhum dos dois. - O nome Márcio encheu-o de ódio, que o chefe logo percebeu.
- Está acontecendo alguma coisa entre vocês dois?
- Entre mim e Márcio? Não, nada.
O chefe apenas balançou a cabeça, sem dizer nada. Não queria se meter nos problemas pessoais de seus empregados, mas também não podia permitir que isso interferisse
no desenvolvimento da empresa. Por isso, achou melhor dar uma semana de folga a Eduardo, para que ele descansasse. Se, quando voltasse, continuasse ainda daquele
jeito, chamaria novamente a sua atenção, e se de todo ele não se modificasse, não veria outro jeito, senão dispensá-lo. Não era isso que queria, mas não podia correr
o risco de comprometer o bom nome de sua empresa.
Quando ele saiu da sala do chefe, estava espumando de raiva. Tudo por culpa de Márcio! Apanhou o paletó e saiu. Ganhara uns dias de folga e pretendia aproveitá-los
da melhor forma possível. Parou num bar na esquina, sentou-se a uma mesa de frente para a rua e começou a beber. A seu lado, sombras escuras o abraçavam, sorvendo
a essência do álcool que ele ingeria. Quanto mais bebia, mais liberava seus sentimentos de ódio e ciúme, pensando no quanto seria prazeroso acertar um soco na cara
de Márcio. Os espíritos ao seu redor se compraziam com essas idéias, incutindo-lhe outras ainda menos dignas, soprando absurdos sobre o relacionamento de Márcio
e Gabriela.
- Aqueles safados! - pensou. - Traindo-me descaradamente. Mas isso não vai ficar assim. Eles vão ver só uma coisa, ah, se vão!
Quanto mais dava vazão a esses pensamentos, mais os espíritos se satisfaziam, rindo e gargalhando, abraçados a ele. Como Eduardo escolhera um bar perto do trabalho,
não tardou muito para que Márcio surgisse em seu campo de visão, indo em direção a um restaurante do outro lado da rua. Enquanto esperava para atravessar, Márcio
avistou Eduardo no bar e sentiu um impulso de ir ao seu encontro. Corria o risco de ser destratado, mas Márcio estava muito preocupado com o amigo. Ouvira o chefe
dizer que se ele não se emendasse, mandá-lo-ia embora, o que o deixara alarmado. Por isso, mesmo sabendo do risco que corria, mudou de caminho e aproximou-se da
mesa de Eduardo.
- Oi, Edu - cumprimentou. - Posso sentar-me com você?
- Não. Esse lugar está ocupado.
Embora Márcio não visse ninguém, havia, efetivamente, três espíritos sentados nas cadeiras ao redor da mesa, que soltaram uma gargalhada estridente ao ouvir a desculpa
de Eduardo.
- Tudo bem, Edu, você é quem sabe. Gostaria apenas de alertá-lo: o chefe está muito aborrecido com você. Trate de melhorar a conduta ou você vai ser mandado embora.
- É isso mesmo que você quer, não é? Já me roubou a garota. Quer agora também o meu lugar na empresa.
- Não lhe roubei garota alguma e não preciso do seu lugar. Estou bem posicionado na empresa, ocupo o mesmo cargo que você. Não tenho motivos para cobiçar o que é
seu.
- Mentira! Sabe que sou melhor do que você e que terei uma promoção em breve. E é isso o que você quer, não é? Ser promovido no meu lugar.
- Do jeito que você vai, a única promoção que vai conseguir é para desempregado.
Eduardo não agüentou mais. Deu um salto da cadeira e acertou Márcio na boca, que cambaleou e caiu por cima da mesa de trás. Na mesma hora, as pessoas acorreram,
e os dois foram separados.
- Cachorro! - vociferou Eduardo. - Ainda se atreve a vir aqui para me provocar e insultar!
- Estava apenas tentando ajudá-lo - retrucou Márcio, passando a mão pelos lábios feridos. - Mas agora, quero que você se dane. Quer se destruir? Pois que se destrua,
não é problema meu.
Virou as costas e saiu, pensando na justificativa que apresentaria no trabalho para explicar aquele corte nos lábios. Se dissesse que Eduardo o acertara, o chefe
ficaria ainda mais furioso e poderia até despedi-lo na mesma hora. Achou melhor não voltar à empresa. Apanhou o celular e ligou, avisando que tinha um assunto urgente
para resolver.
Enquanto isso, Eduardo remoia o seu ódio, lamentando não o ter espancado até que desmaiasse. Irritado, pagou a conta e saiu já cambaleante. Entrou no carro aos tropeções
e foi para casa, dirigindo de forma temerária e irresponsável, só não causando nenhum acidente porque os espíritos que o acompanhavam não tinham interesse em vê-lo
morto ou limitado pela cama do hospital. Queriam-no saudável e livre para que pudessem continuar se beneficiando de suas vibrações de ódio e, sobretudo, da bebida
que ele, inadvertidamente e sem saber, lhes oferecia.
Em casa, Diana levou um susto quando o viu entrar, bêbado, àquela hora do dia.
- O que foi que houve com você? - indagou perplexa, amparando-o para que ele não desabasse no meio do corredor. - Foi despedido?
- Não. O chefe me deu uma semana de licença.
- Por quê?
Ele a olhou confuso, tentando enquadrá-la em seu campo de visão, e respondeu com voz pastosa:
- Sei lá... Vai ver, está a fim de mim...
- Eduardo, isso não é brincadeira! Por que o chefe lhe daria uma licença se você nem doente está? - Apertou as sobrancelhas e prosseguiu com desconfiança: - Ou será
que está e não quer me dizer? É isso, meu filho? Você está doente? Não andou se metendo em nada de ruim, não é? Quero dizer, não tem se drogado nem nada, tem?
- Não... Pode me fazer um favor, mamãe? - ela assentiu. - Não me amole.
A fala dela o estava irritando, e Eduardo entrou no quarto, batendo a porta com fúria. Diana ficou parada no corredor, sem saber o que fazer. Pensou em telefonar
para o marido, mas não queria ter que aturar o seu ar de superioridade, como se lhe dissesse com o olhar: Viu? Eu não lhe falei?
Não foi preciso que Diana contasse nada a Douglas. Tália e Sílvia já haviam ido ao seu encontro, e Sílvia tratou de lhe inspirar a sugestão de que procurasse o centro
espírita novamente. Douglas consultou o calendário sobre a mesa: era quinta-feira e, naquele dia, não havia sessão. Mesmo assim, resolveu tentar. Ligou para a casa
de Gabriela e conseguiu falar com sua irmã.
- Sei que hoje não é dia de sessão - disse ele em tom de desculpa -, mas sinto que preciso fazer alguma coisa por Eduardo. Ele não está nada bem.
- Vou ver o que posso fazer doutor Douglas - prometeu Eliane. - Vou tentar falar com seu Salomão e já lhe retorno a ligação.
Meia hora depois, ligou de volta, e Douglas atendeu rapidamente.
- Consegui encontrá-lo ainda no trabalho - ela foi logo dizendo. - Ele disse para o senhor levar Eduardo lá hoje à noite, que ele irá atendê-lo.
- Levar Eduardo? Como conseguirei isso?
- Acha que ele vai se recusar a ir?
- Tenho certeza.
- Então vai ser um pouco mais difícil ajudá-lo. De qualquer forma, seu Salomão já previu essa possibilidade e pediu que o senhor fosse, mesmo assim. Ele vai contatar
alguns médiuns e vamos fazer uma irradiação especial para ele.
- Você estará lá?
- Sem dúvida.
- Obrigado, Eliane. Você é uma boa moça.
Vinte minutos antes da hora aprazada, Douglas já havia chegado ao centro. As portas estavam fechadas, e ele teve que esperar cerca de quinze minutos até que Salomão
aparecesse.
- Boa noite, seu Salomão - cumprimentou Douglas, quando o viu abrir o portão. - Obrigado por me receber.
- Não precisa me agradecer. Sinto-me responsável pelo que aconteceu a seu filho. Devia ter ficado de olho em Janaína.
- O senhor não tem culpa de nada. Não pode se responsabilizar pelo que os outros fazem.
- De qualquer forma, quero ajudar o seu filho. E hoje percebo que Janaína também precisa de ajuda. Talvez, se eu tivesse permitido que ela ingressasse no corpo mediúnico,
ela tivesse se melhorado com a doutrina e modificado seu comportamento. Talvez até estivesse ajudando as pessoas com sua terapia de vidas passadas, encaminhando-as,
inclusive, para o tratamento espiritual necessário. Mas da forma como agi, apenas provoquei a sua raiva e deixei-a presa na ignorância, quando é meu dever esclarecer
as pessoas sobre as verdades do espírito. Por isso, não se iluda, doutor Douglas. Também tenho minha parcela de responsabilidade nesse caso. Cabia a mim, que tenho
mais conhecimento espiritual, orientá-la no caminho do bem, e não mandá-la embora, como se estivesse extirpando uma erva daninha de meu intocável jardim. Tomei o
caminho mais fácil, meu amigo, que nem sempre é o mais acertado.
Douglas apenas assentiu e entrou no centro. Pouco depois, alguns outros médiuns apareceram, inclusive Eliane, que vinha acompanhada de Gabriela. Sentaram-se todos
ao redor da mesa, e Salomão iniciou a sessão com uma prece de auxílio. Em seguida, pediu a Douglas que escrevesse o nome e o endereço de Eduardo e o colocasse no
centro da mesa.
- Agora, doutor Douglas - disse Salomão - quero que o senhor mentalize o rapaz. Procure não pensar em mais nada. Concentre-se apenas nele.
A concentração é algo realmente difícil, mas Douglas conseguiu, se bem que com algumas interferências, fixar o pensamento na figura do filho. Todos os médiuns permaneciam
em silêncio, e nada acontecia ao redor da mesa.
Em casa, porém, o assunto era outro. Eduardo, de repente, sentiu um estranho calafrio percorrer-lhe a espinha, e uma inexplicável sonolência se apoderou dele. Estava
se preparando para sair e tomar mais alguns drinques com os amigos, mas o sono o dominou por completo, e acabou se deitando na cama para descansar por uns poucos
minutinhos. Em breve, adormeceu, permanecendo seu corpo fluídico adormecido juntamente com o corpo físico.
Os espíritos a seu lado não entenderam nada. Estavam todos animados com a perspectiva de mais uma noite de bebedeiras e ficaram furiosos com a inoportuna sonolência
de Eduardo.
- Isso lá são horas de dormir, rapaz? - reclamou um deles, bastante irritado. - Levante-se daí, vamos! Estamos com sede.
Uma gargalhada geral ecoou pelo ambiente, até que todos se calaram assustados. Do lado da janela, uma luz esbranquiçada começava a penetrar. Deu uma volta pelo ambiente
e terminou pairando sobre a cama de Eduardo, para depois envolver todo o seu corpo com um brilho cada vez mais intenso e radiante.
- Que diabos é isso? - indagou outro espírito, entre surpreso e estarrecido.
A luz continuava envolvendo o corpo de Eduardo, até que começou a se irradiar por todo o quarto, atingindo o peito de alguns espíritos como um jato de luz cristalina.
Os espíritos sentiram como um choque elétrico, e muitos saíram correndo, disparando pelas paredes, apavorados com o banho de luz a que, involuntariamente, eram submetidos.
Os poucos que permaneceram devagar começaram a perceber a entrada de alguns espíritos armados, que deles foram se aproximando com ar pouco amistoso. Ao lado de Eduardo,
um espírito manipulava a luz que se derramava sobre ele, embora invisível aos olhos dos seres das sombras.
- O que vocês querem? - indagou o que parecia ser o chefe.
- Temos ordens de levá-lo - respondeu um dos visitantes.
- Para onde?
- Você vai ver.
- E se eu não quiser ir?
- Então, teremos que amarrá-lo.
- Por que eu?
- Você não é o líder aqui?
- Como é que você sabe disso?
- Olhe companheiro, sei tão pouco quanto você. Nós apenas recebemos e cumprimos ordens. É a nossa maneira de nos quitarmos com o mundo.
- A quem vocês obedecem?
- Àqueles que nos são superiores. Espíritos iluminados que nos incumbem das tarefas mais árduas e difíceis. Então? Como é que é? Vai nos acompanhar voluntariamente
ou teremos que levá-lo amarrado?
Fez um gesto para os outros espíritos que o seguiam, e o líder percebeu que todos portavam armas e cordas. Os outros aliados das trevas, vendo a superioridade dos
que chegavam, acabaram por debandar, deixando o chefe sozinho com eles.
- Está certo, companheiro. Não precisa usar de violência, não. Vou segui-los na santa paz.
Em uma fração de segundos, estavam todos no centro, e o espírito se assustou ao reconhecer Douglas e Gabriela ali entre eles. Só então percebeu o que estava acontecendo
e quem era o mandante daquele seqüestro. Os dois espíritos se entreolharam, e o guarda fez sinal para que o das sombras se aproximasse.
- O que está esperando?
- O quê? Não sei, não compreendo.
- Está se fazendo de tonto, é? Não sabe para que veio aqui?
Ao redor, alguns outros espíritos os observavam com olhar bondoso, inclusive os mentores da casa, que aguardavam que o guarda cumprisse o seu dever.
- Não estou entendendo...
O guarda não esperou muito. Agarrou o outro pela lapela e, a um olhar do mentor de Salomão, levou-o para perto de um dos médiuns, colando-o a ele.
- Agora fale, desembuche.
O espírito assustou-se ao sentir-se incorporado no médium, compartilhando com ele um corpo denso que há muito não experimentava. A sensação lhe foi agradável, e
ele mexeu os dedos, satisfeito com o resultado: os dedos do médium como que obedeciam ao seu comando. Experimentou abrir a boca, e o médium correspondeu, para espanto
seu, articulando as palavras que ele tencionava dizer:
- Boa noite - e calou-se, muito admirado ao ouvir a voz do médium falando juntamente com ele.
- Boa noite, meu amigo - respondeu Salomão. - Seja bem-vindo.
- Isso é brincadeira, é? - revidou o espírito, agora mais confiante e animado. - Como posso ser bem-vindo num lugar como esse?
- Aqui são bem-vindos todos os que necessitam de auxílio, e você, sem dúvida, precisa de muito.
- É?! - tornou com sarcasmo. - Pois olhe que nem eu sabia.
- Há muitas coisas que você não sabe, e outras que pode nos dizer.
- Não creio que nada do que eu saiba possa interessá-los.
- Engano seu. Você está liderando uma perturbação em casa de um amigo nosso que aqui está - apontou para Douglas e prosseguiu: - Por que está perturbando aquele
rapaz? O que você e seus comparsas desejam com o menino Eduardo?
- Nada.
- Isso não é verdade. Vocês o estão assediando há vários meses. Por quê?
- Por quê? - ele olhou de soslaio para o guarda, parado atrás dele com ar rígido, e achou melhor responder. - Porque a mãe dele pediu.
- A mãe dele não lhe pediria para prejudicar o filho.
- Não, prejudicar, não! Ela queria afastar aquela moça da vida dele. Foi o que eu fiz.
- Fez mais do que isso.
- A coisa saiu do meu controle. O menino andou se metendo com gente da pesada, e outros espíritos foram se juntando a nós. Não pude evitar.
- Pode afastar-se dele.
- Poder, até posso. E vou, se vocês prometerem não me incomodar. Mas, quanto aos outros, nada posso fazer.
- Se você o deixar, muitos o seguirão.
- Talvez...
- E nós poderemos agir com um pouco mais de facilidade.
- Tudo bem. Se for o que vocês querem, prometo que me afasto e convenço os que me seguem a afastar-se também. É só isso? Acabou?
- Não. Interesso-me também pelo seu bem-estar.
- Olhe moço, eu agradeço, mas ando bem. Não estou interessado em mudar de lado, se é o que quer dizer.
- Não deseja desfrutar da paz que só os espíritos que vivem na luz podem sentir?
- Não estou preparado para isso, certo? Outro dia, quem sabe?
Salomão não insistiu. Sabia quando devia e quando não era conveniente utilizar-se da doutrina para resgatar espíritos das sombras. Aquele espírito, pelo que podia
perceber, não era propriamente mau. Parecia mais alguém perdido pelo mundo, desorientado e irresponsável, seduzido pelos prazeres que a treva podia lhe dar. Não
era chegado ainda o seu momento de abandonar aquele mundo e se dedicara uma vida de orações e trabalho. Tudo precisava vir a seu tempo.
- Se é assim que deseja - arrematou Salomão -, não ocuparei mais o seu tempo. Quero apenas poder contar com a sua promessa de que vai deixar a cabeceira de Eduardo.
- Ah! Eu prometo. Já estava mesmo ficando cansado dele. Agora, quero que vocês também me prometam que não vai mais me chatear. E que não vão mais mandar esses gorilas
para me impressionar.
- Tem a nossa palavra. No entanto, quando sentir necessidade ou vontade, basta uma pequena oração para que o atendamos. Lembre-se de que hoje conquistou novos amigos
que se interessam por você.
O espírito ficou emocionado com a sinceridade na voz de Salomão. Era a primeira vez, desde que desencarnara que ouvia alguém dizer que era seu amigo.
- Olhe, agradeço muito o seu interesse. Muito mesmo. Estou tocado com as suas palavras, mas, por ora, não me sinto digno da amizade que me oferecem. De toda sorte,
a promessa está feita, e eu não vou mais perturbar o rapaz. Confio também na sua palavra e sei que não vão tentar me prender nem me forçar a uma conversão. Posso
ir agora?
- Vá em paz, e que a luz de Deus esteja sempre a seu lado e dentro de você.
O médium abriu os olhos lentamente. Lembrava-se de tudo o que havia acontecido e estava satisfeito com o resultado alcançado.
- Sente-se bem, Daniel? - perguntou Salomão, e o rapaz assentiu. - Muito bem. Tivemos uma grande vitória hoje. Melhor do que a esperada. O espírito que aqui esteve
parece ser o chefe da malta que acompanha seu filho, doutor Douglas, e está disposto a colaborar. Se ele sair do lado do rapaz, tenho certeza de que muitos o seguirão.
Douglas pigarreou e falou meio espantado:
- Perdão, seu Salomão. Disse que ele é o chefe da malta. Quer dizer que há outros?
- É o que parece.
- Mas por quê?
- Não o ouviu dizer que estava atendendo a um pedido?
- Sim...
Douglas não sabia o que pensar. Compreendia que fora Diana quem evocara a presença daqueles espíritos, o que acabou facilitando o acesso de muitos outros.
- Mas por que isso aconteceu? - era Gabriela. - Edu sempre foi um bom rapaz. Será justo que fique à mercê de espíritos dessa natureza, que o fazem beber e se tornar
agressivo?
- Esses espíritos só estão com ele porque ele já traz em si o germe da embriaguez e da agressividade. Foi isso que os atraiu.
- Não é justo... - continuou ela. - Dona Diana fez isso para nos afastar.
- Não pense assim, minha querida - esclareceu Salomão. - Se eles conseguiram, é porque alguma coisa entre vocês abriu uma brecha para que eles pudessem agir. Do
contrário, eles não conseguiriam obter nenhum sucesso.
- E agora?
- Vamos rezar e continuar fazendo irradiações para o lar de Eduardo. Se estiver nos planos de vocês, tenha certeza de que acabarão fazendo as pazes e reatando o
namoro.
Terminaram a sessão com uma bonita oração, e Douglas saiu do centro sentindo o peito mais leve. Confiava em Salomão e se tornara crédulo com relação às coisas do
invisível. Resolveu se instruir a respeito do assunto e comprou vários livros espíritas. Era hora de começar a aprender.
Ao chegar a casa, Diana estava recostada na cama, vendo um programa na televisão. Ela ficou observando-o entrar no banheiro e abrir o chuveiro, e desligou o aparelho,
entrando atrás dele.
- Onde você esteve? - indagou, tentando controlar a irritação.
- Fui tomar um chope com amigos.
Não era verdade, e ela sabia. Douglas nunca fora de beber depois do trabalho, mas se tivesse resolvido sair para beber naquela noite, Diana sentiria o cheiro do
álcool, ainda que longínquo, e nada sentiu. Olhou-o desconfiada, pensando se ele não teria saído com alguma mulher, mas não fez nenhuma pergunta, porque o orgulho
não lhe permitia demonstrações de ciúme. Voltou para a cama em silêncio e tornou a ligar a televisão, fingindo prestar atenção ao programa, enquanto uma desconfiança
cega começava a se alastrar por sua mente.



Capítulo 25



Em sua casa, Janaína também sentia os reflexos daquela irradiação feita para Eduardo. Ela andava amargurada, intimamente se culpando pelo que acontecera ao rapaz.
Embora nada soubesse sobre os problemas que ele vinha atravessando, principalmente com a bebida, Janaína não podia se esquecer de como ele ficara transtornado com
aquela regressão, além de se lembrar da visita que seu pai lhe fizera. Por mais que dissesse a si mesma que não era responsável por nada daquilo, no fundo sabia
que deveria ter-lhe prestado assistência, dando-lhe apoio psicológico e espiritual.
O espírito que fora até sua casa lhe sugerira que voltasse ao centro espírita, mas ela se sentia envergonhada. Sabia que a irmã da namorada do rapaz integrava o
corpo mediúnico e que, àquela altura, provavelmente, todo o centro já devia estar a par do ocorrido. Como poderia encarar Salomão novamente e dizer-lhe que estava
errada a respeito de seus métodos? Uma voz em seu íntimo lhe dizia que estava enganada, que Salomão a receberia com amor e cuidaria de ajudá-la, mas ela já fora
recusada várias vezes e levara muitas reprimendas por causa de seus métodos de trabalho.
Quanto a Eduardo, sua melhora foi visível. Ele não despertou mais naquela noite, só acordando no dia seguinte, um pouco mais alegre e sem vontade de beber. Ainda
sentia o bem-estar causado pela limpeza espiritual em seu quarto, onde se encontrava protegido. Tomou um banho gelado e vestiu uma roupa confortável, saindo para
tomar café.
- Olá! - alegrou-se Diana ao vê-lo. - Como se sente hoje? Melhor?
- Estou bem, mãe, não precisa se preocupar.
- Mas eu me preocupo. E então? Não vai me contar o que aconteceu ontem?
- Não aconteceu nada. Eu ando muito cansado, e o patrão resolveu me dar uma semana de folga, para descansar. É o que dá ser bom profissional.
- Tem certeza?
- Absoluta.
Deu um beijo no seu rosto e foi tomar café, mas Diana o chamou de volta.
- O seu avô telefonou, mas eu não quis acordá-lo. Disse que você prometeu visitá-lo no domingo e não apareceu.
- Ih! Não é que eu me esqueci?
- Por que não aproveita a folga e vai até a casa dele? Sabe como seu avô se sente sozinho.
- Farei isso, mamãe.
Depois do café, Eduardo foi visitar o avô, que descansava sob uma árvore, no jardim. Ele ouviu os passos do neto e abriu os olhos, dando largo sorriso ao vê-lo.
- Até que enfim, hein? Pensei que tivesse se esquecido do velho.
Eduardo deu-lhe um beijo amoroso e abraçou-o com carinho. A seu lado, Tália os abraçou também.
- Diga a ele que não fui eu que o matei - ela soprou ao ouvido de Honório.
Honório não entendeu o que ela disse, mas captou-lhe a presença e, inesperadamente, puxou assunto com Eduardo:
- E as investigações sobre sua avó, como é que andam?
Eduardo franziu o cenho e respondeu acabrunhado:
- Não quero falar sobre isso.
- Você parece mudado. Antes, ficava interessado em qualquer coisa que lhe dissesse respeito. Por que agora não quer mais falar sobre ela?
- Descobri a verdade sobre o seu passado.
- Que verdade?
- Não quero falar sobre isso, vovô. Há coisas que é melhor não saber. Não lhe fará bem.
- Duvido que haja alguma coisa a respeito de sua avó que eu não conheça.
- Não sabia daquele sítio em Minas.
Tentando fazer com que Honório lhe revelasse o que conhecia da verdade, Tália insistiu uma vez mais:
- Lembra-se do que lhe contei sobre a morte de Raul? Pois então, conte a ele.
- Aquele sítio foi uma surpresa de sua avó, mas a vida dela, eu sempre conheci. Você sabia que ela foi estuprada aos treze anos de idade? Ela e sua tia-avó Cristina?
- Estuprada? - era visível a sua indignação. - Mas como? Por que nunca me contou?
- Porque não interessava. Era uma parte dolorosa da vida de Tália que você não precisava saber. Só lhe interessavam os anos de glamour, de fama, de luxo. Antes que
ela se tornasse uma estrela, teve uma vida muito sofrida. Tália foi uma mulher de muita coragem e fibra. Não fosse por isso, não teria chegado aonde chegou. Aquelas
reminiscências causaram o impacto esperado em Eduardo, que, movido pela curiosidade, começou a se interessar pelo assunto.
- Você pouco me contou sobre a vida dela em São Paulo. Disse apenas que ela nasceu em Limeira e que foi para a capital morar com uma prima. De lá, veio para o Rio,
onde alcançou sucesso e fama. Depois, teve uma filha, a sua filha, minha mãe, e sumiu no mundo.
- É verdade.
- Depois disso, só o que sei são as histórias do seu sucesso, do seu amor à liberdade e à fama, dos seus casos amorosos que escandalizaram a sociedade conservadora
da época.
- Ela não ligava para o que os outros diziam. Gostava mesmo de estar nos jornais, de chocar a opinião pública.
- Você só a conheceu nessa época, não foi?
- Quando eu a conheci, ela já era uma grande estrela e se tornou ainda maior sob os meus cuidados.
- Mas e sua vida antes disso? O que sabe dela?
- Tália não gostava muito de falar sobre o passado, mas Cristina me revelou muitas coisas depois que ela sumiu.
- Você conheceu a sua família? Sua mãe, seu... Padrasto?
- Conheci apenas sua mãe e sua irmã, com quem me casei. Quanto ao padrasto, ele morreu antes.
- Como? Como ele morreu?
- Suicidou-se.
- Isso foi o que ela lhe contou, não foi?
- Quem me contou foi Cristina. Sua avó não costumava tocar nesses assuntos.
Ele terminou a frase com ar meio sonhador, e Eduardo silenciou.
- Não tinha motivo nenhum para matar Raul - Tália soprou ao seu ouvido. - Gostava dele, sempre foi meu amigo.
- Por que foi que ele se suicidou? - indagou Eduardo, repentinamente.
- Por quê? Porque estava apaixonado por ela. Deixou tudo em um bilhete.
Eduardo se lembrava do bilhete, mas fingiu nada saber.
- Quem guardou esse bilhete?
- Acho que ninguém. Isso foi há muitos anos, meu filho. Nada disso tem mais importância.
Era engano seu, mas Eduardo não podia lhe dizer. Tália se aproveitara do bilhete que Raul lhe escrevera para forjar um suicídio, quando, na verdade, fora ela quem
o matara. Mas por quê? Por que fizera aquilo? Só podia ser por maldade ou para vingar-se da mãe, ou para apagar a vergonha que ele levara para sua família.
Ao pensar naquele assassínio, Eduardo olhou para o avô e engoliu em seco. Ele não sabia de nada, não tinha como saber. Não conhecera Raul como ele, Eduardo conhecera.
A regressão com Janaína levara-o de volta àquele ano de 1934, quando ainda vivia no corpo de Raul. Aos poucos, fora readquirindo a memória e lembrou-se de detalhes
importantes, dos momentos em que ardia em febre e desejo, numa ânsia louca e desenfreada pelo corpo de Amelinha. Até seu nome de batismo ecoava em seus ouvidos.
A todo instante, ouvia seus próprios pensamentos evocando seu nome, baixinho, numa súplica silenciosa pelo seu amor. Lembrava-se de passagens fugidias, de ter cuidado
dela quando tivera pneumonia, de algo relacionado a uma gravidez.
Tivera ainda recordações de sua bisavó, Tereza, que chegara a conhecer nessa vida, embora, enquanto Eduardo, pouco ou nada se lembrasse dela. Mas sabia que Tereza
perseguira a então Amelinha, e que ele, Raul, sempre a defendera. Lembrou-se de uma Tereza sufocante, roída de ciúmes e ódio da filha.
Com a partida de Amelinha, ele ficara desempregado, entregue à bebida e ao desespero, o que aumentara ainda mais a ira da mulher.
Por fim, lembrou-se com nitidez de seu último dia naquela vida. Tinha consciência do bilhete suicida, que ele amassara e jogara no chão, sem coragem de se matar.
Via e revia aquela cena horrenda, em que ele apanhava uma garrafa de licor fino e entornava garganta abaixo, experimentando o gosto adocicado e ardente da bebida,
junto com uma dor lancinante no estômago e nas vísceras. Sentiu a dor do veneno a corroê-lo por dentro, a vista se tornando turva, à medida que a consciência ia-lhe
fugindo, deixando-lhe na memória apenas as palavras nefastas de Tereza:
- Amelinha envenenou você! Foi ela! Deu-lhe uma bebida envenenada. E é essa a mulher que você diz amar! Foi ela! Envenenou você! Assassina! Amelinha é a assassina!
Assassina...!
Tão duras palavras tiveram o efeito de desligá-lo da realidade. A lembrança foi tão dolorosa que ele, imediatamente, voltou ao presente, transtornado com aquela
revelação. Como então, a mulher que ele amara fora também a sua assassina? A voz esganiçada de Tereza ainda repercutia em sua cabeça, e ele não quis ouvir mais nada.
A morte fora-lhe dolorosa, e essa era a sua última lembrança. Achava que não havia nada além daí que pudesse apagar a dor e a decepção daquele momento.
- Não fui eu - Tália sussurrou ao seu ouvido novamente. - Você tem que se lembrar do resto. Precisa recordar sua vida no astral. Verá que não fui eu.
Eduardo estava confuso. Percebia a presença de Tália, embora não soubesse identificar sua natureza.
- Você está bem, Edu? - era o avô, que já o havia chamado três vezes, sem que ele respondesse.
- Hein? O quê? Ah...! Estou bem, vovô, não se preocupe. Acho que já vou andando. Está ficando tarde.
Levantou-se e deu um beijo no avô, não se importando com os seus protestos e o seu pedido para que ficasse. Precisava de um gole. A raiva voltava a consumi-lo, e
só uma boa dose de uísque poderia entorpecer aquele sentimento.
- Não é possível! - gritava Tália, quase desesperada. - Ele tem que me ouvir! Precisa recordar o resto. Por que parou no momento de seu desenlace? Por que não segue
adiante com suas lembranças?
- Não adianta se desesperar, Tália - falou Sílvia, com brandura. - Para ele, a lembrança do momento de sua morte foi suficiente. Se tivesse ido além, recordando
sua vida em espírito, saberia que você não foi culpada, mas sim Tereza, que lhe ministrou a dose fatal. Eduardo, contudo, deu-se por satisfeito apenas com a lembrança
de parte do que viveu e nem sequer imagina que possa haver algo além do que viu.
- Não posso deixá-lo sair assim, Sílvia! Ele vai se embebedar novamente.
- Eduardo já traz, de sua última encarnação, uma forte tendência ao vício, acostumado a resolver seus problemas com a bebida. Precisamos de muita força espiritual
para livrá-lo desse mesmo destino.
- O que podemos fazer? Não posso ficar parada, vendo meu neto se afundar na bebida e no desgosto.
- As coisas estão seguindo o rumo certo. Se tudo correr bem, Eduardo vai conseguir se lembrar do restante de sua tragédia pessoal e liberar você desse sentimento
daninho.
- Mas quando? Como?
- Estou certa de que ele encontrará um jeito. Confie, Tália, e tudo dará certo.
Com extremo carinho, Sílvia envolveu Tália num abraço amoroso e confortador, até que a voz de Honório se fez ouvir:
- Tália, você está aí?
- Estou aqui, meu querido - respondeu ela emocionada, acariciando seu rosto.
- Devo estar ficando caduco. Onde já se viu falar com o ar pensando que falo com um fantasma? Diana tinha razão...
Para Honório, a sensação da presença de Tália só podia significar duas coisas: ou estava sofrendo de senilidade avançada, ou aquilo era um prenuncio de morte. Das
duas alternativas, a última lhe parecia à melhor. Fora um homem ativo, cheio de vigor e determinado. Assistir a sua própria decadência era muito doloroso, e ele
preferia não ter que ser obrigado a isso. Sentia medo da velhice que lhe embaralhava a mente. Mas não tinha medo da morte.

***

Quanto mais pensava em Eduardo, mais culpada Janaína se sentia pelo que lhe havia acontecido. Sem nada perceber, os mentores espirituais do centro haviam-se acercado
dela, tentando incutir-lhe o desejo de voltar à casa espírita em busca de auxílio. Mas o medo e o orgulho acabavam por paralisá-la, e ela não se decidia a ir.
No consultório, as coisas não haviam terminado nada bem. Ela não se sentia mais em condições de fazer aquele tipo de terapia, temerosa de que mais alguém enveredasse
pelo mesmo caminho que Eduardo. Além do mais, os clientes haviam desaparecido, e ela nem dinheiro tinha para colocar um pequeno anúncio no jornal. Aos poucos, suas
economias foram minguando, e ela foi forçada a fechar o consultório, devendo dois meses de aluguel.
Teve também que trocar o apartamento na Tijuca por um conjugado no subúrbio, dando-se por satisfeita de ainda ter um teto decente para morar. Herdara aquele imóvel
dos pais, mas fora obrigada a desfazer-se dele, em troca de impostos e condomínio mais baratos. Tinha que pensar em como iria sobreviver dali para frente, pois não
se julgava mais capaz de exercer a psicologia, com medo, inclusive, de ter a sua licença cassada. De qualquer forma, o fato de ter nível superior deveria valer alguma
coisa na hora de arranjar um novo emprego.
Comprou o jornal e abriu os classificados, em busca de algo que lhe servisse. Marcou alguns anúncios, arrumou-se com apuro e saiu. Tomou o ônibus e foi para o centro
da cidade, onde faria algumas inscrições. Na Avenida Rio Branco, seguiu o caminho do primeiro emprego que iria ver: recepcionista em um consultório psiquiátrico.
Foi caminhando devagar e triste, nem se importando com os esbarrões que levava na pressa dos transeuntes. Até que, inadvertidamente, num momento em que se distraía
olhando os números nos edifícios, deu um encontrão com um homem alto, que vinha apressado em outra direção.
Com o impacto, Janaína quase caiu no chão, derrubando a pequenina pasta de elástico em que guardara os anúncios do jornal.
- Meu Deus! - disse o homem, assustado. - Minhas desculpas, moça. Machucou-se?
Quando ela levantou o rosto, o homem levou um susto, assim como Janaína, que exclamou perplexa:
- Doutor Douglas!
- Janaína! - surpreendeu-se ele, pensando que aquela era a última pessoa que esperava encontrar naquele momento.
- Eu é que lhe peço desculpas... Estava distraída, não o vi...
Enquanto falava, ia se afastando, mas Douglas a segurou pelo braço.
- Calma, não precisa fugir de mim.
- Não é isso... É que estou atrasada.
- Tem hora marcada no médico? - ela meneou a cabeça. - Dentista? - nova negativa. - Pode me dizer, então, aonde vai?
Ela sentia-se extremamente envergonhada por estar sendo forçada a conversar, justamente, com aquele homem e, mais ainda, por se ver obrigada a confessar que estava
sem trabalho.
- Escute doutor Douglas - continuou ela, em tom quase inaudível -, lamento pelo que aconteceu a seu filho...
Nesse ponto, não resistiu mais. Ocultou o rosto entre as mãos e desatou a chorar, tentando sair correndo dali. Douglas não permitiu. Segurou-a pelo braço novamente
e, olhando ao redor, disse com certa autoridade:
- Há um bar ali do outro lado da rua. Vamos nos sentar e conversar.
Janaína deixou-se conduzir passivamente, resignada com o fato de que, muito provavelmente, estava prestes a ouvir um novo sermão ou, quem sabe, algum tipo de ameaça
pelo que fizera ao rapaz. No bar, Douglas pediu dois cafés e ficou olhando para Janaína, percebendo o leve rubor que subia pelas suas faces. Lembrava-se das palavras
de Salomão, que se sentia responsável por não a haver ajudado, e pensou se não caberia a ele, naquele momento, tentar alguma forma de auxílio. Só não sabia como
começar. Não sentia mais nenhuma raiva pelo que ela fizera certo de que fora Eduardo quem buscara se embrenhar naquela situação.
- Por favor, doutor Douglas - começou ela a falar -, já estou pagando pelo meu erro. Será que dá para o senhor não me afundar ainda mais?
Ele a olhou admirado e tornou com pesar:
- Sinto muito se lhe causei essa impressão. Quem sou eu para dizer que você errou ou que deve pagar pelo seu erro? Não estou aqui para julgá-la nem tenho esse direito.
Só o que quero é ajudar.
- Ajudar? A mim?
- Você não sabe Janaína, mas tenho estado em contato com seu Salomão, lá do centro espírita. Está lembrada dele, não está? - Ela assentiu, sem o encarar. - Pois
bem: seu Salomão está tentando me ajudar com Eduardo. Desde que ele fez aquela regressão, deu para beber e anda intragável, distribuindo desaforos e dando fora em
todo mundo. Está se destruindo.
- Sinto muito. Jamais imaginei ou desejei algo assim. Por favor, acredite em mim.
- Eu acredito. Sei que você fez o que fez por irresponsabilidade, não por maldade - ela contraiu o rosto, mas não disse nada, e ele prosseguiu: - Contudo, as conseqüências
para o meu filho foram desastrosas. Não estou querendo acusá-la, estou apenas narrando o que aconteceu.
- O que quer de mim, exatamente, doutor Douglas?
- Na verdade, nem eu sei. Sinto apenas que não foi o acaso que fez com que nos encontrássemos hoje.
- Como assim?
- Seu Salomão está preocupado com você...
- Preocupado comigo?
- Sim, de verdade. Quer muito ajudá-la, mas não conseguiu mais contato com você. Os telefones que ele tem não estão mais respondendo.
- Eu me mudei... E fechei o consultório.
- Fechou? Por quê?
- O senhor já deve saber por quê.
- Entendo.
- Não entende, não. O senhor nem faz idéia de como é difícil para mim admitir que fracassei em minha profissão. Estudei longos anos para me tornar... Nada.
- Não precisa ser assim, Janaína. Você pode se dedicar a sua profissão, mas de outro modo, com outra visão.
- Não creio que seja mais capaz. Eu... Sinto-me culpada pelo que aconteceu a seu filho. Devia ter-lhe dado a ajuda necessária.
- Se reconhece isso, por que não passa a fazer diferente?
Ela o fitou durante longos segundos, até que abaixou a cabeça, envergonhada, e quase sussurrou:
- Porque estou arruinada. Os clientes se foram, o dinheiro sumiu. Tive que vender o meu apartamento e alugar outro mais barato. Entreguei as chaves do consultório,
devendo dois meses de aluguel... - engoliu em seco e calou-se, os olhos marejados de lágrimas.
- Tudo isso só por causa do que aconteceu a Eduardo?
- O senhor não sabe o que a culpa é capaz de nos fazer. Eu não desejava o mal do rapaz. Pensei que o estivesse ajudando... Não, não é verdade. Estou tentando me
enganar novamente. A verdade mesmo é que seu filho me pagou muito bem por aquela TVP, e eu, seduzida pelo dinheiro, fiz o que ele me pediu, sem medir as conseqüências.
- Eduardo também é responsável. Foi ao seu consultório porque quis.
- Eu o adverti de que não podia ajudá-lo com a parte psicológica da terapia. Não tenho paciência para ficar escutando o problema dos outros.
- Se não tem paciência, por que quis ser psicóloga?
- Pensei que fosse me encher de dinheiro. Tem gente por aí cobrando uma fortuna por uma consulta.
- Provavelmente, bons profissionais, que desempenham a sua tarefa com responsabilidade e ética.
- Bem diferente de mim, não é?
- Não sei Janaína, não estou aqui para julgá-la. Como disse, seu Salomão gostaria muito de ajudá-la, e, quando eu a vi, não pude correr o risco de deixar que escapasse.
- Seu Salomão... Desculpe-me a franqueza, doutor Douglas, mas seu Salomão nunca esteve nem aí para mim. Por que se importaria agora?
- Assim como você, ele também refletiu e percebeu onde foi que falhou.
- Acho que isso é um pouco tarde.
- Nunca é tarde, Janaína. Por que não vai procurá-lo?
- Eu? De jeito nenhum!
- Por quê? Está com raiva dele?
- Não, raiva, não. Decepção, talvez.
- Talvez seja orgulho. Não quer procurá-lo só porque ele não fez o que você quis, não é?
- E se for? Não tenho o direito de me sentir magoada?
- É claro que tem. Mas será que vale a pena deixar que a mágoa estrague a sua vida?
- O senhor está exagerando.
- Será? Olhe bem para você e me diga: você está bem? Está feliz? - Ela não respondeu. - Pois então, deixe de ser orgulhosa e vá procurá-lo. Afinal, aquilo lá é um
centro espírita, uma casa de caridade, e não creio que alguém vá bater a porta na sua cara.
- Como já me fizeram outras vezes?
- Que eu saiba ninguém nunca fechou a porta para você. Apenas não a quiseram como integrante do corpo mediúnico. Mas você nunca foi impedida de entrar ou deixou
de ser atendida, deixou?
- Não.
- Pois então? Por que não procura seu Salomão e conversa com ele? Ele, melhor do que ninguém vai poder lhe dizer o que sente.
- Não sei, não.
- Deixe de ser tola e orgulhosa. Orgulho não vai levá-la a lugar algum. Reconheça que precisa de ajuda e aceite a que ele lhe oferece. Aposto como vai se sentir
melhor depois. Pense nisso.
Janaína refletiu durante alguns minutos. Precisava mesmo de ajuda, não apenas financeira, mas, e principalmente, de ajuda espiritual. Sentia o peito oprimido e chorava
todas as vezes que imaginava Eduardo entregue ao ódio e consumindo a vida no álcool e na desilusão. Era espantoso que a ajuda partisse justo de Douglas, que ela
pensava odiá-la, o que a comoveu. E por que não? Não era ela um ser humano também? Nem melhor, nem pior do que outros, mas um ser humano com seus defeitos, seus
erros, tropeços e desilusões? Por que não podia admitir que falhara, se perdoar e tentar uma nova chance? Será que não tinha esse direito?
- Muito bem, doutor Douglas, prometo pensar no assunto - estendeu a mão para ele, que a apertou com afabilidade. - Agora, tenho que ir. Como disse, não estou mais
exercendo a psicologia e vim aqui em busca de um novo emprego. As coisas não estão fáceis para mim, mas, pelo menos, não tenho o costume de furtar.
Ele sorriu compreensivo e se levantou junto com ela. Deixou uma nota sobre a mesa e acompanhou-a até a rua. Apanhou algumas cédulas na carteira e enfiou na mão dela.
- Fique com isso, para ajudar nas despesas.
- Não posso aceitar! Não estou ainda no ponto de mendigar.
- Está sendo orgulhosa novamente. Diga apenas que está recebendo uma parte da ajuda de que necessita, para o caso de encontrar alguma dificuldade em arranjar emprego.
Com as notas presas entre os dedos, Janaína sentiu que lágrimas lhe vinham aos olhos e falou comovida:
- O senhor tem razão, doutor Douglas, não tenho motivo para ser orgulhosa. Obrigada.
Ele apenas balançou a cabeça e sorriu compreensivo. Janaína estava muito mudada, perdera um pouco o ar de arrogância que tinha quando a conhecera. A dificuldade
da vida a estavam modificando e ele se sentia feliz por poder ajudar. Ficou vendo-a se afastar, até que ela sumiu numa esquina, e então retomou o caminho do escritório.
Tinha perdido parte de uma reunião importante, mas sentia o coração desafogado, tranqüilo ante a certeza de que tomara a atitude certa.
Toda a animação e confiança que Janaína sentira ao falar com Douglas esvaneceram na primeira dificuldade que encontrou. Achar emprego não foi assim tão fácil, e
ela se deixou levar pelo desânimo e a descrença. Já não sentia mais vontade de ir ao centro, nem mesmo sabia por que prometera pensar nessa hipótese. Decididamente,
era melhor não ir. Estava cansada e abatida, sem forças nem vontade de se ajudar. O centro ficaria para depois. Ou para nunca mais.



Capítulo 26


Ao final da sessão de cinema, Gabriela e Márcio foram a um restaurante para jantar, e os pensamentos da moça encontravam-se fixos em Eduardo.
- Você tem visto o Edu? - indagou ela, tentando não parecer excessivamente ansiosa.
- O chefe prorrogou a licença dele por mais uma semana.
- Por quê?
- Porque eu pedi. Edu não está bem, e sei que, se voltar a trabalhar, vai acabar perdendo o emprego. Precisei acumular o meu serviço e o dele. Foi só assim que o
chefe concordou em prorrogar a licença.
- Eduardo devia saber disso.
- Para quê? Para me jogar na cara que estou fazendo isso só para humilhá-lo? Não, Gabi, não precisa. Faço isso porque gosto dele, e nada mais.
- Você é amigo dele de verdade, não é?
- E você vai ser sempre a sua namorada...
- Você sabe que se Edu me quiser de volta, voltarei para ele, não sabe?
- Sei... E fico feliz por isso. Apesar de amá-la, não a quero presa a mim. Quero que você seja feliz. E Edu também, porque ele é e sempre foi o meu melhor amigo,
ainda que não me considere mais assim.
Os olhos dela encheram-se de lágrimas, e ela apertou a mão de Márcio por cima da mesa.
- Você é uma pessoa muito especial.
Depois que foram para casa, Gabriela ficou pensando por que as coisas não podiam ser diferentes. Se ela amasse Márcio, ao invés de Eduardo, tudo estaria resolvido.
Sentiu imensa saudade dele naquele momento e pensou em lhe telefonar, mas desistiu. Já era muito tarde, e era bem capaz que ele a tratasse mal, o que a deixaria
frustrada e amargurada.
Inesperadamente, o telefone tocou, e ela atendeu mecanicamente, pensando como seria maravilhoso se Eduardo resolvesse ligar para ela. E qual não foi o seu espanto
ao ouvir, justamente, a sua voz do outro lado da linha:
- Gabi? Tudo bem? - de tão espantada, ela não conseguiu responder de imediato, e ele teve que repetir: - Tudo bem, Gabi? Sou eu, o Eduardo.
- Edu... Desculpe-me... Sei que é você.
- E aí, menina, como é que você está?
- Bem, e você?
- Mais ou menos - silêncio. - Estou com saudades...
- De mim? Você está com saudades de mim?
- Faz tempo que não nos falamos.
Gabriela sentiu vontade de dizer: "porque você me abandonou", mas não queria falar nada que pudesse aborrecê-lo e fazer com que desligasse.
- Por que não vem até aqui e conversamos?
- Hoje não vai dar Gabi. Liguei mesmo para saber como você está e para dizer que estou com saudades.
- Se está com saudades, por que não vem me ver?
- Não sei se é isso que quero.
- Se não quer, por que me telefonou?
- Tem razão. Desculpe-me, não devia ter ligado. Até logo.
- Não! Eduardo, não, espere!
Um clique do outro lado, seguido de um sinal de ocupado, fez com que ela percebesse que ele havia desligado. Indignada, discou o número do quarto dele, mas o sinal
de ocupado continuava. O celular estava fora de área. Ligou para a casa dele, mas Diana atendeu, e Gabriela desligou em seguida. Não queria que Diana reconhecesse
a sua voz. Pousou o fone na base vagarosamente e começou a chorar de mansinho.
Em seu quarto, Eduardo permanecia sentado na cama, segurando nas mãos o fone ligado. Assim que desligara, ligara-o novamente, para impedir que Gabriela conseguisse
lhe telefonar. Se bem a conhecia, ela tentaria falar com ele de novo, e não era isso que ele queria. Nem sabia bem por que a procurara. Apenas sentiu uma saudade
repentina e deixou-se envolver pela lembrança de seus momentos juntos, da felicidade que os invadia com uma simples troca de olhar. No entanto, precipitara-se ao
telefonar-lhe. Gabriela estava agora envolvida com Márcio e já nem devia mais pensar nele.
A seu lado, como sempre, Sílvia e Tália acompanhavam seus pensamentos. Por mais que quisessem ajudar, Eduardo se mostrava resistente a qualquer ajuda proveniente
da avó, o que tornava difícil uma aproximação entre ambos. Fosse no plano astral, fosse no centro espírita, Eduardo não estava ainda pronto para recebê-la. Tudo
era uma questão de tempo, e Tália procurou se acalmar, aplacando também o ódio no coração do neto.

***

Toda terça-feira, Douglas ia ao centro espírita em companhia de Gabriela e Eliane, e já se acostumara àquele ambiente agradável e reconfortante. Sempre que voltava
para casa, Diana lhe perguntava onde estivera, e a única coisa que lhe desagradava era ter que mentir, mas sabia que ela o infernizaria tanto que acabaria lhe tirando
o prazer de freqüentar o centro.
O que Douglas não sabia era que Diana jamais acreditara nas desculpas que ele lhe dava. Aquela história de beber com amigos não a convenciam, e ela começou a desconfiar
de outra mulher. Só uma amante poderia afastar o homem de seu lar e, embora Douglas não estivesse diferente nem indiferente a ela, não havia outra explicação para
aquelas ausências regular, todas as terças-feiras.
Douglas de nada sabia sobre as desconfianças da mulher. Continuava indo ao centro regularmente, envolvido pela seriedade dos trabalhos, ainda mais porque, ao término
de todas as sessões, faziam quinze minutos de irradiação especial para Eduardo e Janaína. Salomão insistira em incluir a moça nas orações desde que Douglas lhe dissera
que a encontrara no centro da cidade e que ela vinha passando por dificuldades financeiras. Essas irradiações, aos poucos, foram desmanchando as cascas espirituais
mais densas que haviam se instalado no ambiente que circundava Eduardo, e mesmo os espíritos mais empedernidos que o acompanhavam, muitas vezes, sentiam-se reconfortados
com tanta vibração de amor.
Eduardo voltou a trabalhar e já conseguia se concentrar no que fazia, embora continuasse ainda um pouco arredio e avesso à conversa dos amigos. Sempre que via Márcio,
sentia um aperto no coração, como se a sua consciência lhe dissesse que agira mal com ele. Mas de repente, uma voz interior lhe dizia que Márcio lhe roubara a namorada,
e ele sufocava o desejo que sentia de se reaproximar do amigo e voltava àquela indiferença com que costumava tratá-lo.
- É preciso afastá-lo da bebida - disse Sílvia, vendo-o dirigir-se a um bar após o trabalho.
- Como poderemos fazer isso? - preocupou-se Tália. - Ele não nos ouve.
- A nós, não. Mas tem alguém que ele vai ouvir. Venha, siga-me.
Sem dizer nada, Tália a acompanhou. Mais abaixo, na rua, Gabriela vinha caminhando, voltando da faculdade. Sílvia se colocou a seu lado, com Tália do outro.
- Será que você não está com vontade de tomar um refrigerante?
Naquele momento, a imagem de uma Coca-Cola geladinha surgiu na mente de Gabriela, que logo sentiu o desejo de beber uma. Sem nem pensar, entrou no primeiro bar que
viu e dirigiu-se ao balcão, onde pediu o refrigerante. Um pouco mais além, Eduardo bebia o seu primeiro chope e viu quando ela entrou. Na mesma hora, seu coração
disparou. Tentou desviar o olhar, mas não conseguiu. Ela estava linda como sempre, e ele ficou vendo-a beber o refrigerante, sentindo o coração palpitar, e uma vontade
louca de falar com ela foi tomando conta dele. Estava em dúvida, pensando se deveria ou não se aproximar, imaginando se ela não teria marcado um encontro ali com
Márcio. Olhou ao redor, mas não viu o rapaz. Tornou a olhar para o balcão, e lá estava Gabriela sozinha, como se o estivesse esperando. Tomou uma decisão: iria falar
com ela, ainda que fosse pela última vez.
Pousou a tulipa de chope sobre a mesa e foi lentamente em sua direção. Ela quase engasgou ao vê-lo se aproximar. Ficou parada, com o copo na mão, até que ele se
acercou dela e sorriu.
- Oi, Gabi. Faz tempo que não a vejo.
- É verdade... - gaguejou ela. - Muito tempo...
- Como é que você está?
- Bem.
- Não quer se sentar comigo?
Ela assentiu, e ele pegou a garrafa de cima do balcão, exibindo-a para o atendente e indicando que a colocasse em sua conta. Fez com que Gabriela se sentasse e sentou-se
ao seu lado, pousando a garrafa sobre a mesa e encarando-a com olhar doce, que fez com que ela estremecesse por dentro.
- Você está muito bem, Edu. O que tem feito?
- Trabalhado. E você?
- O de sempre.
- E o Márcio, como vai?
- Não sei, diga-me você. Você o vê mais do que eu.
- Só o encontro no trabalho, e quase não nos falamos.
- Pois eu só o vejo esporadicamente, quando vamos a um cinema ou restaurante.
- Vocês não estão mais namorando?
- Nós nunca estivemos.
- Ora, vamos, Gabi, não precisa mais esconder isso de mim. Já faz muito tempo que nós terminamos.
- Quer que eu invente ou minta só para satisfazer você? Estou dizendo que Márcio e eu nunca namoramos.
- Mas eu os vi juntos várias vezes.
- E daí? Somos amigos.
- E nós, Gabi, somos amigos também?
- Gostaria de pensar que sim.
- Pois eu gostaria que você dissesse que não.
- Não quer ser meu amigo? - retrucou ela confusa, sentindo o rosto em chamas.
- É difícil para mim aceitar apenas a sua amizade.
- Foi você quem quis assim, Eduardo. Aliás, pensei que nem a minha amizade você quisesse mais.
- Gabi, eu... Sei que andei estranho, confuso... Nem sei por que fiquei tão confuso de repente. Fiquei vendo você e Márcio juntos e senti ciúmes...
- Você continua sendo injusto comigo e com Márcio. Ele sempre foi meu amigo. E seu também, muito mais do que meu.
- Gostaria de poder acreditar nisso.
- Pois pode acreditar. Além de nunca se aproximar de mim por causa da amizade de vocês, sabia que você só não foi mandado embora do emprego porque ele intercedeu
a seu favor?
- Até parece... Meu chefe me concedeu uma licença.
- Que teria se transformado em dispensa se Márcio não houvesse impedido. Foi ele quem convenceu o chefe de que você estava passando por uma fase difícil e assumiu
as suas funções, além das dele, para que você não fosse mandado embora. E olhe que ele nem ganhou mais por isso.
- Você está falando sério?
- Não tenho motivos para mentir.
Eduardo ficou alguns instantes pensando no que ouvira e concluiu que Márcio seria capaz de tudo pela sua amizade. Só ele, tomado por uma cegueira insana, é que não
conseguira enxergar. Mas não estava ali para falar de Márcio. Desculpar-se-ia com ele depois. Estava feliz por reencontrar Gabriela e sentia o coração aos pulos
só de estar diante dela. Deixando-se levar pela emoção, fixou nela os olhos apaixonados e falou com certa ansiedade:
- Eu amo você.
A revelação a pegou de surpresa, e ela não conseguiu articular nenhuma palavra. Ficou parada, os lábios entreabertos num espanto mudo, olhando para ele com ternura.
- Quer que eu repita? - prosseguiu ele. - Eu amo você, Gabi, amo muito.
Lentamente, foi aproximando o rosto do dela, até que seus lábios se uniram num beijo terno e apaixonado.
- Eduardo...
- Será que você pode me perdoar? Fui egoísta, mesquinho e cruel, e não há desculpa para o que fiz. Mas você acreditaria se eu lhe dissesse que nem eu mesmo sei por
que agi daquela maneira?
- Isso não importa. O que importa é que já passou, e você conseguiu enxergar a realidade.
- Você me ama?
- Como sempre amei e amarei.
- Eu também, Gabi.
- Deus, parece um sonho! Estou aqui com você, de novo, como éramos antes. Será que posso acreditar nisso?
- É nisso que tem que acreditar. Sei que a fiz sofrer muito, mas estou disposto a dar o melhor de mim para fazer você esquecer.
- Edu, você acreditaria se eu lhe dissesse que, durante o tempo em que estivemos afastados, permaneci ligada a você, participando de todo um processo para fazer
você se libertar da confusão em que estava embrenhado?
- Como assim?
- Lembra-se do centro espírita que minha irmã freqüenta?
Ele desviou os olhos, acabrunhado, lembrando-se de Janaína, e respondeu mal-humorado:
- É claro.
- Pois eu agora o freqüento também. Eu e seu pai.
- Meu pai? Como assim? Você quer dizer que meu pai tem freqüentado as sessões do centro espírita? Não acredito!
- Pois pode acreditar. Fomos nós que insistimos e fizemos um trabalho de irradiação à distância, para que você pudesse se libertar dos espíritos perturbadores que
se aliaram a você.
- Espíritos perturbadores? Não compreendo. Rapidamente, Gabriela contou-lhe tudo o que acontecera nos últimos meses, só omitindo a revelação de que os espíritos
estavam a seu lado por influência de sua mãe. Ele ficou indignado, oscilando entre a crença e a descrença. O que Gabriela lhe dizia não parecia nada impossível.
Sentia mesmo uma força estranha atuando sobre ele, impelindo-o a agir rispidamente e, sobretudo, levando-o à bebida. Seria possível?
- É muito importante que você pare de beber, Edu - tornou ela, apontando para a tulipa de chope que ele bebera até a metade. - A bebida está facilitando o acesso
de espíritos menos esclarecidos, que não têm interesse em vê-lo parar, para não perderem a fonte que alimenta o seu vício.
Eduardo lembrou-se da regressão que fizera com Janaína, onde se vira várias vezes, entregue ao álcool, bêbado, caído na sarjeta, à vida desgraçada pelo vício. Não
pretendia repetir aquela sina. Fitou o chope por alguns instantes e sentiu a boca salivar, mas voltou à atenção para Gabriela e afastou a tulipa, deixando-se envolver
pela afeição que emanava dela.
- Preciso compartilhar algo com você - replicou ele, olhando-a gravemente.
- O que é?
- É sobre Janaína.
- Sabemos de Janaína. Seu pai a procurou e acabou descobrindo o que aconteceu.
- Ele a procurou?
- Ela precisa de ajuda. Sabia que está mal de vida?
- Não me surpreende, fazendo o que ela faz.
- Não é justo culpá-la nesse momento. Você fez a TVP porque quis, e ela avisou que não poderia ajudá-lo depois. .
- Tem razão, Gabriela, fiz porque quis. Só não esperava encontrar o que encontrei.
- O quê? O que foi que você descobriu que o chocou tanto? É sobre sua avó, não é? - ele assentiu.
- O que foi? Seja o que for Edu, sabe que pode confiar em mim.
- Sei disso e quero lhe contar tudo.
Eduardo narrou-lhe em minúcias tudo o que havia recordado sobre sua vida passada, deixando Gabriela estarrecida com aqueles fatos.
- Minha avó era uma assassina - finalizou ele.
- Fui apaixonado por ela, e ela me matou friamente.
- Jesus! Por que será que ela fez isso?
- É o que me falta descobrir, embora não tenha mais vontade nem ânimo para me envolver com essas coisas de vidas passadas novamente.
- Por que não volta a freqüentar o centro? Quem sabe sua avó não nos deixa uma mensagem?
- Não sei se ainda quero me comunicar com ela.
- Ainda que não se comunique, não acha que o centro só lhe fará bem? Você gostava não se lembra?
- Tem razão...
- E as irradiações que fizemos ajudaram-no muito.
- Bom... Se for como você diz...
- Vamos, Edu, por favor! Seu pai vai morrer de felicidade.
- Hum... Vou pensar. Não estou prometendo nada.
Já era um começo, ou melhor, um recomeço. Antes daquelas interferências, Eduardo gostava muito de ir ao centro, mas depois de tudo o que acontecera, tornara-se um
tanto descrente. Ao reencontrar Gabriela, contudo, ficara em dúvida. Suas palavras haviam alcançado o seu coração, principalmente porque ela lhe dissera que faziam
reuniões para orar por ele. De repente, sentiu uma alegria imensa a dominar-lhe a alma, como se uma nuvem pesada e escura se dissipasse diante de seus olhos, descortinando
um céu azul e límpido, tão próximo que ele poderia até o tocar.

***

Estava uma tarde muito bonita, e Honório se sentia sozinho em casa, incomodado por não poder dividir com ninguém a beleza daquele dia. As duas únicas mulheres a
quem amara haviam partido de sua vida, restando apenas à filha, o que não era pouco. Apesar das esquisitices de Diana, ela sempre se demonstrara uma filha preocupada
e carinhosa, cobrindo-o de atenções por vezes até excessivas. Fazia já algum tempo que ele não ia a sua casa, o que lhe pareceu uma boa idéia. Poderia rever a filha
e conversar com o neto.
A seu lado, Tália exultava. Seria essencial que Honório se encontrasse com Eduardo, ainda mais depois que ele havia se reconciliado com Gabriela. Precisava convencê-lo
a ir ao centro espírita, e essa tarefa caberia ao avô.
Diana ficou felicíssima com a visita do pai. Há tempos insistia para que ele se mudasse para seu apartamento, mas ele era teimoso e preferia morar sozinho naquele
casarão repleto de lembranças. Honório ficaria para dormir. Andava se sentindo amargurado e sozinho, e a companhia da família era algo muito valioso para ele dispensar
no fim da vida.
Estava sentado na sala com Diana quando Eduardo entrou sorridente e alegre, sem sinais de bebida. Sua alegria ao ver o avô foi imensa, e ele correu a abraçá-lo e
beijá-lo.
- Vovô! Mas isso é que é surpresa boa!
- Estava com saudades de você e de sua mãe.
- Fico feliz que tenha vindo. Você sabe como todos nós o adoramos.
Diana olhava para o filho desconfiada, notando sua excessiva alegria, mesmo diante da presença do avô.
- Você está bem? - indagou ela.
- Estou ótimo. Por quê?
- Não sei. Parece alegre demais...
- Você queria que eu estivesse triste?
- Não é isso. E que, nos últimos tempos, você tem andado estranho, arredio.
- Nos últimos tempos, meu avô não tem vindo me visitar.
- Tem certeza de que não é nada?
- Que diferença faz? - interrompeu Honório. - Se Eduardo está feliz, que importa o motivo?
- Você está sempre o defendendo, papai. Mesmo quando ele faz alguma besteira.
- E que besteira ele pode ter feito além de ser jovem e aproveitar a juventude? Você está cismada à toa, Diana.
- Gostaria de ter a sua certeza...
- Ora, quer mesmo saber, mamãe? - tornou Eduardo, piscando para o avô. - É que fiz as pazes com o amor da minha vida.
Aquilo chocou Diana. Amor da sua vida só podia ser Gabriela. Não era possível que, depois de tudo, os dois houvessem se reconciliado.
- Vocês voltaram? - indagou ela, mal contendo a surpresa e o desagrado.
- Mais apaixonados do que nunca.
- Mas que maravilha! - elogiou Honório. - Sempre achei que Gabriela é a moça ideal para você.
- Pare com isso, papai! - censurou Diana. - Você não sabe o que está dizendo.
- Não fale com meu avô assim dessa maneira, mãe. Ele, melhor do que ninguém sabe o que diz. E agora, se me dão licença, vou tomar um banho. Você vai ficar para o
jantar, não vai, vovô?
- Seu avô vai dormir aqui hoje - esclareceu Diana. - Já era hora de parar de bancar o solteirão e dar mais atenção à família.
Honório sorriu para Eduardo, que o abraçou e se dirigiu ao quarto, com imensa felicidade a invadir-lhe o peito. Tudo o que mais queria era poder estar com Gabriela
novamente. Como fora tolo e estúpido, rejeitando-a por tanto tempo e por tão pouco. Ela lhe jurara que nunca tivera nada com Márcio, e ele acreditava nela, imaginando
o que lhe passara pela cabeça para duvidar de seu amor. Sem falar em Márcio, que sempre fora seu amigo e o ajudara em segredo. No dia seguinte, se desculparia e
tudo voltaria a ser como antes.
Por volta das oito horas, Douglas entrou em casa e logo notou o ar de preocupação de Diana. Procurou fingir que nada percebera e beijou-a de leve nos lábios. Em
seguida, virou-se para o sogro e cumprimentou com jovialidade:
- Que bom que veio nos visitar, Honório. Diana morre de preocupação por sua causa.
- Ela é muito exagerada, mas, de qualquer forma, fico feliz de ter uma família tão boa como essa para me confortar no fim da vida. Vocês são tudo o que me resta...
- Sabe que é sempre bem-vindo aqui. Tenho-lhe muita admiração.
- Sei disso e agradeço. Também o admiro muito, Douglas, porque não é qualquer um que teria a paciência que você tem com a minha filha.
- Papai! - protestou Diana, mas ele já não a ouvia.
- Vou lá dentro conversar com meu neto.
Depois que ele se afastou, Diana voltou-se para o marido e falou com irritação:
- Você precisa fazer alguma coisa pelo seu filho. Ele não está bem.
- Andou bebendo de novo?
- Aí é que está. Entrou em casa satisfeito da vida, só faltava saltitar, e, pelo que deu para perceber, estava sóbrio.
- Então você deveria estar feliz. Não vejo por que a preocupação.
- E que ele reatou o namoro com aquela menina!
- Com Gabriela? - ela aquiesceu entre os dentes. - Não me diga! Fico muito satisfeito.
- Pois eu, não. Ela não serve para ele.
- Por que não, posso saber?
- Ela é vulgar e atrevida. Vive se esfregando no Márcio.
- Mentira! Gabriela é uma boa moça e nunca se interessou por Márcio.
- Isso é o que ela diz...
- E você mesma disse que Eduardo não bebeu hoje.
- É o que parece.
- Pois então, devia estar feliz. Nosso filho estava enveredando por um caminho difícil e sem volta, mas se parou de beber de repente, então só o que temos a fazer
é agradecer à pessoa que o ajudou a largar esse vício.
- Primeiro: meu filho não é viciado. Segundo: quem foi que disse que ela o ajudou?
- Nem precisa dizer. Você bem sabe o que as pessoas são capazes de fazer em nome do amor.
- Não sei de nada. Só o que sei é que não gosto dessa moça...
Enquanto a discussão prosseguia na sala, Honório entrou no quarto de Eduardo, encontrando-o vestido e bem disposto.
- Fico muito feliz em vê-lo assim, Eduardo.
- O amor tem dessas coisas, vovô.
- Conte-me como foi isso. O que foi que aconteceu para você voltar com a Gabriela?
- Não sei vovô. De repente, comecei a sentir falta dela. Hoje, por acaso, encontrei-a num bar e senti um impulso irresistível de me aproximar. Chamei-a para se sentar
comigo, e ela aceitou. Nós começamos a conversar e acabamos voltando.
- Mas que notícia maravilhosa! Você sabe que gosto muito de Gabriela.
- Eu sei. Você foi um dos que me deu a maior força para voltar com ela.
- Que bom. Não tinha motivo para você ficar cismado com a moça.
- Aquilo foi bobeira minha. Só agora percebo o quanto fui ciumento e imaturo.
- Ah! Mas que bom! E o que aconteceu para você chegar a essa conclusão?
- Não sei. Talvez ela mesma seja a responsável por isso. Ela e meu pai. Sabia que eles estão freqüentando um centro espírita juntos?
- Gabriela e seu pai? Não me diga!
- Pois é. Andaram fazendo umas irradiações para mim, e talvez seja por isso que, de uns tempos para cá, eu venha me sentindo tão bem.
- Quem diria, hein? Logo seu pai, que nunca acreditou em nada. Isso sim é que é mudança!
- E você, vovô, acredita nessas coisas?
- Não sei dizer, Edu. Logo que sua avó morreu, fiquei tentando me convencer de que havia vida além da morte, esperando que ela aparecesse para mim, mas eu nunca
a vi. Depois, frustrado, deixei de acreditar nisso, mas confesso que agora não estou bem certo. Tenho passado por umas coisas...
- Que coisas?
- Não vai rir se eu lhe contar?
- É claro que não.
- Bem, começou no dia do almoço aqui na sua casa, lembra? Naquele em que Gabriela e Márcio vieram, e você ficou com ciúmes porque eles foram à praia sozinhos. -
Ele se lembrava bem e apenas assentiu. - Pois é. Naquele dia, você sabe que vi sua avó por um momento?
- O quê?
- É verdade, ou pelo menos, pensei ter visto. Foi rápido, mas muito forte e real. E senti a presença dela ao meu lado também.
- Por que não nos disse nada?
- Eu disse, mas sua mãe me chamou de caduco, e a partir de então resolvi me calar. Não quero que todos digam que estou senil.
- Eu jamais diria uma coisa dessas de você, vovô. Não de você.
- Pois é. O fato é que a vi, mas não é só. Sonhei com ela outro dia e tenho sentido a sua presença constante ao meu lado. Será que ela veio me buscar?
- Não diga isso.
- Não dizem por aí que nossos entes queridos se aproximam quando estamos perto de morrer? Então, vai ver que há minha hora está chegando, e ela veio me buscar. De
qualquer forma, não me importaria de partir desta vida com ela.
- Mas isso não faz sentido. Você mesmo disse que ela nunca apareceu para você.
- Não compreendo essas coisas, meu filho, mas sinto a presença dela como sinto a sua. Acho que deve haver um mundo invisível, afinal.
Eduardo permaneceu algum instante pensativo. O que o avô dizia não parecia tão sem sentido assim.
- Sabe, vovô, eu andava fascinado com a história da minha avó e, quando descobri o que ela me fez, senti muita raiva dela e de mim mesmo.
- O que ela fez a você? Como assim? Sua avó não pode ter-lhe feito nada. Ela morreu muito antes de você nascer.
- Mas eu descobri que nós fomos muito próximos... Na minha última encarnação. Acredita nisso?
- Não sei, nunca pensei nessas coisas.
- Pois eu lhe digo que é verdade. Fiz uma regressão e descobri que nós vivemos na mesma época.
- Como assim?
Novamente, Eduardo contou à história que havia contado horas antes a Gabriela. Honório ouviu tudo atentamente, surpreendendo-se com aquela revelação.
- Quer dizer que você foi o padrasto de sua avó? - retrucou Honório, com ar cético. - Sinto muito, Eduardo, mas não sei se acredito nisso. Acho muito estranho pensar
em você como aquele homem do passado, que se matou por causa de uma paixão insana pela sua avó.
- Eu me lembrei vovô. Revi cenas com riqueza de detalhes. Como eu podia saber de todas aquelas coisas?
- Você nem sabe se elas são reais. Pode ter sido fruto da sua imaginação.
- Você mesmo falou de um bilhete suicida que Raul teria escrito minutos antes de morrer.
- E daí?
- E daí que eu me lembrei desse bilhete. Lembrei-me de tê-lo escrito e de tê-lo atirado longe, sem coragem de me matar. Depois disso, lembrei-me do momento em que
ingeri o veneno e das últimas palavras de Tereza, acusando Tália de haver me matado. Como eu poderia saber disso?
Durante alguns minutos, Honório permaneceu olhando para ele, pensando se acreditava ou não naquela história. Realmente, lembrar-se do bilhete suicida era algo revelador,
mas ele não conseguia acreditar que Tália houvesse matado Raul. Eduardo não percebia, mas ela se encontrava praticamente colada a ele, gritando-lhe que jamais o
mataria e que sempre gostara dele. Mas ele não lhe dava ouvidos, bloqueando o acesso dela a sua mente. Tália tentou então Honório. Aproximou-se dele, colocou a mão
em sua testa e disse com firmeza:
- Não fui eu, Honório. Não tinha motivos para matar Raul. Quem o matou foi...
- Não! - interrompeu Sílvia. - Não temos o direito de fazer acusações, ainda que verdadeiras e bem fundamentadas. Deixe-o descobrir a verdade por si mesmo.
Embora Tália tivesse se calado, seu pensamento foi captado por Honório, que começou a conjeturar:
- Quer saber, Eduardo? Estou achando essa história muito esquisita. Tália não tinha motivos para matar o padrasto. Agora, Tereza...
Tália olhou para Sílvia, assustada, e esta lhe fez um gesto pedindo silêncio e para não interferir.
- O que quer dizer com isso? - questionou Eduardo, surpreso.
- Todos sabiam que Tereza odiava a filha. Quem lhe garante que não foi ela que colocou o veneno naquela garrafa, e não Tália?
- Eu saberia.
- Digamos que seja verdade que você... Bem... Que você foi Raul em sua última encarnação. Vamos supor que a tal regressão o levou realmente a uma vida passada. Você
mesmo disse que sua última lembrança foi a de Tereza acusando Tália de assassina. Mas você não pôde se lembrar do que aconteceu minutos antes disso, porque Raul
não viu quem envenenou o licor. Muito bem. Levando-se em consideração que existe vida depois da morte, o que aconteceu em seguida? Se for como você diz, sua vida
não acabou com o envenenamento, e você deve ter descoberto tudo depois. Deve ter visto quem realmente o envenenou.
- Pensando bem, o que você diz faz sentido.
- Conheci sua avó muito bem e posso jurar que não foi ela quem matou o padrasto. Também conheci sua bisavó e sei o quanto ela odiava Tália. E foi a sua vingança
que levou Tália para aquele sítio onde ela morreu.
- O quê? Que história é essa agora? Você nunca me falou nada disso.
Honório suspirou profundamente, lembrando-se da recomendação de Diana, proibindo-lhe de contar ao rapaz o que Tereza havia feito. Mas aquilo não estava direito.
Não era justo deixar que ele pensasse aquelas coisas horríveis sobre Tália. Decididamente, Eduardo tinha o direito de saber a verdade sobre sua família. Ele ajeitou
os óculos sobre o nariz, tossiu algumas vezes e começou:
- Nunca lhe falei sobre a carta de Mauro?
- Quem é Mauro?
- Mauro, meu filho, foi o grande e único amor da vida de sua avó.
De forma pausada e paciente, Honório contou a Eduardo tudo o que acontecera entre Tália e Mauro, inclusive a forma como Tereza lhe dera a conhecer a verdade.
- Minha bisavó fez isso? - espantou-se.
- Para você ver como Tereza odiava a sua avó. Por aí dá para perceber que Tália não tinha motivos para matar Raul, enquanto Tereza...
- Não é possível... Ou melhor, é mais do que possível. Será, vovô?
- Sempre achei que seu padrasto houvesse se suicidado, por causa do bilhete e das coisas que sua avó Cristina me contou. Mas agora, tenho lá as minhas dúvidas. Sua
bisavó era uma mulher má e vingativa, muito capaz de uma atitude como essa.
- Como eu gostaria de descobrir! Mas o que posso fazer para saber? Será que devo tentar regredir outra vez?
- Eu não faria isso, se fosse você. Acho perigoso. Basta ver como você ficou.
- Tem razão, não quero mesmo mais me envolver com essas coisas. Gabi me disse que Janaína, a psicóloga, não está mais fazendo terapia, e eu não conheço mais ninguém.
Cá entre nós, fiquei meio decepcionado com isso. Tenho medo de descobrir coisas com as quais não consiga lidar.
- Você tem razão, Edu, mas seria bom descobrir a verdade. Ou então, esqueça o assunto e tente limpar o seu coração. Não lhe fará bem ficar alimentando ódio pela
sua avó por causa de uma lembrança que você nem sabe se é verdadeira.
- Tenho que descobrir vovô, mas como é que farei isso?
- Hum... - Honório refletiu por alguns segundos. - Você não disse que Gabriela e seu pai têm freqüentado um centro espírita? - ele aquiesceu. - Então, por que não
experimenta ir com eles?
- Acha que Tália pode tentar se comunicar?
- Quem é que pode saber? Tudo é possível.
- É... Pode ser uma boa idéia. A Gabi me convidou, mas eu ainda não me decidi.
- Pois eu acho que você deveria ir. Que mal pode fazer?
- Tem razão, talvez eu deva ir. Pensando bem, por que você não vem também?
Honório considerou por alguns segundos, e a imagem de Tália surgiu nítida a sua frente. Ela estava mesmo parada diante dele, embora invisível aos seus olhos, perceptível
apenas em sua mente. Sentindo as lágrimas aflorarem, ele abaixou a cabeça e balbuciou emocionado:
- Acho... Acho mesmo que gostaria de ir. Já estou no fim da vida... Saber que há vida depois da morte... Pode ser um conforto para mim. E se Tália estiver me esperando...
- Ótimo! Vou falar com papai e acertaremos tudo.
Eduardo correu a chamar o pai, que ficou deveras satisfeito com a decisão do filho e do sogro. Mais do que ele, Tália transbordava de tanta felicidade. Conseguira
muito mais do que pretendia: ajudaria o neto e ainda teria a chance de fazer algo por Honório.

***

No dia seguinte, Eduardo chegou cedo ao trabalho e dirigiu-se à sala de Márcio, que ainda não havia chegado. Entrou discretamente e sentou-se em uma poltrona, para
esperá-lo. Não demorou muito, e Márcio apareceu, surpreendendo-se com a presença do amigo ali.
- Bom dia, Edu - cumprimentou ressabiado. - Algum problema?
- Não. Gostaria de falar-lhe.
Márcio colocou a pasta sobre a mesa e sentou-se, encarando o outro com curiosidade:
- O que posso fazer por você?
- Em primeiro lugar, perdoar-me - a resposta pegou Márcio de surpresa, que não conseguiu falar, quedando-se pasmado, enquanto Eduardo continuava: - Em segundo lugar,
aceitar meus agradecimentos pelo que fez por mim. Por último, gostaria que aceitasse de volta a minha amizade.
Márcio ficou olhando para ele, oscilando entre a dúvida e a vontade de abraçá-lo. Não sabia se acreditava ou não naquela repentina e brusca mudança, mas algo dentro
dele lhe dizia que Eduardo estava sendo sincero.
- Edu, eu... - começou a falar meio engasgado - não sei o que dizer. Não esperava por isso.
- Sei que não e novamente peço que me perdoe. Fui um tolo e andava cego. Mas agora, graças a Deus, consigo enxergar as coisas com clareza de novo.
- Entendo...
- Gabi e eu fizemos as pazes, e ela me falou de você. Disse-me que nunca tiveram nada.
- É verdade...
- Disse-me também que você se sacrificou e pediu ao chefe que não me despedisse.
- Não é bem assim...
- Já sei de tudo que você fez. Gabi me contou. Será que você pode me perdoar? Só agora percebo o quanto fui injusto com você.
- Você não precisa me pedir perdão.
- Preciso, sim. Desconfiei de você e de sua amizade. Será que não podemos ser amigos novamente?
- Novamente, não. Eu nunca deixei de ser seu amigo.
- Eu é que não fui seu amigo, não é?
- Deixemos isso de lado. Não guardo mágoa nem rancor pelo que houve entre nós.
- Não mesmo?
- Essa é a verdadeira amizade, não é? Sempre me preocupei com você e tentei ajudá-lo à distância.
- Sei disso e agradeço.
- Não precisa agradecer. Fiz porque quis, porque gosto de você. E não me arrependo.
- Você é um bom amigo, Márcio. Como fui tolo em achar que não era!
- Não pense mais nisso. O que importa agora é que você abriu os olhos e parou com essa bobagem.
- É verdade.
- E Gabriela deve estar muito feliz.
- Está.
- Sendo assim, fico feliz por vocês também.
Eduardo emocionou-se com as palavras do amigo, pois sabia que ele estava sendo sincero. Estendeu os braços e falou com emoção:
- Venha cá, meu amigo, dê-me um abraço.
Coberto de satisfação, Márcio aceitou o abraço que ele lhe oferecia e estreitou-o de encontro ao peito, sentindo que o amava profundamente, como se ama a um irmão.
O amor que sentia por Gabriela era diferente, e ele teria que aprender a conviver com ele. Optara por renunciar e não se arrependia. A amizade de Eduardo era algo
muito valioso para se descuidar, e o amor pela moça, com o tempo, aprenderia a modificar.


Capítulo 27


A rotina das terças-feiras já estava exasperando Diana, que se sentia incomodada com as desculpas do marido. Além de nunca voltar recendendo a bebida, ainda aparentava
aquele ar de irritante satisfação. Decididamente, Douglas estava se encontrando com alguma ordinária, e era naquela noite que ela estava disposta a descobrir a verdade.
Cansara-se de fingir que nada percebia, de tentar manter uma aparência condigna e dentro das convenções sociais. Por mais que detestasse escândalos, não agüentava
mais aquela desconfiança e precisava pôr um ponto final naquela sem-vergonhice.
Parou o carro perto do trabalho do marido e ficou esperando-o sair. Iria segui-lo discretamente, ele nem iria desconfiar. Douglas apareceu logo em seguida, e qual
não foi o espanto de Diana ao ver que Eduardo estava com ele. Os dois entraram no carro, e ela colocou o seu em movimento, pondo-se a segui-lo à distância. Precisava
tomar cuidado para que ele não a visse, o que era extremamente difícil. Diana não era boa motorista, além de não estar acostumada àquele jogo de gato e rato.
Para sua surpresa, Douglas parou o carro em frente ao edifício em que Gabriela morava, e ela parou mais atrás. Aquilo não fazia sentido. Que tipo de homem se encontrava
com a amante em companhia do filho e de sua namorada? Subitamente, a verdade quase a fulminou. Gabriela saiu da portaria em companhia de outra moça, de quem ela
se lembrava vagamente como sendo a sua irmã. As duas entraram no carro de Douglas e seguiram adiante.
A revelação deixou Diana estarrecida. Agora tudo parecia explicado. Douglas estava de caso com a irmã de Gabriela, com a conivência desta e, o que era pior, de seu
próprio filho! Como Douglas se atrevia a perverter o menino e convencê-lo a compactuar com aquela infâmia? O sangue lhe fervia nas veias, e Diana quase bateu com
o carro, tamanho o ódio que sentia. Ser trocada pela quase cunhada de seu filho, uma moça jovem e linda, era, no mínimo, humilhante.
No outro carro, Eduardo ia sentado no banco do carona, enquanto Eliane se acomodara no banco de trás com a irmã. Douglas olhou pelo espelho, sorrindo maliciosamente.
- Não olhe agora, mas sua mãe está nos seguindo.
- O quê? - espantou-se o rapaz. - Seguindo?
- Desde o meu trabalho. Ela pensa que eu não notei, mas vi quando ela surgiu de repente e quase colou na minha traseira.
Eduardo soltou uma gargalhada e retrucou de bom humor:
- Só mamãe, mesmo. Onde já se viu seguir alguém colado na traseira?
- Ela deve estar curiosa para saber aonde eu vou.
- O que você vai fazer?
- Nada. Vou deixar que ela nos siga. Vou até facilitar para ela.
Eduardo riu novamente e se virou para trás discretamente, encontrando o rosto sério de Gabriela.
- E o seu avô, Edu? - indagou ela. - Você não disse que ele gostaria de vir?
- Ele queria, mas não anda se sentindo bem.
- Eu não sabia - observou Douglas. - É algo grave?
- O que pode ser mais grave do que a velhice?
Chegaram ao centro espírita, e Douglas estacionou o carro bem perto do portão de entrada. Diana parou um pouco mais abaixo e esperou até que eles entrassem para
saltar. Não compreendia nada. Que lugar era aquele? Não se parecia muito com uma casa de encontros. Lentamente, foi caminhando pela rua, até que avistou a casa onde
eles haviam entrado. Havia uma tabuleta na porta onde se lia: Centro Espírita Luz e Caridade. Muito espantada, entrou, procurando o marido com o olhar. Ele estava
parado numa espécie de pátio, diante do que parecia ser uma cantina, conversando com algumas pessoas. Achando que ele ainda não a havia notado, ela entrou discretamente
no salão e foi sentar-se no último banco, bem pertinho da parede.
Pouco tempo depois, Eduardo, Gabriela e Eliane entraram e se dirigiram para o primeiro banco, onde ainda havia muitos lugares vagos. Apenas a irmã de Gabriela foi
se sentar à mesa, enquanto os outros dois se acomodavam na assistência. Cerca de cinco minutos depois, Douglas apareceu sozinho e foi sentar-se ao lado deles.
- Sua mãe está sentada lá atrás, crente que não a vimos.
Nesse momento, Salomão pediu silêncio, e os trabalhos se iniciaram. De onde estava Diana não perdia nada do que acontecia e, sem nem perceber, pegou-se prestando
atenção à palestra de Salomão, extremamente interessada em suas palavras. Quando se deu conta do interesse que ele despertava nela, começou a sentir-se incomodada
e pensou em se levantar e ir embora. Já descobrira o que queria e estava feliz porque Douglas não tinha nenhuma amante. Mas havia algo naquele homem que a cativava,
e ela não conseguiu desviar os olhos ou a atenção de suas palavras. Ele dizia coisas que ela jamais havia escutado, coisas sobre o amor e o perdão.
A palestra terminou, e ela nem se deu conta de que ficara presa à fala de Salomão por mais de meia hora. Nem sentiu o tempo passar. Em seguida, outras pessoas fizeram
orações, que ela achou até bonitas, emocionando-se com o sentimento que colocavam em suas palavras. Sem querer, foi tocada por tudo aquilo e começou a chorar de
mansinho. Não sabia o que estava acontecendo com ela, mas algo em seu coração havia se modificado. De repente, o centro lhe pareceu agradável, e as pessoas, inteligentes
e bondosas. Começou a sentir um bem-estar indescritível, e uma vontade de saber mais foi-se apoderando dela aos pouquinhos. O que seria aquilo? Seria alguma espécie
de feitiço?
Sem que Diana soubesse ou percebesse, os trabalhadores espirituais da casa começaram a tratar dela assim que ela pisara no ambiente do centro. Notando nuvens negras
ao seu redor, procederam a uma limpeza energética eficaz, removendo as crostas que lhe pesavam na cabeça, nos ombros, nas costas e, sobretudo, na altura do coração.
Em seguida, derramaram sobre ela uma luz azul adstringente, fazendo com que ela, imediatamente, sentisse uma paz reconfortante como que a aquietar a sua mente conturbada.
A tensão dos últimos dias foi-se dissipando, e novas idéias começaram a surgir em seus pensamentos, como se ela, de repente, percebesse um mundo que antes jamais
havia notado.
O que estaria acontecendo com ela?
Terminadas as orações, levantou-se confusa, tomando o caminho da porta. Na mesma hora, o espírito de Tália se aproximou de Douglas, fazendo com que ele se voltasse
no exato instante em que ela atravessava a porta da frente. Intuitivamente, levantou-se, nem prestando atenção aos protestos do filho, que lhe pedia que se aquietasse.
Caminhando o mais rápido que podia, sem atrapalhar o desenvolvimento dos trabalhos, Douglas saiu atrás dela. Alcançou-a ainda dentro dos limites do centro, quando
ela já se preparava para cruzar o portão da rua.
- Diana - chamou ele com voz doce, e ela se voltou espantada. - Por favor, Diana, não se vá - prosseguiu ele, encarando-a com indizível ternura.
- Eu... Tenho que ir... - balbuciou ela, entre a vergonha e a hesitação. - Não sei nem por que vim...
- Já que veio, por que não fica até o final?
- Não posso... Isto é, não sei se devo... Oh! Douglas, estou tão confusa!
Ela lhe pareceu tão frágil, que ele a abraçou comovido, afagando-lhe os cabelos.
- Venha comigo, Diana. Não há o que temer.
- Não estou com medo. Segui-o até aqui porque pensei que você e aquela moça... - calou-se, sufocando um soluço angustiado.
- Você achou que eu a estava traindo? - ela assentiu. - Ah! Diana, sua tola. Então não sabe o quanto eu a amo?
- Douglas, eu... Estou tão envergonhada!
- Não precisa se sentir assim. Venha, entre para tomar um passe. Vai lhe fazer bem.
Sem resistir, ela deixou-se levar, e Douglas sentou-se ao lado dela, no banco de trás. Em silêncio, aguardaram a sua vez de tomar passe, e Diana foi conduzida pelas
mãos do marido, sentindo certo frio na espinha. O passe aumentou ainda mais o seu bem-estar, e uma sensação de felicidade foi invadindo o seu coração. De repente,
tudo lhe pareceu sem importância, e até Gabriela já não a incomodava tanto.
Depois que tudo terminou, Eduardo e Gabriela se aproximaram, e Diana abaixou os olhos, envergonhada pelo que fizera.
- Oi, mãe - cumprimentou o rapaz, dando-lhe um beijo suave no rosto.
Ela apenas sorriu meio sem jeito e não conseguiu dizer nada.
- Como vai, Dona Diana? - falou Gabriela, um pouco à distância.
- Vou bem.
- Gostou do centro, mamãe?
- Gostei... Já terminou?
- Já sim - respondeu Douglas.
- Podemos ir, então?
- Quer que eu leve o seu carro, mãe?
- Se você puder...
Coberta pela vergonha, Diana seguiu agarrada ao braço do marido. A compreensão que parecia irradiar dos rostos de todos só serviu para aumentar ainda mais o seu
embaraço. De toda sorte, não fora assim tão ruim. O marido não a estava traindo, o que era motivo de grande alívio. Mas o que realmente a espantava e confundia era
o próprio centro. Sempre considerara espiritismo coisa de gente rude e ignorante, mas agora via que era uma religião dotada de profunda sabedoria, voltada para todos
aqueles que estivessem prontos para ouvir as suas verdades.

***

Na volta para casa, Eduardo ia pensando na avó, na decepção que sentira porque ela não havia se comunicado com ele. Esperava ao menos uma mensagem, por menor que
fosse, para que pudesse acalmar o seu coração. Seguia em silêncio, evitando conversar, principalmente porque não queria ouvir nada que se relacionasse a Tália. Gabriela
e Eliane compreenderam o seu quase mutismo e não insistiram. Ele esperou até que entrassem no edifício e voltou para casa. O pai e a mãe já haviam se recolhido,
e ele foi direto para o quarto. Pensou que não conseguiria dormir tão cedo, mas um sono incontrolável foi tomando conta de seu corpo, seus olhos pesaram e, em breve,
já havia adormecido.
A seu lado, Tália e Sílvia o aguardavam. Finalmente, Tália conseguira permissão para lhe mostrar, em forma de sonho, o que realmente acontecera naquela noite em
que ele, como Raul, desencarnara. Assim que seu corpo fluídico se desprendeu do corpo físico, Eduardo logo notou a presença das duas, e um tremor fez com que suas
pernas bambeassem. Ele se apoiou na cama e olhou o seu corpo adormecido, tentando entender o que estava acontecendo. Teria morrido?
- Você não está morto - esclareceu Sílvia, lendo-lhe os pensamentos.
- O que é isso? Quem são vocês?
- Não me reconhece? - indagou Tália.
- Você... Você é minha avó?
- Pode-se dizer que sim.
- O que faz aqui?
- Não queria me ver? Não há coisas que pretende recordar?
- Sim, mas... Faz tempo que a chamo, e você nunca me atendeu. Por que só agora?
- Porque foi só agora que ela obteve a devida permissão - justificou Sílvia. - Nós, espíritos, nem sempre podemos fazer o que desejamos na hora em que desejamos.
Tudo obedece a uma ordem, e nós somos os primeiros que devemos respeitá-la.
- Sei... E por que essa ordem só foi dada agora?
- Porque agora você amadureceu os sentimentos e está pronto para terminar o que começou. Libertou-se do assédio dos seres das sombras que o consumiam e baixou a
sintonia de ódio e apego que o dominava. Caso contrário, você não conseguiria se defrontar com Tália sem passar por forte comoção.
- Você veio me contar o que houve?
- Não. Viemos levá-lo a um lugar aonde irá se recordar de tudo espontaneamente.
- Que lugar é esse?
- Venha conosco e verá.
Mesmo receoso Eduardo se deixou conduzir por elas. Tália e Sílvia se colocaram cada uma, de um lado, e deram-lhe as mãos. Ele sentiu um arrepio ao tocar a mão de
Tália e olhou para ela de soslaio, sentindo-se, na verdade, diante de uma estranha. Quando desviou o olhar novamente, já não estava mais em seu quarto, mas diante
de um armário imenso, com portas espelhadas, em um quarto claro e atapetado, coberto por uma papel de parede creme com flores verdes. Olhou ao redor, espantado,
sentindo que o coração disparava.
- O que é isso? - indagou assustado. - Onde estamos?
- Não se recorda? - tornou Tália, tomada de súbita emoção.
- Vê os espelhos? - retorquiu Sílvia, e ele assentiu. - Pois quero que você olhe para um deles. O que vê?
- Eu, Tália... Nós três.
- Continue olhando.
Sílvia saiu do campo de visão do espelho, deixando apenas Eduardo e Tália visíveis. Ele ficou olhando e, a princípio, só o que viu foi aquele quarto estranho, e
eles parados bem no meio. Aos poucos, os cantos do quarto foram se tornando familiares, e o ambiente começou a sofrer pequena alteração. O papel de parede desapareceu,
surgindo em seu lugar uma tinta amarelada, descascada em algumas partes. Encostadas na parede, uma cama de casal e duas mesinhas de madeira, surradas e sem brilho.
Bem defronte à cama, um armário desconjuntado, no lugar onde ele antes vira os espelhos, e, ao lado, uma pequena escrivaninha. Dois abajures completavam a decoração,
onde duas lâmpadas amarelas derramavam sobre o ambiente uma luminosidade fosca e sufocante.
Pelo espelho, Eduardo viu Raul entrar no quarto, cambaleante, e sentiu tudo rodar a sua volta, como se a bebedeira do outro também tivesse entorpecido os seus sentidos.
Ouviu Tereza perguntar onde ele estivera, e uma pequena discussão se iniciou. Raul já ia se virando para sair quando viu a garrafa de licor pousada sobre uma das
mesinhas. Caminhou para ela a passos trôpegos e apanhou-a, quase a deixando cair. Arrancou a rolha com os dentes e entornou o líquido com sofreguidão, sentindo uma
leve queimação por dentro. A bebida tinha um gosto amargo, e ele estranhou o licor, que deveria ser doce, mas não desconfiou de nada e tomou novo gole, que desceu
queimando ainda mais.
De repente, uma pontada aguda fez com que levasse as mãos ao estômago, pensando que iria vomitar, mas nada aconteceu. O estômago começou a queimar ainda mais, e
ele dobrou o corpo sobre si mesmo, apertando a barriga com mais força. Ao mesmo tempo, Tereza lhe dizia alguma coisa e apanhava a garrafa, afirmando que ela cheirava
a veneno de rato. Em seguida, uma dor lancinante foi-se espalhando pelo seu ventre, e ele se ajoelhou, tombando logo em seguida, a contorcer-se terrivelmente. Era
como se uma fogueira ardesse em seu estômago, corroendo-lhe a carne e fazendo borbulhar o seu sangue. Eduardo sentiu a contração do abdome, a falta de ar e a garganta
seca. Ouviu as palavras de Tereza, enquanto a dor ia se alastrando por todo o ventre:
- Ela envenenou você! Amelinha envenenou você! Foi ela! Deu-lhe de presente uma bebida envenenada. E é essa a mulher que você diz amar! Foi ela, Raul! Ela envenenou
você! Assassina! Amelinha é a assassina! Assassina...!
Seus ouvidos já não captavam mais nada. Tereza continuava a gritar, mas um torpor indescritível foi dominando o seu corpo, até que ele foi tomado por uma dormência
de morte. A última lembrança da vida que levara era a voz de Tereza, acusando Amelinha de assassina.
Em suas reminiscências, Eduardo engasgou e começou a tossir, mas Sílvia prontamente o acudiu, reanimando-lhe as energias através do passe. Pouco depois, Eduardo,
ou melhor, Raul, viu-se flutuar sobre o quarto, o estômago ainda a queimar, até que tudo se anuviou, e ele perdeu a consciência. Quando abriu os olhos, já não estava
mais naquele quarto, mas sim deitado em uma cama macia e perfumada de hospital, banhada por uma luz azul reconfortante. Médicos entravam e saíam, enfermeiras ministravam-lhe
remédios e água, até que a dor passou, e ele pôde se levantar.
Mais tarde, atraído pelos pensamentos de Tereza, viu-se novamente naquele quarto, sentado ao lado da mulher, que chorava descontrolada. Seus pensamentos como que
pululavam no ar, e ele podia ouvi-los nitidamente, como se ela estivesse articulando cada palavra:
- Raul está morto! Fui eu que o matei. Bem feito para ele! Morreu acreditando que foi Amelinha quem o matou. Aquela desavergonhada, ordinária, maldita!
Por que foi fazer isso comigo? Por que foi me tomar o único homem que amei na vida? Por que me obrigou a matá-lo, para me ver livre de sua bebedeira, de seus choramingos,
de sua paixão por ela? Eu o amava, Raul, como o amava! Mas fui obrigada a desfazer-me de você por ciúme. E ódio de Amelinha! Como odeio aquela filha que jamais quis
ter! Se pudesse, tê-la-ia matado em seu lugar! Mas você não me quis mais, e eu não podia aceitar uma nova rejeição. Antes vê-lo morto a perder o seu amor para ela!
Maldita seja Amelinha, maldita seja...!
Com o susto, Eduardo balançou a cabeça e olhou para frente, vendo o desenrolar daquela cena pelo espelho do armário. Seus olhos encheram-se de lágrimas e, aos pouquinhos,
sua mente foi-se desligando do passado e retornando ao presente, onde as coisas daquela época cediam lugar aos móveis e texturas atuais. Já não estava mais em 1934,
mas em 2005. O quarto que via não era mais o de Raul e Tereza, mas um novo quarto, de pessoas desconhecidas que haviam comprado a casa muitos anos depois e a reformaram.
Eduardo olhou para Tália, que chorava baixinho, e para Sílvia, que permanecia a um canto, entregue a profunda meditação.
- O que foi isso, meu Deus? - gemeu ele.
- Você voltou ao passado - esclareceu Sílvia.
- O que vi... Foi o que aconteceu? - ela assentiu. - Mas então... Então, tudo o que me lembrei com Janaína não foi real. Não foi Tália quem assassinou Raul. Foi
Tereza! Como meu avô disse.
- Você se lembrou da realidade - elucidou Sílvia.
- Só que não da realidade integral. Deu-se por satisfeito com o fim de sua vida corpórea e se esqueceu de que a vida continua na pós-morte. E era importante para
você recordar-se desse momento, não para guardar raiva de sua bisavó, mas para desfazer o ódio que passou a alimentar por Tália.
- Não tenho raiva de Tereza...
- Sabíamos que não teria.
Com olhos embaciados, Eduardo fitou Tália, que também tinha os seus cheios de água.
- Você é Tália - afirmou Eduardo. - Agora me lembro. Há pouco, quando viemos para cá, pensei estar diante de uma estranha. Mas agora, lembro-me bem de você, do amor
que lhe tinha. Sua fisionomia permanece a mesma de anos atrás.
- Desencarnei ainda jovem, Eduardo. Jovem, insegura e assustada. Fui mal interpretada por todos, inclusive, por sua mãe. Eu jamais quis abandoná-la. Ao contrário,
queria viver para ela, criá-la com amor e dedicação. Mas fiquei doente e sozinha, estava confusa e atordoada.
- Só que bisavó Tereza se encarregou de envenenar mamãe contra você, não foi mesmo?
- Há coisas que ainda desconhecemos - ponderou Sílvia. - Não é justo crucificarmos uns e colocarmos outros na posição de vítimas. Cada um viveu o que precisava viver,
agiu conforme suas possibilidades e deu o melhor de si. Ninguém foi maltratado ou injustiçado, e todos seguiram os destinos que escolheram, planejaram ou correram
o risco de vivenciar. Não há vítimas nem algozes na vida, mas almas igualmente necessitadas de amor que lutam para avançar em sua jornada terrena.
Eduardo olhava-as com tristeza e alívio ao mesmo tempo. Sentia o coração desafogado, certo de que Tália, a quem tanto amara, não fora a sua assassina. Mesmo por
Tereza, não sentia ódio. Compreendia os seus motivos e acreditava que ela só fizera aquilo porque fora fraca e não conseguira vencer o ódio que sentia da filha.
- Estou aliviado por ter descoberto a verdade - disse Eduardo, encarando Tália com certa ternura.
- No entanto, tenho medo de não me lembrar de nada disso quando acordar.
- Vai se lembrar - asseverou Sílvia. - Vai se lembrar de tudo como um sonho, embora possa lhe parecer, sob a influência da matéria, um pouco estranho ou confuso.
Os lugares e situações tendem a sofrer alterações, influenciados pelos arquivos de nossa mente, e até os diálogos podem lhe parecer um tanto quanto sem sentido.
Talvez você encontre alguma dificuldade em recordar de tudo exatamente como aconteceu, mas a essência do que você viu e ouviu vai permanecer gravada em seus pensamentos.
E você vai se lembrar com o coração, o que significa que vai saber que sonhou conosco e que a verdade lhe foi revelada.
- E Tália? O que vai acontecer a ela?
- Vamos retornar a nossa cidade astral. Temos pouco a fazer aqui agora. Você está encaminhado e sua mãe deixou germinar dentro dela a semente da verdade. Aos pouquinhos,
vai se modificar, e todos podem ser felizes. Temos grandes planos para vocês.
- Como assim?
- Na hora certa, saberão.
Mesmo Tália ficou surpresa com aquela revelação, mas não disse nada. Aprendera a confiar em Sílvia e em todos aqueles que estavam acima dela, orientando e encaminhando
suas vidas. Era hora de voltar ao Rio de Janeiro, e ela e Sílvia segurou novamente as mãos de Eduardo, volitando com ele até sua casa. Despediram-se dele com abraços
e beijos efusivos, e Tália prometeu voltar de vez em quando para visitá-lo.
- Só não quero mais que você alimente essa fixação por mim - pediu ela, acariciando-lhe os cabelos.
- Você agora tem uma nova vida e precisa se adaptar a ela. Pense em mim apenas como sua avó, e não como o fruto inacessível de sua paixão de antigamente. Pense e
sinta como Eduardo, e não como Raul.
- Não se preocupe comigo, Tália. Ainda a amo profundamente, mas aquele desespero, aquela loucura que sentia por você, tudo isso já passou. Quero agora viver bem
com Gabriela. Vamos nos casar e ser muito felizes.
- Vocês têm tudo para isso - intercedeu Sílvia. - Planejaram uma vida muito bonita e produtiva. Não desperdice essa oportunidade.
- Não desperdiçarei. Amo Gabriela e quero viver a seu lado para sempre.
- Assim é que se fala meu menino - disse Tália, acariciando-o novamente. - Lembre-se de mim com carinho, mas não com paixão.
- Lembrarei.
- E não se esqueça - alertou Sílvia. - Evite a bebida e o vício.
- Não me esquecerei. Pretendo não tornar mais a beber.
- Adeus, Eduardo - falou Tália.
- Adeus.
Lentamente, as duas foram desaparecendo, e Eduardo voltou ao corpo físico, deixando que um sorriso lhe iluminasse o rosto adormecido, feliz por poder guardar na
lembrança o semblante amigo de sua avó Tália.
Ao amanhecer, Eduardo acordou com a nítida sensação de que havia feito uma viagem durante a noite, como se tivesse ido a algum lugar distante e diferente. Lembrava-se
vagamente de uma casa estranha, da atmosfera sufocante de um quarto antigo, da sensação de envenenamento e de diálogos confusos com pessoas que não conhecia. De
alguma forma, havia se encontrado com sua avó Tália, e ela o ajudara a recordar momentos importantes de sua vida passada.
Não tinha dúvidas. As lembranças foram muito vividas para ele duvidar de que realmente as tivera. Agora compreendia como tudo acontecera. Tereza matara Raul, e ele
se deixara dominar pela cólera intempestiva, recusando-se a ir além do que vira no consultório de Janaína. Tudo fora esclarecido, e ele não sentia mais nenhum ódio
de Tália. Sequer odiava Tereza.

***

Nos dias que se seguiram, Diana não mencionou o centro espírita, com vergonha de sua atitude e temerosa de admitir que ficara impressionada com o que vira e ouvira.
Tamanha confusão de sentimentos e pensamentos não passou despercebida a Douglas, que evitava tocar no assunto. Não queria embaraçá-la com cobranças nem queria pressioná-la
a aceitar nenhuma doutrina ou religião. Quebrar padrões preestabelecidos e conceitos há muito solidificados não era fácil para ninguém, e aceitar o espiritismo exigiria
de Diana uma boa dose de reflexão e maturidade.
Na outra terça-feira ele apenas perguntou se ela queria ir com ele ao centro espírita, mas não insistiu nem fez nenhum comentário quando ela agradeceu e gentilmente
recusou o convite. Nas semanas seguintes, deixou de convidá-la, apenas informando que iria ao centro à noite e a hora em que sairia do trabalho. Diana apenas ouvia,
mas não se decidia a ir. Às escondidas, começou a ler os livros que Douglas comprava e passou a se interessar pelo assunto. Havia livros de todos os tipos, desde
ensaios esotéricos até romances envolventes e esclarecedores. Aquela literatura foi deixando-a maravilhada, e, aos poucos, foi começando a se libertar de seus preconceitos,
reconfortando-se com aquelas palavras de sabedoria. Nada ali incitava ao mal, mas estimulava o bem, o amor, o respeito e o cultivo dos verdadeiros valores do espírito.
Com tanta leitura, Diana acabou cedendo, e a vontade de saber mais sobre aquele mundo que não via, mas que sabia estar ao seu redor, foi deixando-a inquieta e impaciente.
Até a vergonha por ter seguido o marido e desconfiado dele começava a se dissipar, e acabou se enchendo de coragem para conversar sobre o assunto.
- Douglas... - começou ela, lutando contra o constrangimento. - Há algo que gostaria de lhe dizer.
- O que é?
- Sobre aquela terça-feira... Em que eu segui você... - fez-se um silêncio de embaraço, e Douglas ficou esperando. - Gostaria que me desculpasse. Devia saber que
você jamais me trairia.
- Não pense mais nisso, Diana, já passou. E depois, a culpa foi minha. Eu é que devia ter sido sincero e lhe contado a verdade, mas fiquei com medo da sua reação
ao saber que eu andava indo a um centro espírita.
- Eu sempre fui contra espiritismo...
- Eu sei.
- Mas agora já não sei mais se sou. Ouvi tantas palavras bonitas naquele lugar!
- Que bom que você gostou.
- Você sabe como eu sou racional e cética. Mas o que escutei foram palavras de conforto que me pareceram verdades incontestáveis.
- Fico feliz em ouvir isso.
- Gostaria de voltar lá mais vezes. Quero aprender mais sobre o assunto.
- Você sabe que nada me fará mais feliz do que ter você ao meu lado.
- E quero levar papai comigo. Ele anda muito esquisito.
- Honório manifestou mesmo o desejo de ir. Pena que não tem se sentido bem ultimamente.
Daquele dia em diante, Diana passou a ver as coisas com mais clareza. Agora compreendia o porquê de tudo o que vivera, aceitando quando o pai lhe dizia que Tália
jamais quisera abandoná-la. Aos pouquinhos, foi deixando de odiar a mãe e passou a interessar-se mais pela sua vida, procurando o pai com mais freqüência, para que
ele lhe contasse mais coisas sobre a vida de Tália.
Seu relacionamento em casa também melhorou, e ela começou a se esforçar para aceitar Gabriela em seu coração. Sabia que deveria existir alguma razão ainda desconhecida
para toda aquela antipatia, e se a vida as colocara juntas, envolvidas pelo amor do mesmo homem, era para que, através dele, aprendessem a se amar também. Acostumou-se
a orar com mais freqüência e sempre pedia a Deus que a ajudasse a vencer aquela dificuldade com Gabriela. Estava certa de que conseguiria, porque a menina era dócil
e meiga, muito sincera em suas palavras e sentimentos, o que despertava certa admiração em Diana.

***

As idas ao centro ajudavam, em muito, na harmonia daquela família. A casa espírita passou a ser o seu lugar de meditação, onde se buscavam forças para continuar
a luta do dia a dia e, naquela terça-feira, como sempre acontecia, todos se encontravam presentes. A sessão ainda não havia começado, e Eduardo conversava com Gabriela
e Eliane em frente à cantina, enquanto tomavam um refrigerante para aguardar o início dos trabalhos. Foi quando Eduardo, ao olhar para o portão de entrada, viu aproximar-se
alguém que jamais esperaria encontrar de novo.
Janaína entrou com passos lentos e ar cansado. Parecia abatida e mais magra, vestindo um vestidinho simples e discreto, bem diferente das roupas vistosas e caras
que costumava usar. Viu Eduardo parado entre as moças e hesitou, fazendo menção de voltar. Na mesma hora, ele correu em sua direção, estendendo-lhe as mãos com um
sorriso.
- Janaína! - exclamou. - Aonde é que você pensa que vai?
- Eu... - ela gaguejou, sentindo-se pouco à vontade ali, parada diante dele. - Acho que vou embora... Não devia ter vindo, foi um erro.
- Um erro, por quê? Aqui é um templo religioso, onde todos são bem-vindos.
Ela o olhou desconfiada. Seria o mesmo Eduardo que freqüentara o seu consultório?
- Obrigada, Eduardo, mas acho que já vou indo.
- Espere. Se teve o trabalho de vir até aqui, por que não fica?
- Acho que não deveria...
- Deixe de bobagens - cortou ele, vendo que a sessão já se iniciava. - Vamos, venha. Eu a acompanho.
Saiu puxando-a pela mão e foi sentar-se com ela ao lado de Gabriela, que sorriu amistosamente para Janaína. De onde estava Salomão percebeu a sua presença e intimamente
agradeceu aos guias da casa por terem-na conduzido até ali. A sessão transcorreu normalmente e, no final, Salomão aproximou-se de Janaína, que Eduardo procurava
reter ali o máximo que podia.
- Como vai, Janaína? - cumprimentou Salomão, apertando-lhe a mão de forma amistosa. - Faz tempo que não a vemos.
- Estive ocupada... - respondeu ela, meio acanhada. - Mas agora tenho que ir. Amanhã me levanto cedo para trabalhar.
- Está trabalhando onde? - interessou-se Salomão, impedindo que ela se fosse.
- Ah...! Sou recepcionista numa clínica ortopédica.
- Deixou de praticar a psicologia?
Ela o fitou com amargura e abaixou a cabeça, dizendo com voz sumida:
- As coisas têm sido difíceis...
Começou a chorar baixinho e tentou se esquivar, mas Salomão a segurou pelo braço e falou com interesse e compreensão:
- Não acha que está na hora de conversarmos?
- Ah! Seu Salomão, não tenho nada a dizer. Vim aqui apenas para buscar um conforto. Estou tão sozinha, desesperada, amargurada. O senhor não faz idéia do que tem
sido a minha vida depois... Depois que Eduardo saiu do meu consultório. Não sei por que, mas, de repente, tudo começou a andar para trás.
- Janaína - interveio Eduardo -, quero que saiba que não a acuso de nada nem a culpo pelo que me aconteceu. Fui eu que quis recordar o passado sem estar pronto para
reviver o que vi.
- Não, não! Sou psicóloga formada, fui responsável. Era minha obrigação dar-lhe a devida assistência.
- Isso não tem importância agora. Como vê, estou bem. Você me ajudou muito, pois foi através de você que consegui chegar aonde cheguei nessa questão com a minha
avó.
- Como posso tê-lo ajudado se você saiu do meu consultório desabalado, feito louco?
- Passei momentos difíceis, mas que foram importantes para que eu pudesse amadurecer e compreender. Você não teve culpa de nada.
- É isso mesmo, Janaína - acrescentou Salomão. - Não estamos aqui para nos acusarmos mutuamente. Cada um deve assumir a responsabilidade pela sua parte. Eduardo
assumiu a dele, você deve assumir a sua, e eu já reconheci a minha. Tudo o que passamos deve servir para o nosso crescimento, não para o nosso desespero. A vida
não quer ver ninguém desnorteado, sem rumo, desesperado. Quer que aprendamos com as nossas atitudes para que não repitamos mais o que foi prejudicial. É assim que
aprendemos.
- Mas eu fui irresponsável...
- Se é assim, eu também fui. Devia ter orientado você nas suas terapias, ao invés de tê-la rejeitado, com medo de que prejudicasse alguém que aqui freqüente. E foi
justamente isso que aconteceu, ou quase isso.
- O senhor não tem nada com isso. A terapeuta sou eu, cabe a mim clarear a mente dos que estão sob os meus cuidados.
- E cabe a mim clarear as almas que estão sob a minha responsabilidade. Se você tem um pacto com a mente, eu tenho um pacto com a espiritualidade. Comprometi-me
a orientar os que me procuram e não desempenhei isso a contento.
- Como pode dizer isso? Logo o senhor, que é tão bom e justo!
- Não fui bom nem justo com você. Fui intolerante e optei pelo caminho mais fácil, que foi o de afastá-la do corpo mediúnico, como se assim pudesse me livrar de
um problema. É claro que sou responsável pelo tratamento dispensado aos que aqui vêm como também sou responsável por você. Não basta cuidar para que ninguém seja
prejudicado; é preciso cuidar também daquele que causa o prejuízo, porque é este que mais necessita de orientação.
Ela o fitou emocionada e escondeu o rosto entre as mãos, chorando livremente agora, e Eduardo se afastou discretamente.
- Ah! Seu Salomão, o senhor não sabe o que tenho passado.
- Por que não me conta? Quero ajudá-la, interesso-me pelo seu bem-estar.
- Eu fiz tudo errado! Iludi-me com a ambição do dinheiro, achando que era isso que importava. Não dei atenção ao meu compromisso com a profissão. Devia ajudar as
pessoas, não bagunçar as suas cabeças e deixá-las entregues à própria sorte!
- Tudo isso tem conserto, Janaína, você vai ver. O que importa é que você tomou consciência e aprendeu a sua lição. Vai ver como, depois disso, tudo irá se normalizar.
- O senhor acha mesmo? Tive até medo de perder a minha licença.
- Nem tudo está perdido. Quero ajudá-la a se reencontrar, e você estará em condições de abrir seu consultório novamente.
- Não, isso é impossível. O dinheiro se foi, meu respeito, minha dignidade...
- Dinheiro se arranja. Quanto ao respeito e à dignidade, são coisas que nunca se perde. São qualidades inerentes a todo ser humano. Basta deixar florescer a semente.
Janaína estava muito emocionada. Jamais poderia esperar ser tratada com tanta compreensão. Fora até ali em busca de conforto, porque sabia por Douglas que Salomão
a acolheria. Achava que seria bem tratada, mas com certa distância e frieza. Não podia imaginar que Salomão estivesse a sua espera, ansioso para falar-lhe e oferecer
ajuda. Não daquela forma. Mesmo Eduardo não lhe guardava rancor.
Durante muito tempo, Janaína permaneceu no centro espírita, conversando com Salomão a respeito de sua vida. Ele escutou tudo com genuíno interesse, buscando opções
para o seu problema. Ela precisava estudar mais sobre a vida espiritual, apreender os conceitos e a moral divina, para então ingressar no corpo mediúnico. Depois
disso, ele a ajudaria a reabrir o consultório, com o seu compromisso de prestar auxílio, ao menos uma vez por semana, aos freqüentadores do centro, dando-lhes o
devido acompanhamento psicológico, emocional e espiritual. Janaína aceitou os termos de Salomão de bom grado, certa de que, agora, estaria recomeçando uma vida com
mais responsabilidade e consciência, o que a tornaria uma pessoa muito mais feliz.



Capítulo 28


Quando Sílvia entrou na casa de Tália, ela estava sentada no pequenino sofá cor-de-rosa, fitando com ar perdido o brilho dos matizes que se misturavam no pôr do
sol distante. De tão distraída, nem percebeu a chegada da amiga, que teve que tocar gentilmente em seu ombro, a fim de despertá-la de seus devaneios.
- Sente-se bem? - indagou Sílvia, sentando-se a seu lado.
Tália sorriu amigavelmente e apertou a mão da outra:
- Estive pensando em minha mãe. Nós nunca nos demos bem, mas eu jamais a odiei... - calou-se entristecida e olhou para Sílvia, as lágrimas presas nos olhos. - Hoje,
contudo, compreendo o seu ódio.
- Compreende? Lembrou-se do passado?
- Lembrei-me de tudo, até dos mínimos detalhes.
- Quer me contar?
Com profundo suspiro, Tália deitou a cabeça no colo de Sílvia e deixou que as lágrimas deslizassem suaves pelo seu rosto, enquanto a amiga alisava seus cabelos docemente.
- Não quero guardar culpas pelo que fiz - começou Tália. - Mas também não posso me esquecer de que fui à maior responsável pelo seu ódio.
- Só há ódio onde, um dia, existiu amor.
- É verdade... Tereza me amou muito... Um dia. Até que eu lhe tomei o que ela pensava ter de mais precioso.
- Raul.
- Sim, Raul.
- Conte-me como tudo aconteceu.
Com os olhos novamente voltados para o horizonte, que agora já começava a adquirir aquele tom gris de prelúdio do anoitecer, Tália começou sua narrativa:
- Em outra vida, anterior àquela em que vivi como Tália, eu e Tereza fomos irmãs, e nossos pais morreram quando ainda éramos jovens. Tereza, doze anos mais velha
do que eu, assumiu a responsabilidade pela minha criação, até que, quando completei quinze anos, ela conheceu um homem muito rico e atraente, com quem se casou.
- E esse homem era Raul?
- Sim, era Raul. Tereza contava então vinte e sete anos e, pelos padrões da época, era já considerada uma mulher madura, mas era bonita e muito prendada, e Raul
se apaixonou por ela. Desde aquela época, embora rico, Raul já era ligado ao vício da bebida, que desde cedo adquiriu, nas festas de que participava. - Tália fez
uma pequena pausa para tomar fôlego e prosseguiu: - Depois do casamento, fui morar com eles em sua magnífica mansão do campo, e, como era inevitável, Raul acabou
se apaixonando por mim, que era mais jovem e linda. Não demorou muito para nos tornarmos amantes, e Raul começou a alimentar o desejo de se casar comigo. Havia,
porém, um pequenino detalhe a impedir nossos planos...
- Tereza.
- Isso mesmo, Tereza. Embora boa comigo, Tereza era um tanto mesquinha e não satisfazia todos os meus caprichos, o que me indignava profundamente. Eu apreciava as
coisas belas e caras, e Tereza não nos permitia luxos desnecessários.
- Foi por isso que você se aproximou de Raul?
- De Raul e de muitos outros que me cortejaram. O país ainda não admitia o divórcio, e só com a morte se dissolviam os laços matrimoniais. Eu não estava propriamente
apaixonada por Raul, embora a possibilidade de uma vida fácil e de um título de nobreza me enchesse os olhos. O preço a pagar por isso, contudo, era alto demais.
Tereza, afinal, havia sido praticamente a minha mãe, e eu não queria me envolver na sua morte. No começou, fui contra qualquer tentativa de matá-la, mas Raul tanto
insistiu que eu acabei me omitindo e não fiz nada para impedir.
- Em outras palavras, deixou tudo nas mãos dele, embora estivesse consciente de seu crime e nele consentisse, ainda que por omissão.
- Isso mesmo. Naqueles dias, envenenar uma pessoa não era assim tão difícil, e Raul não teve problemas para executar seu plano. No dia em que deitou o veneno na
comida de Tereza, fingiu passar mal também, provocando até vômitos, e o caso foi tido como envenenamento por comida estragada. Para Tereza, tudo ficou muito claro.
Raul a havia envenenado para poder se casar comigo.
- Ela chegou, a saber, do caso entre vocês dois?
- Fingia não saber, porque não queria se desentender com Raul. Depois que Tereza desencarnou, virou o seu ódio todo contra mim, responsabilizando-me pela sua sorte,
jurando vingar-se de mim em vidas futuras. Passou a me perturbar constantemente, e eu vivia assombrada pelo seu espírito. Não fez nada contra Raul, porque justificava
a sua conduta com a paixão cega que ele sentia por mim, fruto do encantamento que eu lhe lançara com a minha juventude.
- E você e Raul? Foram felizes juntos?
- Nós nos casamos, mas nunca fomos felizes. Eu era perdulária, e não demorou muito para que dilapidasse o seu patrimônio. Além disso, jamais consegui ser fiel, principalmente
depois que começamos a passar necessidades. Tinha muitos homens, o que o deixava cada vez mais amargurado, enfronhado na bebida.
- Foi por isso que vocês decidiram reencarnar juntos, na mesma família?
- Sim. Raul foi um bom homem... E ainda é. Meu neto Eduardo é um rapaz excelente, e tenho certeza de que conseguirá ser feliz dessa vez.
- E Cristina, Tália? O que ela representou para você?
- Nada, propriamente. Cristina veio a ser filha de Raul e Tereza, minha sobrinha, que acabou retirando de mim uma parcela do amor que Tereza me dedicava. Isso me
deixou muito enciumada, e não posso negar que tenha contribuído para minha aproximação de Raul. Só que eu não amava Raul e não fui capaz de conter as paixões. Sempre
fui leviana e dormia com qualquer homem, mesmo depois de casada. Homens que, inclusive, freqüentavam a nossa casa, acompanhados de esposas e filhos. Dormia também
com seus filhos e pais, parentes e amigos.
- Bem se vê por que você atraiu tantos homens.
- E homens que me tratavam como se eu fosse uma vagabunda. Lembra-se de seu Anacleto, lá da pensão de prima Janete?
- Perfeitamente.
- Pois ele sofreu em minhas mãos. Apaixonou-se por mim, e eu o usei o mais que pude, tirei tudo dele, quase o deixei na miséria. Quando isso aconteceu, Tereza já
havia morrido, e Raul e eu já estávamos casados. A mulher de Anacleto, que vinha a ser Janete, jamais me perdoou e jurou fazer de tudo para me deixar na miséria.
Até seu Chico, que nos estuprou, a mim e a Cristina, passou por maus pedaços em minhas mãos.
- Chico, porém, não estava ligado apenas a você. Envolveu Cristina também.
- Quando conhecemos Chico, naquela outra vida, eu o usei para tirar-lhe dinheiro. Mas ele queria mesmo era se casar com Cristina, que o rejeitou e humilhou, porque
ele já tinha certa idade. Eu mesma escarneci dele, chamando-o de velho devasso e ridículo. Creio que jamais nos perdoou e ficou à espera de uma chance de se vingar
de nós.
- Sim, foi lamentável, mas ele viveu e morreu corroído pelo remorso.
- Sabe, Sílvia? Não lhe guardo ódio pelo que me fez. Compreendo as suas necessidades de então.
- Isso é ótimo para você, Tália, porque não se ligará mais a ele. O que ele achar que deve restituir à vida, em função do estupro que cometeu, terá que restituir
de outra forma.
- Onde ele está?
- Reencarnou e optou por ser policial para, combatendo o crime, quitar-se com a vida, eliminando da consciência o crime que cometeu contra vocês.
- Isso é muito bom. Fico feliz que ele esteja conseguindo caminhar.
- Quem mais, Tália? Quem mais foi importante na vida para você?
Ela abaixou os olhos, e duas pequeninas lágrimas surgiram novamente.
- Mauro... - murmurou com pesar. - Mauro foi o único homem que amei, nessa vida ou em outra. Quando o conheci, naquela vida, ele também já era casado, mas isso não
foi empecilho para que fugíssemos juntos. Eu deixei Raul e ele abandonou mulher e filhos, mas nunca pôde se perdoar. Vivia se culpando pela sorte da esposa e das
crianças...
- Foi por isso que a abandonou nessa vida, não foi?
- Exatamente. Ao encontrar Giannina e os irmãos órfãos, sentiu retornar o peso da responsabilidade e concluiu que não poderia abandoná-los novamente. Casou-se com
ela e adotou como filhas as mesmas crianças que haviam sido suas e que abandonara naquela existência.
- Compreende agora por que ele não podia voltar?
Ela assentiu e observou:
- Não devia ter-lhe cobrado nada. Mas eu não sabia que havia contribuído para que ele largasse a família. Só agora posso compreender como Giannina deve ter se sentido
quando ele a deixou, ainda mais com três crianças para criar.
- Ele sempre amou você. Mesmo quando a abandonou para viver na Itália, jamais deixou de amá-la. Mas sua alma o chamava à responsabilidade, e o desejo de acertar
fez com que ele optasse por viver ao lado de Giannina, a frágil mulher que ele abandonara em outra vida. E ele não poderia largá-la novamente, e novamente por sua
causa. Foi então que preferiu renunciar e, apesar de tudo, conseguiu ajustar-se com Giannina e os que haviam sido seus filhos.
- Isso é ótimo. Hoje posso compreender as coisas dessa forma. Pena que, naquela época, não pudesse.
- Você não sabia desses detalhes, não é mesmo? Por isso, não se culpe. Oportunidades não hão de faltar para vocês se entenderem.
- Tem razão. Espero um dia poder reencontrá-lo.
Apesar das reminiscências dolorosas, Tália estava satisfeita porque podia ao menos compreender por que a vida a colocara na direção que seguira. Contudo, algo ainda
a inquietava, e ela dividiu seus sentimentos com Sílvia:
- É minha mãe. Será que não é esse o momento de ajudá-la?
- Não poderia haver momento melhor, e você percebeu isso. Foi para isso, inclusive, que vim. Sua mãe tem pensado muito em você, em Cristina e em Raul. Sugiro que
encontremos sua irmã e vamos juntas em auxílio de Tereza.
A sugestão de Sílvia foi prontamente aceita, e ambas partiram ao encontro de Cristina, que já as aguardava. As duas irmãs se abraçaram com afeto e, após orarem pedindo
proteção, partiram rumo ao astral inferior, onde Tereza se aprisionara a terrível remorso. Chegaram em silêncio e mansamente, a fim de não chamar a atenção dos que
ali viviam. À medida que iam atravessando os caminhos sujos do local que Tereza habitava, iam espargindo no ar partículas energéticas invisíveis, de forma a beneficiar
os espíritos em sofrimento, que sentiam inexplicável e instantâneo bem-estar.
Em breve, alcançaram o seu destino. Era uma espécie de ravina poeirenta e quente, e logo avistaram Tereza. Ela parecia adormecida, recostada numa pedra esponjosa,
e não percebeu a chegada das filhas. As três se entreolharam, e foi Cristina a primeira a falar:
- Mãe! Está dormindo?
Ao abrir os olhos, a primeira coisa que Tereza viu foi o semblante penalizado de Tália, e retrucou espantada:
- Este lugar deve estar me enlouquecendo. Agora dei para ver fantasmas.
- Sou eu, mãe - disse Tália. - Somos nós, Tália e Cristina. Viemos para levá-la daqui.
Tereza abriu novamente os olhos e tornou incrédula:
- Você é algum espírito endiabrado querendo se divertir às minhas custas? - Tália meneou a cabeça. - Então, ou estou louca, ou estou sonhando. Tália jamais faria
nada para me ajudar, e Cristina deve andar muito ocupada com os anjos lá do céu.
Era a primeira vez que Tereza a chamava de Tália, em lugar de Amelinha.
- Está enganada a nosso respeito - objetou Cristina. - Tália e eu somente esperávamos uma oportunidade para vir resgatá-la.
Como Tereza não respondesse, parecendo alheia ao que elas diziam, Sílvia se aproximou e pousou a mão sobre sua testa, provocando-lhe certo tremor. Poucos instantes
depois, Tereza parecia recuperar um pouco da lucidez e ficou olhando das filhas para Sílvia, tentando entender o que estava se passando.
- Quem é você? - indagou.
- Sou Sílvia, amiga de suas filhas e orientadora de Tália na vida espiritual.
- E por que está aqui?
- Vim ajudar suas filhas na tarefa de tirá-la desse lugar.
Tereza olhava-a desconfiada e tornou incrédula:
- Será que alguém se interessaria por mim?
- Deus se interessa por todas as suas criaturas.
- Queremos ajudá-la, mãe - insistiu Cristina. - Estamos aqui para levá-la conosco.
- Levar-me para onde?
- Para um lugar agradável e luminoso, onde você se sentirá livre e em paz.
Tereza estreitou os olhos e fitou Cristina atentamente.
- Você está mudada - observou.
- Eu envelheci depois que você se foi.
- Mas você continua a mesma - acrescentou, virando-se para Tália. - Não, a mesma, não. Há algo diferente em seu jeito. Perdeu aquele ar de meretriz que tanto me
irritava.
Por pouco Tália não revidou, mas Sílvia interveio a tempo e ponderou:
- Sua filha veio até aqui, de coração aberto, para ajudá-la. Acha justo ofendê-la?
- Não quis ofender ninguém. Fiz apenas uma observação.
- Não está feliz com a vinda de suas filhas?
- Posso compreender por que Cristina veio. Mas Tália, não.
- Vim porque me interesso por você - justificou Tália. - Porque quero o seu bem.
- Como pode querer o meu bem se me odeia tanto?
- Eu não a odeio.
- Esqueceu-se de tudo o que houve entre nós quando estávamos lá, na carne?
- E o que foi que houve entre nós, mãe? Sempre fiz tudo para que você gostasse de mim.
Tereza fitou-a com desgosto e concordou com indescritível tristeza no olhar:
- Eu sei. Fui eu que a odiei por toda a minha vida - Tália sentiu um choque percorrer-lhe a espinha, mas manteve-se firme. - Quer saber por quê? Porque eu não podia
permitir que você tomasse o meu homem outra vez.
- Essa nunca foi a minha intenção. E Raul... Sempre foi um grande amigo.
- Um grande amigo que não conseguia mais ocultar a paixão que sentia por você. Como eu queria que ele me amasse do jeito que a amava. Mas não! Ele só amava você.
Eu não podia permitir que ele a amasse outra vez. E não podia deixar que me envenenasse de novo! Por isso eu o matei.
Isso não tem importância agora, mãe. Não viemos aqui para lembrar as suas tristezas nem para aguçar a sua dor.
- E hoje é meu bisneto... Quem diria, hein? Você sabia que ele é meu bisneto? - Tália assentiu. - Como deve me odiar!
- Ele não a odeia. Ninguém a odeia.
- É isso mesmo, mãe - intercedeu Cristina. - Nenhum de nós a odeia. Só queremos tirá-la daqui.
Ela deu um sorriso de mofa e rebateu com desdém:
- Até parece que é assim! A quem estão tentando enganar? Se sair fosse tão fácil, pensa que eu já não teria ido embora? Ou será que vocês acham que eu gosto de viver
nessa sujeira?
- Se não tivéssemos meios de tirá-la daqui, não teríamos vindo - esclareceu Sílvia.
- Os brutamontes vão deixar?
- Não estou vendo nenhum por aqui. Você vê?
- É, não tem nenhum - concordou Tereza, olhando espantada ao redor.
- Por favor, mãe, venha conosco - implorou Tália. - Ou será que é você que me odeia tanto que não pode seguir em minha companhia? Se for assim, se preferir posso
ir embora. Mas por favor, siga com Cristina.
- Não, não é verdade que eu odeio você - sussurrou Tereza, em tom quase inaudível. - Odeio, mas é a mim mesma.
- Não diga isso.
- Durante todos esses anos em que vivi nesse lugar horrível, não passou um minuto sequer em que não me odiasse pelo que fiz a minha vida e à vida de vocês. Surpresa,
Tália? Surpresa por eu me odiar pelo mal que lhe fiz?
- O que você sente é remorso - falou Cristina -, mas poderá ter a chance de se reconciliar consigo mesma, com todos nós.
- Podemos tentar uma nova vida, todos juntos - estimulou Tália.
- Para quê? Para vocês se vingarem de mim?
- Ninguém quer vingança. - Queremos nos reconciliar no amor.
- Amor? Será que isso é possível?
Sílvia pigarreou levemente e ponderou:
- Perdão, Tereza, mas não acha que está sendo pessimista demais? Você clamou pelo auxílio dos céus. Por que é então que, quando ele chega, você o rejeita e despreza
todas as oportunidades que lhe estão sendo ofertadas?
- Ela é a ajuda dos céus? - rebateu furiosa, apontando o dedo esquelético para Tália. - Ninguém, passando pelo que ela passou, pode ser tão abnegada assim.
- Não julgue os outros por si mesma, Tereza. Tália veio até aqui sem qualquer outra intenção senão a de ajudá-la.
Reconhecendo a verdade daquelas palavras, Tereza ocultou o rosto entre as mãos e desatou a chorar. Já não agüentava mais aquele sofrimento, os anos de angústia roídos
pela culpa. Pedira ajuda, sim, mas não esperava que ela chegasse à pessoa de Tália. Com Cristina, não tinha problemas. Ela sempre fora dócil e compreensiva. Mas
Tália era arrogante e egoísta. Por que, exatamente, fora até ali? Na verdade, Sílvia tinha razão. Ela estava julgando a filha por si mesma, refletindo nela os seus
próprios sentimentos. Muito mais do que presa ao remorso, Tereza estava atada ao orgulho, que a compelia a recusar a ajuda da filha que tanto rejeitara e humilhara.
- Venha conosco, mãe - Tália insistia, causando ainda mais confusão nos sentimentos de Tereza.
- Se deixar de lado esse orgulho - alertou Sílvia, que há muito já havia lido o seu coração -, verá como é fácil se libertar. Os grilhões que a prendem são os do
orgulho, Tereza. É deles que deve tentar se soltar.
- Tem razão... - respondeu ela, a voz estrangulada. - E a que foi que me levou tanto orgulho? A isso, a nada...
- Venha conosco, mãe - chamou Cristina novamente. - Estamos esperando.
Tereza não conseguiu mais resistir. Deu livre curso às lágrimas e disparou ao encontro das filhas, atirando-se nos braços de Cristina e chorando sem parar.
- Não agüento mais! - soluçava. - Quero sair daqui! Perdoe-me, Tália, perdoe-me...!
Estava tão agitada que Sílvia achou melhor adormecê-la, partindo com ela nos braços. Levaram-na para um alojamento perto de onde Cristina vivia, deixando-a aos cuidados
da equipe médica que já a aguardava. Em seguida, Tália se despediu de Cristina, com promessas de voltar em breve para ver como Tereza estava.
- Não se preocupe com nada - falou Cristina. - Ela vai ficar bem cuidada aqui.
- Tenho certeza disso, assim como sei que ela estará melhor em sua companhia do que na minha.
- Não fale assim, Tália. Mamãe está confusa, mas gosta de você.
- Não estou preocupada com isso. Compreendo tudo o que se passou entre nós e não lhe cobro nada. Importo-me apenas com o seu bem-estar. O resto vem com o tempo.
- Você continua uma grande mulher - elogiou Cristina, enchendo os olhos de Tália de lágrimas.
Abraçaram-se e beijaram-se calorosamente, e Tália partiu em companhia de Sílvia. No peito, a sensação de que havia resgatado uma parte de seu coração que deixara
para trás, perdido na poeira dos anos.



Epílogo



Pela janela de seu quarto, Honório pensava nos dias felizes que ali vivera ao lado de Cristina, sua mulher, e da filha Diana. Foram tempos tranqüilos, apesar da
influência de Tereza nos primeiros anos, mas tudo acabou superado pelo amor que ele sentia pela esposa e a filha. A saudade de Tália, contudo, jamais o deixou viver
completamente aquela felicidade. Foi difícil superar a sua ausência, mas não há nada a que o ser humano não se acostume, e, com o passar dos anos, ele passou a não
sofrer mais por causa dela. Vendera o teatro e desistira do ramo artístico, dedicando-se às muitas livrarias que tinha espalhadas pela cidade.
A seu lado, Tália ouvia os seus pensamentos, e lágrimas lhe vieram aos olhos. Já não podia mais remediar o que havia feito. O tempo se fora, as oportunidades também.
Se quisesse uma nova chance, teria que buscar outra vida para refazer o que deixara para trás. Tália sentiu que alguém se aproximava e levantou os olhos, notando
Sílvia parada defronte a eles. Ela sorriu compreensiva e estendeu a mão, dizendo com doçura:
- Você deve vir comigo, Tália. Está chegando a hora do reencontro, onde novos planos devem ser feitos.
- Que planos?
- Projetos para uma nova vida. Não era nisso que estava pensando há pouco?
- Como assim?
- Venha comigo e verá.
Imediatamente, as duas se viram transportadas para o jardim da casinha branca de Tália. Ela começou a caminhar em direção à porta, mas estacou, percebendo que Sílvia
não a acompanhava.
- Você não vem?
Sílvia meneou a cabeça e respondeu com um sorriso enigmático:
- Há alguém que você deve encontrar sozinha. Sem questionar, Tália deu meia-volta e entrou em casa, sentindo uma forte presença ali. Mesmo sem o ver, seu corpo todo
começou a tremer, e ela, intuitivamente, sabia quem iria encontrar. Estava certa. Sentado no sofá, o rosto escondido entre as mãos, estava o único homem que verdadeiramente
amara em toda a sua vida. Durante alguns instantes, ela ficou parada na soleira da porta a olhá-lo. Ele parecia entregue a profunda meditação.
Lentamente, Tália se aproximou e se ajoelhou diante dele, tocando levemente os seus joelhos. Na mesma hora, ele levantou a cabeça e abriu os olhos, fitando-a com
admiração.
- Mauro... - disse ela, a voz embargada pela emoção de vê-lo após tanto tempo, exatamente igual a quando o vira pela última vez.
Ele não respondeu. Ergueu-a pelos braços, levantando-se com ela, e estreitou-a de encontro ao peito, chorando em silêncio, molhando seus cabelos com suas lágrimas
sentidas. Ela também se permitiu chorar abraçada a ele, e os dois permaneceram ali durante alguns minutos.
- Não sabe o quanto desejei vê-la - falou ele por fim, a voz estrangulada pela emoção.
- Por que você me abandonou? - soluçou ela, logo se arrependendo do que havia dito. Não queria começar com cobranças.
- Eu... Fui covarde... Perdoe-me... Abraçou-a novamente, como se assim pudesse impedi-la de reavivar aquelas lembranças tristes.
- Não, Mauro, sou eu quem deve lhe pedir perdão. Não tenho o direito de lhe cobrar nada.
- Você tem todo o direito de me cobrar o que quiser. Eu a abandonei, menti, deixei-a sofrer achando que havia morrido. Fui covarde, sim.
Tália fechou os olhos, tentando evitar que as lágrimas engrossassem, e afastou-se dele, indo em direção à janela.
- Compreendo a sua atitude e não o culpo.
- Sabe que eu devia aquilo a Giannina, não sabe? E os meus filhos...
- Sei. A vida cuidou de me tomar o que eu havia lhe tirado um dia. Você pertence mais a ela do que a mim.
- Não, perdoe-me. A verdade é que fui um covarde. Acovardei-me diante da verdade e de você. Não podia admitir para mim mesmo que eu era um homem condenado a viver
o resto da vida à sombra de sua mulher.
- Quanto orgulho, Mauro. E para quê?
- Não sei...
Ele lhe pareceu muito frágil naquele momento, e Tália se aproximou.
- Não devemos nos atormentar mais. Tudo isso é passado e aconteceu do jeito que tinha que ser.
- Mas eu amo você, Tália. Preciso do seu perdão.
- É difícil saber quem precisa do perdão de quem. Ou devemos nos perdoar reciprocamente, ou ninguém precisa de perdão. Agimos conforme as necessidades da vida.
- A vida me deu a oportunidade de me reajustar com Giannina. Preciso agora de uma chance para me reajustar com você.
- Nós sempre nos amamos, Mauro. O amor não precisa de reajustes. Ele tudo compreende e supera. Vamos superar isso também.
Tantos anos de separação e sofrimento não foram suficientes para destruir o amor de Tália e Mauro. As mágoas, os ódios, os ressentimentos, tudo isso cede facilmente
diante da força poderosa do amor. Abraçaram-se com ternura e choraram de mansinho, deixando fluir a emoção. Estavam assim enlaçados quando leves batida na porta
se fizeram ouvir, e Tália se afastou para abrir, enxugando os olhos com as costas da mão.
- Olá, Tália - era Sílvia, que entrou com seu habitual sorriso amistoso. - Como estão as coisas por aqui?
- Estamos bem - afirmou Tália.
- Entenderam-se?
- Sim.
- Ótimo. Sentem-se prontos para ouvira proposta que tenho a lhes fazer?
- Proposta? - interessou-se Mauro. - De que se trata?
- Não querem uma nova chance para acertar os ponteiros com a vida?
- É claro.
- Pois há mais alguém interessado em acertar-se com a vida também.
- É mesmo? Quem?
- Por que não vêm comigo?
Em silêncio, os dois a acompanharam, caminhando pela rua iluminada da cidade astral, até que chegaram a um pavilhão amplo e arejado, com várias mesas espalhadas,
onde alguns espíritos confabulavam como se estivessem tratando de algum negócio. Entraram sem dizer nada, e Tália percebeu que vários daqueles espíritos eram ainda
encarnados, visto estarem ligados à matéria por tênue e sutil cordão de prata. Sílvia os levou para uma mesa vazia, e eles se sentaram. Em breve, por outra porta,
Eduardo e Gabriela entraram acompanhados por uma espécie de mensageiro.
- Aqui estão eles - disse o mensageiro, indicando-lhes duas cadeiras vazias.
- Obrigada - falou Sílvia.
Eduardo e Gabriela se sentaram e olharam comovidos para Tália e para Mauro, que o rapaz sabia ter sido o grande amor de sua avó.
- O que significa isso? - indagou Tália, completamente espantada.
- Trouxe os dois aqui porque eles vão se casar em breve, e há algumas coisas que querem deixar acertadas - esclareceu Sílvia.
- O quê?
- Por que você mesmo não fala Eduardo?
O rapaz pigarreou e apertou a mão de Gabriela, que o encorajou com um sorriso.
- Bem - começou ele, um tanto quanto sem jeito -, sei que todos nós aqui sofremos muito com o que aconteceu há setenta anos. Para vocês, foi ainda em sua última
passagem pela terra, para mim, na anterior. De toda sorte, creio que estamos todos ligados às teias do destino e pensei se não seria uma boa idéia se pudéssemos
juntos, tentar dissipar nossas mágoas e diferenças.
- Como assim, Eduardo? - tornou Tália, já começando a entender.
- O que ele quer dizer - intercedeu Gabriela - é que nós vamos nos casar e pretendemos ter filhos. Bom, em virtude de tudo o que aconteceu entre você, Tália, e Eduardo,
pensamos se você não gostaria de, daqui a alguns anos, voltar como nossa filha.
Tália emudeceu, comovida demais para falar. Seus olhos, porém, diziam tudo, e ela apertou as mãos dos dois.
- E onde é que eu entro nisso? - retrucou Mauro. - Não gostaria de ser seu irmão.
- Você terá a chance de reencarnar antes, se quiser - explicou Sílvia. - Daqui, iremos conversar com seus possíveis pais. São pessoas amigas suas que, nesse momento,
se encontram vivendo no orbe. Mas o que preciso saber é se vocês aceitam essa sugestão.
- Se aceitamos? O que mais desejo é poder compensar Tália por todo o mal que lhe fiz.
- Não fale assim. Vocês não vão reencarnar juntos para compensar males. Vão para acrescer experiências às vidas um do outro e para continuar a desenvolver o amor
que já é uma conquista de vocês.
- Ainda encontrarei minha filha? - perguntou Tália.
- Sim, e a chance de se entender com ela também é muito boa. Então? O que me dizem? Concordam?
- Sim - exclamaram os dois, em uníssono.
- Excelente! Não será para agora, mas para daqui a uns quatro ou cinco anos. Mauro irá primeiro, para se preparar antes de sua chegada. Precisamos acertar algumas
coisas, como a profissão de cada um, orientação religiosa e algumas situações fundamentais para o crescimento de vocês. Mas, no geral, podem programar uma vida saudável
e feliz, tanto na infância quanto na fase adulta.
Permaneceram ainda algum tempo traçando metas, até que a noite chegou ao fim, e Eduardo e Gabriela tiveram que retornarão corpo físico. Estavam todos felizes, principalmente
Tália, que via naquela nova encarnação a oportunidade de viver plenamente o seu amor por Mauro. E todos agora poderiam aproveitar a chance de ser felizes.

***

Quando Tália e Sílvia entraram no quarto do hospital, a primeira coisa que viram foi Diana debruçada sobre a cama do pai, apertando a sua mão e chorando baixinho.
Sentados em um sofazinho, mais ao fundo, Douglas e Eduardo pareciam rezar. Tália se aproximou da cama dele e cumprimentou os espíritos auxiliares, que estavam ali
para ajudá-lo em seu processo de desligamento.
- Mandamos chamá-la para que acompanhasse a sua partida - justificou um dos espíritos. - Ele sempre foi um homem bom e fez por merecer um desenlace sereno e digno,
e queremos que seja você a primeira pessoa que ele veja quando chegar deste lado.
- Obrigada - respondeu Tália, emocionada. - Fiquei muito feliz com o seu chamado e estou aqui para ajudar no que for possível.
- É agora - avisou o outro.
Nesse instante, Honório deu um profundo suspiro, buscando ainda um pouco do ar que começava a lhe faltar, e, praticamente desligado da matéria ergueu a mão poucos
centímetros acima da cama e gemeu baixinho:
- Tália...
Em seguida, sua mão tombou na direção dela, e ele se desprendeu completamente, deixando no leito o corpo físico, ao mesmo tempo em que os dedos de seu corpo astral
tocavam as mãos de Tália.



Fim
















161

166 i



174







184

114



120

100

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203







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zzo
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MÔNICA DE CASTRO

EM

COM O AMOR NÃO SE BRINCA





(Ditado por Leonel_Dez 2002_355 Pág.)




Para meus sobrinhos, Fernando e Felipe,
Filhos do meu coração.










Sinopse:

Há quem diga que o amor é à base de tudo, porém eles se
esquecem que:

Há os que se anulam em nome do amor e acabam abandonados.

Há os que investem tudo nos outros acreditando que serão
correspondidos e vivem reclamando do egoísmo alheio.

Há os que sonham com um amor perfeito, pretendem encaixar o ser
amado nesse modelo e acabam descobrindo que cada um é como é
e não temos poder para mudar ninguém.

Há os que confundem paixão com amor. Não percebem que paixão
é admirar no outro o que recalca em si. Quando a ilusão projetiva
desaparece percebemos o ridículo dos nossos atos apaixonados.

Há os que confundem apego com amor. São egoístas que esperam
do outro exatamente o que não se dão.

O amor verdadeiro nunca faz sofrer. Traz alegria, motivação e
prazer, agindo sempre com seu poder de harmonizar as relações
humanas.

Quando ser feliz, passa a ser um objetivo sério nós logo percebemos
que COM O AMOR NÃO SE BRINCA.

Zibia Gasparetto




CAPÍTULO 1

O dia amanheceu chuvoso e frio, mas todos estavam de pé logo
cedo, prontos para seguir a urna funerária até ao pequeno cemitério
da fazenda, onde Licurgo seria enterrado ao lado da filha, Aline, e
do genro, Cirilo. O cortejo seguia em silêncio, Palmira estampando
no semblante toda a dor e a tristeza de haver perdido o
companheiro de tantos anos. A seu lado, os filhos, Fausto e Rodolfo,
tentavam ampará-la e consolá-la da melhor forma possível. Um
pouco mais atrás, Camila, filha de seu primeiro casamento, ia
cabisbaixa ao lado do marido e dos filhos, Dário e Túlio, talvez
recordando as agruras por que passara naquelas terras. Junto de
Palmira, sua irmã, Zuleica, já bastante idosa, seguia de braços
dados com a filha Berenice.

Ao fundo, Terêncio, o capataz, chorava em silêncio. Amara seu
Licurgo e sentiria muito sua falta. Sabia que nem todos ali gostavam
dele e muita coisa ele já fizera a seu serviço, mas Licurgo sempre
estivera a seu lado, protegendo-o e defendendo-o, até da própria
filha. Mas agora, o que seria dele? Já estava velho também. O que
faria se o mandassem embora? Abaixou a cabeça e começou a
chorar, até que sentiu uma mão pousar sobre seu ombro e virou-se
bruscamente. Era Aldo, o outro capataz, que lhe sorriu
compreensivo. Ele respondeu ao sorriso com outro, meio sem jeito,
e desvencilhou-se do companheiro, indo postar-se bem atrás de
dona Palmira.

Parada um pouco mais além, uma mulher ocultava o rosto no manto
de veludo negro e puído que lhe caía sobre as costas. Assistia a tudo
à distância, e apenas seus olhos eram visíveis. Havia muita gente no
enterro, e ninguém lhe prestou atenção. Apenas Terêncio, ao passar
por ela, fitou seu rosto, e uma sombra de reconhecimento
perpassou-lhe a mente. Aquela mulher era-lhe familiar, mas não se
lembrava de onde a conhecia. No entanto, aqueles olhos... Onde já
vira aqueles olhos escuros, de um verde quase cinzento?

Terminada a cerimônia fúnebre, todos voltaram para casa, e
Palmira ia pensando em sua vida. O marido morrera já bem idoso e
lhe deixara dois filhos maravilhosos. Olhando para eles, sentiu um
aperto no coração. Eram gêmeos idênticos, e ela quase morrera ao
dá-los à luz. Lembrou-se do parto difícil que tivera e do dilema para
amamentá-los, tendo que contar com o leite de Tonha para não
matar seus meninos de fome.

Assim como Palmira, a negra Tonha também tivera um parto
dificílimo, e a criança, pobrezinha, não resistira. Josefa e a velha
Maria, antigas escravas da fazenda, tudo fizeram para salvá-lo, mas
o pequeno nascera mesmo sem vida. Tonha erguera o corpo do
filhinho morto e chorara. Fora melhor assim. Ao menos a criança
não teria o desgosto de viver como escrava. Seu filho nascera livre.
Ao morrer, sua alma se libertara, e ele jamais conheceria o peso da
chibata.

Por uma estranha coincidência, Palmira estava para dar à luz na
mesma época em que Tonha. Quatro dias depois do bebê de Tonha
nascer, quando ela já havia voltado para a senzala, sentindo ainda
as dores do parto, Palmira começara a sentir contrações, e a
parteira fora chamada às pressas. Palmira tivera gêmeos e
precisava de uma ama-de-leite para alimentá-los. Mandaram
chamar Josefa, indagando-lhe quem tivera filhos pela mesma época,
que pudesse amamentar os pequenos. Contavam com uma negra
forte e robusta, de nome Jacinta, que tivera filho poucos dias antes.
Jacinta, no entanto, não resistira ao parto e morrera. Josefa,
acabrunhada, respondera:

— Sinto muito, sinhá, mas a única escrava assim é Tonha.
Jacinta teve criança, mas morreu...
— Tonha? Não quero aquela negra nojenta.
— Então, a sinhá me desculpe, mas não tem outra, não.
— Não é possível que ninguém mais tenha dado cria por esses
dias - objetara Licurgo.
— Não deu não, sinhô. Tenho certeza.
— E agora, Licurgo - considerara Palmira -, o que vamos fazer?
Não tenho leite para os meninos.

Josefa abaixara os olhos, à espera que lhe dissessem o que fazer.
Licurgo mandara que saísse e esperasse na cozinha. Resolveriam e,
então, mandariam chamá-la. Logo que ela saíra, Palmira voltara-se
para o marido e exclamara:

— Não vou aceitar o leite daquela negra assassina!
— Palmira, pense bem. A idéia também não me agrada, mas não
temos escolha. Nenhuma outra escrava deu cria por esses
dias, só Tonha.
— Não, não quero. Mande Terêncio à vila comprar uma escrava
leiteira.
— Mas, minha querida, e se não houver nenhuma à venda?
— Então, mande-o à vila vizinha. E mande Aldo à outra. Alguém
há de encontrar uma ama-de-leite.
— E enquanto isso, nossos filhos morrem de fome? Pense bem,
Palmira, uma escrava leiteira não é assim tão fácil de
encontrar. E isso pode levar dias.
— Oh! Licurgo, por que não pensou nisso antes de nossos filhos
nascerem?
— Eu pensei. Jacinta seria nossa ama-de-leite, mas teve que
morrer. Que azar!
— E agora?
— Sinto muito, meu bem, mas não vejo outra saída. Temos que
chamar Tonha.
— Já disse que não quero aquela negra. Perdemos três filhos por
causa dela, não haveremos de perder outros dois.
— Palmira, seja razoável. Na verdade, sabemos que Tonha não
matou ninguém.
— Como é que sabe? Afinal, só ela sobreviveu. Não acha isso
estranho?
— Por que ela faria isso? Estava apaixonada, ganharia a
liberdade. Não vê que isso não faz sentido?
— Não sei. Vingança. Como vou saber o que se passa no coração
desses negros ingratos? Não, meu caro, desculpe, mas tenho
todos os motivos do mundo para odiá-la e não a querer perto
de nossos filhos.

Licurgo, durante alguns segundos, estacara e ficara olhando para a
mulher. Não fazia nem um ano que perdera Aline, sua filha, e
lembrava-se de tudo como se fosse ontem. Lembrava-se de que
dera Tonha de presente a Aline quando ela era ainda menina, e que
a escrava passara a ser sua protegida. As meninas cresceram juntas
e, por uma cruel ironia do destino, Inácio, sobrinho de Palmira, por
ela criado como se fosse seu próprio filho, acabara se apaixonando
pela negra Tonha, com quem mantivera sigiloso romance. Aline, por
sua vez, casara-se com Cirilo, filho do primeiro casamento de
Palmira e irmão de Camila. Contudo, Constância...

Ele se lembrava bem de Constância. Uma moça linda, filha, de
Zuleica, irmã de Palmira, era uma das preferidas no coração da
mulher. Constância também se apaixonara por Inácio e tudo fizera
para afastá-lo de Tonha. Não fosse seu ódio por Aline também, e
ele, Licurgo, nem teria se importado com suas maldades para com a
escrava. Mas Constância pretendia atingir também Aline, e isso ele
não podia permitir, e acabara por expulsá-la dali. Depois, soubera
que a moça voltara para a corte e que fugira logo após o casamento
de Aline. Para onde fora? Ninguém o sabia.

Os olhos de Licurgo encheram-se de lágrimas quando se lembrara
da noite de núpcias da filha. Ele fora chamado às pressas por causa
de um incêndio na fazenda Ouro Velho, para onde ela e Cirilo
haviam ido, juntamente com Tonha e Inácio. Inexplicavelmente, um
incêndio começara, talvez por causa de um monte de palha seca
deixado sob a janela do quarto dos noivos. O incêndio destruíra toda
a ala sul da mansão, e Aline, Cirilo e Inácio padeceram sob as
chamas. Apenas Tonha se salvara. Disseram-lhe que Aline, tentando
salvar a negra, empurrara-a para fora do quarto no exato instante
em que uma pesada viga desabara sobre ela. Fora uma tragédia
horrível, e só Tonha sobrevivera.

Pensando nisso, Licurgo não podia recriminar Palmira. Fora muito
estranho, era verdade, e ele quase mandara matar a negra. Em vez
disso, optara por fazê-la sofrer todas as dores e humilhações de sua
condição de escrava, atirada na senzala, experimentando na carne
a ponta afiada do chicote.

Voltando à realidade, Licurgo considerara:

— Eu sei. Não tiro seus motivos. Em todo caso, não acredito que
tenha sido ela. E depois, creio que ela já pagou um preço
muito alto por seu atrevimento. Vamos, Palmira, reconsidere,
pelo amor de Deus! As crianças estão famintas e precisam de
leite. Ou quer que elas morram de fome?

Ao ouvir isso, Palmira não teve outro remédio senão aceitar o leite
de Tonha. Afinal, era uma escrava e estaria apenas cumprindo suas
ordens. Desse dia em diante, Tonha abandonara a senzala e voltara
para dentro de casa, alojando-se no quarto dos meninos. Seria
responsável por sua criação, mas que não contasse com favores
especiais. Cumpriria seu dever com zelo e perfeição, porque era
uma escrava e devia obediência a seus senhores. Mas não fosse
esperando tratamento especial por causa disso. Ela fora chamada
apenas porque as crianças precisavam de leite, e não por uma
deferência ou preferência pessoal. Era apenas um dever que tinha a
cumprir, e Palmira esperava que ela o desempenhasse da melhor
forma possível. Caso contrário voltaria para a senzala, não sem
antes passar pelo tronco.

Assim, Tonha passara a ama-seca dos meninos. A princípio, seria
responsável por eles apenas durante o período de amamentação e,
logo em seguida, voltaria para a senzala. No entanto, Tonha
desvelara-se em atenção e carinhos para com Fausto e Rodolfo, e
os meninos acabaram se apegando a ela. Embora Palmira e Licurgo
tudo tivessem feito para levá-la de volta à senzala, o fato é que as
crianças viviam a chamá-la e só iam para a cama se ela fosse junto,
para contar-lhes as histórias maravilhosas que conhecia. Palmira não
deixara de sentir uma pontadinha de ciúmes, mas acabara cedendo
à vontade dos filhos, e Tonha fora ficando. Mesmo depois que
cresceram, ela continuara como escrava de dentro, substituindo a
velha Josefa, que falecera alguns anos antes.

Nesse ponto, alcançaram à casa grande, e Palmira pediu licença
para se retirar. Estava cansada e precisava repousar. Afinal, já
ultrapassara os setenta anos e as fortes emoções dos últimos dias
acabaram por deixá-la extremamente fatigada. Já ia subindo as
escadas quando ouviu a voz da filha atrás de si:

— Quer que lhe faça companhia, mamãe?
— Não, Camila, obrigada. Preciso ficar sozinha um pouco.

Subiu vagarosamente. A cada degrau que avançava, ia pensando na
filha. Camila fora uma moça bonita e inteligente, embora sem juízo
algum. Perdera a honra para um canalha de nome Virgílio, a mando
de Basílio, um antigo namorado, que armara uma trama para levá-
la ao altar, só para ficar com seu dinheiro. Mas Camila, para
surpresa geral, não aceitara desposá-lo, optando por entregar a vida
a Deus e enclausurando-se num convento em São Paulo. No
entanto, poucos anos após sua partida, Palmira recebera a notícia
de que ela iria se casar. Fora um alvoroço geral. Ninguém podia
compreender o que havia se passado. Mais tarde, quando Palmira e
Licurgo chegaram para o casamento, souberam de tudo. O rapaz,
Leopoldo, era sobrinho da madre-superiora e se encantara com ela,
tendo sido logo correspondido. A princípio, a madre não quisera
permitir julgando aquele amor uma blasfêmia. Mas depois, vendo
que os jovens se amavam sinceramente, e não tendo Camila ainda
feito o voto, resolvera ceder. Os dois se casaram em cerimônia
simples e sem luxo, e continuaram a viver em São Paulo, onde
Leopoldo era dono de próspero negócio.

Apesar de tudo, Palmira ficara feliz. Não desejava mesmo que a
filha terminasse seus dias num convento, embora concordasse que,
dada sua condição de moça desonrada, aquela seria a melhor
solução. No entanto, se Camila encontrara um homem que a
aceitara do jeito que era, e que não se importava em desposar uma
moça já deflorada, para ela estava tudo bem. Licurgo também
ficara satisfeito. A enteada já lhe havia dado trabalho demais, e
seria um alívio saber que estaria segura e bem cuidada por um
homem que a amasse e a sustentasse.

Palmira chegou a seu quarto e se deitou, virando-se para a janela e
olhando o horizonte. Já era quase meio-dia, e o céu continuava
cinzento, com nuvens ameaçando chuva. Estava cansada, muito
cansada. Vivera muitos anos ali, naquela fazenda, sob a guarda de
Licurgo, e fora feliz com ele. Ao contrário do que muitos diziam, ele
não fora um homem impiedoso e cruel; fora justo. Ainda com a
imagem do marido no pensamento, adormeceu. Já não o tinha
mais, mas ao menos possuía filhos. Eles, com certeza, não a
abandonariam, e ela podia estar certa de que terminaria seus dias
ali, junto dos seus".

CAPÍTULO 2

Fausto entrou na sala no exato momento em que a porta da frente
se abria, dando passagem a uma jovem, que entrava esbaforida.
Chegava acompanhada de um escravo e, logo que entrou, soltou no
chão o bauzinho que levava, suspirando aliviada.

— Oh, meu Deus, até que enfim! - desabafou.
— Perdão, senhorita - observou Fausto -, mas não creio que a
conheça.

A moça olhou-o atordoada. Entrara tão apressada que nem sequer
percebera a presença de alguém ali. Mais que depressa, tratou de
se apresentar.

— Oh! Senhor, queira me desculpar. Meu nome é Júlia Massada,
e sou irmã de Leopoldo, marido de Camila. Conhece-a?

Fausto acenou com a cabeça, e ela continuou:

— Pois é. Vim aqui para o enterro do padrasto de Camila, mas
creio que cheguei um pouco tarde.
— Sem dúvida. Mas vamos, entre. Venha descansar.

Júlia sentou-se na poltrona e suspirou. Estava exausta. Viajara o dia
inteiro e, ainda por cima, acabara se perdendo no caminho. Ela
olhou rapidamente para o escravo, que permanecera de pé,
segurando a bagagem, e prosseguiu:

— O senhor é dono da casa?
— Sou sim. Chamo-me Fausto, e Licurgo era meu pai.
— Oh! Sinto muito. Meus sentimentos.
— Obrigado.

Ela ficou a olhá-lo, meio constrangida, até que continuou:

— Senhor Fausto, será que podia chamar minha cunhada? Sei
que me demorei demais e não quero incomodar, mas...
— Não é incômodo algum. Camila nos disse de sua chegada, mas
não a esperávamos mais.
— É verdade. Peço que me perdoe. Não conhecia a estrada e
acabei por me perder.
— Se me permite a indiscrição, senhorita, por que não veio com
seu irmão e sua cunhada? As estradas são perigosas para
mocinhas desacompanhadas.
— Mas não vim só. Trajano me acompanhou - e indicou o
escravo, que permanecia ainda na mesma posição. - Trajano!
Ponha essas coisas no chão!

O escravo obedeceu e continuou ali calado, sem dizer nada, até que
Fausto continuou:

— Pois é senhorita Júlia, até agora não me disse por que veio
só...
— Oh, é mesmo. Bem, é que tive que resolver uns problemas lá
em São Paulo e só então pude vir.
— Não pretendo ser intrometido, mas que problemas seriam
esses, que tiveram que retardar sua viagem?
— Que problemas? Oh, sim, problemas.... Bem, senhor Fausto,
digamos que eu estava ocupada com meus... Afazeres
pessoais.

Fausto, percebendo que ela se esquivava de revelar o motivo de sua
demora, achou melhor não insistir. Não queria parecer indelicado,
ainda mais porque a moça o impressionara sobremaneira. Ela era
linda, e ele estava admirado diante de tanta beleza.

A porta da frente se abriu e Camila entrou, em companhia de
Leopoldo. Tinham ido dar um passeio a fim de desanuviar o
pensamento, quando avistaram a carruagem de Júlia parada na
porta.

— Júlia, querida! —exclamou Camila, abraçando-a. — Já
estávamos preocupados. Por que demorou tanto?

Ela deixou-se abraçar e fitou Fausto pelo canto do olho. Ele a olhava
com ar divertido, cheio de curiosidade.

— Perdoem-me, mas é que tive uns contratempos – finalizou
Júlia.

Júlia lançou para eles um olhar extremamente significativo, que
tanto o irmão quanto a cunhada pareceram compreender, e eles
mudaram de assunto, deixando Fausto frustrado em sua
curiosidade. Virando-se para Trajano, Leopoldo acrescentou:
— E então, Trajano, cuidou dela direitinho?
— Cuidei sim, sinhô. A sinhazinha Júlia é uma ótima moça e não
deu trabalho algum.
— Muito bem.
— Vejo que já conheceu meu irmão... Fausto, não é? — indagou
Camila, e ele assentiu.
— Conheci, sim.
— Fausto — disse Leopoldo —, como pode perceber, Júlia é
minha irmã mais moça. E a caçula de onze filhos. Por isso
nossa diferença de idade é tão grande. Júlia podia ser minha
filha.
— E é como se fosse — acrescentou Camila. — Depois que meus
sogros morreram, Júlia foi morar conosco, e nós nos
afeiçoamos muito a ela. É um amor de menina.
— Obrigada, Camila.

Nesse momento, Palmira entrou na sala, amparada por Rodolfo, e
foi sentar-se ao lado de Júlia, perguntando a Camila:

— Quem é a mocinha?
— Deixe que lhe apresente mamãe. Esta é Júlia, irmã de
Leopoldo, de quem já lhe falei.
— Júlia... Júlia. Ah, sim, Júlia, sua cunhada. Como vai, minha
filha?
— Vou bem, obrigada, e a senhora?
— Como vê nada bem - respondeu de má vontade. — Como
pode uma viúva estar passando bem, não é mesmo?
— Desculpe-me senhora. Não quis aborrecê-la.
— Não aborreceu. Eu é que lhe peço desculpas. Não quis ser
grosseira. É que ainda não me acostumei.
— Deixe disso, mamãe - cortou Rodolfo, impressionado com a
figura de Júlia.
— Júlia, esse é meu irmão Rodolfo — apresentou Fausto. —
Somos gêmeos.
— Sim, eu sei, Camila me disse. E mesmo que não soubesse, não
poderia deixar de notar. A semelhança entre ambos é
extraordinária!
— E sim, minha filha — concordou Palmira. — Mas não se
preocupe. Com o tempo irá se acostumar e aprenderá a
diferenciá-los. Se observar bem, verá que Fausto possui as
maçãs do rosto um pouco mais salientes do que Rodolfo. Além
disso, Rodolfo tem um sinal perto da orelha esquerda, que
Fausto não tem.
— É verdade — disse Júlia, estudando-lhes os rostos. — Mas a
diferença é muito sutil. Ninguém nota.
— Bem, por ora chega — disse Camila. — Vou mostrar a Júlia o
seu quarto. Ela deve estar cansada.
— Obrigada, Camila. Estou realmente exausta. Trajano pode
trazer minhas coisas, por favor?

O escravo apanhou a bagagem de Júlia e saiu atrás dela. Já na
escada, Camila observou:

— É melhor não falar assim com Trajano por aqui.
— Assim como?
— Não seja tão educada. Já lhe disse que os escravos aqui não
são tratados feito gente.
— Mas eu não falei nada de mais.
— Não importa. Mamãe não gosta de negros, e não queremos
dar-lhe motivos para começar uma questão, não é mesmo?
— Claro que não. Mas onde ele ficará?
— Na senzala, junto com os outros escravos.
— Mas, Camila, Trajano é escravo de dentro.
— Não aqui. Não há escravos de dentro aqui. Só as mulheres
trabalham na casa grande.

Júlia olhou para Trajano com olhar penalizado, e este a consolou:

— Não se preocupe sinhazinha, estarei bem.

Ela suspirou e entrou no quarto que Camila lhe indicara. Não
gostava daquilo, mas o que poderia fazer? Trajano era um escravo
meigo e dócil, e fora seu amigo e protetor durante toda a sua vida.
Como poderia deixá-lo sozinho naquela senzala imunda? No entanto,
teve que concordar com a cunhada. Era melhor não facilitar.
Despediu-se de Camila e de Trajano e entrou, desabando na cama
logo que a porta se fechou, adormecendo imediatamente. Estava
exausta e só podia pensar em dormir.

Júlia só despertou no dia seguinte, bem cedo. Levantou-se da cama
e desceu para a cozinha. Estava com fome e saiu em busca de um
café bem quentinho. Ao chegar, viu que uma escrava preparava o
café, cantando uma música numa língua que ela não conhecia.
Achou aquela música muito bonita e, quando a negra terminou,
cumprimentou da porta:

— Bom dia!

A escrava assustou-se e voltou-se para ela.

— Oh! Sinhazinha, perdão. Não sabia que estava aí.
— Não foi nada. Achei muito bonita a sua música.
— A sinhazinha gostou?
— Hum, hum. Onde a aprendeu?
— Ah, sinhazinha, são cantigas lá da minha terra. Ninguém se
lembra mais...
— Como é o seu nome?
— Tonha, sinhá.
— Tonha? Você é que é a Tonha?

Tonha olhou-a meio espantada. De onde é que aquela sinhazinha a
conhecia? Ela nunca a vira por ali. Sequer estivera presente no
enterro. Quem seria ela? Um pouco desconfiada, respondeu
hesitante:

— Sou sim. Por que a sinhazinha quer saber?
— Oh! Desculpe-me, nem me apresentei. Sou Júlia, cunhada de
Camila. Cheguei ontem.
— Ah, então a sinhazinha é que é a irmã de sinhô Leopoldo?
— Sou eu mesma. É que me atrasei e não consegui chegar a
tempo para o enterro.

Tonha olhou para ela e sorriu. Aquela menina, além de linda, era
também muito amável. Tinha um semblante sereno, um ar assim de
quem respeita a vida.

— A sinhazinha quer café? - perguntou afinal.
— Por favor. Cheguei ontem à tarde e estava tão cansada que
nem comi. Caí na cama e dormi até hoje.
— Se a sinhazinha não se importar de comer na cozinha, sente aí
que lhe preparo um café da manhã especial.

Júlia sentou-se e Tonha serviu-lhe café, leite, pão, manteiga, queijo,
bolo e outras guloseimas que havia preparado. Gostara muito
daquela menina e queria agradá-la apenas para ver seu ar de
satisfação. Estava parada, admirando Júlia comer, quando escutou
batidas na porta. Voltou-se e deu de cara com Trajano, cabeça
baixa, segurando nas mãos o chapéu amassado.

— Ah! Trajano, entre! — chamou Júlia. — Está com fome?

Ele assentiu, e ela convidou-o a sentar-se à mesa. Tonha,
desacostumada àquelas intimidades, disse alarmada:

— Sinhazinha, perdoe-me o atrevimento, mas sinhá Palmira não
vai gostar nadinha de saber que a sinhá tomou café com um
escravo.
— Ora, Tonha, mas o que é isso? Dona Palmira está dormindo.
— Mas ela pode ficar sabendo...
— Deixe de bobagens, Tonha. Trajano é meu amigo. E depois,
quem contaria a ela? Você?
— Deus me livre, sinhá, que não sou dada a mexericos.
— Então não se preocupe. Trajano está acostumado a sentar-se
à mesa conosco e não fará feio. Você verá.
— Não duvido disso, sinhá. Mas é que me preocupo também com
o rapaz. Sinhá Palmira pode se zangar e...
— Sinhá Palmira não é dona de Trajano e nada pode fazer contra
ele.
— Eu sei, mas pode ficar de birra com ele. É isso o que quer?
Que ela implique com o moço?

Júlia pensou por alguns instantes e concordou:

— Tem razão, Tonha. Não vale a pena provocar dona Palmira.
Trajano pegue seu café e vá tomá-lo lá no terreiro. É melhor.
— Também acho sinhá. Não quero criar problemas.

Trajano pegou sua refeição e saiu. Era um bom rapaz e gostava
muito de Júlia para causar-lhe qualquer tipo de aborrecimento. E
depois, não se importava. Era escravo mesmo, e lugar de escravo
era na senzala. Eram poucos os que, como os Massada, tratavam
negro feito gente.

Depois que ele saiu, Tonha indagou, curiosa:

— A sinhazinha vai me desculpar, mas não acha que esse seu
jeito de tratar o escravo pode acabar mal?

Júlia olhou-a com ar divertido. Conhecia a história de Tonha e disse:

— Ora, Tonha, mas logo você? Pelo que soube, tinha uma
amizade um tanto quanto especial com a filha de seu Licurgo,
Aline.

Tonha parou estarrecida e, escolhendo as palavras, respondeu:

— Desculpe sinhazinha, mas como sabe de Aline?
— Sei de tudo o que aconteceu nesta casa. Minha cunhada me
contou.
— Ah, sinhá Camila, é verdade. Ela conhece a história toda.
— Conhece sim. E gosta muito de você.
— Eu sei. Também gosto muito dela, e fiquei com muita pena
quando...
— Pode falar Tonha, sei disso também. Meu irmão e eu sabemos
tudo sobre Camila e não nos importamos. Ela é como uma
mãe para mim. Tonha lembrou-se de Aline, do quanto era sua
amiga e do quanto se amavam. Por que tivera que morrer?
Subitamente, duas lágrimas rolaram de seus olhos, e ela
voltou o rosto para a janela, tentando ocultá-lo de Júlia.
— Você está chorando! Oh, sinto se a deixei triste. Não devia ter
tocado nesse assunto.
— Não foi nada, sinhazinha, deixe estar. É que senti saudades...
— Posso imaginar. Mas, então, não falemos mais nisso. Não vale
a pena desenterrar os mortos, porque eles não podem se
levantar e voltar a viver entre nós.
— Tem razão, sinhazinha, desculpe.
— Deixe de bobagens. Você não tem nada do que se desculpar.
— Sinhazinha?
— Hum? O quê?
— E esse rapaz, o Trajano?
— O que tem ele?
— É um bonito rapaz, não é mesmo?
— É sim, Tonha, muito bonito.
— A sinhazinha e ele... Quero dizer... Vocês não... Vocês não
estão...

Júlia soltou uma gargalhada e respondeu, gracejando:

— Enamorados, você quer dizer? Não, Tonha, claro que não. Não
que isso fosse impossível. Trajano é mesmo um rapaz muito
bonito, e eu não tenho nada contra os negros. No entanto,
Trajano e eu fomos acostumados um ao outro desde
pequenos. Quando minha mãe morreu, eu era ainda muito
criança e fui morar com meu irmão. Trajano ajudou a cuidar
de mim, e tornamo-nos muito amigos.
— Fico feliz em saber disso, sinhazinha. O amor entre um branco
e um negro pode ser muito doloroso...
— Eu sei Tonha, nem precisa dizer. Camila me contou sobre seu
romance com o primo dela, Inácio, e o quanto você sofreu
com sua morte.
— Foi muito triste, sinhá. Todos aqui passaram a me acusar, até
que os meninos, Rodolfo e Fausto, nasceram.
— Eu sei Tonha.
— Sabe sinhá, eu tive um filho, mas ele morreu...
— Sei disso também, e sinto muito. O destino, às vezes, pode ser
bem cruel.
— Será? Será que não foi melhor ele morrer ainda bebezinho? Ao
menos assim não tive que sofrer vendo o sofrimento dele.
— Não sei. Mas, por favor, não pense mais nisso. Não falemos
mais de coisas tristes.

De repente, a sineta tocou e Tonha foi atender. Era sinhá Palmira,
mandando servir o café. Como Júlia já havia comido, levantou-se da
mesa, apressada, e saiu para o terreiro.

— Diga a Camila e aos demais que saí para dar uma volta —
pediu.
— Pode deixar sinhá.
— Obrigada, Tonha.

Júlia saiu para o terreiro e foi ao encontro de Trajano, convidando-o
para um passeio. O escravo levantou-se sorridente e saiu em
companhia da moça, seguindo pela estradinha que conduzia à
estrada principal.

A mesa do café, a família encontrava-se reunida: Palmira, Leopoldo,
Camila e os filhos, Rodolfo, Fausto, Zuleica e sua filha Berenice.

— Tia Palmira — iniciou Berenice —, mamãe e eu devemos partir
amanhã pela manhã.
— Mas, já? — indagou Palmira, surpresa. — Pensei que fossem
se demorar ainda um pouco mais.
— Sinto titia, mas Miguel ficou sozinho cuidando dos negócios
para que pudéssemos viajar. Partiremos para Lisboa daqui a
quinze dias, e sabe como são os homens sem suas esposas,
não é mesmo?
— Pretendem demorar-se?
— Um pouco. Miguel já está há muito tempo longe e sente
saudades da família.
— Tem razão, minha querida. Vão. Compreendo. E vocês,
Camila, não vão ficar?

Leopoldo olhou para a sogra e respondeu:

— Eu não, dona Palmira, apenas Camila. Ela decidiu passar uns
dias fazendo-lhe companhia, e os rapazes podem ficar com
ela. Eu, porém, tenho que voltar. Tenho negócios em São
Paulo. Creio que a companhia da família lhe fará muito bem.
— Papai tem razão - concordou Dário. — Penso que vovó ficaria
feliz se estivéssemos todos juntos.
— Ficaria sim, meu filho — tornou Palmira.
— E Júlia também pode ficar se quiser — acrescentou Leopoldo.
— Por falar nisso, onde está?
— Tonha disse que foi dar uma volta — respondeu Dário.
— Então, quando chegar, perguntaremos a ela.

Quando Júlia voltou, ficou muito feliz em poder passar uns dias ali na
fazenda. Tinha planos e precisava de tempo para colocá-los em
prática. E depois, havia Fausto. Ela mal o conhecia, mas sentira uma
emoção especial ao vê-lo e pensou que seria maravilhoso conhecê-
lo melhor.

**********

Dário olhou pela janela com ar amuado. A manhã fria e chuvosa
impedia-o de sair pela fazenda, e ele não gostava de ficar trancado
dentro de casa. Ouviu batidas na porta e disse sem maior interesse:

— Pode entrar.

A mãe entrou sorridente, sentou-se a seu lado e disse:

— E então, meu filho, dormiu bem?
— Otimamente, mamãe. Pena que está chovendo novamente.
Gostaria de caminhar um pouco mais pela fazenda.
— Não se preocupe querido, haverá ainda bastante tempo para
isso.
— Quanto tempo pretende ficar?
— Não sei bem. O suficiente para deixar Ezequiel e Rebeca à
vontade na fazenda Ouro Velho.
— Acha que encontrarão algum tipo de problema?
— Não creio. Seu tio Fausto tem bom coração. Creio que não
criará embaraços ao arrendamento da fazenda.
— E vovó?
— Sua avó não pode saber. Ao menos enquanto o negócio não
estiver concluído.
— E Júlia, conseguiu alojá-los?
— Sim. Pelo que me disse, ela acomodou os três na estalagem
da vila. Creio que hoje mesmo teremos notícias deles. A
propósito, onde está seu irmão?
— Não sei mamãe. Não o vi.

A porta do quarto se abriu e Júlia entrou apressada. Estava ansiosa
e não conseguira dormir durante quase toda a noite. A preocupação
com os amigos a deixara acordada, pensando na sorte que o destino
reservara à pobre Sara.
— Oh! Camila — começou a dizer —, que bom que a encontrei
aqui. Estou tão nervosa!
— Fique calma, minha querida. Tudo vai dar certo.
— O que faremos? — perguntou Dário.
— Creio que o melhor a fazer é conversar com Fausto —
ponderou Camila.
— Sim, creio que sim — concordou Júlia. — Você vai falar com
ele?
— Vou sim.
— Posso ir junto? — pediu Dário.
— É claro, meu bem.
— Também gostaria de ir — acrescentou Júlia.
— Pois, então, vamos todos agora mesmo procurá-lo.

Os três saíram em busca de Fausto, que se levantara cedo e estava
no estábulo, vistoriando os animais. Quando viu Júlia, seu rosto se
iluminou. Ele já podia perceber que seu coração começava a se
render aos encantos da concunhada e estava deliciado com sua
presença ali, em sua casa. Quando eles chegaram, cumprimentou-
os:

— Bom dia. O que os traz aqui logo pela manhã?
— Fausto - principiou Camila -, temos algo importante para lhe
falar.
— Comigo?
— Será que podemos ir para algum lugar mais sossegado?
— Sim, claro que sim. Vamos para o gabinete que era de papai.
Ninguém nos incomodará lá.

Os quatro seguiram em silêncio. Fausto não podia atinar no assunto
que levara sua irmã, o filho e a cunhada a quererem falar com ele.
Será que precisavam de dinheiro e, agora que o pai morrera,
resolveram pedir-lhe ajuda? Não, certamente que não. Pelo que
sabia, Leopoldo estava muito bem de vida e não precisava de nada.
Mas, então, o que poderia ser? Bem, fosse o que fosse o fato é que
levara para perto dele a menina Júlia, por quem demonstrava um
interesse forte e genuíno. Ao entrarem no gabinete, Fausto fechou a
porta e fez com que eles se sentassem, sentando-se bem à sua
frente. Eles olharam-no por alguns instantes, sem dizer nada, até
que ele os encorajou:

— Bem... O que têm de tão importante para me falar?

Camila olhou para ele e tossiu. Tinha medo da reação dele ao
conhecer o motivo que os levara até ali.

— Fausto — começou —, a fazenda Ouro Velho, que pertencia a
meu pai, hoje é administrada por você e Rodolfo, não é
mesmo?

Ele a olhou com ar interessado e respondeu:

— Sim, por quê? Por acaso tem algum interesse nela?
— Bem, sim e não.
— Como assim? Ouça Camila, sei que parte daquelas terras lhe
pertence, talvez até mais do que a mim. Afinal, você herdou
um bom quinhão quando seu pai morreu, e nós não temos a
intenção de lesá-la ou tomar o que é seu. Nós apenas a
administramos como você bem disse, porque você se mudou
para longe, e a fazenda ficou abandonada. Contudo, se você
veio reclamar sua parte, é mais do que justo. Afinal, tem
filhos, e eles também têm seus direitos...
— Por favor, Fausto, não se justifique. Sei que vocês não têm a
intenção de me lesar, e não é sobre isso que vim falar.
Tampouco pretendo reivindicar a posse de nada. Meus filhos e
eu, com a graça de Deus, não precisamos da fazenda. No
entanto, há algo que gostaria de pedir.
— Verdade? O que é? Pode falar.
— Bem, a fazenda está abandonada, não é mesmo?
— Abandonada, não. Está desabitada. Mas nós continuamos a
tratar da casa, e as terras continuam a ser cultivadas. Por
quê?
— Bem, vou falar logo, porque sei que você é um homem
sensato e de bom coração. Nós temos uma família, muito
nossa amiga, que está passando por sérios problemas.
— Sim? Que tipo de problemas? Financeiros?
— Não. Eles são ricos e não precisam de dinheiro.
— E de que precisam, então?
— Digamos que precisam de... Saúde.
— Saúde? Não estou entendendo. Aonde quer chegar Camila?
— Por favor, Camila, pode deixar que eu conto tudo — apressou-
se Júlia. - Afinal, Sara é muito mais minha amiga do que de
vocês.
— Sara? Mas do que se trata pelo amor de Deus?
— Bem, Fausto, é o seguinte. Lá em São Paulo, temos um casal
de amigos, cuja filha está seriamente doente e, por
recomendação médica, devia procurar um lugar nas
montanhas onde pudesse se restabelecer. O médico acha que
o ar puro e o contato com a natureza poderiam ajudá-la a se
curar.
— E daí?
— E daí que, quando resolvemos vir para cá, Camila se lembrou
de que a fazenda Ouro Velho estava vazia e pensou que seria
boa idéia arrendá-la para eles.
— Ah! Mas é só isso? Por que não falaram logo?
— Porque eles são judeus.

Fausto levantou a sobrancelha, espantado. Não esperava por aquilo.
Não que tivesse alguma coisa contra os judeus, não era isso. Nem
tinha contato com eles, não conhecia nenhum. Mas conhecia muito
bem sua mãe e sabia que ela não gostava de ninguém que não
fosse católico. Nem protestantes, nem muito menos judeus. Ele se
levantou e caminhou para a janela, falando para Júlia, sem se virar
para ela:

— Foi por isso que se atrasou Júlia?

Ela hesitou, mas vendo o ar de aprovação de Camila, respondeu:

— Foi... Foi sim. Tive que acomodá-los.
— Bem, Júlia, você não conhece minha mãe, mas Camila sim.
Sabe que será impossível convencê-la.
— Eu sei — concordou Camila. — Foi por isso que vim falar com
você e não com ela ou com Rodolfo. Sei que você é uma boa
pessoa e saberá compreender nossos motivos.
— Compreender, compreendo. Mas como acha que poderei
convencer minha mãe a aceitar um negócio desses?
— Por que não trata de tudo você mesmo? — sugeriu Dário. —
Vovó não precisa ficar sabendo.
— Sim — acrescentou Júlia. — Diga-lhe apenas que há
interessados em arrendar a fazenda. Você não precisa
especificar quem é. Você é o administrador legal, pode muito
bem realizar o negócio.
— Eu, sozinho, não. A fazenda é administrada por mim e por
Rodolfo. E não creio que ele concorde.
— Ele também não precisa saber — disse Dário, ansioso. — Por
que teria que lhe contar?
— Sinto, mas o que me pede é impossível.
— Não é impossível — contestou Júlia. — Se você quiser, poderá
muito bem fazê-lo.
— Não posso.
— Por que não diz que não quer? Porque tem medo?
— Não é isso. Mas não posso trair o mandato que me foi
outorgado...
— Não se esqueça de que eu também sou uma das outorgantes
— disse Camila. — E eu o estou autorizando a realizar o
negócio.
— Por favor, tio Fausto, não seja tão duro — suplicou Dário. —
Não se sente condoído pela dor alheia?
— Não se trata disso.
— E do que se trata, então? — indagou Júlia com ar incisivo. —
De má vontade? Orgulho? Ou preconceito mesmo?

Fausto voltou-se para eles e encarou-os firmemente. Primeiro Júlia,
depois Camila e Dário, até que levantou os ombros em sinal de
resignação e disse:

— Está bem. Verei o que posso fazer.
— Oh, obrigada! — exclamou Júlia, ao mesmo tempo em que se
atirava ao redor de seu pescoço, estalando-lhe um beijo na
face. — Sabia que você não nos decepcionaria.

Ele levou a mão ao rosto enrubescido e retrucou:

— Tenha calma. Não estou lhes prometendo nada.
— Só a compreensão já é o suficiente para tentar — concluiu
Camila.

Saindo dali, Fausto foi procurar a mãe e o irmão, levando-lhes a
notícia de que havia pessoas interessadas em arrendar a fazenda
Ouro Velho. Tratava-se de um casal com uma filha doente,
conhecidos de Camila, que gostariam de passar uns tempos nas
montanhas, em contato com a natureza. Palmira, a princípio, quis
recusar. A fazenda fora de seu primeiro marido, e eles viveram ali
muitos anos. Além disso, fora ali que perdera o filho, a nora e o
sobrinho, mortos naquele incêndio fatídico. Como permitir que
estranhos ocupem a casa como se fossem seus donos? Rodolfo,
porém, sem de nada desconfiar, acabou por concordar com o
irmão.

— Creio que Fausto tem razão, mamãe. A fazenda foi reformada,
mas está vazia há anos. Por que não arrendá-la? Com o
dinheiro, podemos pagar os impostos. Isso sem falar no fato
de que haveria alguém morando lá, que a conservaria para
nós.
— Sim, mamãe, é isso mesmo. E, depois, por que ficar apegada
ao passado, a coisas e pessoas que se foram e que não
voltam mais?
— Não fale assim de seu irmão, Fausto, você nem o conheceu.
Quando ele morreu, você ainda nem era nascido.
— Por isso mesmo. Será que vale a pena fazer de uma casa o
túmulo sagrado da lembrança de pessoas que já se foram?
— Vamos, mamãe, concorde. Será só por uns tempos.
— Está bem — disse Palmira por fim. — Que seja. Mas avise a
essas pessoas que não vou tolerar abusos em minha casa. Não
quero que tirem um só móvel do lugar nem que modifiquem
nada.
— Pode deixar mamãe. Cuidarei disso pessoalmente, se Rodolfo
não se importar.
— Ora, meu irmão, vá em frente. Você tem todo o meu apoio.

Dali, Fausto foi à busca de Camila e partiu com ela, Júlia e Dário
para a vila, ao encontro de Ezequiel e Rebeca Zylberberg. Na
estalagem, fecharam o negócio, e ficou acertado que a família se
mudaria no dia seguinte. Foi uma felicidade geral. Ainda mais para
Dário, cuja amizade por Sara havia muito se estreitava. Os dois
eram inseparáveis e poderiam continuar a se ver. Dário tinha
certeza de que ali, a seu lado, Sara melhoraria e, com a ajuda de
Deus, logo se restabeleceria daquela enfermidade maldita, que lhe
ia minando as forças e o alento.

Capítulo 3

O Sol finalmente se firmou, e os jovens resolveram sair para um
piquenique. Apesar do frio, fazia uma linda manhã, e todos se
animaram. Trajano foi junto; não se separava de Júlia e dos
meninos, como os chamava. Com eles, Etelvina, uma escrava
bonitinha, de seus dezenove anos, que ia carregando as cestas com
a comida.
Já no terreiro, Dário perguntou à mãe:

— Não quer vir conosco, mamãe?
— Não, meu filho. Prefiro ficar fazendo companhia a sua avó. E
depois, a ocasião é para os jovens. Vão e divirtam-se.

Eles começaram a caminhada, rumo ao córrego que corria mais
abaixo, seguindo a trilha no meio do mato. Fausto ia ao lado de
Júlia, sem nem se dar conta do olhar de reprovação que Rodolfo, de
quando em vez, lançava para eles. A moça, alegre e extrovertida,
foi logo puxando conversa:

— Perdoe-me a indiscrição, Fausto, mas já que Camila disse em
jovens, não pude deixar de observar que você e Rodolfo já
não são assim tão moços.

Ele sorriu meio sem jeito e considerou:

— É verdade. Quando nascemos, minha mãe tinha mais ou
menos quarenta anos. Como sabe, somos filhos de seu
segundo casamento.
— Eu sei. Por falar em casamento, por que não se casaram?
— Por quê? Não sei ao certo. Creio que porque não houvesse por
aqui muitas moças disponíveis. Ou, pelo menos, alguma que
valesse a pena... Até agora.

Ela corou e abaixou os olhos, falando envergonhada:

— O que quer dizer? Está interessado em alguém?
— Não notou?
— Não sei dizer...
— Pois então, eu mesmo lhe direi. Até agora, nunca havia
conhecido moça alguma que me interessasse. No entanto,
quando vi você, confesso que fiquei impressionado.
— Impressionado com o quê?
— Com sua beleza, com sua bondade, com sua sensibilidade,
com sua coragem. Isso basta?
— Não acha que está exagerando?
— Não, não acho. Acho que nem todos os elogios do mundo
seriam suficientes para descrevê-la.
— Por favor, Fausto, está me encabulando.
— Desculpe-me, mas é a verdade.
— É sempre assim tão direto?
— Só com quem me interessa. E você, mais do que qualquer
outra coisa, despertou em mim um enorme interesse.

Ela já ia responder quando ouviu atrás de si uma voz familiar, muito
parecida com a de Fausto, dizendo num gracejo:

— Posso saber sobre o que falam os pombinhos? — era Rodolfo
que, um pouco mais atrás, escutara toda a conversa.
— Sobre nada de especial — disse Fausto em tom vago.
— Por que quer saber?
— Por nada. Apenas gostaria que não privasse os demais da
companhia de tão agradável jovem.

Fausto olhou-o surpreso. Só então percebeu que o irmão também se
interessara por Júlia e ficou desconcertado. Era uma situação
delicada, e ele não queria magoá-lo. No entanto, não abriria mão da
moça. Gostava dela e tencionava cortejá-la. Ainda que isso
desagradasse o irmão.

A verdade, porém, era que Rodolfo não estava propriamente
interessado em Júlia, e sim em competir com Fausto. Desde a mais
tenra idade, Rodolfo desenvolvera uma inveja desmedida do irmão,
que nem mesmo ele sabia explicar. O fato era que tinha que possuir
tudo o "que Fausto quisesse ou possuísse". Era uma necessidade. E
se Fausto desejava Júlia, Rodolfo decidiu que teria que tê-la. Além
do mais, ela era linda, e não seria nenhum sacrifício tomá-la do
irmão.
Júlia, por sua vez, também notara o interesse de Rodolfo e, pedindo
licença a ambos, apertou o passo, indo juntar-se aos sobrinhos.
Discretamente, achegou-se a eles e tomou o braço de Dário, que
caminhava pensativo.

— O que há com você? — indagou. — Parece triste.

Ele sorriu acabrunhado e, olhando para o chão, disse:

— Quer mesmo saber?
— É claro que quero. Pode confiar em mim. Além de sua tia, sou
também sua amiga. Temos quase a mesma idade.
— Pois é...
— E então? O que o aflige?
— É Sara.
— Sara? O que tem ela? Que eu saiba, ela e a família já se
instalaram na fazenda Ouro Velho. Assim que puder, irei vê-
los.
— Júlia, Sara e eu, nós estamos apaixonados.
— Eu sei.
— E penso que já chegou à hora de nos casarmos.
— Mas isso é maravilhoso! E quando será?
— Não sei. Ainda não falei com seus pais.
— Pois fale logo. Vocês já estão namorando há algum tempo, e
tenho certeza de que eles darão seu consentimento.
— Quisera eu estar assim tão certo.
— Por quê?
— Primeiro, porque nós somos católicos. E segundo, porque ela
está gravemente enferma.
— E daí? Sabe que não temos nenhum preconceito, nem nós,
nem a família de Sara. E quanto à enfermidade, tenho fé em
Deus que ela irá se curar.
— Mas, e vovó? Será que aceitará?
— Dário, perdoe-me pelo que vou lhe dizer. Sua avó já está
velha e não pode mandar em você. Nós moramos longe daqui,
e ela pouco sabe a seu respeito ou de seu irmão. Não creio
que tenha força suficiente para impedir seu romance.
— Espero que você esteja certa.
— Ora, pare de se preocupar e ponha um sorriso nesse rosto.
Não quer que os outros desconfiem, quer?
— Não, claro que não.

O grupo alcançou o córrego e Trajano foi ajudar Etelvina a estender
a toalha para o piquenique. A escrava estava distraída, arrumando
as comidas sobre a toalha, e nem notou a presença de Túlio que,
um pouco mais atrás, fitava-a com olhar de cobiça. Subitamente,
como que guiada pela intuição, ela se voltou e deu de cara com ele,
e assustou-se. Havia algo de estranho naquele olhar, e ela teve
medo.
Não conhecia aquele moço, mas logo percebeu suas más intenções.
Trajano, por sua vez, conhecia-o muito bem. Ajudara a criá-lo e
sabia de suas tendências. Trajano olhou para ele com ar de
reprovação e pediu a Etelvina que fosse chamar os sinhôs para o
lanche. Ela dirigiu-lhe um olhar de agradecimento e foi chamá-los.
Não gostara daquele moço e não queria ficar perto dele. Trajano,
logo que ela se afastou, sentou-se ao lado de Túlio e disse em tom
de reprovação:

— Sinhozinho, veja lá o que vai fazer. Etelvina parece uma moça
direita.
— Mas o que é isso, Trajano? Por acaso pedi sua opinião? E
depois, não estou fazendo nada.
— Eu conheço o sinhô e sei muito bem o que se passa na sua
cabeça. Não pode ver rabo-de-saia.
— E daí? Por acaso a negrinha é alguma coisa sua, é? Ou você
também está de olho nela?

Disse isso piscando um olho e dando um tapinha de leve no ombro
do outro. Trajano, porém, respondeu calmamente:

— Não, sinhô. Mas ela é uma boa menina, e não quero que se
magoe.
— Como é que sabe, hein? Por acaso a conhece? — Ele balançou
a cabeça. — Então não se preocupe. Ou melhor, não se meta.
— Desculpe sinhô, mas eu só estou falando porque depois o
sinhozinho vem correndo pedindo para eu consertar suas
besteiras.
— Não faz mais do que sua obrigação. E para isso que serve.

Trajano olhou-o magoado e acrescentou:

— O sinhozinho é um ingrato, isso sim. Mas deixe estar, que vou
contar tudinho a sua mãe.

Levantou-se rapidamente para ir embora, mas Túlio chamou-o de
volta.

— Espere Trajano. Para que isso? Eu só estava brincando.
— Não estava não. Conheço o sinhozinho muito bem e já vi esse
olhar antes.
— Olhe, está bem. Não vou bulir com a negrinha, está bem? Não
precisa contar nada a mamãe, está certo?
— Se o sinhô prometer...
— Prometo.

Trajano não disse mais nada. O grupo ia se aproximando animado,
e ele não queria que ninguém soubesse o que estava se passando.
No entanto, ficaria de olho em Túlio. Ele não era digno de confiança,
e não valia à pena facilitar. Fitando Etelvina pelo canto dos olhos,
Trajano pôde perceber o quanto ela era bonita. Ela, por sua vez,
lançava-lhe olhares discretos, contente em saber-se admirada por
ele. Só o que não lhe agradava eram os olhos de sinhô Túlio, que
também não paravam de segui-la.

**********

Já era tarde da noite, e Júlia não conseguia conciliar o sono. Por
mais que quisesse, não podia parar de pensar em Fausto. Ele era
um rapaz maravilhoso. Bonito, maduro e, acima de tudo, uma alma
boa e generosa. Lembrou-se do piquenique do outro dia, do quanto
riram e gargalharam juntos. Estava feliz. Gostava dele e sabia que
ele também gostava dela. Quem sabe, finalmente, não poderia
amar alguém de verdade? Ela também já não era mais nenhuma
menininha. Já passara dos vinte e cinco anos e ultrapassara, em
muito, a idade de se casar. No entanto, jamais se apaixonara por
ninguém. Todos os homens que conhecia eram frívolos e fúteis, e
nada tinham a oferecer. Júlia, ao contrário das outras moças, não se
importava de ficar solteira. O que não queria era casar-se por medo
ou obrigação. Não precisava de ninguém, e pouco lhe importava a
opinião que faziam a seu respeito. Se quisessem, que a chamassem
de solteirona. Mas ela não se casaria sem amor. Isso nunca. Só que
Fausto... Era diferente. Era íntegro, honesto, interessante, e ela já
não conseguia esconder de si mesma a atração que sentia por ele.

Em seu quarto, Fausto também não parava de pensar em Júlia. Ela
era maravilhosa! Linda, meiga, alegre e decidida. Tudo o que um
homem feito poderia desejar numa mulher. Assim como Júlia,
Fausto também se apaixonara. Sabia que seu coração ansiava por
encontrá-la novamente e sentia como se tivessem nascido um para
o outro. No entanto, havia ainda Rodolfo. Ele conhecia o irmão
muito bem para saber que ele também se interessara por ela. Mas,
o que diria Júlia? Eles eram gêmeos, e será que ela já teria firmado
uma preferência entre eles? Fausto sorriu intimamente. Estava certo
de que Júlia gostara dele e não do irmão. Eles não ficaram quase
tempo nenhum junto. Ele sentiu pena de Rodolfo. Se também
estivesse apaixonado, sabia que sofreria, porque ele não abriria mão
da amada por ninguém.

Rodolfo, por sua vez, passeava no jardim. Ia fumando seu charuto,
caminhando vagarosamente, penetrando por entre a escuridão que
a madrugada sem lua deitava sobre a Terra. Também ia pensando.
Júlia era uma moça encantadora, e ele não podia esconder seu
interesse. Sabia, porém, que o coração dela já estava preso ao de
Fausto. Pudera perceber que o irmão gostava dela e que era
correspondido nesse sentimento. Pensando nisso, sentiu uma
pontada de raiva, e o ciúme começou a doer dentro do peito. O que
fazer? Ele ficou ali, imaginando um meio de acabar com aquele
encantamento entre Fausto e Júlia. Precisava tomá-la do irmão a
qualquer preço. Depois que conseguisse separá-los, veria o que
fazer com ela.

Quando o dia amanheceu, Fausto e Rodolfo se encontraram, ambos
carregando no rosto as marcas de uma noite mal dormida.

— Nossa! — exclamou Fausto. — O que houve com você? Está
horrível. Por acaso não dormiu?

Rodolfo olhou para ele com ar de mofa e respondeu:

— Você também não está lá essas coisas. O que foi que houve?
Alguém lhe roubou o sono?

Fausto sentiu um quê de ironia nessa indagação, mas fingiu não
perceber. Tentando mudar de assunto, perguntou:

— Já tomou seu café? — Já, sim.
— Então, podemos ir?
— Sim, claro. Dali partiria para a plantação. Já estavam saindo
quando escutaram a voz de Júlia, que ia correndo atrás deles.
— Esperem! Esperem! - gritava.
— Júlia! — fez Rodolfo espontaneamente. — Mas que surpresa.
Aonde vai?
— Gostaria de dar uma volta e procuro companhia — disse,
olhando para Fausto pelo canto do olho, e ele sorriu em
resposta. — Será que posso acompanhá-los?
— Ora, mas será um prazer desfrutar de tão bela companhia —
apressou-se Fausto em dizer.
Como que se esquecendo da presença de Rodolfo, os dois puseram-
se a caminhar lado a lado, indo à direção das cocheiras. Iam alegres
e sorrindo, e Fausto, de quando em vez, pegava sua mão e a levava
aos lábios, o que irritou profundamente Rodolfo. Só faltava se
beijarem. E qual não foi o seu espanto quando Fausto, de repente,
estacou na porta da cocheira e, tomando a cabeça de Júlia entre as
mãos, pousou-lhe um beijo carinhoso e apaixonado, que a moça
correspondeu sem relutar.

— Perdoe-me, Júlia... — começou Fausto a gaguejar logo que a
soltou —... Não sei o que deu em mim... É que sua presença...
Seu perfume... Júlia desculpe-me pelo que vou lhe dizer... Mas
é que... É que...
— Sim? — indagou Júlia, aflita. — Vamos, diga logo. É que o quê?
— É que... Bem... É que... Eu acho que... Acho que a amo...

Ele olhou para ela com tanto amor, que ela não se conteve e atirou-
se em seus braços, chorando de emoção.

— Oh! Fausto — exclamou entre lágrimas. — Nem pode imaginar
o quanto fico feliz em ouvir isso.
— Quer dizer então que... Que também me ama?
— Sim, estou certa que sim. Desde o primeiro dia em que o vi,
senti que havia algo especial em você e não pude mais parar
de pensar em seu jeito, sua voz. Se isso não é amor, não sei o
que é então!
— Minha querida. Minha doce Júlia. Quero pedir permissão a
minha irmã para fazer-lhe a corte. Será que consentirá?
— Camila, além de minha cunhada, é também minha amiga.
Tenho certeza de que não só concordará como dará todo o
seu apoio.
Beijaram-se novamente. Estavam tão entretidos um com o outro
que se esqueceram completamente da existência de Rodolfo e nem
se deram conta quando ele se acercou deles, falando com azedume:

— Ora, ora, mas então os pombinhos resolveram colocar as
asinhas de fora, é?

Os dois afastaram-se meio sem jeito, Júlia corando, até que Fausto
respondeu:

— Não é nada disso, Rodolfo. E não sei por que está sendo
sarcástico. Júlia e eu nos amamos e vamos assumir
compromisso.
— É mesmo? Mas que notícia maravilhosa! Meus parabéns, meu
irmão, e que vocês sejam muito felizes.

Sem esperar resposta, Rodolfo montou no cavalo que o escravo lhe
oferecia e saiu a galope, rumo à plantação. Júlia olhou para Fausto
preocupada e comentou:

— Acho que Rodolfo não gostou da novidade.
— Creio que você tem razão. Pelo que pude perceber Rodolfo
também se interessou por você e deve estar se sentindo
rejeitado.
— Já que você disse, também notei algo diferente em seu olhar.
Contudo, apesar de vocês serem idênticos fisicamente, meu
coração pendeu para o seu, pois sua alma me parece
diferente da dele, e sinto como se já o amasse há muito
tempo.
— Engraçado, também sinto a mesma coisa. — Ele a beijou
novamente e indagou: — Acha-nos mesmo assim tão
parecidos?
— Sem dúvida.
— Ainda não consegue nos distinguir?
— Quando estão próximos, sim. Mas de longe, confesso que não
sei dizer quem é quem.
— É natural. Mas não se preocupe. Com o tempo, você irá se
acostumar a perceber nossas diferenças.
— É o que espero.
— Eu também. Não gostaria de vê-la nos braços de meu irmão
pensando que está nos meus.

Ela riu e apertou suas bochechas, falando num gracejo:

— Tolinho isso nunca vai acontecer. Posso confundi-los na
aparência, mas só você consegue balançar meu coração.
— Será mesmo?
— É claro que sim. E agora, pare com essa preocupação. Rodolfo
é seu irmão e, por mais que tenha se interessado por mim, sei
que isso é passageiro e, logo, logo, ele vai superar.

Fausto não disse mais nada, mas o fato é que estava preocupado. E
se Rodolfo não se conformasse? E se ficasse com raiva? A rejeição,
muitas vezes, estimula sentimentos que nem sequer conhecemos. E
depois, Rodolfo sempre lhe parecera um tanto quanto invejoso.
Desde pequenos, sempre cobiçara seus brinquedos, suas roupas.
Fausto achou melhor não pensar naquilo. Talvez Júlia tivesse razão,
e ele estivesse fazendo mal juízo do irmão. Era só esperar e tudo se
resolveria. Ou, ao menos, tudo se definiria.

Fausto não tocou mais no assunto e ajudou Júlia a montar no
cavalo, saindo com ela em direção ao cafezal. Ela era exímia
amazona, e ele ficou admirado. Gostava de mulheres que sabiam
montar e cavalgar, e não daquelas que se limitava a sentar no
cavalo e se deixar conduzir. Júlia era perfeita.
Quando chegaram à plantação, Rodolfo estava gritando com os
escravos e distribuindo ordens ao capataz, nitidamente de má
vontade. Rodolfo olhou para Júlia discretamente, mas ela fingiu não
perceber. Estava claro que Rodolfo sentia ciúme e procurava
descontar sua frustração nos escravos. Chegou mesmo a dar umas
chicotadas em alguns deles.

Júlia não gostou nada daquilo e, virando-se para Fausto, arrematou:

— Creio que não foi boa idéia ter vindo até aqui. Seu irmão está
zangado, e não gosto de presenciar crueldades.
— Sinto muito, Júlia. Não sabia que isso poderia acontecer.
— Não é culpa sua. No entanto, prefiro me retirar.
— Sinta-se à vontade. Compreendo seus motivos e não lhe tiro a
razão.
— Obrigada. Será que posso ficar com o cavalo por mais
algumas horas? Gostaria de visitar minha amiga, Sara.
— Claro, nem precisava perguntar. Ele é todo seu.

Júlia despediu-se de Fausto e partiu rumo à fazenda Ouro Velho,
onde Sara estava alojada, em companhia dos pais. No coração,
uma angústia que não sabia definir. Sim. Ela estava certa. Apesar
de Rodolfo e Fausto serem absolutamente idênticos, estava muito
distante em seus valores morais, e ela ficou feliz porque seu coração
soubera escolher exatamente aquele que poderia compartilhar de
seus ideais.




CAPÍTULO 4

Sara estava sentada em um banco do jardim quando viu um cavalo
se aproximando. Pelas roupas, podia perceber, mesmo ao longe,
que se tratava de uma mulher. Quando se certificou de que era
Júlia, levantou-se ansiosa, esfregando as mãos com nervosismo.
Júlia chegou e apeou, entregando o cavalo nas mãos de Juarez,
escravo da família, para ser cuidado. Ele segurou o animal e sorriu,
e ela sorriu de volta. Ele era um bom rapaz, quase da mesma idade
que Trajano, e tomava conta de Sara nas brincadeiras.

— Como está, Laurinda? — indagou, fazendo referência à sua
mulher.
— Muito bem, sinhá, obrigado. Vou agora mesmo avisar que a
sinhazinha chegou, e ela vai lhe preparar aquele bolo especial.
— Excelente idéia!

Juarez saiu para cuidar do animal, e Júlia correu ao encontro de
Sara. Ela estava pálida, apesar do Sol que lhe banhava as faces.
Segurou-lhe as mãos gentilmente e indagou:

— E então, minha amiga, sente-se melhor?
— Ainda não pude sentir muita diferença. Faz pouco tempo que
chegamos, e o ar da montanha ainda não limpou meus
pulmões.
— Mas limpará, tenho certeza.

Sara, voltando-se para a casa grande, começou a chamar, com
uma voizinha fraca:

— Mamãe! Mamãe! Venha ver quem está aqui.
A mãe apareceu na porta e, vendo Júlia em companhia da filha, saiu
apressada, falando enquanto caminhava:

— Júlia, minha filha, há quanto tempo! Por que não veio logo nos
visitar?
— Sinto muito, dona Rebeca, mas só agora pude sair.
— Não faz mal. O importante é que você está aqui. E Dário, não
veio?
— Não. Está ajudando mamãe e vovó com alguns papéis, mas
virá depois. E seu Ezequiel? Não está?
— Está descansando. Acho que estranhou um pouco os novos
ares...
— Não está se sentindo mal, está?
— Não, não, minha filha. O mal dele é a idade. Bem, agora vou
entrar e deixá-las a sós. Devem ter muito que conversar. Mas
não fique muito tempo aqui fora. Apesar do Sol, ainda faz frio.
— Pode deixar dona Rebeca. Daqui a pouco entraremos.

Sara olhou para Júlia com ar de ansiedade. Queria saber notícias de
Dário, mas não tinha coragem de perguntar. A outra, porém,
adivinhando-lhe os pensamentos, adiantou-se:

— Dário, em breve, virá vê-la.

Ela corou e perguntou:

— Ele lhe contou?
— Sim.
— E o que você acha?
— Acho que vocês não terão problema algum. Tanto seus pais
quanto os dele não se importam com essas bobagens de raça
ou religião. Você sabe disso tão bem quanto eu. Aliás, nem
entendo o porquê dessa preocupação, já que estão
namorando há tanto tempo. Não acha que se alguém tivesse
algo a opor, já o teria feito?
— Sim, creio que sim. Mas não é exatamente com isso que me
preocupo.
— Não? Então com o que é?
— Com minha doença.
— Ora, Sara, mas que tolice. Você vai ficar boa.
— Não sei não, Júlia. Desconfio que esteja tísica.
— Deus me livre! Nem me fale uma coisa dessas. Você tem os
pulmões fracos, é só.
— Mas por quê? Por que são fracos, se sou tão jovem?
— Não sei, Sara. São coisas de Deus, que não podemos
compreender. Agora pare de pensar nessas bobagens. Você
vai ficar boa, tenho certeza.

Sara desviou os olhos, que já começavam a se encher de lágrimas,
e mudou de assunto para disfarçar:

— E dona Palmira, como vai?
— Bem, apesar da idade.
— Sabe Júlia, fiquei muito feliz em saber que dona Palmira não
se importou de nos arrendar a fazenda, sabendo que somos
judeus.

Júlia abaixou a cabeça um tanto quanto desconcertada e disse meio
sem jeito:

— Sara, posso lhe contar uma coisa? Você jura que não conta a
seus pais e que não ficará zangada?
— Sabe que sim. Vamos, Júlia, pode confiar em mim.
— Eu sei. Bem, é que dona Palmira e Rodolfo não sabe que
vocês são judeus.
— Não? Meu Deus, Júlia, mas por quê?
— Porque talvez não aceitassem. Dona Palmira é uma mulher
extremamente preconceituosa e não concordaria em tê-los
aqui.
— Mas o senhor Fausto... Ele foi pessoalmente tratar dos papéis.
Não é possível que não tenha percebido.
— Fausto sabe, e só ele. Por favor, Sara, não fique zangada. Nós
achamos que seria melhor.
— Não sei não, Júlia. Não gosto de fazer nada escondido, muito
menos papai e mamãe. Tenho certeza de que, se
descobrirem, não irão querer mais ficar aqui.
— Eu sei. Por isso é que lhe peço para não lhes contar.
— Não contarei. Eu prometi. Embora não concorde, prometi não
contar e não o farei. Mas que não está certo, não está.
— Tente compreender. Nós queríamos muito que vocês viessem,
e foi à única solução que encontramos. Se você não falar,
ninguém precisa ficar sabendo.
— Será mesmo, Júlia? A verdade sempre encontra um meio de
se dar a conhecer.
— Não pense nisso. Se ninguém falar nada, dona Palmira nunca
descobrirá.
— Está certo Júlia, você é quem sabe.
— Agora, fale-me de você.
— O que há para falar? Essa doença maldita parece não querer
ceder, e confesso que às vezes chego a perder as esperanças.
— Pois não perca. Tenho certeza de que você vai se recuperar.
— Não estou bem certa. Às vezes me sinto tão mal que chego a
pensar que vou mesmo morrer.
— Nem me fale uma coisa dessas. Você é ainda muito jovem e
não vai morrer. Vai viver muitos anos, vai se casar com Dário,
vai ter muitos filhos e conhecer seus netinhos. Agora vamos,
deixe de bobagens e vamos entrar.

Depois do almoço, Júlia voltou para a fazenda São Jerônimo e saiu
logo à procura de Dário. Ele estava em seu quarto, lendo, e ela
entrou:

— Ah! Júlia! — exclamou. — Onde esteve? Ficamos preocupados.
— Fui visitar Sara.
— Você foi? E não me disse nada? Mas por quê? Poderia tê-la
acompanhado.
— Perdoe-me, Dário, mas nem eu sabia. Resolvi de repente,
quando estava andando a cavalo pela fazenda, e você estava
aqui, com mamãe e vovó.
— E como ela está? Melhor? Diga-me. Estou ansioso por vê-la.
— Não sei ao certo. Creio que só o tempo poderá nos dizer.
— Quero vê-la.
— Pois vá logo. Ela está com muitas saudades de você.
— Também morro de saudades dela. Mal posso esperar para tê-
la em meus braços, como minha esposa.
— Eu sei. Só que ela pensa que vai morrer.
— Morrer? Mas isso é um absurdo!
— Também acho. E é por isso que vocês devem se casar o mais
rápido possível.
— Tem razão. Falarei com mamãe agora mesmo e, se ela
concordar, irei ter com seu Ezequiel e pedir-lhe a mão de Sara
em casamento.
— Isso mesmo, vá. E depois me conte como foi.

Ele saiu apressado e Júlia levantou-se para ir embora, quando algo
do lado de fora da janela chamou sua atenção. Ela podia ver, ao
longe, a figura esguia da escrava Etelvina, que ia chegando,
trazendo nas mãos um cesto de roupa lavada. A seu lado, Túlio ia
animado e sorridente, falando-lhe coisas que, embora ela não
pudesse ouvir, sabia bem do que se tratava. Etelvina, porém,
mantinha os olhos pregados no chão e não parecia nada satisfeita
com aquela insistência. Ela passou pela lateral da casa, caminhando
pela estradinha, sempre com Túlio a seu lado, até que se dirigiu
para o terreiro atrás da casa, e ela os perdeu de vista. Seu coração
se comprimiu e ela sentiu um leve tremor. Será que Túlio estava
interessado em Etelvina? Que Deus a perdoasse, mas dessa vez ela
não consentiria. Estava disposta a tudo para evitar que o sobrinho
destruísse a vida de mais uma mocinha. Ela virou as costas para a
janela e saiu decidida. Precisava falar com Camila. A cunhada, com
certeza, saberia como agir.

**********

Camila recebeu a notícia com certa apreensão. Amava o filho, mas
conhecia-o muito bem e tinha medo de suas tendências. Em outra
ocasião, Túlio envolvera-se com Raimunda, uma das escravas de
sua casa, e a moça acabara por falecer, ao dar à luz um filho seu. A
criança, pobrezinha, também não resistira e morrera logo em
seguida à mãe. Túlio, embora um tanto quanto abatido, não se
deixara impressionar, e logo tornara a voltar os olhos para as
escravas jovens e bonitas.

Júlia, interrompendo o pensamento da cunhada, perguntou após
alguns minutos:

— E então, Camila, o que faremos?
— Não sei Júlia. Confesso que estou deveras preocupada. Será
que já aconteceu alguma coisa?
— Acho que não. Não houve tempo ainda.
— Então precisamos evitar que o pior aconteça. Por favor, Júlia,
vá chamar Trajano. Quero falar com ele.
— Vai pedir-lhe ajuda?
— Sim. Ele também lamentou o que aconteceu no passado e
gosta muito de Túlio. Afinal, viu-o nascer e crescer. Tenho
certeza de que nos ajudará.

Júlia saiu e voltou logo em seguida, em companhia de Trajano, que
ainda não suspeitava do assunto que o levava ali. Ao entrar,
cumprimentou Camila com um sorriso, e ela foi logo dizendo:

— Trajano, mandei chamá-lo porque preciso que me preste um
favor.
— Pois não, sinhá. Basta à sinhá pedir que eu faço. Sei disso.
Você é um bom moço e muito fiel a nossa família, não é
mesmo?
— Sim, sinhá. Por que pergunta?
— Bem, Trajano, gosto muito de você e confio muito em sua
discrição para fazer-lhe uma pergunta. Você sabe de alguma
coisa entre Túlio e uma escrava de nome Etelvina?

Trajano sobressaltou-se. Ele não dissera nada a ninguém, mas do
jeito que Túlio agia, com certeza, alguém notara. Ele prometera não
contar nada a Camila, mas não podia mentir. Cuidadosamente
escolhendo as palavras, retrucou:

— Por que pergunta sinhá?
— Porque preciso saber. Mas não me responda com outra
pergunta. Diga-me, você sabe de alguma coisa ou não?

Trajano estava confuso e embaraçado. Não sabia o que fazer. Era
leal, sim, e não queria perder a confiança nem de Camila, nem de
Túlio. Júlia, percebendo o conflito que lhe ia à alma, resolveu
intervir:

— Ouça Trajano, está claro, por seus gestos, que você sabe de
algo. E se sabe, não precisa ter medo. Pode nos contar.
— Não é medo, sinhá. É que prometi ao sinhozinho.
— Prometeu o quê?
— Prometi não falar nada, principalmente com a sinhá sua mãe.
— Pois eu o estou liberando dessa promessa — interrompeu
Camila.
— Vamos, Trajano, diga-nos.

Ele não falava, até que Júlia resolveu chamá-lo à razão:

— Escute Trajano, você se lembra muito bem do que aconteceu
com Raimunda, não lembra? — Ele assentiu, sem tirar os olhos
do chão. — E quer que isso se repita? Quer?
— Não, sinhá, por Deus. Raimunda era uma menina; não
merecia aquilo.
— Pois então? — continuou Camila. — O que está esperando para
nos contar o que sabe?
— Bem, não sei muita coisa. Mas no dia do piquenique,
sinhozinho Túlio não tirava os olhos de Etelvina. A moça até se
assustou.

Camila olhou para Trajano com ar de preocupação e prosseguiu:

— Pois muito bem, Trajano. Não queremos que Etelvina tenha o
mesmo destino de Raimunda, não é?
— Não, sinhá.
— Pois, então, você tem que nos ajudar. Vigie os passos de Túlio.
Não o deixe sozinho com a moça.
— Hoje mesmo eu os vi juntos — contou Júlia. — E foi isso o que
me chamou a atenção.
— Pois é — tornou Camila. — Por isso é que você deve vigiá-lo
constantemente. Mas não deixe que ele perceba. Faça
amizade com a moça, acompanhe-a. Você não é escravo
daqui, e ninguém pode impedi-lo de ir aonde quiser. Você
promete?
— Prometo sinhá. Mas posso pedir uma coisa?
— Claro, fale.
— Gostaria que as sinhás não falassem nada disso com sinhô
Túlio. Não quero que ele fique com raiva de mim.
— Não se preocupe. Túlio não vai ficar sabendo de nada. Isso
ficará apenas entre nós três, está certo?
— Sim, sinhá, obrigado.
— Agora pode ir, Trajano, e obrigada por sua compreensão.
— Ora, sinhá, não precisa agradecer, não. Faço isso porque
gosto das sinhás e dos meninos.
— Sei disso, Trajano, e agradeço. Agora pode ir. Procure-o e,
disfarçadamente, fique por perto. Não o perca de vista um só
minuto.
— Não, sinhá, pode deixar. Não se preocupe que farei tudo
direitinho.

Ele saiu em direção ao terreiro, onde as escravas estavam
trabalhando. Ao passar pela cozinha, porém, quase esbarrou em
Terêncio, que ia entrando, atrasado para o almoço. Acabara de
chegar do Rio de Janeiro, onde fora buscar umas encomendas, e
chegava morto de fome. Trajano, acabrunhado, murmurou
baixinho:

— Desculpe moço.

E saiu. Terêncio, que nunca vira por ali aquele negro, resolveu
indagar de Tonha:
— Quem é esse?
— É Trajano, escravo de sinhá Camila.

Depois de comer, levantou-se mal-humorado, saindo atrás de
Trajano. Foi encontrá-lo no terreiro atrás da casa, conversando com
Etelvina. Terêncio não gostou daquilo. Não era de bom tom os
escravos ficarem de prosa, ainda mais quando se tratava de um
desconhecido. Com voz ríspida, chamou:

— Etelvina, venha até aqui!

Etelvina largou a vassoura com que batia nos tapetes, estirados
sobre o muro, e correu para onde ele estava.

— Sim, seu Terêncio — disse humilde.
— Que história é essa de ficar proseando na hora do serviço?
Não quero isso aqui, não.
— Por favor, moço — interrompeu Trajano —, não brigue com
ela. Fui eu que puxei conversa.
— Pois não devia. Você não é daqui e, pelo visto, não faz nada.
Mas nossos negros estão acostumados ao trabalho, e sinhá
Palmira não gosta que fiquem de prosa. Atrapalha o serviço.
— Sim, senhor, desculpe. Isso não vai se repetir.
— Acho bom mesmo. E agora, Etelvina, volte ao serviço.
— Está bem, seu Terêncio.

Etelvina voltou a seus afazeres, e Trajano pediu licença para se
retirar, quando Terêncio o alertou:

— Escute aqui, negro, fique longe das escravas, principalmente
de Etelvina. Dona Palmira não gosta de namoricos entre os
negros, e eles só se acasalam com a sua autorização.
Trajano mordeu os lábios e respondeu com os olhos se enchendo de
lágrimas de raiva:

— Sim, senhor. Não precisa se preocupar que não quero nada
com Etelvina. Estava apenas conversando.
— Acho bom. Caso contrário serei obrigado a tomar certas
providências, digamos, um pouco mais drásticas. Entendeu?
— Sim, senhor. Entendi muito bem.
— Ótimo. Você me parece um escravo esperto. Continue esperto
aqui e vamos nos dar muito bem.

Terêncio virou-lhe as costas e saiu em direção à sua casa. Estava
cansado e precisava dormir. Ia caminhando devagar e já estava na
porta quando um vulto, esgueirando-se por detrás de uma árvore,
saltou à sua frente, encarando-o com um sorriso sarcástico. Ele deu
um salto para trás e já ia sacando a pistola, presa à cinta, quando o
vulto levantou a cabeça e afastou o capuz, mostrando-lhe o rosto
envelhecido. Terêncio levou um susto. Fitou demoradamente aquele
rosto, tentando lembrar-se de onde o conhecia, até que soltou uma
perplexa indagação:

— Você?

Terêncio olhou de um lado para outro, mas não viu ninguém.
Estavam sós. Acenou para que o vulto o seguisse e com ele entrou
em casa. Fechou a porta rapidamente, e a mulher surgiu, deixando
cair o manto e o capuz.

— Dona Constância! — exclamou surpreso. — Há quanto tempo!
Julgava-a morta.

Ela olhou para ele com raiva e retrucou:
— Pareço morta?
— Bem, devo dizer que está um pouco... Digamos... Mudada.

Constância fez um ar de desdém e desabou na cadeira. Estava
mudada sim, mas, internamente, continuava a mesma. Vendo uma
cômoda no quarto contíguo, acima da qual estava pendurado um
espelho velho e oxidado, correu para ele e, afastando os cabelos
grisalhos e oleosos, exibiu profunda cicatriz, que lhe descia desde a
altura da sobrancelha esquerda até a ponta da orelha.

— Aposto como está curioso para saber como ganhei isto —
disse, apontando para a cicatriz.
— Estou sim. Não posso negar. Da última vez em que a vi, era
uma moça bonita, esbelta, viçosa. Mas agora...
— Agora sou uma velha gorducha, com a cara marcada. — Ele
não disse nada, e ela prosseguiu: — Tenho uma longa história
para contar...
— Imagino. Gostaria de saber por onde andou durante todos
esses anos. Seus pais tudo fizeram para encontrá-la, mas foi
em vão.
— Ora, o que poderia eu fazer? Fui expulsa daqui por seu
Licurgo. Como poderia viver em sociedade, coberta pela
vergonha?
— Para onde foi?
— Não imagina?
— Não, não imagino.

Ela hesitou durante alguns instantes antes de continuar:

— Não sei se posso confiar em você. Depois de tudo o que me
fez, é bem capaz de me trair novamente.

Constância virou-se para o outro lado. Não queria que ele visse as
lágrimas que brotavam em seus olhos. Em silêncio, chorou baixinho,
lembrando-se de que Licurgo a expulsara dali porque Terêncio a
delatara, contando-lhe que fora pago por ela para facilitar sua
vingança.

Vendo que ela não respondia, Terêncio disse, cortando-lhe os
pensamentos:

— Isso foi há muito tempo. Ninguém mais se lembra dessa
história.
— Será que não? Nem Tonha?
— Tonha é apenas uma escrava. Quem se importa com o que
pensam os escravos?

Ela suspirou e perguntou:

— E tia Palmira?
— Está em casa.
— Será que me receberia? Hoje não sou mais aquela menina de
antes. Receio que ela me repudie, tendo em vista minha atual
condição.
— É, pelo visto, a vida lhe foi madrasta.
— Você nem imagina o quanto.
— Por que não me conta o que lhe aconteceu? Talvez possa
ajudar.

Ela olhou para ele com ar malicioso. Afinal, o que tinha a perder?

— Bem — começou ela pausadamente —, depois que saí daqui,
consorciei-me a Basílio...
— O quê? Casou-se com o homem que desgraçou a vida de dona
Camila?
— Casar-me? Não. Mas Basílio e eu passamos a viver juntos.
Éramos iguais, ambos fracassáramos em nossos propósitos, o
que nos proporcionou um ótimo entendimento. Quando eu
fugi, saí levando apenas algumas jóias, que garantiram nosso
sustento por algum tempo. Mas, depois, quando o dinheiro
acabou, fui obrigada a me utilizar de outros recursos para
sobreviver. Basílio, vendo a pobreza se aproximar,
abandonou-me, e eu passei a viver da troca de favores com
os homens. Até que um dia, um marinheiro enciumado deixou-
me esta marca no rosto.
— É. É uma história bastante triste. E por que resolveu voltar
agora?
— Porque seu Licurgo morreu, e pensei em pedir auxílio à tia
Palmira, contando com sua discrição. Não suporto mais essa
vida e não tenho coragem de voltar para casa.
— Entendo... Sabe que Camila está aqui?
— Eu a vi no enterro, com os filhos. Teve sorte de encontrar
alguém que ainda a quisesse, não é mesmo?

O capataz meteu um pedaço de fumo de rolo na boca, mastigou e
cuspiu no chão, e Constância virou o rosto, enojada. Apesar de
tudo, ainda era uma dama.

— Escute dona Constância, por que não espera enquanto vou
chamar dona Palmira?
— Oh, não sei se poderia!
— É claro que poderia. Não foi para isso que veio?

Terêncio saiu e voltou sozinho, quase uma hora depois.

Palmira não quisera acompanhá-lo e não acreditara quando ele lhe
dissera que sua sobrinha, Constância, estava de volta. No entanto,
ele jurara que o que dizia era a mais pura verdade, e ela mandara
que ele levasse a mulher até ali.

Constância entrou sozinha no quarto de Palmira. Ela estava só,
sentada numa poltrona, perto da janela. Palmira permaneceu
durante longo tempo a estudá-la, sem que Constância ousasse
mexer um só músculo sequer. Até que, subitamente, olhos rasos
d'água, ela abriu um sorriso e estirou os braços. Constância correu
para ela e atirou-se a seus pés, escondendo a cabeça em seu colo e
chorando, como há muito tempo não fazia.

Capítulo 5

Dário acordou ansioso. Mal dormira na noite anterior, pensando na
conversa que teria com Ezequiel. Levantou-se cedo e se aprontou,
esmerando-se na vestimenta. Queria estar bonito para Sara. Ele a
amava e estava decidido. Já conversara com a mãe; falaria nesse
dia mesmo com os pais da moça e pediria sua mão em casamento.
Já se amavam há muito, e não havia mais motivos para esperar.

Quando chegou à fazenda Ouro Velho, a família se encontrava
reunida na sala. Ezequiel lia o jornal da manhã, e as moças
bordavam toalhas para a mesa. Dário entrou, cumprimentou a todos
e disse encabulado:

— Seu Ezequiel, será que eu podia falar a sós com o senhor?
— Aconteceu alguma coisa, meu filho? — perguntou ele. — Sua
mãe está bem?
— Sim, senhor, todos estão passando muito bem, obrigado. O
assunto não é esse, mas tem certa urgência.
Ezequiel fez cara de dúvida, mas aquiesceu:

— Está bem. Se for assim tão urgente, venha até a biblioteca.

Os dois saíram, e Rebeca olhou para Sara pelo canto do olho.

A moça apertava as mãos com nervosismo. Será que ele resolvera,
finalmente, pedir a mão da filha em casamento? Ela sorriu
intimamente e voltou à atenção para o bordado que tinha nas mãos.

Gostava muito de Dário e de sua família, e ficaria muito satisfeita
em tê-lo como genro.

Na biblioteca, Ezequiel indicou a Dário uma poltrona, sentando-se
em outra, a seu lado.

— E então? — começou. — Do que se trata?
— Seu Ezequiel — começou meio sem jeito —, nossas famílias
são amigas há muitos anos, não é mesmo?
— Sim. Por quê?
— Bem, como o senhor sabe, Sara e eu, já há algum tempo,
dedicamo-nos mútua afeição...
— Sim? — fez ele, interessado.
— Por isso gostaria de me casar com ela, se o senhor consentir,
é claro.

Ezequiel deu um salto e levantou-se, correndo para a porta e
escancarando-a. Dário, assustado, pensou que ele o expulsaria dali
e já ia atrás dele, tentando arranjar alguma desculpa, quando
escutou a voz do outro, soando tonitruante na sala ao lado:

— Rebeca! Rebeca! Venha cá, mulher, levante-se!
— Mas o que foi que houve meu Deus? — perguntou ela,
espantada.
— Por que tanto alarde?
— Rebeca, hoje tive a notícia mais feliz da minha vida. Dário,
finalmente, pediu a mão de nossa Sara em casamento.

Dário, que ia chegando logo atrás, quase desmaiou. Não esperava
que ele ficasse tão contente e parou estupefato. Ezequiel, porém,
voltou-se para ele e o abraçou, enquanto Sara chegava, pálida feito
cera. Dário tomara aquela decisão sem consultá-la, e ela ficara um
pouco surpresa.

— Papai, o que houve?
— Não ouviu minha filha? Dário disse que se amam e quer se
casar com você. Não está feliz?

Ela começou a chorar, e o pai abraçou-a com carinho. Rebeca,
ainda paralisada, balbuciou:

— É uma notícia... Maravilhosa.
— Oh, papai, o senhor nos dará seu consentimento?
— É claro, minha filha. Dário é como um filho para mim, e fico
muito feliz com seu pedido. Sei que cuidará muito bem de
você e que a fará feliz.
— E minha doença? Será que não morrerei antes?
— Nem pense nisso, minha querida — protestou Dário,
estreitando-a nos braços. — Vamos nos casar e viver felizes
para sempre.
— É verdade — concordou Ezequiel. — Você já está bem melhor.
A cor até já voltou a suas faces.
— Mas tenho medo.
— Medo de quê, meu Deus?
— Medo de contaminar alguém.
— Ora, querida, mas que bobagem — objetou o pai. — Se
tivesse que contaminar alguém, não acha que já o teria feito?
— Mas o doutor...
— O doutor não sabe de nada. Você está doente, é verdade, mas
não é nada assim tão sério. Tenho certeza de que Dário não
contrairá sua enfermidade.
— Mas e se for...
— Por favor, Sara, não diga mais nada. Não sabemos o que é.
— Mas papai...
— Nem mais nem menos. Você vai se casar e pronto. Ou será
que não o corresponde nesse sentimento?
— É claro que sim. Amo Dário, e ele sabe disso.
— Então, querida — tornou ele —, por que não podemos nos
casar? Pensei que fosse isso o que quisesse.
— É claro que quero. Mas não agora. Não antes de ter certeza de
que minha doença não é contagiosa.
— Meu amor, como seu pai mesmo disse se fosse contagiosa,
todos nós já a teríamos contraído. Vamos, deixe de tolices.
Nós nos amamos você vai ficar boa, e seremos muito felizes.
— Seus pais já sabem? — quis saber Rebeca.
— Já, sim. Mamãe ficou muito contente e já escreveu a papai,
contando-lhe tudo.
— Meu filho — tornou Ezequiel em tom grave —, tem certeza de
que é isso mesmo o que quer?
— Ora, seu Ezequiel, então não me conhece? Não acredita em
meu amor por sua filha?
— Não é isso. Mas é que você é ainda muito moço, e sei como é
o coração dos jovens.
— Já vou fazer vinte e três anos e sei muito bem o que sinto.
Amo sua filha mais do que tudo neste mundo e só posso ser
feliz a seu lado.
— E você, minha filha, também o ama assim?

Ela olhou para Dário com os olhos úmidos, cheios de amor, e
respondeu:

— Sem sombra de dúvida, papai. Amo-o além desta vida.
— Pois bem. Então está feito. Dário, assim que seu pai vier,
poderemos marcar uma data para o noivado.
— Realizar-se-á aqui mesmo, na fazenda?
— Provavelmente. Ainda vamos nos demorar por aqui, e creio
que não querem esperar.
— É claro que não, seu Ezequiel.
— Ótimo. Assim sua avó poderá vir com seus tios. A exceção do
senhor Fausto, ainda não os conhecemos.

Dário teve um estremecimento. Não havia pensado naquilo. A avó
ainda não sabia que Sara e a família eram judeus. Será que
aceitaria? Contudo, achou melhor não pensar nisso no momento. A
mãe, como sempre, saberia resolver aquele problema.

No dia seguinte, Dário saiu em busca de Camila, e ela prometeu
pensar num meio de contar tudo a Palmira. Afinal, eles se amavam,
e ela tinha que compreender. No entanto, aquele não seria o melhor
momento para revelar-lhe a verdade. Ela já estava bastante idosa,
e era preciso preparar-lhe o espírito. Camila procurou Rebeca e
Ezequiel e contou-lhes seus temores.

— Mas, Camila — protestou Ezequiel —, não podemos concordar.
Não está direito.
— Por favor, Ezequiel, tente entender. Eu não lhes pediria algo
assim se não fosse extremamente importante e necessário.
— Mas nós pensávamos que ela já sabia de tudo a nosso
respeito. Não posso concordar em permanecer incógnito. Não
tenho do que me envergonhar.
— Não se trata disso.
— Trata-se de quê, então?
— De uma caridade. Caridade para com uma senhora, velha
demais para começar a entender certas coisas.
— Hum... Não sei, não.
— Por favor, Ezequiel, é só por um tempo. Pense em nossos
filhos, em como sofreriam se tivessem que se separar. E
Sara? O que seria dela?
— Camila tem razão — intercedeu Rebeca. — Temos que pensar
na saúde e na felicidade de Sara.

Ezequiel apertou as mãos, vencido. Embora não aprovasse aquela
atitude, teria que concordar. Pelo bem de sua filha, não diria nada.
Saindo da casa dos amigos, Camila foi à busca de Trajano.
Precisava saber como estava indo a vigilância sobre Túlio. Trajano
estava ajudando Tonha, cortando lenha para o fogão, quando ela
chegou por trás e disse:

— Olá, Trajano, como está?

Ele se voltou sorridente e respondeu em tom jovial:

— Muito bem, sinhá, obrigado.
— Será que poderia me acompanhar por uns minutos?
— Claro sinhá. Eu só estava ajudando Tonha porque não tinha
nada para fazer, e a senhora sabe que não gosto de ficar à
toa.

Ele foi em direção à cozinha e chamou Tonha, avisando-lhe que
precisaria interromper o serviço. Depois que voltou, os dois se
afastaram, caminhando lado a lado pela estradinha.

— E então, Trajano, como está se saindo o meu menino?
— Túlio?
— Sim. Você tem feito como mandei, não tem?
— Direitinho sinhá. Não perco o menino Túlio de vista um só
instante sequer. Hoje ele ainda não saiu.
— E aí?
— Para ser sincero, ele bem que anda atrás da Etelvina. Mas
quando percebe que estou por perto, fica furioso e se afasta.
— Não faz mal. Antes assim. Você não lhe contou nada, não é?
— Deus me livre, sinhá. Sinhozinho Túlio é até capaz de me
matar.
— Não diga tolices. Túlio não seria capaz de matar ninguém. Não
é mau. É apenas meio doidivanas.
— A sinhá está certa. Sinhozinho Túlio tem bom coração, mas
ainda não sabe disso.
— É verdade, Trajano. E nós precisamos mostrar-lhe, não é
mesmo? Ele precisa que nós lhe indiquemos o caminho do
bem. Bem, agora vou voltar. Obrigada pela informação, e
continue a vigiá-lo.
— Não se preocupe sinhá.

No caminho de volta, Trajano avistou Etelvina voltando do riacho,
carregando uma cesta de roupa lavada. Ficou encantado ao vê-la.
Ela era linda. Mais que depressa, correu ao seu encontro, tomando-
lhe das mãos o pesado cesto.

— Deixe que ajude você — disse solícito.
— Obrigado, Trajano. Você é muito gentil.
— Ora, Etelvina, o que é isso?
— É sim. Você é fino, tem educação. Bem se vê que não foi
criado em senzala.
— Acha mesmo?
— Acho sim. Mas diga o que faz por aqui?
— Eu? Nada. Estava ajudando Tonha com a lenha.

Os dois seguiram conversando, até que avistaram Túlio saindo de
casa. Ia ligeiro, segurando nas mãos uma vara de pescar. Ao passar
por eles, cumprimentou:

— Olá, Trajano.
— Bom dia, sinhozinho. Vai pescar?
— Vou sim.
— Posso acompanhar o sinhô?
— Acompanhar-me? Depende. Se Etelvina vier junto, pode sim.

Etelvina abaixou os olhos e respondeu com voz sumida:

— Perdão, sinhô, mas tenho que cuidar da roupa.
— A roupa pode esperar — concluiu ele, puxando-a pelo braço.

Ela se assustou e começou a chorar, até que Trajano, segurando o
braço de Túlio, disse pausadamente:

— Sinhô Túlio, está assustando a moça.
— Estou? Ora, Etelvina, desculpe-me — zombou —, não tive a
intenção. Apenas pensei que gostaria de descansar um pouco
da lida.
— Agradecida, sinhô, mas não posso, não. Seu Terêncio me
castiga.
— Pode deixar que falo com ele.
— Sinhô Túlio — interrompeu Trajano —, a moça disse que não
pode. Por que não a deixa ir embora?
— Não se meta Trajano. Já estou farto de ver você me seguindo
por aí. Vá arranjar o que fazer.
— Sinto sinhô, mas não vou deixar que maltrate a menina
Etelvina.
— E quem disse que vou maltratá-la? Ao contrário, vou tratá-la
com muito carinho — e soltou estrondosa gargalhada, olhando
para ela com olhar lúbrico.

Etelvina, assustada, pediu licença e desatou a correr. Tinha medo de
sinhozinho Túlio e não gostava de ficar perto dele. Ao vê-la correr
desabalada, Túlio virou-se para Trajano e disse furioso:

— Viu o que você fez? Seu idiota.
— Desculpe sinhô, mas não pode tratar Etelvina desse jeito.
— E o que você tem com isso? Por acaso é pai dela? Não, claro
que não. Você está é interessado nela, não é? Mas não se
preocupe. Não pretendo tomá-la de você. Só o que quero é
me divertir. Ela é uma cadelinha no cio e deve estar louquinha
para ser possuída. Depois lhe conto tudinho como foi. Quem
sabe até não abro caminho para você, e você pode servir-se
dela? Depois de mim, é claro.

Trajano, perplexo, não conseguiu conter a indignação e acertou em
cheio um soco no queixo de Túlio, que imediatamente tombou no
chão, pondo-se a gritar. Na mesma hora se arrependeu e abaixou-
se para ajudá-lo a se levantar. Túlio, porém, desfigurado pela raiva,
revidou o golpe, desferindo no outro murros e pontapés, sem que
Trajano se defendesse. Com a gritaria, todo mundo acorreu, e foi
Palmira quem primeiro disse:

— Mas o que é que está acontecendo aqui, posso saber?

Vendo a avó ali parada, apoiada em sua bengala, ao lado de sua
mãe, Túlio soltou o escravo e respondeu com rispidez:

— Nada de mais, vovó. Estou apenas dando uma lição nesse
negro.
— O que foi que ele fez?
— Desrespeitou-me. Levantou a mão para mim, o insolente!
— Túlio, não acredito em você — contestou a mãe. — Conheço
Trajano e sei que ele não seria capaz de desrespeitar
ninguém. E, mesmo que o tivesse feito isso não seria motivo
para espancá-lo.
— Mas ele me bateu primeiro!
— Mentira. Trajano não é violento e jamais bateu em ninguém.
— Mas é verdade. Pergunte a ele.

Camila olhou para Trajano, que abaixou os olhos, já inchados de
tanto apanhar. Sem esperar pela pergunta, ele foi logo falando:

— É verdade, sinhá. Eu perdi a cabeça e bati no sinhozinho Túlio.
— Você o quê? — indignou-se Palmira. — Como se atreveu a
encostar a mão em meu neto, negro imundo?
— Perdão, sinhá, isso não vai se repetir.
— Ora, mas não vai mesmo. Terêncio! Terêncio! Venha cá!
Terêncio apareceu em poucos minutos.
— Chamou dona Palmira?
— Chamei sim. Quero que leve este negro para o tronco e lhe dê
uma lição.
— Sim, senhora.
— Espere Terêncio — protestou Camila. — Isso não será
necessário. Eu mesma resolverei esta questão.
— Mas, Camila, ele bateu em seu filho. Não acha que merece um
castigo?
— Não, mamãe, não acho. Conheço muito bem a ambos e sei
que, se Trajano tomou uma atitude dessas, deve ter tido seus
motivos, e bem fortes.
— Mas que horror! Como pode defender um escravo, colocando-
se contra seu próprio filho? Você enlouqueceu?
— Não, mamãe, não enlouqueci. Mas, creia-me, sei o que estou
fazendo.
— Mamãe — retrucou Túlio abismado —, vai defender esse
negro?
— Vou, meu filho, e você sabe bem por quê.
— Camila, minha filha, não vejo que motivos possam existir para
impedir o castigo do escravo que bateu em seu próprio filho.
Seja o que for não está direito.
— Por favor, mamãe, sei o que estou fazendo. E agora, Túlio,
venha comigo. Você e Trajano. Precisamos ter uma conversa.
— Sinto muito, mamãe, mas não vou aceitar uma reprimenda
por causa de um escravo que, além de insolente, ainda me
esmurrou.

Sem dar tempo a Camila para que esboçasse qualquer resposta,
Túlio se levantou e se afastou, seguindo em direção à trilha que ia
dar no riacho. Foi tão depressa que ninguém teve tempo de impedi-
lo. Palmira, satisfeita, olhou para a filha com ar de reprovação e
disse:

— Camila, você me surpreende e me decepciona. Onde já se viu
ficar contra seu filho, meu neto, e a favor desse negro? — Ela
não disse nada, e Palmira continuou: — Pois muito bem. Vou
dar-lhe um aviso. Ou você manda castigar esse escravo
insolente, ou terá que mandá-lo embora. Não quero mau
exemplo aqui.
— Mamãe, a senhora não pode me obrigar!
— Você também não pode me obrigar a tê-lo em minha fazenda.
Se aceitar o que ele fez, sem nenhum castigo, os outros
pensarão que amoleci ou, pior, que não há mais ordem em
minha casa. E isso não pode e não vou permitir.

Camila ficou abismada. Não sabia como proceder numa situação
como aquela. Castigar Trajano estava fora de cogitação. Mandá-lo
embora, impossível. Trajano, sem saber o que fazer, permaneceu
calado e imóvel, parado junto a Júlia, que o incentivava com o
olhar. Tentando apelar para a caridade, ela ainda arriscou:

— Dona Palmira, a senhora não conhece bem seu neto.

Trajano é nosso amigo e foi quem ajudou a nos criar, a mim,
inclusive. Tenho certeza de que Túlio fez algo de muito grave para
que Trajano tomasse a atitude que tomou.

Palmira olhou-a com desprezo e retrucou com azedume:

— Não importa que meu neto não tenha sido criado perto de
mim e que, por isso, não o conheça muito bem. O que
realmente tem importância é que ele carrega em suas veias o
meu sangue e o sangue de meu primeiro marido, Gaspar, que
Deus o tenha. E tanto eu quanto ele, e também Licurgo,
jamais aceitaríamos tamanha barbaridade. Um escravo
sempre será um ser inferior, não importa o quanto possa ter
tentado agir corretamente. E enquanto eu for viva, jamais,
ouviu bem? Jamais um neto meu será humilhado por um
negro sem o devido castigo. E quanto a você, mocinha, é uma
estranha nesta casa, e peço que se coloque em seu lugar,
evitando dar opiniões quando não solicitadas. Devo lembrá-la
de que a recebi aqui em consideração a minha filha, mas
posso muito bem mudar de idéia e mandá-la embora junto
com esse negro que você se atreve a chamar de amigo.

Palmira voltou-lhe as costas e se foi, espumando de raiva, seguida
por Terêncio. Então aquela atrevida ainda ousava questioná-la?
Camila, por mais errada que estivesse ainda era sua filha, e ela
tinha que tolerar. Mas uma estranha? Isso não. Apesar da idade e
da bengala, ela atravessou o terreiro feito uma bala, dando de cara
com Tonha, que permanecera afastada, presenciando aquela cena
com uma pontada de amargura. Ao passar por ela, Palmira estacou
e, olhando fundo em seus olhos, esbravejou:

— Deve estar satisfeita, não é negra? Pensa que se vinga de mim
com isso? Pensa que só porque minha filha e aquela mocinha
se voltaram contra mim você pode me espezinhar? Pois está
muito enganada. Ponho-os a todos para fora daqui, inclusive
você. Não pense que vou admitir sem-vergonhices entre
negros e brancos em minha casa novamente. Não está
satisfeita com o que me fez, roubando-me a vida de meu filho
e de Inácio? Pretende ainda desforrar-se de mim, acobertando
pessoas que aqui vieram para me humilhar? Pois não vai,
ouviu? Mato-a antes disso.

Tonha abaixou a cabeça, envergonhada. Podia sentir em suas
palavras todo o rancor daqueles anos em que vivera naquela casa
sob o ódio mal disfarçado de Palmira. Ela ainda a acusava pela
morte de Inácio e de Cirilo, e aquela situação, não sabia por que,
evocara todo o ressentimento que vinha ocultando dentro de si,
fazendo com que voltasse contra ela sua ira desenfreada, como se
ela fosse à culpada por aquele infeliz incidente.

Palmira nunca pudera perdoar Tonha pela morte de seus meninos.
Mas a verdade é que, desde que Constância ali chegara pobre e
envelhecida, o ódio de Palmira só fizera crescer. Ninguém sabia de
sua presença ali. Ela apenas dissera que recebera a visita de uma
amiga que chegara para passar uns dias. Contara que a senhora
estava velha e só precisava de um lugar para repousar. Por isso,
ninguém deveria incomodá-la. A princípio, todos ficaram curiosos,
mas, com o passar dos dias, ela acabou caindo no esquecimento, e
ninguém mais parecia se lembrar daquela velhinha. Contudo,
Constância estava ali, e sua presença avivava o ódio de Palmira por
Tonha e pelos escravos.

Nesse instante, Rodolfo e Fausto, que iam chegando da plantação,
ainda puderam escutar parte da agressão da mãe e estacaram
admirados.

— Mas o que é que está acontecendo aqui? — perguntou Fausto,
indignado. — Por que está brigando com Tonha desse jeito?
— Nada! — gritou a mãe. — E saiam da minha frente. A última
coisa de que preciso no momento é de mais um defensor de
negros!

E empurrou-os para o lado, passando por eles feito um furacão.
Rodolfo e Fausto entreolharam-se e deram de ombros,
demonstrando que não haviam entendido nada daquela cena.
Contudo, quando olharam mais adiante, avistando a família parada
no terreiro, tiveram certeza de que algo muito sério deveria ter
acontecido.

Rodolfo, mais que depressa, saiu atrás da mãe, na esperança de
que ela lhe contasse algo. Fausto, por sua vez, foi ter com Júlia. A
moça estava chorando, abraçada a Camila, que acariciava seus
cabelos, tentando consolá-la. Preocupado, aproximou-se e indagou:
— Será que alguém pode me dizer o que está acontecendo por
aqui?

Júlia olhou para ele em lágrimas e virou-lhe as costas, tomando a
direção da casa grande. Ele tentou detê-la, mas foi impedido por
Camila que, segurando-lhe o braço, disse com voz pesarosa:

— Deixe-a, Fausto. Ao menos por enquanto.
— Mas o que foi que houve? Preciso saber.
— Venha comigo e lhe contarei.

Trajano, que permanecera quieto durante o desenrolar de todo
aquele drama, levantou-se de súbito e disse:

— Sinhá Camila, perdoe-me, eu não queria...
— Sei que não, Trajano.
— O que a senhora pretende fazer comigo?

Ela o olhou cheio de pena e disse para o filho:

— Dário, leve Trajano para a fazenda Ouro Velho e explique tudo
a Ezequiel. Peça-lhe que o deixe ficar lá até que resolvamos o
que fazer.
— Está bem, mamãe — concordou Dário. — Ia mesmo sugerir
isso.

Os dois saíram em direção à senzala, onde Trajano pegou suas
coisas, e partiram em seguida para a casa de Ezequiel. Camila,
depois que eles se foram, puxou Fausto pelo braço e saiu em
direção ao jardim, caminhando enquanto falava. Minuciosamente,
contou-lhe tudo o que acontecera, desde quando escutara os gritos
de Túlio, até aquela cena horrorosa que ele e Rodolfo haviam
presenciado.
— Pobre Júlia - lamentou Fausto. — Mamãe sabe ser cruel
quando quer.
— Júlia está arrasada. Francamente, mamãe não precisava ter
falado com ela daquele jeito.

Fausto, estarrecido, ainda perguntou:

— Mas por que, meu Deus? Por que Trajano foi fazer isso?
— Não sei, mas desconfio. No entanto, ele não teve tempo de se
explicar. Mais tarde, depois que a poeira abaixar, irei até a
casa de Rebeca para descobrir o que realmente aconteceu.
— Desconfia de quê?
— Sabe aquela escrava bonitinha, que vive pra cima e pra baixo
com uma cesta de roupas, a Etelvina?
— Sei. O que tem ela? Não vá me dizer que Túlio está atrás da
menina.
— Isso mesmo.
— Ora, Camila, desculpe-me, mas não creio que isso seja motivo
para Trajano bater nele.
— Isso porque você não conhece o seu passado.
— Como assim?

Camila narrou-lhe os antecedentes do filho. Fora um caso triste e
trágico, a moça morrera na flor da idade, e ela não queria que isso
se repetisse. Por isso mandara Trajano vigiar Túlio. Para impedir que
uma nova desgraça sucedesse, repetindo aquela tragédia do
passado.

— Compreendo — disse Fausto, pensativo. — Mas, ainda assim,
minha irmã, não creio que Trajano tenha agido direito. Afinal,
é um escravo. Deveria tê-la procurado e contado tudo.
— Fausto, não o julgue. Não sabemos o que realmente
aconteceu. Túlio, com certeza, fez algo de extrema gravidade
para que Trajano lhe batesse.
— E o que pretende fazer?
— Não sei. Preciso pensar. Acho que o melhor a fazer seria irmos
todos embora daqui.
— Você não pode fazer isso!
— Por que não?
— Por que... Por que... Júlia e eu... Nós nos amamos...

Ela o encarou e suspirou. Fausto era um bom rapaz, e ele e Júlia
pareciam feitos um para o outro. Ambos já não eram mais crianças
e saberiam construir uma vida segura e sólida. No entanto, havia o
problema com Trajano. Como poderia admitir que ele fosse expulso?
Castigá-lo, jamais o faria. Fausto, amargurado, replicou:

— Ouça Camila, não estou pedindo para castigar o escravo. Nem
que o expulse daqui. Mas se você já o mandou para a fazenda
Ouro Velho, por que não deixá-lo lá por uns tempos? Mais
tarde mamãe voltará atrás. Conversarei com ela, farei com
que veja o quanto foi injusta.
— Acha que poderá?
— Tentarei. Não posso viver sem Júlia, e se ela partir, meu
coração partirá com ela.
— Por que não vem conosco? Sabe que será muito bem-vindo
em minha casa.
— Eu sei Camila, e agradeço. Mas não posso partir assim,
deixando a fazenda só com Rodolfo. Tenho minhas obrigações
aqui e gosto de administrar nosso patrimônio. Mais tarde,
quem sabe? Mas agora, não. Mamãe precisa de mim.
— Entendo... Mas eu, sinceramente, não sei o que fazer. Júlia,
provavelmente, está trancada no quarto, chorando. Não sei se
vai querer ficar aqui depois disso.
— Deixe-me falar com ela. Nós nos amamos e vamos encontrar
uma solução.

Ele abraçou a irmã e partiu em busca de sua amada. Júlia,
conforme Camila previra, estava trancada no quarto e não queria
falar com ninguém. Mas Fausto tanto bateu e tanto insistiu que ela
acabou cedendo e abriu a porta. Ele entrou rapidamente e,
tomando-a nos braços, beijou-a com ardor.

— Oh, minha querida — sussurrou em seu ouvido. — Já sei de
tudo. Camila me contou.

Ela se apertou ainda mais contra ele e continuou a chorar, cada vez
mais sentida.

— O que vou fazer, Fausto? Não posso mais ficar aqui depois do
que aconteceu.
— Pode sim. Isso vai passar. Tenho certeza de que mamãe só
disse aquilo na hora da raiva. Ela vai reconsiderar você vai
ver.
— Não estou interessada em sua reconsideração. Sua mãe me
ofendeu, humilhou-me, e isso não posso permitir. Tenho meus
brios, meu orgulho. Não vou me sujeitar a esperar seu perdão
ou sua condescendência. Prefiro antes partir, ainda que tenha
que ficar longe de você.
— Por favor, minha querida, não se vá. Não posso viver sem
você.
— Também não quero deixá-lo. No entanto, é a única solução
possível.
— Deixe-me falar com mamãe primeiro. Tenho certeza de que
ela vai cair em si e virá falar com você, pedindo-lhe
desculpas.
— Ela já está velha e deve estar um pouco senil.
— Sua mãe estava muito lúcida quando me atirou na face
aquelas barbaridades. Além disso, ainda tem Camila. Com
certeza, ela também desejará partir.
— Já falei com minha irmã, e ela concordou em esperar.
— Concordou?
— Sim. Eu praticamente lhe implorei.
— Ainda assim, não posso ficar. Não quero.
— Por favor, Júlia, você está sendo infantil.
— Infantil? Acho que estou sendo sensata. Não preciso me expor
a esse tipo de constrangimento.
— Sei que não. Mas você não me ama?
— Você sabe que sim.
— Então, por que não me dá uma chance? Por que não dá uma
chance a minha mãe? Deixe-me falar com ela, e se ela se
recusar a pedir-lhe desculpas, você poderá partir, e eu irei
com você. Caso contrário, você fica. Então, que tal? Não é
uma proposta razoável?

Júlia pensou por alguns segundos, até que concordou:

— Está bem. Mas só esperarei até hoje à noite. Se ela não se
conscientizar da injustiça que cometeu, partirei amanhã de
manhã, com ou sem você.
— Está certo, querida, obrigado. Verá que não vai se arrepender.

Enquanto isso, no quarto de Palmira, Rodolfo tomava as dores da
mãe, inflamando-a contra o escravo. Não gostara dele desde o
início. Sempre andando de um lado para outro, de olho nas escravas
de dentro. Não fazia nada, vivia a vagabundear pela fazenda. Não
entendia por que Camila o trouxera. Ele era um inútil, não servia
para nada. E depois, bater em seu sinhô? Era uma afronta que não
merecia perdão.

Palmira, animada por suas palavras, cada vez mais se enchia de
ódio por Trajano, julgando-o um verdadeiro demônio, que
enfeitiçara sua filha para se apoderar de seus netos. Quem sabe até
não fosse algum degenerado? Estimulada pela inveja de Rodolfo,
que pretendia com isso vingar-se de Júlia, Palmira ia cada vez mais
acreditando em suas fantasias e já pensava mesmo em mandar
matar o escravo, quando ouviram batidas na porta. Maquinalmente
ordenou:

— Entre.

A porta se abriu e Fausto entrou. Olhou para ela, depois para
Rodolfo e disse:

— Como está, mamãe?
— Como queria que eu estivesse? Feliz?
— Não, claro que não. Foi um lamentável incidente.
— Chama de lamentável a ousadia de um negro que encosta a
mão em um branco? Chama de incidente o fato desse mesmo
negro haver batido em seu próprio sobrinho? Por muito menos
seu pai mandou um escravo para o tronco, só porque se
atreveu a segurar em meu braço.
— Não vim aqui para questionar isso, mamãe. Não quero me
envolver nessa história.
— Ah, não? E por que veio então?
— Para falar de Júlia.

Ao ouvir o nome de Júlia, Rodolfo apurou os ouvidos. O que estaria
pretendendo o irmão? Mal contendo a surpresa e a ansiedade,
indagou:
— De Júlia?
— Sim, de Júlia.
— O que quer? — retrucou Palmira, fuzilando de ódio. —
Defendê-la? Ela é uma atrevida e uma intrometida, isso sim.
Não pertence a nossa família e não tinha o direito de se
meter.
— Mas o escravo é dela...
— Pare Fausto, não vou permitir! — cortou Rodolfo. — Se veio
aqui para defendê-la, pode ir dando o fora. Ela insultou nossa
mãe, e você deveria ser o primeiro a não apoiá-la.
— Ela não insultou ninguém. Apenas tentou defender Trajano.
— Com que direito? Ela é tia de Túlio. Deveria ter tomado sua
defesa, assim como nós estamos fazendo.
— Será? Será que ele merecia mesmo ser defendido?
— É claro que sim. Um negro o esbofeteou, e isso já é o
suficiente para defendê-lo.
— Está certo, Rodolfo, não vamos brigar nós dois.
— Não quero brigar. Mas não vou admitir que você contrarie
mamãe só para ficar do lado daquela vagabunda que,
provavelmente, até já se deitou com o negro!

Nesse instante, Fausto não conseguiu se conter. A exemplo de
Trajano desferiu violento golpe no queixo do irmão, que rodopiou e
bateu contra a parede, espumando de ódio. Ele se recompôs
rapidamente e partiu para cima de Fausto, e os dois puseram-se a
brigar, distribuindo socos e pontapés. Palmira, horrorizada, começou
a gritar:

— Parem com isso! Já não basta aquele escravo ter batido em
meu neto? Agora vou ter que presenciar também uma briga
entre meus filhos, por causa de uma mulher?
— Foi ele quem começou — disse Rodolfo, entre dentes.
— Não importa quem começou. Não vou permitir que meus filhos
se matem por uma estranha.
— Mas, mamãe — objetou Fausto —, Rodolfo chamou Júlia de
vagabunda. Acusou-a de se deitar com Trajano. Nunca ouvi
ofensa maior.
— E daí? O que isso lhe diz respeito? Ela é cunhada de sua irmã.
Não tem laços conosco. Túlio sim. É meu neto, seu sobrinho,
sangue de meu sangue. Você devia se envergonhar de bater
em seu irmão por causa de uma moça cuja reputação, ao que
parece, é bastante duvidosa.

Fausto já ia retrucar quando Rodolfo, em tom sarcástico, antecipou-
se:

— Deixe mamãe. Sei por que Fausto a está defendendo. É
porque estão namorando, não é? Ela já se deitou com você
também? Fausto encarou-o com ódio. Quase partiu para cima
dele de novo, não fosse à mãe, que interveio perplexa.
— O quê? Meu filho, envolvido com uma defensora de negros?
Jamais permitirei.
— Estou envolvido com Júlia sim, mas é porque nos amamos. E
ela nada tem de vagabunda, nem nunca se deitou com
ninguém. É uma moça honesta e decente, e pretendo casar-
me com ela.
— O quê? Ficou louco? Se seu pai estivesse vivo, com certeza já
lhe teria dado um corretivo.
— Acontece, mamãe, que papai está morto, e eu já estou bem
grandinho para receber corretivos de quem quer que seja.
Sou um homem, não um menino.
— É um tolo, isso sim. Aquela moça não presta, não é mulher
para você.
— Posso saber por quê?
— Porque está do lado dos negros, e quem é a favor dos negros
é contra mim.
— Lamento muito que a senhora pense assim, mamãe, mas já
tomei minha decisão. Se não a aceitar, vou-me embora daqui
amanhã mesmo.

Palmira estacou, indignada. Amava os filhos, eram as únicas pessoas
que tinha no mundo, e não admitiria perdê-los para nenhuma
aventureira. Um pouco hesitante, murmurou:

— Não pode estar falando sério.
— Jamais falei mais sério em toda a minha vida. Amo Júlia e ela
me ama, e não podemos mais viver separados. Se não a
aceitar, partirei com ela.
— Deixe que vá, mamãe — atalhou Rodolfo. — Será melhor para
todos.
— Quieto, Rodolfo, você não sabe o que diz. — Voltando-se para
Fausto, acrescentou: — Você não faria isso. Está blefando.
— Acha mesmo? Então experimente expulsá-la.
— Meu filho, por favor, não faça isso — revidou em tom de
súplica. — Não suportarei perdê-lo.
— Não se preocupe. A senhora ainda terá Rodolfo, com quem
poderá contar sempre.
— Mas você é tão meu filho quanto ele. Não posso prescindir de
nenhum dos dois. Vocês são minha vida. São tudo o que
tenho. Por favor, meu filho, não me mate. Se você for
embora daqui, esteja certo de que não poderei agüentar e
morrerei logo em seguida.
— Mamãe, está sendo dramática. A senhora não vai morrer.
— Será que não? Quer experimentar? Será que vai suportar
carregar essa culpa pelo resto de sua vida?
Fausto titubeou. É claro que amava a mãe e não queria que ela
sofresse muito menos que viesse a morrer. Contudo, não podia abrir
mão de sua amada, e respondeu hesitante.

— Não... Claro que não quero que a senhora morra... Contudo,
não vou ceder ao seu apelo ou a suas chantagens.
— O que quer que eu faça? Que reconsidere e a deixe ficar?
— Não exatamente. Quero que vá falar com ela e lhe peça
desculpas.

Ela levantou-se, indignada.

— Isso nunca! Jamais descerei tão baixo!
— Mamãe, deixe de lado o orgulho e peça-lhe perdão. A senhora
errou, foi injusta.
— Já disse que não. Peça-me o que quiser menos isso.
— Mas por quê? É tão difícil assim desculpar-se com alguém?
— Nesse caso, é. Ela me fez uma desfeita, e não posso perdoá-
la.
— Foi à senhora quem a desrespeitou, mamãe, humilhando-a na
frente de todos.
— Pouco me importa.
— É a sua última palavra?
— Sim.
— Pois então, sinto muito. Não tenho mais nada a fazer aqui.
Amanhã mesmo deixarei esta casa em companhia de Júlia.

Ele virou-lhe as costas e dirigiu-se para a porta, passando por
Rodolfo, que o olhava triunfante. Já ia girar a maçaneta quando a
mãe o chamou de volta.

— Fausto, por favor, não faça isso, eu lhe imploro.

Ele parou e indagou, sem se voltar para ela:

— Vai fazer o que lhe pedi?
— É isso o que quer?
— É isso.
— É a única maneira de mantê-lo ao meu lado?
— Sim.

Ela suspirou, deixando que os braços tombassem numa atitude de
pura resignação, e disse com voz sumida.

— Então está bem. Se for o que quer, seja feita a sua vontade.
Falarei com ela, pedir-lhe-ei perdão. Mas não me peça que
goste dela.
— Obrigado, mamãe — agradeceu emocionado. — Com o tempo,
tenho certeza de que a senhora esquecerá tudo e verá que
moça maravilhosa ela é.
— Duvido muito. No entanto, não posso perdê-lo para ela, e se
essa é a única maneira de impedir que você faça a besteira de
partir daqui, eu me curvarei a sua vontade e me desculparei
com Júlia.

Rodolfo, que até então permanecera calado, não podendo mais
conter o ódio e a indignação, deu um salto na frente de Palmira e
explodiu:

— Mamãe, a senhora não pode estar falando sério! Não vou
permitir que se rebaixe, pedindo perdão àquela... Àquela...

Mas não concluiu. Olhando para Fausto, resolveu voltar atrás. Não
queria começar nova briga.
— Não se meta Rodolfo. O que faço é para o bem de todos. O
seu inclusive.

E saiu, em companhia de Fausto, dirigindo-se ao quarto de Júlia, a
fim de pedir-lhe perdão. Embora Palmira, naquele momento,
sentisse um ódio desmedido pela moça, o fato é que soube muito
bem disfarçar e falou com ela amistosamente, como se estivesse
realmente arrependida da injustiça que cometera. Pediu-lhe
desculpas, justificando suas palavras com a lembrança do filho e do
sobrinho, que haviam padecido muitos anos atrás, vítimas de
nefasto incêndio, provocado por uma escrava.

Júlia, alma boa e generosa, embora não se tivesse convencido das
palavras de Palmira, achou melhor não contestar. Também ela não
queria deixar Fausto, tampouco queria forçá-lo a abandonar suas
obrigações. Assim, calou em seu íntimo a dúvida acerca da
sinceridade daquele gesto e aceitou o pedido de desculpas com
simplicidade e humildade, permanecendo na fazenda, o que só
serviu para inflamar ainda mais a raiva de Rodolfo.

Capítulo 6

No dia seguinte, Camila foi ter com Júlia. Estava preocupada com
Túlio e com Trajano. O filho sumira no meio do mato. Ninguém
sabia de seu paradeiro. E Trajano, àquelas horas, com certeza já
estava alojado na fazenda Ouro Velho.

— E então? — começou Camila a dizer. — Vamos saber notícias
de Trajano?
— Sim, acho melhor irmos logo. Acha que ele está bem?
— Creio que sim. Rebeca é uma boa mulher, e Dário disse que
ela o acolheu de boa vontade.
— E Túlio? Alguma notícia dele?
— Seu sobrinho desapareceu. Estou preocupada, mas sei que
está bem. Do jeito que é, deve estar esperando a poeira
assentar para aparecer.
— Tem razão. Mas onde andará?
— Não sei. Na vila, talvez. Com certeza, deve estar afogando as
mágoas nos braços de alguma prostituta.
— É verdade, Camila. Por que será que Túlio é tão sem-juízo?
— Não sei minha filha. Mas deve ser culpa nossa. Minha e de seu
irmão. Sinto que falhamos com ele em alguma coisa.
— Oh, não, Camila, não diga isso! Você e Leopoldo são pais
maravilhosos. Veja Dário, e até eu, que fui criada por vocês
desde pequenina. Não creio que tenham falhado com Túlio.
Creio que ele é que não sabe reconhecer e agradecer pelos
pais que tem.
— Você é muito gentil, minha querida. Quisera pensar como
você. Bem, já está pronta? Então vamos.

Quando saíram, Dário já as estava esperando. Ele mesmo guiaria a
charrete que os conduziria até a fazenda Ouro Velho.

— Tudo pronto, meu filho? — perguntou Camila.
— Sim, mamãe. Podemos partir.
— Aonde é que vocês vão? — indagou Rodolfo, que chegava de
dentro de casa.

As moças tiveram um sobressalto, mas Camila respondeu:

— Vamos dar um passeio.
— Posso saber onde?
— Não sei. Por aí. Agora, com licença, Rodolfo. Estamos com
pressa.
Sem dar-lhe tempo de responder, elas subiram na carroça, ao lado
de Dário, e partiram. Júlia se foi sem nem ao menos falar com ele,
e Rodolfo indignou-se. Não era possível que ela preferisse o irmão a
ele. Eram iguaiszinhos, por que não gostara dele? Pensando nisso,
Rodolfo imaginou que seria muito fácil afastar Fausto de seu
caminho. Ele tinha que tomar Júlia do irmão. Jamais poderia permitir
que Fausto tivesse algo que ele não possuísse. Eram idênticos, e ela
se afeiçoaria a ele tanto quanto se afeiçoara ao irmão. Rodolfo, em
sua cegueira, não podia perceber que Júlia os distinguia, não pela
aparência, mas pela nobreza de sentimentos. Depois de tudo o que
vira e ouvira, ela estava certa de que Fausto era de um caráter
nobre e digno, ao passo que Rodolfo parecia-lhe extremamente
egoísta, mesquinho e maldoso.

Quando chegaram à fazenda Ouro Velho, o próprio Trajano fora
recebê-los. Ia cabisbaixo, uma ruga de preocupação no rosto e
profundas olheiras, demonstrando que quase não dormira. A seu
lado, os amigos Juarez e Laurinda, que tentavam, a todo custo,
animá-lo. Ele ajudou as moças a descer, e Camila perguntou:

— Como está, Trajano?
— Bem, sinhá, obrigado. E sinhozinho Túlio?
— Ainda está sumido, mas não se demora a aparecer.

Júlia, vendo o arde tristeza estampado em seu rosto, resolveu
consolá-lo:

— Não se preocupe Trajano, ele está bem. Depois que tudo se
acalmar, com certeza, ele volta.
— Foi o que dissemos a ele — acrescentou Juarez. — Mas ele não
nos dá ouvidos...
— Não é isso, Juarez — objetou Trajano. — Mas é que sinhozinho
Túlio é um menino ainda. E depois, a culpa foi minha. Não
devia ter batido nele. Não tinha esse direito.

Nesse instante, Rebeca chegou à companhia de Sara, e Dário correu
para abraçá-la. Ela estava um pouco pálida e não se sentia muito
bem. Depois dos habituais cumprimentos, o grupo entrou em casa, e
foi só então que Trajano os colocou a par de tudo o que acontecera.
No dia anterior não conseguira falar nada. Fizera todo o trajeto em
silêncio, um brilho de tristeza no olhar, e se recolhera logo que
instalado. Não quisera conversar com ninguém. Apenas com Juarez,
que além de seu amigo, era também de sua raça e o único ali capaz
de entender o que lhe ia à alma.

Ao final da narrativa, Camila olhou para ele com ar grave e
ponderou:

— Não posso dizer que fez bem, Trajano, mas entendo seus
motivos. Qualquer um, no seu lugar, teria feito o mesmo.
— Não, sinhá. Eu sou negro e escravo, e jamais poderia ter
batido em sinhozinho Túlio.
— Deixe disso — cortou Júlia. — Você só é escravo porque quer.
Leopoldo bem que quis alforriá-lo.
— Isso não vem ao caso, sinhazinha. O que faria sendo livre?
Sou feliz onde estou e não saberia o que fazer com a
liberdade. Para mim, a única coisa que importa é servir sinhá
Camila e sua família.
— Sei disso, Trajano, e agradeço — disse Camila, emocionada. —
E agora, não pense mais nisso. Deixe tudo por minha conta.
— Está bem, sinhá, mas o que será de mim?
— Por enquanto, é melhor que fique aqui, se Ezequiel e Rebeca
não se importarem.
— É claro que não nos importamos — Ezequiel tratou logo de
dizer. — Não é mesmo, Rebeca?
— Não, claro que não. Trajano sempre foi um bom rapaz, e
vocês são nossos amigos.
— Então está ótimo.
— Mas até quando, sinhá?
— Por que, Trajano? — indagou Rebeca. — Por acaso não gosta
de nós?
— Deus me livre de tamanha ingratidão, sinhá! Não é nada disso.
Mas é que sinto falta dos meninos, principalmente de
sinhazinha Júlia.

Júlia sorriu e retrucou:

— Pois não precisa. Dário e eu estaremos sempre por perto. Sara
é minha amiga e está quase noiva de Dário.
— Por falar em noivado — cortou Sara —, ouvi dizer que você
também está comprometida.
— Não é bem assim — contestou ela, corando. — Fausto e eu
ainda não assumimos nenhum compromisso formal.
— O que não demorará muito a acontecer — acrescentou
Camila, sorrindo.

De repente, Sara empalideceu e começou a tossir. Era uma tosse
rouca, e ela parecia que ia engasgar. Seu semblante, de pálido foi
passando a roxo, e todos pensaram que fosse sufocar. Foi um
desespero geral. Rebeca, apavorada, dava-lhe tapinhas nas costas,
tentando fazer com que o catarro se soltasse e liberasse passagem
para o ar. Foi terrível. Ninguém sabia o que fazer, até que Camila
tomou sua mão e tentou acalmá-la, pedindo a todos que se
aquietassem. Com voz suave, dizia:

— Calma, Sara, devagar. Não fique nervosa. E só uma crise e vai
passar. Procure manter a calma e respirar profunda e
tranqüilamente, sem pressa, sem afobação.

Sara fez como Camila lhe dizia e, aos poucos, foi recobrando o
alento, e a respiração pareceu quase normalizar. Mas ela ficara
exausta e deixara a cabeça tombar sobre a almofada, quase
desfalecida. A palidez voltou ao seu rosto, e ela ficou ali, de olhos
fechados, parecendo dormir. Dário, apavorado, andava de um lado
para outro, enquanto a mãe corria a preparar-lhe um chá. Camila,
assustada, ainda indagou:

— Mas o que será que tem essa menina?
— O médico não sabe ao certo — respondeu Ezequiel, que não
tirava os olhos da filha, certificando-se de que respirava.
— Mas nem desconfia? Não é possível que não tenha nenhuma
suspeita.
— Ele não quer dar nenhum diagnóstico precipitado ou
equivocado.
— Sim, mas o que ele pensa que é?

Ezequiel encarou-a com amargor e respondeu, desolado:

— Ele pensa que ela está tísica.
— Meu Deus!
— Mas ela não está! Sei que não está!
— Por favor, Ezequiel, acalme-se — disse Rebeca, que chegava
da cozinha. — Isso não vai ajudá-la em nada. E depois, você
sabe que ela mesma pensa assim.
— Mas ela está enganada. Deve ser uma outra coisa qualquer.
Ela não pode estar tísica. É tão jovem, vai se casar. Isto é, se
Dário ainda a quiser...
— Escute seu Ezequiel — interrompeu Dário. — Amo sua filha
acima de qualquer coisa na vida, esteja ela doente ou não.
— Mas todos sabem que a tuberculose é contagiosa.
— Não estou preocupado com isso. Em primeiro lugar, porque
não creio que ela esteja tísica. Em segundo lugar, porque não
me importo.

Ezequiel olhou para Camila com ar interrogativo. O que ela pensaria
de tudo aquilo? Afinal, era mãe e, com certeza, não gostaria de ver
o filho padecer daquela doença horrorosa. Camila, adivinhando-lhe
os pensamentos, foi logo o tranqüilizando.

— Não se preocupe com isso, Ezequiel. Deus sabe o que faz. E se
meu Dário tiver que adoecer, não creio que seja por culpa de
ninguém.
— Como não? Se ele adoecer, com certeza, terá contraído a
doença de minha filha.
— Não estou bem certa disso. Acredito que as enfermidades
tenham uma razão de ser, mas também creio que só as
contraem aqueles que delas necessitam.
— Não entendo você, Camila — objetou Rebeca. — Quer dizer
que acha que Sara precisava ficar doente?
— Não é bem assim. Creio que as doenças servem para nos
alertar de algo, só não sei o que é. E não é que Sara
precisasse ou merecesse ficar doente. Em absoluto. Apenas
penso que essa doença deve estar sendo útil a ela de alguma
forma.
— Mamãe! — protestou Dário, indignado. — Por acaso
enlouqueceu, é? De onde tirou essas idéias?
— Da observação, da experiência. Todas as pessoas que
adoecem possuem uma enfermidade na alma.
— Mas que enfermidade na alma? — contestou Ezequiel, que já
começava a se zangar. — Quer dizer que minha Sara possui
algum tipo de vício ou defeito?
— Não, não é isso. Mas se vocês observarem bem, Sara sempre
foi uma menina fechada, triste, amarga. Pouco sorri, e mesmo
quando criança, não raras eram às vezes em que se isolava,
afastando-se das brincadeiras e dos folguedos.
— Sim, mas, e daí?
— E daí que, durante os anos em que estive naquele convento,
ajudei a cuidar de vários doentes dos pulmões, e todos tinham
uma característica em comum: eram todas as pessoas tristes,
solitárias, que se sentiam abandonadas por tudo e por todos.
— Francamente, Camila — censurou Rebeca —, acho que você
está imaginando coisas.
— Será mesmo? Pois bem. Prestem atenção ao comportamento
de Sara e depois me digam se não é verdade.
— Camila tem razão — concordou Júlia. — Lembro-me muito
bem de que Sara sempre foi dada a tristezas profundas, que
nem ela sabia explicar.
— Bem, de qualquer forma — objetou Ezequiel —, ainda que isso
seja verdade, não acha que ela já se modificou? Tem o amor
de todos nós, tem até um noivo que a ama. Não vejo por que
se sentir tão triste ou abandonada.
— Você não está entendendo, Ezequiel. Esses sentimentos vêm
da alma, e não do corpo. São muito mais profundos do que
podemos compreender. Talvez nem ela mesma saiba o porquê
de tanta solidão. Mas o fato é que nós, muitas vezes, sentimos
coisas que não sabemos definir e cujas origens não podemos
precisar. Quem sabe por quê?
— Deus, talvez — arriscou Júlia.
— Com certeza, minha filha, Deus é único e soberano, e
conhecem todos os seus filhos, mesmo aqueles mais calados e
distantes.
— Talvez você tenha razão, Camila — começou Rebeca a
concordar.
— De hoje em diante, prometo prestar atenção em Sara.
— Faça isso. Tente falar com ela, fazer com que se abra e se
sinta amada. Creio que só assim poderá se livrar desse mal
que a aflige.

Nesse instante, Sara tossiu levemente e abriu os olhos, dando de
cara com Dário, que estava sentado a seu lado. Ela se levantou,
ainda sentindo-se fraca, e Laurinda chegou com o chá, que ela
bebeu rapidamente. Estava com sede e sentiu-se melhor.
Intuitivamente, dirigiu um olhar de agradecimento a Camila e lhe
sorriu. Sem saber por que, sentia como se Camila, de repente,
houvesse atingido o âmago de seu ser, iniciando a desvendar
segredos e mistérios que nem ela, nessa vida, poderia imaginar.

Mais tarde, ao voltarem para casa, receberam a notícia de que Túlio
havia retornado. Ele estava em seu quarto, em companhia de
Rodolfo, e parecia não querer falar com mais ninguém. Camila,
indignada, partiu para lá. Ele era seu filho, e ela precisava saber
como estava. Cautelosamente, bateu na porta e esperou, até que
uma voz lá de dentro ordenou:

— Entre.

Ela abriu a porta lentamente e encontrou-o sentado a uma mesinha,
jogando xadrez com Rodolfo. Aquilo não deixou de causar-lhe certa
irritação. Então ele fazia o que fazia e depois ficava ali sentado,
jogando xadrez, como se nada tivesse acontecido? Ela teve vontade
de gritar com ele, mas conteve seu ímpeto. Queria evitar brigas e
disse mansamente:

— Túlio, meu filho, onde esteve? Fiquei preocupada.

Ele a olhou com ar divertido e respondeu fazendo mofa:

— Ficou? Pois não devia.
— É claro que devia. Você é meu filho e preocupo-me com você.
Quero saber onde esteve.
— Muito obrigado, mamãe, mas não precisa se preocupar. Tio
Rodolfo cuidou de mim.

Ela olhou para o irmão com ar interrogativo, e ele balançou a
cabeça, concordando com o que Túlio dissera.

— Como assim, cuidou de você?
— Ora, querida irmã — disse Rodolfo com desdém —, Túlio
passou a noite comigo, em meu quarto.
— O quê? Quer dizer então que ele esteve aqui todo o tempo e
você não me disse nada?
— E por que deveria?
— Porque sou a mãe dele. Estava preocupada, e você sabia
disso. Devia ter-me contado.
— Não devia, não. E depois, se você se importasse tanto com
seu filho, não o teria trocado por um negro!

Camila olhou-o magoada e respondeu:

— Isso não é justo. Eu jamais trocaria meu filho por quem quer
que fosse.
— Ah, não, mamãe? E o que fez, então, tomando o partido de
Trajano, como se ele fosse o senhor e eu um maldito
criminoso? Afinal, não fiz nada de mais.
— Túlio, meu filho, não vou levar em consideração o que diz,
porque sei que está com raiva. Mas se fizer um exame em sua
consciência, verá que Trajano tinha certa razão.
— Mas que razão, Camila? — cortou Rodolfo. — Ora,
francamente, minha irmã, creio que você perdeu o juízo.
Onde já se viu tirar a razão de um branco para dá-la a um
negro?
— Rodolfo, por favor, não se intrometa. Você não conhece os
motivos que levaram Trajano...
— Conheço-os muito bem. E não vejo motivo para tanto alarde.
Recriminar Túlio só porque se divertiu com uma negra? E daí?
É para isso que elas servem.
— Rodolfo, como pode dizer uma coisa dessas? — Camila estava
horrorizada. — Você, um homem civilizado, pensar isso de
outro ser humano?
— Ouça Camila, não quero iniciar uma discussão sobre a
natureza dos escravos. Essa questão não me interessa. Só o
que sei é que os escravos têm por função nos servir, sejam
eles gente ou animais. E se Túlio escolheu servir-se de uma
negra, fez muito bem. E se ela morreu, tanto melhor. Ao
menos assim ele não teve que se expor, correndo o risco de
ter um mulatinho bastardo a correr atrás dele, agarrando na
barra de sua calça e gritando papai!

Nesse momento, Camila não se conteve. Sem pensar, ergueu a mão
e desferiu sonoro tapa no rosto de Rodolfo, que ficou vermelho de
raiva. Ele até pensou em revidar, mas Camila, além de mulher, era
também sua irmã mais velha, e o pouco de respeito que lhe restava
impediu-o de devolver a agressão. No entanto, engoliu em seco e
disparou:
— Ouça Camila, ainda vai se arrepender do dia em que resolveu
me desferir esse tapa.

E saiu, batendo a porta atrás de si. Camila desabou na cama e
começou a chorar. Perdera a cabeça. Não queria, mas perdera a
cabeça. Olhou para o filho, como a pedir-lhe apoio e compreensão,
mas ele disse amargamente:

— O que foi fazer mamãe? Como pôde bater em tio Rodolfo?
— Ele me provocou meu filho, você viu.
— Oh, sim, vi muito bem! Não é à toa que Trajano me bateu.
Deve ter aprendido com a senhora, não é mesmo?
— Túlio, o que é isso? Perdeu o respeito, é? Sou sua mãe, e você
me deve respeito, ainda que não queira.

Ele abaixou os olhos, envergonhado. Estava coberto de ódio, mas
não podia deixar que isso transparecesse para a mãe. Sabia que o
que dissera era uma injustiça, mas não podia perder a oportunidade
de provocá-la. Com os olhos pregados no chão disse, fingindo
arrependimento e humildade:

— Tem razão, mamãe, sinto muito.

Ela se levantou e aproximou-se dele, envolvendo-o em um abraço
amigo e amoroso, e desabafou, em lágrimas:

— Oh! Meu filho, por que teve que fazer isso, por quê? Você é
jovem, bonito, inteligente. Pode ter as moças que quiser. Por
que tem que se envolver com as escravas, abusando de uma
superioridade ilusória para conseguir seus intentos? Por quê?
Por quê?

Túlio, porém, não respondeu. Ao contrário, fechou os olhos e riu
intimamente. Se a mãe pensava que o comovia com aquela cena,
estava muito enganada. Ele não dava a menor importância ao que
ela dizia ou pensava. Concordava com Rodolfo. Os escravos
existiam para servir, e ele se aproveitava disso da melhor forma
que sabia. E não se arrependia.

Fora dali, Rodolfo roia-se de raiva. Primeiro fora Júlia, que o trocara
pelo irmão. Depois Fausto que o humilhara e espezinhara. Em
seguida, a mãe, que não lhe dera ouvidos, preferindo fazer a
vontade de Fausto. E então Camila, que o agredia para defender os
negros. Era uma verdadeira afronta. Todos pareciam estar contra
ele, mas aquilo não ficaria assim. Não era saco de pancadas de
ninguém, e cada vez mais sentia o ódio crescendo dentro dele.

Já era quase noite, e ele estava sentado na sala, no escuro, quando
Tonha apareceu para acender as velas e os lampiões. Ao vê—lo ali
sentado, sozinho, compadeceu-se. Ele era seu menino. Ela ajudara a
criá-lo e não gostava de vê-lo tão abatido. Chegando-se mais para
perto dele, indagou preocupada:

— O sinhozinho está sentindo alguma coisa, está?

Ele olhou para ela como se não a conhecesse, e só depois de alguns
segundos, quando conseguiu conciliar as idéias, foi que retrucou:

— Hã? O quê? O que foi que disse?
— Perguntei se o sinhozinho está sentindo alguma coisa?
— Não estou, não, Tonha. Está tudo bem.
— Mas o sinhozinho está com uma cara...
— Está tudo bem. Não se preocupe. Vá cuidar de seus afazeres.

Tonha não insistiu. Conhecia o gênio de sinhozinho Rodolfo e não
queria aborrecê-lo. Em silêncio, terminou de acender as velas e
saiu, no mesmo instante em que Palmira chegava. Ela olhou para
Tonha com raiva e virou-se para Rodolfo.

— Meu filho, hoje vocês conhecerão minha visita.

Rodolfo, que além de não perceber a entrada da mãe, nem se
lembrava da hóspede misteriosa, retrucou confuso:

— Hã? O quê? O que foi que disse mamãe?
— Minha visita. A mulher que está hospedada em nossa casa.
— Ah, sim. Até já havia me esquecido dela.
— Pois não devia. É sua parenta.
— É mesmo? Quem é?
— Você não a conhece. Ela esteve fora durante muitos anos,
perdeu o marido e agora retornou. Mas sossegue; logo, logo,
você a conhecerá.

Em seguida, afastou-se enigmática. Já era quase hora do jantar, e
ela faria a todos uma surpresa.

Às sete horas em ponto, o jantar foi servido, e todos repararam que
havia mais um lugar à mesa. Assim que se acomodaram, e Tonha já
se preparava para servi-los, Palmira mandou que esperasse e
anunciou:

— Meus filhos, meus netos, tenho uma surpresa para vocês. É
com muita satisfação que hoje dou a conhecer a identidade de
nossa hóspede secreta.

Apontou para a porta da sala, para onde todos voltaram suas
atenções. Constância entrou um pouco insegura, porém radiante.
Passara algum tempo escondida, perdera alguns quilos, ajeitara o
cabelo, voltara a vestir-se com apuro. Estava pronta, enfim, para
enfrentar os seus.

Ao vê-la, Tonha quedou estupefata, quase deixando cair à travessa
de sopa. Reconhecera-a instantaneamente. Ela estava mudada,
mais gorda, mais velha, ganhara aquela enorme cicatriz no rosto,
mas era a mesma Constância de antigamente. O mesmo rosto de
esfinge, os mesmos olhos verde-escuros.

Camila, por sua vez, dando de cara com a prima, a quem chegara a
julgar morta, deu um pulo da mesa e exclamou:

— Constância! É você mesma? Será possível? Mas como pode?
Por onde andou?
— Calma, calma — interrompeu Palmira. — Por favor, Camila,
não crive sua prima de perguntas.

Palmira fez com que Constância se sentasse à mesa e, enquanto
Tonha servia o jantar, apresentou-a formalmente aos filhos e aos
netos, contando-lhes a história que inventara. Ela fugira e se casara
com um rico barão, partindo para a Europa em seguida. Lá viveram
durante muitos anos, até que uma tragédia sucedeu. Um dos
empregados do castelo, querendo vingar-se do barão, matou-o
enquanto dormia, só não matando Constância porque ela conseguira
escapar e saíra gritando pelos corredores do palácio. O malfeitor foi
morto a tiros, não sem antes imprimir-lhe aquela cicatriz horrorosa e
indelével. Sentindo-se só e sem filhos, Constância resolveu voltar
para a terra natal, onde tencionava terminar seus dias.

Ao final da narrativa, todos a olharam estarrecidos. Aquela história
era fantástica e duvidosa, mas quem ousaria contestá-la?
Constância exibia até uma grossa aliança de ouro no anelar da
mão esquerda, que Palmira lhe dera, só para imprimir-lhe maior
credibilidade.

CAPÍTULO 7

No domingo pela manhã, Fausto saiu bem cedo em direção à vila.
Queria falar com o padre a respeito da capela que estavam
construindo na fazenda. A capela era um projeto seu e de Rodolfo,
que a idealizaram para satisfazer o desejo da mãe, que, bem
velhinha, não tinha mais a mesma disposição de outrora para
levantar cedo e ir à missa dominical.

Rodolfo, por sua vez, vendo que o irmão se ausentara, resolveu
agir. Desceu cautelosamente e foi esperar Júlia na sala de jantar.
Sabia que ela, em breve, desceria para o café, e ele tencionava
abordá-la após o desjejum. A família em breve despertou, e todos
se reuniram. A mãe tinha gestos artificiais, e Constância tudo fazia
para esconder o nervosismo. Até que Júlia, tentando parecer casual,
indagou meio sem jeito:

— Alguém viu Fausto?

Como ninguém respondesse Tonha, que acabara de colocar a
leiteira sobre a mesa, disse, sem tirar os olhos do chão:

— Saiu logo cedo e disse que ia à vila.
— Fazer o quê? — quis saber Palmira.
— Acho que foi falar com o padre sobre a capela.
— Capela? Que capela? — perguntou Constância.

Palmira olhou para ela e respondeu orgulhosa:

— Fausto e Rodolfo resolverem presentear-me com uma
capelinha, que está sendo construída aqui na fazenda.
— Mas que maravilha mamãe! — elogiou Camila.
— É sim, minha filha. Bem, agora, se me dão licença, vou me
retirar.

Palmira terminou o café e se levantou, seguida de Constância, que
não a largava. Desde que voltara a sobrinha não se mostrava
receptiva a ninguém e vivia a seguir Palmira por todos os lados.
Depois que todos saíram, Júlia se levantou e também pediu licença.
Ia cavalgar. Rodolfo aproveitou, e com ar displicente, perguntou:

— Posso acompanhá-la? Está um bonito dia, e não gostaria de
perdê-lo, trancado aqui dentro de casa.

Ela ficou desconcertada. Não esperava por aquele convite
inoportuno, mas não podia recusar. Se o fizesse, talvez estivesse
declarando guerra aberta a Rodolfo e Palmira, e ela não queria se
desentender com o futuro cunhado e, muito menos, com a futura
sogra. Levantando os ombros, suspirou e disse:

— Pode sim.
— Então vamos?

Ele estendeu o braço para ela, e Júlia o tomou sem muito interesse.
Apesar de idêntico a Fausto, Rodolfo não inspirava à mesma
confiança. Havia algo nele que não a agradava. Sabia que ele era
cruel e vingativo, mas não era só isso. Era certa inquietação que
sentia em sua presença. Ela abanou a cabeça, tentando espantar
aqueles pensamentos, e sorriu. Rodolfo falava alguma coisa sobre o
tempo, mas ela não lhe prestava a menor atenção. Seu pensamento
estava voltado para Fausto. Ela o amava imensamente e gostaria
que ele estivesse ali, para ampará-la e protegê-la.

Os dois tomaram as montarias e saíram pela fazenda. Havia muitos
lugares bonitos para se ver, muitos campos verdes para cavalgar, e
eles iam em silêncio, apreciando a paisagem. Rodolfo ia à frente,
indicando-lhe o caminho, e Júlia seguia-o maquinalmente, sem
prestar atenção por aonde ia. Breve, alcançaram um recanto bem
afastado, no extremo oposto da fazenda, perto da divisão com a
Ouro Velho. Era um lugar lindo, cercado de árvores, embora um
pouco deserto e sombrio. As árvores ali eram bem altas, e o Sol
quase não penetrava. Rodolfo apeou e dirigiu-se para Júlia, e só
então ela se deu conta do lugar em que estava, e sentiu medo. E se
ele lhe fizesse algum mal? Ao vê-lo se aproximar, disse mais que
depressa:

— Vamos voltar Rodolfo. Já nos afastamos bastante.
— Espere um instante — respondeu ele com voz melosa, ao
mesmo tempo em que segurava o cavalo de Júlia pela rédea.
— Por que não desmonta um pouquinho, só para descansar e
desfrutar dessa paz?

Sem saber o que fazer, ela desmontou, deixando que Rodolfo a
segurasse e a colocasse no chão. Ao contato de suas mãos, ela
sentiu um calafrio e se encolheu toda, já arrependida de haver
apeado.

— Rodolfo, acho que quero voltar. Já está ficando tarde e, logo,
logo, Fausto estará de volta. Pode ficar preocupado.
— Ora, mas o que é isso? Então não sirvo?
— Como assim? O que quer dizer?
— Você sabe. Se gosta tanto de Fausto, por que não pode gostar
de mim também?
— Rodolfo, eu... Não entendo o que quer dizer.
— Ora, minha querida, entende muito bem. Fausto e eu somos
iguais. Se sente atração por ele, há de sentir por mim
também. Não há diferença entre nós.

Ao dizer isso, ele a segurou pelos punhos e tentou beijá-la, mas ela
desviou o rosto, enojada. Júlia estava apavorada. Sozinha ali, com
aquele homem forte e ardiloso, sabia que corria grande perigo.
Tentando manter a calma, ponderou:

— Por favor, Rodolfo, não faça isso.
— Por que não? Não disse que ama meu irmão? Por que não
pode amar-me também?
— Porque é diferente. Vocês são iguais na aparência, mas
internamente são muito diferentes.
— Diferentes em quê? Por acaso ele é melhor do que eu?
— Eu não disse isso. Vocês são diferentes, é só.
— Por que foi preferi-lo a mim? Por que não pôde me amar em
lugar dele?
— Porque não se pode mandar no coração.
— Mas eu a quero! Não pode amá-lo mais do que a mim!

Ela tentou se desvencilhar, mas ele não a soltava. Ao contrário,
cada vez apertava-a mais, até que ela gritou:

— Por favor, Rodolfo, solte-me, está me machucando!
— Oh, sinto muito. Não quero magoar essa pele tão alva e
sensível.

E afrouxou um pouquinho. Júlia, no auge do desespero, desferiu-lhe
um golpe com os joelhos, atingindo-o bem na virilha, e ele a soltou,
dobrando no chão e uivando de dor. Ela correu para o seu cavalo e
montou, e Rodolfo, recobrando forças, levantou-se e correu atrás
dela. Rapidamente, tornou a montaria e partiu em seu encalço.
Júlia, sem saber que caminho tomar, deu rédea ao animal e saltou a
cerca, passando para o lado da fazenda Ouro Velho, sempre com
Rodolfo atrás dela. Os dois cavalgavam muito bem, e a perseguição
prosseguia implacável. Júlia, movida pelo instinto de preservação,
corria em direção à casa grande, e Rodolfo, tomado pelo ódio e pelo
ciúme, corria o mais que podia, na intenção de alcançá-la antes que
chegasse.

Ele já a estava quase alcançando, cavalgando a seu lado e tentando
segurar as rédeas do cavalo de Júlia, que o empurrava, dando-lhe
tapas desajeitados. Rodolfo ria freneticamente, parecia
enlouquecido, e gritava entre dentes:

— Vai ser minha, Júlia! Não adianta fugir, porque você vai ser
minha. Fausto não pode tê-la, não pode!

Ela já estava cansada, e Rodolfo já estava quase conseguindo
agarrar as rédeas do animal, quando Júlia avistou um vulto negro ao
longe, com um machado na mão, cortando lenha. Ela esporeou o
cavalo e ele se afastou um pouco de Rodolfo, que logo chegou a seu
lado. O vulto, ouvindo o barulho dos cascos dos animais no solo,
parou o serviço e olhou, tentando reconhecer os cavaleiros. A
princípio, não os reconheceu. Mas depois, vendo a saia de Júlia
voando ao vento, percebeu tratar-se de uma mulher, que acenava
para ele, com um homem quase a alcançá-la. Júlia logo reconheceu
Trajano e começou a agitar os braços, na esperança de que ele a
visse e a ajudasse. Com efeito, assim que Trajano reconheceu
sinhazinha Júlia, soltou o machado e correu, até que ela conseguiu
chegar até ele. Rodolfo, a seu lado, não conseguia dissimular o ódio.
Diminuiu a marcha e disse, tentando disfarçar:
— Bela corrida, Júlia. É exímia amazona.

Júlia olhou para ele, arfante, cheia de terror, e Trajano pôde
perceber o medo em seus olhos. Estava tão ofegante que não
conseguia falar, até que o escravo se adiantou, perguntando:

— Está tudo bem, sinhazinha Júlia?

Ela olhou para Rodolfo, que lhe endereçou um sorriso diabólico, e
respondeu:

— Sim, Trajano, tudo bem.
— A sinhazinha estava apostando corrida, é?
— Estava sim — respondeu Rodolfo mal-humorado. — Por quê? O
que tem com isso?
— Nada, sinhô. É que sinhá Júlia chegou tão assustada que
pensei...
— Você não tem que pensar nada. Escravo não pensa, obedece.
— Desculpe sinhô, mas não lhe devo obediência, não.
— Ora, negro insolente. Como se atreve? Já não basta o que fez
a Túlio? Ainda me desafia?

Trajano não respondeu. Estava preocupado com Júlia. Ele a
conhecia muito bem e sabia que aquele moço tencionara fazer-lhe
algum mal.

— Sinhô, com todo o respeito, vou pedir que vá embora. Vou
acompanhar sinhazinha Júlia até a casa grande.

Rodolfo, ainda não convencido de que perdera sua presa, levantou o
chicote que trazia preso à cinta e desferiu em Trajano violenta
chibatada, fazendo com que ele levasse a mão ao ombro, onde fora
atingido, enquanto o outro vociferava:
— Isso é por meu sobrinho, Túlio!
— Chega Rodolfo! — gritou Júlia. — Vá-se embora daqui.
— Vou se quiser. Não se esqueça de que estas terras são minhas,
e posso vir aqui à hora que desejar.
— A fazenda está arrendada, e você não tem o direito de vir sem
ser convidado. Agora vá embora!

Mas Rodolfo não parecia disposto a ceder. Perdera e não queria
admitir. Depois disso, Júlia, com certeza, contaria a Fausto o que
acontecera, e o irmão, na certa, tomar-lhe-ia satisfações. Vendo
que o moço não se mexia, Trajano tratou de intervir novamente:

— Não ouviu o que ela disse sinhozinho? Por favor, saia daqui.
— Será que quer apanhar de novo, negro?
— Não, sinhô. Mas se o sinhô tentar me bater novamente, não
vou permitir. Não sou seu escravo e não estou acostumado a
apanhar.

Rodolfo fuzilou-o, abismado. Como era insolente aquele escravo!
Merecia uma surra. Contudo, tinha que reconhecer que o negro era
mais alto e mais forte que ele, e ser-lhe-ia muito fácil desarmá-lo e
até matá-lo. Temeroso, engoliu o ódio e retrucou:

— Isso não vai ficar assim, Júlia. Quanto a você, negro, não
perde por esperar.

Virou as rédeas do cavalo e foi embora. Sentia tanto ódio que
parecia que ia explodir. Aquela era mais uma das muitas afrontas
que vinha sofrendo e ele precisava se vingar. Daria um jeito de se
vingar de todos e saborearia sua vingança pisando sobre seus
inimigos.

Quando Fausto chegou da vila, recebeu a notícia de que Júlia não se
encontrava em casa, pois havia saído logo após o desjejum para um
passeio a cavalo com Rodolfo e ainda não retornara.

— E meu irmão? — indagou Fausto ao escravo que o recebera.
— Também ainda não voltou?
— O sinhozinho Rodolfo está lá no rio, pescando.

Fausto rodou nos calcanhares e partiu em busca do irmão. Alguma
coisa devia estar errada. Onde estava Júlia? Por que não voltara
com ele? Encontrou-o sentado numa pedra, com as calças
arregaçadas e um caniço na mão, pescando tranqüilamente, como
se nada tivesse acontecido. A seu lado, Túlio mascava um pedaço
de fumo de rolo e parecia desinteressado da pescaria. Fausto
chegou por trás deles e chamou:

— Rodolfo, onde está Júlia?

Rodolfo olhou para ele com desprezo. Tinha vontade de esmurrá-lo,
mas conteve o ímpeto e disse em tom de sarcasmo.

— Não sei. Deixei-a na fazenda Ouro Velho, em companhia de
um negro.

Fausto já ia responder, mas mudou de idéia. Não queria estragar
seu domingo com uma discussão sem propósito. Sabia que Rodolfo o
estava provocando, mas não queria responder a suas provocações.
Ele não deu resposta ao irmão e se foi, rumo à fazenda Ouro Velho.
Não lhe agradara nada aquele passeio. Então Júlia não sabia que ele
e o irmão haviam brigado?

Desde o dia em que ele e Rodolfo tiveram aquela briga em presença
da mãe, nunca mais foram os mesmos. Mantinham um
relacionamento cordial, mas Fausto podia perceber certa
agressividade no tom de voz de Rodolfo todas as vezes que ele lhe
dirigia a palavra. O irmão, sempre que podia, evitava encontrá-lo e
quase não olhava mais para ele. Nos dias que se seguiram à briga,
Rodolfo não o esperou mais para vistoriar a plantação, como
sempre fazia, preferindo sair sozinho, mais cedo, ou então não indo
mais.

Ao chegar à fazenda Ouro Velho, todos estavam reunidos no jardim,
conversando, inclusive Dário, que chegara havia pouco para o
almoço. Logo que Júlia o viu, levantou-se e correu. Estava ansiosa
por vê-lo e não pôde ocultar que algo de muito errado se passara
com ela. Ele a abraçou e, sentindo seu corpo trêmulo, indagou:

— Júlia, meu bem, aconteceu alguma coisa? Soube que saiu com
Rodolfo...

Ela se abraçou ainda mais a ele e começou a chorar. Não queria
contar-lhe o ocorrido, mas sentia que não poderia guardar aquilo só
para si. Na fazenda, nada dissera a ninguém e pedira a Trajano que
não comentasse o ocorrido. O escravo prometera guardar silêncio, e
ela passara ali a manhã toda, sem que ninguém desconfiasse do
sucedido.

— Oh, Fausto! — respondeu ela finalmente — Não queria que
você soubesse, mas creio que não conseguirei ocultar nada de
você.
— Diga-me, minha querida, o que foi que aconteceu?

Ele enxugou-lhe as lágrimas e, tomando-a pelo braço, saiu em
direção oposta, acenando para os demais. Enquanto caminhavam,
ela ia lhe contando tudo o que acontecera e podia sentir a raiva
crescendo dentro dele. Quando terminou, ele disse entre dentes:

— Aquele cachorro! Miserável! Deveria matá-lo!
— Acalme-se, querido. Afinal, não aconteceu nada.
— Como não aconteceu nada? Ele quase a violentou.
— Não creio que pretendesse chegar tão longe. Penso que queria
apenas me beijar.
— Beijar, pois sim. E pensar que eu, a princípio, até senti pena
dele, julgando-o um pobre infeliz por se apaixonar por você.
Como fui tolo! Ele não presta e merece uma lição.
— Não diga isso. Você é um homem bom e compreensivo, e
tenho certeza de que conseguirá entender.
— Mas entender o que, meu Deus? Que ele a desrespeitou? Que
quis me trair?
— Não. Que agiu feito uma criança, incapaz de compreender a
extensão de seus atos.
— Júlia, como pode ainda defendê-lo?
— Mas não o estou defendendo. Estou apenas tentando mostrar-
lhe que Rodolfo ainda não aprendeu a respeitar seus
semelhantes.
— E daí? Isso por acaso é desculpa para ele fazer o que fez?
— Não, mas é motivo para que possamos compreendê-lo e
ajudá-lo.
— Ajudá-lo? Mas como? O que quer que faça? Que o apóie? Que
a divida com ele?
— Fausto que horror! Como pode dizer uma coisa dessas?
— Desculpe-me, meu bem, não quis ofendê-la. Mas é que essa
sua atitude me deixou indignado. Pensei que tivesse ficado
furiosa com o que ele fez.
— E fiquei. Mas Rodolfo é seu irmão, e acho que agiu movido
pelo ciúme. Talvez não tenha tido intenção de ofender-me ou
de traí—lo.
— E teve intenção de que, então?
— Não sei ao certo. Mas creio que Rodolfo está confundindo as
coisas. Ele pensa que só porque vocês são gêmeos, eu deveria
gostar dele tanto quanto gosto de você. Não entende por que
fui preferi-lo a ele.
— E daí? Continuo achando que isso não é motivo para atacá-la.
Um homem de caráter não agiria assim, não desrespeitaria
uma moça só porque sente ciúmes. Não, Júlia, isso foi coisa de
um patife, e ele bem merece uma reprimenda. Eu deveria
matá-lo!
— Pelo amor de Deus, Fausto, nem pense numa coisa dessas!
— Júlia, não entendo você. Há pouco, quando cheguei, você
chegava a tremer, não sei se de medo, de ódio, de revolta ou
de tudo isso junto. Mas agora, parece que mudou. De repente,
é como se você tivesse passado a aceitar tudo isso com
extrema naturalidade.
— Não é nada disso, Fausto, não interprete tudo errado. Já disse
que fiquei com medo e com raiva. Ninguém gosta de ser
atacado, agredido, humilhado. No entanto, isso nada tem a
ver com o fato de que sinto pena dele.
— Pena? Era só o que me faltava!
— Pena, sim. Como disse Rodolfo ainda está muito longe de
entender o que é o respeito e pensa que pode tudo, só porque
é branco e rico.

Fausto estava desanimado. Não adiantava tentar convencer Júlia de
que Rodolfo deveria ser advertido. Ela possuía bom coração e não
queria que ele se desentendesse com o irmão novamente por causa
dela. Esgotados seus argumentos, acabou por concordar:
— Está bem, Júlia, você venceu. Não quero mais falar sobre isso.
— Então prometa que não tomará nenhuma atitude drástica
contra ele.
— Está certo. Se for o que quer...
— Obrigada, Fausto. Sabia que você entenderia.

Os dois se beijaram e voltaram para junto dos demais, que já se
preparavam para o almoço. Quando chegaram, Ezequiel
cumprimentou sorridente:

— Senhor Fausto! Há quanto tempo não o vemos. Fico muito feliz
que esteja aqui.
— Obrigado. É um prazer reencontrá-los.
— Creio que ainda não conhece nossa filha, Sara — disse
Ezequiel, mostrando-lhe a menina.
— Não, ainda não. Muito prazer, senhorita.
— O prazer é todo meu — respondeu ela, acanhada.
— Sara e eu vamos ficar noivos — adiantou-se Dário.
— É mesmo? Quando?
— Não sabemos ainda. Logo que ela melhore.
— Senhor Fausto — interrompeu Rebeca —, por que não fica
para o almoço?
— Oh, não, obrigado. Não quero causar incômodo.
— Mas não será incômodo algum. Dar-nos-ia imensa satisfação.
— Bem, se é assim, aceito.
— Ótimo. Agora, se me der licença, vou mandar pôr mais um
prato à mesa.

O almoço transcorreu sem maiores preocupações. Sara e Dário fazia
planos para o casamento, e todos estavam felizes. Fausto, porém,
olhando mais para a moça, pôde perceber a enorme palidez de suas
faces. Ela era, com certeza, uma moça enferma, e embora
desconhecesse a natureza daquela enfermidade sabia tratar-se de
algo sério. De vez em quando, ela tossia de leve, tentando disfarçar
a falta de apetite. Quase não comia, e ele podia notar-lhe certo
desânimo, como se estivesse muito cansada. Fausto teve um
pressentimento ruim, mas não disse nada. Não queria impressionar
Júlia, e tampouco saberia definir o porquê daquela sensação.

CAPÍTULO 8

O clima na fazenda São Jerônimo parecia haver retomado a
normalidade, e ninguém mais tocava no assunto das brigas que se
haviam sucedido em tão curto espaço de tempo. Palmira, apesar de
tudo, gostava muito da convivência em família e, principalmente, de
Túlio, por quem acabara se afeiçoando em demasia. O rapaz era
muito parecido com seu primeiro marido, Gaspar, e isso a enchia de
orgulho. Rodolfo, sempre que possível, juntava-se a eles, e Fausto
escolhia as horas em que sabia que ele não estava para ficar junto
da mãe.

Constância, por sua vez, começou a sair sozinha. À medida que o
tempo passava, foi se acostumando a sua nova situação e arriscava
algumas incursões pela casa e pela fazenda. Aos poucos foi se
soltando e, em breve, voltou a ser a mesma Constância de sempre,
alimentando seu ódio por Tonha. Ela vivia a vigiar a escrava. Não
lhe dizia nada. Ficava apenas olhando-a, com ar mordaz. Nos lábios,
um sorriso sarcástico a acompanhá-la. Tonha não dizia nada. Não
gostava de Constância, mas o que poderia fazer? Ela era sobrinha
de sinhá Palmira, e o melhor era tratá-la com respeito e deferência,
sem, contudo, prestar-lhe muita atenção.

E ainda havia Túlio. Apesar da conversa que tivera com a mãe, ele
não parava de pensar em Etelvina. Mesmo a avó não aprovava
aquele interesse. Certa vez até chegara a lhe contar que Licurgo,
seu segundo marido, criara o hábito de dormir com uma negrinha
de dentro, mas que ela o forçara a abandoná-la, e ainda mandara
dar-lhe uma surra. Pretendia, com isso, deixar claro que não
toleraria aquele tipo de envolvimento em sua casa.

Com isso, Túlio começou a ficar desesperado. Ansiava pelo corpo de
Etelvina, tão jovem, tão fresco. Ele vivia a segui-la com os olhos,
mas ela, sempre que o via, fugia apavorada. Além disso, seu
coração já estava preso ao de Trajano, e ela muito lamentara sua
partida dali. Mal via a hora de tornar a vê-lo e rezava para que seus
orixás o trouxessem de volta. Chegava mesmo a fazer diversas
oferendas na cachoeira, pedindo a Oxum, a deusa do amor, que o
levasse para seus braços. Nessas ocasiões, Túlio sempre ia atrás
dela, mas nunca tivera coragem de se aproximar, com medo de que
alguém descobrisse e contasse para a mãe ou a avó.

Apenas Rodolfo conhecia seus desejos. Só o tio era capaz de
compreender sua aflição. Ele mesmo, por diversas vezes, servira-se
das negras, a exemplo do pai, sem que a mãe jamais descobrisse.
Ao saber disso, Túlio indagou abismado:

— Mas o quê? Quer dizer então que você já se deitou com as
negras?
— É claro que sim. Por diversas vezes.
— E vovó nunca descobriu?

Ele soltou uma gargalhada e respondeu:

— Ela nunca nem sequer desconfiou.
— Mas como você consegue?
— Sabe o Terêncio?
— O capataz?
— É ele quem me arruma as negrinhas, como fazia antes com
papai.
— Mas vovó disse que descobriu sobre seu pai e uma escrava, e
que ele teve que parar de se encontrar com ela.
— Bom isso lá é verdade. Ele parou de se encontrar com ela,
mas, pouco depois, passou a se deitar com qualquer uma que
estivesse disponível. E vovó também nunca ficou sabendo.
— Ora, vejam só!
— Pois é. Por isso é que lhe digo. Não tenha receio de tomar à
negra que quiser. Elas estão aqui para nos servir e não podem
se recusar.

Túlio olhou-o com ar de cobiça, já mordendo os lábios, o corpo se
enchendo de desejo só de imaginar a negra Etelvina sob seu corpo.

— Será mesmo? — perguntou com olhar lúbrico.
— É claro. Está interessado?
— Você sabe que sim.
— Eu sei. Etelvina, não é mesmo?
— É sim. Foi por causa dela que Trajano me bateu. Tenho
certeza de que ele também gostou dela.
— Pior p'ra ele. Vai ter que suportar vê-lo... - Rodolfo parou de
falar e encarou o sobrinho com ar diabólico, mudando de
assunto — Hei, espere aí. Quer se vingar daquele negro?
— Vingar-me? Como?
— Apenas me responda: quer vingar-se dele ou não quer?
— Sim... Seria divertido.
— Ótimo. Então, vai se vingar dele.
— Mas como? Em que está pensando?
— Quer mesmo saber? — ele assentiu. — Pois vou lhe contar.

Túlio chegou-se mais para perto de Rodolfo, profundamente
interessado, e ele narrou-lhe em detalhes o plano que tinha para se
vingar daquele negro imundo, como chamava Trajano. Túlio
começou a rir. O plano era perfeito, e Trajano receberia a lição que
merecia.

— Mas, como faremos para executá-lo?
— Deixe tudo por minha conta. Na hora certa de agir, eu o
informarei e explicarei direitinho tudo o que tem que fazer. Por
enquanto, basta ficar de olho na negra.

Túlio saiu dali animado. Era uma excelente idéia, e mataria dois
coelhos com uma cajadada só. Passando pela porta da cozinha,
dirigiu-se para o terreiro, onde Etelvina estava pendurando a roupa.
Chegou perto dela e parou, encarando-a com um sorriso irônico no
rosto. A moça assustou-se e encolheu-se toda, tentando realizar sua
tarefa sem prestar-lhe atenção. Túlio, porém, sem tirar os olhos
dela, disse com voz melíflua:

— Etelvina, sabe que é uma escrava muito bonita, não sabe?

Ela abaixou os olhos, envergonhada, e suplicou:

— Por favor, sinhô, deixe-me trabalhar em paz.
— Mas eu não estou atrapalhando. Ou estou? Pode falar.
— Não, sinhô, não está.
— Então por que não me deixa ficar aqui e observá-la?
— Sinhô Túlio, por favor...
— Não se preocupe comigo, Etelvina. Ou melhor, faça de conta
que não estou aqui. Só quero admirar sua beleza.
Ela estava constrangida e com medo. Olhou para a porta da cozinha
e viu Tonha lá dentro, preparando o jantar. Tonha, como que
sentindo o apelo mudo da outra, virou-se subitamente e logo
percebeu o que estava se passando. Foi até a porta e gritou:

— Etelvina! Pode vir aqui um instante, sim?

Etelvina, agradecida, terminou de pendurar o lençol e correu para a
cozinha, Túlio despindo-a com o olhar.

— Chamou Tonha?
— Chamei, sim. Será que pode me ajudar com esse bolo?
— É claro, Tonha. Agora mesmo.

Túlio chegou por detrás delas, sem que nenhuma das duas
percebesse. Parecia um felino silencioso e traiçoeiro. Elas levaram o
maior susto quando ele disse:

— Tonha, por que não se mete com sua própria vida?

Tonha teve um sobressalto e respondeu as faces ardendo em fogo:

— O que disse sinhozinho?
— Você ouviu muito bem. Meta-se com sua própria vida e não se
atravesse em meu caminho.
— Não sei o que o sinhozinho quer dizer.
— Sabe sim. Não pense que só porque tio Fausto e tio Rodolfo
gostam de você, pode fazer o que quiser. Lembre-se de que
minha avó somente a tolera aqui por causa deles, mas eu
posso muito bem fazer com que ela mude de idéia.
— Sinhozinho, perdão, mas não compreendo...
— Não se faça de tonta, mulher, porque sei que não é. Estou
avisando: não se meta comigo. Você não me conhece e não
sabe do que sou capaz.
Sem dizer mais nada, voltou-lhe as costas e saiu porta afora. Tonha
sentiu medo, e Etelvina começou a tremer, dizendo em lágrimas:

— Oh! Tonha desculpe, não devia ter metido você nessa história.
— Minha filha, a história de um negro é a história de seu povo. O
que está acontecendo com você já vi acontecer muitas vezes
e sei como sempre termina.
— Mas você não devia ter me chamado.
— Senti que você precisava de ajuda.
— A culpa foi minha. E agora, se sinhozinho Túlio fizer alguma
coisa contra você, não poderei me perdoar.
— Não se preocupe menina. Nada vai me acontecer. E depois,
não será a primeira vez.
— Mas não quero, não quero.
— Então pare de se preocupar e tenha cuidado. Evite sair
sozinha.
— Mas eu tenho que lavar roupa lá no riacho.
— Eu sei, e isso você não pode evitar. Mas pode deixar de ir
sozinha fazer oferendas a Oxum, não pode?
— Como sabe disso, Tonha?
— Por acaso pensa que sou boba, é? Ouça Etelvina, já vivi muito
e já amei também. Sei como são essas coisas. Mas não vá
mais fazer oferendas sozinha. Se não tiver com quem ir, não
vá. É perigoso. Sinhozinho Túlio pode segui-la, e só Deus sabe
o que poderá acontecer.
— Tem razão, Tonha. Estou sendo descuidada, não é?
— Está, e muito. Agora venha, acabe de bater esse bolo ou não
ficará pronto a tempo para o jantar. Deixe que eu mesma
termine de estender a roupa.
Tonha saiu para o terreiro e começou a pendurar os lençóis no
varal. Estava preocupada com Etelvina. Sentia no coração um
aperto de desgraça. Ela se abaixou para apanhar uma colcha na
cesta e viu uma sombra de mulher projetando-se sobre seu corpo.
Assustada, levou a mão ao peito e ergueu-se, virando-se apressada,
dando de cara com Constância, que a olhava com aquele sorriso
sarcástico de sempre.

— Sinhá Constância! — exclamou. — Deseja alguma coisa?

Como Constância não respondesse, Tonha voltou-lhe as costas e
continuou a trabalhar, sob o olhar ameaçador da outra. Ficaram
assim durante cerca de dez minutos, até que Tonha, terminando o
serviço, disse acabrunhada:

— Licença, sinhá.

Constância chegou para o lado e Tonha passou de cabeça baixa.
Deu dois passos e parou, ao ouvir a voz esganiçada da outra.

— Não pense que já a perdoei pelo que me fez.
— Tonha, ainda de costas, retrucou:
— Perdão, sinhá, mas não fiz nada, não.
— Ah, não? Pois olhe para mim! — Tonha não se moveu, e
Constância puxou-a pelo ombro, fazendo com que se virasse e
a encarasse. — Olhe para mim, estou mandando! O que vê?
Alguma beldade?

Tonha, sem saber o que dizer, começou a gaguejar:

— Si... Sinhá... Não sei... Não sei o que quer de... de... mim...
— Quero que pague os anos de alegria e juventude que me
roubou!

A escrava, nervosa, começou a chorar baixinho, e Constância
ergueu a mão para bater-lhe, quando ouviu uma voz atrás de si:
— Porque não a deixa em paz, Constância?Já não basta o que a
fez passar?

Constância abaixou a mão e virou-se furiosa, olhando o interlocutor
bem fundo dentro de seus olhos.

— Camila! — gritou. — O que quer? Saia daqui. Meu assunto não
é com você.
— Mas o meu é com você. — Virou-se para Tonha e disse: —
Pode ir, Tonha. Deixe que me entenda com sinhá Constância.

Mais que depressa, Tonha agarrou o cesto e voltou para a cozinha,
de onde Etelvina as observava. Depois que ela se afastou, Camila
continuou:

— Muito bem. Agora é entre mim e você.
— Ora, ora, querida prima. Vejo que o casamento a tornou
corajosa.
— Nunca fui covarde, Constância, ao contrário de você, que
amedronta escravas indefesas.
— Oh! Pobrezinha da Tonha! Tão indefesa...
— Não estou aqui para ouvir suas ironias. Sei muito bem quem
você é e sei também do que é capaz.
— É mesmo? E daí? O que tem com isso?
— Pensa que pode me enganar com suas mentiras? Pois saiba
que não acreditei em uma só palavra daquela história absurda.
— Pois pouco me importa no que você acreditou. Não voltei por
sua causa.
— E voltou por quê?
— Não é da sua conta.
— Não creio mesmo que seja. Mas vou lhe dar um conselho:
deixe Tonha em paz.
— Por quê? O que vai fazer se eu não deixar?

Camila ameaçou-a com o olhar e não respondeu. Rodou nos
calcanhares e entrou em casa. Constância havia voltado com algum
propósito, e estava claro que era Tonha. Será que ainda pretendia,
depois de mais de trinta anos, prejudicá-la? Era o que parecia, mas
Camila não deixaria.

Apesar de contrariado, Fausto cumprira a promessa que fizera a
Júlia e não tomara nenhuma atitude drástica contra o irmão. No
entanto, não podia deixar aquilo passar em branco, e resolveu
procurá-lo, ao menos para dar-lhe um aviso. Bateu à porta de seu
quarto e entrou, sem nem esperar resposta. Rodolfo estava se
trocando para o jantar, e ele foi logo falando:

— Ouça Rodolfo, prometi a Júlia que não faria nada contra você,
mas não posso ficar por aí fingindo que nada aconteceu,
quando a vontade que tenho é de matá-lo.

Rodolfo olhou-o espantado. Naquele dia, depois que o irmão saíra
para ir ao encontro de Júlia, ele pensou que teriam uma nova briga,
e das mais sérias. Mas quando Fausto voltou e não disse nada, ele
pensou que Júlia não lhe tivesse contado o ocorrido, por medo ou
vergonha ou, quem sabe até, porque havia gostado. Mas agora,
vendo a atitude ameaçadora do irmão, tinha certeza de que ele
estava a par de tudo. No entanto, fingindo desconhecer do que se
tratava, tornou indignado:

— Meu irmão! Do que é que está falando?
— Não se faça de desentendido. Sei muito bem o que você fez
com Júlia. Mas quero que saiba que, apesar de ela não querer
que eu brigue com você, não vou tolerar que isso se repita.
De hoje em diante, quero dar-lhe um aviso: fique longe de
Júlia. Ela é minha namorada, e nós vamos nos casar.

Rodolfo escutava-o, pensativo. Então Júlia não queria que
brigassem. Por quê? Na certa porque gostara mesmo. Ficara
nervosa, era verdade, com medo. Mas também, ele fora pior que
um animal. Tentara agarrá-la à força, e ela se assustara. Não é
assim que se trata uma dama. Mas, no fundo, ela gostara. Por que
outro motivo pediria ao irmão que não fizesse nada contra ele,
senão para protegê-lo, porque gostava dele? Sim, com certeza, era
isso. Ele a estava conquistando e não podia pôr tudo a perder. Era
preciso não irritar Fausto, ou Júlia poderia assustar-se de novo, e ele
acabaria por perder a oportunidade de vencer o irmão. Ele deu um
sorriso maquiavélico, sua cabeça já tramando um plano para
derrotá-lo, e retrucou:

— Fausto, contenha-se. Não há motivo para ameaçar-me.
— Não o estou ameaçando. Estou apenas avisando-o. Não se
meta mais com Júlia ou não responderei por mim.

Rodolfo abaixou os olhos e suspirou. Depois, olhou para o irmão com
ar de fingido arrependimento e desabafou:

— Ouça Fausto, perdoe-me. Sei que agi errado com você, mas
foi por amor.
Fausto retrocedeu confuso. Não esperava um pedido de desculpas e
indagou perplexo:

— Como assim, por amor?

Rodolfo ergueu os ombros, desalentado, e prosseguiu:

— Infelizmente, meu irmão, o destino pregou-nos uma peça.
Apaixonei-me por Júlia e confesso que, por uns momentos,
cheguei a ficar cego por esse amor e quase perdi a razão.
— Rodolfo, eu...
— Não, deixe-me terminar, por favor. Sei que agi errado com
você, tentando envenená-lo com mamãe e depois ultrajando
sua amada. Mas quero que compreenda que eu estava fora de
mim, cego pela paixão. Tão cego que não podia enxergar
nada nem ninguém a minha frente. Foi por isso que fiz o que
fiz. Foi por amor.

Fausto olhou-o desconfiado. Amava o irmão e sentia-se muito mal
com aqueles desentendimentos.

— E por que só agora resolveu contar-me tudo isso?
— Porque, depois do que aconteceu entre mim e Júlia, percebi o
quanto estava errado. Eu quase a desonrei e traí você, meu
irmão, a quem dedico todo o meu afeto. E por pouco não me
arruíno também. Eu queria muito lhe falar, mas não tinha
coragem, com medo de que você me repelisse. No entanto, a
ocasião se fez, e quero que me perdoe. Estou sinceramente
arrependido e juro que isso nunca mais se repetirá. Vou tentar
tirar Júlia de meu coração e transformá-la em verdadeira
irmã.

Fausto estava emocionado. Já não tinha mais dúvidas da sinceridade
de suas palavras. Rodolfo, por infortúnio, acabara por se apaixonar
por sua Júlia, e isso não era culpa de ninguém. Afinal, quem pode
mandar no coração? E ele estava certo de que o irmão só fizera o
que fizera por amor e por revolta. Afinal, eram gêmeos, e não seria
nada difícil que Júlia se interessasse por Rodolfo, em vez dele.
Contudo, o contrário acontecera, e devia ser difícil ver-se rejeitado,
trocado por seu irmão idêntico. Fausto se imaginou no lugar do
irmão fazendo-se sempre a mesma pergunta: "por que não eu"?

— Rodolfo, meu irmão, não sabe como fico feliz em ouvir isso.
Estava muito triste, pensando que você me havia traído.
— Como vê Fausto, isso não é verdade. Eu jamais trairia meu
irmão. Graças a Deus que logo despertei dessa paixão, que
me toldava a razão, e pude novamente raciocinar com
clareza. Você é muito importante para mim, e não posso
desentender-me com você por causa de mulher nenhuma.
Ainda que seja por uma mulher maravilhosa feito Júlia. E
então, será que pode me perdoar?

Fausto abraçou-o, emocionado, e respondeu com sinceridade:

— É claro que sim, meu irmão, meu amigo.
— Sem ressentimentos?
— Sem ressentimentos.
— Ótimo. E quero também pedir desculpas a Júlia.
— Acha isso necessário?
— É claro que sim. Não quero que minha futura cunhada me veja
como um inimigo ou um monstro. Ao contrário, quero ser seu
amigo e vou provar, a vocês dois que tudo isso, em breve,
será parte do passado.
— Muito bem. Acho que é melhor mesmo. Só assim Júlia poderá
esquecer tudo o que aconteceu.
— Espero que também possa me perdoar e confiar em mim.
Você confia, não confia?

Fausto hesitou, mas acabou respondendo:

— Claro... Claro que sim...
— Não vai ficar agora desconfiando de tudo o que fizer ou disser
nem com medo de me deixar a sós com Júlia, vai?
— É claro que não — Fausto queria acreditar. — Confio em você
e sei que não vai me decepcionar.

Rodolfo estava satisfeito. O irmão era um perfeito idiota. Sempre
tão impulsivo, de temperamento explosivo, mas ingênuo feito uma
criança. Nem de longe percebera que ele estava mentindo o tempo
todo. Arrependido... Pois sim. Eles que o aguardassem.
Reconquistaria a confiança de ambos, e então eles veriam. Júlia
seria só dele, e o irmão perderia mais aquela disputa.

CAPÍTULO 9

Palmira estava sentada na sala de estar, tendo aos pés o filho
Fausto, que lia para ela uma carta de sua sobrinha, Berenice,
quando um "hum, hum" chamou sua atenção. Voltando-se na
direção do ruído, encontrou o capataz, Aldo, que segurava nas mãos
o chapéu e foi logo dizendo:

— Bom dia, dona Palmira.
— Bom dia, Aldo — respondeu ela. — Deseja alguma coisa?
— Sim, senhora, gostaria de falar-lhe um momento.
— Pois não. Do que se trata?
— É que minha filha, Marta, terminou os estudos na corte, e hoje
recebi uma carta da madre superiora, pedindo-me que fosse
buscá-la.

Palmira olhou-o surpresa. Fazia algum tempo que seu marido,
Licurgo, enviara a menina para estudar no Rio de Janeiro, como
reconhecimento pelos inúmeros préstimos que Aldo lhes fizera
durante todos aqueles anos. Era um bom capataz. Um homem digno
e decente, e sempre executara suas ordens com zelo e cuidado.

Quando a filha alcançara idade de estudar, Licurgo a enviara para
um colégio de freiras na corte, para que recebesse uma educação
mais refinada, o que, na certa, lhe facilitaria um bom casamento.
No entanto, aquele dia não parecia assim tão distante, e Palmira se
surpreendeu com a rapidez com que o tempo passara.

— Mas já? — indagou perplexa. — Parece que foi ontem que
partiu.
— Para a senhora ver. Já faz sete anos que se ausentou.
— Tudo isso?
— Sim, senhora. Marta acabou de completar dezoito anos.
— Já tem algum pretendente?
— Não, senhora. Segundo me disse a madre superiora, ela não
parece muito interessada em namoricos. A madre até pensou
que ela quisesse ser freira, mas Marta, estranhamente, disse
que não.
— É o que se há de fazer? Vão-se entender os filhos, não é
mesmo? E quando pretende partir?
— Se a senhora não se opuser, amanhã mesmo. Minha mulher
morre de saudades da menina.
— É natural. Bem, pode ir.
— Obrigado, dona Palmira.

Depois que Aldo saiu, Fausto olhou-a, curioso. Fazia muitos anos que
não a via, e mesmo no tempo em que ali vivera não lhe prestara
muita atenção. Lembrava-se apenas de que ela era uma menina
feinha e um tanto quanto gordinha, que vivia correndo descalça pelo
terreiro. Depois de alguns instantes, indagou:

— Será que ela mudou muito?
— Não sei meu filho. Quando saiu, era ainda uma menina, e
agora vai voltar uma moça. Pena que não tenha arranjado um
bom casamento lá mesmo, pela corte. Por aqui será muito
mais difícil. Os pretendentes são poucos, e ninguém de nossa
sociedade se interessará por ela. Apesar de tudo, ainda é uma
moça pobre e sem berço.

No dia seguinte, quando ela chegou, foi um espanto geral. Marta
tornara-se uma moça extremamente bonita e delicada. Perdera a
gordura da infância, as feições se afilaram, os cabelos tornaram-se
cheios e um pouco mais escuros, de um louro quase castanho. Os
olhos, também castanhos, tinham um quê de tristeza, disfarçados
por um sorriso gracioso, que deixava à mostra os dentinhos alvos e
perfeitos. Rodolfo foi o primeiro a vê-la. Ela havia acabado de
descer da carruagem e estava abraçada à mãe, enquanto Aldo
retirava sua bagagem, quando ele se aproximou, indagando:

— Marta? É você mesma?

Ela se virou para ele meio sem graça e respondeu com timidez:

— Sim, senhor... — e não terminou, sem saber com quem estava
falando.
— Rodolfo — completou-o. — Então não me reconhece mais?
— Perdão, senhor Rodolfo, mas é que faz muito tempo que não
os vejo, e o senhor e seu irmão sempre foram tão parecido...
— Entendo. Mas não precisa se desculpar. Agora veja em que
bela moça você se transformou!

Ela abaixou os olhos e disse as faces vermelhas, em fogo.

— Obrigada. O senhor é muito gentil.

Ele ficou parado, olhando-a embevecido, e não percebeu o olhar de
desagrado de Aldo. O capataz não gostava muito de Rodolfo e
estava cansado. Viajara o dia todo e só podia pensar em dormir.
Tentando não desgostar o patrão, disse com humildade:

— Desculpe-me, senhor Rodolfo, mas Marta deve estar cansada.
Se nos der licença agora, gostaríamos de entrar.

Rodolfo fuzilou-o com o olhar, mas não tinha o que dizer. Embora a
contragosto, concordou:

— Sim, claro, fiquem à vontade.

Ele se foi, e Marta entrou em companhia dos pais. No coração, uma
coisa diferente começava a despontar. Sem nem perceber, ficara
deveras impressionada com Rodolfo. Ela sempre achara os gêmeos
muito bonitos, mas nunca pensara em nenhum deles de maneira
diferente. Eles eram mais velhos e eram os patrões. Mas agora,
percebendo o olhar de Rodolfo sobre ela, suas palavras gentis, seus
gestos atenciosos, ela se impressionara. Será que ele havia se
interessado por ela? Discretamente, olhou para o pai, mas ele não
disse nada. Aldo não queria nem pensar em um possível interesse
de Rodolfo por sua filha.

Após o jantar, já na cama, Aldo confidenciou à mulher:

— Não gostei do jeito como seu Rodolfo olhou para Marta.
— Por quê? — retrucou Anita, espantada.
— Não sei. Ele a olhou de um jeito diferente, como se a estivesse
desejando.
Ela ergueu-se na cama e encarou-o com gravidade.

— Tem certeza? — Ele aquiesceu. — Mas isso é maravilhoso!
— Enlouqueceu mulher? Seu Rodolfo é o patrão. O que pensa
que pode querer com uma moça feito Marta?
— Ora, Aldo, você me surpreende. Marta é uma moça bonita e
inteligente, e recebeu a melhor educação. Tornou-se uma
moça fina, e é natural que os rapazes se interessem por ela.
— Ouça Anita, não se engane. O interesse de seu Rodolfo não vai
além de uma noite de prazer.
— Acho que você está exagerando.
— Não estou não. Bem sei de suas conquistas.
— Mas que conquistas? E daí? Por acaso ele não é solteiro? Não
tem o direito de se distrair? E depois, pelo que sei, ele nunca
se interessou por ninguém. Só por uma escrava ou outra, para
diverti-lo na cama, e por algumas cortesãs. E isso não é
exatamente o que se possa chamar de conquista.

Aldo não disse nada. Conhecia a mulher e sabia que ela era
sonhadora e ambiciosa, e não hesitaria em incentivar um romance
entre Marta e Rodolfo. Mas ele não. Era um homem honesto e não
estava disposto a entregar a filha a um aproveitador qualquer, ainda
que fosse seu patrão. Em silêncio, virou-se para o lado e fingiu
dormir. Não adiantava nada discutir. O jeito era ficar de olho na
menina e rezar para que nada de mal lhe acontecesse.

Marta, porém, não partilhava da opinião do pai. Gostara do moço,
do jeito como a olhara. Aquilo a impressionara sobremaneira, e ela,
em sua inocência, julgava que Rodolfo talvez se apaixonasse por
ela. Afinal, era uma moça prendada, capaz de fazer qualquer
homem feliz. No entanto, sabia que o pai não aprovaria. Ela
conhecia seus olhares e pôde perceber que ele não ficara nada
satisfeito com o modo como Rodolfo a tratara. Mas ele não
precisava se preocupar. Rodolfo era um bom moço, tinha certeza, e
não faria nada que pudesse desgostá-lo. Pensando nisso,
adormeceu, guardando no pensamento a imagem de Rodolfo a lhe
sorrir. No dia seguinte, levantou cedo e saiu. O pai já estava na
plantação, e a mãe indagou, de forma intencionalmente casual:

— Aonde vai?
— Não sei. Dar uma volta. Ver como vão às coisas. Estou fora há
muito tempo e gostaria de rever a fazenda.
— Onde pretende ir primeiro?
— Hum... Acho que vou falar com dona Palmira.

Anita sorriu satisfeita. Dona Palmira, com certeza, era uma ótima
pessoa para se visitar. Quem sabe Rodolfo também não estivesse
por lá?

— Isso mesmo, minha filha, vá.

Marta saiu apressada em direção à casa grande, entrando pela
porta dos fundos. Tonha estava na cozinha, terminando de preparar
o café, quando ela cumprimentou:
— Bom dia.

Tonha olhou para ela, como que tentando reconhecê-la. Ouvira
comentários de que ela estaria voltando e teve certeza de quem
era.

— Meu Deus, sinhazinha Marta! — exclamou. — Como está
bonita!
— Obrigada, Tonha. Como me reconheceu?
— Na verdade, não reconheci. É que ouvi falar de sua volta e
não podia ser mais ninguém. E então, como foi lá na corte?
— Muito bem. O Rio de Janeiro é lindo, e o convento foi
maravilhoso. Aprendi muitas coisas e estou pronta para ser
uma boa esposa.

Nisso, Rodolfo entrou na cozinha. Ia passando, quando escutara
vozes femininas e reconhecera, numa delas, a vozinha de Marta.

— Olá — disse sorridente. — Já por aqui tão cedo?
— Bom dia, sinhozinho Rodolfo — cumprimentou Tonha.
— Ora, Tonha — censurou-o. — Por que foi estragar a surpresa?
Queria ver se Marta sabia que era eu.

Marta sorriu acanhada e retrucou:

— Oh, senhor Rodolfo, ia zombar de mim, é?
— Não. Ia apenas brincar com você. E não precisa me chamar
de senhor, não. Agora venha, entre. Deseja falar com minha
mãe? Ela não tarda a descer.

Rodolfo saiu puxando-a pelo braço, enquanto Tonha os observava.
Vendo-os juntos, podia perceber que Rodolfo estava encantado com
ela, e que Marta estava apaixonada por ele. Aquilo não daria certo,
ela temia. Silenciosamente, elevou uma prece a seus orixás,
pedindo-lhes que não permitissem que nenhuma desgraça
sucedesse.

Breve, toda a família se reuniu para o café da manhã, menos Júlia,
que saíra cedo para visitar Sara. Rodolfo convidou Marta a sentar-se
com eles, sob o olhar reprovador da mãe. Palmira não gostara nada
da companhia daquela empregadinha à mesa, mas não disse nada.
Não queria se aborrecer com o filho logo cedo e preferiu calar-se.
Marta, contudo, sem nada perceber, ia contando suas peripécias na
corte, embevecida com a atenção que Rodolfo lhe dispensava.
Todos perceberam que o rapaz a cobria de atenção, e Fausto sorriu
satisfeito. Embora a mãe não aprovasse, ele estava feliz por ver que
o irmão logo se interessara por outra moça, fazendo-o crer que sua
paixão por Júlia em breve estaria terminada.

Rodolfo, porém, ria intimamente. Ele até que havia gostado de
Marta.

A moça era, realmente, muito bonita, mas ele precisava conquistar
Júlia. Era uma questão de honra. No entanto, por mais que se
esforçasse Marta não lhe saía da cabeça. Ela era linda e meiga, e
seu coração disparava todas as vezes que pensava nela. Mas ele
não podia se deixar levar por aquela emoção. Marta era apenas
uma moça, ao passo que Júlia era sua vitória. Conquistar Marta
acalmaria seu coração. Conquistar Júlia aplacaria seu orgulho.
Assim, Rodolfo começava a desperdiçar a maravilhosa chance de
ser feliz, não apenas ao lado de uma mulher que o amava, mas
daquela a quem começava, verdadeiramente, a amar.

CAPÍTULO 10

Etelvina acabou de estender a roupa no varal e olhou para os lados,
tentando ver se havia alguém por perto. Já eram quase duas horas
e, com certeza, todos estavam recolhidos para a sesta ou, então,
ocupados com seus próprios afazeres. Ela deu a volta no terreiro,
procurando por sinhozinho Túlio, mas ele não estava ali. Sorriu
satisfeita. Não havia ninguém por perto, e ela podia sair. Iria até o
riacho levar as oferendas que preparara e voltaria rapidamente,
sem que ninguém tivesse tempo de dar por sua falta. Lembrou-se
dos conselhos de Tonha e ainda hesitou. E se alguém a visse? Mas
não. Ela se certificara: não havia ninguém por ali, e ela poderia ir e
voltar sem que ninguém notasse. Satisfeita, correu para o jardim e
olhou. Como não viu ninguém, colheu algumas rosas brancas e
voltou para o terreiro. Não fora vista, tinha certeza, e não precisava
se preocupar. Mas estava enganada. Ao ver o vulto negro de
Etelvina despontar do outro lado da casa, Túlio, que estava à janela
de seu quarto, ocultou-se atrás da pesada cortina e espiou. Viu
quando ela olhou para a casa grande e correu para o jardim,
colhendo as flores da roseira branca. Seu coração disparou. Não
havia ninguém por perto, e ele podia concretizar seus planos.
Coração aos pulos, saiu em disparada rumo ao quarto de Rodolfo e
entrou. O tio estava descansando e levou o maior susto quando o
viu ali parado, esbaforido, gesticulando freneticamente.

— Túlio! Mas que susto você me deu! O que foi que houve?
— Etelvina... Ela estava agorinha mesmo no jardim, colhendo
flores.

Rodolfo lançou para ele um olhar de malícia e sorriu, passando a
língua nos lábios. O momento parecia propício. A quietude imperava
na casa, e não haveria testemunhas para o que pretendiam fazer.
Mais que depressa, Rodolfo levantou-se e ordenou: — Venha.

Túlio saiu atrás dele, e os dois se dirigiram para o riacho, dando a
volta pela frente da casa. Sabiam que Etelvina estaria lá,
oferecendo aquelas bobagens para seus deuses. A ocasião era
perfeita. Em silêncio, foram seguindo pela estradinha, até que, ao se
aproximarem do riacho, começaram a escutar a voz de Etelvina,
que cantarolava baixinho, em uma língua que eles não
compreendiam. Eles pararam, e Rodolfo disse a meia-voz:

— Vá buscar Trajano, rápido, e deixe Etelvina por minha conta.

Sem responder, Túlio rodou nos calcanhares e se afastou indo direto
à cocheira buscar um cavalo. Montou rapidamente e partiu para a
fazenda Ouro Velho. Quando chegou, foi informado de que Trajano
se encontrava na pequena horta que cultivavam atrás da casa,
auxiliando Juarez a plantar algumas verduras. Ao vê-lo, o escravo
franziu o cenho, preocupado. O que será que sinhozinho Túlio estava
fazendo ali? Não estava com raiva dele? Ele se aproximou de
Trajano e foi logo falando:

— Olá, Trajano, como está?
— Bem, e o sinhozinho?
— Bem... Isto é... Mais ou menos...
— Como assim? — fez Trajano, preocupado.
— Trajano, gostaria de falar com você.
— É claro, sinhozinho, pode falar.
— Aqui não. Gostaria que viesse comigo a um lugar mais
reservado. O que tenho a dizer é muito importante, e não
gostaria que ninguém mais ouvisse.

Sem desconfiar de nada, Trajano saiu atrás dele, e Túlio disse:

— Vá buscar um cavalo para você.
— Por quê? Aonde vamos?
— A fazenda, falar com minha mãe.
— Sinhá Camila está doente?
— Não. Mas está muito triste com o que aconteceu, e eu prometi
a ela que me retrataria com você.
— Ora, sinhozinho, não precisa não. Já passou, e eu já esqueci.
Aliás, quem lhe deve desculpas sou eu. Fui eu que primeiro lhe
bati.
— Só porque eu provoquei. Ouça Trajano, você me conhece há
muitos anos, sempre foi meu amigo. Não me sinto bem
estando brigado com você.

Trajano ficou emocionado e seus olhos se encheram de lágrimas.
Conhecia sinhozinho Túlio desde criança, e aquela briga o
entristecera de verdade. Também sentia remorsos por haver batido
nele. Sabia que se excedera que não devia ter feito aquilo e queria
pedir desculpas a Túlio também.

— O sinhozinho é muito bondoso — disse com emoção. — Mas o
mais errado fui eu. Jamais deveria ter-lhe batido.
— Isso não importa agora, Trajano. O que importa é que não
devemos ficar brigados. Prometi a minha mãe que viria buscá-
lo para nos reconciliarmos, e é isso o que farei.
— E sua avó?
— Minha avó não gostou nadinha do que você fez. Mas agora,
depois que eu mesmo falei com ela, resolveu reconsiderar. É
claro que está zangada. Mas não pensa mais em castigá-lo.

Trajano calou-se, montou no cavalo e seguiu atrás dele. Queria
muito fazer as pazes com Túlio, acabar com aquele
desentendimento, e a oportunidade aparecera. E tudo isso porque
Túlio era um menino de ouro que, apesar de seus deslizes e
tendências, tinha um coração bondoso e amigo. Precisava apenas
de uma orientação com as mulheres. Não era mau e estava claro
que gostava muito dele. Caso contrário, jamais se permitiria descer
ao ponto de se desculpar com um negro.

Trajano estava cego. A bondade de seu coração não lhe permitia
enxergar que Túlio mentia deslavadamente. Suas palavras soavam
com um tom de falsidade tão cristalino, que até uma criança poderia
perceber. Mas Trajano, querendo acreditar que fosse verdade, não
deu ouvidos à voz da prudência e seguiu com ele. Túlio, em silêncio,
levava-o direto ao riacho, e Trajano sequer desconfiava do plano
sórdido que ele estava próximo de executar.
Enquanto isso, Rodolfo se aproximava de Etelvina. Chegou por trás e
tocou em seu ombro, fazendo com que ela gritasse de susto e desse
um salto para o lado, quase caindo dentro d'água.

— Sinhô...!
— ... Rodolfo.
— Sinhô Rodolfo, o sinhô me assustou. Ele a olhou com malícia e
retrucou:
— Desculpe-me, Etelvina, não foi minha intenção.
— Deseja alguma coisa, sinhô?
— Na verdade, desejo sim.
— É algo que eu possa fazer?
— Digamos que seja algo que só você pode fazer.

Ela sentiu medo e se encolheu, perguntando com voz sumida:
— Como assim?
— Está com medo? — Ela assentiu. — Pois não precisa. Não vai
lhe acontecer nada de mau. Pelo contrário.

E desatou a rir. Ela se levantou devagar. Estava apavorada e
pensou em fugir. Embora Rodolfo nunca lhe houvesse feito nada, ela
sentia certo tom de perversidade em sua voz. Sem poder explicar,
Etelvina sabia que algo de ruim ia lhe acontecer e começou a
tremer. Já ia se virando para correr quando Rodolfo disse em tom
incisivo e ameaçador:

— Nem pense nisso. Se sair daqui, mato-a.
Ela voltou e sentou-se apavorada, olhando para ele com ar
interrogador. Estava subjugada e paralisada pelo medo. Juntando
forças, indagou trêmula:

— Mas sinhô, o que foi que eu lhe fiz?
— A mim? Nada.
— Então por que faz isso comigo? Por que não me deixa ir?
— Porque não quero. Preciso de você.

Etelvina, pensando que ele a quisesse como mulher, retrucou
angustiada:

— Mas há muitas outras escravas que podem servir o sinhozinho
melhor do que eu. Eu nada sei dessas coisas...
— Calada! Não lhe perguntei nada. E depois, não é isso o que
quero de você. Você não me atrai, e não sinto desejo por
você.
— Mas então...

Rodolfo mandou que se calasse, e ela obedeceu cada vez se
encolhendo mais. Estava sentada sob um tronco de árvore e
recostou-se nele, tentando não pensar no que lhe aconteceria.
Rodolfo, sentado defronte dela, não dizia nada. A todo instante
olhava para a estradinha, como se esperasse alguém. Até que,
finalmente, ela escutou o barulho dos cavalos se aproximando e
teve certeza de que alguém chegava. Ergueu-se curiosa, e qual não
foi o seu espanto quando viu aparecer diante de si o sinhozinho
Túlio, seguido de Trajano, que estacou ao vê-la.

— Etelvina! — exclamou. — O que faz aqui? E por que viemos
para cá?

Túlio lançou para ele um olhar de ódio e ordenou friamente:
— Cale-se, Trajano, e desça daí.

Trajano não se moveu, e Rodolfo acrescentou:

— Não ouviu o que ele disse? Desça daí, negro, ou será muito
pior para você.

Sem nada entender, Trajano olhou para Rodolfo, depois para Túlio
e, finalmente, para Etelvina, toda encolhida perto da árvore. Apesar
da semelhança entre os gêmeos, ele sabia estar diante de Rodolfo.
Fausto era um homem gentil e digno, e jamais usaria aquele tom de
voz. Ele ainda não entendia o que estava para acontecer, mas sabia
que não era coisa boa. Quis dar meia volta e sair dali, mas teve
medo por Etelvina. Fosse o que fosse que estivesse planejando, o
fato é que, se fosse embora, eles bem seriam capazes de tentar
alguma coisa contra ela. Sem saída, Trajano desceu do cavalo e foi
para perto de Etelvina, que não parava de tremer.
— O que está acontecendo? — indagou, acercando-se dela.

Trajano sentiu um golpe na cabeça e tombou. Estava meio
inconsciente, mas pôde sentir que o arrastavam e erguiam seu
corpo, amarrando-o de encontro à árvore na qual Etelvina estivera
recostada. Pouco depois, atiraram-lhe água fria no rosto, e ele
despertou olhando para os três sem nada entender. Túlio ria para
ele com ar diabólico, e Rodolfo, agarrando Etelvina pelos cabelos,
disse-lhe com sarcasmo:

— Então, o negro pensa que é gente e que pode bater num
branco, não é mesmo? — Ele não respondeu. — Pois não
pode.

Ainda mais se esse branco é meu sobrinho. E por quê? Porque está
de olho na negrinha aqui, não é mesmo? O que queria? Deitar-se
com ela? Pois não vai, está ouvindo? Ou melhor, pode até se deitar
com ela, depois que Túlio se saciar e acabar com ela. Aí então,
dependendo, você pode ficar com os restos.

Trajano olhou-os atônito e, virando-se para Túlio, suplicou
amargurado:

— Sinhozinho, não faça isso! Sei que é um menino bondoso. Não
vai querer estragar a sua vida com o sangue de outra moça,
vai?
— Cale essa boca, Trajano! — berrou Túlio. — Você não devia ter
se interposto em meu caminho. Mas, já que o fez, agüente as
conseqüências.
— É isso mesmo — concordou Rodolfo. — E depois, quem foi que
disse que negro tem sangue? Pode ter sangue, sim, mas é de
bicho. Vocês são uns animais, e estão aqui para nos servir.
Essa é a vontade de Deus. Foi isso o que ele reservou para
vocês. E como animais, não devem desobedecer a seus
senhores, muito menos levantar a mão para lhes bater. Os
que assim procedem não merecem outra coisa senão o
castigo. Muito bem, Túlio pode começar.

Túlio agarrou Etelvina, que desatou a chorar, e começou a despi-la.
Ela pôs-se a espernear, e ele bateu em seu rosto, o que fez com
que ela caísse ao chão, tremendo sem parar. Estava apavorada e
tinha medo de morrer.

— Quieta, negra — berrou Túlio —, ou mato-a de pancada!

Etelvina, com medo de apanhar, deixou-se ficar e parou de se
debater. Estava arrasada, mas não tinha forças para lutar. O medo
da morte era maior, e ela fechou os olhos, pedindo a sua mãe
Oxum que lhe desse coragem para enfrentar aquela triste prova.
Trajano, por sua vez, também chorava. Chorava pela pobre
Etelvina, por si mesmo, porque a amava, e chorava por Túlio, que
enveredava pelo caminho do crime. No entanto, estava ali
amarrado e não havia nada que pudesse fazer. Ele sabia que,
quanto mais implorasse para que Túlio a largasse, mais ele a
maltrataria, e fechou os olhos para não ver, até que sentiu uma
chicotada no ombro. Abriu os olhos aturdidos e escutou a voz de
Rodolfo, que lhe dizia cheio de rancor:

— Nada disso, negro! Você vai assistir a tudo, e de camarote! Se
fechar os olhos novamente, acabo com você num piscar de
olhos!

Trajano não teve remédio senão obedecer. Em silêncio, com
lágrimas nos olhos, foi obrigado a presenciar a violência que Túlio
cometia contra a indefesa Etelvina. Ele dava vazão a seus instintos
mais primitivos e, vendo-a no chão, arrancou sua roupa com
violência e se deitou sobre ela, apalpando seu corpo com
brutalidade. Em seguida, possuiu-a feito um animal, fazendo com
que ela gritasse de dor. Quanto mais ela gritava, mais ele se
excitava e investia contra ela, roçando seu corpo na terra árida,
causando-lhe imensurável sofrimento.

Trajano assistia a tudo sem nada dizer, sem nem piscar. No
coração, uma tristeza indefinível, uma vontade enorme de morrer.
Ainda tentou se soltar para impedir aquela barbaridade, mas suas
mãos estavam bem atadas, e ele não pôde se mexer. Túlio a estava
machucando e parecia não se importar com seu sofrimento. Só o
que lhe importava era o prazer que sentia dominando o corpo da
negra. Ele ficou muito tempo ali, deitado sobre ela, e só a largou
quando estava exausto, sem forças para continuar. Quando ele se
levantou, Etelvina estava chorando de mansinho, os olhos cerrados,
a respiração ofegante. Trajano, em silêncio, agradeceu a Deus por
tudo haver terminado, até que Rodolfo, virando-se para ela,
começou a desafivelar o cinto, olhando-a com cupidez. Túlio,
percebendo o que aconteceria, desatou a rir e disse, gargalhando:
— Muito bem, meu tio, sirva-se à vontade. A pretinha até que é
bem apetitosa.

Rodolfo riu e se deitou sobre ela, que gemeu, não mais de dor, mas
de humilhação. Ele começou a dar-lhe mordidas pelo corpo, e ela se
contorcia toda, sentindo na carne a dor que aquelas mordidas lhe
causavam, até que ele também a possuiu, com mais violência ainda
do que Túlio. A moça, apavorada, começou a gritar, pedindo que ele
parasse, mas Rodolfo, possuído pelo desejo e pelos instintos, foi
aumentando cada vez mais o ritmo, e ela, arfante, implorava quase
sem forças:

— Sinhô... Sinhô... por... favor...

Como Rodolfo não parasse, ela, conseguindo movimentar as mãos,
começou a dar-lhe tapas e arranhar seu rosto, até que ele, fora de
si, ao mesmo tempo em que a possuía, ia apertando seu pescoço,
devagarzinho a princípio, e depois com mais força. Foi apertando,
apertando, sem dar ouvido a ninguém, nem a Trajano, que
suplicava que ele a soltasse, nem a Túlio, já então apavorado, com
medo de que ele a matasse. Rodolfo não se importava com nada
disso e continuou a apertar, e a moça, desesperada, tentava
arrancar suas mãos de volta de sua garganta, abrindo a boca e
lutando para respirar, até que ele, no auge da satisfação, ao mesmo
tempo em que atingia o orgasmo, levava com ele o último alento de
Etelvina.

Aplacada a selvageria, ele olhou para ela e só então se deu conta do
que havia feito. A moça, morta sob seu corpo, fitava-o com olhos
esbugalhados, a rouxidão espalhando-se pelo pescoço negro.

Trajano chorava e Túlio estava bestificado. Mas Rodolfo,
recompondo-se, levantou-se, apanhou a roupa e vestiu-se
cuidadosamente. Em seguida, virou-se para Túlio e disse:

— Não se deixe impressionar por isso, meu sobrinho, e não fique
triste. Prometo arranjar-lhe uma negrinha bem mais apetitosa
do que essa aí. — Túlio não respondeu, e ele virou-se para
Trajano: — Quanto a você, negro, não quero nem uma
palavra do que viu aqui hoje. Se souber que abriu a boca,
acabo com sua vida antes mesmo que você perceba.
Entendeu?

Trajano não disse nada. Limitou-se a assentir, cheio de tristeza,
guardando nos olhos uma indefinível sensação de dor.

Depois desse episódio infeliz, cada um voltou a seus afazeres,
evitando tocar naquele assunto. Rodolfo fez com que Trajano
enterrasse o corpo bem longe, do outro lado da fazenda, e deu-lhe
ordens expressas para que se calasse. Se contasse algo a alguém,
estaria morto. Não que sua mãe fosse castigá-lo pela morte de
Etelvina. Ela era uma escrava, e acidentes desse tipo não eram
raros. Ele mesmo sabia que Terêncio, por descuido, acabara por
matar alguns escravos da fazenda, o que nunca dera em nada. Mas
ele não queria provocar nenhuma reação dos negros e,
principalmente, de Júlia. Sabia que ela era contra a escravidão e,
com certeza, ficaria desgostosa com ele, e ele veria perdidas todas
as esperanças de algum dia conquistá-la, e o irmão, novamente,
sairia vencedor.

Trajano, humilde, teve que obedecer. O que lucraria falando a
verdade? O tronco? Pior, a morte? Ele estava indignado, chocado,
penalizado. Mas sabia que de nada adiantaria contar o que
acontecera. Ele era negro, e ninguém ousaria recriminar sinhozinho
Rodolfo pelo acontecido, enquanto ele podia até ter a língua
cortada. Já ouvira falar de casos assim, de negros que falaram
demais e que acabaram sem língua. E depois, havia sinhozinho
Túlio. Trajano tinha certeza de que Túlio ficara muito abalado com
aquilo. Era inconseqüente, irresponsável, mentiroso, conquistador...
Mas não era um assassino. Mesmo quando Raimunda morrera, ele
ficara um tanto quanto abatido. Não queria tomar parte na morte de
ninguém, e sinhá Camila ficaria muito decepcionada. Não.
Decididamente, não falaria nada a ninguém. Eles que se
entendessem, mais tarde, com a justiça de Deus.

Túlio, por sua vez, estava contrariado. Queria divertir-se, era
verdade. Até dera uns tapas na negrinha, isso não era nada de
mais. Mas matá-la era outra história. Ele não conseguia
compreender o que se passara na cabeça do tio. É bem verdade
que Etelvina gritara e esperneara, mas isso não era motivo para ele
fazer o que fizera. Desde esse dia, Túlio passou a evitar a
companhia de Rodolfo e tornou-se acabrunhado e desconfiado, com
medo do que ele seria capaz de fazer.

Na manhã seguinte, Tonha começou a estranhar a ausência de
Etelvina. Onde aquela menina se metera? As horas iam se passando
e ela não aparecia. Preocupada, procurou Aldo, que era mais
humano, e contou-lhe que ela havia sumido. O capataz olhou para
ela, desconfiado, e indagou:

— Será que fugiu?
— Não acredito. Para onde iria? E por quê?
— Não sei. Ouvi dizer que vivia lá na beira do riacho, fazendo
oferendas para prender um amor. É verdade?

Tonha titubeou. Será que aquela desmiolada havia ido atrás de
Trajano?
— Bem, é. Mas não creio que esteja com ele.
— Ele quem? É o tal de Trajano, não é? O que se encrencou com
seu Túlio.
— É esse mesmo. Mas duvido muito que ela esteja com ele.
Trajano é um rapaz direito, está na fazenda Ouro Velho e não
se atreveria a esconder Etelvina.
— Hum... Não sei, não. De qualquer forma, vou até lá averiguar.
— Não vai avisar sinhá Palmira?
— Por enquanto não. Dona Palmira não vai gostar nadinha disso,
e você bem sabe o que ela é capaz de fazer.

Tonha silenciou. Conhecia sinhá Palmira muito bem. Conhecia seu
ódio pelos escravos, sua crueldade. Se ela descobrisse que Etelvina
estava desaparecida, contrataria até um capitão-do-mato para
encontrá-la, e aí seria pior. O castigo seria certo, e ela levaria bem
umas cinqüenta chibatadas no tronco. Embora Aldo não gostasse de
bater nos negros, Terêncio, apesar de velho, ainda agüentava
levantar o chicote e não hesitaria em cumprir as ordens de Palmira,
o que faria com a maior satisfação.

Aldo montou no cavalo e partiu, chegando logo em seguida à
fazenda Ouro Velho. Lá, ninguém vira Etelvina nem ouvira falar
dela. Mandou chamar Trajano, mas este dissera que não à vira
também. Orientado por Rodolfo, contou que saíra em companhia de
sinhozinho Túlio, para desculpar-se com ele, e que não vira
ninguém.

Túlio confirmou a história de Trajano, e ninguém ousou desconfiar
de sua palavra. Ele era branco, neto da dona da casa e não tinha
por que mentir. Aldo, cada vez mais preocupado, dirigiu-se à beira
do rio, lá encontrando as oferendas que Etelvina levara à sua mãe
Oxum, mas não achou mais nada. Nenhum outro sinal que indicasse
que ela estivera por ali. Trajano apagara todas as pistas e não
deixara uma pegada, um galho quebrado, um trapo de roupa que
pudesse dar indícios do que acontecera.

Diante disso tudo, Aldo não teve outro remédio senão levar o caso
ao conhecimento de Palmira. Ela franziu o cenho, contrariada, e
considerou:

— Hum... Essa história está muito mal contada.
— Túlio não sabe de nada? — perguntou Camila.
— Não, senhora — respondeu Aldo. — Perguntei a ele, mas ele
disse que não a viu.
— E Trajano?
— Também não sabe. Diz que saiu com o senhor Túlio naquele
dia. Ninguém a viu.
— Não estou gostando nada disso - disse Palmira. - Será que ela
fugiu?
— Não creio mamãe. Aonde iria? Etelvina, ao que parece,
sempre foi escrava de dentro, e não está acostumada a viver
sozinha. Como se sairia lá fora, entregue à própria sorte? E
depois, Tonha disse que ela vivia a fazer oferendas para seus
deuses lá na beira do riacho.
— Será que caiu e se afogou?

Aldo cocou o queixo e concordou:

— É possível. Eu não havia pensado nisso, mas é possível.
Quando fui até lá, encontrei as oferendas que levara, e me
pareciam ainda frescas. O riacho é pequeno, mas ela pode ter
batido com a cabeça numa pedra e se afogado, e a
correnteza, na certa, a levou.
— O que você acha Rodolfo? — indagou Palmira ao filho que, até
então, limitara-se a ouvir, sem nada dizer.
— Acho que foi isso mesmo o que aconteceu. Aquela Etelvina, ao
que parece, não tinha juízo e vivia suspirando pelos cantos,
apaixonada por aquele negro, o Trajano. Por diversas vezes
foi sozinha ao riacho, mesmo contra as advertências de
Tonha. Na certa, num desses momentos, ela se distraiu,
escorregou e caiu dentro d'água, batendo com a cabeça.
Depois, a correnteza a levou, e o rio, mais abaixo, possui
fortes corredeiras e se alarga bastante. Se for isso o que
aconteceu, a esta altura seu corpo já deve estar longe.
— É verdade — concordou Aldo. — Não creio que valha a pena
procurá-la rio abaixo.
— Mas, e se estiver viva? — objetou Camila. — Pode estar ferida,
precisando de ajuda. É nosso dever procurá-la.

Aldo olhou para Palmira, que aquiesceu, e disse para Camila:

— Se a senhora quiser, posso reunir alguns homens e procurar.
— Acho que seria o mais conveniente — disse Rodolfo, com
fingida preocupação. — Eu mesmo o acompanharei nessa
busca. Tenho certeza de que, se Etelvina estiver viva, nós a
encontraremos. Afinal, é uma escrava jovem e saudável, e
perdê-la seria um desperdício.

Rodolfo deu as ordens e foi para o terreiro esperar por Aldo, que
fora reunir alguns escravos de confiança, para que saíssem à
procura de Etelvina. Tonha, parada na porta da cozinha, rezava a
seus orixás, no coração a certeza de que ela havia morrido. Túlio,
por sua vez, foi chamado a juntar-se ao grupo, mas recusou,
pretextando não possuir estômago para tão dura empreitada. Afinal,
não gostava de tragédias, e se a moça estivesse realmente morta,
não lhe agradaria nada ver seu corpo inerte, inchado e coberto pela
rouxidão do afogamento.
Camila encarou-o, desconfiada. Sabia que o filho não gostava de ver
gente morta, mas havia algo em suas palavras que a deixara
inquieta. Eram estudadas demais, coerentes demais, decoradas
demais. Havia algo de estranho ali, e ela, acercando-se do filho, saiu
puxando-o discretamente pelo braço, conduzindo-o para a varanda
que dava de frente para o jardim.

— Meu filho — começou —, não está me escondendo nada, está?
— Eu, mamãe? — o retrucou, sem coragem de encará-la. — O
que poderia estar escondendo?
— Não sei. Por isso é que lhe pergunto. Você sabe de alguma
coisa? Tem certeza de que não a viu?

Ele se remexeu inquieto e respondeu, sem tirar os olhos do chão:

— Já disse que não. Por quê? Está desconfiada de mim?
— Não é isso. Mas é que sei o quanto você se interessou pela
moça, e conhecendo-o como o conheço...
— Pare com isso, mamãe. Por quem me toma? Então pensa que
seria capaz de fazer-lhe algum mal?
— Não, deliberadamente não. Mas acidentes acontecem.
— Não aconteceu nada. Eu juro.
— Tem certeza?
— Sim.
— E por que foi procurar Trajano justo no dia em que ela sumiu?
— Porque queria falar com ele. Gosto de Trajano e queria que
nos entendêssemos. Se não acredita, pergunte a ele.
— Não é necessário. Acredito em você.

Nisso, avistaram a tropa de homens, que saía a galope, rio abaixo, à
procura do corpo de Etelvina. Rodolfo ia à frente e acenou para
Túlio, que estremeceu. Camila não pôde deixar de perceber que o
filho se inquietara com o cumprimento do tio e achou aquilo muito
estranho. Eles, até então, viviam de segredinhos, não se largavam.
Porém, parecia que Túlio evitava olhar para ele, e Rodolfo
demonstrava certa influência sobre o rapaz, como se o intimidasse
só com o fato de olhar para ele. Contudo, não disse nada. O melhor
seria observar. Se alguma coisa acontecera, ela não tardaria a
descobrir.

A tropa retornou à fazenda cerca de três horas depois. Haviam
seguido a correnteza do rio, ladeando-o nas duas margens, mas não
avistaram nada. Nenhum sinal da pobre Etelvina. No final da tarde,
ao comando de Rodolfo, voltaram certos de que ela se afogara e
que seu corpo fora arrastado pelas corredeiras, já se encontrando
muito longe naquele momento ou, quem sabe, até comido pelos
peixes.

Palmira ainda aventou a possibilidade de ela haver fugido, mas
Rodolfo desconsiderou a idéia. Era muito pouco provável que uma
escrava franzina e amedrontada feito a Etelvina tivesse fugido
sozinha. Se algum negro forte houvesse desaparecido, aí sim, essa
hipótese seria viável. Mas nenhum escravo fugira, e Trajano, por
quem a tola da Etelvina se apaixonara, continuava trabalhando na
fazenda Ouro Velho. Não, decididamente, ela não fugira. Rodolfo
estava convicto de que ela, efetivamente, se afogara, e deu por
encerradas as buscas. Em pouco tempo o episódio foi esquecido, e
tudo retomou a normalidade. Ou quase tudo.
CAPÍTULO 11

Marta estava sentada sozinha na varanda, pensando em Rodolfo,
quando uma vozinha delicada e meiga chamou sua atenção:

— Olá.

Era Júlia que, vendo-a ali sozinha, resolvera parar para
cumprimentá-la. Marta teve um leve sobressalto e, olhando para ela
com ar de interrogação, respondeu confusa:

— Oh! Desculpe-me, não a vi chegar.
— Não tem importância. Você é Marta, não é? A filha de Aldo, o
capataz?
— Sou sim senhora. E a senhorita, quem é?
— Sou Júlia, cunhada de Camila. E não precisa me chamar de
senhora ou senhorita, não. Está certo que devo ser mais velha
que você, mas nem tanto assim.
— Perdoe-me... Júlia... Não foi minha intenção. Foi o respeito.
Sou apenas uma criada aqui.
— Uma moça tão fina e educada, que recebeu educação
aprimorada na corte? Não deve se sentir assim.
— Oh! Mas não tem importância. Eu não ligo. Sou muito grata a
seu Licurgo e dona Palmira por me haverem proporcionado
uma boa educação, mas sei qual é o meu lugar. E digo isso
sem qualquer peso ou mágoa.
— Que bom. Mas, ainda assim, não precisa de formalismos
comigo. Podemos ser amigas, o que acha?
— Verdade? Eu adoraria. Sinto-me sozinha aqui, sem ninguém da
minha idade para conversar. Apenas Rodolfo conversa comigo
de vez em quando...
— Hum... Rodolfo é? Ele está lhe fazendo a corte?
— Não, Júlia, mas o que é isso? Ele é o patrão e é apenas gentil.
— Gentil, sei. Minha querida, nenhum homem é gentil desse jeito
se não está interessado em uma moça.
— Acha mesmo?
— Acho sim.
— Será que Rodolfo está apaixonado por mim?
— Isso eu não sei. Pode ser que ele só esteja flertando com
você. Mas se gostar mesmo de você, logo, logo, pedirá para
fazer-lhe a corte. E só esperar.

Marta suspirou e acrescentou com ar sonhador:

— Espero que esteja certa.

Júlia sorriu e, segurando-lhe a mãozinha delicada, indagou com
jovialidade:

— Não quer sair e dar uma volta? Está fazendo um dia tão
bonito!
— Eu adoraria, mas não sei se posso. Minha mãe espera que a
ajude com o almoço.
— Ora, peça a ela. E só um instante.

Marta entrou e foi procurar a mãe. Quando ela soube que a
cunhada de dona Camila estava ali convidando a filha para passear,
entusiasmou-se. Afinal, a moça era de família distinta e estava
namorando o outro filho de dona Palmira, o que seria muito bom
para Marta. Era uma amizade que ela não poderia dispensar, e Anita
permitiu que a filha se ausentasse, recomendando-lhe apenas que
tivesse juízo e bons modos. Podia demorar o tempo que quisesse.
Ela já estava acostumada e podia muito bem dar conta do almoço
sozinha.

— Ela deixou — disse Marta a Júlia, toda animada.
— Ótimo.
— Aonde vamos?
— Conhece a fazenda Ouro Velho?
— Estive lá uma ou duas vezes quando menina, mas não me
lembro muito bem.
— Pois é para lá que vamos.
— É mesmo? Minha mãe me disse que está arrendada.
— Sim, está. Para uns amigos de nossa família.
— Vamos visitá-los?
Sim. Eles têm uma filha, de nome Sara que está doente. Ela é quase
noiva de meu irmão, Dário.
Será que devo ir? Quero dizer não me leve a mal, eu adorei você
ter me convidado. Mas é que você mal me conhece, e nem sei
por que me convidou.

Júlia sorriu e acrescentou:

— Também não sei ao certo. Eu ia passando quando a vi sentada
na varanda, e algo em meu peito me levou até você. Era
como se eu tivesse que chamá-la.
— Eu, hein! Que coisa mais estranha.
— Para você ver. Eu nunca a havia visto em toda a minha vida,
mas quando a avistei, senti que já a conhecia. Não sei
explicar, mas senti uma imensa ternura por você e quis
conhecê-la.

Marta olhou-a espantada. De alguma forma, as palavras de Júlia
encontravam eco em seu coração, e ela também sentia como se já
a conhecesse havia muitos anos. Seus olhos encheram-se de
lágrimas, e ela respondeu emocionada:

— Obrigada. Sua amizade será muito importante para mim. Não
sei por que, mas também sinto como se já a conhecesse. Não
é estranho?
— Sim, muito. Contudo, aprendi a não questionar os desígnios de
Deus e a aceitar suas determinações com confiança e
naturalidade.
— Acha mesmo que é desígnio de Deus termos nos encontrado?
— Não sei, talvez. Mas você há de convir que essa sensação de
que já nos conhecemos é muito estranha. E depois, sinto que
posso confiar em você como em uma irmã, e eu nem a
conheço!
— É verdade. Também sinto a mesma coisa.
— Pois então? Bem, agora vamos. Mandei preparar uma charrete
para mim, coisa que raramente faço. Normalmente vou a
cavalo, mas hoje, não sei por que, não senti vontade de
cavalgar. E aí encontrei você, e uma charrete é bem mais
apropriada para que viajemos juntas, pois assim poderemos ir
conversando.

As duas subiram na charrete e Júlia, tomando as rédeas, pôs os
cavalos em marcha, seguindo pela estradinha ensolarada. No
caminho, Marta ia dizendo:

— Será que não se importarão? Afinal, nem me conhecem.
— Tenho certeza de que não. Seu Ezequiel e dona Rebeca são
excelentes pessoas e ficarão felizes com sua presença. Você
vai ver.
— E a moça, como é mesmo o nome dela?
— Sara?
— Sim, Sara. Você disse que ela está doente. O que tem ela?

Júlia entristeceu, e foi como se uma nuvem cinzenta encobrisse seu
rosto. Com voz sentida, retrucou:

— Não sabemos ainda. Só o que sabemos é que é coisa do
pulmão.
— Pobrezinha! Será tuberculose?
— Não sei. Por quê? Tem medo?

Marta hesitou e gaguejou:

— Não... Não... Creio que não.
— Ótimo. Você não deve se preocupar. Acredita em Deus?
— É claro que sim. Recebi educação religiosa, não lhe disseram?
— Educação religiosa é uma coisa. Fé sincera é outra bem
diferente.
— O que quero saber é se realmente acredita em Deus como
uma força superior a guiar e orientar nossos destinos.

Marta pensou por alguns instantes, até que respondeu convicta:

— Sim, certamente.
— Então, não há o que temer. Sabe minha cunhada, Camila, que
também viveu num convento, contou-me coisas muito
interessantes sobre as doenças.
— Que tipo de coisas? O que quer dizer?
— Quero dizer que não acredito que tenhamos que contrair
qualquer tipo de enfermidade pelo só fato de estarmos junto
de alguém doente. Creio que só contraímos as doenças que já
estão instaladas em nosso espírito, apenas esperando uma
chance para refletir em nosso corpo de carne.
— Continuo não entendendo nada.
— Deixe p'ra lá. São idéias que tenho, mas que não posso
provar.
— Não, por favor, explique-me. Não me julgue pelas aparências.
Posso parecer uma moça tola, mas acredito na força do
espírito.
— Como assim? — foi à vez de Júlia se espantar.
— Posso confiar em você?
— É claro que pode.
— Sei que sim. O que vou lhe falar é absolutamente sigiloso, e se
alguém descobrir, nem sei o que poderá me acontecer.

Júlia virou-se para ela, curiosa, e incentivou:

— O que é? Vamos, fale.
— Bem, como sabe, fui mandada para um convento, a fim de
terminar minha educação. Durante os primeiros meses tudo
correu bem, e eu estava feliz, até que, de uma hora para
outra, comecei a sentir coisas estranhas.
— Que tipo de coisas?
— Coisas, não sei. Sentia como se alguém estivesse ao meu lado,
por vezes até ouvia vozes.
— Credo! Isso parece até história de fantasmas.
— Mais ou menos. Não é estranho?
— Muito. E o que aconteceu?
— Bem, foi um rebuliço danado. As freiras, a princípio, pensaram
que eu estava louca. Depois, julgaram que algum demônio me
havia possuído e chamaram frei Ângelo para me benzer.
— O que ele disse? — Júlia estava visivelmente interessada.
— Promete que não vai rir?
— Não, claro que não.
— Bem, ele disse que havia dois espíritos ao meu lado.
— Espíritos? Mas que espíritos?
— Isso ele não soube dizer. Apenas me disse que eram espíritos
que, percebendo a minha sensibilidade, aproximaram-se de
mim para se comunicar.
— Será? E como ele sabe que eram espíritos?
— Bem, frei Ângelo me disse que há muito tempo vem estudando
certos fenômenos, que nada têm de sobrenatural, e que
chegou à conclusão de que determinadas pessoas, por uma
estranha razão, têm a faculdade de se comunicar com os
espíritos. Ele não sabe por que isso acontece, mas disse que é
bem freqüente.

Ele mesmo me contou que sofrerá interferência dos espíritos, que
chegaram a falar através de sua boca.

— Nossa, Marta, será verdade?
— Não tenho dúvidas. Eu mesma passei por isso.
— Um espírito falou através de você? E o que foi que ele disse?
— Que me amava muito e que eu deveria ser forte.

Júlia ficou pensativa. Ao final de alguns minutos, tornou ainda em
dúvida:

— Que esquisito!
— Não acredita?
— Não sei. Quando comecei a falar sobre a doença de Sara, não
estava me referindo aos espíritos, mas a forças interiores que
não conhecemos.
— E não é a mesma coisa?
— Não. Espíritos são criaturas externas a nós mesmos, enquanto
que nossa força interior vem de dentro de nosso ser mais
profundo.
— Tem razão. São coisas distintas, mas que têm a mesma
origem.
— Que origem?
— Deus.

Júlia não disse mais nada. Simpatizara com Marta desde o primeiro
instante em que a vira e não sabia explicar aquele sentimento nem
a confiança que, intuitivamente, sabia poder depositar nela. No
começo, pensou que ela fosse uma moça ingênua, que nada sabia
da vida, mas se enganara profundamente. Marta demonstrava uma
sabedoria muito superior à sua, e isso a assustava. Não que temesse
perder para a outra em inteligência. Não era isso. Mas temia as
coisas que não podia compreender e as conseqüências que podiam
ter em sua vida.

Marta, por sua vez, achou melhor não falar mais sobre aquilo.
Embora também sentisse o mesmo por Júlia, o fato é que aquela
revelação era um segredo que vinha guardando a sete chaves e que
só ousara dividir com frei Ângelo. Ele conseguira conversar com os
espíritos que visitavam Marta, rezara por eles e acabara afastando-
os. Com isso, afastara também as desconfianças das freiras,
convencendo-as de que a menina era perfeitamente normal e que
apenas atravessara uma fase difícil, dada a pouca idade com que
fora arrancada do seio da família. As freiras se convenceram e,
vendo que Marta não se queixava mais, julgaram que ela estava
curada e pararam de importuná-la.

As duas moças fizeram o resto do caminho em silêncio. Tanto Júlia
quanto Marta não queriam mais tocar naquele assunto. Ao menos
por enquanto. Assim, entregaram-se a seus próprios pensamentos,
certas de que uma amizade sincera e sólida acabara de se
estabelecer entre ambas.

Na fazenda Ouro Velho, as coisas não iam nada bem. Sara acabara
de ter uma crise e, pela primeira vez, expelira sangue pela boca.
Rebeca e Ezequiel estavam desesperados, já então certos de que a
menina estava tísica. A tristeza pairava no ar, a sensação de morte
parecia ter invadido a casa. Até as flores pareciam recusar-se a
desabrochar e murcharam nos vasos, ainda botões.

Quando Júlia e Marta chegaram, o clima era tenso. Ezequiel
chamava Juarez, para que juntos fosse à vila, o mais rápido
possível, ver se havia algum médico disponível. Estava tão
desnorteado que nem deu pela presença das duas moças, e Júlia
correu para o quarto, com Marta atrás de si. Ao entrar, ficou
chocada. Sara jazia na cama feito morta, uma palidez cadavérica a
alastrar-se pela face alva, a respiração ofegante demonstrando
exaustão extrema. A seu lado, a mãe rezava fervorosamente,
pedindo a Deus que salvasse sua filha. Júlia acercou-se de Rebeca e,
colocando a mão em seu ombro, disse amargurada:

— Dona Rebeca, o que houve?

A outra a olhou assustada. Sequer havia notado que chegara.
Vendo-a ali, preocupada, desabou num pranto convulso e
respondeu:

— Oh! Júlia, não sei o que vai ser de minha menina. Veja!

Apontou para a toalha estirada no chão, salpicada do sangue da
doente. Júlia sentiu um baque e fechou os olhos, tentando não
acreditar no que via. Ao final de alguns minutos, porém, retrucou:

— Tenha calma, dona Rebeca. Tudo vai acabar bem.
— Não, Júlia. Minha filha vai morrer. Minha filha, minha filhinha.
Por que Deus há de lhe ceifar a vida assim, tão jovem?

Marta, que até então nada dissera, deu um passo à frente e
objetou:

— Perdoe-me, senhora, mas sua filha não vai morrer, não.

Rebeca assustou-se. Não notara sua presença e, com voz incrédula,
perguntou:

— Quem é você? O que faz aqui?
— Desculpe-me, dona Rebeca — respondeu Júlia. — A culpa é
minha. Na pressa e na angústia, esqueci de lhe apresentar.
Esta é Marta, filha de um dos capatazes da fazenda, e acaba
de chegar da corte.

Rebeca olhou-a com certa animosidade. Não sabia por que, mas não
simpatizara com a moça. Atribuiu o fato ao momento delicado por
que atravessavam e não lhe agradava em nada dividir seus
problemas mais íntimos e dolorosos com uma estranha. Olhando-a
com rancor, revidou:

— Por que a trouxe aqui? Ela não faz parte da família.
— Pensei em chamar Sara para darmos um passeio. Não sabia
que a encontraria nesse estado.
— Pois não devia. Sinto muito, Júlia, mas você fez mal. Essa
moça é uma estranha e ainda corre o risco de se contaminar.
— Não se preocupe dona Rebeca — interveio Marta. — Não vou
me contaminar, estou certa.
— Como pode saber?
— Eu sei.
Ela falou com tanta convicção que até Júlia estranhou. Havia poucos
minutos, quando lhe perguntara se tinha medo do contágio, Marta
titubeara. Mas nesse momento falava com tanta certeza que era
como se soubesse mesmo que nada de mal lhe aconteceria.
Confusa, Júlia perguntou:

— Será que não é melhor irmos embora?
— Acho uma boa idéia — concordou Rebeca. — Não queremos
correr riscos desnecessários.
— Gostaria de ficar — teimou Marta.
— Mas por quê? Não vê que pode se contaminar?
— Já disse que isso não vai acontecer.
— Por favor, mocinha, está sendo inconveniente. Isso não é hora
para criar um caso.
— Não estou criando caso algum. Apenas gostaria de ficar.
— Mas por quê? — perguntou Júlia, espantada. — Afinal, você
nem a conhece...
— Não sei. Mas sinto que não devo partir.
— Olhe moça, sei que tem boas intenções, mas não precisa...

Marta fechou os olhos e, sem dar atenção às recriminações de
Rebeca, acercou-se do leito da enferma e estendeu as mãos acima
dela, deslizando-as suavemente por todo o seu corpo. Rebeca ia
protestar, mas, subitamente, Sara teve um estremecimento, depois
outro e mais outro, até que sua respiração começou a se acalmar, e
o peito logo voltou a subir e descer serenamente. As faces, em
pouco tempo adquiriram certa cor, como se um punhado de vida se
derramasse sobre aquela palidez de morte. Júlia, boquiaberta, não
conseguia tirar os olhos daquela cena, e quando a menina se
acalmou por completo, dormindo placidamente, indagou confusa:

— O que aconteceu? O que você fez?

Marta abriu os olhos, assustada. Nem ela mesma sabia o que fizera.
Só o que sabia era que, de repente, sentira um desejo incontrolável
de se aproximar da doente e pôr sobre ela suas mãos, entregando-
se à vontade de Deus. Tinha consciência de tudo o que fizera, mas
não entendia como. Era como se uma estranha força a impelisse
para a cama de Sara, e ela acabou se deixando levar. Ela até sabia
que poderia parar se assim o desejasse. Mas o mais estranho é que
não queria. Tinha vontade de prosseguir, de ajudar à doente, e
estava certa de que podia. Sentia uma confiança imensa em si
mesma e no que quer que a esteja impulsionando. Sabia que aquela
força era benigna e, sem resistência, entregara-se a ela, certa de
que estava apta a levar um pouco de paz à doentinha. Encarando
Júlia e depois Rebeca, Marta gaguejou:

— Não... Não sei... Só o que sei é que não pude parar. Foi mais
forte que eu...

Sara abriu os olhos e olhou ao redor, tentando fazer um
reconhecimento de onde estava. Parecia um pouco confusa, aérea,
e quando deu de cara com Marta, exclamou:

— Mamãe! — e logo adormeceu.

As três se olharam atônitas, aproximando-se de Sara, preocupadas.
Mas a moça dormia tranqüilamente. O que teria acontecido? Por que
ela chamara Marta de mamãe?

— Com certeza, nos confundiu — justificou-se Rebeca. — Afinal,
em seu estado, é natural que esteja fraca e confusa.
— É, tem razão — concordou Júlia. — Deve ter sido isso mesmo.
Marta não disse nada. Em seu íntimo, sabia que Sara não havia se
confundido. Em seus olhos, quando a encarara, passara um brilho
de reconhecimento, e Marta sentiu como se já a tivesse tido em
seus braços inúmeras vezes. Aquilo era muito estranho, e ela não
sabia explicar. Pensou que deveria ser influência dos espíritos, mas
preferiu não dizer nada. Na certa, ninguém acreditaria, e ainda a
tomariam por louca ou charlatã. Pensou em escrever uma carta a
frei Ângelo. Ele teria uma explicação razoável para tudo aquilo.

Certificando-se de que a filha dormia, Rebeca convidou-as a passar
para a outra sala. Não sabia o que dizer. Não simpatizara com Marta
desde que chegara, mas o fato era que ela, por um inexplicável
motivo, tirara Sara daquela crise em que se encontrava, e a menina
parecia bem melhor. Ao vê-las acomodadas na poltrona, pediu que
Laurinda lhes preparasse um pouco de chá e indagou com voz
pausada:

— Alguém pode me explicar o que aconteceu?

Júlia e Marta se entreolharam. Depois da conversa que tiveram Júlia
bem desconfiava da interferência dos espíritos. Era bem possível, ou
melhor, provável, que Marta tivesse agido influenciada por algum
espírito bondoso, interessado em ajudar. Contudo, sabia que não
seria prudente revelar suas desconfianças. Ao menos por enquanto.
Embora Rebeca e Ezequiel fossem pessoas boas e religiosas,
seguiam crença diversa, e aquela revelação poderia chocá—los. E
Júlia não queria desgostá-los ou transtorná-los. Ao contrário, amava-
os muito e sabia que o respeito era poderosa arma de
compreensão. O melhor a fazer seria esperar o momento mais
oportuno para conversarem sobre aquilo, aguardando à hora em
que ela estivesse pronta para compreender aquele novo caminho,
que só então começavam a desvendar. Ela olhou para Marta com
olhar significativo e respondeu:

— Não sei dona Rebeca. Juro que não sei.

Rebeca, querendo respostas imediatas, encarou Marta com um ar
entre desafiador e agradecido, e ela retrucou:

— Não adianta olhar para mim. Nem eu mesma sei o que se
passou.
— No entanto, parece que você a curou só com a imposição de
suas mãos. Como isso é possível?
— Dona Rebeca — intercedeu Júlia —, não pode dizer que Sara
está curada. Ela melhorou, é verdade, mas continua doente.
— Tem razão — acrescentou Marta. — Não sei bem o que fiz,
mas sei que não a curei.
— Mas ela está melhor e dorme placidamente. Isso você não
pode negar.
— Dona Rebeca, sinto se não lhe posso dar as respostas que
tanto anseia. Como lhe disse, eu mesma desconheço o que se
passou. Só o que posso dizer é que senti uma enorme vontade
de ajudar.
— Só isso? Vontade de ajudar? Ora, francamente, ninguém faz o
que você fez com a só vontade de ajudar. Deve haver algo
mais.
— Dona Rebeca — interveio Júlia novamente —, quer me parecer
que a senhora não ficou satisfeita com o que aconteceu. Sara
está melhor e, no entanto, a senhora parece até estar com
raiva. Por quê?

Rebeca ficou confusa. Júlia tinha razão. Ela deveria estar agradecida
àquela estranha pelo que fizera, mas sentia como se Marta,
ajudando-a, estivesse tentando roubar-lhe a afeição da filha, e isso
a encheu de despeito. Contudo, sabia que isso era loucura.
Conhecera a moça naquele momento. Sara nunca a havia
encontrado. E depois, por que estaria ela interessada no amor de
sua filha? Não, aquilo era tolice. Não havia nada de lógico nem de
racional naquela antipatia, mas quem podia dizer que os sentimentos
tinham que ser racionais? Eles simplesmente existem, sem que
possamos explicar sua origem. Um tanto quanto envergonhada,
Rebeca tornou:

— Desculpem-me... Não tive a intenção de ser grosseira ou mal-
agradecida. É que fiquei confusa e curiosa. Nunca havia visto
uma coisa dessas na vida e pensei...
— Pensou... — incentivou Júlia.
— Nada, nada. — E, voltando-se para Marta, acrescentou: —
Quero que me perdoe. Estou muito grata pelo que fez.
— Ora, dona Rebeca, não é preciso se desculpar — objetou
Marta, cheia de compreensão. — Com tudo o que aconteceu,
é natural que esteja transtornada.

A porta da frente se abriu e Ezequiel entrou, seguido pelo médico.
Era já um senhor idoso e entrou fazendo uma reverência para as
senhoras. Dirigiu-se para o quarto, em companhia de Ezequiel.
Rebeca saiu logo atrás, na esperança de que ele tivesse um
diagnóstico mais animador. O facultativo examinou Sara e, após
alguns minutos, chamou os pais a um canto e considerou:

— Bem, a pequena está mesmo doente, embora seu estado
agora pareça estável. Pelo que o senhor me disse, tossia
muito e expeliu pus e sangue, não está certo.
— Sim, senhor — concordou Ezequiel.
— Hum... Ela está melhor, é verdade. Mas os sintomas são
reveladores.
— O que quer dizer com isso, doutor? — indagou Rebeca,
assustada.
— Senhora, lamento pelo que vou dizer, mas sua filha está com
tuberculose.

Rebeca desabou mortificada e começou a chorar. Ezequiel, tentando
controlar as emoções, ainda indagou:

— Tem certeza? Não pode ser outra coisa?
— Certeza absoluta. Já vi muitos casos como esse.
— E o que faremos?
— Vou ministrar-lhe uma medicação, mas os resultados são
imprevisíveis. Infelizmente, essa doença não tem cura, e
muitos já padeceram vítimas desse mal.
— Oh! Meu Deus, meu Deus! — chorava Rebeca. — O que será
de minha filhinha?

O médico olhou-a com bondade. Já passara por aquilo diversas
vezes e sabia o quanto era doloroso para os parentes.
Principalmente quando a vítima era tão jovem quanto aquela
mocinha. Tentando animá-los um pouco, afirmou:

— Apesar de tudo, muitos conseguiram sobreviver.
— É mesmo? — animou-se Rebeca. — Como? O que fizeram?
— Não sei. Só o que sei é que o tratamento é igual para todos.
No entanto, inexplicavelmente, algumas pessoas conseguem
significativas melhoras e prolongam em muito seu tempo de
vida. Creio que uma alimentação saudável e ar puro são os
melhores remédios nesses casos.

O médico encerrou a consulta e se foi. Ezequiel e Rebeca se
abraçaram, chorando. Amavam a filha mais do que qualquer coisa,
e não suportariam perdê-la. Era jovem, em breve se casaria. Como
aceitar que Deus fizesse uma injustiça dessas com eles, tirando de
seu convívio uma moça tão cheia de vida quanto sua Sara? Por que
não levava bandidos e malfeitores, em vez de sua menina? Logo
ela, tão boa, tão pura. Aquilo não estava certo. Eles não queriam se
revoltar contra os desígnios de Deus, mas aquilo, decididamente,
não estava certo.

No caminho de volta, Marta e Júlia iam conversando.

— Tem alguma idéia do que aconteceu lá? — indagou Júlia.
— Tenho. Embora não tenha certeza, creio que foram os
espíritos.
— Também pensei nisso. Mas por quê?
— Não sei.
— Isso já havia acontecido antes com você?
— Não, nunca. Conforme lhe falei, sempre os senti junto de mim,
ouvia suas vozes, e uma vez até um deles me possuiu. Mas eu
nunca havia tomado uma atitude dessas.
— Acha que estava possuída?
— Não sei dizer. Eu podia ver ouvir e sentir tudo o que fazia.
Podia até parar, se quisesse. No entanto, sentia como se uma
estranha força me houvesse dominado, influenciando minha
vontade e fazendo-me desejar fazer aquelas coisas. Foi muito
estranho.
— Foi maravilhoso!
— Acha mesmo?
— É claro que sim. Pena que Sara não tenha despertado.
Gostaria que a conhecesse.

Marta olhou para Júlia com olhos úmidos e tornou:

— Sabe, gostaria de dizer-lhe algo, mas pode até parecer
loucura.
— O que é?
— Lembra quando Sara olhou para mim e me chamou de
mamãe?
— Lembro. O que tem? Ela, na certa, estava meio zonza e as
confundiu.
— Pode ser. No entanto, quando vi seus olhos sobre mim, senti
uma emoção estranha, como se não fosse à primeira vez que
os estivesse vendo.
— Será? — Júlia estava incrédula. — Mas, como pode ser? Sara
não é daqui, veio de São Paulo. Nunca antes esteve por estas
bandas. Como pode achar que a conhece?
— Não sei dizer. Eu apenas senti, assim como senti que também
a conhecia, Júlia, logo que nos encontramos.
— O que pretende fazer?
— Penso que seria bom escrever uma carta a frei Ângelo. Com
certeza, ele poderá nos ajudar.

Júlia considerou por alguns instantes e acabou concordando:

— Tem razão. Será que ele não gostaria de passar uns dias aqui,
na fazenda?
— Seria maravilhoso. No entanto, que desculpa daríamos para
trazê-lo?
— Não sei. Mas prometo pensar em algo. Dona Palmira é muito
religiosa, e os filhos estão construindo uma capela para ela.
Quem sabe não gostaria de receber a visita de um frei? Para
abençoar as obras, coisas desse tipo. Então, o que me diz?
— A idéia me parece boa. De qualquer maneira, não custa nada
tentar.

Quando a charrete chegou à fazenda São Jerônimo, Fausto correu
ao seu encontro. Estava preocupado com Júlia. Ela saíra e não
dissera nada, demorando-se além do habitual. Logo que o carro
estacionou, ele a abraçou e a suspendeu, puxando-a para fora. Júlia
corou e olhou para Marta, que abaixou os olhos. Ao vê-lo se
aproximar, pensara que era Rodolfo, mas quando ele abraçara Júlia,
vira que estava enganada. No entanto, eram tão parecidos! Marta
estava apaixonada por Rodolfo e, por mais que tentasse, não
conseguia tirar os olhos de Fausto. Júlia, percebendo o que ia ao
coração da amiga, perguntou:

— Onde está Rodolfo?
— Não sei. Deve estar na plantação. Por que a pergunta?
— Por nada — concluiu ela, lançando significativo olhar para
Marta, que Fausto logo compreendeu.
— Por que não vamos para a varanda esperá-lo? - sugeriu.
— Ótima idéia.
— Sinto muito — interrompeu Marta. — Eu bem que gostaria,
mas minha mãe já deve estar preocupada.
— Fausto pode mandar alguém avisá-la de que chegamos e que
você está bem.
— Acha mesmo?
— É claro que sim. Por que não fica e almoça conosco?
— Eu adoraria!

Os três seguiram em direção ao alpendre e se sentaram. Já era
quase hora do almoço, e estavam famintos. Júlia colocou Fausto a
par do ocorrido, pedindo licença para contar tudo a Dário. Era noivo
de Sara e precisava saber.

Dário estava sentado à sombra de uma figueira, calmamente lendo
um periódico. Júlia chegou por trás dele e estalou-lhe um beijo na
nuca, fazendo com que desse um salto.

— Júlia! — exclamou. — Sua louquinha, você me assustou.
— Sinto muito, não foi por querer. Mas agora me escute. Preciso
falar com você.
— Aconteceu alguma coisa?
— Sim. E muito grave.

Antes mesmo de perguntar, Dário já sabia a resposta. Podia sentir,
pelo tom de voz da tia, que algo muito sério havia acontecido com
sua amada, e indagou:

— Com Sara?
— É. Lamento pelo que vou lhe dizer, mas você tem que saber.
— O quê?
— Sara está mesmo com tuberculose.
Dário enfiou a cabeça entre os joelhos e desabafou, angustiado:

— Meu Deus! Como soube?

Minuciosamente, Júlia contou-lhe o que acontecera, sem omitir
nenhum detalhe, inclusive sobre a intervenção de Marta. Dário ficou
confuso e transtornado, sem saber o que pensar. Não conhecia
Marta direito. Somente a vira uma vez e pouco falara com ela. Seria
confiável?

— Creio que sim — afirmou Júlia. — Marta me parece uma moça
muito séria e bondosa. Podemos confiar nela. E agora venha,
vamos entrar.

Eles se levantaram e puseram-se a caminhar, até que Júlia o
chamou e o advertiu seriamente:

— Outra coisa. Nem uma palavra sobre isso dentro de casa.
Dona Palmira não pode nem de longe desconfiar que Sara está
tísica.
— Tem razão. Seria extremamente desagradável. Eu a conheço
e sei o quanto ela é preconceituosa. Se souber que arrendou
sua fazenda para alguém com uma enfermidade dessa
natureza, é bem capaz de expulsá-los de lá.
— E o médico recomendou-lhe boa alimentação e ar puro.
— Não se preocupe Júlia, não direi nada a ninguém.
— Ótimo.

Nesse ponto, Júlia sentiu como se alguém os estivesse espionando e
olhou para trás. No mesmo instante, sentiu o corpo todo se arrepiar,
ao dar de cara com Terêncio, que vinha logo atrás, com ar
distraído. Ele olhou para ela, sério, e cumprimentou:

— Bom dia, dona Júlia. Seu Dário...
— Bom dia, Terêncio — responderam em uníssono.

Sem falar mais nada, chegaram para o lado, abrindo caminho para
que Terêncio passasse. O capataz bateu com a mão no chapéu, em
sinal de agradecimento, e passou por eles calmamente, apertando o
passo logo em seguida. Assim que ele se afastou, Dário indagou:

— Será que ele ouviu alguma coisa?
— Não, tenho certeza. Estava muito longe, e estávamos falando
baixinho.

Terêncio, efetivamente, não escutara nada. Pensava em outras
coisas e seguia preocupado. Havia pouco se encontrara com
Constância e não gostara nada do que ouvira. Constância ainda
pensava em vingar-se de Tonha e tivera a coragem de pedir-lhe
ajuda. Mas ele não estava mais disposto a correr riscos. Não
naquela idade.

Capítulo 12

À medida que o tempo passava Marta cada vez mais se aproximava
de Rodolfo. Ele era gentil e amável, e isso a encantava. Fausto e
Júlia se alegraram imensamente com o interesse dos dois, certos de
que Rodolfo, finalmente, havia se esquecido do surto de loucura de
que fora acometido. Apenas Palmira não parecia satisfeita. Criara o
filho com dedicação e esmero. Preparara-o para um casamento
brilhante, com uma moça da mais alta sociedade, fosse da região,
fosse da corte. Não que não tivesse por Marta certa admiração.
Apreciava sua educação refinada e seus gestos delicados. No
entanto, a moça era filha de seu capataz e, por mais educada que
fosse, jamais poderia ocultar do mundo a inferioridade de sua
origem.

Júlia, em sua inocência, não via mais em Rodolfo nenhuma ameaça.
Ele a tratava bem, mas com cuidados de irmão, e jamais se
aproximava dela de uma forma que pudesse levantar suspeitas.

Os jovens pareciam satisfeitos naquela manhã. Estavam animados,
loucos para sair. Era dia de quermesse na vila, e estavam todos
contentes. Apenas Dário, não querendo se afastar de Sara, recusou
gentilmente o convite, pretextando não estar se sentindo bem, e
Palmira estranhou. Já tivera problemas com um dos netos. Será que
o outro também se metera em algum tipo de encrenca?

— O que foi que houve meu filho? — a indagou, olhando pelo
vidro da janela, enquanto os demais se afastavam.
— Hã? — assustou-se Dário. — Por que pergunta vovó?
— Não sei. Você anda estranho. Quase não sai com seus tios,
com seu irmão. Aconteceu alguma coisa?

Dário olhou para ela, imaginando o que estaria pensando, até que
respondeu:

— Não, vovó, está tudo bem — virou-se para a porta e
acrescentou: — E agora, se me der licença...
— Vai sair?

Ele hesitou:

— Vou... Vou sim.
— Posso saber aonde vai?
— Bem, pensei em cavalgar um pouco.
— Por que não foi com seus tios?
— Ora, vovó, pense bem. Eles saíram acompanhados. O que iria
eu fazer no meio de dois casais enamorados? Com certeza, só
atrapalharia.

Ela pensou um pouco e retrucou:

— É, tem razão. Mas não fique triste. Por que não chama seu
irmão para acompanhá-lo?
— Túlio? Não sei, vovó. Túlio anda estranho, arredio, não quer
falar com ninguém.
— É mesmo? Não havia percebido.
— Mas é verdade. Desde que aquela escrava, a Etelvina, se
afogou, ele anda esquisito.
— Porque será?
— Não sei. Será que teve alguma coisa a ver com o
desaparecimento dela?
— Não creio meu filho. Seu irmão é um bom rapaz e não se
envolveria com negros.

Ele abriu a boca para contestar, quando a entrada da mãe susteve
sua observação.

— Olá! Posso interromper?
— É claro, mamãe.
— Deseja alguma coisa, minha filha? — indagou Palmira, mal-
humorada.
— Nada de especial. Gostaria apenas de saber se Dário não quer
me acompanhar num passeio pela fazenda. Está um dia tão
bonito...
— Gostaria muito, mamãe — respondeu ele aliviado.
— Vamos, então?
Os dois saíram, e Palmira ficou a olhá-los. Eles andavam estranhos.
Todos naquela casa já não eram mais os mesmos. Tocou a sineta e
um negrinho apareceu.

— Vá chamar Terêncio — ordenou.

O negrinho saiu e o capataz surgiu cerca de quinze minutos depois.
Entrou, tirou o chapéu e perguntou:

— Mandou chamar, dona Palmira?
— Mandei sim. Há pouco, Dário me disse que Túlio anda
estranho. Quero saber o que está acontecendo.
— Sinto muito, dona Palmira, mas não sei de nada. Não o vejo
há alguns dias.
— Tem notado algo de diferente em seu comportamento?
— Como disse, já faz algum tempo que não o vejo. Por que tanto
interesse? Ele é jovem, pode estar enrabichado...
— É isso o que me preocupa.
— Por quê? Acha que ele pode estar envolvido com alguma
negra?
— Não sei. Túlio é um bom rapaz, apesar de um pouco
doidivanas. E depois do que aconteceu a Etelvina, não sei
não...
— Etelvina sumiu.
— Por isso mesmo.

Terêncio lançou-lhe um olhar interrogador e retrucou:

— Acha que ele deu sumiço na negrinha?
— Não sei. Mas desconfio. Dário me disse que foi depois que ela
sumiu que ele começou a ficar estranho.
— O que quer que eu faça dona Palmira?
— Quero que você tente descobrir alguma coisa.
— Dona Palmira, se me permite a intromissão, para que quer
fazer isso? Se o rapaz usou a negra e depois se desfez dela,
que mal há nisso? Não terá sido a primeira vez que isso
acontece, e não é nenhum fim de mundo. Ou será que a
senhora pretende castigá-lo?
— É claro que não. Onde já se viu, castigar meu neto por causa
de uma escrava?
— Então, por que remexer nisso? Etelvina sumiu ninguém sabe
dela. Provavelmente se afogou. Não acha que é melhor deixar
as coisas como estão?
— Eu preciso saber.
— Mas por quê?
— Porque não quero que meu neto se envolva com esses
animais. Essas negras são repulsivas, e não quero Túlio metido
com elas.
— Mesmo assim. Se ele se envolveu com Etelvina, isso já
passou. Ela não está mais aqui para reclamar.
— Não é isso, homem. Então não vê? Não é com Etelvina que
estou preocupada nem com o que aconteceu a ela. Preocupo-
me apenas com meu neto. Se ele se deitou com uma negra,
quero tomar minhas providências para que isso não se repita
nunca mais.

Não está direito. Um moço branco, rico, metido com essa escória.
Agora chega de perguntas, Terêncio. Faça o que estou mandando,
ou será que agora deu para desobedecer minhas ordens?

— Eu? Mas o que é isso, dona Palmira? Sempre lhe fui fiel, a
senhora sabe disso.
— Sei. Mas isso não vem ao caso. Faça o que estou mandando e
avise-me se descobrir alguma coisa.
— Sim, senhora.
Terêncio se foi e Palmira continuou pensativa. Ela já estava velha,
mas não era nenhuma tola. Além disso, seu instinto dizia que Túlio
tinha alguma coisa a ver com o desaparecimento de Etelvina, sim.
No princípio, não desconfiara de nada. Mas depois do que Dário lhe
dissera, estava quase certa de que ele, efetivamente, envolvera-se
com ela e depois lhe dera um sumiço. Mas ela descobriria. Não
queria seu sangue misturado ao sangue daquela gente e tudo faria
para impedir tamanha desgraça. Ela começou a subir as escadas,
quando Constância a chamou:

— Tia Palmira?
— Sim, querida, o que é?
— Aconteceu alguma coisa? Posso ajudá-la?
— Pensando bem, poderia mandar servir-me uma xícara de chá
em meu quarto?
— Pois não, titia. Mandarei Tonha agora mesmo preparar o chá e
levá-lo para a senhora.

Ao entrar na cozinha, Tonha não estava, e Constância saiu à sua
procura. Ela estava no quintal, regando algumas plantas, quando viu
Constância se aproximar, e disse com aparente normalidade:

— Bom dia, sinhá. Deseja alguma coisa?

Constância encarou-a com aquele sorriso enigmático e disse:

— Tia Palmira quer chá. Leve-o imediatamente ao seu quarto.
— Sim, sinhá.

Tonha largou o balde com que aguava as plantas e virou-se em
direção à cozinha. Quando passou por Constância, ela
propositadamente esticou o pé, e Tonha, nada percebendo,
tropeçou e desabou no chão, ralando o rosto na terra. Constância
desatou a rir e vociferou:

— Ha, ha, ha! Bem-feito, negra! Agora se levante! Ha, ha, ha!
Ande, vamos! Levante-se e vá preparar o chá!

Tonha, faces sangrando, levantou-se dolorida, sentindo joelhos e
cotovelos arderem, também arranhados. Sentia dor e tremia, não
conseguia se mover. Constância, rindo cada vez mais alto, continuou
a esbravejar:

— Ha, ha, há! Ande negra, o que está esperando? Tia Palmira
quer chá! Ha, ha, ha! Não se demore ou será castigada!
— Sinhá, eu...

Ela estava toda dolorida, humilhada, e não conseguia se mover.
Constância chegou perto dela e empurrou-a, e Tonha quase tombou
novamente, começando a chorar. Constância ria cada vez mais alto,
ao mesmo tempo em que bradava:

— O chá! O que está esperando? Vá buscar o chá ou irá se
arrepender!

Já ia empurrá-la de novo quando Camila surgiu do outro lado do
terreiro, em companhia de Dário. Estavam passando por ali e
escutaram as gargalhadas desvairadas de Constância, e Camila
podia imaginar o que estava acontecendo. Ao vê-la, Constância fez
uma careta de contrariedade e recuou. Camila aproximou-se delas,
segurou Tonha pelo braço e fulminou a prima com o olhar, dizendo
friamente:

— Não se preocupe Constância. Eu mesma levarei o chá para
mamãe.

Tonha, auxiliada por Dário, voltou para a cozinha, e Camila ajudou-a
a fazer curativo nas feridas. Em seguida, preparou o chá e levou-o
para a mãe, pedindo a Dário que acompanhasse Tonha a seu quarto
para descansar. Eram ordens dela, Camila, e que ninguém a
incomodasse.

Palmira estranhou a ausência de Tonha, mas Camila disse que ela
caíra e que a mandara cuidar dos ferimentos. Palmira não disse
nada. Não tinha tempo para se ocupar com aquilo. Se ela se ferira
era problema dela. Só o que não queria era que deixasse de
cumprir com suas obrigações.

Depois que a mãe terminou, Camila pegou a bandeja e saiu. Pouco
depois, entrava decidida no quarto de Constância. A outra a olhou
assustada, e Camila, olhos rasos d'água, desabafou:
— Constância, não sei o que aconteceu com você. Houve um
tempo em que éramos amigas, confiávamos uma na outra.
Mas agora...
— Por que a nostalgia, Camila? Não foi você mesma quem
começou a se afastar de mim por causa daquele traste do
Basílio?

Camila olhou-a magoada e acrescentou com voz súplice:
— Será que não podemos voltar a ser amigas? Somos primas.
Não podemos esquecer o passado e recomeçar, vivendo em
paz como antes vivíamos?

Constância dirigiu-lhe um olhar de desdém e redargüiu com frieza:
— Você hoje é uma estranha para mim, e não costumo manter
relações com estranhos. Ainda mais com aqueles que são
amigos dos negros.

Diante dessas palavras, Camila silenciou. Rodou nos calcanhares e
se foi, levando no coração a imensa mágoa de haver perdido a
amiga, que continuava ainda entregue a sentimentos pobres e
mesquinhos.

Na vila, Fausto e Júlia, Rodolfo e Marta passeavam de braços dados.
Rodolfo parecia mesmo interessado em Marta. Cobria-a de
atenções, comprava-lhe doces, flores e até um anelzinho de prata
portuguesa, doado para arrecadar fundos para a igreja. Ele parecia
à alegria em pessoa e realmente sentia-se bem na companhia da
moça. Não fosse aquela inveja do irmão, que o fazia desejar tudo o
que fosse de Fausto, poder-se-ia dizer que era a imagem da
felicidade. De tão entretido com Marta, não deixara ninguém
perceber que, sorrateiramente, tomava conta de todos os passos de
Fausto. Remoendo amargo despeito, viu quando ele e Júlia,
discretamente, beijaram-se, e quase enlouqueceu quando ele,
rapidamente, cingiu-lhe a cintura pequenina. Tinha vontade de
esganá-lo. No entanto, precisava manter a calma.

Júlia e Fausto, por sua vez, viviam uma felicidade plena. Amavam-
se com ternura e sentiam imenso prazer na companhia um do outro.
Estavam confiantes no futuro. Apesar de saberem que Palmira não
fazia muito gosto naquele romance, não havia nada que ela pudesse
fazer para separá-los, e não lhe restava alternativa senão
conformar-se com o destino. Em breve se casariam e seriam muito
felizes.

O Sol estava a pino quando Júlia pediu a Fausto que a levasse para
descansar. Sentia muito calor e não queria expor-se ao Sol em
demasia. Fausto, gentilmente, conduziu-a para um banco na praça
em frente ao pátio da igreja, e de lá ficaram a apreciar a
quermesse. Estava muito animada, com barraquinhas de quitutes,
rendas, bordados e até algumas jóias de pequeno valor. Júlia, vendo
o interesse de Fausto naquela agitação, aproveitou a oportunidade e
indagou:

— E as obras da capela, como estão?
— Bastante adiantadas. Creio que mais um ou dois meses e
estará pronta. Vai ficar uma beleza, garanto.
— Estou certa que sim — ela se calou por alguns segundos e
continuou: — Quem vai rezar as missas?
— Quem? O padre João, se não me engano. É ele quem reza
missa em todas as fazendas da região.
— É mesmo?
— Sim. Ele escolhe um dia, vai até a fazenda e reza a missa.
— É uma pena que não possa haver missa todos os dias, não é
mesmo?
— Sim, é. Mas o padre João tem seus compromissos com a
igreja aqui da vila e não pode se ausentar constantemente.
Por quê?
— Por nada. É que andei pensando...
— Em quê?
— Quem sabe sua mãe não gostaria de ter um frei morando na
fazenda? Assim poderia assistir à missa e confessar-se quando
quisesse, sem ter que esperar pelo padre João.

Fausto olhou-a em dúvida. A idéia até que não era má. No entanto,
trazer um frei para ali exigiria muitos gastos. Era preciso custear sua
moradia, sua alimentação. E depois, não sabia se a Igreja
consentiria. Teria que pedir autorização ao bispo, era muito
complicado. Cocando o queixo, ele respondeu.

— Hum... Não sei, não. A idéia até que não é ruim, mas não
daria certo.
— Por que não?
— Ora, Júlia, não é assim tão fácil como você pensa. Há os
gastos, os transtornos e, além de tudo, precisamos de
autorização do bispo. Afinal, uma capela não é uma paróquia.

Ela pensou durante alguns segundos e acabou por concordar:

— Tem razão, esqueça. Foi uma idéia tola.
— Mas por que você, de uma hora para outra, resolveu se
preocupar com isso?

Júlia ficou ali a encará-lo. Eles se amavam, e ela sabia que podia
confiar nele. Embora não soubesse se ele acreditava na influência
dos espíritos na vida das pessoas, tinha certeza de que ele saberia
respeitar suas crenças e não a julgaria louca ou tola.

— Quer mesmo que lhe diga?
— É claro. Por isso estou perguntando.

Rapidamente, Júlia contou-lhe os acontecimentos dos últimos dias.
Como conhecera Marta e sua afeição imediata. A enfermidade de
Sara, a crise e os episódios que Marta lhe narrara, terminando com
a ajuda de frei Ângelo e a carta que ela tencionava escrever-lhe.
Fausto olhou-a incrédulo. Não acreditava naquelas histórias de almas
de outro mundo e achou aquele caso meio fantasioso. Por outro
lado, conhecia sua Júlia e sabia que ela, além de inteligente, era
uma moça sensata e ponderada, e jamais se deixaria enganar pelas
crendices de uma beata ou de uma impostora. E depois, havia Sara.
Júlia lhe dissera que Marta a ajudara só com a imposição das mãos.
Apesar de um tanto quanto incrédulo, terminou por concluir:
— Bem, Júlia, o que você me diz é espantoso.
— Mas é a mais pura verdade.
— Não duvido. No entanto, mamãe jamais concordaria com uma
coisa dessas. Chamaria de ignorância ou de feitiçaria, e
trataria de denunciar o frei como herege e charlatão.
— Ela faria isso?
— Sem dúvida. Mamãe é uma pessoa muito ligada à Igreja e
veria nesse frei Ângelo uma ameaça às verdades constituídas
por seus dogmas. Jamais acreditaria.

Júlia entristeceu. Gostava de Sara como de uma irmã e não queria
vê-la morrer. Além disso, ainda tinha o sobrinho. Dário a amava
acima de tudo na vida e sofreria muito se a perdesse. Fausto,
percebendo a decepção e a tristeza em seu olhar, ponderou:

— Por que não fala com seu Ezequiel e dona Rebeca? Afinal, eles
são os maiores interessados. Quero dizer se não se
importarem com a presença de um frei, sendo judeus.
— É mesmo. Não havia pensado nisso. Como frei Ângelo é amigo
de Marta, pensei que o melhor seria trazê-lo para junto dela.
Assim poderíamos desfrutar melhor de seus ensinamentos.
Mas levá-lo para a fazenda Ouro Velho seria bem melhor. E
depois, dona Rebeca e seu Ezequiel não têm nenhum
preconceito contra quem quer que seja. Do contrário, jamais
seríamos amigos. Tenho certeza de que não se incomodariam
com a presença de um padre.
— Pois então? Lá, inclusive, ele teria mais privacidade para expor
essas experiências. Isso sem falar no fato de que estaria mais
perto de Sara e poderia atendê-la com toda a urgência que o
caso requer.
— Acha que ele também poderia fazer o que Marta fez?
— Não sei. Mas se você diz que ele é como seu mentor, não vejo
por que não poderia.
— Tem razão. Frei Ângelo, ao que tudo indica, tem profundo
conhecimento do mundo dos espíritos, e se foi um espírito que
ajudou Sara, ele poderá invocá-lo com mais facilidade.
— Isso mesmo. Fale com seu Ezequiel. Tenho certeza de que ele
concordará. Um homem na posição dele, com a filha doente,
são capazes de qualquer coisa para salvá-la.
— Você está certo. Falarei com eles e depois pedirei a Marta que
escreva uma carta a frei Ângelo, explicando-lhe o caso e
convidando-o há passar uns dias na fazenda.

Depois disso, a conversa mudou de rumo, e logo Rodolfo e Marta se
juntaram a eles. Rodolfo, embora não desgrudasse de Marta, não os
perdera de vista um instante sequer. Vira quando eles se afastaram
em direção à praça e ficara a observá-los à distância. Enquanto só
conversavam, não se aproximou. Mas assim que Fausto tomou-lhe a
mãozinha delicada e levou-a aos lábios, Rodolfo não pôde mais se
conter e chamou Marta para, juntos, procurarem o irmão e Júlia.
— Ah! Então foi aí que vocês se meteram! — exclamou Rodolfo,
tentando aparentar naturalidade.
— Júlia estava cansada e com calor — justificou-se Fausto. — Por
isso viemos nos sentar aqui.
— Vocês encontraram mesmo uma boa sombrinha — concordou
Marta, sentando-se ao lado de Júlia. — Estou com sede.
— Por que você e Rodolfo não vão nos buscar uns refrescos? —
sugeriu Júlia.
— Com todo prazer — retrucou Fausto, que se levantou e saiu
em companhia do irmão.

Vendo-se sozinhas, Júlia participou a Marta a conversa que tivera
com Fausto. Ela encarou-a pensativa, até que respondeu:
— A idéia me parece boa. Será que seu Ezequiel concordará?
— Tenho certeza que sim. Amanhã mesmo falarei com ele e com
dona Rebeca.

Os rapazes voltaram com os refrescos e depois foram almoçar. Já
passava do meio-dia, e eles estavam com fome. Animados,
seguiram para a pequena taverna da vila que, naquele dia, estava
cheia. A quermesse da igreja costumava ser bem movimentada e
atraía gente de toda a região, inclusive das vilas vizinhas. Júlia e
Marta riam gostosamente, enquanto Fausto, embevecido com sua
amada, sequer notava o olhar de rancor que Rodolfo, a todo
instante, lançava para ele.

CAPÍTULO 13

Túlio ouviu batida na porta do quarto e disse sem maior interesse:

— Entre. Não está trancada.

A porta se abriu e Camila entrou. Aproximou-se da cama, onde ele
estava deitado com ar abatido, acariciou seus cabelos e perguntou:

— Meu filho, sente-se bem?
— Sim, mamãe. Por que pergunta?
— Não sei. Você anda estranho. Até sua avó já reparou.
— Vovó?
— Sim. Ela veio me perguntar se eu sabia de alguma coisa.
— Sobre o quê?
— Sobre você.
— Mas não há nada...
— Será que não? Você tem andado bastante estranho. Quase
não sai, não conversa com ninguém. Alguma coisa está
acontecendo, sei que está. Meu coração de mãe não se
engana.
— Não está acontecendo nada, mamãe.

Camila, vendo que ele não estava disposto a dividir com ela seus
problemas, mudou o tom de voz e disse, tentando imprimir-lhe
cumplicidade:

— Ouça, meu filho, seja o que for que tenha acontecido, pode
me contar. Sou sua mãe.

Túlio, pouco à vontade diante daquela insistência, levantou-se
apressado e, bufando, revidou:

— Já disse que não há nada. Por que não me deixa em paz?
— Mas o que é isso, meu filho? Isso é jeito de falar com sua
mãe?
— Desculpe. Não quis ser desrespeitoso. Mas é que sua
desconfiança não tem fundamento.
— Que desconfiança?
— Não sei. Diga-me a senhora. De que desconfia? Eu não fiz
nada, não sei de nada.
— Meu filho, acalme-se. Não sei do que está falando. Não estou
desconfiada de nada nem o acuso de coisa alguma. Não creio
que você saiba ou tenha feito nada. Estou apenas preocupada,
é só.

Túlio acalmou-se. Ela não sabia de nada mesmo, e não havia nada
que o ligasse ao desaparecimento de Etelvina. Aliás, desde o dia em
que ela desaparecera ninguém nunca mais tocara em seu nome. Era
apenas uma escrava e seu sumiço não era motivo de alarde para
ninguém. Em tom mais conciliador, argumentou:
— Ouça mamãe, agradeço a preocupação, mas não está
acontecendo nada comigo. Sinto-me apenas cansado.
— Cansado de quê?
— Não sei. Desta vida. Tudo aqui é muito calmo, muito
monótono. Não há nada para fazer.
— Por que não vai se distrair na vila?
— Ora, o que pode haver de interessante por lá? É apenas um
vilarejo, rodeado de fazendas e de florestas. Não há teatros,
salões, tavernas. Nada de interessante.

Camila suspirou e acrescentou:

— Se é assim que pensa, por que continua aqui?
— Quer que eu vá embora?
— Eu não disse isso. Você é meu filho, e sua companhia me é
motivo de imenso prazer. No entanto, não gosto de vê-lo
assim, triste. Você é jovem, tem a vida toda pela frente. Não
deve perder seu tempo trancado dentro de casa.
— Tem razão, mamãe. Creio mesmo que já é hora de partir.
— Você é quem sabe. Gostaria que ficasse comigo, e sua avó
também sentirá muito sua falta. Ela se afeiçoou demais a
você.
Contudo, prefiro vê-lo longe a ter que presenciar essa sua tristeza.
Pense bem. Não se apresse. Seja o que for que resolva, estarei do
seu lado.

Ela se aproximou dele, ergueu-se na ponta dos pés e beijou-o de
leve na testa, virando-se para sair, e Túlio disse emocionado:

— Obrigado, mamãe.
Camila sorriu para ele, abriu a porta e saiu. Túlio deitou-se
pensativo. Talvez a mãe tivesse razão, e o melhor mesmo fosse
afastar-se dali. Apesar de saber que Etelvina era apenas uma
escrava, e que a avó jamais o castigaria por haver-se envolvido em
sua morte, o fato era que ele ficara profundamente impressionado
com a atitude do tio. Servir-se da negra era uma coisa. Matá-la era
outra totalmente diferente. Túlio não pensava como Rodolfo, que os
escravos eram pouco mais do que animais. Sabia que eram
pessoas, fora criado acreditando nisso. No entanto, o desejo nele
falava mais alto, e não podia recusar as facilidades que as escravas
lhe ofereciam. Túlio se utilizava delas não porque pensasse que
eram seres inferiores, mas porque sabia que sua condição de
homem branco o colocava em posição de superioridade, e ele
aprendeu que podia se valer desse artifício para obrigá-las a se
renderem aos seus caprichos.

Quando Raimunda morrera, ele lamentara, mas não se sentira
culpado. Fora uma fatalidade, e ele não desejara nem tomara parte
em sua morte. Mas com Etelvina fora diferente. Ele a violentara, o
que até então não era motivo de preocupação para ele, e o tio a
matara num acesso de loucura. Embora ele nada dissesse, estava
claro que Rodolfo sentira prazer em matar, e isso o estarrecia.
Desde aquele dia, Túlio, efetivamente, afastara-se de todos,
permanecendo quieto e acabrunhado, com medo de Rodolfo. O tio
parecia desequilibrado, e ele passou a ver em Rodolfo certa dose de
maldade, que o fazia estremecer a cada vez que olhava para ele.

De repente, a porta se abriu e Rodolfo entrou, fechando-a
cuidadosamente atrás de si. Túlio, embora assustado, permaneceu
impassível, olhando-o com frieza.

— Aconteceu alguma coisa?

Rodolfo devolveu-lhe o olhar, e era como se lhe lançasse chispas
ameaçadoras, revidando:

— Não sei. Você é quem vai me dizer.

Embora assustado, Túlio sustentou o olhar do tio, tentando ocultar o
medo que lhe ia à alma. Ele sabia que se deixasse transparecer o
medo, Rodolfo o dominaria, e ele, apesar de tudo, não estava
disposto a se deixar intimidar. Precisava manter-se calmo e
confiante, mostrando ao outro que não o temia. Por dentro,
contudo, Túlio tremia. O tio, de uma hora para outra, tornara-se
para ele uma grande ameaça.

— Dizer o quê?
— Se aconteceu alguma coisa.
— Não sei do que está falando.
— Sabe, sim. Estou falando do que fizemos.
— Eu não fiz nada.
— Estou certo, eu fiz. Mas você também participou.
— Ouça tio Rodolfo, se veio aqui me alertar, está perdendo seu
tempo. Não falei nada a ninguém e nem pretendo falar.
— Sei que não.
— Então, por que veio? Deixe-me em paz.
— Calma rapaz. Qual foi o bicho que o mordeu? Túlio virou-se
para a janela e prosseguiu:
— Então? O que quer?
— Vi Camila saindo de seu quarto ainda agorinha mesmo.
— E daí?
— Quero saber o que ela queria.
— Nada de mais. Por quê? Ela é minha mãe, pode vir à hora que
quiser.
— Sabe Túlio, não estou entendendo essa sua reação. Você está
agindo na defensiva, mas eu, em momento algum, o ataquei.
Por que tem medo de mim?
— Não tenho medo de você.
— Não? Então por que me trata desse jeito?
— Você é um assassino.
— E você, o que é?
— Nunca matei ninguém.
— Pensa que sua atitude foi melhor do que a minha? Como pensa
que Etelvina se sentiu quando você a possuiu? E Trajano? Por
acaso foi correto com ele?
— Isso não vem ao caso. Pelo menos não sujei minhas mãos
com o sangue de ninguém.
— Você se julga melhor do que eu, não é mesmo? Pois fique
sabendo que não é.
— Por favor, tio Rodolfo, não quero mais falar sobre isso. Já disse
que não vou contar nada. Vovó nunca ficará sabendo.
— Não me interessa o que você vai falar. E depois, minha mãe
jamais tomaria qualquer atitude contra mim ou contra nós.
— Então, por que a preocupação?
— Já disse. Não quero provocar os negros.
— Pois então, esqueça.
— Só vou lhe avisar uma coisa...
— Vai me ameaçar?
— É claro que não. Vou apenas pedir-lhe. Cuidado com sua mãe.
Camila é amiga dos negros, e se você der com a língua nos
dentes, ela bem pode me prejudicar.
— Escute tio Rodolfo, por mais que você tema a reação dos
escravos, não entendo por que tanta preocupação. Afinal, eles
estão presos e desarmados. O que poderiam fazer contra
você?

Rodolfo abaixou os olhos por uns instantes e, quando tornou a
levantá-los, havia fogo em seu olhar. Era um misto de medo e de
ódio, e ele retrucou:

— Os negros são traiçoeiros e imprevisíveis. Ninguém sabe do
que são capazes.

Depois disso, rodou nos calcanhares e saiu. Túlio, intuitivamente,
desconfiava do que ele tinha medo. Embora ninguém percebesse,
ele achava que o tio estava interessado em Júlia, e se ela soubesse
o que ele fizera, jamais tornaria a falar com ele. E Rodolfo, ao que
parecia, estava disposto a enganar a todos, fingindo-se passar por
um homem bom e generoso, só para cair nas boas graças de sua
tia. Pensando nisso, Túlio sentiu um aperto no coração. Será que
não devia alertá-la? Gostava muito de Júlia. Foram criados juntos,
quase como irmãos, e ele não queria vê-la presa na teia urdida pelo
tio. Mas o medo de Rodolfo falou mais alto, e Túlio estava disposto a
fingir que nada percebera, só para que Rodolfo não o desafiasse.
Júlia que o perdoasse. Gostava muito dela, mas não estava disposto
a perder o pescoço só para salvá-la.

— Tonha! — era a voz de Palmira, que a chamava com
impaciência.
— Onde está, negra estúpida?
Tonha chegou apressada lá de dentro, segurando na mão uma
colher de pau.

— Sim, sinhá. Deseja alguma coisa?

Palmira olhou-a com desdém e tornou com rispidez:

— Onde está Túlio?
— Não sei sinhá, não vi.
— Mas onde se meteu esse menino?
— Será que sinhá Camila ou sinhá Júlia não sabem?
— Não. Ninguém o viu. Por isso estou perguntando a você. Quem
sabe ele não passou pela cozinha?
— Não, sinhá. Pela cozinha ele não passou, não.
— Mande alguém agora mesmo chamar Terêncio.
— Sim, sinhá.

Tonha voltou para a cozinha e Palmira ficou intrigada. Onde andaria
aquele menino? Ninguém o havia visto sair. Minutos depois, Tonha
voltou com a notícia de que Terêncio também não se encontrava, e
Palmira suspirou. Talvez ele tivesse saído atrás do neto.

Em seu quarto, Camila também estava preocupada. Quando a mãe
apareceu, procurando pelo filho, ela se sobressaltou. Em breve seria
noite, e ele não devia andar sozinho pelo escuro. Camila chamou
Júlia e contou-lhe de sua preocupação:

— Será que aconteceu alguma coisa?
— Não sei Camila. Vamos esperar.
— Ele anda tão estranho...
— Não devemos nos alarmar. Na certa, saiu para dar uma volta
e logo, logo, aparecerá. Você vai ver.
— Não sei. Mamãe falou com tanta preocupação...
— Sua mãe está velha, e qualquer coisinha para ela adquire
proporções imensas. Tenho certeza de que Túlio está bem.
— E Fausto? Não está?
— Não. Saiu com Rodolfo para tratar de negócios.
— Oh! Meu Deus cuide para que meu filho esteja bem.

Escutaram o ruído de uma porta batendo, e Camila correu para a
porta, escancarando-a. Atravessando o corredor, foi ter no quarto
de Túlio e bateu, chamando:

— Túlio? Túlio, meu filho, você está aí?

Logo em seguida, a porta se abriu e Túlio apareceu. Parecia calmo
e, vendo o nervosismo da mãe, indagou preocupado:

— Aconteceu alguma coisa?
— Onde esteve, meu filho? Sua avó e eu ficamos preocupadas.
— Por quê? Fui apenas dar uma volta.
— Sozinho?
— Algum problema?
— Não, nenhum...

Túlio desvencilhou-se dela e voltou para o quarto, com a desculpa
de que estava cansado e queria repousar até a hora do jantar.
Camila, mais sossegada, virou-se para Júlia, que considerou:

— Viu só? Preocupou-se à toa.
— Tem razão.

Na biblioteca, trancada com Terêncio, Palmira escutava o que ele
tinha a dizer. Terêncio, desde a ordem de Palmira, passara a vigiar
a casa e vira quando Túlio saíra sozinho, embrenhando-se no meio
do mato. Mais que depressa, pusera-se em seu encalço, sem que
ele percebesse, e vira aonde tinha ido.

— E então? — perguntou Palmira, aflita. — Aonde foi?
— A lugar algum — respondeu Terêncio, confuso.
— Como assim, lugar algum?
— Pois é dona Palmira. Quando saí atrás dele, até pensei que
fosse se encontrar com alguém. Esperava surpreendê-lo nos
braços de alguma negra. Contudo, qual não foi o meu espanto
quando ele, simplesmente, entrou pelo meio do mato e foi
caminhando, até chegar ao fim da fazenda. Aí parou,
ajoelhou-se, pegou um punhado de terra e começou a chorar.
— Mas o que significa isso?
— Não sei dona Palmira. Nem eu entendi. Confesso até que fiquei
espantado. Ele andou durante muito tempo, só para apanhar
um monte de terra. Por quê?
— É o que gostaria de saber.
— Será que queria ficar sozinho?
— Mesmo assim. Sair andando por aí, feito um doidivanas,
embrenhando-se no mato para ficar chorando? Isso não está
me cheirando nada bem.
— O que pretende fazer?
— Não sei. Mas não faça nada e não diga nada a ninguém.

Vou apurar essa história direitinho.

— Pode deixar dona Palmira, que não direi nada a ninguém.

No dia seguinte, bem cedo, Terêncio apanhou uma pá, montou em
seu cavalo, certificando-se de que ninguém o estava vendo, e partiu
rumo ao local onde vira Túlio agachado, chorando sobre um monte
de terra. Aquilo era muito estranho, mas também muito revelador.
Pelo tamanho e pelo formato, aquele monte de terra mais parecia
uma cova. Apesar da ordem de Palmira, ele estava disposto a
descobrir quem estava enterrado ali, se é que havia mesmo alguém
enterrado.

Chegando ao local, desmontou e, segurando firmemente a pá,
começou a cavar, parando de vez em quando para descansar.
Terêncio já não era mais nenhum rapazinho e logo se cansava. Mas
estava disposto a desvendar aquele mistério e não perderia essa
oportunidade. Aos poucos, a terra foi sendo retirada, e logo
apareceu uma coisa que parecia ser uma mão negra. Ele sorriu
satisfeito e continuou a cavar, já sentindo o cheiro da podridão que
exalava daquela sepultura improvisada. Em breve, o corpo de
Etelvina surgiu nu e coberto de terra. Apesar de o processo de
decomposição já se haver iniciado, ainda estava reconhecível.
Terêncio apertou o nariz, tentando não sentir aquele odor pútrido, e
observou-a melhor. Entre suas pernas havia uma crosta escura,
parecida com sangue, o que indicava que ela havia sido
desvirginada antes de morrer. Os olhos esbugalhados e a língua de
fora, somados à rouxidão ao redor do pescoço, não deixavam
dúvidas de que Etelvina havia sido estrangulada.

Terêncio afastou o rosto em busca de ar fresco e inspirou.
Descobrira o porquê do comportamento estranho de Túlio e
desvendara o mistério acerca do desaparecimento de Etelvina. No
entanto, tinha dúvidas de se aquela descoberta era importante.
Por que Túlio ocultara o corpo? Por que simplesmente não
contara à avó o ocorrido? Dona Palmira, na certa, passar-lhe-ia um
sabão, mas nada faria contra ele. Aquilo era estranho. Na certa,
havia mais por detrás daquela morte. Túlio estava escondendo algo.

Cuidadosamente, recolocou o corpo de Etelvina na sepultura e
cobriu-o de terra. O melhor a fazer seria esperar o desenrolar dos
acontecimentos. Já sabia o que acontecera, só precisava descobrir o
motivo. Terêncio nem imaginava que o motivo era Rodolfo e sua
obsessão pelo irmão. De toda sorte, achou que o mais oportuno
seria não revelar nada, principalmente a Palmira. No momento
próprio, contaria tudo a Rodolfo. Ele saberia o que fazer.

Sem saber que o corpo de Etelvina havia sido descoberto, Rodolfo
não se preocupava com nada. Só pensava em Fausto e Júlia e, em
silêncio, via-os pela janela de seu quarto, passeando de mãos dadas
pelo jardim. Iam felizes e despreocupados, a atenção de um presa
nos gestos do outro, sorrindo e se abraçando inocentemente. Em
seu enlevo, não perceberam que alguém os espiava e, julgando-se
sozinhos, pararam perto das roseiras e se olharam. De onde estava
Rodolfo não podia divisar-lhes os rostos, mas sabia que
expressavam felicidade. De repente, Fausto colocou a mão na
cintura de Júlia e empurrou-a para dentro do caramanchão, para
onde convergiam todas as alamedas do jardim. Rodolfo, apesar de
perdê-los de vista, sabia o que eles estavam fazendo. Com certeza,
beijavam-se apaixonadamente, e ficou a imaginar as mãos de
Fausto sobre o corpo da moça, acariciando-o, sentindo-lhe o frescor
e a maciez. Sentiu imenso ódio. Aquilo não era justo. Por que só o
irmão podia tê-la?

Rodolfo mordeu os lábios com raiva e afastou-se da janela. Ficou a
imaginar o que fazer para impedir que Júlia e Fausto concretizassem
seu amor. Ela era uma moça meio livre, criada sem pai nem mãe; o
irmão, ausente, e a cunhada parecia não se importar. Não havia
ninguém que tomasse conta dela, que lhe direcionasse os passos,
que lhe dissesse o que devia e o que não devia fazer. Júlia era
voluntariosa e estava acostumada a fazer o que bem entendia. Sua
única esperança era Fausto. Ele conhecia o irmão e seus pudores.
Mas não podia facilitar. O amor e o desejo, numa hora dessas,
podiam falar mais alto, e ele veria ruírem para sempre seus sonhos
de, um dia, tomar Júlia do irmão, fazendo-o sofrer.

Júlia e Fausto estavam longe de se amar antes do casamento. Ela
era muito romântica e casta, e Fausto era por demais digno e
correto para desonrá-la. Queria-a virgem para a noite de núpcias.
Ele a amava de verdade. Podia esperar. Quanto a Júlia, ansiava por
entregar-se a ele, mas não queria fazer nada que pudesse macular
sua pureza. Também o amava e também podia esperar. Sua
intimidade não ia além de beijos e de abraços apertados, e os dois
se sentiam felizes e satisfeitos por poderem compartilhar daquelas
carícias sem o peso da culpa ou do medo.

Completamente desnorteado, Rodolfo saiu para o jardim. Queria
flagrá-los em alguma atitude menos digna e saiu desabalado em
direção ao caramanchão. Caminhando por outra alameda, divisou o
vulto de uma mulher, sentada em um banco, distraída com a leitura
de um romance. Rodolfo logo reconheceu Marta e mudou de idéia.
Ela estava sozinha, entretida com a leitura, e nem percebeu que ele
se aproximava. Chegando por detrás dela, colocou as mãos sobre
seus olhos, e ela teve um sobressalto:

— Adivinhe quem é — disse ele, disfarçando a voz. Ela apalpou-
lhe as mãos e respondeu eufórica:
— Rodolfo!

Afastando-lhe as mãos dos olhos, virou-se para ele, meio em
dúvida, e sorriu. Rodolfo sentou-se ao lado dela e disse com voz
melíflua:

— Como adivinhou que era eu?
— Ora, foi muito fácil. Primeiro, reconheci sua voz. Segundo,
suas mãos são inconfundíveis... Se tivesse visto seu rosto,
podia até ter me enganado, confundindo-o com Fausto. Mas só
você tem as mãos úmidas e quentes, vibrantes de paixão.
Rodolfo olhou-a com interesse. Estava claro que ela gostava dele,
ele já percebera isso. Mas até que ponto iria aquele amor? Ele, por
sua vez, achava-a bastante atraente e amava-a sem perceber. Sua
obsessão pelo irmão toldava-lhe a espontaneidade do coração, e
Rodolfo, em sua cegueira, não podia perceber que seu interesse por
Marta ia além de uma simples atração.

Pensando na cena que há pouco presenciara entre Júlia e o irmão,
seu corpo encheu-se de desejo, e ele aproximou-se mais dela,
segurando-lhe a mãozinha e beijando-a com ardor. Marta assustou-
se e quis tirar a mão, mas ele não permitiu. Em vez disso, levou-a
ao peito e sussurrou:

— Sente como meu coração bate forte? — Ela assentiu. — E por
sua causa que ele bate assim. Eu a amo.

Rodolfo puxou-a para si e a beijou, e ela correspondeu. Estava
extasiada, embevecida, enleada. Rodolfo era tudo com que sempre
sonhara, e aquela declaração enchia-a de amor e desejo. Tomada
pela paixão, ela gemia e sussurrava:

— Oh! Rodolfo, eu também o amo. Amo-o desde o primeiro
instante em que o vi.
— Quer ser minha? — continuou ele em tom açucarado.
— Para sempre — respondeu ela, a voz trêmula de emoção.
— Então venha.

Ele se levantou e puxou-a pela mão, abraçando-a em seguida. Ele
mal podia se conter, o corpo ardendo de desejo, e beijou-a
novamente, com tanta sofreguidão, que ela quase sufocou. Em dado
momento, ela tentou se esquivar, mas Rodolfo, completamente
inebriado por aquele corpo jovem de mulher, buscou sua boca com
furor e recomeçou a beijá-la, acariciando-a de forma ousada. Em
seguida, deitou-a sobre o banco e deitou-se sobre ela, tentando
levantar-lhe a saia, enquanto alisava seu corpo todo com a outra
mão. Marta, apavorada, empurrou-o com força, levantou-se
assustada, tentando recompor-se, e balbuciou:

— Rodolfo... O que... O que houve com você?

Ele, vendo que estava prestes a perder sua presa, partiu para cima
dela e, enlaçando-a pela cintura, suplicou:

— Nada, minha querida. Eu a amo. Deixe-me fazê-la mulher.

Marta tentava, a todo custo, soltar-se das garras de Rodolfo, — mas
ele era mais forte e não a largava.

— Não, não — implorava. — Não quero. Solte-me, por favor.
Deixe-me ir, não posso...
— Não, meu amor. Vou fazê-la feliz, você vai gostar. Venha
comigo.
— Não, por favor...

No auge do desespero, Marta conseguiu desvencilhar-se dele e, sem
pensar, estalou-lhe uma bofetada no rosto, e ele imediatamente a
soltou. A face começou a avermelhar-se, tanto pela ardência do
tapa quanto pela vergonha de que era acometido. Rodolfo,
transtornado, segurou-a pelos punhos e, sacudindo-a, começou a
gritar:

— O que deu em você? Ficou louca? Como se atreve a bater-
me?

Marta, completamente amedrontada, choramingava:

— Perdoe-me, Rodolfo, não foi por querer. Tive medo... Pensei
que fosse me fazer mal...

Rodolfo, percebendo o que quase fizera, retrocedeu. Ele não podia
perder a confiança de Marta. Temia que ela contasse a alguém,
principalmente a Júlia. Soltando-lhe os pulsos, sentou-se no banco,
afundou a cabeça entre as mãos e fingiu chorar:

— Oh! Marta, quem tem de lhe pedir perdão sou eu. Quase a
machuquei. Não tinha o direito. Mas é que o amor... Eu a
amo, Marta, e não pude me conter. Por favor, perdoe-me,
perdoe-me! Sou um cafajeste, não mereço você!

Marta, penalizada e acreditando na veracidade de suas palavras,
ajoelhou-se a seu lado, segurou-lhe as mãos entre as suas e
objetou:

— Não fale assim, Rodolfo. Eu compreendo. Você é um rapaz
maravilhoso, e eu o amo.
— Você me ama? — tornou ele com olhos úmidos.
— É claro que sim.
— Pode perdoar-me por minha atitude indigna?
— Você foi movido pela emoção. Acontece.
— Mas eu quase... quase...
— Nada aconteceu. Eu estou bem.
— Felizmente. Se algo tivesse acontecido, eu jamais me
perdoaria.
— Se algo tivesse acontecido, seria porque eu também o amo.
— Mas não. Você é uma moça pura, e eu não poderia abusar de
sua inocência. Mas é que o amor... Amo-a tanto, Marta, que
quase não me contive. Por favor, diga que me perdoa.
— Está bem. Se for tão importante para você, eu o perdôo.
Agora não pense mais nisso. Já passou.
Rodolfo abraçou-a com mansidão, e ela deixou-se abraçar. Já não
havia mais o ardor de antes, e ela se acalmou. Sentira muito medo
dele, mas amava-o tanto que seus olhos não conseguiram enxergar
a realidade por detrás daquelas palavras. Em silêncio, ela ergueu
seu queixo e enxugou seus olhos, e ele, sem nem perceber, sentiu
imenso prazer naquele gesto tão simples. Instintivamente, segurou-
lhe a mão e beijou-a delicadamente, acrescentando com voz
melosa:

— Obrigado.

Marta sorriu de volta e apertou a mão de Rodolfo, levando-a as
faces. Estava, ela também, agradecida. Acreditava que ele a amava
e sentia-se feliz com seu amor. Em sua ingenuidade, prosseguiu:

— Se me ama de verdade, por que não fala com meu pai? Tenho
certeza de que ele ficaria muito feliz. Minha mãe não fala em
outra coisa. Admira-o demais.
— Vamos ver — concluiu ele.

Rodolfo não tinha a menor intenção de fazer a corte a Marta. Ao
menos enquanto não destruísse a felicidade do irmão. Depois que
afastasse Júlia dele, vendo Fausto vencido e humilhado, pensaria no
que fazer com Marta. Ele gostava muito da moça, e não seria
nenhum sacrifício, mais tarde, tê-la em seus braços também.

CAPÍTULO 14

Uma semana depois, Rodolfo, Fausto, Marta e Júlia partiam em
viagem para o Rio de Janeiro. Estavam entediados com a rotina da
fazenda e, como Fausto tinha negócios a resolver, aproveitaram
para se distrair um pouco na corte. Camila achou a idéia ótima e até
os teria acompanhado, não fosse por Dário que, por causa de Sara,
recusara-se a ir. Aldo, embora a contragosto, não teve como
recusar. Estimulado pela mulher, acabou por consentir que Marta os
acompanhasse. Afinal, ia com os patrões e com dona Júlia. Que mal
poderia haver?

Ao chegarem à corte, foram para um hotel de luxo e hospedaram-
se. Marta ficou com Júlia, enquanto Fausto dividia o mesmo quarto
com Rodolfo. A cidade fervilhava. Era o centro cultural do país, e
havia muitas coisas para ver. Visitaram ruas e palácios, tavernas e
confeitarias, museus e teatros. Júlia, encantada com o brilho e a
moda da corte, comprou vestidos, sapatos e jóias, não se
esquecendo de presentear Marta com diversos artigos finos e de
bom gosto.

Certa manhã, em que Rodolfo acompanhava as moças nas compras,
devido a compromissos de negócio ao qual Fausto não podia faltar,
Júlia, estranhando o calor, sentiu-se mal e pensou que ia desmaiar.
Estavam em uma casa comercial muito requintada, escolhendo
perfumes vindos diretamente de França, e a atendente ofereceu-lhe
um divã para descansar. Marta largou os frascos de perfume e
aproximou-se dela. Vendo-lhe a palidez e o suor que lhe escorria da
testa, disse alarmada:

— Meu Deus, Júlia, o que foi que houve?
— Não sei. Sinto-me terrivelmente mal. A cabeça me dói, o
estômago parece revirado.
— Deve ser o calor... — arriscou a atendente.
— Com certeza — concluiu a gerente.
— Creio que seria melhor levá-la para o hotel — acrescentou
Marta.
— Oh! Não — protestou Júlia. — Logo agora que você está se
divertindo.

Nesse momento, Rodolfo passou pela porta. Havia se separado delas
apenas um instante, parando diante de uma loja de chapéus
masculinos. Depois de comprar o que queria, encaminhou-se para a
casa de perfumes, onde sabia que elas estavam. Vendo Júlia deitada
sobre o divã, branca feito cera, correu para ela, indagando
assustado:

— Júlia! O que aconteceu?
— Ah! Rodolfo, que bom que chegou — disse Marta, aliviada. —
Júlia sentiu-se mal e quase desmaiou. Acho que seria mais
prudente voltarmos para o hotel.
— Mas o que é isso? — objetou Júlia novamente. — Não
precisam se preocupar comigo. Posso muito bem chamar uma
carruagem e ir sozinha. Não quero estragar suas compras,
Marta.
— Nada disso. Você está doente. Não deve andar sozinha por aí,
pois nem conhece a cidade direito. Além disso, já terminei de
comprar o que tinha para comprar. Podemos ir.
— Mas você ainda ia visitar frei Ângelo.
— Frei Ângelo pode esperar.
— Mas ele a aguarda. Não é justo...
— O que não é justo é deixarmos você sair daqui sozinha,
passando mal.
— Se você quiser Júlia — interrompeu Rodolfo —, posso
acompanhá-la de volta ao hotel. Se Marta não se importar, é
claro.
— É lógico que não me importo. Ficaria até muito grata. Assim
poderia visitar frei Ângelo despreocupada.
— Não, Marta, você é que não deve sair sozinha.
— Bobagem, minha querida. Conheço a corte. Fui educada aqui,
lembra-se?
— Mesmo assim.
— Não discuta Júlia. Você e Rodolfo podem ir. Visitarei frei
Ângelo e, logo, logo, estarei de volta ao hotel.

Vendo que não adiantava discutir com Marta, Júlia não teve outro
remédio senão aceitar a companhia de Rodolfo. O moço ficou
extasiado. Teria algumas horas a sós com ela, e aquilo o encheu de
desejo. E se ele tentasse novamente? Não. Ainda não era a hora.
Para alcançar seu objetivo, era preciso torturar o irmão, minando-
lhe a confiança que tinha em Júlia. Aquela seria apenas uma
oportunidade para pôr em prática seu plano, e ele tinha que se
controlar, caso contrário, poria tudo a perder.

Rodolfo beijou Marta no rosto e, dando o braço a Júlia, saiu com ela
para a rua, tomando a carruagem que os levaria de volta ao hotel.
No caminho, iam conversando amenidades, e ele, a todo instante,
perguntava se se sentia melhor. Júlia ficou encantada com a
atenção do futuro cunhado. Ele estava mesmo mudado. Tratava-a
com respeito e distinção, não fazendo qualquer insinuação ou
comentário maldoso. Em vez disso, não se cansava de elogiar
Marta, referindo-se a ela como a moça que lhe conquistara o
coração.
De volta ao hotel, Rodolfo ajudou Júlia a se recolher ao quarto,
pediu a presença de um médico e prontificou-se a ajudar. Depois
que o facultativo saiu, sentou-se à cabeceira de sua cama e ficou
velando-lhe o sono, com a justificativa de que aguardava a volta de
Fausto. Quando este chegou, foi informado na portaria de que a
senhorita Júlia sentira-se mal, já tendo sido atendida pelo médico, e
que se encontrava descansando em seu quarto, em companhia do
senhor Rodolfo. Fausto dirigiu-se para lá apressado e entrou sem
nem bater na porta. A meia luz viu que Júlia dormia tranqüilamente,
tendo a seu lado Rodolfo, sentado numa poltrona, semi-adormecido.
Fausto não pôde deixar de sentir certo ciúme e, batendo no ombro
do irmão, despertou-o, chamando-o para a ante-sala.

— O que foi que houve? — indagou com certa exasperação na
voz.
— Nada de mais — respondeu Rodolfo, com afetada
preocupação. — Júlia sentiu-se mal na rua, devido ao calor, e
eu a trouxe de volta. Mas agora já está melhor, graças a
Deus.

Fausto encarou-o em dúvida e continuou:

— E Marta?
— Foi visitar um tal de frei Ângelo. Já ouviu falar?
— Já, sim. Foi seu amigo e confessor enquanto esteve no
convento.
— Foi o que imaginei.
— Foi sozinha?
— Sim. Por quê?
— Deixa sua namorada sair sozinha só para trazer a minha para
o hotel?
— Ouça Fausto, sei o que está pensando, mas não é nada disso.
Eu só quis ser gentil. Marta está bem e foi ela mesma quem
insistiu para que eu trouxesse Júlia.

Vendo que deixara transparecer o ciúme e a insegurança, Fausto,
não querendo parecer desconfiado, relaxou a voz e concordou:

— Tem razão, meu irmão, perdoe-me. É que fiquei preocupado.
— Esqueça. Bem, agora que você chegou, já posso voltar para o
quarto. Quero descansar um pouco — já ia saindo, quando se
voltou da porta e indagou: — E os negócios? Conseguiu
resolver tudo?
— Sim. Tive sorte e vendi quase toda a próxima safra.
— Excelente. Sabe Rodolfo, estive pensando...
— Em quê?
— Não é justo que você se ocupe sozinho dos negócios da
fazenda.
— Mas é você mesmo quem diz que não tem tino para negócios
e prefere cuidar da contabilidade.
— Eu sei. Mas se você quiser, posso tentar ajudá-lo. Não é justo
que você fique trabalhando enquanto eu me distraio com as
moças. Podemos dividir os encargos.

Fausto olhou-o emocionado, já sentindo remorso por havê-lo julgado
mal.

— Não é necessário, meu irmão. Gosto do que faço e sinto
imenso prazer em negociar.
— Está bem. Você é quem sabe. Mas, se desejar, não se acanhe.
Sabe que pode contar comigo.

Ele sentou-se ao lado de Júlia e passou a mão sobre sua testa,
sentindo-a fresca. Abaixou-se e beijou seus cabelos, sentindo-lhe o
perfume e a maciez. Amava Júlia mais do que tudo no mundo e
tinha certeza de que ela o amava também. Sabia que não precisava
sentir ciúmes, mas havia alguma coisa estranha no irmão que,
inconscientemente, o alertava. Sem saber identificar suas
desconfianças, Fausto sentia-se culpado e procurava não dar
ouvidos à voz interior que, a todo instante, tentava chamar sua
atenção para a realidade por detrás da solicitude de Rodolfo.
Já no final da tarde, Marta chegou e encontrou Júlia acordada,
tomando um caldo quente e saboroso, que Fausto, delicadamente,
entornava em sua boca.

— Júlia, minha querida — cumprimentou Marta, beijando-a na
face.
— Como se sente?
— Muito melhor, obrigada.
— O médico a examinou?
— Examinou, sim — adiantou-se Fausto. — Rodolfo me contou
que ele esteve aqui e disse que não é nada sério. Apenas uma
leve indisposição, causada pelo calor. Júlia não está
acostumada a clima tão quente.
— É verdade. Onde moro, o clima é bem mais ameno.
— Fico feliz em saber disso. Fiquei preocupada e quase não fui
visitar frei Ângelo.
— Por falar nisso, como foi seu encontro com ele?
— Melhor do que o esperado.
— Quer dizer então que ele aceitou?
— Sim. No princípio relutou, mas depois que lhe contei tudo o
que havia acontecido, acabou por concordar. Seguirá logo
após a nossa partida, que é o tempo de que necessita para
ajeitar tudo.
— Não vai contar a Rodolfo? — perguntou Júlia. — Afinal, vocês
estão namorando, e creio que deva confiar nele.
— Tem razão. Mas temo que ele não compreenda. O que acha
Fausto?
— Sinceramente, Marta, não sei. Rodolfo é um homem estranho.
Ao mesmo tempo em que é gentil, pode ser extremamente
passional.
— Será? Mas ele diz que me ama.
— De qualquer modo — cortou Júlia —, não é justo enganá-lo.
Depois que descobrir, vai se sentir traído.
— Por que não lhe conta apenas que Sara está doente e que frei
Ângelo tentará ajudá-la? Ele não precisa saber que ela é judia.
Aliás, com a presença de um frade, sequer irá desconfiar.
— Fausto tem razão. Quem irá imaginar que um frei estará
auxiliando uma família de judeus, e mais, hospedado em sua
própria casa?

Marta olhou para eles e disse convencida:
— Tem razão. Farei isso agora mesmo.

Rodolfo recebeu a notícia sem maior interesse. Para ele, tanto fazia
que a moça estivesse doente e que estivesse recebendo a ajuda de
um frade, ou seja, lá o que fosse. Desde que isso não atrapalhasse
seus planos, ele nada tinha a opor. Afinal, a fazenda estava
arrendada para aquela família, cujo nome nem conhecia, e eles
tinham o direito de convidar quem quisessem para visitá-los.

Fausto e Rodolfo, dada sua posição social, conheciam muitos nobres
e fidalgos na corte, e foram convidados para inúmeras festas e
concertos. Haviam ido a um baile, em comemoração às bodas de
prata de um barão, amigo de sua família, e Marta encantou-se com
o luxo e a pompa que imperavam nos salões. Estava feliz da vida,
dançando com Rodolfo, enquanto Júlia e Fausto rodopiavam,
aninhados nos braços um do outro. Rodolfo remoia cada vez mais a
inveja e o despeito, mas não deixava transparecer. No intervalo da
orquestra, as moças saíram para tomar ar puro, e Fausto viu-se
preso por um comendador, com quem mantinha importantes
negócios. Aproveitando-se da situação, Rodolfo saiu em busca de
Júlia, encontrando-a no jardim, em animada prosa com Marta.
— As moças querem beber alguma coisa? — indagou, logo que
se aproximou delas.
— Oh! Rodolfo, por favor — respondeu Marta. — Estamos
morrendo de sede.

Rodolfo saiu e voltou logo em seguida, trazendo nas mãos duas
taças de vinho, que imediatamente ofereceu a elas.

— Onde está Fausto? — quis saber Júlia.
— Conversando com um comendador, amigo da família. Ele
mantém importantes negócios conosco.
— Oh, mas que maçante! Tratar de negócios logo num dia de
festa.
— Não se importe Júlia. Tenho certeza de que ele conseguirá se
desembaraçar do comendador e em breve se juntará a nós. E
agora, se me der licença, gostaria de dançar com Marta
novamente.
— Rodolfo — objetou Marta —, não seja grosseiro. Não devemos
deixar Júlia sozinha.
— Não se importem comigo. Ficarei aqui, aguardando Fausto.
— Bem, se é assim...

Enquanto eles se afastavam, Júlia os ficou admirando. Formavam
um bonito par, e ela estava satisfeita por Rodolfo tê-la esquecido,
voltando suas atenções para outra moça. Marta amava-o com
sinceridade, e via-se o quanto estava feliz em seus braços.

Quando a valsa terminou, Rodolfo e Marta saíram à procura de
Fausto e Júlia, e foi encontrá-la sozinha, sentada numa poltrona,
admirando a beleza do baile. Fausto, lamentavelmente, não
conseguira ainda livrar-se do comendador e continuava preso a sua
conversa enfadonha. Reparando no ar de aborrecimento de Júlia,
privada da companhia do amado, Marta sugeriu a Rodolfo:

— Por que não tira Júlia para dançar? Ela já está ficando
aborrecida com a ausência de Fausto.
— Não será melhor esperá-lo?
— Ora, querido, o que é isso? Não é justo nos divertirmos
enquanto Júlia fica sentada. Vamos, convide-a para dançar.
— Tem certeza?
— É claro que tenho.
— Está bem. Se for o que quer...

Rodolfo inclinou-se para Júlia, convidando-a para a valsa, mas ela
recusou. Não queria interromper a diversão da amiga e gostaria de
estar ali para quando Fausto a procurasse.

— Não seja tola — recriminou Marta. — Fausto não vai se
importar se você dançar um pouco. E depois, eu estarei aqui e
falarei com ele.

Júlia fez um ar de dúvida, mas acabou aceitando. Adorava dançar e
já estava entediada de ficar ali sentada, sem ter o que fazer,
enquanto todos se divertiam. Levantou-se com graça, tomou o
braço de Rodolfo e partiu com ele para o salão. Dali a poucos
instantes, Fausto, finalmente livre da conversa do comendador, saiu
a sua procura, contrariado por havê-la deixado sozinha tanto tempo.
Não a encontrou, porém, mas avistou Marta, que ia caminhando em
sua direção.

— Você viu Júlia?
— Júlia está dançando com Rodolfo.

Ele levantou uma sobrancelha, em sinal de indignação, e partiu para
o salão. Havia muita gente ali, e ele pôs-se a procurá-la. Atrás dele,
Marta seguia-o sem nada entender. Logo a avistou. Enlaçada pela
cintura, Júlia deixava-se conduzir pelos braços de Rodolfo. De vez
em quando, ele sussurrava algo em seu ouvido, e ela sorria
graciosamente. Fausto sentiu o sangue ferver. Sem conseguir
explicar o motivo, a visão de sua amada, envolvida pelos braços de
seu irmão, encheu-o de ciúme e despeito. Já ia interromper a valsa
dos dois quando Rodolfo o viu. Na mesma hora, parou a dança,
cumprimentou o par e apontou para Fausto. Júlia sorriu e acenou
para ele, correndo ao seu encontro. Assim que o alcançou, foi logo
exclamando:
— Fausto! Até que enfim. Pensei que não o visse mais hoje.
— Pelo visto, está se divertindo — retrucou-o com certa ironia,
que ela não percebeu.
— Oh! Sim, graças a Rodolfo que, tão gentilmente, convidou-me
para dançar. E a nossa Marta também que, de bom grado, me
cedeu o par por alguns instantes.
— Bem, não foi nada — disse Rodolfo educadamente. — E agora,
se me permitem, gostaria de voltar aos braços de minha
amada.

Com um sorriso nos lábios, Rodolfo deu o braço a Marta e partiu
com ela para o meio do salão, enlaçando-a e rodopiando com ela.
Fausto, envergonhado, não sabia o que dizer. Estava claro que o
irmão apenas tentara ser gentil com Júlia, dançando com ela para
que não se sentisse só ou aborrecida. Não havia nenhum outro
interesse naquele gesto. Apenas a gentileza.

Quando voltaram para o hotel, já era tarde. Marta, desacostumada
àquelas festas, acabou por adormecer, e Fausto seguia silencioso,
pensando em seu ciúme, enquanto Júlia ia conversando
animadamente com Rodolfo. Falavam da música muito bem tocada,
da decoração magnífica do palacete do barão, dos trajes ricos e
elegantes... Tudo fora perfeito naquela noite. Até a inesperada
ausência de Fausto havia sido compensada pela gentileza de
Rodolfo. Fausto não dizia nada. Ele não queria admitir, mas o fato
era que estava morrendo de ciúmes. Embora Rodolfo fosse apenas
gentil e educado, não demonstrando nenhum interesse maior em
Júlia, Fausto sentia-se inseguro. Ele não sabia explicar, mas sentia
no irmão uma grande ameaça à sua felicidade.

No dia seguinte, pensaram em visitar um museu. Havia uma
exposição de pintores franceses na cidade, e Júlia estava louca para
ver. Já estavam na porta do hotel, aguardando a carruagem,
quando um pajem saiu correndo ao encontro deles, pedindo para
falar com Fausto.

— Senhor Fausto! Senhor Fausto! Fausto virou-se desgostoso e
retrucou:
— O que é rapaz?
— Mensagem urgente para o senhor.

O menino estendeu-lhe um bilhete, que ele abriu e leu
ansiosamente. À medida que lia, seu rosto ia se contraindo e,
quando terminou, fez uma careta de contrariedade e disse
desgostoso:

— Lamento, mas não poderei acompanhá-los.
— Por quê? — indagou Rodolfo, mal contendo a alegria.
— Lamentavelmente, tenho negócios urgentes a resolver.
— Mas que negócios são esses que não podem esperar? —
perguntou Júlia, decepcionada.
— Um de nossos clientes. Parece que quer desistir da compra.
— Por quê?
— Não sei. Mas parece que encontrou melhor preço.
— Isso não pode esperar? — insistiu Júlia.
— Infelizmente não, minha querida. Se perdermos esse negócio,
teremos um prejuízo imenso.
— Quer que eu vá em seu lugar? — ofereceu-se Rodolfo.
— Não, claro que não. Você não está acostumado a esse tipo de
negócio. Deixe comigo. Assim que resolver tudo, partirei ao
seu encontro.

A carruagem chegou e os três se foram, enquanto Fausto pedia um
outro carro para ele, espumando de raiva. Mas o que é que estava
acontecendo? Parecia que de repente todos conspiravam contra ele,
roubando-lhe a companhia de Júlia. Enfim, o que fazer? Perder o
negócio era impossível. Era de clientes como aquele que dependia
todo o seu sucesso. Vendo que não tinha remédio, Fausto tomou
outra carruagem e partiu ao encontro do comprador insatisfeito.

Enquanto isso, Júlia, Rodolfo e Marta chegavam ao museu. A
exposição era lindíssima, e eles se encantaram. Levaram a manhã
inteira apreciando os quadros, as obras de arte, até que a hora do
almoço chegou. Os três voltaram para o hotel, pediram a refeição e
comeram, sem que Fausto desse sinal de vida. Terminado o almoço,
Marta e Júlia pediram licença para se retirar. Estavam exaustas e
queriam descansar até o anoitecer. Haviam combinado tomar chá
em casa de uns conhecidos de Marta e queriam estar bem
dispostas. Rodolfo, porém, tentando uma cartada para estar perto
de Júlia, arriscou:

— Que pena. Queria tanto comprar um presente para mamãe!
— Oh! Meu querido — disse Marta. — Estou realmente cansada.
Se não, até que o acompanharia.
— Eu sei. Não quero insistir. Podem deixar que irei só.

Júlia, porém, não se esquecendo das inúmeras gentilezas que ele,
até então, lhe dispensara, quis retribuir e chamou-o de volta:

— Espere. Irei com você. Não estou assim tão cansada.
— Você?
— Se Marta não se importar...
— É claro que não me importo. Isto é, se você não estiver
mesmo cansada.
— Pois não estou. E adoraria ajudá-lo a comprar um presente
para dona Palmira. Mas não vamos demorar, não é?
— É claro que não.
Saíram de braços dados. Caminharam pelas ruas agitadas, parando
em frente às vitrines, sem saber pelo que se decidir.

Até que, finalmente, Júlia escolheu em um lindo broche em forma
de passarinho, todo de esmeraldas, e Rodolfo comprou sem hesitar.
Levaram a tarde inteira naquilo e quando voltaram, já era quase
hora do chá. Logo que entraram no saguão do hotel, avistaram
Fausto, que estava sentado, esperando por eles. Havia chegado
pouco depois que eles saíram e fora informado por Marta que
haviam ido às compras e que não se demorariam. Ao vê-los entrar
de braços dados, Fausto não se conteve e explodiu:

— Mas onde é que vocês estiveram? E fazendo o quê? Por acaso
pensam que sou algum idiota, é?

Rodolfo olhou-o, fingindo-se magoado.

— Fomos apenas comprar um presente para mamãe — e exibiu-
lhe o pequeno embrulho, contendo o broche de esmeraldas.
— Júlia, gentilmente, ajudou-me a escolher. Veja, coloquei seu
nome no cartão.

Fausto olhou envergonhado. Deixara-se dominar pelo ciúme
novamente e quase cometera uma injustiça. O irmão e Júlia eram
apenas amigos, seriam cunhados. Era natural que se entendessem
bem. E depois, havia Marta. Ela não se importava porque sabia que
não havia nada entre eles. Mal conseguindo conter a vergonha, ele
rodou nos calcanhares e tomou a direção da rua. Precisava sair
pensar, refletir. Estava ficando louco, e Júlia não merecia. Rodolfo
também não merecia. Ele era seu irmão, errara uma vez,
confessara-lhe o erro e pedira-lhe perdão. Não havia motivo para
desconfiar dele. Não que ele soubesse.
Envergonhado com sua desconfiança, e mais, com sua reação
impensada, Fausto só voltou ao hotel tarde da noite. Quando entrou
em seu quarto, além de Rodolfo, Júlia e Marta também se
encontravam presentes. Estavam todos preocupados com seu
desaparecimento, e ninguém conseguira dormir. Já passava da
meia-noite quando ele abriu a porta, e Júlia, ao vê-lo, correu para
ele, atirando-se em seus braços.

— Oh! Fausto, meu amor! — exclamou ela, ao mesmo tempo em
que começou a chorar. — Por que fez isso conosco? Quase
nos mata de susto e preocupação.

Fausto não conseguia encará-la. Nem a ela, nem a Marta, muito
menos a Rodolfo. Tentando dissimular a vergonha, disse
simplesmente:

— Perdão.
— Mas querido, não há o que perdoar.
— Isso mesmo, meu irmão — concordou Rodolfo. — O assunto já
está esquecido. Você ficou com ciúmes, foi só. Mas não
precisava ter fugido daquele jeito.

Ele encarou o irmão com olhar de agradecimento. No fundo, ainda
sentia ciúmes, mas não queria demonstrar. Não queria nem ao
menos sentir. Ele tornou a abraçar Júlia e sussurrou em seu ouvido,
de modo que só ela pudesse escutar:

— Eu a amo.

Ela o estreitou forte e respondeu:

— Eu sei querido. Também o amo muito.
— Perdoe-me.

Júlia não respondeu com palavras, mas pousou-lhe um beijo suave
nos lábios, e havia tanto amor, tanta doçura naquele beijo, que
Rodolfo sentiu-se mal. Ele até que estava se saindo bem em sua
silenciosa tarefa de incutir no espírito do irmão o ciúme e a
desconfiança. Mas presenciar cenas de amor entre ele e Júlia era
demais. Marta, por sua vez, estava feliz por ver que tudo acabara
bem e abraçou Rodolfo, que por pouco não a repeliu. Ela,
intimamente, sentiu um quê de rejeição em seu corpo, pois todos os
seus músculos se contraíram ao toque de seus braços. Como,
porém, amava-o loucamente, não conseguiu detectar o porquê
daquela reação inesperada. Rodolfo, mal contendo a inveja e o
despeito, rosnou entre dentes:

— Acho que já é hora de as moças se recolherem. Afinal, não
fica bem permanecerem no quarto de dois rapazes solteiros
até altas horas da madrugada.

Fausto soltou Júlia a contragosto e acabou por concordar:

— Tem razão, Rodolfo. É uma pena ter de deixá-la, Júlia, mas é
para o bem de vocês.
— Não queremos que as moças fiquem faladas, não é mesmo,
Fausto?
— Não, claro que não.
— Então vamos.

Depois que elas se foram, Rodolfo voltou-se para Fausto e, mãos
pousadas em seus ombros, disse, cheio de emoção:

— Fausto, meu irmão. Peço que me perdoe se por acaso o
ofendi. Não tive a intenção.
— Rodolfo, não...
— Por favor, não me interrompa. Preciso me explicar.
— Mas você não tem nada que se explicar...
— Mesmo assim. Só saí com Júlia porque Marta estava cansada
para me acompanhar, e Júlia me ajudou a escolher um
presente para mamãe. Como é seu aniversário no mês que
vem, pensei que ela ficaria feliz com uma jóia comprada na
corte. Mas quero que saiba que Júlia, apesar de haver
balançado meu coração no passado, hoje nele ocupa o lugar
de irmã, pois que o de amada é agora de Marta.

Fausto olhou-o emocionado. Apesar de tudo, amava o irmão e não
podia esconder o arrependimento e a vergonha por havê-lo julgado
mal. Segurando-lhe a mão pousada sobre seu ombro, retrucou
agradecido:

— Sei disso, Rodolfo, e quero que você me perdoe. Fui um tolo
ciumento, mas prometo que isso nunca mais vai acontecer.

No dia seguinte, partiram de volta à fazenda. Ninguém mais tocou
no assunto da véspera, que pareceu haver ficado esquecido. Fausto
tentava não demonstrar o ciúme que lhe corroia a alma. Mesmo
após as escusas do irmão, mesmo depois de saber-se injusto e tolo,
não conseguia dominar seu ciúme. Não sabia como explicá-lo. Por
mais que quisesse, sentia como se o irmão representasse uma
ameaça a sua felicidade com Júlia. Não havia razão plausível para
aquilo, mas quem podia dominar os sentimentos? E mais, as
sensações?

De volta à fazenda, foram recebidos com festa. Palmira, sabendo de
seu retorno, mandara preparar lauto banquete. Não estava
acostumada a separar-se dos dois filhos ao mesmo tempo e sentira
muitas saudades. Sentados à mesa do almoço, Rodolfo e Fausto
participaram à mãe sua intenção de dar uma festa, em
comemoração a seu aniversário. As obras da capela também já
estavam bastante adiantadas e, se tudo corresse bem, poderiam
inaugurá-la no mesmo dia, e a festa começaria com a primeira
missa rezada na fazenda. Palmira encantou-se. Era tudo o que podia
desejar de filhos tão amorosos e dedicados.

Já no final da refeição, Fausto mandou que servissem champanhe e
pediu licença para falar. Certificando-se de que todas as atenções
estavam voltadas para ele, começou a dizer:

— Mamãe, Camila, talvez a hora não seja das mais próprias, mas
não posso mais esperar — a mãe e a irmã olharam-no
surpresas, e ele prosseguiu:
— Como já é do conhecimento de todos, Júlia e eu nos amamos
e, por isso, gostaria de pedir sua mão em casamento.

Um raio não teria atingido Rodolfo com maior intensidade. Ele se
levantou de chofre e acabou por derrubar a taça de champanhe
sobre a mesa. Vendo o líquido espalhar-se sobre a toalha branca,
emudeceu e tornou a sentar-se. Não havia o que dizer, e qualquer
reação contrária poderiam pôr todos os seus planos a perder.
Palmira olhou o filho e uma desconfiança começou a brotar em sua
mente. Será que Rodolfo também estava apaixonado por Júlia? Era
só o que faltava.

Quanto a Júlia, ergueu-se surpresa. Aquele pedido fora inesperado.
Fausto não lhe participara a intenção de pedir-lhe a mão naquele
dia, e isso a deixou embaraçada. No entanto, não podia esconder a
felicidade. Amava-o imensamente e o que mais queria era tornar-se
sua mulher. E depois, ele tinha razão. Já estavam enamorados há
algum tempo, e nenhum dos dois era mais criança. Não havia
motivo algum para que não concretizassem logo aquela união.

Dário sorriu para ela e estendeu-lhe a mão por cima da mesa.
Gostava muito da tia e de tio Fausto, e achava que haviam sido
feitos um para o outro. Ela segurou-lhe a mão, agradecida e, em
seguida, olhou para Túlio, que permanecia cabisbaixo, sem nada
dizer, bem como Constância, que comia a sobremesa sem prestar
nenhuma atenção ao que se passava.

— Meu filho — começou Palmira, dirigindo-se a Fausto —, não
acha que é ainda muito cedo?
— Não, mamãe, não acho. Como disse, Júlia e eu nos amamos, e
não sei por que esperar.
— Mas Fausto Júlia não tem pai e o irmão é que é responsável
por ela. Contudo, não se encontra aqui presente entre nós.
— Quanto a isso, mamãe — interrompeu Camila —, não precisa
se preocupar. Tenho certeza de que Leopoldo não se oporá.
Escrever-lhe-ei uma carta hoje mesmo, contando-lhe a
novidade e pedindo-lhe que venha. Estou certa de que
atenderá meu chamado.

Palmira lançou para ela um olhar de fogo. Aquele casamento não
estava em seus planos, e ela não via meios de impedi-lo. Ainda
pensou em tentar dissuadir o filho, mas achou que isso só serviria
para aproximá-lo ainda mais de Júlia. Decidiu que seria melhor se
calar. Ao menos por enquanto. Depois falaria com ele, longe das
vistas dos demais, e tentaria chamá-lo à razão.

Agindo por um impulso que não saberia explicar, Fausto perguntou
inesperadamente, dirigindo-se a Rodolfo:
— Por que não aproveita e não pede também a mão de Marta?

Rodolfo remexeu-se, confuso. Não tinha a menor intenção de
desposar Marta, mas o irmão tratava de encurralá-lo e forçar uma
atitude sua. A moça não estava presente. Fora direto para casa, e
Palmira aproveitou para externar toda a sua indignação:

— O quê? Isso é que não!

Camila olhou para a mãe, indignada, e indagou:

— Por que, mamãe? Marta me parece uma excelente moça.
— Mas é pobre. É filha de capataz. Como Rodolfo pode pensar
em desposá-la?

Rodolfo começou a ficar nervoso. Estava em território perigoso e
precisava tomar cuidado para não se queimar. Se, por um lado,
concordava com a mãe e não tinha a menor intenção de se casar
com a filha de um mero capataz, por outro, não podia deixar que
Fausto e Júlia percebessem suas reais intenções. Era uma faca de
dois gumes, e ele precisava agir com muita cautela, a fim de não se
delatar. Tentando escolher as palavras, disse de forma sutil e
estudada:

— Não é bem assim, mamãe. Marta e eu nos gostamos, mas
ainda estamos nos conhecendo.
— Ora, Rodolfo! — interrompeu Júlia. — Então já não se
conhecem o suficiente? Não estiveram juntos na corte?
— Como assim? — perguntou Palmira, aflita.
— Acalme-se, mamãe — tranqüilizou Rodolfo. — Não é nada
disso que a senhora está pensando.
— Oh! Não — apressou-se Júlia a corrigir suas palavras. — Por
favor, dona Palmira, não me interprete mal. Marta é uma boa
moça e muito direita também. Não era a isso que me referia.
O que quis dizer é que Rodolfo e Marta passaram muito tempo
juntos, conversando e se conhecendo.
— Júlia está certa, mamãe — endossou Fausto. — Eu mesmo fui
testemunha de que ela é uma moça muito honesta e digna.
— Está bem, está bem — cortou Palmira, já enjoada daquela
discussão exaltando as qualidades morais de Marta. — Mas,
ainda assim, penso que ela não é moça para Rodolfo. Ele é um
rapaz fino, educado, merece uma esposa à altura de sua
posição social.
— E você, Rodolfo? — indagou Camila, voltando-se para o irmão.
— Não diz nada?
Ele levantou os olhos, em dúvida.

— O que devo dizer? Marta é uma excelente moça, e gosto dela
de verdade. No entanto, creio que ainda não chegou à hora de
me decidir.
— Mas se foi você mesmo quem disse que a amava — lembrou-o
Fausto, recordando a conversa que tiveram na noite anterior.
— Ou será que já se esqueceu? Ou mudou de idéia?
— Não é nada disso.
— Mas você disse que amava Marta.
— Eu disse que Marta ocupava o lugar de amada em meu
coração.
— Não é a mesma coisa?

Ele estava ficando confuso e transtornado. Queria fugir correndo dali
e o teria feito, não fosse à mãe, que interviera em seu favor.

— Por favor, Fausto, não pressione seu irmão. Deixe que ele
mesmo se decida. Eu, de minha parte, insisto em que essa
moça não é para ele.
— Está bem, mamãe — arrematou Camila. — Deixemos essa
conversa para depois. Não vê que Rodolfo não está gostando?

A conversa tomou novos rumos, mas Fausto não parava de exaltar
seu amor por Júlia. Até que Rodolfo, não podendo mais se conter,
pediu licença e se retirou, saindo para a varanda em busca de ar.
Estava ficando sufocado ali dentro e precisava respirar. Já não
suportava mais a felicidade do irmão.

CAPÍTULO 15

Uma semana depois, frei Ângelo chegou à fazenda Ouro Velho.
Embora de religião e credo diferentes, ele logo simpatizou com a
família de Ezequiel. O homem era amável e cortês, e sua esposa,
gentil e educada, e ele, em pouco tempo, sentiu-se à vontade
naquele ambiente. Marta, prevenida de sua chegada, tratara de ir
esperá-lo, juntamente com Júlia, Camila e Dário, que muito
ansiavam por conhecê-lo. Feitas as devidas apresentações, Júlia
disse emocionada:

— Frei Ângelo, é um imenso prazer conhecê-lo. Há muito
esperava essa oportunidade.
— Marta me falou muito bem da senhorita. Tem-lhe muito apreço
e admiração.
— O sentimento é mútuo. Gosto de Marta como de uma irmã.
— Ouvimos muito falar de sua habilidade — disse Rebeca.
— Que habilidade?
— Ora, com as coisas extraordinárias e sobrenaturais.

Frei Ângelo sorriu complacente. Não era velho, aparentando cerca
de cinqüenta anos, e guardava no semblante traços de uma
bondade genuína e alegre.

— Minha senhora — disse —, mas o que é isso? Tenho algum
conhecimento do mundo dos espíritos, mas posso assegurar-
lhe que ele nada possui de extraordinário. Muito menos de
sobrenatural. Isso são apenas crendices de gente ignorante.

Vendo que ela havia corado, frei Ângelo tratou logo de se corrigir:

— Perdoe-me, não quis ofendê-la. Não queria dizer que a
senhora é ignorante, senão apenas das coisas espirituais. Mas
não há com o que se preocupar. Quase ninguém tem acesso a
essas informações, porque os homens estão ainda muito
atrasados em relação às coisas de Deus. Tudo pensa que é
obra do demônio, como se só o diabo fosse capaz de realizar
feitos maravilhosos.
— Bem, frei Ângelo — disse Camila —, o senhor há de convir que
fomos criados com essa crença.
— Sei disso e não pretendo mudá-la. Creio que ainda não é
chegada a hora de se revelarem tais verdades.
— Por que não? — interessou-se Ezequiel.
— De que adianta uma revelação para ouvidos que ainda não
estão prontos para ouvir?
— Como assim? — quis saber Júlia.
— Minha cara, de nada vale as verdades se quem as escuta
permanece ainda preso a conceitos antigos. Por mais que
tentemos e nos esforcemos, ninguém vai acreditar. Pense
bem. Há quinhentos anos, tinha-se a crença de que a Terra
era quadrada, e quem dissesse o contrário era até queimado
como bruxo. E isso por quê? Porque o homem de então ainda
não havia amadurecido suas idéias para compreender que o
mundo é redondo. A mesma coisa acontece com a verdade do
espírito. Hoje, essa verdade é tida até como heresia, e mesmo
eu corro o risco de ser expulso da Igreja e até excomungado.
— Bem, isso lá é verdade — concordou Ezequiel. — E o senhor
não tem medo?
— Medo? Eu? Não, não tenho. Abracei a carreira religiosa por
vocação, porque acreditava que poderia servir a Deus de uma
forma útil. Com o tempo, descobri que minha maneira de
servi-lo era estudando e praticando seus ensinamentos de uma
forma mais livre e consciente, menos arraigada a valores
históricos e mais próximos das reais necessidades do ser
humano.
— E quais seriam essas necessidades?
— Conhecermo-nos a nós mesmos, em primeiro lugar. Somente
aquele que conhece a si próprio, seus pendores, instintos e
sentimentos, está apto a compreendê-los e transformá-los em
proveitosas lições de vida. Conhecendo-se, o homem pode se
programar para ser feliz e evitar o sofrimento.
— Meu caro frei — tornou Ezequiel, incrédulo —, sem querer
ofendê-lo, não acha que isso é um sonho? O sofrimento existe,
faz parte da humanidade desde que o mundo é mundo. E é
através dele que aprendemos e nos aproximamos de Deus.
— De certa forma, sim. Mas não porque isso seja necessário.
Não é. Nós aprendemos com o sofrimento sim, porque ainda
somos muito ignorantes para compreender que podemos optar
por caminhos menos dolorosos para crescer. E se nos
aproximamos de Deus, não é porque o sofrimento, por si só,
nos tenha elevado a Ele, mas sim porque conseguimos, de
alguma forma, tirar algum proveito da dor e transformá-la em
nosso próprio benefício. Infelizmente, em nossa infância
espiritual, ainda não podemos compreender que ninguém vem
ao mundo para sofrer, senão para ser feliz.
— Mas o sofrimento existe, e isso o senhor não pode negar —
insistiu Ezequiel.
— Existe, não nego. Mas dia haverá em que aprenderemos a
transformar nossas imperfeições movidas pelo amor, e não
pela dor.

Ezequiel continuava olhando-o incrédulo. Queria muito acreditar no
que ele dizia, mas via no sofrimento algo que não se podia evitar e
já começava a se resignar com o infortúnio de Sara.

— Veja minha filha, por exemplo. Por que sofre? Uma menina
ainda, tão nova, tão meiga e, no entanto, padece vítima de
maldita enfermidade.

Frei Ângelo endereçou-lhe um olhar bondoso e acrescentou:

— As enfermidades são apenas umas formas de nos mostrar que
algo em nossa vida não vai bem. Elas nos indicam que há um
desequilíbrio em nossas atitudes, apontando-nos o caminho
para nosso restabelecimento, não só físico, mas também
espiritual.
— Concordo plenamente com o senhor — interveio Camila. — Em
minhas experiências no convento, tive a oportunidade de
observar que todos aqueles que adoeciam tinham algum tipo
de enfermidade da alma. Muitos eram tristes, outros eram
rancorosos, outros ainda, viviam se atormentando por culpas,
mágoas e ressentimentos.
— Minha querida — disse Ezequiel novamente —, isso faz parte
da vida.
— Mas por quê? Será que a saúde não é o caminho natural da
vida? Por que temos que adoecer?
— Não sei. Porque é a vontade de Deus.
— Por que Deus quer que Sara adoeça, enquanto há outros por
aí, praticando o mal, que nada sentem de ruim?
— Não sei. São os mistérios divinos, aos qual ninguém tem
acesso.
— Engana-se, meu caro — objetou frei Ângelo. — Os mistérios de
Deus estão aí para serem desvendados. Cabem a nós,
espíritos eternos, descortinar o véu que encobre as
maravilhosas lições de sabedoria escritas no sagrado livro da
divindade.
— Tenho cá minhas dúvidas.
— Pois não devia. E quanto à senhora, dona Camila, está certa.
Também já tive a oportunidade de observar a relação entre as
enfermidades e os nossos conflitos internos. Servi, durante
muitos anos, no hospital beneficente mantido por nossa
paróquia e, em minhas experiências, também pude tirar
conclusões muito interessantes.
— Que conclusões seriam essas?
— Notem bem. Ninguém nunca comprovou nada. São apenas
deduções extraídas dos muitos anos de convívio com os
doentes, principalmente com aqueles ditos abandonados da
sorte.
— Por favor, frei Ângelo, prossiga — estimulou Camila, bastante
interessada. — Conte-nos como conseguiu chegar a essas
conclusões.
— Em primeiro lugar, separei os doentes em razão de seus
males. Em uma das alas do hospital coloquei aqueles que
sofriam de doenças relacionadas ao aparelho digestivo. Em
outra, acomodei os que sofriam dos pulmões, os que tinham
problemas urinários e assim por diante. E sabem quais foram
às conclusões que tirei?
— Quais?
— Em sua maioria, quem adoecia de problemas de fígado eram
as pessoas que tinham muita raiva guardada dentro de si.
Pessoas que alimentavam raiva por seus semelhantes, por
seus pais, por seus desafetos, mas que nunca tiveram
coragem de exprimir esse sentimento.
— Não acha que fizeram bem? — objetou Ezequiel. — Será que
devemos agora sair por aí ofendendo, matando ou
espancando as pessoas, só porque sentimos raiva delas?
— Não, em absoluto. O ser humano deve agir com discernimento
e respeito, e jamais deve se deixar levar pelos impulsos e
invadir a vida de seus irmãos.
— Então concorda comigo que a raiva é um sentimento que deve
ser dominado, e não estimulado.
— Não se domina um sentimento fingindo que ele não existe.
Quem assim age apenas mascara o sentimento, mas ele
permanece ali, escondido, latente, sendo reprimido, quando
deveria ser compreendido e externado.
— Ora, frei Ângelo — retrucou Rebeca —, se eu invejo alguém,
por exemplo, sei exatamente por que estou invejando. Isso
não é compreensão?
— Não, se não aceitar para si mesma que o que sente e inveja.
Na maioria das vezes, nós colocamos uma capa na inveja e
ela vira crítica. Se eu invejo alguém, não posso fingir que não
tenho inveja só porque isso é feio ou reprovável pela
sociedade. Não. Em primeiro lugar, tenho que aceitar que o
sentimento existe e que é real. Em segundo lugar, devo tentar
entender os motivos que me levaram a invejar, e eu preciso
reconhecer que o sentimento parte de mim, nasce de uma
incapacidade minha para alguma coisa. E, por fim, é preciso
que eu o aceite e aprenda a conviver com ele, o que não
significa que eu tenha que me resignar com a inveja e
estimulá-la. Quando digo conviver com o sentimento, quero
dizer que devo aceitá-lo como algo que existe em mim e que
me incomoda, que faz mal a mim e a meus semelhantes. Se
me faz mal, é preciso transformá-lo em algo positivo, e eu
posso então aprender a direcionar essa inveja para construir
algo que eu julgava impossível, mas que só depende de minha
força de vontade e do meu grau de determinação.
— Com a inveja isso até pode ser fácil — ponderou Júlia —,
porque podemos lidar com ela sem que tenhamos que
envolver mais ninguém. Mas como externar determinados
sentimentos, como a raiva, o ódio, sem agredir o ofensor?
— Para que nos expressemos, não é necessário agredir ninguém,
bastando que sejamos sinceros com aquele que nos ofendeu.
— Devolvendo a ofensa? — sugeriu Dário.
— Não. Devolvendo o ato em forma de esclarecimento, para que
nosso irmão tenha a oportunidade de revê-lo. Se você me
ofende e eu sinto raiva, não devo me calar, pois que, calando,
transfiro para o meu corpo o que poderia ser devolvido ao
universo em forma de expressão. Não devemos guardar a
raiva, devemos sempre expressá-la de uma forma saudável,
de preferência falando, colocando-nos diante de nosso ofensor
e expondo a ele a nossa insatisfação. E isso deve ser feito com
qualquer sentimento, e não apenas com a raiva. Resolvem-se
as mágoas, as tristezas, os medos; se assumimos o que
sentimos, em vez de tentarmos nos enganar, mentindo para
nós mesmos que não nos deixamos dominar por nenhum
sentimento que costumamos denominar de ruim ou feio; se
compreendemos por que sentimos, então estaremos prontos
para nos modificar para melhor. Só assim poderemos manter
nosso organismo em perfeito equilíbrio.
— Mas que interessante! — impressionou-se Camila.
— Sim, muito interessante — concordou Ezequiel. — Só não sei
se acredito nisso. Perdoe-me, frei Ângelo, mas isso são apenas
palavras bonitas, que impressionam, não nego, mas cujo
sentido prático ainda está bem longe de ser comprovado. As
coisas não são assim tão simples quanto quer fazer parecer.
— Meu amigo, a vida, em si, é muito simples. Nós é que temos a
mania de complicá-la.
— E qual seria a fórmula milagrosa para tanta simplicidade? —
ironizou Ezequiel.
— O amor e a compreensão — disse frei Ângelo com convicção.
— Somente aquele que compreende a si e os seus irmãos
agem com espontaneidade e simplicidade, porque é capaz de
colocar amor em seus gestos e em suas palavras, e nunca age
por maldade ou vingança.
— É verdade — disse Marta.
— E os problemas dos pulmões? — quis saber Rebeca, desviando
o assunto. — A que se relacionaria?
— Normalmente estão relacionados a pessoas muito solitárias,
tristes, carentes, que se sentem abandonadas ou rejeitadas.
— Viu só? — animou-se Camila. — Eu não falei?
— É verdade — concordou Rebeca. — Camila já nos havia dito a
mesma coisa.
— Então minhas experiências não estão distantes da realidade! —
concluiu frei Ângelo, com entusiasmo. — Se alguém que não
conheço, em um lugar distante, tira as mesmas conclusões, é
porque estamos no caminho certo!
— Não pode ser coincidência? — arriscou Dário.
— Não, meu filho. Acredito que coincidências não existam. As
coisas estão todas nos seus lugares, assim como as pedras de
uma pirâmide, que não estão dispostas ao acaso. Cada uma
delas é essencial para a sustentação da construção inteira.
— Oh, frei Ângelo, suas palavras me parecem de profunda
sabedoria — elogiou Rebeca. — Mal posso esperar para que
conheça minha filha Sara.
— Então, o que estamos esperando? Por que não vamos agora
mesmo ver a menina?

Frei Ângelo entrou no quarto de Sara acompanhado apenas por
Rebeca. Vendo-a deitada sobre o leito, a respiração meio ofegante,
condoeu-se. Aproximou-se da cama e, tocando-lhe gentilmente a
testa, despertou-a. Sara abriu os olhos e sorriu para ele. Embora
nunca o tivesse visto, não estranhou sua presença ali, e era como
se já o estivesse esperando. Com um sorriso nos lábios, murmurou:

— Que bom que veio!

Rebeca, pensando que a filha delirava, adiantou-se e disse:

— Minha filha, este é frei Ângelo, de quem já lhe falei. Ele acaba
de chegar. Veio aqui para tentar ajudá-la.
— Como vai, Sara?
— Estou bem. Na medida do possível, sinto-me bem.

Frei Ângelo olhou para ela com ternura. Vendo-a assim tão frágil, a
impressão que dava era a de que ela não resistiria e perderia a
batalha para aquela enfermidade cruel. No entanto, frei Ângelo
sabia do potencial interno da menina. Podia sentir isso. Voltou-se
para Rebeca e pediu:

— Gostaria de ficar a sós com ela por uns instantes.

Rebeca assentiu e se retirou. Estava esperançosa. Não sabia por
que, mas tinha certeza de que aquele frei seria o único capaz de
ajudá-los.
Quando frei Ângelo saiu do quarto de Sara, todos o aguardavam
ansiosamente, e a primeira pergunta que lhes chegou à mente, e
que Rebeca externou, foi:
— Ela vai ficar boa?

Frei Ângelo olhou-a penalizado. Podia sentir toda a sua angústia de
mãe e gostaria de poder dar-lhe uma resposta mais conclusiva. Não
querendo, porém, dar-lhe esperanças vãs, respondeu com a maior
sinceridade possível:

— Isso só vai depender dela.
— Como assim? — indignou-se Ezequiel. — Sara está doente e é
apenas uma menina. Como pode pretender que ela cure a si
mesma?
— Seu Ezequiel — tornou frei Ângelo, bondoso e paciente. — Sua
filha está em desequilíbrio e, por isso, adoeceu. Diante de um
sentimento que não pôde compreender, não soube como
expressá-lo e acabou por imprimir a enfermidade em seu
corpo de carne. É preciso que ela entenda seus próprios
sentimentos para, compreendendo-os, transformá-los em
fonte de saúde e de vida.
— Lá vem o senhor com as suas teorias...
— Não foi para isso que me chamaram? Para tentar ajudar a
menina com as minhas... Teorias?
— Sim, mas pensei que o senhor também conhecesse algum tipo
de medicamento novo...
— Sinto decepcioná-lo, seu Ezequiel, mas meus métodos são
esses, e o maior remédio que conheço é a fé incondicional em
Deus.
— Isso mesmo, Ezequiel — recriminou Rebeca. — Precisamos
tentar de tudo e chamamos frei Ângelo aqui porque ouvimos
falar de sua bondade e de seus magníficos conhecimentos.
Não vá você agora querer atrapalhar.

Ezequiel encarou o frei com certo ar de dúvida. Mas Rebeca estava
certa. Era preciso tentar de tudo para salvar sua Sara, e se aquele
frade dizia conhecer novos métodos, precisava dar-lhe crédito.
Afinal, o homem era simpático e parecia ter bom coração e boa
vontade. Dera-se ao trabalho de deixar a corte e viajar até ali, era
porque estava, realmente, disposto a ajudar.

— Está bem — suspirou convencido. — O que devemos fazer?
— Em primeiro lugar, abrir as janelas. Deixar que a luz do Sol
penetrasse em seu ambiente e renove suas energias.
— Mas, e as correntes de ar? — foi à vez de Rebeca protestar.
— Minha senhora, não precisa se preocupar com isso. Afinal, ela
veio aqui para respirar ar puro, e trancando-a no quarto ela
estará respirando sempre o mesmo ar contaminado.
— Faz sentido... — disse Camila de si para si.
— Deixe-a sair, sentir o Sol em seu rosto, caminhar ao ar livre.
— Ah, mas ela sai. Todas as manhãs, quando se sente bem,
toma Sol no jardim.
— Deve tomar Sol sempre. Os raios solares são extremamente
benéficos à saúde humana, desde que não haja uma
exposição excessiva nem em horários muito quentes.
— Devo levá-la mesmo quando está de cama?
— Dona Rebeca, é preciso ter bom senso. Se Sara não estiver
disposta, não devemos forçá-la. Só ela é capaz de dizer como
está se sentindo. Mas se ela quiser sair, devemos fazer sua
vontade e levá-la para passear.
— Passear?
— Sim, passear. Ela não caminha, não é mesmo?
— Bem, não. Ela se cansa facilmente, e temos medo de que o
cansaço excessivo acabe por enfraquecer-lhe ainda mais os
pulmões.
— De certa forma, a senhora tem razão. Mas não devemos
exagerar. É claro que Sara não deve fazer caminhadas longas
nem exaustivas. Mas andar pela fazenda, ir até o riacho e até
cavalgar são exercícios que só lhe farão bem. O Sol e o ar
puro devem invadi-la por completo, tocar sua pele, seus
pulmões, fazer com que ela perceba a maravilha que é estar
viva. Além disso, procurem sempre conversar com ela, dêem-
lhe atenção, ajudem-na a sentir-se integrada à família e,
principalmente, ao mundo.
— Muito bem — concordou Ezequiel, após alguns minutos de
silêncio e expectativa. — E depois?
— Depois? Bem, estarei aqui para ajudá-la a entender seu
processo de adoecimento e buscar a cura.
— Mas só? — indignou-se Ezequiel novamente. — Nenhum
remédio?
— Por enquanto, não.
— Pretende curá-la só com sua conversa?
— Não, com meu auxílio. Pretendo ajudá-la a abrir seu coração e
fortalecê-lo, para que ela acredite que a força da vida é capaz
de nela penetrar, levando a seu corpo tudo o que for
necessário para seu restabelecimento. Além disso, creio que
posso ministrar-lhe doses de energia com minhas mãos.

Ezequiel estava incrédulo. Gostara de frei Ângelo, sentia que ele
estava disposto a ajudar, mas ainda não confiava em seus métodos.

— Frei Ângelo — prosseguiu —, sei que suas intenções são boas.
Contudo, quer negar o avanço da ciência?
— Em hipótese alguma. A ciência vem prestando valorosos
préstimos no auxílio aos enfermos, e não posso negar que está
a serviço de Deus. No entanto, a cura para a enfermidade de
sua filha não foi ainda descoberta pela ciência. No futuro,
quem sabe? Mas agora, precisamos lutar com outras armas.
— Que armas?
— A confiança e a fé em Deus.
— Não sei se acredito nisso. Curar uma doença sem nenhum
remédio? Parece-me impossível.
— Sabe seu Ezequiel, quando adoecemos já trazemos em nosso
íntimo o germe da cura. Basta que acreditemos nele e o
desenvolvamos.
— Hum... Não sei, não.
— Por que não me deixa tentar?
— O senhor não está entendendo. E claro que deixarei que tente.
Contudo, creio que seria melhor o acompanhamento de um
médico também.
— Faça como quiser. Um médico em nada atrapalhará o
desenvolvimento de meu trabalho. Ao contrário, poderá
diagnosticar mais prontamente a melhora de sua filha.
— Será mesmo?
— Estou quase certo. Como disse, a cura está nas mãos de Sara.
Só o que vou fazer é auxiliá-la a descobrir como utilizá-la. E
gostaria também de experimentar algumas ervas medicinais.
— Ervas medicinais? Acredita nessas crendices?
— Não são crendices. Sabemos que os índios sempre se curaram
com o auxílio das ervas. Por que não podemos fazer o
mesmo?
— Porque somos homens civilizados.
— A civilização não está distante da natureza. Ao contrário, a
química também se utiliza de diversas plantas medicinais, e
são bastante conhecidas suas propriedades terapêuticas.
— Frei Ângelo — interrompeu Dário, emocionado. — Se me
permite, gostaria de fazer-lhe um pedido especial.
— Diga meu filho.
— Gostaria que me permitisse acompanhar o tratamento de
Sara. Nós estamos apaixonados e em breve pretendemos nos
casar.
— Isso será maravilhoso. Tudo de que ela precisa é sentir-se
amada e querida. Tenho certeza de que sua presença em
muito a auxiliará, sobretudo a ter confiança em si mesma. E
Marta também poderá ajudar-me bastante.
— Como? — quis protestar Rebeca. — Ela não entende nada de
medicina e cura.
— Engana-se, dona Rebeca. Marta possui o extraordinário dom
de se ligar ao mundo espiritual, e os espíritos amigos nos
poderão ser de grande valia.
Rebeca abaixou os olhos, confusa. Continuava não simpatizando
muito com Marta, mas não podia negar que fora ela quem iniciara
tudo aquilo. Sem ter o que dizer, ela apenas balbuciou:

— Sinto muito, frei Ângelo. Isso tudo é novo para mim.
— Não se preocupe. Peço a vocês que confiem em Deus e que
orem. Orem todos os dias, com fé, com sinceridade. Não
profiram preces mecânicas e decoradas. Orem com fervor,
que Deus jamais deixa de atender seus filhos.
— Frei Ângelo, esquece-se de que não partilhamos de sua
religião?
— Deus não possui religião, minha filha. A religião universal,
aquela que liga os homens a Deus, é a que vem do coração. O
amor, o respeito e a compreensão são as verdadeiras religiões
que nos aproximam do Criador.
— Sábias palavras, frei Ângelo — concordou Ezequiel. — Também
penso assim. Tanto que somos amigos há muitos anos.
— É uma bonita amizade a de vocês. É muito bonito ver pessoas
que se amam sem se importar com fronteiras ou diferenças.
— Creio que são as diferenças que nos fazem crescer — disse
Júlia.
— Sem dúvida, minha filha. Porque somos diferentes é que
podemos trocar experiências e aprender uns com os outros.
— Bem, creio que frei Ângelo gostaria de descansar um pouco
agora — disse Rebeca. — Afinal, desde que chegou, nem foi
conhecer seus aposentos.
— Tem razão — concordou Júlia. — Nós, em nossa ansiedade,
acabamos por prendê-lo e nem nos demos conta de que deve
estar exausto da viagem.
— Confesso que estou um pouco cansado, sim. Mas não foi
nenhum sacrifício ficar aqui com vocês. São pessoas muito
agradáveis.
— Obrigado, frei Ângelo. O senhor é que é muito gentil.

Rebeca tocou a sineta e Laurinda apareceu. Deu-lhe ordens para
que levasse frei Ângelo ao quarto que lhe fora reservado. Ele estava
tão cansado que logo adormeceu. Adormeceu e sonhou. Em seu
sonho, via Sara, ainda criança, correndo por um campo muito
verde, e Marta a seu lado, cuidando para que ela não se
machucasse. Mais atrás, Rebeca surgiu e, a todo instante, chamava
a atenção da menina. A menina, em dado momento, parou e sorriu
para ela, estendendo as mãozinhas para que ela a erguesse no colo.
Rebeca, porém, não lhe deu atenção. Seus olhos estavam presos na
figura de um homem, que ia se aproximando pelo outro lado. Ela
empurrou a menina para o lado e correu para ele, atirando-se em
seus braços. No mesmo instante, Sara começou a chorar e logo foi
atendida por Marta, que a colocou no colo e a embalou.

Frei Ângelo acordou assustado. O que significava aquilo? Com
certeza, revira fragmentos de uma outra vida de Sara. Sim, ele
acreditava em vidas passadas, e naquela, com certeza, acabaria por
descobrir as origens da enfermidade da moça. Pensando nisso,
tornou a fechar os olhos e agradeceu a Deus por lhe permitir
desvendar os mistérios que acabariam por indicar a Sara o caminho
da cura.

CAPÍTULO 16

Na fazenda São Jerônimo, Rodolfo se roia por dentro. Vira quando
Júlia e Marta se afastaram, em companhia de Camila e Dário, e
ficara curioso. Aonde teriam ido? Intuitivamente percebeu que se
dirigiam à fazenda Ouro Velho. Lembrava-se de algo que Marta lhe
dissera. Algo sobre a doença da filha de seus vizinhos, e que um frei
estaria indo para ajudá-la. Será que teriam ido recepcionar o tal
frade?

Subitamente, Rodolfo começou a desconfiar que houvesse algo de
errado com aquela família. Se eram amigos de Camila, por que ela
nunca os apresentara? Por que nunca os chamara ali para
conhecerem o resto da família, preferindo sair sorrateiramente,
sempre sem dizer nada a ninguém? Havia algo de estranho com
aquela gente, algo que a irmã não queria que eles descobrissem.
Mas ele descobriria. Decidido, foi em busca de Túlio. Soube, pelos
escravos, que o rapaz havia saído pelo meio do mato, sem dizer
aonde fora. Rodolfo ficou intrigado. Aonde teria ido? Estava disposto
a montar no cavalo e partir em seu encalço quando Terêncio
apareceu.

— Seu Rodolfo...? — indagou, querendo certificar-se.
— Sim.
— Procura seu Túlio?
— Por quê? Sabe onde ele está?
— Não sei, mas posso imaginar.
— E onde seria?
— Quer que o leve até lá?
— Quero. Se souber onde ele está, leve-me até ele.
Os dois montaram nos cavalos e partiram. À medida que ia
avançando, Rodolfo ia reconhecendo o caminho e teve um
estremecimento. Aquela era a direção do túmulo que improvisaram
para Etelvina. Será que Terêncio descobrira tudo? Em breve
chegaram ao local, e Rodolfo pôde constatar que era para lá mesmo
que Túlio havia ido. Apearam e caminharam em silêncio, até se
aproximarem bem do lugar onde Etelvina estava enterrada. A seu
lado, ajoelhado, Túlio segurava um punhado de terra e chorava.
Rodolfo, impressionado com aquilo, tomou a dianteira e bramiu:

— Mas o que significa isso?
Túlio pulou assustado. Não esperava que tivesse sido seguido e
quase desmaiou de susto.

— Titio... O que faz aqui?
— Eu é que lhe pergunto. O que faz aí ajoelhado sobre esse
monte de terra, chorando feito um bebê?
— Eu... Eu...
— Talvez o senhor Túlio esteja pranteando a morte de sua
amada... — disse Terêncio ironicamente.

Rodolfo alarmou-se. Estava claro que Terêncio descobrira a
verdade. Ele sabia que Etelvina jazia ali. Será que imaginara que
ele, Rodolfo, fora quem a matara?

— O que quer dizer com isso? — retrucou, tentando aparentar
inocência.
— Quero dizer seu Rodolfo, que a negra Etelvina está enterrada
ali, bem debaixo dos pés de seu sobrinho.

Ele levantou a sobrancelha e encarou Túlio com fingida surpresa,
perguntando logo em seguida:
— Isso é verdade?
— Como assim?
— Perguntei se Etelvina está enterrada aí.

Foi à vez de Túlio encarar o tio, surpreso. Rodolfo tentaria jogar nele
a culpa pela morte da escrava. Mas ele não permitiria. Estava certo
de que era apenas uma escrava, e que seu crime passaria impune.
No entanto, recebera criação diversa da do tio. Por mais que
soubesse de sua condição de superioridade, não podia deixar de
pensar que havia um ser humano enterrado ali, um ser humano de
cujo assassínio participara.

— Mas... Mas... — gaguejou — por que a pergunta?
— Quero saber se a negra Etelvina está enterrada aí.

Túlio, embora com medo, sustentou o olhar duro de Rodolfo e
retrucou com raiva:

— Por que me faz perguntas cuja resposta já conhece?
— Como assim? Não sei nada sobre isso.
— Olhe tio Rodolfo, não adianta que não vou levar a culpa por
algo que não fiz.
— O que quer dizer, rapaz?
— Quero dizer que você sabe que não fui eu quem a matou.
— Então ela está mesmo morta?
— Está sim, seu Rodolfo — concordou Terêncio. — Eu mesmo, no
outro dia, a desenterrei.
— Você fez o quê?
— Descobri o corpo enterrado aí. Segui seu Túlio e o surpreendi
na mesma atitude em que hoje o vimos. Depois que ele saiu,
fui buscar uma pá e cavei. É a negra Etelvina quem está
enterrada aí, pode ter certeza.
Túlio continuava a olhar para ele com ar desafiador. Estava
morrendo de medo, mas não queria ser incriminado por aquilo. Já
se envolvera demais com aquela história. Violentara a pobre da
negra, humilhara seu amigo Trajano. Não queria ser acusado de
assassinato. Rodolfo, vendo que Túlio não assumiria a culpa pela
morte da escrava, voltou-se para Terêncio e ordenou:

— Terêncio, quero que volte agora mesmo para a fazenda. E
bico calado. Ninguém deve saber o que houve aqui.
— Pois não, patrão. O senhor é quem manda.

Terêncio voltou para o lugar onde deixara seu cavalo e montou,
sem maiores perguntas. Estava claro que fora Túlio quem matara a
escrava. Quando ele se afastou, Rodolfo aproximou-se de Túlio e
desfechou-lhe violento soco no queixo, fazendo com que o outro
cambaleasse e caísse deitado sobre a cova rasa de Etelvina.

— Idiota! — vociferou. — O que pensa que está fazendo?

O outro se levantou hesitante, as mãos pousadas sobre o queixo,
tentando conter o sangue que lhe escorria da boca. Lutando para
conter o pânico que naquele momento o dominava, respondeu
súplice:

— Tio Rodolfo, por favor...
— Cale-se, imbecil! Quer nos destruir?
— Não... Não...
— Então por que fez isso?
— Mas eu não fiz nada! Foi você quem quis me acusar da morte
de Etelvina.
— E daí? Era só uma escrava.
— Se pensa assim, por que não assume logo que a matou?
— Não posso, já disse. E você não deve falar nada.
— O que quer que eu faça? Que assuma a culpa sozinho? Sinto,
mas eu é que não posso fazer isso. Não fui eu que a matei.
— Isso não faz a menor diferença.
— Pode não fazer para você, mas faz para mim.
— Posso saber o que houve para que você, de repente, sentisse
arroubos de arrependimento?
— Se quer mesmo saber, estou realmente arrependido.
— Oh! Muito nobre de sua parte. E por isso pretende acusar-me?
— Eu não o acusei. Mas também não quero levar a culpa de algo
que não fiz.
— Não entendo por que a preocupação. Já disse que Etelvina era
só uma escrava. Quem se importa com os negros?
— Ótimo. Já que pensa mesmo assim, insisto para que diga logo
que você a matou. Com certeza, vovó não fará nada contra
você.
— Já disse, não quero um levante entre os negros.
— Não acredito em você. Você tem é medo de que certa pessoa
descubra, não é mesmo?
— A quem se refere?
— A minha tia Júlia.
— Como se atreve? Júlia ficou noiva de meu irmão.
— Contudo, você a ama e pretende roubá-la dele, não é
verdade? E se ela descobrir o monstro que você é não terá a
mínima chance.

Rodolfo encarou-o, perplexo. O idiota até que chegara bem próximo
da verdade.

— Cale essa boca! — gritou. — Você não sabe de nada!
— Sei muito mais do que imagina. Mas não se preocupe. Seu
segredo ficará bem guardado comigo, desde que não queira
transferir essa culpa para mim. Minha mãe jamais me
perdoaria.

Rodolfo soltou um riso sarcástico e considerou:

— Como vê meu caro, estamos ambos preocupados em não
desgostar alguém que nos é importante.
— Com uma diferença. Eu sou inocente.
— Será mesmo? Esquece-se de sua participação?
— Não, não me esqueço. Mas não fui eu quem a estrangulou.
— Está bem, isso não vem ao caso. O que importa agora é que
nos protejamos mutuamente. Terêncio sabe de tudo e poderá
nos delatar.
— Protegermo-nos como?
— Tenho medo de que Terêncio não guarde esse segredo por
muito tempo. Por isso precisamos agir. Procurar um culpado.
— Um culpado? Mas quem, meu Deus?
— Aquele negro Trajano.
— Trajano? Mas ele não fez nada. Foi uma vítima.
— Ouça Túlio, o que quer? Que sua mãe descubra o que fez, é?
— Não... Claro que não...
— Então cale essa boca e faça o que eu mandar. Daremos um
jeito de incriminar Trajano, e tudo ficará por isso mesmo.
— Esquece-se de que Trajano é protegido de minha mãe?
— E daí? O que ela fará para defender um assassino? Todos
viram seus interesses por Etelvina. Viram que bateu em você
por causa dela. Não será difícil fazer com que acreditem que
ele, num acesso de ciúmes, a matou.
— Minha mãe jamais acreditará nessa história.
— Pouco me importa. Ela nada poderá provar contra nós. E
depois, tudo isso poderia ter sido evitado se você não caísse
na besteira de voltar aqui. O que deu em você, afinal? Isso lá
é hora de sentir remorsos?
— Sinto muito, mas tenho consciência.
— Pois agora não é mais hora para isso. Se quiser salvar a pele,
não diga nada a ninguém. Deixe tudo por minha conta.
Quando estiver pronto, direi o que deve fazer.

Em seguida, voltaram para a fazenda. Túlio estava desgostoso
consigo mesmo. Não queria mais participar daquilo. Já não
prejudicara muita gente? Primeira fora Raimunda. Depois Etelvina, e
agora Trajano? Não queria, não podia aumentar ainda mais sua
culpa. Olhou para Rodolfo e sentiu uma imensa raiva crescer-lhe
dentro do peito. Apesar disso, estava atado ao poder do tio,
sobrepujado por sua maldade. Mas precisava fazer alguma coisa.
Não permitiria mais injustiças. Precisava pensar numa maneira de se
livrar daquilo. Precisava confiar em alguém.

Foi só quando voltaram que Rodolfo se lembrou do motivo que o
levara a procurar Túlio. Queria saber mais a respeito da família que
arrendara a fazenda Ouro Velho, e ele poderia ajudá-lo. Quando
chegaram, Túlio foi direto para o quarto, e Rodolfo foi atrás dele.
Fechou a porta e sentou-se na beira da cama, encarando-o com
olhar perscrutador.

— O que mais quer de mim? — indagou Túlio de má vontade.
— Mais um favorzinho.
— Que tipo de favor?
— Gostaria que me esclarecesse uma dúvida. Quero saber tudo
sobre a família que arrendou a fazenda Ouro Velho.

Túlio olhou-o desconfiado. Embora não fosse muito ligado aos
Zylberberg, ele os estimava e sabia o quanto poderia ser perigoso
falar sobre eles. Túlio sabia que seu irmão estava noivo de Sara, e
que a família para ali fora a conselho do médico, em busca de
melhores ares para a doença da moça.

— Por que o interesse repentino?
— Não sei. Mas alguma coisa me diz que me escondem algo.
— Ora, tio Rodolfo, o que poderia ser?
— Não sei. E o que pretendo descobrir.
— De minha parte, sinto muito. Não posso ajudá-lo.
— Não pode ou não quer?
— Ouça titio, essas pessoas são amigas de minha mãe, não
minhas.
— Vai querer me convencer de que não as conhece?
— Vagamente.
— Ora, Túlio, mas o que é isso? Por acaso pensa que sou algum
tonto? Então não vejo que todos os dias, à exceção de você,
vão alguém para aqueles lados?
— E daí?
— E daí que é muito estranho.
— Não vejo nada de estranho nisso. São amigos de minha mãe e
de Júlia. É natural que vai visitá-los.
— E seu irmão?
— O que tem Dário?
— Por que vai também?
— Não sei. Por que não pergunta a ele?
— Porque quero saber de você.
— Pois já disse que não sei de nada. São apenas pessoas, e eu
não tenho a menor intimidade com elas.
— Como se chamam?
— Não me recordo.

Rodolfo coçou o queixo em sinal de dúvida. Estava claro que o
sobrinho mentia. Por alguma razão, ele tentava proteger aquela
família.

— Escute Túlio, quer me fazer crer que sua mãe é amiga de uma
família há anos e que você sequer sabe seus nomes?
— Já disse que não me lembro. Minha mãe tem muitos
conhecidos. Pode ser qualquer um deles.
— Por exemplo?
— Por exemplo... Os Silva e Souza, os Carvalho, os Arcoverde,
os Soares Ferreira e tantos outros. Como vê, a lista é
interminável.

Rodolfo encarou-o com ar cético. Não acreditara em uma palavra
do que lhe dissera o sobrinho, mas achou melhor não insistir.
Balançou a cabeça em sinal de assentimento, levantou-se e saiu,
acenando para Túlio da porta. Sem dizer uma palavra, dirigiu-se
para o gabinete que fora de seu pai. Era ali que ele e o irmão
tratavam de negócios e onde guardavam todos os documentos
importantes. Rodolfo entrou sorrateiramente, fechando a porta atrás
de si, e começou a vasculhar as gavetas, somente encontrando
papéis relacionados à venda de sacas de café, de gado, alguns
títulos, certidões, contratos bancários. Nada. Não havia nada que
pudesse esclarecê-lo sobre os arrendatários da Ouro Velho. Até que,
de repente, seus olhos se prenderam numa pasta de couro cru,
cuidadosamente escondida sob um monte de papéis velhos e
amarelecida. Rodolfo retirou-os, afobado, e puxou a pasta, abrindo-
a com ansiedade. Dentro, o contrato de arrendamento da fazenda,
contendo os nomes do arrendador e do arrendatário. Como
arrendador, constava o nome de sua mãe, Palmira Sales de
Albuquerque, representado por seu filho, Fausto Sales de
Albuquerque. Como arrendatário, imagine um tal de Ezequiel
Zylberberg. Não era preciso dizer mais nada. Tudo estava
esclarecido. Aquela família, que ninguém nunca vira, pertencia à
desprezível classe dos judeus. Era lógico. Bastava ler aquele nome.
Fora por isso que Fausto se encarregara de tratar pessoalmente das
negociações. Ele sabia que a mãe jamais permitiria uma heresia
daquelas, mas por estar apaixonado por Júlia, faria tudo o que ela
desejasse. Não bastava que fosse amiga dos negros. Era também
dos judeus.

De posse de tão preciosa prova, Rodolfo sentiu-se satisfeito. Colocou
de volta no lugar a pasta incriminadora, cobriu-a com os mesmos
papéis velhos, fechou as gavetas e saiu. Aquilo era uma
preciosidade. Era com aquela descoberta que ele pretendia, cedo ou
tarde, ter Júlia em suas mãos. Utilizar-se-ia de todos os recursos
disponíveis para tê-la e, assim, atingir o irmão. Primeiro, tentaria
conquistá-la, oferecendo-lhe sua amizade e provocando a
desconfiança de Fausto. Faria com que ela percebesse que ele era
gentil, educado e galante, muito mais do que Fausto sempre
ocupado com os negócios. Mas, se isso não desse certo, saberia
valer-se das provas que tinha em mãos. Mostrá-las-ia a Júlia e a
faria ver que só dependia dele a permanência ou não de seus
amiguinhos judeus em suas terras. Bastava mostrar aquilo à mãe
para que ela mandasse expulsá-los dali, com ou sem contrato.

Dali foi sentar-se na varanda. Já entardecia, e logo Júlia despontaria
com Camila e o sobrinho pela estradinha. Fausto, como sempre, iria
ao seu encontro. Tudo parecia bem, e era assim que ele queria que
continuasse.

Em pouco tempo a carruagem atravessou a cancela, e Fausto,
montado em seu alazão, correu ao encontro da amada. Aquilo lhe
dava náuseas. Ver como o irmão a beijava e a enlaçava dava-lhe
vontade de matá-los. Mas seria por pouco tempo. Logo que a
carruagem se aproximou mais da casa grande, com Fausto
cavalgando a seu lado, Rodolfo se levantou e foi ao encontro de
Marta, que também vinha com eles. Ajudou-a a descer, beijou-a de
leve na face e olhou discretamente para Júlia. Sentiu a raiva crescer
dentro dele, mas não disse nada. Em vez disso, estendeu a mão
para auxiliá-la também, e quando ela segurou a mão que ele lhe
oferecia, Rodolfo propositalmente puxou-a para baixo, fazendo com
que Júlia se desequilibrasse e quase fosse ao chão. Imediatamente,
ele a amparou, sustendo-a por sob os braços. Júlia corou e
agradeceu logo se endireitando, e Fausto fingiu não perceber que
ela enrubescia, talvez seduzida pelo contato de Rodolfo.

Enquanto Fausto chamava um escravo e entregava-lhe o cavalo,
Rodolfo tratou logo de despachar Marta, sob o pretexto de que o pai
a procurava, e ofereceu o braço a Júlia, seguindo com ela para
dentro de casa. Ele a cobria de atenções, mas sempre fazendo
aparentar certa displicência, certo desinteresse, no qual Fausto
tentava acreditar. Já na sala de estar, Rodolfo indagou:

— E então, cara Júlia, divertiu-se hoje? Júlia fitou-o sem entender
e retrucou:
— Por que a pergunta?
— Por nada. É que se ausentou tão cedo...
— Saí em companhia de minha cunhada. Por quê?
— Por nada. Só curiosidade — e após alguns segundos,
acrescentou:— Foi visitar seus amigos?
— Amigos?
— Sim. Aqueles que arrendaram a Ouro Velho, como são mesmo
o nome? — Júlia gelou, mas ele prosseguiu displicente: — Não
importa. E o tal frei? Já chegou?
— Sim... Já sim...
— Que bom. Imagine um frei vir de tão longe só para rezar por
uma doentinha. Deve ser muito bondoso, esse frei.
— É... É sim.
— E de que mal sofre mesmo a menina?

Júlia começava a se sentir acusada. Por que Rodolfo, de repente,
crivava-a de tantas perguntas?

— Ainda não sabemos ao certo.
— Nada grave, espero.
— Não. Com certeza não.
— Fico muito feliz em ouvir isso.

Fausto chegou e pediu licença, segurando Júlia vigorosamente pelo
braço e levando-a para varanda. Ela fez um ar de reprovação e
disse, contrariada:

— O que há com você, Fausto? Por que me trata desse jeito?

O moço, percebendo que apertava em demasia o braço de Júlia,
soltou-o de repente, acrescentando envergonhado.

— Perdoe-me, querida. É que não gosto de vê-la junto de
Rodolfo.
— Por quê? Pois não foi você mesmo quem disse que sentia
ciúmes à toa? Que ele havia se arrependido e que estava
apaixonado por Marta?
— E está. Mas não consigo evitar o ciúme e quase enlouqueço só
de vê-la perto dele.

Júlia riu gostosamente e estalou-lhe um beijo na testa,
acrescentando bem-humorada:

— Mas que tolinho! Então não sabe que o amo, e só a você?
— Eu sei minha querida. Perdoe-me a insegurança. Eu também a
amo e confio em você. Mas é que Rodolfo e eu somos tão
iguais...
— Engana-se, meu amor. Hoje já posso distingui-los.
— Verdade? Como?
— Só você possui nos olhos o brilho do meu amor.

Fausto tomou-a nos braços e beijou-a com paixão, esquecendo-se
da dúvida que o atormentava dia após dia.

Vendo o contato entre Fausto e Júlia, Rodolfo saiu desabalado.
Sentia náuseas e precisava de ar puro. Correu para o jardim e
inspirou. Era preciso acabar logo com aquilo. Enjoado, sentou-se
num banco e ocultou o rosto entre as mãos, até que escutou um
estalido próximo, como de passos quebrando um galho seco. Ergueu
os olhos, assustado, e encontrou a prima parada diante dele,
sempre com aquele sorriso diabólico, que lhe repuxava a cicatriz.

— Você já não pode mais suportar, não é mesmo? — disse ela.
— Prima Constância! Que susto me deu.

Ela continuava com aquele sorriso diabólico e acrescentou:

— Estou certa ou errada?
— Certa ou errada de quê?
— Do fato de que você já não pode mais suportar a felicidade de
seu irmão.
— Não entendo o que quer dizer.
— Não mesmo? Não precisa fingir para mim. Estou do seu lado e
posso ajudá-lo.
— Não sei do que está falando e não preciso de sua ajuda para
nada.
— Será que não? Nem para conquistar Júlia?
— Está louca.
— Não estou não. Pensa que não percebi o modo como olha para
ela?
— Não a olho de modo algum.
— Está bem. Se quiser acreditar nisso...
— Por que está me dizendo essas coisas?
— Porque quero ajudá-lo.
— A troco de quê? Nós mal nos conhecemos e não temos nada
em comum.
— Nada, a não ser um objetivo.
— Como assim?
— Digamos que ambos queiramos destruir alguém.

Rodolfo calou-se e ficou olhando para ela. O que estaria
pretendendo? Constância era praticamente uma estranha, e ele
pouco sabia a seu respeito. Só o que sabia era que ela era filha da
irmã de sua mãe e que fugira de casa, rejeitada por seu primo
Inácio. Durante todos aqueles anos, quase não se tocara em seu
nome. Ela havia sumido desaparecido na poeira dos anos, e acabara
por cair no esquecimento. O que estaria pretendendo, então? Ele a
encarou com ar perscrutador e indagou:

— O que quer? Vingar-se de alguém?

Ela escancarou a boca num riso diabólico e respondeu:

— Vejo que é um rapaz esperto.
— Não respondeu minha pergunta.
— Está bem. Sim. Quero vingar-me de alguém. Quero vingar-me
de Tonha.
— E por que acha que eu a ajudaria? Afinal, Tonha foi minha
ama-de-leite, e até que gosto dela...
— Não seja fingido. Sei que você não gosta de negros.
— Mas Tonha é diferente. Foi quem nos criou.
— Você é quem sabe. Mas pense bem. Pense no que é mais
importante para você: defender Tonha ou conquistar Júlia?

Intimamente, Rodolfo sabia que o mais importante para ele era
destruir a felicidade do irmão e respondeu sem hesitar:

— Júlia.
— Pois muito bem. Deixe-me ajudá-lo. Em troca, só lhe peço que
me entregue à negra.
— O que fará com ela?

Sem nem pestanejar, Constância retrucou, a voz vibrando de ódio:

— Vou matá-la. Vou fazer o que deveria ter feito há muito
tempo.

Rodolfo empalideceu. Tonha sempre fora uma boa ama-seca, e ele
bem que se afeiçoara a ela, apesar de seu desprezo pelos negros.
Ele não desejava vê-la morta, mas se a proposta da prima valesse à
pena, ela que o perdoasse, mas consideraria justa a troca. Suspirou
fundo e indagou:

— E qual seria sua oferta?
— Muito simples. Em dia e hora combinados, quando todos
estiverem dormindo, você entra sorrateiramente no quarto de
Júlia, vestido com as roupas de seu irmão. Procure agir feito
ele, com seus gestos, sua voz.
— E daí?
— Aproxime-se de seu leito. Deite-se ao lado dela, seja gentil.
— Está louca? Júlia saberá que não é Fausto e, ou me repelirá,
ou fará um escândalo.
— Não, se você agir direito. Não a force a nada. Limite-se a
fazer o que ela permitir. Você e Fausto são gêmeos. No
escuro, será difícil distingui-los. Beije-a, acaricie-a, sopre-lhe
palavras de amor. Diga-lhe que a ama e que está louco para
tê-la. Mas não a force. Ao contrário, diga que, apesar de seu
amor, não se importa de esperar. Mas diga isso ao mesmo
tempo em que a beija. Se ela ceder, ótimo. Consume o ato.
Se não, não insista. Diga que compreende, beije-a
profundamente e saia.
— E depois?
— Deixe o resto por minha conta. Na manhã seguinte, saberei
agir, e bem rápido, antes que Júlia e Fausto tenham tempo de
se falar.

Rodolfo ergueu as sobrancelhas e replicou:

— Será que dará certo? Ela vai desmentir. E se Fausto acreditar
nela?
— Duvido. Pelo que pude observar, seu irmão é muito ciumento
e já está meio desconfiado. E depois, não se engane meu
bem. Conheço os homens e sei muito bem do que são capazes
em nome do ciúme e da traição.

Constância alisou a cicatriz, lembrando-se do marinheiro que, num
acesso de ciúme, quase a matara. Rodolfo, por sua vez, pôs-se a
pensar. Talvez ela tivesse razão, e aquela fosse à oportunidade que
vinha esperando havia tanto tempo. Havia muito vinha instigando o
ciúme e a desconfiança do irmão, e não seria difícil incutir-lhe na
mente a idéia de que Júlia o estava traindo. Ainda mais se pudesse
contar com as oportunas e desinteressadas observações de
Constância que, aparentemente, não teria motivo algum para fazer
intrigas. E depois, ele e Fausto não eram iguais? Júlia não poderia
mesmo diferenciá-los. Pensando em tudo isso, Rodolfo prosseguiu:

— O que acontecerá então?
— O resto é com você. Talvez Júlia fique com raiva e nunca mais
queira vê-lo. Talvez se sinta envergonhada e o aceite, para
encobrir sua vergonha. Não sei. E você, faça como quiser.
Poderá escolher.

Rodolfo silenciou. Depois que conseguisse o que queria não se
interessaria mais por Júlia e abandoná-la-ia também. Ela só serviria
a seus propósitos de destruir o irmão. O que lhe aconteceria depois
era problema dela. Que voltasse para São Paulo. Isso pouco lhe
importava.

— E quanto a você? — tornou. — O que devo, exatamente, fazer
para pagar esse favor?
— Só o que quero é a oportunidade de cravar um punhal no
coração de Tonha. Arranje-me uma emboscada, um momento
a sós com ela, e eu a matarei em silêncio. Ninguém saberá
que fui eu.

Rodolfo assentiu. Apesar de sentir pena de Tonha, aquilo ainda
serviria para desgostar o irmão ainda mais. Sabia o quanto ele
gostava da escrava, e sua morte seria para ele motivo de grande
pesar. Olhando para a prima, Rodolfo sentiu uma grande admiração
por ela. Era uma mulher extraordinária e, não fosse à diferença de
idade, muito gostaria de tê-la por amante. Fariam grandes coisas
juntos!

— Agora vá — ordenou Constância. — Volte para casa e aguarde.
Quando a hora chegar, eu o avisarei.

Rodolfo levantou-se, tomou a mão da prima e beijou-a suavemente.
Em seguida, voltou para casa sorrindo. Estava certo de que a
felicidade do irmão tinha os dias contados. E a sua... Bem, estava
por começar.

CAPÍTULO 17

Frei Ângelo, sentado no jardim em companhia de Sara, observava-a
com estudada atenção. Apesar de tudo, ela era uma menina muito
estranha, muito triste e fechada, e somente depois de muitas
tentativas foi que ele conseguiu que ela se abrisse com ele. Após
alguns instantes, Laurinda apareceu, trazendo na mão o chá que frei
Ângelo lhe preparara com algumas ervas medicinais. Ela sorveu o
líquido calmamente e sentiu-se melhor. Encarou o frei e perguntou:

— Por que é tão bom comigo?
— Porque quero que fique boa.
— Não sei mais se acredito nisso.
— Sara, é muito importante não desistir. Se você desistir da vida,
a morte tomará conta de você. Não troque pela morte uma
vida que mal começou.

Sara desatou a chorar e frei Ângelo, gentilmente segurando-lhe as
mãos, retrucou com voz doce:

— Chore criança. Chorar nos ajuda a ser mais humanos.
— Não entendo o que diz.

Frei Ângelo tomou-lhe novamente as mãozinhas finas e disse:
— Gostaria de lhe fazer uma pergunta.
— Que pergunta?
— Você é feliz?

Ela o encarou com ar de dúvida e respondeu indecisa:

— Não sei.
— Por que não sabe? Por acaso não gosta de sua mãe, de seu
pai? Não tem um noivo que a ama?
— Sim...
— E, mesmo assim, sente-se infeliz?
— Sabe frei Ângelo, eu nunca fui uma menina alegre. Lembro-
me de quando era criança... Sempre me sentia um estorvo na
vida de minha... de meus pais.
— Como assim? Seja sincera, conte-me tudo.
— Bem, é que eu sentia como se os estivesse atrapalhando.
— A ambos? Ou somente a um deles?

Ela levantou para ele os grandes olhos azuis e implorou:

— Promete que não conta nada?
— Pode confiar em minha discrição. Entenda isso como um
segredo de confessionário.
— A minha mãe.
— Interessante. Por quê?
— Não sei definir. Mas desde cedo sentia como se ela não me
quisesse. Como se eu a estivesse atrapalhando de algum jeito.
E acabava me sentindo culpada, porque minha mãe, ao
contrário dos meus sentimentos, sempre se desvelou para me
agradar. Tenho certeza de seu amor por mim.
— E ainda assim sente-se um estorvo em sua vida?
— Sim. E sinto-me culpada por isso. Ela não merece. Por causa
disso, fui me tornando cada vez mais arredia. Sempre tive
poucos amigos, porque sempre achei que não gostavam de
mim. Com o tempo, comecei a me isolar de todos, e não fosse
pela companhia de Júlia e Dário, de quem sempre fui amiga,
creio que não teria mesmo mais ninguém.
— Mas por que isso Sara? Sua mãe parece muito preocupada
com você. Não acha estranho que tenha essa sensação?
— Sim, acho muito estranho e até quero lutar contra isso. Mas
não consigo. Embora ela tudo faça por mim, deixa sempre a
impressão de que só faz por obrigação, de que não gosta de
mim. Mas eu sei que gosta. Pensando nisso, a consciência me
dói e fico confusa.
— E seu pai?
— Meu pai é diferente. Sinto nele um estranho. Também não sei
definir.
— Mas não é o mesmo que sente com relação à sua mãe?
— Não. Como disse, sinto que minha mãe me rejeita. É um
sentimento, de alguma forma. Com relação a meu pai, não. É
como se ele fosse um estranho em minha vida. Gosto dele,
mas é como se entre nós só existisse um vazio. Como se ele
não fosse meu pai. Cheguei mesmo a pensar se não seria.
— No entanto, a semelhança entre vocês é muito grande.
— Eu sei. E é só por isso que hoje não desconfio mais de que não
seja sua filha.
— E quanto a Júlia e Dário?
— Gosto muito deles. Sinto que são pessoas amigas. E Marta
também. E sabe o que é mais estranho? Quando conheci
Marta, logo gostei dela, e era como se já a conhecesse
também.
— O que a leva a pensar assim?

Ela abaixou a voz e disse em tom de confidencia:
— Já sonhei com ela. Diversas vezes.
— Verdade?

Frei Ângelo estava profundamente impressionado. Também sonhara
com Sara no dia em que chegara à fazenda, mas fora apenas um
sonho isolado, sem continuação. Contudo, algo lhe dizia que Sara
guardava dentro de si muitos segredos, segredos que tinha medo de
partilhar com alguém. Cada vez mais interessado, continuou:

— Que tipo de sonhos você tem?
— São estranhos. Sonho com as pessoas, mas com outros rostos,
com outras roupas, em outros lugares. São diferentes, mas
posso reconhecer cada um naqueles rostos estranhos.

Aquilo estava ficando cada vez mais interessante. Aquela menina,
além de comprovar sua teoria a respeito da causa das
enfermidades, também o auxiliaria a provar que havia outras vidas,
e que essa não seria a primeira vez que estariam no mundo. Frei
Ângelo estava certo de que ela se lembrava de uma outra vida, uma
vida na quais todos os personagens daquela vida atual estavam
interligados. Mal contendo a ansiedade e a euforia, continuou
investigando:

— Vamos, Sara, conte-me esses sonhos.
— Não vai me achar louca?
— Sara você não é louca. Quero que entenda que esses sonhos,
ao que parece, são memórias de outras vidas, que muito nos
podem ajudar a solucionar seus problemas de hoje.
— Não sei se acredito nisso.
— Então, como explica o fato de que já sonhou com Marta, antes
mesmo de conhecê-la?
— Não sei.
— Pois eu sei. Você, de alguma forma, consegue estabelecer um
contato com o mundo invisível e tem visões de fatos que se
passou com você há muitos anos.
— Mundo invisível?
— Sim, o mundo dos espíritos. É como se eles nos auxiliassem a
ver e compreender certas coisas que aconteceram muito
antes dessa vida atual.
— Não sei frei Ângelo. Isso tudo é muito novo para mim.
— Por favor, acredite em mim. Você verá que tenho razão. E
agora vamos, conte-me seus sonhos.
— São muitos...
— Conte-me um.
— Está bem. Da primeira vez que sonhei, vi-me como uma
menina, correndo por um campo verdejante, e uma moça
seguia ao meu lado. Mais tarde, vi que era Marta, e isso me
assustou.

Nesse sonho, minha mãe me deixava para estar com um homem,
não sei quem é não consegui vê-lo, mas parecia meu pai.

À medida que Sara falava, frei Ângelo estremecia. Tivera o mesmo
sonho e sabia que aquilo não podia ser coincidência.

— Prossiga.
— Bem, quando minha mãe chegou perto desse homem, eu corri
para ela, pedindo-lhe colo, mas ela me ignorou, empurrando-
me para o lado. Depois, Marta chegou e me segurou.
— E o que mais?
— Mais nada. O sonho se misturou e tornou-se confuso.
— Pode-me dizer quando foi que esses sonhos começaram?
— Sim. Logo que chegamos aqui.

Frei Ângelo estava satisfeito. Sabia que estava no caminho certo e
tinha certeza de que, se o tempo não estivesse contra ele, ajudaria
Sara a encontrar a cura para sua doença, desvendando, ainda,
alguns dos mistérios que velavam a natureza da morte. No entanto,
sabia que só aquilo não bastava. Aliado ao conhecimento das vidas
passadas, era necessário uma mudança de postura.

Sara tinha que se reaproximar das pessoas, não física, mas
espiritualmente. Frei Ângelo sabia que a solidão era um estado de
espírito e que, muitas vezes, embora rodeada de várias pessoas,
podia-se ter a sensação do isolamento. Por isso era importante que
Sara começasse a ver nos pais e nos amigos pessoas capazes de
completá-la intimamente, com ela trocando experiências, sensações
e sentimentos. Sara precisava ligar-se às pessoas, envolver-se com
elas, buscar sua companhia só pelo fato de poder partilhar o mesmo
espaço emocional.

Deu-lhe uma tapinha no joelho e continuou:

— Convidei Marta para vir aqui. Ela me ajudará.
— Como?
— Marta possui o estranho e maravilhoso dom de curar. Seus
fluidos benéficos serão de grande valia no reequilíbrio e na
reestruturação das células enfermas.

Pouco depois, Marta chegou em companhia de Júlia e Dário. Após os
cumprimentos usuais, Marta levou Sara para dentro, para ministrar-
lhe a troca energética. Depois que elas se afastaram, frei Ângelo
disse a Dário:

— Meu filho, como sabe sua ajuda também é de grande valia.
Sara o ama muito, e você deve estar sempre a seu lado, não
propriamente com o corpo, mas com a alma e o coração.
Sara deve sentir sua presença como alguém especial, em
quem pode confiar e partilhar sua vida. Quando estiver com
ela, esteja por inteiro. Mostre-lhe que seu pensamento está
voltado para ela, não como se não existisse nada no mundo
além dela, mas como se ela fosse uma parte importante do
universo. É muito importante que ela se sinta parte de um
todo, e você, mais do que ninguém, pode ajudá-la a integrar-
se a ele.
— Creia-me — retrucou o rapaz, — farei o possível e o impossível
para ver Sara bem e feliz.
— Ótimo. Assim é que se fala. Conto com a ajuda de todos.
— O que, mais especificamente, devemos fazer? — quis saber
Júlia.
— Bom, para começar, convidem Sara para sair. É importante
que ela se identifique com um grupo.
— Podemos organizar passeios e piqueniques — sugeriu Dário.
— Isso seria excelente. Coloquem-na em companhia de gente
jovem e saudável. Ajudem-na a sentir-se querida e amada.

Pouco depois, os jovens se reuniam para uma prosa. Rebeca
mandou servir limonadas, e o assunto do dia era o passeio que
fariam à cascata da Esmeralda no dia seguinte. Apesar de um pouco
distante, era um lugar lindo e maravilhoso.

Quando Júlia e Marta voltaram para a fazenda São Jerônimo, foram
ter com Camila e Fausto. Era hora de formarem um grupo, e seria
divertido passearem juntos. Fausto ficou encantado com a idéia e
logo concordou em ajudar. O problema seria Rodolfo. Ninguém
julgava que ele já conhecesse a procedência da menina, e tinham
medo de contar-lhe a verdade.

— Acho melhor não dizermos nada — opinou Dário, preocupado.
— Não é necessário que ele saiba.
— Não seja tolo, Dário — objetou Fausto. — Não precisa ser
muito esperto para concluir, pelos nomes, que são pessoas de
origem judaica.
— Isso não quer dizer nada — considerou Camila. — São todos os
nomes bíblicos. Qualquer um poderia adotá-los.
— E o sobrenome? Zylberberg é muito revelador.
— Mas ele não precisa saber — sugeriu Júlia.
— E se ele perguntar?
— Ora, não sei — respondeu Dário, começando a ficar mal-
humorado. — Invente qualquer coisa.
— Não será melhor contarmos logo a verdade? — ponderou
Marta. — Mais cedo ou mais tarde ele vai acabar descobrindo
mesmo. E depois, o que poderá fazer? Contar a dona Palmira?
Expulsá-los daqui?
— Marta, você não conhece Rodolfo tão bem quanto eu. Ele é
igual a minha mãe. Odeia os negros, os protestantes, os
árabes e os judeus. Não sei o que será capaz de fazer, mas
sei que não será boa coisa.
— Posso dar uma sugestão? — indagou Camila. — Sei que não é
o mais correto, mas, em vista das circunstâncias, criem um
sobrenome fictício, ao menos por um tempo. Enquanto isso,
Marta o vai preparando aos pouquinhos, ao mesmo tempo em
que o contato com os Zylberberg poderá mostrar-lhe o quanto
eles são maravilhosos. Depois que se afeiçoar a eles, tenho
certeza de que os aceitará e acabará compreendendo nossos
motivos.
— É uma boa idéia — concordou Dário. — No entanto, a senhora
mesma disse que seu Ezequiel não havia gostado nada dessa
história de mentir.
— Mas acabaram concordando. Não se preocupem. Deixem-nos
por minha conta.

Acertada a história, Marta partiu em busca de Rodolfo, fazendo-lhe o
convite para o passeio, e ele aceitou sem titubear. Não perguntara
nada, e embora todos estranhassem sua falta de curiosidade,
acharam melhor silenciar. No dia seguinte, bem cedinho, partiram
de charrete para a cascata da Esmeralda. Sara foi apresentada a
Rodolfo e, apesar de não simpatizar com ele, não disse nada. Estava
feliz ao lado de Dário, e só ele já lhe bastava.

O passeio transcorreu maravilhoso. O lugar era lindo e paradisíaco,
e as moças chegaram a se banhar no lago, longe das vistas dos
rapazes. À tardinha retornaram, e Júlia ficou satisfeita. Sara,
deliciada, ria-se, abraçada a Dário. O passeio e os amigos fizeram-
lhe muito bem, e ela pouco tossira durante o dia todo. Já começava
a crer que se curaria.

CAPÍTULO 18

Aproximava-se o dia do aniversário de Palmira, e a capela já estava
praticamente pronta para a inauguração. Fausto, em companhia de
Júlia, acompanhava os últimos retoques, opinando sobre detalhes da
pintura, aqui e ali. Estava entretido nessa tarefa quando Constância
aproximou-se e elogiou:

— Está mesmo ficando uma beleza! È uma capela digna de uma
rainha!
— Obrigado, prima — agradeceu ele, todo orgulhoso. — Mamãe
merece.
— Fausto tem muito bom gosto — disse Júlia. — Foi ele mesmo
quem escolheu as cores e as gravuras.
— Está muito bonito. Parabéns!
— Não se deixe impressionar pelo que Júlia diz. Ela tem a mania
de enaltecer tudo o que faço.
— Ora, seu ingrato — protestou Júlia, num gracejo.
— Deixe estar, minha menina — objetou Constância. — Os
homens são assim mesmo. Todos uns mal-agradecidos.
— Mas é verdade — tornou Fausto. — Tudo o que toco lhe
parece fabuloso.
— As jovens apaixonadas são assim mesmo... Bem, agora vou
deixá-los a sós. Imagino que devam ter muito que fazer.

Desde esse dia, Constância não perdia a oportunidade de elogiar a
dedicação de Júlia, ressaltando o quanto era apaixonada por Fausto.

— Que sorte você tem — disse certa feita. — Fisgou-a antes de
seu irmão.
— É mesmo muita sorte — concordou Fausto, com desagrado.
— Vocês são tão parecidos... Não sei como Júlia os distingue.
— Reconheço Fausto por sua maneira de ser — interrompeu Júlia
—, pelos olhos cristalinos e sinceros, por sua voz, que é
sempre tão amorosa...
— Você é mesmo um homem de sorte. Mas, cuidado; qualquer
descuido e será bem fácil para Júlia trocá-lo por Rodolfo. E
sem que você nem se dê conta.
— Isso jamais acontecerá! — contestou Júlia, indignada. — Amo
Fausto e somente a ele. Jamais o trocaria por quem quer que
fosse. Ainda mais por seu irmão.
— Ora, ora, minha querida, por que ficou tão zangada? Não quis
ofendê-la e não falei por mal.

Júlia estava furiosa. Sem responder, levantou-se da poltrona onde
estava sentada e saiu da sala, murmurando um "até logo" quase
inaudível. Fausto levantou-se para ir atrás dela, e Constância,
fingindo falar para si mesmo, disse baixinho:

— Ora, vejam só. Parece até que se doeu porque tenho razão.
— O que disse? — perguntou Fausto, perplexo, estacando
subitamente.
— Quem, eu? Nada, não, Fausto. Pensava aqui com meus
botões.

Não disse mais nada. Passados alguns minutos, Fausto encontrou
Júlia na cozinha, bebendo água, o semblante transtornado.

— Por que se zangou tanto? — perguntou desconfiado. —
Constância não disse por mal.
— Não sei, Fausto. Mas algo em seu tom de voz me soou falso.
Aquela conversa parecia um discurso decorado e
encomendado. Como se nos quisesse envenenar.
— Minha querida, você está imaginando coisas. Constância não
tem motivo algum para isso.
— Pode até ser que você tenha razão. Mas a fala dela não me
convenceu.
— Está bem, Júlia, deixemos isso pra lá.
— Sim, Fausto, esqueçamos sua prima. Afinal, são apenas
observações maldosas e infundadas.

Fausto puxou-a para si e beijou-a delicadamente, pousando, em
seguida, sua cabeça em seu peito. Embora não dissesse mais nada e
preferisse até não pensar mais no assunto, não conseguiu mais tirar
as palavras de Constância da cabeça. Ele não queria, mas a dúvida
o assaltava cada vez mais. Será que a prima tinha razão? Será que
Júlia, inconscientemente, pendia para Rodolfo e não tinha coragem
de lhe contar a verdade? Ele balançou a cabeça e voltou sua
atenção para ela. Não. Ela o amava. Tinha certeza. Queria ter.
Conforme ficara acertado, todos os domingos os jovens
aproveitariam o dia para passear juntos, e naquele domingo não
seria diferente. Fazia um bonito dia de Sol, e Rodolfo, que acordara
cedo e ficara à espreita, à espera que Júlia descesse, encontrou-a
sentada na varanda, apreciando os passarinhos que se banhavam
ao Sol.

— Já de pé, logo tão cedo? — indagou, sorrindo polidamente.
— Ah! Bom dia... Rodolfo — respondeu ela com um pouco de
dúvida.
— É que está fazendo tanto calor... Não pude mais dormir.
— É verdade. Também eu não pude mais ficar na cama. Dias
como este é que são bons para passear.
— Tem razão. Está mesmo um dia muito bonito. Hoje iremos até
o riacho fazer um piquenique. Acho até que já vou chamar
Fausto.
— Ele ainda não acordou.
— Pois então, vou acordá-lo.
— Por que primeiro não vamos buscar Marta? Com certeza já se
levantou. Na volta, irei ao quarto de meu irmão e o acordarei.
— Hum... Está bem. Vamos. Deixemos que o preguiçoso durma
um pouco mais.

Quando Fausto desceu para o desjejum, toda a família já estava
reunida à mesa, com exceção de Rodolfo e Júlia. Estranhando a
ausência de ambos, indagou:

— Onde estão Rodolfo e Júlia?
— Creio que saíram bem cedo — disse Constância, com certa
malícia na voz.
— Onde foram?
— Não sei. Saíram sozinhos por aí...

Fausto silenciou sombrio. Não queria deixar transparecer, mas
estava furioso. Como Júlia se atrevia a sair de manhã, em
companhia do irmão, sem nem ao menos falar com ele? Constância
ria intimamente. Estava claro que Fausto roia-se de ciúme de
Rodolfo. Terminada a refeição matinal, todos se levantaram, e
Fausto saiu apressado. Já na varanda, avistou Terêncio, que
chegava pelo outro lado da casa. Correu ao seu encontro e, fingindo
naturalidade, disse:

— Bom dia, Terêncio.
— Bom dia.
— Por acaso você viu Júlia?
— Vi sim. Estava agorinha mesmo lá atrás, no pomar, em
companhia de seu irmão.

Ele empalideceu. O que estariam os dois fazendo sozinhos no
pomar? Não era o lugar mais apropriado para sua noiva estar em
companhia de Rodolfo. Sentindo a raiva crescer dentro do peito,
Fausto partiu para lá. Ao longe, viu-os colhendo limões, e estacou
estarrecido. Rodolfo, na tentativa de apanhar as frutas, tocava as
mãos de Júlia, e ela sorria, apanhando os limões de suas mãos e
deitando-os numa enorme cesta de palha. Aquilo o enfureceu. Rosto
ardendo em fogo saiu em disparada, alcançando-os no exato
instante em que a cesta tombava ao chão.

— Fausto! — exclamou Júlia. — Que bom que já acordou. Fausto
olhou-a com raiva e retrucou:
— O que estão fazendo?
— Ora essa, colhendo limões — apressou-se Rodolfo em dizer. —
Marta vai nos preparar uma torta.
— Marta?
— Sim, Marta — concordou Júlia. — Viemos chamá-la para um
piquenique, e Rodolfo sugeriu que ela fizesse uma torta de
limão para você. Disse que é a sua preferida. Ainda é cedo, e
há bastante tempo para assá-la.
— Por que não me chamaram?

Os olhos de Fausto soltavam chispas de fogo, mas Rodolfo fingiu não
perceber. Tentando um tom amoroso e acolhedor, Júlia retrucou:

— Você estava dormindo, e não quisemos acordá-lo logo.
Preferimos esperar que tudo esteja pronto.
— Mas quanta gentileza de sua parte! Deixar-me dormir
enquanto se diverte com meu irmão!

Júlia, percebendo o tom de ironia em sua voz, revidou magoada:

— Por que fala assim comigo? Não fiz nada.
— Fausto, meu irmão, o que é isso? De novo com esse ciúme?
Não seja tolo.

Fausto já ia retrucar quando a voz de Marta se fez ouvir atrás deles.

— Então, como é? Esses limões vêm ou não? Assim não haverá
tempo de assar a torta, e nos atrasaremos para pegar Sara.

Ela se aproximou e, vendo os limões caídos ao chão, começou a
catá-los, quando Fausto declarou:

— Não se preocupem comigo, não quero torta alguma. E podem
ir sem mim.
— Mas Fausto sem você não tem graça nenhuma — protestou
Júlia.
— Não é o que parece.
— Posso saber o que é que está acontecendo aqui? — interveio
Marta.

Fausto encarou-a e respondeu entre dentes:

— Pergunte a seu noivo. Ele sabe melhor do que ninguém.

Sem esperar resposta, rodou nos calcanhares e saiu desabalado,
sumindo por detrás das árvores. Marta, ainda sem entender,
segurava os limões, perguntando indignada:

— Mas o que foi que deu nele?
— Nada, Marta, não houve nada — respondeu Rodolfo, com um
sorriso triunfante nos lábios. — Creio que Fausto não sabe
controlar seus impulsos.
— Ainda vamos fazer o piquenique?
— É claro que sim. Não foi o que combinamos? Passeios aos
domingos? E depois, Sara nos aguarda, não é?
— E a torta de limão? Era para Fausto, mas se ele não quer ir...
— Ora, deixe a torta pra lá. Prepare apenas alguns sanduíches e
vamos embora. Dário já deve estar à nossa procura...
— Perdão, Rodolfo, mas vão sem mim. De repente, perdi toda a
vontade de ir.
— Ora, Júlia, o que é isso? Não vai deixar que o mau humor de
Fausto estrague nossos planos, não é mesmo?
— Não é isso. É que perdi mesmo a vontade de ir. Sem Fausto,
nenhum passeio, por melhor que seja, tem graça. Se ele não
vai, eu também não vou.
— Mas Júlia, nós já combinamos.
— Sinto, mas não vou. Vão vocês e divirtam-se.
— Sem você eu não vou — protestou Rodolfo, amuado.

Marta estacou. Ela o amava muito, e tudo com ele era divertido.
Estar junto dele era tudo o que queria, e ela não podia entender por
que ele precisava tanto da presença de Júlia.
— Por que não? — perguntou perplexa. — Por acaso minha
companhia não lhe basta?
— Não é isso — respondeu confuso. — É que talvez Sara não se
sinta à vontade sem a presença de Júlia.
— Isso é tolice — censurou Júlia. — Sara tem Dário. E você tem
Marta...
— Júlia tem razão. Mas se não quiser ir, então está bem. Talvez
eu não seja mesmo uma companhia tão interessante.

Marta estava profundamente sentida. Esperava que Rodolfo
apreciasse sua companhia, mas de repente pôde perceber que ele,
o tempo todo, ansiava por estar junto de Júlia. Como fora tola e
ingênua! Estava claro que Rodolfo só a cortejava para disfarçar suas
reais intenções. Era em Júlia que ele estava interessado, e Fausto já
percebera isso. Apenas Júlia não percebia. Ou será que fingia não
perceber?

Olhando para a amiga, Marta teve a certeza de que Júlia não estava
interessada em Rodolfo. Só tinha olhos para Fausto, e Rodolfo nada
significava para ela. Procurando disfarçar a dor que sentia naquele
momento, com os lábios trêmulos, acrescentou:

— Bem, acho melhor deixarmos nosso piquenique para outro dia.
Vou avisar Dário que hoje não iremos.

Com um meio sorriso, Júlia foi embora. Não tinha mais vontade de
fazer nada. Se Fausto estava aborrecido com ela, ela iria esclarecer
aquela situação de uma vez por todas. É claro que ele sentira ciúme
de Rodolfo. Mas aquilo era uma tolice. Rodolfo era apenas seu
amigo, e ela faria com que ele compreendesse isso de uma vez por
todas. Amava-o e a mais ninguém, e provaria seu amor.

Quando Fausto deixou Júlia, partiu em desabalada carreira para a
plantação. Não queria ver ninguém e pensou que ninguém se
lembraria de procurá-lo no meio do cafezal, em pleno domingo.
Quando Júlia chegou, procurando por ele, ninguém sabia onde
estava. Ela ficou durante muito tempo esperando, mas nada. Fausto
parecia haver desaparecido. Cansada de esperar, Júlia resolveu sair
à sua procura. Mandou que lhe preparasse o cavalo e se foi. Depois
de cerca de uma hora de cavalgada, finalmente, resolveu procurá-lo
na plantação. Era o único lugar em que ainda não tinha ido, e talvez
ele se houvesse refugiado ali. Com efeito, na entrada do cafezal,
Júlia avistou o cavalo de Fausto amarrado a uma árvore, mas nem
sinal de seu amado. Disposta a encontrá-lo, Júlia apeou e começou
a caminhar por entre os pés de café. Foi andando pelas trilhas que
se formavam entre uma fileira de cafezal e outra, até que
finalmente o viu. Ele estava sentado do outro lado da plantação,
recostado à cerca que demarcava a área do plantio, joelho dobrado,
cabeça afundada nas mãos. Estava tão quieto que parecia dormir.
Júlia chegou mansamente, ajoelhou-se ao seu lado e, tocando-lhe
gentilmente as mãos, declarou:

— Fausto, por que não acredita quando digo que o amo?

Ele ergueu a cabeça, assustado. Estava tão absorto em seus
pensamentos que sequer escutara os passos de Júlia se
aproximando. Vendo-a ali parada, olhos serenos, brilhantes,
transparentes de amor, ele se comoveu. Não era possível que
aquela mulher, cujo olhar cristalino derramava sobre ele fulgores de
amor, estivesse mentindo. Não. Ela o amava. Tinha que amá-lo. Por
que outra razão estaria ali, ajoelhada a seu lado, enfrentando seu
próprio orgulho só para convencê-lo? Sentindo o coração
descompassado, Fausto puxou-a para si e a beijou, e aquele era o
beijo de uma mulher apaixonada. Depois, gentilmente afastando-a,
acariciou suas faces, enxugou-lhe as lágrimas e disse com emoção:

— Júlia, minha querida, perdoe-me.

Ela o abraçou forte e desabafou, sentindo na voz um misto de medo
e desespero:

— Por que, Fausto, por que duvida de mim?
— Não sei... Não duvido de você. Mas é que quando a vejo com
Rodolfo, não sei, o sangue me ferve, morro de ciúmes.
— Já não lhe disse que isso é bobagem?
— Será mesmo, Júlia?
— Não acredita em mim?
— Em você, sim, mas quanto a Rodolfo, tenho cá minhas
dúvidas. Ele sempre arranja um jeito de se aproximar de
você. E muito solícito, está sempre disponível a ajudá-la. E faz
com que tudo pareça casual. Na verdade, não faz nada que
possa, realmente, comprometê-lo, mas age de forma
sorrateira, utilizando-se de palavras e gestos estudados,
sempre dando a impressão de que é um amigo
desinteressado, e eu é que sou o tolo ciumento, desconfiado
do irmão que só quer ser gentil.

Júlia balançou a cabeça em sinal de compreensão e acrescentou: —
Sei Fausto, no começo eu até pensei que você pudesse ter razão.
Mas depois, vendo o modo como Rodolfo me trata, percebi que está
errado. Ele é muito solícito sim, e às vezes até um pouco artificial.
Mas creio que é o jeito dele. É porque tem medo do que você possa
pensar.

— Acha mesmo?
— Acho sim. Ele teve diversas oportunidades para me abordar,
mas nunca o fez. Não nego que ele possa até sentir certa
atração por mim, mas ele está se esforçando. Caso contrário,
já teria tentado alguma coisa. Como disse não lhe faltaram
ocasiões.
— Não sei Júlia. Não sei explicar, mas não confio nele.
— Pois confie em mim. Quantas vezes têm que repetir que o
amo?

Ela o beijou suavemente, e ele respondeu:

— Tem razão, Júlia. Sou mesmo um tolo.
— Um tolo apaixonado.

Ele suspirou e prosseguiu:

— Agora vamos voltar. Não quero que Rodolfo pense que estou
zangado com ele ou que dou tanta importância ao que ele faz.

Ele se levantou, puxando-a pelas mãos e, antes que saísse, ela
disse:

— Espere um instante. Quero que me prometa uma coisa. — O
quê?
— Prometa-me que nunca mais vai desconfiar de mim.
— Eu prometo.
— E que também não brigará comigo, haja o que houver.
— Prometo.
— E, acima de tudo, prometa nunca mais duvidar de meu amor.
— Prometo.

Beijaram-se apaixonadamente e voltaram para a fazenda. Quando
chegaram, Rodolfo os esperava ansiosamente. Eles desmontaram e
seguiram em direção à casa grande de mãos dadas. Quando se
aproximaram mais, Rodolfo, ocultando o despeito, interpelou-os:

— Vocês estão bem?
— Melhor impossível — respondeu Fausto. — Sabe Rodolfo, quero
que perdoe a minha atitude de hoje cedo. Foi tolice de minha
parte. Não há motivo algum para sentir ciúmes de você.
— Sim... É isso mesmo...
— Sei que Júlia e você são apenas bons amigos, e agora percebo
que não tenho com o que me preocupar. Ela jamais me
trocaria por você ou por qualquer outro homem.
— Sem dúvida — rosnou entre dentes.

Fausto beijou Júlia suavemente nos lábios, e Rodolfo se afastou,
fuzilando de ódio. Quanto mais os via juntos, mais sentia a
necessidade de separá-los. Era preciso colocar logo seu plano em
ação, ou ele sentia que estouraria.

CAPÍTULO 19

Rodolfo deixou Fausto e Júlia às pressas e correu em direção à
biblioteca, quase esbarrando em Túlio, que ia descendo as escadas.

— Túlio! — esbravejou. — Por que não olha por onde anda?

Túlio não respondeu e já ia seguindo avante, quando Rodolfo o
deteve, entrando com ele na biblioteca.
— O que quer? — indagou Túlio de má vontade.
— Falar com você.
— Não tenho mais nada para falar com você. Já não chega o
quanto me atormenta?
— Quero que saiba que já descobri o segredinho de seus amigos
— ele não disse nada, e Rodolfo prosseguiu: — Zylberberg,
hein? Ezequiel Zylberberg.

Túlio empalideceu e lançou-lhe um olhar frio, perguntando a meia-
voz:

— O que tem isso de mais?
— Ora, não teria nada de mais se não fossem judeus.
— E daí? São apenas pessoas, como todo mundo. E depois, não
devia falar assim. Não ficou amigo deles?
— Isso não vem ao caso. Mas é uma pena que minha mãe não
pense como você, não é mesmo?
— Acho que está valorizando demais a informação que possui.
Não creio que vovó fosse se ocupar de coisas tão pequenas.
— Acha mesmo que são pequenas? Pois deixe que o esclareça.
Não são. Talvez até fossem para qualquer outra pessoa, mas
não para minha mãe. Ela não gosta de negros, nem de
protestantes, nem de judeus. Não gosta de ninguém que não
idolatre Jesus pendurado na cruz. Aliás, para ela, os judeus
são os únicos responsáveis pela morte de Jesus, e ela não lhes
perdoa a imolação do Cordeiro.
— Tudo isso são tolices.
— Tolices que podem levar à expulsão de seus amigos daqui.
Túlio não estava gostando nada daquela conversa. Não sabia
aonde o tio queria chegar, mas sabia que ele deveria estar
planejando alguma coisa sórdida e cruel. Tentando não
demonstrar nenhum receio, procurou sondar:
— Por que está me falando tudo isso?
— Porque preciso de sua ajuda. Se quiser salvar seus
amiguinhos, terá que me ajudar.
— O que o faz pensar que eu o ajudaria? Os Zylberberg são
amigos de minha mãe, não meus. Pouco me importa o que
acontecerá a eles.
— Não creio que você seja tão indiferente quanto quer parecer.
Sei que gosta de sua mãe e de Júlía, e não gostaria de vê-las
sofrer. Isso sem falar na tola paixão de seu irmão por aquela
moça enfermiça. E agora, saia da minha frente. Se não quer
me ajudar, não me atrapalhe. Mas depois, não diga que não
avisei.

Ele já ia empurrando o sobrinho para fora da biblioteca, mas Túlio o
impediu:

— Espere! O que quer que eu faça?

Rodolfo voltou-se para ele e dirigiu-lhe um sorriso diabólico,
murmurando entre dentes:

— Agora estamos começando a nos entender. O que quero de
você é muito simples. Quero que me ajude a separar Júlia de
Fausto.
— Está louco. Não posso fazer isso.
— Ah! Pode sim.
— Não posso, não. E depois, não tenho a menor influência sobre
eles.
— Mas não se trata disso. Pretendo usar outros artifícios.
— Que artifícios?

Rodolfo chegou mais para perto dele e, abaixando a voz, sussurrou:

— Etelvina.
— Etelvina? Por acaso está louco, é? O que tio Fausto e tia Júlia
têm a ver com isso?
— Muita coisa. Imagine se Júlia descobre o que Fausto fez com a
negrinha.
— Mas ele não fez nada.
— Só que ninguém precisa saber disso.
— Não entendo aonde quer chegar. Não estava disposto a
incriminar Trajano?
— É que mudei de idéia, sabe? Resolvi que não me convém que
Trajano tenha matado Etelvina. Para mim, melhor seria que o
assassino fosse outro. Acho que Fausto seria excelente!
— Você enlouqueceu de vez. Não vê que isso é sandice? Que não
dará certo? Ninguém acreditaria.
— Caberá a você convencer a todos.
— Quer me dizer como farei isso?
— Contando-lhes a história, praticamente como aconteceu.
Apenas troque alguns personagens. Diga que, em vez de estar
comigo, você estava com Fausto, e que foi ele quem violentou
e matou a escrava.
— Mas como? E eu? Devo assinar minha confissão de culpa?
— Não seja tolo. Diga que Fausto mandou que você levasse
Trajano à beira do riacho para conversarem, fazerem as
pazes, e que lá encontraram Etelvina. Você, impressionado
com a fatalidade que ocorreu no passado, desistiu da
negrinha, mas seu tio Fausto, movido pelo desejo, tratou de
violentá-la e depois, arrependido, para esconder o que fizera,
resolveu matá-la, para não perder Júlia.
— Ninguém vai acreditar. Tio Fausto não costuma se deitar com
as negras.
— Ah, mas isso foi antes de Júlia. Sua tia é muito casta, sabe? E
não permite que Fausto a toque antes do casamento. Por isso,
ele precisava aliviar o desejo que sentia por ela com outra
pessoa. E só podia ser uma escrava.
— Você é completamente louco. Essa mentira não funcionará.
— Além do mais, há testemunhas...
— Testemunhas? Quem?
— Trajano. Chame o negro e faça com que confirme a história
de que você o levou lá só para conversarem, e que ele viu
Fausto matar a negra, sem que nada pudesse fazer.
— Trajano nunca fará isso.
— Fará se você o ameaçar. Diga-lhe que, se ele cooperar,
salvará a pele do tronco. Caso contrário dará um jeito para
que ele seja acusado e açoitado até a morte.
— Tio Rodolfo, essa é a maior insanidade que já ouvi. Não daria
certo. Tio Fausto se defenderia. Ninguém acreditaria, e você é
quem ficará desacreditado e vencido.
— Não diga isso. Se eu cair, levo-o comigo.

Rodolfo, furioso, virou-lhe as costas e saiu da biblioteca, deixando
Túlio entregue a seus próprios pensamentos. Estava claro que o tio
enlouquecera. Aquela idéia, além de absurda, era totalmente
inverossímil. Ninguém, em sã consciência, acreditaria naquela
versão. Contudo, Túlio tinha que concordar que o testemunho de
Trajano em muito influenciaria naquela infâmia. A mãe e a tia
tinham total confiança no negro, e se ele confirmasse aquela versão
da história, as duas não duvidariam, e todas as evidências
apontariam mesmo para Fausto.

Túlio estava com medo. Se concordasse em levar aquele plano
adiante, poderia ser responsável pela infelicidade de Júlia e de
Fausto. Do contrário, se recusasse talvez o mundo inteiro viesse
sobre sua cabeça, e ele fosse obrigado a conviver com o repúdio e
a indiferença da família. Quanto mais pensava, mais Túlio sentia que
deveria fazer alguma coisa para evitar uma tragédia. Sentia como
se a solução daquele caso estivesse em suas mãos. Precisava deter
Rodolfo, mas, o que fazer? Em seu íntimo, sabia que só precisava
ter coragem. Errara, sim, e muito. Mas não havia mais como apagar
seu erro, e viver para o resto da vida carregando aquela culpa
parecia-lhe um fardo pesado demais para suportar. Túlio sentia que
chegava a uma encruzilhada em sua vida. Precisava decidir-se: ou
falava a verdade e suportava o peso das conseqüências de seus
atos, ou mentia e tentava resguardar sua imagem, já tão
comprometida por um erro do passado. Pensando em tudo isso,
tomou sua decisão. Salvar-se-ia.

Rodolfo, por sua vez, parecia fora de si. Pretendia não apenas
acabar com a felicidade do irmão, mas também desmoralizá-lo e
aniquilá-lo. O plano de Constância, por si só, já seria suficiente para
acabar com ele. Mas Rodolfo queria mais. Queria destruí-lo
totalmente. A história de Etelvina faria com que Júlia, Camila e Dário
vissem nele um monstro, e ele teria sua imagem comprometida por
aquele incidente. E ainda havia os Zylberberg. Fausto sabia, desde o
princípio, que eles eram judeus e, ainda assim, arrendara-lhes a
fazenda, ocultando da mãe à verdade sobre sua origem. Mas logo
que ela descobrisse que Fausto silenciara só para agradar Júlia,
voltar-se-ia contra ele também. Aí sua vingança estaria completa.
Além de infeliz, desmoralizado e repudiado por todos, Fausto
passaria por verdadeiro cafajeste, mentiroso e ardiloso, que
enganara Júlia, a mãe e o resto da família só para conseguir seus
objetivos. O que mais poderia desejar?

Já se passara muito tempo desde o fatídico episódio que culminara
com a morte de Etelvina, e desde esse dia, Trajano nunca mais fora
visto na fazenda São Jerônimo. Palmira, do alto de sua soberba, não
esquecia que o escravo se atrevera a encostar a mão em seu neto e
nunca mais permitiu que ele se aproximasse da fazenda. Se Camila
queria protegê-lo, que o fizesse longe dali. Trajano até que estava
feliz na fazenda Ouro Velho. Não havia outros escravos vivendo ali,
à exceção de Laurinda e Juarez, e ele não precisava ficar trancado
na senzala. Ajudava nos serviços domésticos, fazia compras,
cortava lenha. E à noite, quando todos iam dormir, recolhia-se ao
quarto contíguo ao de Juarez e Laurinda e, muitas vezes, chorava
sozinho a perda da doce Etelvina, a quem poderia ter amado e
tomado por esposa.

Em seu íntimo, contudo, lamentava a separação de seus senhores.
Gostava de Camila, de Júlia e dos meninos. Apesar de vê-los
constantemente, pois que sempre apareciam em visita a Sara, era
diferente. Era obrigado a viver separado deles, e era como se
houvesse sido arrancado do seio de sua família. Ainda sentia imensa
mágoa de Túlio. Sempre fora seu amigo, encobrira suas peraltices
da infância, justificara suas loucuras de juventude. E tudo isso para
quê? Para terminar rejeitado pelo rapaz, odiado como se fosse seu
inimigo. Apesar de tudo, Trajano continuava a gostar de Túlio. Sabia
que o moço não era propriamente mau, e muito lhe doía perceber
que enveredara por um caminho de perdição.

Naquele dia, em especial, Trajano não conseguia parar de pensar
em Túlio. Chegara a sonhar com ele, e em seu sonho, o rapaz
pedia-lhe perdão e ajuda. Ele não compreendia aquele sonho, mas
temia que alguma coisa estivesse errada com o sinhozinho. Desde
manhã não conseguia tirar Túlio da cabeça, e qual não fora seu
espanto ao encontrá-lo na fazenda, sentado na sala de visitas, em
companhia de Ezequiel e Rebeca. Quando o viu, Trajano não pôde
conter a surpresa. Laurinda fora chamá-lo, dizendo que havia visita
para ele, mas ele jamais poderia supor que fosse Túlio. Ao entrar na
sala, passado o susto do primeiro momento, abaixou os olhos e
indagou humilde:

— A sinhá mandou me chamar?
— Mandei sim — respondeu Rebeca. — Túlio veio visitar Sara e
pediu para falar com você também.

Trajano levantou os olhos para ele, esperando encontrar algum tipo
de ressentimento em seu olhar. Em vez disso, só o que pôde
perceber foi à dor e a frustração, e isso o condoeu.

— Como vai, Trajano? — indagou Túlio, levantando-se e
aproximando-se dele.
— Muito bem, sinhozinho, obrigado.
— Túlio quer lhe falar — adiantou-se Ezequiel.
— Será que podemos sair?
— Como o sinhô quiser.

Túlio pediu licença e saiu com Trajano para o quintal. Estava
emocionado, e só então percebera o quanto sentira sua falta. Afinal,
estava acostumado à presença do negro. Tinha-o como amigo e
protetor, e muito lamentava tudo o que o fizera passar. Vendo que
Trajano seguia mudo a seu lado, Túlio, escolhendo bem as palavras,
principiou:

— Há muito queria falar-lhe.

O escravo pousou sobre ele os olhos negros, nos quais refletia a
angústia da dúvida, do medo e da desconfiança, e retrucou:

— Por quê?
— Por que... Porque desejava pedir-lhe... Perdão. Trajano deu
um salto para trás e disse, indignado:
— Mas o que é isso, sinhozinho? Quer me enganar de novo, é?
— Não, Trajano, não é nada disso. Queria falar-lhe. Estou
arrependido do que fiz.
— O sinhô vai me desculpar, mas não acredito, não.
— Por favor, Trajano, acredite, é a verdade.
— O sinhozinho está tramando alguma coisa?
— Mas que horror! Não estou não.
— Então por que veio?
— Já disse. Queria falar-lhe. Estou arrependido. A culpa vem me
corroendo por dentro. Não sei mais o que fazer.

O outro ainda o olhava em dúvida.

— Hum... Não sei, não. Acho que o sinhozinho está querendo
alguma coisa. Mas o quê? Já não basta o que fez com a pobre
Etelvina? Comigo, não reclamo. Mas Etelvina... O que foi que
ela lhe fez? Sinceramente, sinhô, ela não merecia...

Túlio desatou a chorar, atirando-se nos braços de Trajano, que ficou
confuso, sem ter o que fazer. Estava sem jeito, sem saber o que
pensar, e quanto mais tentava afastar-se do rapaz, mais Túlio se
apegava a ele, chorando copiosamente. Até que Trajano, não
podendo mais suportar aquela cena, acabou por convencer-se da
sinceridade daquelas lágrimas e perguntou condoído:

— Mas o que houve? Por que chora assim?
— Oh! Trajano, então não percebe? A culpa me consome dia a
dia. Sinto-me responsável pela morte de Etelvina. Não queria.
Foi um acidente.
— O sinhozinho vai me desculpar outra vez, mas acidente não foi
não. Sinhô Rodolfo matou a pobre da Etelvina muito bem
matado. Eu vi. Ninguém me contou.
— Eu sei, eu sei. Mas eu não queria. Juro que não queria. E
agora... Tenho medo.
— Medo de quê?
— Medo do que possa acontecer. De ser descoberto.
— Não sei do que tem medo. Seu tio nunca falará nada, e eu...
Bem, o sinhozinho soube calar a minha boca direitinha.
— Não, Trajano, você não está entendendo.
— Não estou mesmo.
— Guarda raiva de mim?

Trajano hesitou.

— Raiva, não. Acho que fiquei magoado. Pensei que fosse meu
amigo, que me quisesse bem como eu quero bem ao
sinhozinho. Foi muito triste descobrir que sou apenas um
monte de lixo.
— Não diga isso, Trajano. Você é uma pessoa muito especial.
— Hum... Sei. Especial para quê?
— Especial. Só especial.
— Escute sinhô Túlio, não acredito que veio até aqui só para me
dizer essas coisas meio sem pé nem cabeça. Não estou
entendendo aonde quer chegar.

Túlio suspirou e virou a cabeça para o outro lado, fitando o
horizonte. Era preciso acabar logo com aquilo. Fora até ali com uma
missão e precisava desincumbir-se dela o mais rápido possível.
Quanto mais demorasse, mais difícil se tornaria. Passados alguns
instantes, Túlio encheu-se de coragem e, olho nos olhos, declarou:

— Pois bem, Trajano, vou lhe dizer a que vim. Tio Rodolfo está
desesperado. Quer, a todo custo, separar minha tia Júlia de
meu tio Fausto.
— Por quê?
— Creio que está apaixonado por ela.
— Sinceramente, sinhozinho, sinhô Rodolfo não merece
sinhazinha Júlia, não.
— Eu sei. Mas ele insiste, e o fato é que esboçou um plano para
desacreditar tio Fausto, não só diante dela, mas de toda a
família. E para isso conta com a sua... Colaboração.
— Minha colaboração? Não estou entendendo.
— Deixe que lhe explique.

Em poucas palavras, Túlio narrou a Trajano o plano traçado por
Rodolfo. O escravo, à medida que o outro falava, ia ficando cada
vez mais horrorizado. Não imaginava que podia haver tanta
maldade no coração do ser humano. Quando Túlio terminou,
Trajano estava arrasado. Aquilo era demais para ele. Fora obrigado
a silenciar sobre o assassinato de Etelvina. Mas ter que mentir para
incriminar um inocente? Ele cobriu o rosto e chorou, e Túlio pousou
as mãos sobre seus ombros e disse, tentando parecer confiante:

— Não se preocupe. Tenho certeza de que tudo dará certo.

Caía uma chuva fininha, e Marta apressou o passo, encolhendo-se
dentro da capa, tentando não se molhar muito. O caminho cheio de
lama dificultava-lhe a caminhada, mas ela ia resoluta. Precisava
falar com Rodolfo e não podia mais esperar. Encontrou-o na
biblioteca, aprontando a contabilidade, pediu licença e entrou. Ao
vê-la, ele demonstrou certa contrariedade. Sem lhe dar chance de
falar, disse rispidamente:

— O que quer aqui, Marta? Não vê que estou ocupado?
— Preciso falar com você.
— Agora não.
— Mas não posso esperar.
— Seja o que for que tenha a me dizer, vai ter que esperar, sim.
Agora, por favor, saia. Está me atrapalhando.
— O que há com você, Rodolfo? Por que me trata assim? Por
acaso não me ama mais?
— Ouça Marta, não estou com vontade de escutar suas lamúrias.
— Lamúrias? Mas quando foi que me lamuriei com você? Ao
contrário, sou sempre amável, gentil... Desvelo-me para
agradá-lo.
— Pare com isso, por favor. Não estou com paciência para
choramingo.
— Mas o que há com você? Há pouco dizia que me amava.
— Pare, já disse! Vá-se embora daqui. Não me aborreça mais!
Marta começou a chorar e, atirando-se a seus pés, suplicou:
— Não me trate assim. Eu o amo.
— Não me interessa o seu amor.
— O que houve para você mudar tão de repente? Era tão
carinhoso...
— Marta, já estou farto dessa ladainha. Saia daqui, ou serei
obrigado a expulsá-la.
— Pensa que não sei?
— Não sabe o quê?
— Pensa que não sei que você me usou esse tempo todo, só
para se aproximar de Júlia?
— Está louca — respondeu num sussurro.
— Será que estou mesmo? Ou será que foi você quem perdeu a
cabeça por causa da noiva de seu irmão?
— Cale-se!
— Não, não vou me calar. Eu já percebi tudo. Você me usou.
Nunca me amou. Só tem olhos para Júlia. Mas não adianta.
Ela não o ama, e sim a Fausto. E por mais que você faça,
nunca conseguirá ser igual a ele.
Rodolfo, sentindo já o sangue subindo às faces, não se conteve e
esbofeteou Marta várias vezes, arrancando-lhe sentidas lágrimas de
dor e de humilhação.

— Ordinária! — vociferou. — Quem pensa que é para falar
comigo assim desse jeito?
— Eu o amo, Rodolfo. Quero ser sua mulher. Não importa o que
faça, amo-o ainda assim. Meu amor é puro e verdadeiro. Só
aqueles que conhecem a real acepção do amor são capazes
de compreender e aceitar o ser amado como ele é. E eu,
Rodolfo, por amá-lo demais, posso compreender e perdoar
todas as suas atitudes impensadas e inconseqüentes.

Vendo-a ali caída no chão, chorando, o rosto inchado das bofetadas,
Rodolfo retrocedeu. Ele não queria que ninguém soubesse daquela
cena. Aquilo só atrapalharia seus planos. Era preciso fazer com que
Marta se calasse.

— Ouça Marta, não quero brigar com você. Perdoe-me por ter-
lhe batido. Perdi a cabeça, você me provocou.
— Sinto muito, mas eu só disse a verdade.
— Não, Marta, está enganada. Não sinto nada por Júlia. E de
você que gosto.
— A quem quer enganar? A mim? Ou a você mesmo?
— Não quero enganar ninguém. Estou dizendo a verdade. Um
dia, pensei mesmo que amasse Júlia. Mas depois percebi que
tudo não passou de ilusão. E quando a conheci, apaixonei-me
por você.
— Suas atitudes não são as de um homem apaixonado.
— Uma coisa nada ter a ver com outra. Sou um homem
estouvado, tenho o sangue quente. Não consigo me conter
quando me provocam. E você me tirou do sério. Mas não
queria bater em você e estou arrependido. Juro que isso não
vai mais acontecer.
— Isso não me importa.
— Mas importa para mim. Não quero que pense que sou um
canalha.
— Por quê? Por haver me batido ou por desejar a futura mulher
de seu irmão?

Rodolfo mordeu os lábios, segurando a raiva dentro de si. Tinha
vontade de esganá-la, mas precisava se controlar.

— Por favor, Marta, pare com isso — retrucou, rangendo os
dentes.
— Vou parar sim, Rodolfo, mas não porque está me pedindo. Vou
parar porque já confirmei minhas suspeitas. No entanto, não
se preocupe. Não pretendo dizer nada a ninguém.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que eu o amo, não importa o que faça. E mais dia
menos dia, você mesmo vai perceber que seu sentimento por
Júlia é um erro. Ela não o ama e não é mulher para você. Dia
chegará em que você só terá a mim para apoiá-lo.

Marta saiu e Rodolfo ficou pensativo. A tola! Pensava que ele estava
apaixonado por Júlia. No fundo, sabia que gostava mesmo de Marta,
mas o sabor da vingança era mais doce no corpo de Júlia. Embora
Rodolfo nem soubesse bem do que pretendia se vingar...






CAPÍTULO 20

Sara conversava com frei Ângelo no jardim. Apesar de mais
animada com os freqüentes passeios e a conversa com os amigos,
naquele dia estava muito abatida. Quase não comera, e o peito
doía-lhe a cada vez que respirava.

— E então, Sara? — indagou o frei. — Não quer me contar o que
houve?

Ela olhou para ele desanimada. Estava cansada e sem muita
vontade de conversar.

— Não sei — respondeu ela, afinal, sem muita convicção. — Não
sei ao certo.
— Você hoje não está muito bem.
— Não sinto vontade de conversar.
— Não quer nem tentar? Por que não continua a me contar seus
sonhos?
— Meus sonhos?
— Sim. No outro dia, você me disse que tinha sonhos muito
estranhos e até me contou um deles, que achei muito
interessante. Não quer me contar outro?
— Acha mesmo necessário? Não estou com muito ânimo para
isso agora.
— Acho que, além de necessário, será muito útil. Mas, se você
não quiser se não estiver disposta, não faz mal. Podemos
deixar para outro dia.

Ela suspirou fundo e retrucou:

— Está bem. Se acha que é importante — ela fez uma pausa,
tentando lembrar-se de algo, e começou: — Bem, teve uma
vez que sonhei com minha mãe chorando muito. Estava toda
de preto, debruçada sobre um caixão. Dentro, um homem
jazia. Era seu marido e meu pai.
— Na vida atual?
— Não, apenas no sonho.
— Sabe quem era hoje?
— Não, não sei. Acho que não o conheço.
— Bem, não importa. E você?
— Em meu sonho, eu era ainda um bebê. Não devia ter mais do
que um ano, um ano e meio.
— E o que aconteceu?
— Como disse, minha mãe chorava muito. Eu estava no colo de
Marta, sem entender bem o que se passava. Era um enterro,
e havia muitas pessoas conhecidas.
— E depois?
— Não me lembro direito. Só o que sei é que minha mãe só
pensava no marido morto. Lembro-me de seu olhar para mim.
Um olhar de ódio, de mágoa, como a perguntar: "por que ele,
e não você?".
— Só isso?
— Sim.
— Hum... Interessante. Esse sonho só vem reforçar a minha
teoria.
— Que teoria?
— De que você começou a se sentir abandonada em outra vida e
trouxe para a atual esse sentimento.
— Será mesmo? — ela ainda duvidava.
— Estou quase certo.

Sara ficou pensativa. Aquilo tudo era muito confuso, mas fazia
sentido. No entanto, não tinha elementos suficientes para acreditar
completamente.

— Bem — prosseguiu ela —, seja como for, o fato é que o sonho
me pareceu bem real.
— E foi com certeza. Na verdade, não foi propriamente um
sonho, mas uma evocação, uma lembrança de outra vida.
— Não sei frei Ângelo, ainda não acredito muito nisso.
— Mas vai acreditar. — Ele fez uma pausa e continuou: — Não se
lembra de mais nada? Outro sonho?
— Sim. Houve uma vez em que sonhei novamente com mamãe
e Marta. E adivinhe! — frei Ângelo remexeu-se na cadeira, e
ela prosseguiu: — Elas eram irmãs.
— É mesmo?
— Sim. Nesse sonho, Marta vinha me visitar e trazia muitos
presentes. Pegava-me no colo, dava-me beijos, estreitava-me
de encontro ao peito. Eu a adorava e costumava chamá-la,
inclusive, de mãe.
— Interessante...
— Sim. E depois teve outro, em que eu via o segundo casamento
de minha mãe, dessa vez com meu pai de verdade. Lembro-
me de ouvi-lo falar para minha mãe que gostava muito de
crianças e que gostaria que ela lhe desse filho. Como minha
mãe não conseguia engravidar, ele queria que eu gostasse
dele como pai, e disse que minha mãe deveria tratar-me com
mais atenção. Depois a cena se modificou, e vi mamãe
brigando com Marta, acusando-a de querer me roubar, e
Marta foi proibida de me ver. Fui trancada em casa e chorei
muito.
— E depois?
— Não sei. Tenho lembranças confusas.
— Agora compreendo por que sua mãe não simpatizou com
Marta.
— É verdade. E segundo Júlia me disse, da primeira vez em que
ela aqui esteve eu estava delirando, mas de repente abri os
olhos e, quando a vi, chamei-a justamente de mamãe. Minha
mãe ficou indignada. Pensou que fosse devido ao meu estado.
— Imagino.
— Em outro sonho, eu estava sentada na sala, brincando de
bonecas, e o marido de minha mãe falava comigo. Ela,
sentada numa poltrona, bordava uma toalha de linho e sorria
para mim. De repente, meu pai se levantou e saiu, atendendo
ao chamado de um criado. Eu voltei-me para minha mãe,
mostrando-lhe a boneca, mas ela não me deu a menor
importância. Ao contrário, repreendeu-me por atrapalhar seu
bordado.

Frei Ângelo ficou pensativo. As coisas começavam a se encaixar, e
ele disse para Sara:

— Isso que você me conta é muito revelador.
— Acha mesmo?
— É claro que sim. Não tenho mais dúvidas de que essa sua
enfermidade começou em outra vida. Você perdeu o pai ainda
bebê. Sua mãe não lhe dava atenção, obrigou-a a conviver
com um homem que lhe era praticamente um estranho e,
além disso, afastou-a da única pessoa a quem você realmente
amava que era sua tia, hoje Marta. Não vê como tudo se
encaixa?
— Não será apenas coincidência?
— Acredita mesmo em coincidências? Não acha que é
coincidência demais você sonhar com essas pessoas, nas
situações em que me descreveu, exatamente em
circunstâncias que justifiquem o porquê de sua enfermidade?
— Pensando bem, é estranho, sim. Não creio, realmente, que
tudo seja obra do acaso.
— Tampouco eu, minha cara. Há, por detrás dessa história, uma
força em muito superior a nós, que entrelaça os destinos de
forma a que tudo se encaixe perfeitamente, sem deixar uma
peça sequer fora do lugar.
— É verdade.
— Está cansada? Aborrecida?
— Não, frei Ângelo, estou bem e gostaria de continuar.
— Ótimo.

Ela olhou para o alto, tentando se lembrar de mais alguma coisa, e
prosseguiu:

— Lembro-me de haver sonhado com crianças brincando no
jardim ao lado de minha casa. Elas me chamavam, e eu as
olhava com olhar entristecido, recusando-me a brincar com
elas.
— Foi se fechando.
— Sim. Fui me fechando e me isolando cada vez mais, e passei a
me alimentar mal. Até que um dia...

Sara abaixou os olhos e começou a chorar de mansinho. Era óbvio
que as lembranças que evocava eram profundamente dolorosas.
Embora frei Ângelo percebesse isso, sabia que era fundamental para
o tratamento e incentivou-a a continuar:

— Um dia...
— Um dia sonhei que corria na chuva, contra o vento. Depois, vi-
me deitada numa cama imensa, ardendo em febre. Vi minha
mãe entrar com o médico. Ele se abaixou sobre mim e disse:
pneumonia. Em pouco tempo fui definhando, até que não pude
mais resistir e morri ainda bem pequenina.
Ela ainda chorava, e frei Ângelo a abraçou. Podia imaginar como
Sara estava se sentindo com tudo aquilo. Seus sonhos eram muito
significativos, e ele estava certo de que os fatos ocorridos em sua
vida passada acabaram por imprimir na menina o mal de que antes
padecera e de que ainda hoje sofria. A conversa foi encerrada. Não
precisava dizer mais nada. Todos os sonhos que tivera
posteriormente estavam relacionados ao mesmo assunto: o
sentimento de abandono por causa da mãe, que não a desejava, e
porque Marta, a única pessoa que realmente se importava com ela,
fora afastada de seu convívio. Sara conseguira alcançar o âmago de
sua própria alma e só com o tempo poderia aprender a transformar
a dor que sentia em lição de vida para o presente e o futuro.
Sara despediu-se de frei Ângelo e foi ao encontro de Dário, que
chegava. O rapaz enlaçou-a pela cintura, beijando-a suavemente, e
disse:

— Vim fazer-lhe um convite especial.
— Para quê?
— Vamos todos à vila hoje à tarde. Não gostaria de vir conosco?
Sara entristeceu e replicou:
— Eu adoraria, mas não me sinto com forças para sair. Uma
coisa é passear com você, Júlia, Marta, Fausto e Rodolfo.
Outra coisa é estar no meio de gente estranha. Isso me
assusta.

Frei Ângelo, que passava nesse exato momento, ouvindo as últimas
palavras de Sara, repreendeu-a:

— Sara, Sara. Quando é que vai aprender?
— Aprender o quê?
— Quantas vezes têm que lhe dizer para não fugir do contato
com as pessoas? É importante para você sair, misturar-se a
elas, divertir-se.
— Era o que eu ia dizer-lhe, frei Ângelo — concordou Dário.
— Pois então, minha querida? Não perca essa oportunidade. Você
tem feito excelentes progressos, em grande parte graças a
seu próprio esforço. Por que recuar agora?
— E isso mesmo, Sara. Nosso bom frei tem razão, como sempre.
Vamos não se enterre dentro de casa. Você não morreu. Ou
será que já se julga morta?

Sara mordeu os lábios e acabou por concordar:

— Está bem. Convenceram-me.
— Ótimo. Assim é que se fala! Vá e se entregue. Não pense em
nada e viva o momento. Faça de todos os momentos de sua
vida um momento especial e você descobrirá como a vida
pode ser maravilhosa!

Mais tarde, Sara partiu em companhia de Dário para a vila.
Encontrar-se-iam com Fausto, Júlia, Rodolfo e Marta. Havia uma
companhia de teatro amador na vila, e os atores encenariam
Hamlet no pequeno teatro da escola dominical. Sara divertiu-se
muito. Quando voltou para casa já era noite, e os pais estavam
preocupados. Já ia repreendê-la, mas, ao notarem o ar de felicidade
com que chegou, desistiram. Se ela estava feliz, não seriam eles a
estragar sua felicidade. Porque a felicidade para Sara era mais do
que um estado de alegria transitória. Era o caminho para a cura.







CAPÍTULO 21

Na véspera do aniversário de Palmira o alvoroço já era geral na
fazenda São Jerônimo. A capela, finalmente, seria inaugurada, e
Palmira queria que tudo estivesse perfeito. Desde cedo já se haviam
iniciado os preparativos para a festa, e os escravos foram para
frente da capela, enfeitando o terreiro com bandeirolas e
lanterninhas. Todos os fazendeiros da região haviam sido
convidados, e Rodolfo, logo pela manhã, tivera uma idéia que
colocaria Júlia em pânico. Ele bateu na porta do quarto da mãe e
entrou. Ela estava sentada em frente ao espelho, e uma escrava
bem novinha escovava-lhe os cabelos encanecidos. Quando viu o
filho, abriu um sorriso, e ele disse, logo após beijá-la nas faces:

— Então, mamãe, amanhã é o grande dia!
— Parece mentira que a capela ficou pronta.
— E a senhora fará mais um ano de vida...
— Na minha idade, meu filho, contamos anos a menos.
— Ora, mas o que é isso? A senhora é ainda muito jovem.
— Deixe de bobagens, Rodolfo. Então não sei que já estou bem
próximo da morte?
— Não diga isso. A senhora ainda viverá muitos anos.
— Deus o ouça, meu filho, embora não creia muito...

Rodolfo foi até a janela, olhou para fora e disse, sem encará-la:

— Mamãe, gostaria de falar com a senhora.
— Sim, meu filho, o que é?
— Estive pensando... Já que convidamos todos os fazendeiros da
região, por que não convidarmos também nossos inquilinos da
Ouro Velho?

Palmira levantou as sobrancelhas e retrucou, sem maior interesse:

— Por quê? Nem os conhecemos.
— Por isso mesmo. Arrendamos a fazenda para eles, mas nunca
fomos apresentados. Não acha uma indelicadeza?
— Não, não acho. O que temos com eles são negócios. Não são
pessoas de nossas relações.
— Mas por que não podemos convidá-los? Poderia ser
interessante. E depois, eles são amigos de Camila.
— De Camila?
— Sim, mamãe. A senhora não sabia?

Palmira pensou durante alguns segundos e respondeu:

— Não me recordo.
— Pois Fausto lhe disse. A senhora é que não se lembra.
— Se não me lembro é porque não deve ser importante. Pois se
nem Camila fala neles...
— Pois é. Não acha isso estranho?

Ela torceu os lábios. Sim, no fundo, era estranho. Nunca pensara
sobre aquilo, mas já que Rodolfo falara, tinha que concordar que ele
não deixava de ter razão. Se aquelas pessoas eram amigas de sua
filha, por que ela nunca falava nelas? Por que nunca os convidara
para ir até lá? Seria natural que se interessasse em aproximá-los.
Pensando nisso, indagou:

— Será que não é gente direita?
— Não creio. Afinal, são amigos de Camila, e ela não faria
amizade com pessoas desonestas ou de má índole.
— Mas então, por que nunca nos apresentou?
— Para falar a verdade, já vi a moça algumas vezes e até já a
acompanhei em alguns passeios.
— Então, já os conhece?
— Não, somente Sara, a filha. Já participei de alguns passeios em
que ela estava presente, mas ainda não fui apresentado a
seus pais. Seria uma ótima oportunidade para conhecê-los
também.
— Acha que devemos?
— Sim, mamãe, acho que sim. Afinal, Camila falou deles muito
por alto, e eu, até hoje, só vi a filha doente.
— Doente? Que doença tem ela?
— Não sei ao certo, mamãe. Mas Camila nos contou. Não se
lembra?

Palmira apertou os olhos, tentando se lembrar. Sim, realmente,
Camila falara algo sobre uma família com uma filha enferma, que
para ali fora em busca de melhores ares. Lembrava-se de que, a
princípio, relutara em arrendar-lhes a fazenda, mas Fausto acabara
por convencê-la e resolvera tudo, e ela não dera muita importância
ao caso. Ela já estava ficando velha e cansada, e sua memória
também já não era mais a mesma. Costumava lembrar-se apenas
do que era importante. Tentando recordar o que lhe dissera a filha,
respondeu indecisa:

— Lembro-me de que Camila disse algo sobre eles...
— Então? Por que não os convidamos também?
— Não sei meu filho, não estou bem certa. Se a moça é doente,
talvez seja melhor deixá-los quietos em seu canto.
— Mas que bobagem, mamãe. Talvez até lhe faça bem. Afinal,
são pessoas de posses e posição.
— Meu filho, não entendo o porquê desse interesse repentino.
— Já disse. Porque são pessoas diferentes e devem ser
interessantes.
— Mas virá tanta gente...
— Gente que estamos mais do que acostumados a ver.
— E daí? São todas as pessoas de bem.
— Mamãe, posso saber por que a relutância em convidá-los?

Ela estacou e encarou o filho. Na verdade, ele tinha razão. Ela
estava mesmo relutando em convidar seus vizinhos, mas nem sabia
por quê. Nunca ouvira nada a seu respeito, mas sentiu certa
inquietação ao pensar neles. Contudo, não havia nenhum motivo
para recusar-se a convidá-los. Não os conhecia, mas sabia que
eram pessoas ricas e direitas. Que mal faria? Pesando bem os
motivos, acabou por dizer:

— Está bem. Você tem razão. Não há motivo algum para não os
convidarmos. Mande um escravo hoje levar-lhes um convite.
— Obrigado, mamãe.

Rodolfo estalou-lhe um beijo na bochecha e correu em direção à
porta. A mãe, de repente, como que se lembrando do motivo que a
levara a não se interessar por aquela gente, gritou lá de dentro do
quarto, tão alto que Rodolfo escutou-a já do alto da escada:

— Mas que não me tragam aquele negro insolente!

Partindo dali, Rodolfo saiu em busca de Túlio. O rapaz estava no
terreiro, acompanhando a decoração da festa, e franziu o cenho
quando viu o tio se aproximar. A seu lado, Camila, Júlia e Marta,
animadas, davam ordens aos escravos, indicando-lhes onde
deveriam prender as lanternas e as bandeirinhas. Ao ver o irmão se
aproximar, Camila se retraiu e olhou para o filho, que lhe devolveu
um olhar imperceptível, afastando-se logo em seguida. Rodolfo foi
atrás dele e, segurando-o pelo braço, disse:

— Aonde pensa que vai?
— Solte-me — respondeu Túlio de má vontade, puxando o braço
com violência.
— Espere um instante, rapaz. Quero falar com você.
— O que quer dessa vez?
— Adivinhe.
— Olhe tio Rodolfo, não estou nem um pouco interessado em
seus gracejos. Vá logo ao assunto ou então me deixe em paz.
— Nossa, mas que mau humor!
— Não sei por que você está tão bem-humorado.
— Não sabe? Pois vou lhe contar — respondeu cantando. —
Mamãe deu autorização para convidar seus amiguinhos, os
Zylberberg, para a festa de amanhã. Não é fantástico?

Túlio gelou. O que o tio pretendia com aquilo?

— Ficou louco? — revidou em tom agressivo. — O que quer?
Arruinar minha mãe e minha tia? Por que não procura algo
melhor para fazer e nos deixa em paz?

Rodolfo, visivelmente irritado, agarrou o sobrinho pelo colarinho e,
olhos nos olhos, esbravejou, destilando veneno:

— Ouça aqui, garoto, não se faça de sonso comigo! Sei muito
bem que você não é nenhum santinho!

Assustado, Túlio segurou-lhe as mãos e, sustentando-lhe o olhar,
respondeu com aparente firmeza e ousadia:

— Solte-me. Não sou seu escravo para você me tratar desse
jeito.

Rodolfo soltou um riso de escárnio e largou-lhe o colarinho, que
Túlio logo tratou de ajeitar. Encarando-o ainda, ameaçou:

— Não se esqueça do que combinamos.
— Não me esqueci.
— Acho bom mesmo. Senão...
— Não me ameace tio Rodolfo. Você já me bateu uma vez, mas
não me conhece e não sabe do que sou capaz.
— Ficou valente, rapaz? O que vai fazer? Bater-me também?
Matar-me?

Túlio não respondeu. No fundo, morria de medo de Rodolfo.
Julgava-o louco e bem sabia que, ele sim, era capaz das maiores
barbaridades. No entanto, o temperamento ousado e atrevido de
Túlio não lhe permitia enfraquecer, e ele tentava, a todo custo,
manter sua hombridade, não se deixando acovardar diante de
Rodolfo. Tinha medo, sim. Mas o tio não precisava saber disso, e ele
pretendia não deixar transparecer. Ainda encarando-o, afirmou:

— De você, só quero distância.
— Não enquanto eu não conseguir o que quero. E para conseguir
o que quero, preciso de sua, digamos, cooperação.
— O que quer que eu faça?
— Quero que vá à fazenda Ouro Velho convidar seus amigos.
Diga-lhes que é um convite especial, da parte de minha mãe,
e que não faltem.
— É só isso?
— Sim. Agora, vá.

Sem contestar, Túlio se foi. O que estaria Rodolfo pretendendo? Em
silêncio, passou pelo terreiro e dirigiu-se para as cocheiras. Camila,
vendo-o passar apressado, chamou-o, mas ele não respondeu. Mais
que depressa, ela seguiu em seu encalço e viu quando ele encilhou
o cavalo, partindo em disparada em direção à fazenda Ouro Velho.
Ela pediu que lhe preparassem uma charrete e saiu atrás dele. Túlio,
no meio do caminho, freou um pouco o animal e foi seguindo
devagar pela trilha, sem pressa de chegar. Pouco depois, Camila o
alcançou. Emparelhou com ele e dirigiu-lhe um olhar perscrutador, e
ele saltou do cavalo, olhando para a mãe com ar de súplica. Ela
desceu da carruagem e o abraçou, e ele começou a chorar. Túlio
era um doidivanas, ela sabia, mas era um menino. Seu menino, a
quem ela sempre amaria e ajudaria.

Voltando para o terreiro, Rodolfo saiu à procura de Marta que,
juntamente com Júlia, ajudava os escravos com as bandeirinhas. O
terreiro estava ficando uma beleza, e a festa seria um sucesso. Logo
que as viu, correu para elas, beijando Marta friamente nos lábios.
Sorriu para Júlia e disse com excitação:

— Vocês nem imaginam a surpresa que lhes preparei para
amanhã.
— É mesmo, Rodolfo? — retrucou Júlia com interesse.
— É sim.
— Podemos saber o que é? — indagou Marta.
— Não, não podem. Pois se é surpresa...
— Não pode nem nos dar uma pista?
— Bem, só o que posso lhes dizer é que atingirá o coração de
Júlia mais do que o de qualquer outro.
— De Júlia?
— Sim, minha querida. Mas não precisa ficar com ciúmes.
— Não estou com ciúmes — disse Marta zangada. — Sei que Júlia
é minha amiga.
Fausto aproximou-se. Vinha apressado, olhos fixos em Rodolfo.
Embora lutasse desesperadamente contra si mesmo, ainda não
conseguia confiar no irmão.

— Olá! — cumprimentou. — O que estão fazendo?
— Nada de mais — disse Rodolfo. — Apenas apreciando os
preparativos da festa. Parece que será um sucesso!
— Com certeza, meu irmão. Será uma festa muito especial.
— Disso eu não duvido — concluiu Rodolfo, soltando uma
gargalhada estridente, enquanto se afastava, levando Marta
pela mão.

Do outro lado, Constância os observava com ar malicioso. Já
planejara tudo. Só precisava falar com Rodolfo e instruí-lo bem,
para que não fizesse nada de errado. Quando eles passaram perto
dela, Constância chamou:

— Rodolfo, será que poderia vir comigo um instante?

O rapaz encarou-a com ar significativo, pediu licença a Marta e saiu
com a prima. Os dois foram caminhando lado a lado, e Constância ia
dizendo:

— Será amanhã.
— Amanhã? Mas é a festa de mamãe...
— Por isso mesmo. Depois da festa, todos estarão exaustos e só
pensarão em dormir. Ocasião ideal para uma pequena traição,
não acha? Todos pensarão que Júlia, aproveitando-se do
cansaço e do sono pesado de Fausto, atraiu você a seu quarto
para que lhe fizesse o que seu irmão se recusa a fazer.

Rodolfo soltou uma gargalhada. Se aquele plano desse certo, Fausto
estaria acabado e terminaria tudo com Júlia. Caso contrário... Não
queria nem pensar. E havia ainda os Zylberberg. Avaliando as armas
que tinha contra o irmão, achou que os Zylberberg poderiam
esperar. Mesmo que comparecessem à festa, não faria nada contra
eles... Por enquanto.

— O que devo fazer?
— Depois que a festa acabar, vá para o seu quarto. Lá
encontrará as roupas de Fausto, que tirei de seu armário sem
que ele percebesse. Se vista depressa e fique à espreita.
Quando o lampião do quarto de Júlia se apagar, espere cerca
de meia hora e entre. Depois, faça como lhe mandei. Mas não
se esqueça: seja gentil e não a force. Disso vai depender todo
o sucesso de nosso plano.
— Não se preocupe Constância. Farei tudo direitinho.
— Na manhã seguinte, agirei bem cedinho. A hora do café já
terei contado tudo a Fausto, à minha maneira. Provavelmente
ele ficará agressivo com você. Mas não revide nem tente
desmentir o acontecido. Diga-lhe que Júlia o convidou, e que
você, por mais que se esforçasse, não pôde resistir à
tentação.
— E quanto a Júlia?
— Esqueça Júlia e confie em si mesmo. Você é inteligente e
saberá escolher as palavras certas para se defender. Mas não
tente dizer que não aconteceu. Diga que só aconteceu porque
Júlia o provocou, e insista em que ela sabia que era você, e
não Fausto.

Tudo acertado, Rodolfo voltou para perto de Marta, que não
desconfiava de nada.

— O que ela queria? — indagou a moça.
— Nada. Apenas mostrar-me o presente que vai dar a mamãe.

No dia seguinte, os arranjos para a festa de Palmira estavam
praticamente concluídos, restando apenas alguns detalhes de última
hora. A matriarca da família Sales de Albuquerque, apesar de
saudosa dos que a haviam precedido no túmulo, sentia-se feliz.
Tinha a companhia dos filhos, dos netos e da sobrinha.

Constância despertou ansiosa. Estava bem próximo o dia em que,
finalmente, ultimaria sua vingança. Mais um pouco e teria em suas
mãos aquela que fora a causa de toda a sua desgraça. Mais um
pouco e Tonha sentiria toda a fúria de seu ódio e experimentaria na
carne a lâmina afiada de seu punhal. Já antegozava o prazer que
sentiria ao ver o sangue da negra espalhado pelo chão. A imagem
de Tonha morta encheu-a de euforia, e Constância foi para a
cozinha, onde Tonha preparava os quitutes para a festa. Quando
Tonha a viu entrar, soltou um grito e ficou parada a olhá-la, como
se tivesse visto um fantasma, e a outra indagou com rispidez:

— O que foi que houve negra? Por acaso pareço alguma
assombração?

Tonha ficou a olhá-la com ar de espanto, até que respondeu:

— Perdão, sinhá, não foi nada.

Tonha voltou a concentrar sua atenção nos doces que estava
preparando. Constância aproximou-se do fogão e começou a
levantar as tampas das caçarolas, cheirando seu conteúdo. Tonha, a
seu lado, fingia não lhe prestar atenção, mas podia sentir a
presença de alguém ali. Quando ela entrara, vira nitidamente o
espírito de Inácio a seu lado, envolto em uma túnica branca,
acompanhando-a com ar de tristeza e preocupação. Inácio... O
grande amor de sua vida. Lembrou-se dele com ternura, da época
em que estavam apaixonados, dos momentos em que mais nada
parecia importar. Como o amara... E como sofrerá com sua
perda. Desde que ele morrera naquele incêndio, não havia um dia
sequer em que não pensasse nele.

Por uma fração de segundos, seus olhos se encontraram, e Tonha
pôde perceber que Inácio tentava dizer-lhe alguma coisa, mas ela
não conseguiu compreender. Há muito tempo nem sonhava com
ele, e vê-lo causou-lhe enorme emoção. Tonha sabia que a
presença de Inácio ali deveria ter algum motivo sério. Talvez
quisesse alertá-la de algum perigo ou protegê-la. Não sabia. Em
silêncio, elevou seu pensamento a Deus e guardou silêncio.

A festa estava marcada para começar às seis horas, com uma missa
a ser rezada na capela pelo padre João, para comemorar tanto sua
inauguração quanto o aniversário de Palmira. Ainda era cedo e já
estava tudo praticamente pronto. Camila e Júlia cuidaram de tudo
direitinho, e não havia muito mais o que fazer. Os quitutes estavam
adiantados, a decoração impecável. Fausto até mandara trazer do
Rio de Janeiro uma pequena orquestra, para animar o baile.

A hora do almoço, com a família toda reunida, Rodolfo pediu licença
e levantou-se para falar. Todos voltaram para ele sua atenção, e
ele, retirando do bolso um pequeno embrulho, depositou-o na frente
de Palmira, dizendo com a voz carregada de uma emoção forçada e
pouco convincente:

— Mamãe, quero que aceite esta pequena lembrança como um
presente especial do meu coração.
Palmira abriu o embrulho com mãos trêmulas. Dentro, um pequeno
pássaro todo de esmeraldas brilhou ao contato com a luz externa, e
ela exclamou admirada:

— Oh! Meu filho, mas é lindo! Deve ter custado uma fortuna.
— O preço não importa. O que importa é vê-la feliz.
— Mas, meu filho, não precisava. Você e Fausto já não me
deram a capela de presente? O que mais poderia desejar?
— Mas este é um presente especial de meu coração. Meu e de
Júlia.

Júlia olhou-o espantada. O broche fora uma idéia dela sim, mas
Rodolfo lhe dissera que o estava comprando para dá-lo em seu
nome e no de Fausto. Colocara até o nome do irmão no cartão que
escrevera na ocasião. Júlia apenas ajudara a escolher a jóia, nada
mais.

— Seu e de Júlia? — repetiu Palmira.
— Sim, mamãe, meu e de Júlia.
— Na verdade, dona Palmira — contestou a moça —, eu apenas
ajudei Rodolfo a escolher. Mas a idéia foi dele, não minha.
— Logo vi — disse Palmira para si mesma.
— Bem, mamãe, isso não importa, não é mesmo? — disse Fausto
com ironia. — O que importa é que Rodolfo lhe deu o
presente, não é?

Rodolfo enrubesceu, mas não disse nada. Palmira pegou o broche e
admirou-o. Era mesmo uma beleza, e ela tencionava usá-lo mais
tarde, na hora da missa.

Depois do almoço, Júlia saiu de braços dados com Fausto para o
quintal, e Rodolfo seguia-os com o olhar. Era visível o esforço que
Fausto fazia para não demonstrar contrariedade. Rodolfo mentira a
respeito do broche. Por quê? E Júlia? Será que não sabia? Fausto
sentia vontade de interpelá-la, mas, lembrando-se da promessa que
lhe fizera, não disse nada. Júlia, por outro lado, não se sentia à
vontade. Rodolfo armara-lhe uma cilada, e ela se sentia enganada e
usada. O que estaria ele pretendendo? Será que ainda a amava?
Pensando nisso, Júlia concluiu que Fausto talvez tivesse razão. E se
Rodolfo estivesse fingindo todo aquele tempo, fazendo-se passar por
amigo desinteressado quando, na verdade, o que queria mesmo era
conquistá-la, afastando-a de Fausto? Ela sentiu um calafrio e já ia
expor ao noivo suas idéias quando Terêncio apareceu, a mando de
Rodolfo, chamando Fausto às pressas. Era um problema com o
fornecedor de vinhos, e alguém precisava resolver.

— Mas justo hoje? — fez Fausto indignado. — Era só o que me
faltava. Ficarmos sem vinho logo no dia da festa.
— Acalme-se, meu bem. Tenho certeza de que não é nada de
mais.

Enquanto Fausto se afastava, Rodolfo resolveu entrar em ação.
Vendo que Júlia voltava sozinha para a casa grande, esgueirou-se
para o quintal e deu a volta por trás dela, surpreendendo-a pelas
costas. A moça levou um susto enorme e soltou um grito agudo,
mas Rodolfo tranqüilizou-a:

— Não se assuste Júlia. Sou eu...

Ela estava furiosa com ele, e foi logo exigindo explicações:

— Por que fez aquilo, Rodolfo?
— Aquilo o quê? — indagou, fingindo-se surpreso.
— Disse-me que o broche era um presente seu e de Fausto. Por
que mentiu?

Fazendo-se de magoado, Rodolfo justificou:

— Perdoe-me, Júlia, mas não menti...
— Como não? Pois se inventou que o presente era meu
também...
— Minha querida, mas que bobagem. Ficou aborrecida por isso?
E eu que pensei que a estivesse ajudando... A você e a
Fausto.
— Ajudando-nos? Mas como, se fez parecer que havia entre nós
algum tipo de cumplicidade?
— Júlia, minha querida, você entendeu tudo errado. Eu apenas
pensei que isso ajudaria mamãe a olhá-la com outros olhos.
Minha mãe não é como eu, que esquece as ofensas
rapidamente, e só o que quis foi mostrar-lhe que você não lhe
guarda mágoa pelo que aconteceu no dia em que discutiram
por causa de Trajano.
— Isso já foi há tanto tempo...
— Mas minha mãe não se esqueceu.

Ela coçou a testa, desconfiada, e retrucou:

— Se é assim, por que não incluiu Fausto também?
— Por quê? Não sei. Esqueci-me. Talvez tenha sido um erro e
uma grosseria, mas não tive a intenção de causar nenhum
problema. Fausto se aborreceu?
— Ele não me disse, mas creio que sim. Eu o conheço e sei que
estava contrariado.
— Júlia, por favor, acredite em mim. Não quis aborrecê-los.
Novamente, peço que me perdoe. E não se preocupe com
Fausto. Falarei com ele e tudo se resolverá.
Júlia já não acreditava mais nele. Fausto tinha razão. Ele era
ardiloso e parecia ter sempre uma desculpa para justificar suas boas
intenções. No entanto, não queria brigar com ele. Afinal, era dia do
aniversário de dona Palmira, e uma briga nesse momento só serviria
para piorar as coisas. Ela daria razão ao filho e estabelecer-se-ia
entre eles um clima de animosidade que era melhor evitar. O mais
apropriado no momento era fingir que não percebera nada e ir
mostrando-lhe que estava perdendo seu tempo, se pensava que ela
trocaria Fausto por ele. Enquanto isso, Fausto se desembaraçara do
fornecedor e voltara, à procura de Júlia. Rodolfo, aproveitando-se
da distração da moça com a conversa, foi conduzindo—a para o
jardim, em direção ao caramanchão, e ela nem percebera quando
pararam e se sentaram em um banco, à sombra de uma roseira.
Por isso Fausto não a encontrara. Constância, porém, mancomunada
com o primo, logo que viu Fausto aparecer, seguiu distraída em sua
direção, como se estivesse apenas passeando e tomando ar.

— Constância — chamou ele —, por acaso viu Júlia?
— Júlia? Ah, sim — e fingindo que os confundia, acrescentou: —
Estava agorinha mesmo caminhando com Fausto pelas
alamedas do jardim.

Sem responder, Fausto virou-lhe as costas e saiu desabalado em
direção ao caramanchão, alcançando-o bem no momento em que
Rodolfo, percebendo-lhe a aproximação, segurava a mãe de Júlia e
perguntava:

— Amigos?

Fausto chegou feito um furacão e quase espancou Rodolfo que,
espertamente, soltou a mão de Júlia e exclamou:
— Fausto! Que bom que chegou. Queria mesmo falar com você,
pedir-lhe desculpas...

Mas Fausto não queria escutar. Estava farto de Rodolfo e de suas
desculpas. E Júlia... Por mais que quisesse, não conseguia afastar a
desconfiança. Ele olhou rapidamente para o irmão, sorriu
amargamente e puxou Júlia pela mão, sem dizer nada. Fizera-lhe
uma promessa e pretendia cumpri-la, mas não conseguia disfarçar o
ciúme e o despeito que lhe oprimiam o coração. Júlia, temendo que
Fausto se zangasse, começou a dizer:

— Fausto, deixe-me explicar...
— Não precisa explicar nada — cortou ele. — Já vi tudo e prefiro
que não diga nada.

Júlia silenciou, os olhos rasos d'água. Será que Fausto duvidava
dela? Tudo indicava que sim. E se duvidada mesmo, então não era
mais digno de seu amor.

CAPÍTULO 22

Às seis horas em ponto, o padre João iniciou a missa na capela de
São Jerônimo, padroeiro da fazenda havia mais de cinqüenta anos.
A capela estava toda enfeitada, com a imagem do santo imponente
sobre o altar. Todos os fazendeiros da região estavam presentes, e
havia até gente em pé. Só a irmã de Palmira, Zuleica, e a sobrinha,
Berenice, não compareceram. Estavam prestes a chegar da Europa,
mas não conseguiram voltar a tempo.

Uma hora depois, quando o padre deu por encerrado o culto,
Palmira convidou os presentes para o jantar. À noite, as portas do
salão de baile se abriram. A orquestra começou a tocar e os pares
começaram a se formar para a dança. Palmira, apesar de feliz, não
aceitara o convite de nenhum dos filhos para a valsa. Ainda estava
de luto, e o fato de haver concordado com aquela festa não a
isentava dos procedimentos adequados ao seu estado de pesar pela
morte do marido.

Fausto, cabisbaixo, procurava disfarçar o mau humor e dançava
maquinalmente com Júlia, que tentava ocultar a mágoa e a
decepção. Rodolfo não largava Marta e, a todo instante, tomava
conta dos passos do irmão, intimamente adivinhando-lhe os
pensamentos. Ele se deixara dominar pela desconfiança, e era
patente que ele e Júlia havia se desentendido. Tanto melhor. Aquilo
ainda facilitaria as coisas, pois Júlia, na ânsia de fazer as pazes com
Fausto, acabaria por entregar-se a ele, Rodolfo, sem nem perceber.

Estava tão absorvido com os movimentos de Fausto que nem se
lembrava mais dos Zylberberg. Embora ele soubesse que a presença
deles ali acabaria por desequilibrar ainda mais o irmão, que tudo
faria para afastá-los da companhia da mãe, os judeus haviam
passado a segundo plano. Haveria tempo para eles, e não importava
que não tivessem comparecido.

Os Zylberberg, na verdade, desconfiaram do convite de Túlio e
acharam melhor consultar Camila. Embora ela muito quisesse
apresentá-los à mãe, temia uma reação adversa por parte dela e
achara melhor esperar. Assim, Camila aconselhara-os a não ir, e
eles até se sentiram aliviados, não se considerando ainda prontos
para enfrentar a adversidade de Palmira.

O baile transcorreu sem incidentes, e Palmira exibia orgulhosa, o
broche de esmeraldas que Rodolfo lhe dera, cuidadosamente
ajeitado sobre a renda preta do vestido. Apesar de não entender por
que Fausto fora o único a não presenteá-la, não disse nada. Afinal, a
capela era um presente maravilhoso, e ela não tinha do que se
queixar. No fundo, porém, ao receber o broche de Rodolfo, esperou
que Fausto também lhe desse algo mais pessoal e ficou um pouco
decepcionada quando ele chegou ao baile de mãos abanando.

De madrugada, quando o último convidado se retirou, estavam
todos exaustos e só o que queriam era dormir. Fausto ainda não
voltara a falar direito com Júlia, e quando ela o procurou para dar-
lhe um beijo de boa noite, ele virou discretamente o rosto,
oferecendo-lhe a face. Aquilo a magoou profundamente, mas
Rodolfo, que a tudo assistira, exultou. Parecia que o céu conspirava
a seu favor. Já em seu quarto, Júlia trocou de roupa e deitou-se na
cama, soprando o lampião, e pôs-se a pensar em Fausto. Ela o
amava muito. Seu quase desprezo a magoara profundamente, e ela
começou a chorar baixinho. Sentindo, porém, as pálpebras
pesarem, Júlia logo adormeceu, ainda com Fausto em seus
pensamentos. Cerca de meia hora depois, um ruído na porta fez
com que despertasse. Ela abriu os olhos, sonolenta, e viu uma
silhueta masculina aproximar-se da cama. Assustou-se e fez que
fosse se levantar, mas o vulto, acercando-se mais dela, beijou-a
apaixonadamente e sussurrou:

— Júlia, querida, perdoe-me. Eu a amo e fui injusto com você.

Não fossem aquelas suas palavras e talvez Júlia até desconfiasse. No
entanto, ele dissera exatamente aquilo que ela esperara ouvir a
noite toda, e ela nem pensou que pudesse não ser Fausto o homem
que ali estava, atendendo ao seu desejo, desculpando-se e falando
de amor. Além disso, Rodolfo falava tão baixinho, e sua voz era tão
parecida com a de Fausto, que Júlia nem sequer desconfiou.
Parecia-lhe que ele sussurrava em seu ouvido as doces palavras que
ela, tão desesperadamente, ansiava por escutar. Totalmente
enleada, retrucou:

— Oh! Fausto! Nem sabe o quanto esperava ouvir isso. Como
pôde desconfiar de mim?
— Perdoe-me! Perdoe-me! — sua voz era quase súplice. — Fui
cego, o ciúme me tirou a razão. Mas eu a amo tanto...

E começou a beijá-la delicadamente, primeiro nos lábios, depois
descendo pelo pescoço, pelas orelhas, pela nuca. Júlia sentiu um
arrepio de prazer. Sabia que não devia, mas ela o amava e também
estava confiante em seu amor por ela. À medida que Rodolfo a
beijava, ela ia amolecendo, e ele começou a deslizar as mãos sobre
o seu corpo, ao mesmo tempo em que sussurrava:

— Meu amor... Quero que seja minha... Minha, para sempre...

Júlia já estava quase se deixando seduzir, sentindo o corpo trêmulo
de Rodolfo de encontro ao seu. Ele começou a levantar-lhe a
camisola, de forma suave e delicada, e ela foi se entregando. Até
que, de repente, sentindo próxima a consumação do ato sexual,
uma luzinha de discernimento começou a despontar dentro dela e,
empurrando-o delicadamente, disse:

— Não, Fausto, não... Não está direito...

Rodolfo, consumido pelo desejo, a muito custo conseguiu conter-se.
Com voz hesitante, respondeu baixinho:

— Tem razão, minha querida, perdoe-me. Não devia ter feito
isso. Mas é que a amo...
Com gestos de calculada compreensão e resignação, Rodolfo
afastou-se de Júlia, sentando-se na cama, de costas para ela. A
moça, ouvindo-lhe a respiração ofegante, levantou o rosto para ele,
vislumbrando-lhe o tórax musculoso na penumbra. Naquele
momento, sentiu o coração disparar, e o desejo tomou conta de seu
corpo. Ela abraçou-o por trás e mordeu-lhe o lóbulo da orelha,
acrescentando, cheia de emoção:

— Eu o amo. Quero ser sua.

Rodolfo voltou-se para ela e tomou-a nos braços, mansamente
recomeçando seu ritual de amor. Só que dessa vez, Júlia não o
repeliu. Ao contrário, entregou-se a ele com paixão, certa de que
estavam concretizando seu amor.

Tudo terminado, Rodolfo beijou-a apaixonada e carinhosamente,
fez-lhe juras de amor e saiu. No corredor às escuras, caminhou de
volta a seu quarto e ainda pôde vislumbrar a porta do quarto de
Constância se fechando lentamente. Despiu as roupas de Fausto e
guardou-as no armário, bem escondidas, para, no dia seguinte,
colocá-las junto com a pilha de roupas para lavar. Estava exultante!
O resultado de sua empreitada saíra melhor do que esperara.

Na manhã seguinte, bem cedo, Constância pulou da cama e foi
bater na porta do quarto de Fausto. O rapaz, ainda semi-
adormecido, foi atender e assustou-se com a presença da prima ali,
àquelas horas.

— Constância! — exclamou, num bocejo. — O que faz aqui tão
cedo?
— Vim preveni-lo — respondeu a meia-voz, entrando
rapidamente e fechando a porta atrás de si.
— Prevenir-me? De quê?
— Ouça não quero me intrometer em sua vida, nem tampouco
censurá-lo. Já fui jovem também e apaixonada, e sei como
são os arroubos da juventude.
— Não entendo o que quer dizer.
— O que você fez foi muito imprudente. A sorte foi que fui eu
quem viu, e não sua mãe...

Fausto, embora desconhecendo o que havia se passado, imaginou
tratar-se de Rodolfo. Na certa, o irmão fizera alguma besteira, e ela
os confundira. O mais provável era que tivesse dormido com alguma
escrava, o que, efetivamente, enfureceria a mãe. Balançando a
cabeça em negativa, protestou:

— Creio que está enganada, prima. Seja o que for que tenha
visto, não fui eu. Provavelmente, Rodolfo.
— Rodolfo?! — fez ela, admirada. — Ora, meu caro, não precisa
fingir para mim, pois não direi nada. Imagine... Rodolfo saindo
do quarto de Júlia no meio da noite, semi-despido e
desalinhado! Ora, Fausto, francamente...

Fausto desabou fulminado. O que era aquilo? Algum pesadelo?
Completamente fora de si, correu em direção ao quarto de Júlia e
escancarou a porta. A moça dormia placidamente, um sorriso de
felicidade a iluminar-lhe o rosto. Por um momento, seu coração se
enterneceu. Ela parecia um anjo e não seria capaz de traí-lo de
forma tão vil. Constância devia ter se enganado. Na certa, sonhara
e se confundira. Com os olhos úmidos, abaixou a cabeça e suspirou.
Foi então que viu, jogado a um canto, um lençol branco,
cuidadosamente dobrado e oculto sob a mesinha. Curioso, abaixou-
se e puxou o lençol, desdobrando-o freneticamente. Em seguida,
atirou-o no chão, horrorizado, e correu porta afora. Jamais
esqueceria aquela imagem. A imagem do sangue de Júlia
derramado sobre o lençol.
Partindo dali, correu para a cocheira, encilhou o cavalo e saiu sem
rumo. Queria esquecer o que vira esquecer que amava Júlia. Esta,
porém, logo que ele saiu, despertou com o barulho. Ao levantar-se,
percebeu que alguém estivera ali. Vendo a porta escancarada e o
lençol aberto, jogado no chão, compreendeu que havia sido
descoberta. Rapidamente, lavou-se, vestiu-se e correu ao quarto de
Camila. A cunhada também acabara de se levantar e preparava-se
para o café.

— Bom dia — disse Camila, beijando-a no rosto. — Dormiu bem?

Júlia balbuciou um tanto quanto constrangida:

— Camila... Por acaso esteve em meu quarto hoje cedo?
— Eu? Não, por quê? -Jura?
— Juro. Por quê? O que foi que houve?

Percebendo-lhe a palidez, Camila tomou-a pela mão e fê-la sentar-
se.

— Muito bem — disse. — O que aconteceu? Vamos, conte-me.
Pode confiar em mim. Sou sua amiga e quero ajudá-la.

Júlia confiava em Camila como jamais confiara em mais ninguém.
Se ela dissera que não havia estado em seu quarto, era porque não
estivera mesmo. Mas quem teria sido? Pelo estado em que
encontrara a porta e o lençol podia deduzir que, fosse quem fosse
não gostara nada do que vira. E só havia duas pessoas que
reagiriam assim: Rodolfo ou Palmira.

Calmamente, Júlia contou à cunhada tudo o que havia acontecido na
noite anterior, sem omitir nenhum detalhe. Fora maravilhoso, mas
alguém os descobrira, e ela precisava avisar Fausto. Ao final da
narrativa, Camila considerou:

— Ouça, meu bem, não se atormente tanto. O que você fez foi
uma loucura, uma precipitação. No entanto, é certo que vocês
se amam e que pretendem se casar.
— É verdade.
— Então, não há com o que se preocupar. Por mais que mamãe
ou Rodolfo os recriminem, não poderão fazer nada. Já está
consumado. Só o que temos a fazer é marcar para logo a data
do casamento.
— Acha mesmo?
— Claro que sim. Você e Fausto se amam, já tiveram uma noite
de amor. Não há por que esperar.
— Oh! Camila, você é tão boa!
— Não se esqueça de que passei por situação semelhante. Só
que o homem que me desonrou não me amava e quase
arruinou minha vida.

Júlia, percebendo certo tom de tristeza na voz de Camila, retrucou
penalizada:

— Eu sinto tanto!
— Não precisa minha filha. Hoje sou feliz ao lado de seu irmão.
Mas você não precisa passar por nada do que eu passei. E
agora, vá procurar Fausto e converse com ele. É importante
que estejam unidos.

Por mais que tentasse, Júlia não conseguiu encontrar Fausto.
Procurou por toda parte. Até foi a cavalo ao cafezal, onde ele se
escondera da outra vez, mas nada. Ninguém o vira e ninguém sabia
onde estava. Rodolfo também havia desaparecido. Desaparecido
não. Refugiara-se no quarto o dia todo, pretextando uma forte dor
de cabeça, conseqüência do vinho da noite anterior. Júlia começou a
se inquietar. Será que Fausto se arrependera e não tinha coragem
de enfrentá-la? Se assim fosse, era porque não a amava. Senão,
que outros motivos teria para sumir no dia imediato à sua primeira
noite de amor?

Ela estava desanimada e, ao cair da noite, sentou-se na varanda em
companhia de Camila, que tentava, de todas as formas, encorajá-la.
Foi então que divisaram no crepúsculo o vulto de Fausto se
aproximando a cavalo. Júlia deu um salto da cadeira e, coração em
disparada, correu para a escada, esperando que ele chegasse e
fosse falar com ela. Em vez disso, ele subiu, batendo as botas no
assoalho, e passou por ela feito uma bala, sem lhe dirigir um olhar
sequer. Júlia foi atrás dele, tentando segurar-lhe o braço, e chamou:

— Fausto! O que houve? Por quê...?

Ele puxou o braço bruscamente, encarou-a com os olhos em fogo e,
chispando de ódio, vociferou:

— Solte-me, sua ordinária! Por que não corre atrás de seu
amante?

Os olhos de Júlia encheram-se de lágrimas e ela soltou-o, confusa.
Fausto saiu em disparada, e ela lançou para Camila um olhar de
indignação. Não conseguia compreender. Então Fausto a amava de
noite e, no dia seguinte, a rejeitava e ofendia? Será que a estava
acusando de indigna por haver-se entregado a ele antes do
casamento? Teria ele coragem de acusá-la de mulher fácil só
porque não o repelira, julgando-a indigna de tornar-se sua esposa?
Pensaria que ela deveria ter resistido a suas carícias, mesmo
sabendo que o amava e que só se entregaria a ele? A ele e a mais
ninguém? Júlia não sabia o que pensar e desatou num choro
convulso, que Camila tentava conter.

— Acalme-se, minha menina — disse com brandura. — Alguma
coisa deve ter acontecido.
— Mas o quê? O quê? Fausto disse que me amava, prometeu
casar-se comigo. Será que me enganei com ele?
— Não creio. O mais provável é que algo de muito grave tenha
acontecido.
— Mas o quê? O que seria tão grave a ponto de fazê-lo esquecer
nosso amor e humilhar-me daquela maneira?
— Não sei Júlia, mas prometo que vou descobrir.

Camila levou-a para o quarto, deitou-a na cama e só saiu depois
que ela adormeceu indo direto bater na porta do quarto de Fausto.
Como o irmão não respondesse, ela rodou a maçaneta e entrou.
Fausto estava sentado em uma poltrona, de frente para a janela, e
não a ouviu bater nem a viu entrar. Ela aproximou-se dele e tocou-o
levemente no ombro. Fausto virou-se lentamente e fitou-a.

— O que quer? — indagou com raiva. — Veio tentar defender sua
protegida?
— Como posso defender alguém que nem sabe do que é
acusada?
— Ora, Camila, não se faça de desentendida. Duvido que Júlia
não tenha lhe contado o que aconteceu.
— Contou sim. Mas isso não é motivo para tratá-la do jeito que a
tratou. Se ela fez o que fez, foi por amor.
— Mas que bonito! Se ela ama Rodolfo, e não a mim, por que
não foi sincera comigo e não me contou? Eu ficaria triste, é
verdade, mas acabaria por entender e aceitar. Mas trair-me...
Isso não. Não posso admitir.
Camila, a princípio, não entendeu bem do que ele estava falando e
permaneceu ali parada, olhando para ele meio apalermada. No
entanto, tudo começava a fazer sentido. O desaparecimento de
Fausto, sua reação... A conveniente dor de cabeça de Rodolfo... De
repente, foi como se todas as peças de um quebra-cabeça se
encaixassem, e ela pôde nitidamente visualizar toda a trama de que
Júlia fora vítima. Coberta de horror, ela deu um salto e indagou:

— O que está me dizendo? Era Rodolfo na noite passada, e não
você?
— Ouça Camila, não adianta agora tentar me convencer de que
Júlia não sabia que era Rodolfo. Esse truque dos irmãos
gêmeos já é velho e não convence ninguém.
— Mas ela não sabia mesmo. Ela me disse que foi você...
— Mentira! Não adianta querer me fazer acreditar nesse conto da
carochinha, porque não vai! Não sou nenhum tolo! Eu bem
que deveria ter desconfiado. Aqueles dois, sempre juntos,
sempre fingindo nada existir entre eles, fazendo com que
parecesse que eu era um idiota ciumento. Como fui estúpido!
— Mas Fausto, ela não sabia. Posso lhe assegurar que os
confundiu.
— Confundiu... Pois se foi ela mesma quem disse que éramos
inconfundíveis.
— Mas estava escuro. Ela me disse que era você. A mesma voz,
os mesmos gestos carinhosos. Até as roupas eram as suas.
Fausto, você e Rodolfo são idênticos. Não é difícil se enganar,
ainda mais na penumbra.
— Vai querer agora me convencer desse absurdo? De que Júlia
se entregou a Rodolfo pensando que era eu? Ora, minha cara,
isso é ridículo. E depois, Rodolfo jamais iria ao quarto de Júlia
se ela não o convidasse ou, ao menos, o estimulasse.
— Está errado, Fausto. Tudo é possível.
— Será que Júlia não reconheceria meus beijos, meus carinhos?
Não, Camila, Júlia sabia que estava nos braços de Rodolfo, e
não nos meus. Na certa, pensou que eu não fosse bom demais
para ela. Sempre a respeitando, querendo esperar. Ela é uma
ordinária, isso sim.
— Não diga isso! Ela o ama.
— Bem se vê o quanto me ama.

Camila deixou caírem os braços ao longo do corpo e suspirou
desanimada. Como faria para convencê-lo?

— Escute Fausto, e tente raciocinar. Se tudo ia bem entre vocês,
por que Júlia se entregaria a Rodolfo?
— Não sei. Talvez não tenha tido coragem suficiente para
assumir que já não era a mim que desejava, e sim a ele.
Afinal, Rodolfo é impetuoso, arrojado, e eu sou um tolo
respeitador. E as mulheres gostam disso, não é Camila? No
fundo, gostam de homens atrevidos e ousados.
— Mas isso é um disparate!
— Será? Eu estava cego de amor e não pude perceber que Júlia
já não se interessava mais por mim.
— Fausto isso é um absurdo. Júlia o ama, não o trocaria por
ninguém.
— Não acredito em você. Ela estava me enganando, e bem
debaixo do meu nariz. Não fosse por Constância, jamais teria
descoberto.
— Constância? O que ela ter a ver com isso?
— Foi ela quem me avisou sobre eles.

Camila começava a entender. Tudo não passara de uma trama
diabólica para separar Fausto e Júlia. Mas por quê? O que
Constância lucraria com isso?
— Por que acha que Constância o avisou? Não acha que
pretendia, deliberadamente, provocar uma briga entre vocês?
— Isso é uma tolice. Constância contou-me sem querer. Ela sim,
confundiu Rodolfo comigo e pensou que fosse eu quem vira
saindo do quarto de Júlia, no meio da noite. Veio alertar-me
quanto à mamãe.
— Fausto, seja razoável. Não vê que Constância e Rodolfo
armaram tudo isso direitinho? E que você caiu sem nem
pestanejar?
— Por que Constância faria isso? O que lucraria com nossa
separação?
— Não sei. Mas algum motivo deve existir.
— Não acredito nisso. Você está tentando arranjar uma desculpa
que justifique a indignidade de Júlia.
— Ouça Fausto, conheço Constância muito bem. Ela sempre foi
ardilosa, maquiavélica. Se entrou nessa história, é porque
alguma coisa em troca Rodolfo lhe prometeu.
— Isso é loucura! Rodolfo nada tem que possa lhe interessar.
— Tem sim, Fausto. Só não sei o que é. Mas vou descobrir. Pode
apostar.

Por mais que se esforçasse, Fausto não conseguiu conter o pranto e
desatou a chorar, agarrando-se à cintura da irmã. Camila acariciou
seus cabelos, ergueu seu queixo e perguntou:

— Você confia em mim?

Ele olhou-a em dúvida e replicou:

— Por quê?
— Confia ou não confia?
— Sim... — respondeu hesitante.
— Pois muito bem. Façamos o seguinte: deixe-me investigar. Se
descobrir que Júlia é inocente, promete que a aceitará de
volta?
— Vai perder seu tempo.
— Não faz mal. Você promete?
— Mas ela agora já não é mais moça... Como aceitá-la, se já foi
deflorada por outro?
— Você a ama?
— Sim. Apesar de tudo, não posso negar que a amo.
— Então saberá vencer o preconceito e aceitá-la. Camila saiu dali
disposta a descobrir a verdade. Ela não tinha dúvidas de que
aquilo era obra de Constância. Era bem seu estilo. O que tinha
a fazer era desmascará-la, e era o que faria.

CAPÍTULO 23

Mais um dia amanhecia, e Sara preparou-se para sair. Tivera uma
noite péssima, com febre e calafrios. Tossira sem parar e chegara a
pensar que morreria. Frei Ângelo não saiu de sua cabeceira, rezando
e pedindo a Deus que não a deixasse desistir. Não quando tudo
começava a melhorar. Aos poucos ela foi se acalmando, até que a
febre cedeu, a tosse cessou e ela conseguiu adormecer.

Sara lavou-se e penteou os cabelos, auxiliada por Laurinda, e olhou-
se no espelho. Sob os olhos, a mancha roxa começava a se dissipar.
A tez, se bem que bastante pálida, já mostrava sinais de um
colorido fugidio, embora ainda não houvesse readquirido o viço
próprio da mocidade. Estava magra, quase esquálida, os ossos
despontando aqui e ali, e ainda sentia no peito uma dor que parecia
queimar. Apesar de sem apetite, pensou em juntar-se à família para
o café. Podia não sentir muita fome, mas tinha vontade de participar
da alegria do desjejum.

A mesa do café, apenas a mãe não estava presente. Encontrava-se
na cozinha, preparando uma bandeja para levar-lhe no quarto. Frei
Ângelo conversava com Ezequiel, que estacou, sustendo no ar a
xícara de chá que já ia levando aos lábios assim que viu a filha se
aproximar. De um salto, soltou a xícara e exclamou:

— Sara! O que faz aqui, minha filha?
— Ora, papai, vim juntar-me a vocês.
— Mas... Mas...
— Está se sentindo melhor? — indagou frei Ângelo.
— Sinto-me bem melhor sim, obrigada. Parece que recobrei um
pouco do ânimo.
— Mas que notícia maravilhosa! — animou-se o pai. — Era tudo o
que esperávamos ouvir.
— E mamãe?
— Na cozinha, preparando uma bandeja para levar a seu quarto.
— Pobre mamãe. Sempre a se desvelar. Pois vou lá dizer-lhe que
não se incomode. Estou mais bem disposta hoje.

Nesse instante, Rebeca, avisada por Laurinda da presença de Sara à
mesa, chegou apressada e, vendo a filha sentada ao lado do
marido, derramou lágrimas de felicidade e disse:

— Oh! Graças aos céus, minha filha! Quando Laurinda me disse,
não pude acreditar.
— Não pôde acreditar por que, dona Rebeca? — indignou-se frei
Ângelo. — A recuperação de Sara já era esperada. Ou não
era?

Rebeca, um pouco confusa, retrucou meio sem jeito:

— Claro... Claro que era... Mas depois da noite passada...
— Ora, mamãe, a noite passada foi apenas uma recaída. Não vai
se repetir.
— Assim é que se fala minha filha — disse frei Ângelo, animando-
a.
— Frei Ângelo está operando milagres — retrucou Sara, sorrindo
para ele.

Rebeca voltou-se para ele e acrescentou com emoção:

— Obrigada, frei Ângelo. O que está fazendo por minha filha não
tem preço.
— O único preço possível é sua felicidade. E agora, dona Rebeca,
por que não se senta? Sara deve estar com fome.

Ela torceu o nariz e, olhando para um bolo de fubá que se
encontrava sobre a mesa, objetou:

— Na verdade, não estou com muita fome, não. Mas queria
fazer-lhes companhia.

Rebeca e Ezequiel se entreolharam, e ela insistiu:

— Por que não toma ao menos uma xícara de chá ou de leite?

Sara pensou por alguns instantes. Não sentia fome, era verdade,
mas a idéia de uma xícara de leite até que lhe pareceu apetitosa, e
ela acabou por concordar:

— Leite está bem, mamãe.

Rebeca serviu-lhe uma xícara de leite puro, e Sara começou a
beber devagarzinho. Estava uma delícia! Doce e morninho, e ela
sentiu imenso prazer em saborear aquele leite. Sem perceber,
bebeu a xícara inteira e pediu mais, servindo-se de um pedacinho
de pão, para acompanhar. Não comeu muito, mas já era um bom
começo. Depois do café, frei Ângelo e Sara retiraram-se para o
jardim, onde costumavam ter suas conversas. A manhã estava
fresca e ensolarada, e Sara inspirou fundo, sentindo o ar puro
penetrando em seus pulmões. Tossiu levemente, olhou para frei
Ângelo e sorriu. Apesar do tanto que tossira na noite anterior, ao
menos não expelira sangue, o que era bom sinal. Os dois sentaram-
se e levantaram os rostos para o Sol. Àquela hora o calor ainda era
ameno, e um banho de Sol era extremamente saudável e
prazeroso. Frei Ângelo fechou os olhos e, sem abri-los, observou:

— Você nos assustou ontem, Sara. Pensei que fôssemos perdê-
la.
— E por pouco não perdem mesmo. Cheguei a pensar que fosse
morrer.
— Graças a Deus que você se recuperou.
— Sim, graças a Deus.
— Sabe, Sara, pensei que sair com Júlia e os demais fosse bom
para você.
— Oh, mas é! Gosto de nossos passeios. À exceção de Rodolfo,
sempre sarcástico e mordaz, os outros são muito agradáveis.
Têm-me ajudado bastante.
— Ótimo! Fico feliz em saber disso.
— Não se deixe impressionar pelo que houve ontem, frei Ângelo.
Foi uma crise isolada e passageira.
— O que será que provocou isso?
— Não sei. Talvez tenha sido a decepção por não poder estar
junto de Dário na festa de sua avó.
— Será?
— Creio que sim. Eu queria ir estar junto dele, apresentar-me
como sua noiva. Mas quando papai disse que não iríamos,
fiquei frustrada, sentindo-me rejeitada de novo, só porque
somos judeus. Como se ser judeu fosse algo do que se
envergonhar.
— Não há do que se envergonhar Sara. Mas é bem possível que
sua recaída tenha sido causada por isso, sim. Afinal, sabemos
que uma das maiores causas de sua enfermidade é,
justamente, o sentimento de rejeição, não é mesmo?
— É sim. Mas já passou. Sinto como se, em meio a toda aquela
crise, algo em mim tivesse se transformado, trazendo para
meu espírito uma compreensão que antes não sentia.
— Como assim?
— Não sei explicar. E como se conseguisse ter mais confiança em
mim mesma e, sobretudo, em Deus. Se não pude estar junto
de Dário ontem, com certeza é porque esse ainda não era o
momento mais apropriado. Talvez dona Palmira fosse nos
destratar ou algo de muito ruim pudesse nos acontecer.
— Que bom que pensa assim, Sara.
— Pois é. Fiquei imaginando que, se fosse algo bom para nós,
tudo teria dado certo e nós teríamos ido à festa.
— Posso saber o que foi que deu em você para alcançar essa
compreensão?
— O senhor, frei Ângelo. O senhor foi quem me ensinou a ter fé
e confiança em mim e em Deus. Hoje de manhã, quando
acordei e vi que havia sobrevivido à noite passada, foi que me
dei conta da infinita bondade de Deus. Sei que Deus é perfeito
e nada faria que pudesse me prejudicar. Só o que foi
necessário foi que eu compreendesse que a ajuda que vem de
Deus nem sempre é aquela que desejamos, mas, com
certeza, é a de que mais precisamos no momento. Quando
compreendi isso, foi muito mais fácil aceitar.
— Sara, o que me diz é maravilhoso. É por isso que você hoje
está melhor. Se conseguiu entender essas coisas e está
tentando transformá-las, não será mais necessário que a
enfermidade venha para alertá-la.
— É verdade. Não vou dizer que não estou triste nem frustrada.
Estou. Mas consegui encarar a tristeza e a frustração como
coisas que acontecem na vida de todo mundo, com as quais
aprendemos a lidar e, sobretudo, que elas não significam que
não sejamos queridos ou que sejamos rejeitados por quem
amamos.
— Continue assim, Sara, e tenho certeza de que conseguirá
controlar sua doença.
— O senhor, mais do que ninguém, vem me ajudando muito. Os
passeios e os amigos são agradáveis, fazem-me sentir viva e
com vontade de viver. Mas só o senhor consegue acender em
mim a luz da compreensão.
— Isso é muito bom. Somente quando nos compreendemos é
que podemos nos modificar.
— Sabe, frei Ângelo, desde que o senhor aqui chegou, comecei a
me olhar de uma maneira diferente. Não como uma
pobrezinha ou um estorvo, mas como alguém que é capaz de
ser alguém, de se dar o devido valor, de se olhar no espelho e
se sentir capaz de ser amada. É claro que, de vez em quando,
tenho uma recaída, como ontem, e me vejo de novo naquela
posição da pobre menina abandonada. Mas isso passa rápido,
e logo retomo o equilíbrio sobre mim mesmo.
— Sara, você é mesmo uma menina especial. E pode ter
certeza: a cura de sua doença está mesmo em suas mãos.
— Pois é. Hoje acredito nisso. Com o desenrolar de nossas...
Sessões... Comecei a analisar minha vida, meus medos, minha
solidão, e hoje estou certa de que o senhor tinha razão. Eu
sempre fui uma menina só e triste, e se esses sentimentos não
têm origem nesta vida, essa origem só pode estar em vidas
anteriores.
— Acredita agora?
— Sim. Os sonhos me levaram a isso. Analisando-os bem, vejo
que tudo se encaixa. Só eles podem explicar o fato de eu
sentir tanta rejeição, sem que nunca tenha sido rejeitada.
— É verdade. Como você mesma pôde perceber, em uma vida
anterior você não conseguiu suportar essa rejeição e passou a
se fechar cada vez mais dentro de si. Em vez de lutar contra a
tristeza, deixou que o sentimento a dominasse e entregou-se
ao desânimo, desistindo de tentar ser feliz. Com isso, foi-se
fechando, fechando, até que adoeceu, e logo de quê? Dos
pulmões.
— Sim. Como lhe disse, sonhei que era uma menina e que tinha
pneumonia.
— Está vendo? Sempre a mesma coisa. Solidão e tristeza.
Naquela vida você desenvolveu uma pneumonia que a acabou
matando, e nessa, quase envereda pelo mesmo ou por
caminho pior, abrindo espaço em seu corpo físico para que a
tuberculose se instalasse.
— Tem razão. Mas não quero padecer. Não dessa vez. Sinto que
deixei para trás algo muito importante em minha vida e que
hoje quero resgatar.
— Dário?
— Sim. Sei que o perdi, pois a morte prematura impediu-me de
viver a seu lado. Hoje tenho novamente essa oportunidade e
não quero desperdiçá-la. Quero viver e ser feliz ao lado do
homem que amo.
— Assim é que se fala, Sara.
— Sei que vou conseguir. Hoje posso dizer que compreendo
minha doença, e graças ao senhor, que me fez acreditar que
já vivemos muitas vidas.

Frei Ângelo voltou o rosto contra o Sol e viu que Dário ia se
aproximando, em companhia de Júlia.

— Por falar em Dário...

Sara ergueu-se vagarosamente e estendeu os braços para ele, que
foi correndo ao seu encontro. Logo que a alcançou, tomou-a nos
braços e ergueu-a, beijando-a suavemente. Ela corou e, virando-se
para Júlia, cumprimentou:

— Olá, Júlia.
— Olá, Sara. Como está?
— Melhor agora que vocês chegaram.
— Venha — interrompeu Dário. — Caminhemos um pouco ao Sol.

Frei Ângelo convidou Júlia a sentar-se junto dele. Ela estava abatida,
e os olhos inchados demonstravam que havia chorado. Não
querendo violar sua intimidade, mas ansioso por ajudá-la,
perguntou:

— Está tudo bem, Júlia?

Júlia não respondeu. Desatou a chorar, e de forma tão sentida que
frei Ângelo se preocupou. O que teria acontecido?

— Não quer me contar o que houve? — arriscou.
— Oh! Frei Ângelo, por favor, deixe-me apenas ficar aqui a seu
lado.

Ela pousou a cabeça no colo do frei e continuou a soluçar. Embora
ela não lhe dissesse, frei Ângelo tinha certeza de que algo muito
sério havia acontecido, e sua intuição lhe dizia que havia sido com
Fausto. Contudo, achou melhor não falar nada. Estava claro que
Júlia não queria conversar. Queria apenas um colo amigo e
acolhedor, onde pudesse dar livre curso às lágrimas e desabafar.
Vendo que ela, finalmente, se acalmara, frei Ângelo tentou
novamente:

— Não quer mesmo me contar o que aconteceu?

Júlia não sabia o que dizer. Sequer sabia ainda o que acontecera. Só
o que sabia era que Fausto a tratara mal e não conseguia atinar no
motivo.

— Frei Ângelo, gostaria de me confessar.
— Pois não, minha filha. Vamos lá dentro. Preciso me preparar
e...
— Não, frei Ângelo, isso não será necessário. Posso confessar-me
aqui mesmo, e sem qualquer indumentária especial.
— Está bem, minha filha, fale.
— Frei Ângelo, eu... Eu... Entreguei-me a Fausto na noite
passada.
— E...?
— E agora ele me despreza. Oh! Frei Ângelo, estou desesperada,
não sei o que fazer. Entreguei-me porque o amava e pensei
que ele também me amasse. Mas agora, não sei mais em que
acreditar. Ele me destratou, humilhou-me. Foi horrível! Sei que
errei, mas foi por amor! Por amor, entende isso?

Ele tomou suas mãos com ternura e disse com voz bondosa:

— É claro que sim, criança. Não se desespere.
— Como não? Ele me abandonou, não quer me ver, não fala
comigo...
— Minha filha, quer a absolvição do padre ou o conselho do
amigo?
— Os dois.
— Pois bem. Como padre, devo recomendar-lhe que entregue
seu coração a Deus e peça para que tudo se esclareça. Como
amigo, devo dizer-lhe que não acredito que Fausto a tenha
abandonado.
— Não?
— Não. Alguma coisa aconteceu que o fez tratá-la da forma
como a tratou.
— Mas o quê? Eu não fiz nada.
— Não sei minha filha, mas sinto que vocês foram vítimas da
maldade alheia.
— Será? Mas quem faria uma coisa dessas?
— Não sei e não quero conjecturas. Não devemos julgar nem
levantar falsos testemunhos.
— E o que farei?
— Confie e aguarde. Deus jamais desampara aqueles que nele
crêem.

Júlia voltou para casa com o coração mais sereno mais confiante.
Em seu íntimo, sabia que estava prestes a atravessar duras provas,
mas acreditava que as superaria. Tinha que acreditar.

CAPÍTULO 24

Quando Júlia descobriu o que havia acontecido, desesperou-se. Não
fosse tão corajosa, teria se matado. Aquilo não podia ser real. Era
uma crueldade do destino, e ela não podia se conformar, embora
Camila tentasse, a todo custo, consolá-la.

— Acalme-se, querida. Desespero não leva a nada.
— Oh! Camila! Sinto que o mundo inteiro ruiu sob meus pés.
— Não diga isso. Nem tudo está perdido.
— Como não? O que será de mim agora? Perdi Fausto... A vida
sem ele não vale a pena.
— Minha querida, deixe tudo por minha conta. Descobrirei a
verdade e Fausto será seu novamente.
— Fausto nunca acreditará em mim. E depois, mesmo que
acredite, já não servirei mais para ele.
— Engana-se. Ele a ama e saberá superar o que aconteceu.
— Acha mesmo que ele um dia poderá me perdoar?
— Não, não acho que você deva pedir-lhe perdão. O perdão é
para os que erram, e você nada fez de errado. Você apenas
seguiu seu coração e foi enganada, agiu sob a influência de
uma ilusão. Pense apenas no sentimento que a moveu, e não
no homem que a seduziu. Se soubesse que era Rodolfo quem
ali estava, você jamais teria se entregado a ele. Mas lembre-
se que o que sentiu foi verdadeiro e maravilhoso, porque
sentiu por Fausto. Era a Fausto que você queria se entregar.
Foi para Fausto que você soprou palavras de amor. Não
invalide esse sentimento, que foi puro, só porque Fausto,
naquele momento, era uma ilusão. Pense apenas no seu amor
por ele, e esse amor lhe dará forças para colocá-lo no lugar
que lhe pertence.

Júlia estava chorando e retrucou entre lágrimas:

— Camila, você é maravilhosa!
— Sou sua amiga, além de uma mulher bastante vivida, é claro.
— Como fará para descobrir a verdade?
— Se Constância está metida nisso, só pode ser por um motivo.
— Que motivo? Dona Constância mal me conhece; mal conhece
seus irmãos. Que motivos poderia ter para querer destruir-
me?
— Você não, meu bem. Acho que você foi apenas um
instrumento. Tenho certeza de que o que ela quer é destruir
Tonha.
— Tonha? Mas por quê?
— Lembra-se da história que lhe contei? De como Constância se
apaixonou por Inácio que, por sua vez, apaixonou-se por
Tonha? Pois é. Constância jamais conseguiu separá-los, e
agora creio que voltou para terminar sua vingança.
— Se quer vingar-se de Tonha, por que teve que me usar? Gosto
de Tonha, mas não tenho com ela nenhum tipo de relação.
— É isso o que me intriga. Se bem conheço minha prima, ela
deve ter ajudado Rodolfo em troca de algum favor. Mas que
favor seria esse?
— E quanto a Rodolfo?
— Não sei. Rodolfo está arredio, evitando encontrar-se com
Fausto.
— Fausto não lhe tomou satisfações?
— Ao que me consta, não. Creio que Fausto não quer mais
mexer na ferida, por medo ou por vergonha. Mas não está
falando com Rodolfo.
— Minha vontade é de matá-lo! Eu mesma vou procurá-lo e
exigir explicações! Aquele canalha!
— Você não vai fazer nada disso. E depois, de que adiantará? Só
servirá para atiçar ainda mais o ódio de Fausto, que entenderá
sua reação como cobrança de uma atitude por parte de
Rodolfo, e não como desabafo e indignação.

Júlia desabou, desanimada.

— O que faço, então?
— Por enquanto, nada.
— Será que alguém mais sabe o que houve?
— Creio que não. Se mamãe soubesse, por exemplo, já teria
acontecido algum rebuliço. Mas tudo está calmo, e é melhor
que continue assim.
— Camila... Quero ir embora. Não posso mais ficar aqui entre
Fausto e Rodolfo, agindo como se nada tivesse acontecido.
— Já esperava por isso e acho que tem razão. É melhor que você
fique por uns tempos na fazenda Ouro Velho. Tenho certeza
de que Ezequiel e Rebeca não se importarão.

No dia seguinte, bem cedo, Júlia partiu para a fazenda Ouro Velho
sem maiores explicações. Palmira, apesar de desconhecer aquela
história sórdida, logo desconfiou que Fausto e Júlia houvesse
brigado, e exultou. Não disse nada, mas, intimamente, regozijava-se
por ver a moça afastada dali.

Na Ouro Velho Júlia foi recebida com carinho, e todos respeitaram
sua tristeza. Trataram de acomodá-la e fazer com que se sentisse
em casa, e frei Ângelo dizia-lhe sempre:

— Não se preocupe minha filha. Tenha fé e Deus a ajudará.

Depois que Júlia se foi, Camila sentiu-se mais à vontade para agir.

Com a desculpa de que não andava se sentindo muito bem, pediu à
mãe que lhe disponibilizasse uma negrinha, para fazer-lhe
companhia durante a noite. Palmira, sem desconfiar de nada,
mandou vir da senzala uma escrava novinha, e assim, toda a noite
Camila mandava que ela montasse guarda, espreitando a porta do
quarto de Constância. Durante o dia, Camila fazia-a dormir. Não
queria que ela nem cochilasse em sua vigília, e a negrinha passava
as noites em claro, sem nem piscar, para ver se Constância saía ao
apagar das velas.

Enquanto isso, Rodolfo se felicitava. O plano fora perfeito, e o irmão
estava arrasado. Ao contrário do que esperara Fausto não o
procurara e nem dissera nada. Na certa, não queria expor sua
vergonha, a vergonha de ser traído, enganado, ludibriado pela
mulher que dizia amá-lo. Mas ele não podia perder a oportunidade
de espicaçá-lo. Vencera e estava por cima, e era preciso humilhar e
espezinhar o irmão.

Fausto, não querendo expor sua dor, tentou disfarçar o mais que
pôde. Contudo, não podia suportar a presença do irmão. Não podia
nem olhar para ele, muito menos escutar sua voz. Por isso, deixou
de acompanhar a família às refeições, optando por comer em seu
quarto ou na cozinha. Palmira sabia que havia algo errado, mas
preferiu não perguntar. O filho brigara com Júlia, e era óbvio que
não queria tocar no assunto com ninguém.

Alguns dias após a partida de Júlia, Rodolfo, vendo Fausto atravessar
a sala a caminho da cozinha, perguntou a Camila, com falsa
displicência:

— Por que Júlia partiu sem nem ao menos se despedir?

Pronto. Aquilo foi o suficiente para tirar Fausto do eixo. O rapaz, que
vinha guardando dentro de si um ódio surdo e imensurável, não
pôde resistir e explodiu:

— Canalha!

E desfechou violento soco no queixo do irmão, que caiu para trás,
por cima da cadeira. Fausto, enlouquecido, partiu pra cima dele e
continuou a esmurrá-lo, gritando com um brilho de ódio no olhar:

— Canalha! Cafajeste!
Os demais, apavorados, levantaram-se e acorreu, Dário tentando
segurar os braços do tio.

— Pelo amor de Deus, tio Fausto — implorava —, o que foi que
lhe deu?

Fausto não dava ouvido e continuava a bater. Apenas Túlio parecia
satisfeito. Rodolfo bem que merecia uma surra. Palmira, porém,
recobrando-se do susto, acercou-se deles e ordenou:

— Chega Fausto, estou mandando! Largue-o!

Ouvindo a voz da mãe, Fausto soltou o irmão e ajoelhou-se no chão,
ao lado dele, arfando, exausto. Constância correu para Rodolfo,
ajudando-o a se levantar, enquanto Tonha chegava da cozinha
trazendo uma bacia com água morna e toalhas limpas. Ajudada por
Dário, conduziram-no para o sofá e o deitaram, e Tonha pôs-se a
limpar-lhe as feridas. Nesse momento, Constância lançou-lhe um
olhar de tanto ódio, que Tonha chegou a sentir-se mal e recuou
assustada. Mas Rodolfo precisava de cuidados, e ela não deixaria de
cuidar de seu menino por causa daquela bruxa. O rapaz, vendo a
bondade e a dedicação com que Tonha limpava e tratava seus
ferimentos, por um momento, arrependeu-se. A prima, todavia,
percebendo o que lhe ia à alma, sentou-se a seu lado e soprou-lhe
no ouvido:

— Nem pense em voltar atrás na palavra empenhada.

E afastou-se no exato instante em que Palmira ia chegando.
Conseguira, finalmente, acalmar Fausto e queria certificar-se de que
Rodolfo estava bem. Vendo que não se ferira gravemente, indagou:

— Muito bem. Podem me explicar o que é que está acontecendo?

Rodolfo, fingindo sofrimento, considerou:

— Pergunte a Fausto. Afinal, foi ele quem me bateu.

Ela virou-se para Fausto e continuou:

— E então?
— E então o quê? — retrucou, num misto de raiva, vergonha e
confusão.
— Estou esperando que me diga o que aconteceu. Por que bateu
em seu irmão?

Fausto não queria dizer. Sentia tanto ódio que parecia que ia
explodir, e rosnou entre dentes:

— Pergunte a ele.
— Estou perguntando a você. Você o agrediu. Quero saber por
quê.

Como Fausto não respondesse, ela prosseguiu:

— Aposto que é por causa de Júlia, não é mesmo? É claro que é,
e essa não é a primeira vez. Mas vocês deviam se
envergonhar, os dois. Brigar assim pelo amor de uma
mulher...
— Eles me traíram, mamãe! — explodiu Fausto, não conseguindo
mais conter a fúria dentro do peito. — Dormiram juntos, aqui
mesmo, nesta casa, bem debaixo de nossos narizes!

Palmira levou um choque. Não esperava por aquilo. Contudo, já
vivera o suficiente para não se deixar impressionar e, tentando
manter a calma, replicou:

— E isso é motivo para espancar seu irmão?

Ele fitou-a, incrédulo.

— Acha que não? Ele me traiu, meu próprio irmão, deitou-se com
a mulher que eu amava, bem ao lado de minha porta!
— Só fiz isso porque ela me provocou — defendeu-se Rodolfo,
com voz hesitante.
— Canalha! — gritou Fausto. — E você não podia perder a
oportunidade, não é mesmo?
— Fausto — o retrucou em tom conciliador e amistoso —, sei que
o que vou lhe dizer é difícil, mas procure entender. Não quis
traí-lo, mas Júlia me provocou, se ofereceu...
— Cale-se! Cale-se, cretino! Não quero ouvir mais nada!
— Mas é preciso, Fausto, você tem que saber quem é Júlia.
— Não! Não!
— Sinto meu irmão, mas é Júlia quem não presta. Deitou-se
comigo porque disse que você não era homem suficiente para
ela. Roia-se de desejo, mas você, cheio de pudores, não
queria fazê-la mulher...
— Pare! Por Deus, pare! Não me torture!
— Sinto muito, meu irmão. Eu não queria, tentei lutar contra
meus instintos. Você é meu irmão, não queria traí-lo. Mas sou
homem, e ela provocou... Fui fraco, sei, não resisti...

Constância estava impressionada. Rodolfo saía-se melhor do que ela
esperava. Estava perfeito em seu papel de pobre irmão seduzido.
Todos pareciam convencidos, até aquela idiota da Tonha. Só Camila
não se deixara convencer. Em dado momento, não podendo mais
suportar aquela cena patética, achou que já era hora de intervir.

— Chega Rodolfo! A quem quer enganar? Pensa que não sei o
que fizeram? Pensam que não descobri seu plano sórdido?
— Camila — objetou a mãe — do que é que está falando?
— Estou falando do plano que Rodolfo e Constância engendraram
para destruir Júlia e Fausto.
— Eu?! — fez Constância, indignada. — Era só o que me faltava.
Não seja ridícula, Camila. Sei o quanto gosta de Júlia, mas
deixe-me fora dessa história. Não tenho nada com isso.
— Não seja tola, Camila — repreendeu Palmira. — Por que quer
justificar a indignidade de sua cunhada acusando injustamente
sua prima? Não vê que isso não é direito?
— Mas foi exatamente o que aconteceu.
— Não acredito em você. Constância não tem motivo algum para
prejudicar Júlia.
— Vai defendê-la de novo, mamãe, como fez trinta anos atrás?
— Isso é uma outra história, minha filha. Não misture as coisas.
— Sim — cortou Constância, com voz chorosa. — Só porque errei
uma vez serei culpada pelas desgraças de todo mundo?
— Constância está certa, Camila. Ela não tem nada com isso.
Não arrume escusa insólita e infundada só para salvar Júlia.

Camila calou-se. Não adiantava tentar convencê-los, porque
ninguém acreditaria. Não tinham mesmo motivos para acreditar.
Assenhoreando-se da situação, Palmira decretou:

— Muito bem. Não quero ouvir mais nem uma palavra sobre essa
história. Júlia não é digna de nenhum de meus filhos, e fico
feliz que tenha partido. De hoje em diante, não se toca mais
no nome daquela vagabunda aqui.
— Mamãe! — ia protestando Camila.
— Não diga mais nada, minha filha. Está decidido. E quem não
estiver satisfeito, pode ir juntar-se a ela.

Ninguém disse mais nada. Camila estava perplexa e revoltada com
a atitude da mãe. Mais uma vez ela defendia Constância, mesmo
sabendo do que ela era capaz. Não fosse a determinação em
desmascarar a prima, teria partido também. Mas, por enquanto, não
podia. A felicidade de Júlia e de Fausto dependia dela, e ela não
permitiria que a cunhada carregasse para sempre a culpa por algo
que não cometera.

CAPÍTULO 25

Desde esse dia em diante, Palmira, sempre que possível, evitava
tocar no nome de Júlia, considerando encerrada aquela história. Ela
fora indigna e mentirosa, e não merecia perdão. Por isso, não queria
mais ouvir falar em seu nome. Dário e Túlio também não
acreditavam na versão de Rodolfo mas, aconselhados por Camila,
não disseram nada. Túlio, principalmente, sabia muito bem do que o
tio era capaz. Em vista disso, julgou que Rodolfo, já satisfeito, não
precisasse mais dele, e começou a relaxar. Mas Rodolfo, ao
contrário do que ele pensava, não se esquecera, e logo tratou de
lembrá-lo de seu indigno compromisso.

— Olá, Túlio — disse Rodolfo, em tom sarcástico, assim que o
sobrinho abriu a porta do quarto.
— O que quer? — perguntou apreensivo e nada satisfeito.
— Não vá me dizer que já se esqueceu do nosso compromisso.
— Não tenho compromisso algum com você.
— Ah, tem sim. E dos mais importantes.
— Escute aqui, tio Rodolfo, por que não me deixa em paz? Já não
conseguiu o que queria? Não dormiu com minha tia Júlia? O
que mais quer de mim?
— Quero apenas lembrá-lo de sua promessa.
— Por quê?
— Porque posso precisar. Não quero desperdiçar nenhuma das
minhas armas contra Fausto.
— Está louco! O que pretende? Já não o destruiu?
— Não o suficiente.

Naquele momento, Túlio pôde perceber o quanto Rodolfo estava
perturbado. Pensara que o tio gostava de Júlia, mas percebia que a
verdade é que odiava o irmão. Rodolfo não estava interessado em
conquistar o amor de sua tia, mas em destruir seu próprio irmão.
Mas por quê? O que ele lhe fizera? Túlio, por mais que se
esforçasse, não conseguia atinar nos motivos que impulsionavam
Rodolfo a destruir Fausto. E, realmente, não havia motivo algum.
Não nessa vida, mas em outra, muitos séculos atrás.

Túlio e Rodolfo eram, então, os filhos mais jovens de Licurgo, que
ficara viúvo quando eles ainda eram bem pequenos. Não podendo
suportar a ausência da mulher, Licurgo casara-se de novo, e sua
nova esposa, Palmira, também viúva, trouxera consigo um filhinho,
Fausto, quase da mesma idade que seus enteados.

A nova madrasta, embora não fosse pobre, não possuía a nobreza
do pai de Rodolfo, o que, inclusive, levara seu irmão mais velho a
abandonar a casa paterna. Rodolfo, porém, ainda criança, logo
tratara de discriminar Fausto, afastando-o das brincadeiras e dos
passeios. Quando Fausto, indignado, pedia para acompanhá-los,
Rodolfo respondia do alto de sua soberba:

— Não pode. Você não é igual a mim.

Naquela época, Júlia era prima dos rapazes e ia se casar com
Rodolfo, até que conhecera Fausto e interessara-se por ele. A moça,
a princípio, ainda hesitara em romper o romance com o primo, em
virtude de sua alta posição social, o que causara enorme desgosto
em Fausto. Mas depois, vendo que seu coração pendia mesmo para
Fausto, acabara por entregar-se a ele e abandonara o primo para
poder desposá-lo, ocasionando violenta reação de Rodolfo.

Para completar, Fausto era um moço hábil e inteligente. Dedicara-se
à carreira política e logo fora chamado a representar seu país em
embaixadas do mundo todo. Ao mesmo tempo em que sua carreira
crescia vertiginosamente, Rodolfo não conseguira ser mais do que
um simples capitão, encarregado de dirigir inexpressivo exército e,
assim mesmo, por influência de seu pai. A inveja o foi dominando.
Fausto, embora não fosse dotado da mesma nobreza de sangue que
ele, conseguia sobressair-se em tudo o que fazia, ao passo que
Rodolfo, por mais que se esforçasse, não conseguia igualar o brilho
e o sucesso do outro.

Fausto se casaria com Júlia e com ela partiria para um país distante.
Mas Rodolfo não estava disposto a permitir. Às vésperas do
casamento, lançara-lhe em face um duelo, e Fausto o teria matado,
não fosse à interferência de Júlia. Rodolfo, porém, embora poupado,
acabara humilhado, escarnecido por todos, e terminara seus dias
sozinho, isolado no castelo da família, alimentado apenas pelo ódio
que sentia do rival.

Mas a interferência de Júlia cobrira Fausto de desconfiança. Por mais
que ela fizesse ou dissesse, o fato era que Fausto não conseguia
acreditar que a moça não tinha mais nenhum interesse em Rodolfo
e que só intercedera em seu favor por uma questão de humanidade.
Afinal, eram primos, estiveram comprometidos, e não lhe agradava
nada ser o motivo da morte de seu antigo namorado. Júlia sentia
muita pena de Rodolfo e sempre que estava de volta a seu país ia
visitá-lo em seu castelo. Quando Fausto descobrira, enchera-se de
ciúme, julgando que a esposa o estava traindo, e não conseguira
acreditar quando ela lhe dizia que não havia nada entre eles. Desde
esse dia, Fausto passara a tratar Júlia com certa indiferença, sempre
desconfiado de seus gestos e de suas palavras. Afinal, não havia se
entregado a ele antes do casamento? Por que não poderia entregar-
se a Rodolfo depois?

Depois que desencarnou Fausto e Rodolfo assumiu o compromisso
de nascer como irmãos gêmeos, numa tentativa de superar suas
diferenças, aprendendo que todos são iguais aos olhos de Deus.
Fausto, mais consciente, mais depressa se imbuíra do desejo de se
reconciliar com o irmão, mas Rodolfo, ainda muito apegado aos
valores terrenos, não conseguira vencer suas próprias tendências e
novamente enveredava pela amarga senda do ódio.

Mas nada disso Túlio conhecia. Para ele, o ódio de Rodolfo por
Fausto não tinha motivo nem explicação, ainda mais porque eram
gêmeos, e ele não conseguia entender aquela rivalidade. Achava
que o tio estava enlouquecendo e sentia medo dele.

Mas queria afastar-se de tudo aquilo. Já não tinha seus problemas,
sua culpa? Por que ter que carregar também a cruz de Rodolfo?

— Não se esqueça — tornou Rodolfo, chamando-o de volta à
realidade. — Posso precisar de você. Não vá falhar comigo.

Túlio não respondeu, e ele se foi. Até quando seu martírio
continuaria?

Em pouco tempo Rodolfo reunia-se a Constância. Precisava, ele
também, pagar a promessa que fizera.

— Já pensou em tudo? — indagou Rodolfo.
— Como sempre.
— E o que idealizou dessa vez?
— Quero que a chame ao seu quarto.
— Para quê?
— Assim que todos se recolherem, chame-a ao seu quarto. Diga-
lhe que a comida lhe causou certa indisposição e peça-lhe
para preparar-lhe um chá. Pelo que conheço de Tonha, ela irá
lá aos fundos colher algumas ervas. Por via das dúvidas, eu
mesma me encarregarei de esvaziar as caixinhas de chá, o
que a obrigará a usar ervas frescas. Lá, então, a sós com ela,
executarei minha vingança.
— Esta noite?
— Esta noite. Não posso esperar nem mais um dia.

Naquela noite, depois que todos foram dormir, Rodolfo puxou a
sineta, que tocava na cozinha, e Tonha apareceu.

— Deseja alguma coisa, sinhô?
— Sim, Tonha... — disse devagarzinho, enquanto se retorcia na
cama, as mãos apertando a barriga.
— Está sentindo alguma coisa?
— Hum, hum. Uma dor aqui no estômago, não sei o que é.
— Será que foi algo que comeu? Eu bem falei a sinhá Palmira
para não colocar pimenta no pirão...
— Por favor, Tonha, deixe isso pra lá. Faça-me um chá, por
favor.
— É pra já, sinhozinho. Vou fazer um chá de boldo especial. Se
vomitar, não faz mal. Vai limpar por dentro.

Quando Tonha saiu, a porta do quarto de Camila se fechou. A
negrinha encarregada de vigiar os aposentos de Constância, ouvindo
barulho no corredor, entreabriu a porta e espiou. Vendo, porém,
que se tratava de Tonha, não deu importância ao fato e tornou a
fechar a porta, vagarosamente. Com o clique da fechadura, Camila
despertou.

— O que houve? — indagou sonolenta.
— Nada, sinhá. Foi apenas Tonha, que foi ao quarto de sinhô
Rodolfo.
— Tonha? Está bem...

De repente, Camila deu um salto. O que estaria Tonha fazendo ali,
justamente no quarto de Rodolfo, e àquelas horas? Ela pulou da
cama e correu ao quarto de Constância, empurrando a porta bem
devagar. A prima não estava, e a cama, ainda feita, delatava que
ela ainda nem se deitara. Intuitivamente compreendendo o que
estava se passando, voltou a seu quarto e ordenou à escrava:

— Vá agora mesmo ao quarto de mamãe e diga-lhe para se
encontrar comigo lá fora!
— Mas sinhá...
— Agora! Vá!

Nesse ínterim, Tonha, não encontrando nenhuma erva na cozinha,
saiu para o quintal, a fim de colher algumas para o chá. Ao chegar
perto do canteiro, ouviu uma voz fantasmagórica atrás de si:

— Olá, Tonha.
Ela se assustou e levou a mão ao peito. Constância sorriu aquele
sorriso diabólico e aproximou-se dela.

— Sinhá Constância! O que faz aqui?
— Quero conversar.
— Não acha que já é um pouco tarde? Só vim preparar um chá
para...
— Nunca é tarde para falar de Inácio — cortou Constância,
rispidamente.
— Inácio? Desculpe sinhá, mas Inácio está morto, e não quero
falar sobre ele, não. A sinhá não tem o direito.
— Não? Mas eu o amava! E o merecia. Muito mais do que você...
Negra!

Tonha abaixou os olhos e retrucou com voz sumida:

— O que quer sinhá?
— Vingança!
— Mas Inácio está morto. Não pode pensar que fui eu que o
matei...
— Você? Não negra estúpida, sei que não foi você. E sabe como
sei? Porque fui eu! Fui eu que matei Inácio!
— A sinhá?
— Por sua culpa, negra, ateamos fogo naquela casa, eu e Basílio,
para queimá-la viva. A você e àquela intrometida da Aline, e
seu maridinho. Pensávamos que Inácio estivesse em seu
próprio quarto, na ala oposta da casa. Mas ele não estava não
é negra? Estava com você, em sua cama, em seus braços...
— Sinhá, por favor...
— Por que foi se intrometer entre nós? Você é apenas uma
escrava. Por que teve que me roubar Inácio? O único homem
a quem amei em toda a minha vida.
Constância chorava desesperadamente. A saudade e o remorso a
roíam por dentro, e ela não podia suportar. Tonha, apesar de tudo,
condoeu-se dela. Colocando a mão em seu ombro, disse com voz
humilde e branda:

— Sinhá Constância, deixe isso para lá. Já passou. Não adianta
mais. A sinhá deve esquecer e viver sua vida...
— Não, negra! Jamais poderei viver em paz enquanto você não
estiver morta!

Constância ergueu o braço, e a lâmina do punhal brilhou na luz do
luar. Já ia desferir o golpe quando sentiu que a seguravam por trás,
subjugando-a, e ela tombou.

— Não! — gritou Camila, enquanto se esforçava para dominá-la.

As duas lutaram, até que o punhal caiu da mão de Constância, e
Palmira o recolheu. Quando a negrinha fora ao seu quarto, berrando
feito uma cabrita, Palmira ficara furiosa e até lhe dera uns tapas.
Mas ela falava no nome de Camila com tanta insistência, que ela
acabou se convencendo. Andando o mais depressa que podia,
auxiliada pela negrinha, chegou bem a tempo de ouvir a confissão
de Constância. Camila, que chegara primeiro, vendo a porta da
cozinha aberta, correu e avistou as duas discutindo. Em silêncio, deu
a volta no terreiro e ocultou-se nas sombras, atrás da prima, o que
lhe permitiu saltar sobre ela bem a tempo de impedir que desferisse
em Tonha o golpe fatal.

— Pode soltá-la, Camila — ordenou Palmira, olhos secos,
chispando de ódio. — Não suje suas mãos com o sangue de
uma assassina.
— Tia Palmira, eu...
— Cale a boca, sua víbora! Como pôde enganar-me dessa
forma? Confiei em você, dei-lhe meu apoio. Mais do que isso;
amei-a como a uma filha. Por que me apunhala pelas costas?
— Eu... Eu...
— Você matou meu filho. Você matou Inácio... E Aline...
— Não, não. A culpa foi de Tonha...
— Tonha é uma tola e uma atrevida. Mas você... É uma
assassina! Assassina!

Constância descontrolou-se. Ouvindo as acusações da tia, desatou a
chorar. Nesse momento, atraídos pela gritaria, os outros
começaram a chegar. Primeiro chegou Fausto. Depois chegaram
Túlio e Dário. E, por fim, Rodolfo, todo nervoso. O plano falhara o
que era extremamente perigoso.

— Saia daqui! — berrava Palmira. — Terêncio! Terêncio!

Terêncio, cujas acomodações ficavam ali bem próximo, ouvira toda
a conversa.

— Chamou dona Palmira?
— Terêncio, pegue essa criminosa, leve-a para a vila e entregue-
a ao chefe da guarda — disse secamente. — Nunca mais
quero vê-la.
— Sim, senhora.

Terêncio agarrou-a pelos punhos e começou a arrastá-la, ao mesmo
tempo em que ela gritava:

— Por favor, tia Palmira, perdoe-me! Não quero ser presa! Foi
um acidente, eu não queria! Tenha piedade, por favor!
Palmira já lhe havia dado as costas, fazendo-se surda a suas
súplicas, quando Camila fez parar o capataz, dizendo:

— Espere um pouco, Terêncio. Há algo que preciso saber —
virou-se para Constância e indagou: — Como foi que preparou
tudo isso, Constância? Como sabia que Tonha estava aqui
fora?

Ela encarou Rodolfo e gargalhou. Ia cair, sim, mas levaria mais
alguém com ela. Sem hesitar, apontou para o primo e disparou:

— Foi à paga que recebi por ajudar Rodolfo a enganar aquela
tola da Júlia e deitar-se com ela.
— O quê? — urrou Fausto, perplexo. — O que está dizendo?
— É mentira! — gritou Rodolfo. — Não vêem o que ela está
fazendo? Quer acusar-me só para salvar a pele.
— É mesmo? — replicou Constância. — Então, como é que sei
que ele chamou Tonha a seu quarto, fingindo uma
indisposição, e pediu-lhe para preparar-lhe um chá? Como é
que sei que não havia ervas em casa, e que ela veio colhê-las
aqui no terreiro?

Fausto voltou-se para Tonha e indagou:

— Isso é verdade?
— Sim, sinhô — respondeu em lágrimas, fitando Rodolfo com
mágoa.
— É mentira! — insistia Rodolfo.
— Não é não — protestou Constância. — Fui eu quem lhe disse
para entrar no quarto de Júlia, naquela noite, fingindo-se
passar por Fausto. Disse-lhe que usasse suas roupas, que
imitasse sua voz, seus gestos, seus carinhos. Foi o que ele fez,
e a tola, ingênua, pensando que se entregava ao amado,
entregou-se ao rival!
Antes que Fausto pudesse alcançá-lo, Rodolfo fugiu. Sumiu no meio
da noite. Fausto quis ir atrás dele, mas Camila não permitiu.

— Deixe-o — disse. — Estará a sós com sua consciência.

O dia mal clareara e Camila, em companhia de Dário, partiu rumo à
fazenda Ouro velho. Precisava falar com Júlia o quanto antes,
contar-lhe o que havia acontecido.

Quando chegaram, foram informados de que Sara ainda estava
dormindo, e Dário sobressaltou-se. Teria ela piorado? Rebeca,
contudo, tranqüilizou-o:

— Não foi nada disso, meu filho. É que ontem Sara resolveu nos
brindar com um concerto ao piano, e ficamos até tarde a
escutá-la.
— É mesmo? — fez Dário surpreso. — Ela tocou para vocês?
— Sim. E com que alegria!
— Mas isso é maravilhoso! Pena que não pude estar presente.
— Realmente, foi uma pena. Mas não se preocupe, não vão
faltar oportunidades.
— Com certeza não faltarão — interrompeu frei Ângelo, que ia
chegando. — Sara está muito melhor, e tenho certeza de que,
em breve, poderão se casar.
— Fala sério?
— Você mesmo poderá dizer. Então não notou como ela vem
melhorando ultimamente?
— É verdade. E tudo isso graças ao senhor.
— Tudo isso graças a ela mesma, a sua fé, a sua enorme
capacidade de compreender as coisas.
— Mas que coisas são essas? — indagou Rebeca. — Vocês ficam
o tempo todo por aí, cochichando, e eu não sei de nada...
— Ora, dona Rebeca — protestou Dário —, o que importa é que
Sara está melhorando, não é mesmo?
— Tem razão, meu filho. Só o que quero é ver minha filha feliz e
saudável.
— Rebeca — acrescentou Camila —, nem pode imaginar o quanto
essa notícia também me deixa feliz. A felicidade de Sara e de
Dário é um de meus maiores desejos.
— Quanto a isso, não precisa se preocupar. Sara está
readquirindo a alegria de viver, principalmente de viver em
família. Aos poucos ela vai saindo daquela solidão que a
estava matando e integrando-se ao ambiente familiar.
— Oh! Mas ela sempre esteve integrada à família.
— De corpo, podia ser. Mas de alma...
— Não entendo o que diz.
— Quero dizer que Sara sempre viveu junto de vocês
fisicamente, mas seu interior, sua essência, sempre se sentiu
sozinha e abandonada.
— Ora essa, mas por quê?
— Quem pode saber? — fez frei Ângelo, ergueu os ombros em
sinal de dúvida, não querendo revelar-lhes os segredos de
Sara. — A alma humana é um mistério que só Deus é capaz
de compreender.
— Bem — atalhou Camila —, seja como for, o importante é que
Sara está praticamente curada.
— Sim, isso é o que importa, não é mesmo?
— É sim — concordou Rebeca.

Pouco depois Sara chegou. Estava bem mais corada e chegara a
ganhar alguns quilinhos, perdendo aquelas feições cadavéricas que
lhe roubavam a beleza. Vendo Dário ali presente, correu para ele e,
abraçando-o, cumprimentou:
— Bom dia, meu querido. Que bom encontrá-lo aqui, logo pela
manhã.
— Estava com saudades.

Dário tomou-lhe o braço e saiu com ela para o jardim, a fim de
aproveitar o Sol da manhã.

— Ah, os jovens! — exclamou frei Ângelo. — Como é bom vê-los
apaixonados!
— E Júlia, onde está? — perguntou Camila, logo que eles se
afastaram.
— No jardim — respondeu frei Ângelo. — Estive até agora
conversando com ela.

Camila pediu licença. O que tinha a falar com Júlia não podia
esperar.
Júlia estava sentada de costas, fitando as montanhas, quando
Camila se aproximou, tocando-a gentilmente no ombro.

— Júlia, querida, como está?

A moça levantou-se apressada e atirou-se nos braços da cunhada,
exclamando:

— Camila! Que bom vê-la!
— Trago-lhe boas notícias.
— Boas notícias?
— Sim. Sente-se que lhe contarei tudo.

Minuciosamente, Camila contou a Júlia tudo o que se passara na
noite anterior. Júlia ficou abismada. Aquele Rodolfo era mesmo uma
praga. E Constância, então? Uma víbora. Mas, e Fausto? O que
pensaria disso tudo?
— Fausto ainda está profundamente abalado e confuso.
— Não vai me perdoar, não é mesmo?
— Dê tempo ao tempo. Ele só precisa se acostumar. Tenho
certeza de que, logo, logo, irá não perdoá-la, porque, como
disse você não fez nada de errado. Mas aceitá-la.
— Será que posso sonhar com isso?
— Pode. Verá como seu sonho está a um passo de se realizar.

CAPÍTULO 26

Deixando o local onde se desenrolara todo aquele drama, Rodolfo
embrenhou-se no mato, com medo da reação de Fausto. O irmão,
na certa, o mataria. No dia seguinte, Palmira foi avisada de que
faltava um cavalo na cocheira e concluiu que o filho,
provavelmente, fugira para a vila. Mais tarde, quando Terêncio
chegou, disse que vira o cavalo de Rodolfo parado em frente à
estalagem, e que ele passara a noite lá.

— E Constância?
— Entreguei-a ao chefe da guarda e contei-lhe tudo o que
aconteceu.
— O que ele disse?
— Disse que, pelo tempo, acha que não poderá fazer mais nada.
Os crimes, provavelmente, já estão pescr... Presc...
— Prescritos — completou Palmira, e ele assentiu.

Ela mordeu os lábios e não disse mais nada. Ainda que estivessem
prescritos, dado o enorme transcurso de tempo, ela arranjaria um
jeito de fazer com que Constância apodrecesse na cadeia. Não havia
nada que o dinheiro não pudesse comprar. No momento, porém,
estava mais preocupada com seu filho, Rodolfo. Ele errara, traíra o
irmão. Mas aquela Júlia... Na certa que o provocara. E agora, os
filhos não se falavam por causa daquela mulher. Isso não estava
direito.

— Mande preparar a carruagem — ordenou. — Quero ir à vila.
— Sim, senhora.

Palmira foi ter com o filho e ficou surpresa com seu estado de quase
demência. Ele estava diferente, o olhar vidrado, o rosto afogueado,
suando frio. Ela tocou sua testa e certificou-se: Rodolfo estava
doente, muito doente. Mandou que Terêncio saísse à procura do
médico e, quando ele chegou, examinou o rapaz e confirmou: ele
estava com muita febre e começava a delirar. Em sua loucura,
balbuciava:

— Não... Somos diferentes... O duelo!... Maldito!...

A mãe, sem entender que ele rememorava fragmentos de outra
vida, julgava que aqueles delírios fossem resultados da febre e não
lhes deu muita importância. Mas era preciso tirá-lo dali. Precisava
levá-lo de volta a casa. Só lá poderia tratá-lo como devia, em meio
a todo o conforto de seu lar. Quando a carruagem chegou, Fausto
foi receber a mãe e estacou estarrecido ante a visão do irmão,
deitado no banco, com a cabeça pousada no colo dela.

— O que significa isso, mamãe? — indagou, cheio de ódio. —
Ainda tem coragem de trazer esse patife aqui?
— Quieto, Fausto, e escute-me. Seu irmão está doente.
— Doente... Ele está é fingindo isso sim.
— Deixe de besteira e ajude-me aqui.

Fausto não se moveu, e Terêncio deu a volta à carruagem, parando
perto de Palmira. Ele estendeu os braços, tentando erguer Rodolfo,
mas já estava velho, e o moço era muito pesado para ele carregar
sozinho.

— O que está esperando? — tornou ela. — Não vê que Terêncio
não pode com ele?
— Sinto mamãe, mas se quer acreditar nesse canalha, o
problema é seu. Não conte comigo.
— Fausto, por favor, ajude seu irmão. Ele não está nada bem.
— Se ele entrar por aquela porta, eu saio por outra. Não vou
dividir o mesmo teto com um crápula, um canalha, um patife,
um cínico, um poltrão!
— Acabou o seu vocabulário de imprecações? Agora me ajude.
— Mamãe, estou falando sério! Se a senhora permitir a entrada
desse biltre em nossa casa, juro que nunca mais vai me ver.
Vou-me embora daqui agora mesmo!
— Fausto, pelo amor de Deus! — gritou ela, já impaciente. —
Aquiete essa tempera e olhe para seu irmão. Ele está muito
doente. O que quer que eu faça? Que o deixe morrer sozinho,
atirado no quarto imundo de qualquer estalagem barata? Olhe
para ele, vamos! Olhe para ele!

Ainda contrariado, Fausto fitou o rosto do irmão. Reparando melhor,
viu que havia gotículas de suor banhando sua testa, e que seus
lábios tremiam. Ele estava pálido feito cera, os olhos semicerrados
parecendo sem vida. Aproximou a mão de sua têmpora e tocou-a
de leve. Ele estava ardendo em febre. Em silêncio, fitou a mãe, já
penalizado, e ela considerou:

— Fausto, meu filho, sei que o que Rodolfo fez foi muito grave e
não lhe tiro a razão de estar zangado com ele. No entanto, é
meu filho também, tem o seu sangue. Gostaria de ver morrer
seu próprio irmão?
Ele engoliu em seco e retrucou:

— Não... Claro que não... Mas é que... Pensei que ele estivesse
fingindo...
— Como vê, não está. Rodolfo está muito doente. O médico já o
examinou, e o caso dele é grave. Se a febre não baixar, ele
não vai resistir.
— Sinto muito...
— Agora vamos, ajude Terêncio a levá-lo de volta ao quarto.

Coração bondoso, Fausto ajudou o capataz a instalar o irmão de
volta em seu quarto, e o médico todos os dias ia visitá-lo, levando-
lhe elixires e infusões amargas, fazendo-lhe ventosas e sangrias,
tudo na esperança de salvá-lo.

No dia seguinte à chegada de Rodolfo, Marta apareceu e montou
guarda junto ao leito. Sabia de tudo o que tinha acontecido, mas
não se importava. Amava-o de qualquer jeito e estava disposta a
ficar ao lado dele, ainda que ele não a quisesse.

O tempo foi passando, e a recuperação de Rodolfo seguia
lentamente. A febre custava muito a ceder, e ele vivia delirando,
falando de coisas estranhas, que ninguém conhecia. Apesar das
reservas que tinha quanto à posição social de Marta, Palmira não
pôde deixar de observar-lhe a dedicação. Ela, efetivamente,
montara guarda à cabeceira do doente e raramente se ausentava,
fazendo suas refeições no quarto. À noite, depois que Rodolfo
dormia, ela ia para casa, retornando no dia seguinte, bem cedo,
para que ele, ao despertar, já a encontrasse ali. Aos poucos,
Palmira foi se acostumando com a presença da moça. Ela era de
uma amorosidade sem igual, e Palmira ficou-lhe extremamente
grata. Já estava velha e cansada, e não tinha mais forças para
cuidar do filho doente.
À medida que Rodolfo ia melhorando, Marta ia introduzindo novos
métodos no auxílio à sua convalescença. Conhecendo já o dom que
possuía, todo o dia elevava o pensamento a Deus e apunha suas
mãos sobre o rapaz, o que fazia com que ele se sentisse bem
melhor. Não raras eram às vezes em que vomitava, e Marta lhe
dizia baixinho, com extrema ternura:

— Isso, meu querido, deixe sair todo esse ódio que invadiu seu
coração e abra espaço para receber o meu amor.

Rodolfo, pouco a pouco, ia se sentindo melhor. A presença de Marta
causava-lhe imensa alegria, e ele só conseguia dormir com ela a seu
lado. No dia seguinte, se despertava muito cedo, ficava ansioso,
remexendo-se na cama à espera que ela chegasse. Ela era seu
alento.

Mais tarde, quando ele conseguiu reunir forças para se levantar,
Marta levou-o a passear no jardim e lia para ele os novos romances
que a mãe mandava vir da corte. Ele a escutava extasiado,
bebendo-lhe as palavras e admirando-lhe a graça e a beleza. Marta,
por sua vez, exultava! Estava certa de que conseguiria conquistar
seu coração.

Quando Fausto descobrira o que o irmão fizera, tivera vontade de
esganá-lo. Mas, vendo-o assim, totalmente dependente, sentiu um
aperto no coração e compadeceu-se de seu sofrimento. Rodolfo
enlouquecera, era a única explicação que conseguira encontrar. Em
sua bondade e ingenuidade, Fausto concluíra que Rodolfo se
apaixonara por Júlia e, ao contrário do que dissera, não a
conseguira esquecer. Movido pelo ciúme e pelo despeito, deixara-se
arrastar por aquele desatino e entregara-se à indignidade. Era uma
pena!
Ao ver o irmão sentado no banco do jardim, com Marta a seu lado
lendo para ele, Fausto pensava em Júlia, e seu coração se apertava.
Ele a amava muito e queria perdoá-la. Mas como passar por cima
do orgulho e da hombridade e desposar uma mulher que já
pertencera a outro homem? Júlia, a cada dia esperava ansiosa que
ele a fosse buscar, mas Fausto não aparecia. Cada cavalo, cada
charrete, cada carruagem faziam seu coração se sobressaltar, e ela
corria para a porta, na esperança de que fosse ele. Em seguida,
voltava tristonha e decepcionada e já começava a acreditar que ele
não a amava. Os Zylberberg se condoíam e faziam de tudo para
animá-la. Até Sara parecia melhorar, vendo na dor da amiga uma
oportunidade para se fazer mais presente em sua vida. Elas
passavam longas horas a conversar e, às vezes, frei Ângelo juntava-
se a elas. Tinha, então, duas almas para orientar. Muitas vezes,
quando Júlia chorava de mansinho, ele lhe dizia:

— Não perca as esperanças, minha filha. Tenho certeza de que
ele virá.

Mas Júlia já não acreditava mais. Fausto se fora para sempre, não
queria mais vê-la, não a amava mais.

Certa vez, Fausto observava da janela o irmão passeando com
Marta, que o amparava pelo braço, quando Camila chegou perto
dele. Durante algum tempo também ficou a acompanhar o andar
vagaroso e inseguro de Rodolfo, e comentou:

— Ele está sofrendo muito, não acha?

Sem desviar os olhos da janela, Fausto respondeu:

— Está pagando pelo que fez.
— Não diga isso, Fausto. Ele é nosso irmão. Apesar de tudo, tem
nosso sangue. Seu sangue ainda mais que o meu.
— Eu sei Camila. Não quis parecer insensível ou cruel. Sinto
muita pena dele e compreendo que está louco. Mas não posso
negar que, pensando em tudo o que ele fez, sinto um grande
ódio. Ele estragou-me a felicidade, destruindo todas as
chances que tinha de ser feliz ao lado de Júlia.
— Por quê?
— Você sabe.
— Sei, mas não compreendo e não aceito. Você não a ama?
— Você sabe que sim. Todavia, ela já não é mais moça e já não
serve mais para o casamento.
— Isso é uma infâmia. Você se esquece, meu caro, de que eu
também não me casei virgem?
— É diferente.
— Sim, muito. O canalha que me roubou a honra iludiu-me,
fingindo amar-me, e depois sumiu, entregando-me nas mãos
de outro, que só queria o meu dinheiro. Por isso fui para um
convento. Porque não aceitei me casar com um aproveitador
só para salvar minha reputação. Mas, hoje, sou feliz ao lado
de Leopoldo. Ele se apaixonou por mim e me aceitou do jeito
que sou. Casamo-nos e somos felizes, sem que ele nunca
tenha me atirado na face o mau passo que dei. E dei porque
quis, porque fui tola, porque me apaixonei pelo homem
errado. Mas Júlia, não. Ela foi enganada, não por um homem
que dizia amá-la, mas por um homem que se fez passar por
aquele que é o seu verdadeiro amor — Fausto ficou pensativo,
e ela prosseguiu: — Então, por que não vai falar com ela?
— Não posso Camila. Por mais que queira, não posso perdoá-la.
— Fausto, meu irmão, não pense em perdão. Pense em
reencontro. Se conseguir entender que Júlia não errou, mas
que agiu movida por uma ilusão, vai conseguir aceitá-la. Ela o
ama.
— Eu sei. Sei também que ela foi vítima. Contudo, jamais poderei
esquecer aquela mancha de sangue no lençol. Sangue que
deveria ter sido derramado por mim, em nossa noite de
núpcias.
— É isso o que ela representa para você? Uma mancha de
sangue? Isso é que é importante em Júlia? E o amor, onde
fica? Pensa que Júlia teria se entregado a Rodolfo? Não. Ela se
entregou a Fausto.

Naquela noite, foi a Fausto que viu, foi por ele que se deixou tocar,
foi a Fausto que amou. Não a Rodolfo.

— Mas era Rodolfo!
— Só que ela não sabia. Ela pensou que fosse você, e só disse o
que disse, só fez o que fez porque pensou que era você. Será
que você é tão cabeça-dura que não consegue entender?

Fausto suspirou e tornou a olhar para o irmão, que também olhava
em sua direção. Quando seus olhos se cruzaram, teve um
estremecimento, mas Rodolfo não esboçou nenhum tipo de
reconhecimento. Parecia alheio a tudo e só dava sinais de vida ao
lado de Marta.

— Por favor, Camila, deixe-me pensar — tornou ele. — Quero ter
Júlia de volta, mas não consigo.
— Seu orgulho fala mais alto do que seu amor. Sabe Fausto,
você é mais digno de pena do que Rodolfo.
— O quê?
— Ao menos Rodolfo fez o que fez porque está adoecido,
profundamente adoecido. Você não. É um homem são e
desperdiça a felicidade por orgulho e preconceito.

Em seguida, sorriu para ele e rodou nos calcanhares, sumindo no
interior da casa. Ela estava certa. Mas, por mais que se esforçasse,
era-lhe difícil aceitar.

CAPÍTULO 27

Aquele dia chegou sombrio, e Tonha sentiu um arrepio estranho ao
passar pela porta do quarto que Constância ocupara. Tinha ido levar
o café para Rodolfo na cama e sentiu como se um hálito frio lhe
percorresse a espinha. Instintivamente, persignou-se e seguiu
avante. Aquilo parecia um presságio.

Mesmo sabendo que fora Rodolfo quem a entregara a Constância,
Tonha não conseguia sentir raiva dele. Ao contrário, sabia-o
enfermo, muito enfermo. Não do corpo, mas da alma. Tonha via em
Rodolfo um ser doente, que envenenara sua própria alma em troca
de alguns momentos de prazer. E, por ironia ou por destino, estava
praticamente entrevado, sem nem sombra do rapaz robusto e ativo
que costumava ser.

Ao entardecer, um homem bateu à porta. Vestia trajes estranhos e
pediu para falar com Palmira. Tonha não o conhecia, mas sabia
tratar-se de gente honesta, ou Aldo não o teria deixado passar.
Palmira desceu às pressas, cumprimentou o estranho e trancou-se
com ele na biblioteca. Vendo-se a sós, foi logo dizendo:

— E então? Conseguiu?
O homem olhou para ela, enfiou a mão no bolso e puxou uma
bolsinha de couro, dela retirando um punhado de moedas de ouro.

— Isso não será mais necessário — disse com voz rouca e
vibrante.
— Por quê? O que houve? Não vá me dizer que o magistrado se
recusou a receber, digamos à oferta que lhe mandei.
— Não, senhora, não se trata disso.
— Trata-se de que, então?

O homem tossiu meio sem jeito e prosseguiu:

— Senhora, lamento informar que sua sobrinha faleceu...
— Faleceu?
— Enforcou-se hoje cedo, em sua cela.

Palmira debruçou-se sobre a mesa, escondendo o rosto entre as
mãos. No fundo, era bem-feito. Teve o que merecia. Ela ergueu a
cabeça, os olhos secos, e começou a recolher as moedas, que
serviriam de suborno para que o juiz local arranjasse um meio de
trancafiar Constância para sempre. Antes de colocar tudo de volta
na bolsinha ela parou, escolheu uma moeda e colocou-a na mão do
homem, dizendo:

— Muito obrigada por seus serviços. O homem olhou a moeda e
sorriu.
— Eu é que agradeço senhora, por sua generosidade.
— Digamos que é apenas um agrado, em reconhecimento a sua
boa vontade. E agora pode ir. Não preciso mais de seus
serviços.
Depois que o homem se foi, Palmira mandou reunir a família.
Apenas Rodolfo não estava presente. Depois que todos se
acomodaram, ela tomou a palavra e, com voz solene, anunciou:

— Mandei reuni-los aqui para informar que minha sobrinha,
Constância, suicidou-se hoje pela manhã, enforcando-se em
sua cela.

Apesar de Constância não ser bem quista por ninguém, aquela
notícia era muito triste, e todos lamentaram aquele seu último gesto
de desespero. Camila, penalizada, ainda desabafou:

— Pobre Constância...

Ninguém disse mais nada. Nem Palmira, que até sentira certo prazer
com a morte da infeliz, teceu mais nenhum comentário. Apenas
disse a Fausto:

— Meu filho, é preciso providenciar a remoção do corpo.
— Deixe tudo por minha conta, mamãe. Não precisa se
preocupar com nada.
— Ótimo. Sabia que podia contar com você.
— Onde quer que a enterre?
— Enterrá-la? Não, não quero que a enterre. Não aqui, entre
nossos entes queridos. Quero que leve seu corpo para a corte
e o entregue a sua mãe, minha irmã Zuleica.
— Não estavam viajando?
— Já estão de volta. Outro dia mesmo recebi uma carta de
Berenice.

Eu ia escrever-lhe em resposta, contando-lhe o ocorrido, mas, em
vista das circunstâncias...
— Não acha que será um choque?
— Sinto muito, mas o que posso fazer? Constância não é minha
filha. Entregue-a para os seus.
— Está bem, mamãe, se é o que deseja.
— E depois, nunca mais quero escutar o nome daquela assassina
nesta casa. Ela teve o fim que mereceu, e quero apagar de
minha memória sua passagem por aqui.

Fausto fez como prometeu. Contratou um carro fúnebre e partiu
primeiro sozinho, a cavalo, a fim de levar a notícia funesta. Depois
que o corpo chegou, ele ficou para o enterro, só voltando à fazenda
após o sepultamento.

Vinha ele voltando a cavalo, sozinho, e já quase alcançando a
cancela que dava para a estradinha da fazenda quando avistou uma
mancha branca correndo contra o Sol. Estreitou a vista, quase cego
pela luminosidade, até que conseguiu distinguir o porte elegante e
garboso de um cavalo branco. A visão foi rápida demais, e o cavalo
dobrou a curva, desaparecendo de suas vistas. O coração de Fausto
disparou. Embora não pudesse ver o cavaleiro, sabia tratar-se de
uma dama. Tinha a impressão de ter visto um pequeno lenço azul
esvoaçando ao vento. Seria Júlia? Só podia ser Júlia. Ele pensou em
seguir avante e atravessar a cancela, mas algo em seu íntimo fez
com que desistisse. Tinha que se certificar.

Fez meia-volta e deu rédea ao animal, disparando estrada acima.
Perto da curva, estacou, procurando pelo lenço, até que o
encontrou caído no chão, perto de uns arbustos. Imediatamente,
saltou de seu alazão e apanhou o lenço, levando-o às narinas. Que
perfume suave! Ele conhecia aquele perfume. Era de Júlia. Pensou
em soltar o lenço ali mesmo e fugir, quando ouviu o ruído de cascos
batendo no solo e se virou. Júlia ali estava, montada em belíssimo
cavalo branco, os olhos a cintilar. Ao vê-la, seu coração tornou a
disparar, mas tão forte e com tanta intensidade que ele pensou que
Júlia o estivesse ouvindo.

Ele não sabia o que dizer, e Júlia, tentando conter a emoção,
apontou para o lenço e disse:

— Obrigada por apanhar meu lenço.

Fausto ficou a encará-la, embevecido, e balbuciou:

— O... O... Quê...?
— Meu lenço. Vejo que o encontrou.
— Hein? Oh! Sim... O lenço.

Fausto estendeu para ela o objeto procurado, tocando de leve em
suas mãos. Júlia, trêmula, apanhou o lenço e murmurou:

— Obrigada.

Em seguida, voltou-se bruscamente e chicoteou de leve o animal.
Estava chorando e não queria que ele a visse chorar. O cavalo
iniciou a marcha, e ela começou a se afastar. Fausto, olhando-a de
costas, sentiu certo desespero, uma sensação de que, se a deixasse
partir, a perderia para sempre. Mas ele a amava. E como a amava!
Enquanto não a via, era-lhe mais fácil resistir. Mas, vendo-a ali, ao
seu alcance, não pôde suportar a idéia de não tornar a vê-la. Mais
que depressa, desatou a correr e chamou:

— Júlia! Júlia!

Ela virou-se para ele, ainda chorando. Eram lágrimas de felicidade,
que Fausto logo reconheceu. Estendendo-lhe os braços, ajudou-a a
descer. Ela trazia ao pescoço o lenço azul, que ele segurou e levou
aos lábios. Em seguida, puxou-o pelas pontas e trouxe para perto de
si o rosto de Júlia. Soltou o lenço, segurou-lhe as faces coradas e
pousou-lhe um beijo doce e suave, que ela correspondeu com
ternura. Depois a olhou bem fundo nos olhos e estreitou-a de
encontro ao peito. E chorou. Ambos choraram. Sem nada dizer,
permaneceram ali abraçados, apenas sentindo a enorme emoção
que os unia. Naquele momento não precisavam de palavras. Só o
que precisavam era de amor.

Camila exultou ao saber que Júlia e Fausto fizeram as pazes e
pretendiam marcar a data do casamento. Imediatamente, correu ao
seu quarto e escreveu uma carta a Leopoldo. Era imperioso que o
marido estivesse presente nas bodas da irmã. Júlia concordou em
esperar a volta do irmão. Também não queria casar-se sem a
presença dele. Não tinha pai, e queria ser conduzida ao altar por
Leopoldo, que a criara desde menina.

Apesar de também não guardar ódio de Rodolfo, Júlia preferiu
permanecer na fazenda Ouro Velho até o dia do casamento.
Chegaria bem cedinho e iria para seu antigo quarto se arrumar.
Camila já teria deixado tudo pronto, e ela teria tempo de dar uma
olhada nos preparativos para a festa e de vestir-se com calma. Júlia
queria evitar o encontro com Rodolfo. Sabia que ele estava doente e
que não poderia mais fazer-lhe nenhum mal. Fausto dissera-lhe que
ele estava meio apatetado e quase não falava. Embora Júlia se
apiedasse dele, alguma coisa dentro dela fazia com que o evitasse.
Era um desconforto, um mal-estar, um instinto de defesa que
despontavam logo que ouvia seu nome. Camila e Fausto acharam
natural sua reação. O que ele lhe fizera fora muito grave, e Fausto
até que preferia mantê-la afastada do irmão. Depois do casamento,
quando voltassem da lua-de-mel, mudar-se-iam para a fazenda
Ouro Velho. Ezequiel concordara em hospedá-los até o fim do
contrato de arrendamento, quando então partiriam, e o jovem casal
poderia assenhorear-se de sua nova residência.

Rodolfo parecia alheio a tudo e a todos. Olhava para as pessoas e as
reconhecia, mas não demonstrava por elas qualquer tipo de
sentimento. Era como se fossem estranhas. Pouco falava, quase
sempre por monossílabos, e só se sentia à vontade em companhia
de Marta. A moça era incansável.

A notícia do casamento de Fausto e Júlia, aparentemente, não lhe
causaram nenhum impacto. Rodolfo permaneceu impassível, sem
dar a menor importância ao fato, o que levaram todos a crer em
seu total estado de alheamento. Palmira, se bem que um pouco
contrariada, não se opôs. Fausto casar-se-ia com a moça de
qualquer jeito, e era melhor que fosse ali, junto dela.

Rodolfo assistia aos preparativos do casamento sem maior interesse.
Um tal de frei Ângelo celebraria a cerimônia, mas isso não fazia a
menor diferença. Só o que parecia interessá-lo era a presença de
Marta. Era como se ele soubesse que só Marta era capaz de
compreendê-lo e amá-lo, e ele podia sentir-se seguro junto dela.

No entanto, um fato extraordinário abalou a tranqüilidade que então
se instaurara na fazenda. Alguns dias antes do casamento, quando
Marta lia para Rodolfo no jardim, ela se espantou ao ouvir com
clareza sua voz, que dizia:

— Marta, quero que me faça um favor.
Ela se assustou e soltou o livro, encarando-o perplexa. Pensando
que ele começava a recobrar o juízo, retrucou confusa:

— Rodolfo... Sua voz... Oh! Graças a Deus!
— Ouça Marta, não tenho tempo para isso — redargüiu-o, com
certa rispidez.
— Mas, Rodolfo... O que foi que houve meu amor?
— Não houve nada. Sinto-me melhor agora, é só.
— Mas assim, de repente?
— É por quê? Não está feliz?
— Não se trata disso. Mas é que eu pensei...
— Pensou que eu estava inválido?
— Não, claro que não. Pensei, isto é, pensamos que você
estava...
— Louco? Ora, minha cara, mas o que é isso? Louco, eu? Loucos
são vocês de acreditarem numa tolice dessas.
— Mas, então...?
— Então nada. Passei um tempo doente e agora estou curado.
— Simples assim?
— Simples assim. Mas por que o espanto? Até parece que me
preferia alienado. Não está feliz?
— Estou claro. Foi só a surpresa do momento, mas já passou.
— Ótimo.

Ela se levantou e anunciou:

— Sua mãe precisa saber disso. É o casamento de seu irmão e...
— Não! — cortou ele com exasperação. — Não conte nada a
ninguém por enquanto.
— Mas por quê? Sua mãe ficará muito feliz ao ver que você já
está curado.
— Por isso mesmo. Não quero precipitar as coisas. Não sei se
estou curado ainda.
— Não sabe? Mas o que é isso que diz? Não estou entendendo.
— Não precisa entender. Quero apenas que confie em mim.
— Confiar em você? Para quê?
— Para fazer-me um favor.

Marta estava profundamente desconfiada. Aquela história estava
ficando muito estranha.

— Favor?
— Sim, um favor.
— E que favor seria esse?
— Você me ama?
— Ainda duvida?
— Não. Sei que me ama, e é por isso que só posso contar com
você.

Marta olhou-o magoada. Nenhuma palavra de gratidão, nenhum
gesto de carinho. Nada que pudesse demonstrar o reconhecimento
por tanta dedicação. Fazendo beicinho, tornou sentida:

— O que quer que eu faça?
— Isso, assim está melhor. Muito bem. Quero que traga Túlio até
aqui.
— Túlio. Para quê?
— Não lhe interessa. Faça apenas o que estou pedindo.

Sem responder, Marta pousou o livro no banco e saiu, deixando
Rodolfo com aquele ar idiota no rosto. Na verdade, desde que a
febre baixara, ele recobrara suas faculdades mentais e tinha
perfeita consciência do que acontecia ao seu redor. No entanto, era-
lhe mais prudente fingir. Se todos soubessem que se curara, teria
que se explicar e não conseguiria ultimar sua vingança.
Pouco depois, Marta voltou levando Túlio pela mão, e Rodolfo foi
logo dizendo:

— Agora, deixe-nos a sós.

Marta rodou nos calcanhares, e Túlio, erguendo as sobrancelhas em
sinal de espanto, indagou:

— Você não estava louco?
— Isso não vem ao caso.
— Estava fingindo não é mesmo?
— E daí?
— Eu devia imaginar. É bem típico de você.
— Sou esperto, não sou?

Túlio deu um sorriso de ironia e revidou:

— O que quer?
— Você sabe.
— Será possível que você não desiste? Por que não me deixa em
paz? Não vê que seus truques não surtem mais efeito? Que
ninguém mais vai acreditar em você?
— Escute aqui, rapaz, não se faça de besta comigo. Ainda posso
contar a sua mamãezinha que você continua matando as
negrinhas...

Túlio fitou-o com raiva. Até quando seria presa daquele tormento?

— O que quer que eu faça?
— O combinado.
— Quando?
— Na manhã do casamento de Fausto.
— Quer impedir o casamento?
— Sim.
— Não vê que não conseguirá? Acha que alguém acreditará em
você?
— Em mim, não, em você. Estou louco, lembra-se?
— Está mesmo.
— Cale essa boca, idiota, e escute-me. No dia do casamento,
reúna a família em meu quarto e conte tudo, do jeitinho que
combinamos. Dê um jeito de trazer Trajano e mande-o
confirmar essa versão. O depoimento daquele negro imbecil
será fundamental para aqueles tolos acreditarem.
— Acha mesmo que isso dará certo?
— Acho bom que dê. Para o seu bem, é melhor fazer tudo
direitinho. Ou então, posso melhorar subitamente e contar a
história verdadeira. Não tenho nada a perder, mas você...

O dia do casamento rapidamente chegou, e pouco antes do horário
marcado para a cerimônia, Túlio foi ao quarto de Júlia. Camila
atendeu e mandou-o entrar. O que poderia ele querer?

— Túlio! — exclamou Júlia. — O que faz aqui?
— Júlia preciso lhe falar.
— Agora não, querido. Estou me aprontando para a cerimônia.
Frei Ângelo já deve estar chegando.
— Mas é importante.
— Nada pode ser mais importante do que meu casamento.

Júlia podia perceber o nervosismo na voz do sobrinho e imaginou
que algo de muito grave deveria estar acontecendo. Caso contrário,
ele não iria procurá-la justo no dia de seu casamento. Ela pousou na
penteadeira a escova com a qual estava se penteando, encarou-o e
indagou:
— Muito bem. Do que se trata?
— Será que pode me acompanhar ao quarto de tio Rodolfo? Por
favor, é importante, principalmente para você. Disso vai
depender toda a sua felicidade.

Ela estranhou aquele pedido e hesitou. Ir ao quarto de Rodolfo? Era
pedir-lhe demais. Já ia protestar quando escutou a voz de Camila:

— Está tudo bem, querida, não se preocupe. Irei com você.

Júlia deu de ombros e aquiesceu. Com Camila a seu lado, não tinha
o que temer. Saindo para o corredor, encontrou Fausto que, ao lado
de Trajano, já os aguardava.

— Alguém pode me explicar o que é que está acontecendo?

Túlio pediu-me que o aguardasse aqui com Trajano. O que é que
há? Seja o que for não pode esperar?

— Por favor, tio Fausto, venha comigo e não faça perguntas.
Acredite-me, é importante. Se não fosse, não os reuniria logo
hoje, no dia do seu casamento.

Todos se calaram e seguiram para o quarto de Rodolfo. O rapaz
estava sentado na cama, com Marta o seu lado, servindo-lhe uma
xícara de chá. Pouco depois, Palmira apareceu seguida de Leopoldo
e Dário. Vendo a família toda ali reunida, mais aquele escravo
insolente, perguntou atônita:
— Mas o que significa isso?
— Tenha calma, vovó. Logo ficará sabendo de tudo. Todos
ficarão. Por favor, escutem-me. Tenho uma revelação muito
importante a fazer.
Logo que todos se acomodaram, Túlio encarou Fausto e começou:

— O assunto que me fez reuni-los aqui é deveras grave. Como
todos sabem, tio Rodolfo perdeu o juízo e não poderá falar por
si mesmo. Além disso, sua imagem está comprometida por
seus atos ignóbeis, mas é preciso que não o condenemos por
tudo o que acontece de ruim, só porque ele já errou uma vez.
Não. Ele não é o único aqui a errar, e não deve agora também
ser considerado culpado pelos erros dos outros. Eu, como seu
sobrinho, não posso me calar, e sinto-me no dever de expor a
todos a verdade sobre alguns fatos que aconteceram aqui.
— Que fatos?
— Trata-se de um crime.
— Um crime? Mas que crime?
— Um crime ao qual ninguém deu muita importância, mas que
deve ser revelado antes de seu casamento, Júlia, para que
você saiba tudo a respeito do homem com quem vai se casar.
— Túlio, pare já com isso! — explodiu Palmira. — Isso não é hora
para brincadeiras desse tipo.
— Não, vovó, não são brincadeiras.

Rodolfo não mexia um músculo sequer. Nem piscava. Estava louco
para pular daquela cama e atirar na face do irmão toda sorte de
impropérios, mas se conteve. Júlia, indignada, retrucou:

— Não estou entendendo nada do que diz. Aonde quer chegar?

Sem tirar os olhos de Fausto, Túlio continuou:

— Quero chegar ao crime que meu tio cometeu, ou melhor, aos
crimes que ele cometeu, violentando e matando uma pobre
escrava indefesa, e depois ameaçando seu próprio sobrinho,
caso ele contasse a verdade a alguém.

Um raio não os teria atingido com mais violência. Fausto abriu a
boca perplexo, sem saber o que dizer. Nem sequer podia imaginar
de onde Túlio tirara aquela história. Será que enlouquecera
também?

— Túlio, você bebeu? — tornou indignado.
— Gostaria de ter bebido. Só assim poderia esquecer aquela
monstruosidade. Mas não se espantem. Sei o que digo e posso
provar. Há testemunhas.
— Testemunhas? — perguntou Júlia indignada — Quem?
Testemunhas de que, meu Deus?
— Em primeiro lugar, eu mesmo.
— Você?

Ele olhou para Júlia rapidamente e, escolhendo bem as palavras,
suspirou e começou a dizer:

— Sim, Júlia, eu presenciei a morte de Etelvina.
— Você o quê?

Túlio fitou o rosto estarrecido de Fausto e disparou, sem desviar o
olhar do tio.

— Vi, com meus próprios olhos, meu tio matar Etelvina.
— O quê? — indignou-se Fausto. — Por acaso enlouqueceu? Por
que está fazendo isso?
— Túlio — repreendeu Palmira severamente. — Eu o proíbo de
falar sobre esse assunto. Você diz que Etelvina foi morta,
embora isso nunca tenha ficado provado. E embora ela fosse
apenas uma escrava, não acredito na participação de meu
filho nesse episódio. Contudo, isso não vem ao caso agora, e
eu lhe ordeno que se cale e não estrague o casamento de seu
tio.
— Não, dona Palmira — objetou Júlia. — Embora também não
acredite, Túlio diz que Fausto teve participação na morte da
moça. E se Fausto tem mesmo alguma coisa a ver com isso,
tenho o direito de saber.
— Mas esse assunto não é importante e pode esperar.
— Não — insistiu Júlia. — O assunto envolve Fausto, e quero
saber do que se trata.
— Júlia, não vá me dizer que você acredita que eu tenha algo a
ver com isso.
— Por favor, por favor — interrompeu Túlio. — Por que não me
deixam terminar? Afinal, ainda não acusei ninguém.
— Isso é que não — disse Palmira. — Não vou permitir.
— Por favor, mamãe — interrompeu Fausto —, deixe que Túlio
nos conte sua história. Não tenho nada a temer.

O rapaz suspirou e retomou a narrativa. Mas, para surpresa de
Rodolfo, ele começou falando a verdade, desde o dia em que
brigara com Trajano por causa da moça:

— Eu estava louco da vida. Louco com Trajano, que me batera,
louco por Etelvina, que me parecia apetitosa. Foi então que
meu tio me procurou com uma idéia. Iria me ajudar a deitar
com a negrinha, ao mesmo tempo em que eu poderia vingar-
me de Trajano. Nós sabíamos que ele estava apaixonado por
Etelvina, e ela por ele, e meu tio pensou que seria uma boa
idéia fazer com que ele presenciasse sua amada sendo
ultrajada por mim.

Ele fez uma pausa e olhou para Rodolfo, que não tirava os olhos
dele. Se Túlio resolvera contar de sua participação naquele episódio,
tanto melhor. Dava até mais autenticidade. Só o que ele não podia
era revelar seu nome. Rodolfo, porém, começou a sentir-se pouco à
vontade. Por que estaria ele se incriminando, se tudo o que fizera
fora exatamente para salvar a pele? E por que não falava logo o
nome de Fausto, referindo-se ao autor do crime apenas por tio?
Túlio, engolindo em seco, prosseguiu:

— Bem, logo depois que eu me servi da negrinha, sob o olhar
agoniado de Trajano, meu tio também resolveu aproveitar e
deitou-se sobre ela. Mas Etelvina não parava de se debater, e
ele começou a apertar seu pescoço, até que a esganou...
— Meu Deus! — exclamou Júlia horrorizada.
— Pois é. Depois disso, deu ordens para que Trajano a enterrasse
e ameaçou-nos, a ele e a mim, caso falássemos alguma coisa.
— Túlio — interrompeu Fausto. — Por que está fazendo isso? Diga
a verdade.
— Oh! Mas eu disse a verdade.
— Túlio! — gritou Palmira. — Essa história já foi longe demais.
Exijo que essa reunião seja encerrada agora mesmo.
— Mas, vovó...
— Nada de, mas. Não quero ouvir nem mais uma palavra dessa
infâmia. Seu tio jamais mataria alguém, ainda que uma
escrava. E depois, deitar-se com uma negra? Isso é ultrajante,
e meus filhos jamais se prestariam a esse papel.
— Lamento vovó, mas essa é a verdade. Meu tio não só se
deitou com a escrava, como também a matou.
Fausto, não podendo mais suportar aquela agonia, agarrou Túlio
pelos punhos e, sacudindo-o, explodiu:

— O que deu em você, Túlio? Por que não conta logo à verdade?
Você diz que foi seu tio quem fez isso. Mas que tio?

Ele encarou Rodolfo com um brilho de satisfação nos olhos e,
calmamente, declarou:

— Tio Rodolfo.
— É mentira! — gritou Rodolfo, dando um salto da cama, para
espanto geral. — Mentira!
— Rodolfo, meu filho, o que significa isso? Como pode...?

Mas Rodolfo não escutava. Em sua loucura, só conseguia pensar em
desmoralizar o irmão e continuou:

— Fausto o ameaçou, só pode ser isso. Mas o escravo sabe, ele
viu. Vamos, Trajano, conte a verdade ou eu o mato!

Trajano, ante o olhar inquisidor dos presentes, respondeu com voz
humilde:

— O sinhô sabe que sinhozinho Túlio disse a verdade.
— Mentira! Você também está mentindo. Passou-se para o lado
deles! Fausto ameaçou-o também? Não acredite neles,
mamãe! E tudo uma farsa. Um plano para acabar comigo e
me impedir de contar-lhe a verdade! Fausto não quer ser
desmascarado! Ele a enganou esse tempo todo, mamãe, e
sabe que eu sou o único que conhece toda a verdade!

Palmira, sem entender bem por que obra miraculosa Rodolfo
recobrara o juízo, retrucou surpresa:

— Mas que verdade? Do que é que você está falando?

Rodolfo, sem saber o que fazer, tentou sua última e desesperada
cartada:
— Dos Zylberberg! É isso: os Zylberberg. Nossos vizinhos. São
judeus.

Palmira olhou para o filho, penalizada. Ele pulava e gritava na sua
frente, confirmando sua loucura. Seus olhos encheram-se de
lágrimas e ela, tentando acalmá-lo, segurou-lhe a mão e disse com
tranqüilidade:

— Eu já sabia.

Ele recuou estarrecido. Estava perdido. Tudo dera errado. Fora
desmascarado e desmoralizado diante da mãe e de toda a família.
Desesperado, virou-se para a porta e desatou a correr. Não lhe
restava mais nada. Só o que lhe restava era morrer.

Rodolfo atravessou o quarto feito um furacão, e Marta saiu atrás
dele. Ele alcançou a estradinha e desatou a correr, sem destino,
com Marta em seu encalço, chamando por ele, mas ele não
respondia. Só queria morrer. Por fim, extenuado, Rodolfo parou e se
ajoelhou no chão de terra batida, ocultando o rosto entre as mãos e
chorando em desespero. Marta parou a seu lado, ajoelhou-se junto
a ele e envolveu sua cabeça com os braços desnudos, murmurando
em seu ouvido:

— Meu querido, por que fez isso?

Rodolfo, em vez de responder, empurrou-a para longe, jogando-a
ao chão, e levantou-se, encarando-a com horror e gritando,
completamente fora de si:

— Deixe-me em paz! O que veio fazer aqui? Rir da minha
vergonha?
Ela se recompôs e ajeitou o vestido, um tanto quanto sujo e
amassado pelo tombo, e retrucou:

— Não, claro que não. Vim apenas ajudá-lo.
— Mentira! Veio acusar-me, humilhar-me. Mas não vou permitir,
está ouvindo? Não vou permitir!

E começou a gesticular feito louco, ameaçando Marta com os
punhos fechados. Ela, porém, calmamente acercou-se dele e,
segurando com doçura as mãos fechadas do rapaz, acariciou-as e
tentou tranqüilizá-lo:

— Psiu! Meu querido, mas o que é isso? Sou eu, Marta, quem
está aqui. Não vim aqui para acusá-lo de nada. Eu o amo e
estarei sempre a seu lado.

Ele fitou seu rosto sereno e contestou incrédulo:

— Não acredito! Você veio aqui a mando deles, só para me
espicaçar ainda mais.

Em vez de contestar, Marta beijou-o suavemente. Mas Rodolfo
continuava ainda desconfiado. Não sabia se podia confiar nela. Ela
dizia que o amava, mas não estaria também se aproveitando da
situação para vingar-se dele? Contudo, ao penetrar a doçura de seu
olhar, não teve mais dúvidas. Marta o amava e jamais o trairia. Ele
podia ver naqueles olhos toda a dor por vê-lo sofrer, e teve certeza
de que ela estaria disposta a enfrentar tudo e todos só para ficar
com ele. Desesperado e não podendo mais conter a frustração por
ver malogrado seu plano de destruir o irmão, Rodolfo atirou-se a
seus pés, agarrando sua cintura e chorando em desespero:

— Oh! Marta, Marta! Eles me humilharam, escarneceram de
mim. Só quero morrer. Por favor, deixe-me morrer!

Ela ergueu-o gentilmente e o abraçou, e ele, desesperado, colou-se
a ela e a beijou, buscando em seus lábios o sabor de seu beijo. Em
seguida, afastou-há por uns instantes, olhou bem fundo em seus
olhos e, como se uma sombra de lucidez e reconhecimento lhe
perpassasse a mente, sussurrou:

— Marta, eu... Sinto muito... Você é tão boa... Não merece um
homem feito eu...

Ela segurou seu queixo entre as mãozinhas alvas e suplicou:

— Eu o amo, Rodolfo, e você é o único homem que jamais
sonhei merecer.

Sem dizer nada, Rodolfo beijou-a novamente, a princípio de
mansinho, mas depois com uma paixão avassaladora, um desejo
incontido, uma fúria quase animal. Marta assustou-se, mas o amor
fez com que cedesse, ela também, ao enorme desejo que sentia por
ele, e entregou-se ali mesmo, sobre a relva macia que ladeava a
estradinha.
Quando terminaram de se amar, Marta estava feliz. Ele fora um
pouco bruto, era verdade, mas aquele ato selara para sempre seu
amor. Rodolfo seria somente seu, ela sabia, assim como sabia que
ele se casaria com ela.

Rodolfo, por sua vez, apesar de arrasado, sentia-se um pouco mais
confiante. A presença de Marta dava-lhe essa confiança, fazendo
com que acreditasse que nem tudo estava perdido. Ele sabia que
não tinha mais armas contra o irmão. Seus recursos haviam se
esgotado, e ele não conseguiria mais separá-lo de Júlia. Casar-se-ia
com Marta. Ao menos ela seria capaz de afogar seu despeito,
ajudando-o a ostentar uma capa de dignidade e respeito, impedindo
que seu orgulho fosse enxovalhado pela vergonha.

CAPÍTULO 28

Apesar desse episódio infeliz e insólito, o casamento de Júlia se
realizou. Fausto, já farto das extravagâncias e das loucuras do
irmão, recusou-se a adiar a cerimônia. Se Rodolfo quis se fazer
passar por maluco, era problema dele. Mas ele não estava mais
disposto a adiar sua felicidade por causa de seus desatinos. Era até
melhor que ele não estivesse presente. Assim não precisaria ter o
desgosto de casar-se na companhia de tão abominável criatura.

O casamento foi celebrado por frei Ângelo, e a festa transcorreu
normalmente. Para os convidados que estranharam a ausência de
Rodolfo, Palmira se justificou alegando que o filho estava doente e
que piorara naquela tarde, em virtude da forte emoção.

A festa ia a meio quando Palmira pediu licença aos convidados e se
recolheu ao seu quarto, alegando cansaço, deixando tudo a cargo
de Camila, que se esforçava para esconder dos convidados o
desagradável episódio que ali se desenrolara. Deitada em seu leito,
Palmira relembrou a conversa que tivera com Fausto, quando então
ficara sabendo da procedência de seus inquilinos.

— Mamãe — começara ele a dizer —, há algo que preciso lhe
contar.
— Sim, meu filho, do que se trata?
— A senhora é uma mulher piedosa e temente a Deus, não é
verdade?
Ela refletira durante alguns segundos, tentando imaginar o motivo
daquela conversa, e retrucara:

— Sim, sou por quê?
— Porque o que tenho a lhe contar vai exigir sua piedade e
compreensão, e será uma boa oportunidade para testar seu
espírito cristão.
— Fausto, vá logo ao assunto. Não estou entendendo aonde quer
chegar.

Enchendo-se de coragem, ele indagara:

— Bem, sabe os nossos inquilinos?
— O que há com eles? Não me vá dizer que estão atrasando o
pagamento do aluguel.
— Não, não é isso. O aluguel é pago rigorosamente em dia.
— Então, do que se trata?
— Bem, mamãe, trata-se de sua, digamos, preferência religiosa.
Ou melhor, de sua raça.

Palmira inquietara-se. Não estava gostando nada do rumo que
aquela conversa estava tomando. Primeiro fora Rodolfo, pedindo-lhe
que os convidasse para sua festa de aniversário, à qual, inclusive,
eles nem foram, e agora era Fausto, que parecia saber algo
comprometedor sobre aquela gente.

— Mas o que é que está tentando me dizer? Por acaso eles não
são católicos?
— Não, mamãe.
— São protestantes?
— Também não.
— Mas o que são então? — diante do silêncio do filho, ela
completara atônita: — Não me vá dizer que são judeus!

Olhando fundo em seus olhos, Fausto respondera:

— Sim, mamãe.

Ela ficara estarrecida. Se fossem protestantes, a situação seria ruim.
Sendo judeus, era praticamente insustentável. Mal contendo a
indignação, retorquira:

— Fausto, como pôde fazer uma coisa dessas comigo, sua
própria mãe? Então não sabe que essa gente não presta, não
tem escrúpulos ou moral?
— Mamãe, isso não é verdade. Os Zylberberg são pessoas
honestas e decentes, e possuem elevados valores morais.
— Não acredito. Todos sabem que os judeus são imprestáveis,
interesseiros e mesquinhos.
— No entanto, vêm pagando regiamente os aluguéis.
— Isso é outra história. Podem ser honestos, admito, mas a
moral deles é outra.
— Que outra? Por acaso não pautam sua conduta pelos mesmos
costumes sociais que nós? Por acaso não se vestem como
nós? Não se sentam à mesa como nós? Não trabalham como
nós? Não consigo ver onde possa estar à diferença.
— Meu filho, os judeus não prestam. Não acreditam no
Nazareno.
— E daí, mamãe?
— E daí que Jesus morreu na cruz por causa da maldade deles.
— Não acha que é muito preconceito julgar e condenar a todos
só porque alguns, há séculos e séculos passados, cometeram
um ato que, pelos nossos padrões de conduta, seria
considerado um crime medonho?
— Mas eles crucificaram Jesus. Isso não lhe parece medonho?
— Mamãe, isso é um fato histórico, como tantos outros. Por
acaso os padres católicos, há bem pouco tempo, não levaram
centenas de pessoas à fogueira só porque tinham algum tipo
de crença ou de conhecimento que, pelos padrões da época,
foi julgado imoral e ofensivo às leis divinas? E as Cruzadas?
Quantos não padeceram em nome da Cruz? Acha justo que
alguém tenha que morrer só por pensar ou agir diferente?
— Isso é outra coisa...
— Não é não. É a mesma coisa. A única diferença é que os
judeus, como você diz, crucificaram um homem só, ao passo
que os católicos, em nome desse mesmo Jesus, assassinaram
inúmeros inocentes. E se quer saber, não creio que Jesus
tenha ficado nada satisfeito com isso.
— Fausto, não blasfeme!
— Não estou blasfemando. Acredito em Jesus e em sua
maravilhosa missão aqui na Terra. Mas se foi ele mesmo quem
pregou o amor, como nos pode, séculos depois, pretender
selecionar aqueles que são e os que não são dignos de ser
amados? Ao que me conste, Jesus não fazia essa distinção. Ao
contrário, amou a todos igualmente: ricos e pobres, cristãos e
romanos, sadios e leprosos...
— Por favor, Fausto, pare! — gritara Palmira. — Você só está
tentando me confundir.
— Não, mamãe. Estou apenas tentando chamá-la à razão. Os
judeus, assim como quaisquer outras pessoas, são seres
humanos. Têm os mesmos sentimentos, as mesmas
necessidades, os mesmos desejos, os mesmos medos.
Sujeitam-se às mesmas vicissitudes e alegrias que nós.
Amam-se, casam-se, têm filhos. Em que são diferentes de
nós?
— Não sei meu filho. Mas Jesus morreu para nos salvar...
— Para que aprendêssemos a nos amar e respeitar, e não para
que nos odiássemos ou discriminássemos.
— Amar, sim. Mas não aos judeus.
— Por que não? Onde está escrito que católicos, judeus,
protestantes, ne... — ia dizer negros, mas mudara de idéia e
se corrigira —... Árabes e turcos não podem se amar?
— Isso que está dizendo é uma heresia.
— Será mesmo? Por que se julga tão superior? Por que acha que
Deus só tem olhos para os católicos? Deus não tem religião e é
cultuado em todas as religiões, até nas africanas. Nossos
escravos também não cultuam seus deuses?
— Fausto, como pode comparar Nosso Senhor aos deuses
africanos? Eles são pagãos, politeístas!
— Mas por quê? Porque alguém convencionou que só devemos
amar a Deus da maneira como foi por uns concebidos? A
concepção de Deus não deve ser limitada, mas de acordo com
a crença e o coração de cada um.
— Meu filho, de onde tirou essas idéias?

Fausto olhara-a assustado. Nem ele sabia de onde surgiram aqueles
pensamentos. Só o que sabia é que eles, de repente, afloraram em
sua mente, clareando-a e tornando-a mais lúcida, como se o véu do
obscurantismo fosse aos poucos caindo, descortinando idéias para as
quais, até então, não havia ainda despertado. Como que retornando
à realidade, ele respondera:

— Não sei mamãe. Confesso que isso me ocorreu agora. Mas não
importa. O que importa é que essas idéias me parecem
bastante lógicas e sensatas. Por que distinguir onde Deus não
distingue?

Palmira estava perplexa. Apesar de sua patente aversão às pessoas
não católicas, tinha que concordar que não sabia responder às
perguntas que Fausto lhe fazia. Acostumara-se a rejeitar os judeus
porque assim lhe ensinaram no catecismo, mas nunca lhe ocorrera
pensar neles como pessoas de carne e osso. Contudo, era-lhe difícil
abandonar tantos conceitos pré-concebidos assim, de forma tão
repentina, conceitos há muito estabelecidos e aos quais já estava
apegada pela força do hábito. Ela o encarara seriamente e,
balançando a cabeça, acrescentara:

— Fausto, não tenho idéia do que está falando. Contudo, fui
criada na Igreja e não me cabe discutir seus dogmas.
— Por que não? Por acaso não pensa, não tem raciocínio?
— Não nos é lícito raciocinar sobre verdades que a Igreja nos
ensina.
— Mas que verdades? Como pode alguém intitular-se dono da
verdade, se a verdade absoluta é privilégio de Deus? Ou será
que alguém está tentando igualar-se a Deus?
— Fausto que horror! Isso é uma blasfêmia.
— Não, mamãe, isso é raciocínio. Deus nos deu a faculdade do
raciocínio e não nos impôs limitações para usá-la. Não estaria
de acordo com a natureza divina possuirmos um dom ou
faculdade para não o utilizarmos. De que vale o violino se não
há ninguém que o saiba tocar? Para que o dom da pintura se o
artista não se dispõe a expressar-se nas telas? Não seria isso
um desperdício?
— Meu filho, não sei o que lhe dizer. Nunca havia pensado nessas
coisas e nem sei se é direito pensar nelas agora.
— Mamãe, por favor, seja razoável. Os Zylberberg são pessoas
de bem. Cumprem suas obrigações para conosco em dia. Têm
uma filha doente, que está se recuperando graças, em parte,
ao ar puro de nossa região. O que pretende fazer? Expulsá-los
daqui só porque não acreditam que Jesus seja o Messias?
— Não sei meu filho, confesso que não sei o que fazer. Não
quero parecer insensível, mas ter contato com judeus... Já é
demais.
— E se eu lhe disser que alguns membros de nossa família
mantêm estreitas relações com eles?
— Refere-se à Camila e Júlia? Eu sei, mas o que posso fazer?
Embora lamente muito, Camila é adulta, e não posso obrigá-la
a cortar relações com essa gente. Só o que posso lhe pedir é
que não me peça para aceitar sua presença em minha casa. E
quanto a Júlia, bem, ainda não é parte da família.
— Não é a Camila que me refiro. Nem a Júlia.
— Não? E a quem mais?
— Mamãe, Dário está comprometido com a moça, Sara, e quero
que saiba que pretendem se casar.

Ela quedara mortificada. Aquilo já era demais. Seu neto misturar
seu sangue ao sangue de uma judia? Nunca! Só passando por cima
de seu cadáver.

— O que está me dizendo? — indagara atônita. — Isso só pode
ser alguma brincadeira.
— Pois lhe asseguro que não é brincadeira alguma. Dário e Sara
estão apaixonados e vão se casar assim que ela melhorar.
— Não, isso não pode ser verdade. Não vou admitir. Vou falar
com Camila, fazer com que veja o absurdo desse romance.
— Pare mamãe. Não há absurdo algum, e a senhora não vai
fazer nada. Lembre-se do que aconteceu a Inácio. Acha justo
deixar que seu neto também sofra por causa de um amor
incompreendido?

Palmira calara-se e ficara a pensar. Já estava ficando velha e
cansada, e talvez nem vivesse para ver o casamento dos netos.
Será que valeria a pena desgostar-se com eles só para fazer valer
sua vontade?

— Não quero fazer ninguém sofrer.
— Pois então, mamãe, aceite e verá que Sara é uma excelente
moça, e que seus pais são pessoas bondosas e decentes.
Tenho certeza de que gostará muito deles.
— Não sei Fausto. Não sei se conseguirei.
— Por favor, mamãe, tente. Dário ama a moça e vai se casar
com ela, quer a senhora queira, quer não. Se a senhora não a
aceitar, eles com certeza partirão daqui magoados com a
senhora. É isso o que quer?
— Tem razão, meu filho. Amo meu neto e não quero desgostar-
me com ele — ela ficara pensativa por alguns segundos, até
que continuara: — Apenas não entendo uma coisa.
— O que é?
— Por que resolveu me contar isso agora? Por que não antes ou
nunca?

Ele acercara-se dela, segurara-lhe as mãos com firmeza e dissera:

— Porque vou me casar com Júlia, e é importante a presença
deles em nosso casamento. E se é importante para Júlia, é
importante para mim também.
— Entendo.

Diante disso, Palmira achara melhor não insistir. Ainda não sabia que
a doença de Rodolfo era uma farsa e não queria indispor-se com
Fausto. Por isso, resolvera tolerar aquela gente. O que mais poderia
fazer?
Logo que marcaram a data, Fausto, a pedido de Júlia, acompanhara
Dário em uma de suas visitas a Sara. Queria formalizar o convite
para seu casamento. Esperara que Sara e Dário terminassem de se
abraçar, chamara Rebeca e Ezequiel, e anunciara:

— Meus amigos, vim aqui para, juntamente com Júlia, fazer-lhes
um convite especial. Gostaríamos de convidá-los para o nosso
casamento, que se realizará dentro de um mês,
aproximadamente.
— O quê? — indagara Ezequiel. — Mas já?
— Sim, já. Não temos por que esperar.
— E onde será o matrimônio? — perguntara frei Ângelo.
— Lá mesmo na fazenda — respondera Júlia. — E gostaríamos
que o senhor, frei Ângelo, celebrasse a cerimônia.
— Ora, será um prazer.
— E vocês irão, não é mesmo, Rebeca?
— Gostaríamos muito, mas não sei se devemos. Dona Palmira,
na certa, não aprovará nossa presença.
— Quanto a isso, não precisam se preocupar — objetara Fausto.
— Já conversei com mamãe e contei-lhe tudo sobre vocês.
— Quer dizer que ela já sabe que somos judeus?
— Já, sim.
— E o que ela disse?
— Não vou mentir. No começo, ficou um pouco chocada. Mas
depois acabou concordando que os convidássemos.
— Posso perguntar como foi que conseguiu essa proeza?
— Nem eu mesmo sei seu Ezequiel. Só o que sei é que mamãe
acabou se convencendo, ao menos parcialmente, de que esse
preconceito não tem fundamento.
— Será que não a constrangeremos com nossa presença?
— Em absoluto. Podem ir sem se preocupar. Mamãe não os
importunará e nem se sentirá ofendida com a presença de
vocês. Ao contrário, tratá-los-á muito bem. Ainda mais agora,
que sabe que Dário e Sara vão se casar.
— Você contou a ela? — indagara Sara, perplexa.
— Sim, meu bem — dissera Dário. — E ela aceitou. Não é
maravilhoso?
— É sim. Oh! Papai podemos ir? Diga que iremos, por favor.
— Bom, se é assim, iremos — concordara Ezequiel.
— Imaginem se faltaria ao casamento de minha querida Júlia, a
quem considero como uma filha — acrescentara Rebeca.
— Obrigada, dona Rebeca. Ficarei muito feliz com a presença de
vocês.

Lembrando-se de sua conversa com o filho, Palmira suspirou e
fechou os olhos. Estava feliz por Fausto e triste com o
comportamento de Rodolfo. Por isso, a festa para ela perdera
metade de seu encanto. Não se sentia com ânimo para fingir mais
diante dos convidados. Ela sabia que Camila se desincumbiria bem
da tarefa que lhe dera e não se preocupou.

Ao final da festa os noivos se recolheram e, no dia seguinte, bem
cedo, partiram para Paris em viagem de núpcias. Apesar de tudo,
estavam felizes. Lamentavam o ocorrido, mas Rodolfo escolhera seu
próprio destino. Tivera a chance de se reconciliar com o irmão e
Júlia e de desfrutar de sua companhia. Em vez disso, optara por
atirar-se naquele precipício de ciúme e inveja, de onde já não podia
retornar.
Marta e Rodolfo ficaram até altas horas assistindo de longe o
movimento do casamento do irmão. Depois que o último convidado
se retirou, ele tornou a beijá-la, levantou-se e estendeu-lhe a mão,
perguntando em seguida:

— E agora? O que faremos?

Ela não sabia bem a que ele se referia. Se ao fato de havê-la
deflorado ou se ao episódio de ainda há pouco. Ela estalou-lhe um
beijo na testa e retrucou:

— Por que não vamos até minha casa? Tenho certeza de que
papai não se importará que você passe a noite lá. Pode dormir
na poltrona...
— Você acha melhor?
— Acho, sim. O que aconteceu em sua casa foi muito grave, e é
melhor que você não volte lá por enquanto.
— Tem razão.

Puseram-se a caminhar de mãos dadas, e Marta acrescentou:

— Por que fez isso?

Rodolfo suspirou e chutou uma pedrinha, respondendo com voz
sumida:

— Não sei. Não sei se você entenderia.

Ela parou, virou-se para ele e, apertando forte suas mãos, decretou:
— Ouça Rodolfo, quero que compreenda uma coisa. Hoje me
tornei sua mulher e quero continuar sendo sua mulher pelo
resto de nossas vidas. Mas quero que saiba que, acima de
tudo, serei sempre sua amiga.

Rodolfo encarou-a, emocionado, e disse-lhe do ódio que sentia pelo
irmão, cuja origem ou razão desconhecia. Estranhamente, sabia que
podia confiar em Marta e no seu amor. Ela jamais o julgaria ou
trairia, e isso lhe dava certo conforto, como se ela passasse, de
repente, a representar a figura do abrigo seguro em noites de
tempestade. Marta ouviu tudo em silêncio, sem esboçar nenhum
tipo de reação. Quando chegaram à porta de sua casa, sua
fisionomia continuava serena, e ela beijou-o de leve nos lábios,
dizendo bem de mansinho:

— Obrigada por confiar em mim.

No dia seguinte, quando Anita acordou, ficou extremamente
surpresa ao encontrar Rodolfo adormecido na poltrona da sala, todo
torto, e correu a chamar o marido. Aldo chegou sem nada entender,
sentou-se ao seu lado e, cutucando-o devagar, tentou despertá-lo.
Rodolfo abriu os olhos um pouco aturdidos e, logo que se lembrou
de tudo o que havia acontecido, pulou da poltrona e ficou a olhar o
capataz, meio sem jeito. Aldo, surpreso, disse:

— Seu Rodolfo, o que foi que aconteceu? O que está fazendo
aqui? Não está doente? Sente-se bem? Precisa de ajuda?

Marta, ouvindo vozes na sala, levantou-se apressada, jogou o
penhoar por cima da camisola e correu para onde eles estavam
chegando bem a tempo de ouvir as emocionadas palavras de
Rodolfo:
— Aldo, peço que me perdoe à intromissão. Vim aqui para pedir-
lhe a mão de Marta em casamento e ficaria muito feliz se a
concedesse.

Foi uma surpresa. Anita, a princípio, quedou boquiaberta, e Aldo,
atônito, retrucou:

— Seu Rodolfo, há pouco estava doente, mal falava...
— Para você ver, Aldo. Foi o amor de sua filha que me curou.

Aldo e Anita se entreolharam, e ele prosseguiu:

— Seu Rodolfo, tem certeza de que é isso mesmo o que quer? O
senhor é o patrão, e Marta é apenas uma menina pobre...
— Sim, Aldo, tenho certeza. Sua filha e eu nos amamos e
queremos nos casar.

Diante disso, Aldo não teve outro remédio senão consentir no
casamento. Ele não sabia de nada do que acontecera, mas não
gostava muito de Rodolfo. Contudo, tinha que concordar que ele era
um excelente partido, membro de uma das mais importantes
famílias da região. E depois, se Marta o amava, que direito teria ele
de impedir que fosse feliz? Ele só esperava que ela, realmente,
conseguisse ser feliz.

Túlio, por sua vez, vendo que Rodolfo o ameaçava, tentando forçá-
lo a executar seus planos sórdidos, primeiro contra Trajano, depois
contra Fausto, achara que já era hora de acabar com aquilo.
Desesperado e arrependido enchera-se de coragem e acabara por
procurar a mãe, abrindo-se com ela, e Camila orientara-o no sentido
de dizer a verdade, pois só a verdade seria capaz de libertá-lo, não
só da culpa, mas também do medo de ser descoberto. Seria um
passo difícil, ela sabia, mas a coragem era uma virtude nobre, e
assumir seus erros, um ato de bravura e dignidade. Túlio se
arrependera e, com isso, dera o primeiro passo para sua
regeneração. Mas era preciso enfrentar seus medos e sua culpa,
assumindo seu erro com coragem e sinceridade. Só assim
conseguiria o respeito por si mesmo e conquistaria o respeito dos
demais.

Fingindo concordar com as idéias do tio, a conselho da mãe, Túlio
saíra em busca de Trajano, colocando-o a par do acontecido
instruindo-o para que, ao ser chamado à sua presença, falasse
apenas a verdade, sem medo de ser humilhado ou castigado.
Trajano ficara muito feliz com a atitude de Túlio. Ainda mais porque
pudera se reconciliar com ele, por quem nutria sincera afeição.

No entanto, Túlio estava envergonhado de si mesmo, e depois de
tudo o que fizera não se sentia com ânimo de encarar Fausto e Júlia.
Afinal, não fora a primeira vez que se metera em situação
semelhante e começara a julgar-se um réprobo, merecedor de todo
desprezo que lhe pudessem endereçar. Com isso, foi se tornando
cada vez mais acabrunhado e tristonho. Evitava a companhia
dos demais e voltara a trancar-se no quarto. Por mais que a mãe, a
avó, o irmão, Júlia e Fausto tentassem animá-lo, ele não conseguia
se livrar da culpa. Túlio, a todo instante, lembrava-se de Etelvina,
por cuja morte fora diretamente responsável. Sua própria
consciência atormentava-o dia e noite, acusando-o de estuprador e
assassino. Ninguém conseguia animá-lo, a não ser Trajano, que o
visitava regularmente. Palmira, vendo o abatimento do neto, a
quem adorava, acabara por consentir que o escravo o visitasse, e
era só na presença de Trajano que Túlio dava vazão à culpa,
chorando e implorando-lhe que o perdoasse. Túlio estava
sinceramente arrependido e, se pudesse tudo faria para reparar os
crimes que havia cometido. Tão sincero era seu arrependimento,
que o espírito de Etelvina, alma nobre e generosa, acabara por se
aproximar dele, e Túlio sonhara.

Em seu sonho, ele estava novamente no local em que tudo
acontecera, chorando à beira do riacho. De repente, ouvira ruído de
passos na relva e, quando se virará, quase caíra de susto. Etelvina
estava ali, parada diante dele, um sorriso nos lábios, convidando-o
para um passeio. Túlio sentira medo e quisera fugir, mas ela
docemente o chamara:

— Por que foge Túlio? Não se lembra mais de mim?
— Lembro-me sim. Você é Etelvina, a quem vi morrer aí mesmo
onde está parada.
— Não, Túlio. Não se lembre de Etelvina. Lembre-se de sua
antiga criada.

De repente, Etelvina como que desaparecera, e em seu lugar
surgira uma moça bonita, muito loura, de seus dezenove anos,
vestida em trajes de serviçal. Túlio assustara-se, e ela correra para
dentro da mata. Sem pensar, ele correra atrás dela e atravessara
uma porta, indo parar na imensa cozinha de um castelo medieval.
Atônito, olhara em volta e vira Etelvina ajudando a cozinheira a
rechear um faisão. Ele se aproximara mais da moça e ela olhara
para ele, abaixando os olhos e sorrindo maliciosamente. Em
seguida, cochichara alguma coisa no ouvido da cozinheira e saíra
por uma porta lateral, e Túlio saíra atrás dela.

Nessa época, Túlio e Rodolfo eram irmãos, e Trajano, capitão da
guarda de seu pai. Rapaz orgulhoso e frio morria de inveja dos
patrões. Era filho bastardo de um tio dos rapazes, e o máximo que
conseguira na vida, por condescendência do patrão, fora aquele
cargo de guarda pessoal. No entanto, apaixonara-se por Etelvina e
pretendia casar-se com ela. Mas eram pobres, e a vida que se lhes
apresentava era uma vida simplória, sem qualquer tipo de luxo ou
conforto. Etelvina e Trajano, extremamente ambiciosos, armaram
um plano. Roubariam os patrões e fugiriam. Como chefe da guarda,
ser-lhe-ia fácil arranjar uma fuga, assim como seria fácil para
Etelvina entrar na sala de tesouros do castelo.

Para isso, Etelvina contava com o desejo e a paixão de Túlio. O
moço vivia seguindo-a com o olhar e só não a forçara a entregar-se
a ele com medo de que o pai descobrisse. Um dia, porém, a sorte
lhe sorrira. A moça estava polindo a prataria quando vira Túlio se
aproximar. Conhecedora de sua influência sobre o rapaz, logo o
seduzira, tornando-se sua amante. A partir daí, encontravam-se
todas as noites, e ela sempre insinuava que muito lhe apreciaria
entrar na sala de tesouros de seu pai. No princípio, ele recusara. Era
muito perigoso. Mas depois, quando a paixão dominara-o por
completo, não pudera mais se furtar. Etelvina ameaçava deixá-lo,
caso não atendesse àquele seu capricho.

Marcaram a visita para o dia seguinte, e Etelvina prevenira Trajano,
que, esgueirando-se pelos corredores do castelo, ocultara-se nas
sombras, à porta do quarto de Túlio. Já era madrugada quando
saíram, e Trajano os seguira de longe, sem produzir um só ruído. O
rapaz entrara num salão, chegara perto da pintura de sua mãe,
ladeada por duas tochas, e torcera a da esquerda. Imediatamente a
parede se abrira, e eles passaram. Etelvina estava assustada, mas
não dissera nada. Caminharam por um corredor escuro, até que
chegaram diante de outra porta, cuja chave Túlio tirara do quarto
do pai. Ele abrira a fechadura e empurrara. Etelvina ficara
maravilhada. Aquele tesouro era incalculável. Havia ali pratarias,
tapeçarias e um baú cheio de jóias e pedras preciosas.
Trajano, que vinha logo atrás, esperara cerca de dez minutos e
repetira o gesto de Túlio, abrindo a passagem secreta e caminhando
pelo corredor, até chegar à sala dos tesouros. Quando entrara, Túlio
se espantara vendo a lâmina que reluzia em sua mão. Olhando para
Etelvina, compreendera tudo e quisera fugir. Tarde demais. A lâmina
cortara-lhe a garganta, e ele tombara morto sem pronunciar um ai
sequer.

No dia seguinte, Rodolfo, irmão de Túlio, saíra a sua procura. Os
dois eram íntimos, combinavam em tudo e tudo sabia a respeito um
do outro. Rodolfo sabia que Túlio e Etelvina havia se tornado
amantes, e até o estimulara. Mas quando o irmão lhe contara que
pretendia mostrar a ela a sala de tesouros, não concordara. Pensara
até em contar ao pai, mas Túlio implorara. Estava apaixonado pela
moça e não queria perdê-la. E depois, que mal haveria? Ela era
apenas uma mulher e nada poderia contra ele. Rodolfo, a
contragosto, não tivera outro remédio senão concordar.

Quando ele abrira a porta do quarto de Túlio e não o encontrara,
correra para a sala de tesouros. Atravessara a passagem secreta e,
quando vira a porta entreaberta, seu coração disparara. Túlio jazia
morto sobre o chão de pedra, a garganta cortada, olhos fitando o
vazio. Olhando ao redor, vira que o baú estava aberto e que várias
peças haviam sido retiradas. Aquilo o enchera de ódio. Teria Etelvina
agido sozinha?

Dado o alarme, constatara-se que o capitão da guarda havia
sumido, bem como Etelvina, e não fora difícil adivinhar o que havia
acontecido. O pai de Túlio enviara seus homens por toda parte, mas
ninguém conseguira encontrá-los, e os criminosos permaneceram
impunes.

Rodolfo, no entanto, não se conformava. O ódio o consumia cada
vez mais, e ele sempre se lembrava da aterradora visão que tivera
do irmão morto. Aquela cena macabra o acompanhava por toda
parte, e ele fizera um juramento. Faria com que Etelvina e Trajano
pagassem tudo na mesma moeda.

Estarrecido diante desse sonho, ou melhor, dessa visão, Túlio
sentira-se envolvido por uma nuvem perfumada, e logo fora
transportado de volta ao seu quarto, onde Etelvina o aguardava. Ela
o beijara suavemente e partira e, desde esse dia, Túlio tornara-se
um rapaz mais alegre, embora comedido e discreto. Sorria com
moderação, largara os vícios, deixara de molestar as escravas.
Concentrara-se no futuro, ávido por retornar a sua cidade e dedicar-
se a auxiliar o pai com os negócios. Tencionava casar-se e ter filhos.
Queria ser um homem normal, levando uma vida normal, porque já
era outro homem: digno, honesto, gentil. E tudo graças a um
estranho sonho que tivera, cuja lembrança lhe parecia um pouco
nebulosa, mas que fora capaz de acender em sua alma a chama da
esperança e do perdão.

CAPÍTULO 29

Desde que frei Ângelo chegara à fazenda Ouro Velho, Sara começou
a se sentir melhor. Todo o dia bebia as infusões que ele mandava
preparar para ela, que pareciam fortalecê-la cada vez mais. Além
disso, a companhia dos amigos e as conversas que tinha com o frei
foram aos poucos a animando. Ela sempre falava de seus sonhos,
de seus temores e de suas dúvidas. Abria seu coração para ele,
revelando-lhe suas angústias e seus sentimentos, e já estava
consciente de que o mal de que sofria realmente tivera uma causa
no passado, e que essa causa estava mesmo ligada a sua relação
com seus pais em outra vida.
Naquele dia, ao sair para o jardim, frei Ângelo lá estava, olhos
fechados, banhando-se ao Sol. Ela chegou e levemente o tocou,
dizendo sorridente:

— Bom dia, frei Ângelo. Desculpe-me se o desperto do sono...
— Oh, não, minha menina, não estava dormindo. Apenas
aproveitava o Sol da manhã. Mas vamos, sente-se aqui junto
de mim e diga-me: como se sente esta manhã?

Ela sentou-se a seu lado, encheu os pulmões com o ar fresco da
manhã e respondeu com jovialidade:
— Maravilhosamente!
— Ótimo. Seu progresso tem mesmo sido notável.
— Graças ao senhor.
— Graças a você mesma. Ao seu desejo de se curar. A sua
enorme capacidade de compreender, aceitar e modificar as
coisas.
— Sabe, frei Ângelo, sinto como se, de repente, pudesse
compreender por que meus pais são como são, e por que eu
sinto tanta insegurança.
— E por quê?
— Pelo que pude compreender de todos os sonhos que já tive,
minha mãe ficou viúva logo cedo, mas não se conformava em
viver só. Por isso, vivia flertando com vários homens, sempre
na esperança de arranjar novo marido. Mas os homens, logo
que descobriam que ela tinha uma filha, em sua maioria se
afastavam, e ela ficava aborrecida comigo. Passou então a
quase me ignorar. Tratava-me bem, cumpria com seus
deveres de mãe, ou seja, alimentava-me, dava-me roupas,
brinquedos... Mas nenhum carinho. Não tinha tempo para isso.
Creio mesmo que ela tentava compensar sua falta de amor
comprando-me presentes caros e bonitos. Bem, o fato é que
eu fui me sentindo cada vez mais sozinha, fui me isolando,
pensando que não era amada.

Ela suspirou e prosseguiu:

— Agora compreendo a antipatia que minha mãe sentiu por
Marta. Ela afeiçoou-se muito a mim e tratava-me como se eu
fosse sua filha. Dava-me coisas também, mas, em especial,
dava-me atenção, carinho, amor. Era bondosa e
compreensiva, e eu fui me apegando a ela e, com o tempo,
passei a não ligar mais para minha mãe. Eu era também
pequenina, devia ter uns seis anos no máximo, e substituí o
amor de minha mãe pelo de Marta, feliz por haver encontrado
alguém que me fizesse sentir amada. E minha mãe, quando se
deu conta do que havia acontecido, ficou furiosa. Ela nem
teria notado, não fosse pelo fato de haver conhecido meu pai,
que passou a cobrar-lhe que me desse atenção, e ela, para
agradá-lo, procurava a minha companhia. Mas eu, cada vez
mais distante, não queria estar junto deles, mas sim de minha
tia, o que deixou minha mãe furiosa. Daí o sentimento que ela
tem por Marta, que nem sabe explicar.
— É verdade. E como você se sentiu com tudo isso?
— Eu fiquei extremamente infeliz. Apesar de procurar minha
companhia, eu sentia que aquele interesse não era sincero.
Minha mãe só queria impressionar seu novo marido. Na frente
dele dava-me beijos, abraços. Mas depois que ele saía,
colocava-me no chão e voltava a me ignorar. Segundo dizia,
não tinha paciência para manhas de crianças.
— Você deve ter se sentido extremamente só.
— E como! Minha tia foi proibida de me ver, e eu sofria muito
com isso. O que mais desejava no mundo era poder estar
junto de Marta. Com o tempo, fui me fechando cada vez mais.
Não saía para brincar e me alimentava muito mal. Até que,
um dia, bastante enfraquecida pela má alimentação, apanhei
um golpe de ar e adoeci. Tossia sem parar e ardia em febre.
Minha mãe se apavorou e chamou o médico, mas já não havia
muito que fazer. A pneumonia já havia tomado conta de meu
pulmão, e só o que se podia fazer era esperar. Poucos dias
depois, vim a falecer, deixando minha mãe entregue a
profundo abatimento, sentindo-se culpada por minha morte.
Mas, não querendo admitir sua culpa, passou a acusar Marta,
dizendo que ela havia colocado coisas na minha cabeça, na
esperança de roubar-me dela. Marta e ela cortaram relações
e, durante anos, não mais se falaram. Até que, mais tarde,
por conveniências políticas, passaram a manter uma relação
fria e artificial. Minha mãe nunca pôde perdoá-la e morreu
levando consigo muita mágoa e ressentimento.

Sara calou-se e frei Ângelo ficou olhando-a, profundamente
emocionado com o que acabara de ouvir. Toda a história fazia
sentido, e ele estava feliz por ver que a moça conseguira, sem
muito esforço, chegar àquelas conclusões. Depois de alguns
instantes, segurou-lhe a mão e indagou:

— E agora, o que pretende fazer? Vai contar a verdade a seus
pais?
— Não, absolutamente não. Meus pais jamais entenderiam.
Principalmente minha mãe.
— Bem se vê que ela carrega muita culpa no coração.
— Por isso mesmo. Se ela acreditasse nessa história, passaria a
se culpar. Isso sem falar que poderia aumentar sua antipatia
por Marta.
— Tem razão, minha filha. È muito sábia essa decisão. Foi por
isso que Deus permitiu que você descobrisse essas verdades,
porque sabia que você já estava preparada para entendê-las e
aceitá-las. Seus pais, contudo, ainda precisam de mais algum
amadurecimento. Revelar-lhes essas coisas agora poderia
causar-lhes mais mal do que bem, visto que eles não
conseguiriam alcançar a magnitude da justiça de Deus.
— Minha mãe entenderia justiça como vingança. Pensaria que
Deus a estaria castigando por haver me rejeitado.
— Como se Deus castigasse alguém...
— Vê como é melhor deixar tudo como está?

Nesse instante, Dário se aproximou. Ia sorrindo, vendo a alegria de
Sara. Era impressionante sua melhora, e Dário pensou que frei
Ângelo operara um verdadeiro milagre. Acercando-se mais dela,
segurou sua mão e beijou-a na face, falando sorridente:

— Sara minha querida, como está alegre!
— Sim, Dário, sinto-me muito bem.
— Isso é maravilhoso!
— É sim.
— Em breve poderemos nos casar.

Ele olhou para frei Ângelo, que se levantou, pediu licença e se
retirou. Era hora de entrar e deixar que os moços aproveitassem à
juventude e o amor. Dário sentou-se ao lado de Sara, e ela o
encarou com ar enigmático. Lembrou-se de outro sonho que tivera,
talvez de uma vida anterior, quando ele fora seu marido e morrera
bem velhinho a seu lado. Ela sorriu para ele e, segurando-lhe o
queixo entre as mãos, disse cheia de ternura:

— Sabe que o amo há muito, muito tempo?
Dário, pensando que ela se referia ao tempo em que se conheciam,
abraçou-a com ternura, estreitando-a de encontro ao peito, certo de
que ela viveria para continuar a amá-lo por muito, mas muito mais
tempo ainda.

Até a partida de Fausto e Júlia em viagem de lua-de-mel, no dia
seguinte ao casamento, Rodolfo permaneceu oculto na casa de
Marta. Aldo e Anita estranharam, mas não disseram nada. Ele era o
patrão, e não convinha contrariá-lo.

Quando a carruagem levando os recém-casados saiu da estradinha
que ligava à casa grande, o capataz foi avisá-lo, e Rodolfo voltou
para casa cabisbaixo e desconfiado. Entrou sem falar com ninguém
e foi direto para o quarto. Poucos minutos depois, escutou batida na
porta. Era a mãe, que ia ver como estava passando.

— Como está, meu filho? Por onde andou? Fiquei preocupada.

Ele virou o rosto para a janela e retrucou:

— Por quê? Pensei que também quisesse ver-me longe daqui.
— Não diga isso. Você é meu filho. Haja o que houver, será
sempre meu filho.

Encarando-a, Rodolfo declarou:

— Mamãe, sei que errei, mas errei porque pensava amar Júlia. —
mentiu — No entanto, agora vejo que não a amava tanto
assim. Por causa dela, quase destruí meu irmão. Quase me
destruí...
— Não pense mais nisso. O importante agora é que vocês se
reconciliem. Ele partiu para a Europa, vai demorar a voltar. É
o tempo de que necessitamos para que tudo se ajeite.
— Acha mesmo?
— Tenho certeza. Fausto é um bom rapaz, e Júlia também me
parece que tem bom coração. Irão perdoá-lo e esquecer o
ocorrido. Mas você tem que me prometer que nunca mais
tentará nada contra eles. Promete?

Ele ainda hesitou, mas acabou concordando.

— Prometo.
— Muito bem.
— Eles vão continuar morando aqui?
— Não. Eles vão para a Ouro Velho. E melhor assim.
— Sim, é. Escute mamãe, não quero mais saber de Júlia. Por
isso, gostaria de anunciar que pretendo me casar com Marta.
— Fico muito feliz, meu filho, que tenha decidido se casar com
ela. Confesso que, no começo, não a julgava digna de você.
Mas depois, vendo-lhe a dedicação, comecei a rever meus
conceitos. Marta tem muito valor, e sei que o ama.
— Quer dizer, então, que nos dará sua bênção?
— Sim. E ficarei muito feliz se continuarem vivendo aqui. Com
Fausto na outra fazenda, e Camila de volta a São Paulo com
meus netos, sentir-me-ei muito só.
— Nada me dará mais prazer, mamãe. E não se preocupe.
Pretendo encher esta casa de crianças.

Ela sorriu e deu uma tapinha de leve em seu braço.

— Agora me diga meu filho, apenas por curiosidade. Desde
quando estava se fingindo de doente?
Ele abaixou os olhos e suspirou com amargura.

— Há muito tempo, mamãe. Tanto que nem posso me lembrar.

Palmira achou estranha aquela resposta e mudou de assunto:

— Vou mandar providenciar um novo quarto para vocês. Este
aqui é muito pequeno para acomodar um casal.
— Como quiser mamãe. Ah, já ia me esquecendo. Prometi a Aldo
que lhe daria um pequeno sítio, para que possa se aposentar e
viver com a mulher. Não fica bem meu sogro trabalhando
para mim de capataz.
— Fez bem.

O casamento se realizou conforme o esperado, em cerimônia
simples, só com a presença dos familiares. Nenhum amigo, nenhum
fazendeiro da região ou pessoa ilustre foi convidada. Rodolfo não
tinha ânimo para festas, e Marta não fazia questão de luxo. Ele
apenas quis receber a noiva no altar, toda de branco. Depois da
cerimônia, partiram para a corte em lua-de-mel e só retornaram
dali a um mês.

Quando voltaram, Marta parecia feliz, apesar de mais madura e
vivida. Camila já havia partido em companhia de Leopoldo e Túlio, e
apenas Dário permanecera. Não queria ir sem Sara. A moça
freqüentava a fazenda São Jerônimo e lá iam quase todos os dias
em companhia de frei Ângelo. Vendo a amizade entre um frei e uma
judia, Palmira se espantou. Frei Ângelo, porém, dissera-lhe:

— Dona Palmira, Deus não se preocupa com raça, cor ou credo.
Ele enviou seu filho não para que desagregasse os homens,
impondo-lhes diferentes crenças e conceitos, mas para que,
reconhecendo suas próprias diferenças, pudessem se amar e
se reconhecer como irmãos.
— Mas... E a crucificação?
— Jesus foi crucificado pela incompreensão de uns, e não pela
maldade de todos. Não é justo nos julgarmos melhores do que
ninguém, ainda mais porque os cristãos surgiram do meio dos
judeus. Não é verdade?
— Sim... Pensando bem, Jesus também nasceu judeu.
— E então? Viu? Não perca a oportunidade, dona Palmira, de
conhecer pessoas maravilhosas, que muito têm a oferecer, só
porque seguem uma crença diferente.

A exemplo de Marta Sara era também uma boa moça. Um pouco
pálida, talvez, mas muito franca e generosa.
— O que será dela? — tornou Palmira. — O que será dela quando
voltar a São Paulo?
— Não sei. Esperamos que sua doença não volte a evoluir longe
do ar puro das montanhas. Sara tem a doença sob controle,
mas não se pode afirmar que esteja propriamente curada.
— Mas por que ela tem que voltar? Por que não pode ficar aqui?
Por acaso não gosta da vida na fazenda?
— Não sei dizer. Por que não pergunta a ela?

Sara amava a vida na fazenda, mas ela não lhe pertencia. Pertencia
a Fausto e a Júlia, que para ali se mudariam tão logo voltassem de
sua viagem. E ela não tinha o direito de tomar-lhes o lugar. Palmira,
porém, já afeiçoada à moça e com medo de que ela piorasse se
voltasse para São Paulo, tomou uma decisão. Falaria com Fausto.
Se ele concordasse, pediria a Ezequiel e Rebeca que se mudasse em
definitivo para lá com a menina, depois do casamento. Apesar da
tristeza que a partida de Fausto lhe causaria, Palmira pensou que
aquela seria a decisão mais acertada a tomar. Fausto e Júlia tinham
saúde e viveriam bem em qualquer lugar.

CAPÍTULO 30

Fausto e Júlia voltaram cerca de seis meses depois. Chegaram
felizes, cheios de presentes, novidades e muitas saudades. A alegria
foi geral, e Júlia ficou espantada ao saber que Marta e Rodolfo havia
se casado. Depois que se acomodou, Júlia foi ter com a amiga e
acariciou seu ventre, que já começava a se avolumar.

— Está feliz? — perguntou Júlia.

Marta fitou o horizonte e respondeu:

— Sim. Era o que eu queria, não era?
— Ele a trata bem?
— Ele é gentil e carinhoso. E está feliz com o bebê.
— Fico feliz por você também, Marta. Torço para que tudo dê
certo.
— Quando vão partir?
— Daqui a uns dias. Logo após o casamento de Dário e Sara.
— Vocês foram muito generosos cedendo-lhes a fazenda Ouro
Velho.
— Eles merecem. E Trajano ficará com eles.
— Vocês também não poderiam ficar?
— Não, Marta. Fausto e eu já havíamos mesmo decidido partir.
Ainda que Sara não precisasse da fazenda, nós partiríamos.
Para nós é difícil estar perto de Rodolfo.
— Sei disso e compreendo. Mas sentirei muito sua falta.
— Em breve não sentirá — gracejou, apontando para sua
barriga.
— Tem razão. Rodolfo e eu queremos ter muitos filhos.
— Isso é ótimo.

Naquela noite, quando Marta se recolheu, teve um sonho estranho.
Sonhou que era irmã de Rebeca e que havia brigado com ela por
causa de Sara, sua sobrinha, a quem amava como se fosse sua
filha. Depois que a menina morrera, Marta sentira-se muito só e
casara-se logo em seguida. Tivera, então, três filhos, sendo Rodolfo
e Túlio os mais novos. Mas Rodolfo era seu preferido, era a razão de
sua existência, e ela se desvelava por ele. Amava-o profundamente
e cuidava dele com muita dedicação. Quatro anos depois, ao dar à
luz novamente, Marta não resistira ao parto difícil e desencarnara,
logo após o nascimento de Túlio. Liberta da carne, Marta continuara
a amparar Rodolfo, a quem já amava havia muitas e muitas vidas.

Rebeca, sua irmã, após perder a filhinha, tivera uma outra menina,
fruto de seu segundo casamento com Ezequiel. A menina, Júlia, era
prima de Rodolfo e Túlio, e fora crescendo com eles, até que, um
dia, conhecera Fausto, filho de Palmira, nova madrasta de Rodolfo.
Júlia era então namorada de Rodolfo, mas acabara por apaixonar-se
por Fausto, que pedira sua mão em casamento. Mas Rodolfo,
cheio de ciúme, desafiara-o para um duelo, e ele só não fora morto
porque Júlia intercedera, o que o cobrira de vergonha, e ele acabara
seus dias desmoralizado e desonrado, só em seu castelo.

Marta despertou suando frio. Lembrava-se parcialmente do sonho,
mas ficara com uma sensação estranha a oprimir-lhe o peito.

— O que foi?— indagou Rodolfo, despertando assustado. — É o
bebê?
— Não foi nada, querido, durma.

Depois do casamento de Dário e Sara Fausto achou que já era hora
de partir. Aproveitando a companhia de Camila, aprontou suas
coisas e se foi com Júlia, ansioso por uma nova vida. Era um bom
negociante e, com a ajuda de Leopoldo, não seria difícil se
estabelecer.

Assim que a carruagem sumiu na estrada, Rodolfo, em casa, teve
um estremecimento. Não pudera ver quando eles deixaram à
fazenda, mas sentira que se distanciavam e começou a chorar. Não
estava triste. Ao contrário, sentia-se aliviado por não precisar mais
dividir o mesmo teto com o irmão. Mas era uma sensação estranha;
um misto de alívio e de perda, como se, de alguma forma, uma
parte de sua vida estivesse partindo com ele.

Palmira, depois das despedidas, sentou-se à janela e pôs-se a
observar as carruagens, até que desaparecessem e, depois disso,
continuou ainda sentada ali. Estava tão absorta em seus
pensamentos que nem percebeu quando Terêncio entrou. Depois
que Aldo se estabelecera com a mulher, o cargo de capataz ficara
vago, e fora logo ocupado por um rapaz jovem e robusto.

— Dona Palmira — começou —, será que eu poderia falar com a
senhora?
— O que quer? — respondeu ela, sem olhar para ele.
— Bem, dona Palmira, é que os meninos se casaram, veio um
novo capataz, e eu estava pensando. Já estou velho, não
agüento mais a labuta. Será que a senhora também não pode
me substituir? Conheço um rapaz muito bom que poderia ficar
em meu lugar.
— Está bem, Terêncio, o que pede é justo.
— A senhora concorda?
— Concordo sim. Mande-o vir amanhã para falar com Rodolfo.
— Mais uma coisa, dona Palmira.
— O que é?
— Será que eu poderia morar na casa que foi de Aldo? È que fica
um pouco mais afastada e é mais sossegada.
— Como quiser Terêncio. Apesar de tudo o que se passou, você
foi fiel a Licurgo durante muitos anos. É justo que receba uma
recompensa.
— Obrigado, dona Palmira — agradeceu com os olhos rasos
d'água.

Terêncio nunca fora um homem bom. Ao contrário, sempre fora
cruel e sanguinário, gostava de bater nos escravos e de se deitar
com as negras. Além disso, era venal e egoísta, e só pensava em si
mesmo. Terêncio era capaz de tudo por dinheiro, até mesmo de
trair e matar. Só nunca traíra Licurgo, para com quem tinha uma
lealdade exagerada, que beirava o absurdo. Terêncio amava e
respeitava Licurgo acima de qualquer coisa, e seria capaz de matar
e morrer por ele.

Na verdade, Terêncio era filho de Licurgo, embora nunca tivesse
ficado sabendo disso. Palmira também não sabia. Só descobrira a
verdade quando o marido, sentindo a aproximação da morte,
confidenciara-lhe esse segredo, pedindo-lhe que o mantivesse bem
guardado. Da mãe, uma costureira pobre que ele deixara na Bahia,
nunca mais ouvira falar. E, como último desejo, Licurgo pedira a
Palmira que não desamparasse o capataz, como ele fizera durante
todos aqueles anos em que o protegera em silêncio. Terêncio nunca
desconfiara de sua origem, e não seria conveniente revelá-la nesse
momento. E depois, ele também já era um velho. Para onde iria?
Depois que ele saiu, Palmira continuou ali, até que a noite chegou, e
quando Tonha entrou para acender as velas, assustou-se com a
sinhá, sentada ali no escuro, fitando as trevas que se estendiam
sobre o horizonte. Ela deu um salto para trás e, levando a mão ao
coração, exclamou:

— Sinhá Palmira! O que faz aí no escuro?

Palmira voltou-se lentamente para ela e sorriu. Já não lhe tinha mais
ódio. Chegava mesmo a ter-lhe certa admiração. Ainda sorrindo,
chamou:

— Deixe isso, Tonha, e sente-se aqui ao meu lado.

Tonha, sem entender, balbuciou:

— Como... Como disse, sinhá?
— Disse para sentar-se junto a mim. Vamos, venha não tenha
medo.

Um tanto quanto confusa, Tonha obedeceu e sentou-se junto dela.
Palmira tornou a fitar o horizonte e foi só após alguns minutos que
disse:

— Sabe Tonha, hoje sinto que renasci...

Tonha voltou à cabeça para ela, cada vez entendendo menos, mas
ela parecia dormir. Os olhos semicerrados pareciam voltados para
dentro de si, e ela, adormecida, sonhou.

Palmira caminhava por entre os escombros de uma fazenda que
parecia em ruínas, sentindo nas narinas um forte odor de cinzas.
Fora andando vagarosamente, passando as mãos por cima dos
móveis semi-destruídos, experimentando na pele a sensação porosa
da fuligem. Onde estaria? Aquele lugar lhe parecia familiar, mas não
atinava onde fosse. Só o que podia perceber era que os cômodos
por onde andava estavam praticamente destruídos, vigas e pilastras
derrubadas no chão, às paredes cobertas por uma crosta negra e
grossa.

Chegara perto de uma janela e olhara para fora. Era quase noite,
mas a paisagem que se ia descortinando despertara sua lembrança.
Como não havia percebido antes? Estava na fazenda Ouro Velho,
caminhava por seus corredores, adentrava seus quartos, e era a
floresta exuberante que via estender-se diante de seus olhos. No
entanto, estava diferente, destruída, como no dia em que aquele
incêndio nefasto havia tirado a vida de Inácio, Cirilo e Aline.
Mas como era possível? Apesar dos escombros, Palmira tinha
certeza de que aquele incêndio havia acontecido mais de trinta anos
antes. E a fazenda havia sido reformada. Como podia então estar
ainda destruída? Sem entender, ela entrara por um corredor
comprido, que levava à sala, e estacara quando lá chegara.
Sentados em uma poltrona de veludo, dois rapazes a fitavam com
um sorriso no rosto. Eram jovens e bonitos, e vestiam-se com calça
e túnica brancas. Por uns instantes, Palmira ficara a olhá-los
também. De onde é que os conhecia?

Subitamente, seu coração disparara e ela soltara um grito de
euforia:

— Cirilo! Inácio! São vocês mesmo?

Os rapazes se levantaram no mesmo instante, aproximando-se dela
e abraçando-a afetuosamente. Palmira, de tão abismada, quase não
conseguia falar. Efetivamente, eram seu filho e seu sobrinho que
tinha ali diante de si. Mas como podia ser? Eles não haviam
morrido? Será que ela morrera também? Ou será que estava
sonhando?
— Não, mamãe — apressara-se Cirilo em dizer, lendo-lhe os
pensamentos. — A senhora não morreu.

Completamente inebriada com a presença do filho e do sobrinho,
Palmira deixara-se abraçar com alegria.

— Meus queridos — balbuciou —, quantas saudades senti de
vocês!
— Nós sabemos mamãe, e estamos aqui para ajudá-la.
— Ajudar-me. Por quê? O que vai me acontecer?
— Tia Palmira, em breve a senhora deixará esse corpo de carne
e partirá para uma nova vida. No entanto, é preciso que
reveja algumas de suas atitudes, a fim de que sua consciência
não a conduza para mundos inferiores.
— Como assim? Serei julgada?
— É claro que não, mamãe. O julgamento que fará de si mesma
partirá de seu próprio coração, e não de um tribunal ilusório.
Ele poderá até existir, se a senhora assim desejar. Mas só será
real no seu plano de pensamento, pois que será mera criação
mental. No entanto, como disse, é preciso rever suas atitudes.
Só assim alcançará a compreensão libertadora.
— Mas... Em toda minha vida, fiz apenas o que achava certo.
— A concepção de certo e errado muitas vezes esbarra no
sentimento que devemos nutrir por nós e por nossos
semelhantes. Antes de os julgarmos ou condenarmos,
devemos entender que são nossos iguais, filhos do mesmo
Deus que nos criou, nem melhores, nem piores do que nós
mesmos. Apenas seres humanos que, como nós, encontra-se
em franco processo de evolução. Sejam escravos, judeus,
protestantes. Pobres ou ricos, somos todos essência do mesmo
sopro divino, que nos dá vida e nos anima, impulsionando-nos
a buscar nosso crescimento através das provas e dificuldades
que experimentamos, sempre atendendo ao nosso livre-
arbítrio e às escolhas que fazemos. A natureza divina é
perfeita, e nós, como parte dessa perfeição, devemos libertar
o germe da compreensão que trazemos dentro de nós e regá-
lo com amor. Só assim poderemos encontrar a felicidade.

Palmira abaixou a cabeça e sussurrou:

— Então estou condenada. Minha consciência me diz que tenho
muito que aprender.
— Pois então aprenda. Com humildade, com benevolência, com
simplicidade. Ore e peça a Deus uma nova chance. Reconheça
seus erros e procure transformá-los em lições para o futuro.
Mas não se condene. Não se deixe abater pala culpa ou pelo
medo. Tenha fé e confiança, e saiba que todos esses
processos de amadurecimento, apesar de dolorosos, são
necessários para a compreensão dos verdadeiros valores do
espírito. E ame mamãe. Sobretudo, abra seu coração para o
amor. Só ele é capaz de nos libertar...

Gradativamente, Palmira foi abrindo os olhos, ainda escutando as
palavras do filho e do sobrinho ecoando em seus ouvidos. Já era
noite fechada, mas ela pôde ver na escuridão dois vultos brancos se
esvaecendo no ar, e ouviu perfeitamente quando Cirilo disse a
Inácio:

— Talvez precise reencarnar... No corpo de uma negra, serviçal,
para aprender a reconhecer os verdadeiros valores do espírito
e desapegar-se do orgulho...

Reconhecendo naqueles vultos as figuras do filho e do sobrinho, e
não compreendendo bem aquela conversa, Palmira arregalou os
olhos, estendeu as mãos para frente e exclamou:
— Inácio! Cirilo! Não me deixem! Esperem-me... Esperem-me...

E tombando a cabeça sobre o peito, abandonou o corpo e os seguiu.


Fim
Com o Amor Não Se Brinca Mônica de Castro
Papyrus_digitais@googlegroups.com
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\ltrch\fcs0 \f2\fs20\lang1046\langfe1046\cgrid\langnp1046\langfenp1046 {\rtlch\fcs1 \af2 \ltrch\fcs0 \insrsid8146520\charrsid14751337 DE FRENTE
\par COM A
\par VERDADE
\par Quando Luciana se foi, Marcela pensou que seria o fim de sua vida. O desequil\'edbrio a fez adotar medidas extremas. Depois de um suic\'eddio frustrado, encontrou no m\'e9dico
\par que a salvou uma nova raz\'e3o para viver.
\par Temendo o preconceito, Marcela esconde do jovem namorado a avassaladora paix\'e3o do passado. A partir da\'ed, intrinca-se numa rede de omiss\'f5es e subterf\'fagios para tentar
\par conter a verdade, vendo em Luciana a arma com que o inimigo tramar\'e1 sua derrota.
\par O passado, contudo, n\'e3o pode ser apagado, e as experi\'eancias nele vividas remanescem no reposit\'f3rio indel\'e9vel da alma. Mais cedo ou mais tarde, o universo desvenda
\par segredos e ilus\'f5es, porque a verdade \'e9 o estado natural de todas as coisas.
\par Presa ainda aos desenganos do mundo, Marcela n\'e3o compreende a obra da natureza, que incessantemente trabalha para restabelecer o seu curso. Por mais que tente fugir
\par ou se esconder, os rumos que a vida percorre chegam sempre ao mesmo ponto, onde ela estar\'e1, inevitavelmente, de frente com a verdade.
\par
\par Meu amor pela literatura existe desde os meus tempos de menina. Sempre gostei de ler e escrever, em verso e prosa, e foi nos poemas de Manuel Bandeira que lapidei
\par ainda mais a sensibilidade da minha alma. Gostava de escrever poemas, contos, textos diversos, e cheguei a ganhar um concurso de poesia aos treze anos, aqui na cidade
\par do Rio de Janeiro, onde nasci, em 1962. Ao mesmo tempo, minha mediunidade despertou, e adotei o espiritismo como b\'e1lsamo do meu cora\'e7\'e3o.
\par }{\rtlch\fcs1 \af2 \ltrch\fcs0 \insrsid8146520 Meu desejo sempre foi o de se}{\rtlch\fcs1 \af2 \ltrch\fcs0 \insrsid8146520\charrsid14751337 r escritora. Mas a vida nos leva por caminhos }{\rtlch\fcs1 \af2 \ltrch\fcs0 \insrsid8146520 \tab \tab \tab \tab
\tab \tab }{\rtlch\fcs1 \af2 \ltrch\fcs0 \insrsid8146520\charrsid14751337 diferentes, sempre em nosso benef\'edcio, e acabei me formando em Direito e passando num
\par concurso para o Minist\'e9rio P\'fablico do Trabalho. Anos depois, ap\'f3s o nascimento do meu filho, senti a primeira inspira\'e7\'e3o. Foi uma coisa estranha. Uma voz ficava
\par na minha cabe\'e7a, repetindo esse nome: Rosali, e a id\'e9ia de fazer um romance brotou na mesma hora. Rejeitei a id\'e9ia e pensei: "Quem sou eu para escrever um romance?".
\par Por outro lado, a mesma voz tamb\'e9m me dizia: "N\'e3o custa nada tentar. O m\'e1ximo que pode acontecer \'e9 n\'e3o dar em nada". Aceitei a sugest\'e3o do invis\'edvel, acreditando
\par ser o meu pensamento, e fui sentar-me ao computador. Na mesma hora, a inspira\'e7\'e3o para Uma Hist\'f3ria de Ontem surgiu espont\'e2nea, e fui escrevendo, cada dia um pouquinho.
\par At\'e9 ent\'e3o, eu n\'e3o sabia que estava psicografando.
\par Foi s\'f3 quando terminei o romance que recebi a psicografia do Leonel, que abre o meu primeiro livro, e nele se apresenta, dando o seu nome. Mas foi preciso uma boa
\par dose de desprendimento para escrever, sem questionar e aceitar a interfer\'eancia do esp\'edrito. Hoje, posso dizer, Leonel \'e9 parte fundamental da minha vida.
\par N\'e3o escrevo para viver. Escrevo porque gosto e porque acredito estar levando algum bem para as pessoas. E \'e9 esse sentimento que me faz querer escrever cada vez mais.
\par \'c9 pelas pessoas que vale a pena escrever. Pelos leitores, que est\'e3o em busca de algo, al\'e9m do aqui e agora, e que acreditam no poder da f\'e9, do autoconhecimento e
\par do amor, como caminhos seguros para a transforma\'e7\'e3o do Ser.
\par Acredito que n\'f3s todos podemos trabalhar pelo aperfei\'e7oamento moral da humanidade para construir um mundo melhor.
\par
\par Sucessos de M\'d4NICA DE CASTRO
\par M\'f4nica de CastroDe todo o meu ser
\par A sensibilidade exacerbada de Marianne \'e9 um problema. Os pais, desconhecedores dos processos medi\'fanicos, n\'e3o sabem o que fazer. Resolvem ent\'e3o adotar medidas
\par perigosas e extremas. Ser\'e3o suficientes para conter os inimigos espirituais e trazer Marianne de volta \'e0 lucidez?
\par A atriz
\par Tudo que Amelinha queria era ser amada pela m\'e3e. Mas sua m\'e3e, apegada \'e0s dificuldades de vidas passadas, via na filha a rival
\par de outros tempos. Amelinha cresce e se transforma em T\'e1lia Uchoa, deixando para tr\'e1s um passado de abusos e dor. Ser\'e1, contudo, poss\'edvel fugir de si mesma?
\par G\'eameas
\par Esta \'e9 a fant\'e1stica hist\'f3ria de Beatriz e Suzane, g\'eameas id\'eanticas, separadas ao nascer. Anos depois, uma sucess\'e3o de coincid\'eancias traz a desconfian\'e7a,
\par aproximando-as da surpreendente revela\'e7\'e3o. Poder\'e3o as meninas superar a dor e encontrar a felicidade na nova realidade que a vida lhes apresenta?
\par S\'f3 por amor
\par Janu\'e1rio nunca deu valor \'e0 vida. At\'e9 o dia em que, inexplicavelmente, uma crian\'e7a desconhecida despertou o amor que nem ele sabia existir. A partir da\'ed, Janu\'e1rio
\par tudo far\'e1 para ocultar seus crimes, sem saber que o passado tem seus pr\'f3prios m\'e9todos para se revelar.
\par Lembran\'e7as que o vento traz
\par Segredos inconfess\'e1veis se ocultam por detr\'e1s das paredes da mans\'e3o onde Clarissa, inesperadamente, \'e9 obrigada a viver. O amor e a verdade se transformam em p\'e1lidas
\par lembran\'e7as que o vento sussurra pelos cantos, fazendo da morte um mist\'e9rio que Clarissa ser\'e1 chamada a desvendar. Este extraordin\'e1rio romance encerra a trilogia
\par iniciada com Sentindo na pr\'f3pria pele e Com o amor n\'e3o se brinca.
\par Giselle
\par A amante do inquisidor
\par Na Espanha do s\'e9culo quinze, Giselle torna-se amante do inquisidor Esteban, seduzindo pessoas para entreg\'e1-las ao Tribunal do Santo Of\'edcio e, com isso, enriquecer.
\par De repente encontra um homem que a desperta para um grande amor, inspirando-a mudar de vida. Haver\'e1 tempo para Giselle mudar ou ser\'e1 tarde demais? Voc\'ea encontrar\'e1
\par a resposta nesse emocionante romance.
\par Segredos da alma
\par Vivian quer ser escritora na Londres do s\'e9culo dezenove, mas tem que enfrentar o preconceito da sociedade machista, ao mesmo tempo em que luta pelo seu verdadeiro
\par amor. Diante disso ela aprender\'e1 que o segredo do amor \'e9 a intelig\'eancia, e o segredo do destino feliz \'e9 ficar no seu melhor.
\par Greta
\par Um momento de distra\'e7\'e3o da bab\'e1, um acidente, uma crian\'e7a morre. Em conseq\'fc\'eancia do acidente, a bab\'e1, esmagada pela culpa, n\'e3o consegue mais emprego e se v\'ea obrigada
\par a entregar-se \'e0 prostitui\'e7\'e3o para sobreviver. Por que uma crian\'e7a saud\'e1vel, alegre, morre de repente? Como vencer a dor da perda e continuar vivendo? Descubra as
\par respostas neste romance fascinante: Greta.
\par O Pre\'e7o de ser diferente
\par Romero descobre a homossexualidade e tem que lutar contra o preconceito e a intoler\'e2ncia. Este romance tocante mostra que os escravos do preconceito est\'e3o se candidatando,
\par no futuro, a experimentar as mesmas experi\'eancias que criticaram, a fim de aprender a conviver com as diferen\'e7as.
\par At\'e9 que a vida os separe
\par O que fazer quando voc\'ea ama um filho e rejeita outro, mergulhando na culpa sem encontrar explica\'e7\'f5es para seus sentimentos? A causa vai al\'e9m da simples troca de
\par energias do cotidiano e est\'e1 oculta em problemas mal-resolvidos de outras vidas que voltam em busca de solu\'e7\'e3o.
\par Com o amor n\'e3o se brinca
\par Quando ser feliz passa a ser um objetivo s\'e9rio, logo perccebemos que com o amor n\'e3o se brinca. Os g\'eameos Rodolfo e Fausto s\'e3o o oposto um do outro: enquanto Rodolfo
\par vibi em \'f3dio, Fausto se consome em ci\'fames, nessa envolvente hist\'f3ria que d\'e1 continuidade a Sentindo na pr\'f3pria pele
\par Sentindo na pr\'f3pria pele
\par No in\'edcio do s\'e9culo dezenove, Tonha \'e9 trazida da \'c1frica como escrava para servir Aline, filha de um rico fazendeiro que a toma sob sua prote\'e7\'e3o. Este romance mostra
\par que ao nos apressar em julgar as atitudes alheias segundo nossos pr\'f3prios padr\'f5es, acreditamos estar de posse da verdade. Ser\'e1?
\par Uma hist\'f3ria de ontem
\par Abandonada pelo homem que ama, Rosali luta para criar seu filho sozinha e vencer o preconceito da sociedade carioca do in\'edcio do s\'e9culo vinte. Esta \'e9 uma hist\'f3ria
\par envolvente,
\par em que as paix\'f5es se chocam em meio a falsos padr\'f5es de comportamento, e as apar\'eancias
\par ditam as normas.
\par Leonel
\par Leonel \'e9 um esp\'edrito muito querido do meu cora\'e7\'e3o. J\'e1 em nosso primeiro romance, ele me deu uma id\'e9ia do que teria sido em sua vida passada: escritor.
\par Sei que nasceu e viveu na Inglaterra, em sua \'faltima encar-na\'e7\'e3o, assim como nas anteriores. Em Segredos da Alma, ele narra um pouquinho da sua hist\'f3ria, juntamente
\par com a da mulher que foi o grande amor da sua vida. N\'e3o foi um escritor dos mais famosos. Era um bo\'eamio, mas algu\'e9m com tanta dignidade que logo despertou para os
\par verdadeiros valores do esp\'edrito, e hoje est\'e1 em condi\'e7\'f5es de transmitir mensagens de otimismo e amorosidade. Eu mesma percebi isso no contato quase di\'e1rio com ele
\par e nas comunica\'e7\'f5es que transmite, sempre de forma mental.
\par H\'e1 algum tempo, ele me permitiu conhecer sua apar\'eancia. Leonel mostrou-se para mim na casa esp\'edrita, em um momento de profundo recolhimento e reflex\'e3o. Fisicamente,
\par \'e9 um rapaz bonito. Cabelos negros, cheios, com fei\'e7\'f5es delicadas e olhos azuis. Estatura mediana, magro, veio vestido com cal\'e7a e bata
\par brancas, descal\'e7o e com ar tranq\'fcilo. Tinha um rosto t\'e3o sereno, que me contagiou. Ali, ele me disse coisas que modificaram para sempre o meu modo de encarar certos
\par aspectos da vida.
\par Sua proposta \'e9 a do crescimento e da dissemina\'e7\'e3o do amor. \'c9 para isso que trabalha, \'e9 nisso que acredita e me faz tamb\'e9m acreditar. Sem a esperan\'e7a e a certeza
\par na consolida\'e7\'e3o do amor, a vida n\'e3o tem raz\'e3o de ser. E o instrumento que ele encontrou para a realiza\'e7\'e3o desse prop\'f3sito, no momento, foi a psicografia. Assim como
\par eu, Leonel escreve por amor a si mesmo e ao pr\'f3ximo.
\par Considero Leonel mais um batalhador do invis\'edvel. Um esp\'edrito com enorme sabedoria e inigual\'e1vel capacidade de amar. Um ser em evolu\'e7\'e3o que conhece o caminho para
\par o crescimento e sabe onde est\'e1 a fonte do discernimento e da moral. Uma alma que cresce por meio do esfor\'e7o pr\'f3prio, do reconhecimento de suas imperfei\'e7\'f5es e da
\par busca incessante do dom\'ednio sobre si mesmo. E \'e9 nisso, acima de tudo, que reside o seu valor.
\par 2010 por M\'f4nica de Castro
\par Capa e Projeto Gr\'e1fico: Priscila Noberto Diagrama\'e7\'e3o: Andreza Bernardes
\par Revis\'e3o: Maria Gl\'f3ria Nolla Pires e M\'f4nica Gomes d Almeida
\par 1a edi\'e7\'e3o
\par 2a impress\'e3o - fevereiro 2011 10.000 exemplares
\par Dados Internacionais de Cataloga\'e7\'e3o na Publica\'e7\'e3o (CIP) (C\'e2mara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
\par Leonel (Esp\'edrito).
\par De frente com a verdade / ditado pelo esp\'edrito Leonel; [psicografado por] M\'f4nica de Castro.
\par S\'e3o Paulo : Centro de Estudos Vida & Consci\'eancia Editora.
\par 1. Espiritismo 2. Psicografia 3. Romance I. Castro, M\'f4nica de. II. T\'edtulo
\par \'edndices para cat\'e1logo sistem\'e1tico: 1. Romance esp\'edrita: Espiritismo 133.9
\par DE FRENTE
\par COM A
\par VERDADE
\par Publica\'e7\'e3o, distribui\'e7\'e3o, impress\'e3o e acabamento CENTRO DE ESTUDOS VIDA & CONSCI\'caNCIA EDITORA LTDA
\par Rua Agostinho Gomes, 2.312
\par Ipiranga - CEP 04206-001
\par S\'e3o Paulo - SP - Brasil
\par Fone / Fax: (11) 3577-3200 / 3577-3201
\par E-mail: grafica@vidaeconsciencia.com.br
\par Site: www.vidaeconsciencia.com.br
\par M\'f4nica de Castro
\par pelo esp\'edrito Leonel
\par Proibida a reprodu\'e7\'e3o total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletr\'f4nico, mec\'e2nico, inclusive atrav\'e9s de processos xerogr\'e1ficos, sem
\par permiss\'e3o expressa do editor (Lei n\'b0 5.988, de 14/12/73).
\par ***
\par O livro que Marcela acabara de ler jazia inerte a um canto, a p\'e1gina final aberta e manchada pela umidade de suas
\par l\'e1grimas. Era um livro de poesias, de Jo\'e3o Cabral de
\par Mello Neto, em que a personagem central questionava se n\'e3o seria melhor saltar a ponte e desistir da vida. Aquela id\'e9ia lhe pareceu rom\'e2ntica,
\par e ela pegou invejando a criatura
\par que, de forma t\'e3o corajosa, decide abandonar as decep\'e7\'f5es da vida. Por que n\'e3o podia ela
\par fazer a mesma coisa?
\par A passos vagarosos, aproximou-se do arm\'e1rio do banheiro e abriu a porta de espelho oxidado, fitando o seu interior com ang\'fastia. Remexeu
\par nas prateleiras at\'e9 que encontrou o que procurava: um vidro de comprimidos para dormir. Revirou-o na m\'e3o e fechou a porta, apertando o frasquinho contra o
\par peito. Duas grossas l\'e1grimas escorreram de seu rosto, e ela suspirou amargurada. De que adiantaria viver? Sua vida havia perdido
\par o sentido naquela noite, no exato momento em que Luciana dissera que tudo estava terminado. E ela simplesmente acha que n\'e3o podia viver sem Luciana.
\par Ainda se lembrava do dia em que abandonara a fam\'edlia e a cidade de Campos para segui-la. Luciana sempre fora uma menina esperta, travessa e extrovertida, muito segura
\par de si e de suas escolhas. Quando, finalmente, descobriu sua verdadeira
\par orienta\'e7\'e3o sexual, entregou-se a ela sem muitos questionamentos, nem dando import\'e2ncia aos coment\'e1rios
\par maldosos a seu respeito. Em
\par 1966, numa cidade pequena feito Campos de Goytacazes, foi um esc\'e2ndalo sem precedentes. Quando o fato caiu no dom\'ednio p\'fablico, a fam\'edlia se revoltou, os amigos se
\par afastaram, os professores a recriminaram, e ela acabou sendo convidada a se retirar da escola normal que freq\'fcentava.
\par Foi por essa \'e9poca que elas se conheceram. Os pais de Luciana a puseram de castigo, aos quase dezessete anos, proibindo-a de sair de casa e matriculando-a em outro
\par col\'e9gio, do outro lado da cidade, onde os rumores ainda n\'e3o haviam chegado. Apesar da revolta, Luciana concordou com as imposi\'e7\'f5es dos pais. Era menor de idade e
\par n\'e3o tinha muitas escolhas. Queria sair de Campos, mas n\'e3o pretendia fugir de casa para se tornar prostituta em uma cidade grande. Tinha ambi\'e7\'f5es maiores. Pretendia
\par terminar o curso normal para poder ingressar numa faculdade no Rio de Janeiro, onde poderia se misturar \'e0s multid\'f5es e fazer passar despercebida a sua vida sexual.
\par Quando Luciana entrou na sala de aula no meio do ano, chamou a aten\'e7\'e3o de muita gente. Era o tipo de garota cujo comportamento fugia aos padr\'f5es. Entrou calada,
\par por\'e9m, sorridente, e foi sentar-se no \'fanico lugar vago na sala, ao lado de Marcela. Como era nova na escola e n\'e3o conhecia ningu\'e9m, logo travou conversa com Marcela
\par que, por sua timidez, n\'e3o tinha muitos amigos. Da conversa, passaram aos encontros e da\'ed a um relacionamento mais \'edntimo n\'e3o demorou muito. Em breve, as duas estavam
\par namorando, sem que a fam\'edlia de Marcela sequer desconfiasse, e a de Luciana preferisse n\'e3o saber.
\par Terminado o ano letivo, j\'e1 agora com dezoito anos completos e formada professora, Luciana decidiu partir. Chamou os pais e comunicou-lhes sua decis\'e3o. Os pais demonstraram
\par al\'edvio e n\'e3o se opuseram. Era mesmo melhor para eles verem-se livres daquela filha ingrata, a ovelha negra da fam\'edlia, que s\'f3 lhes trazia problemas e manchara a
\par sua reputa\'e7\'e3o de gente honesta e direita. O pai ainda lhe deu dinheiro para as primeiras despesas, com a condi\'e7\'e3o de que ela se arranjasse no Rio de Janeiro e n\'e3o
\par retornasse mais a Campos, a n\'e3o ser que se emendasse e voltasse a ser uma mo\'e7a decente. Luciana n\'e3o questionou. Apanhou o dinheiro, arrumou a mala e partiu sem maiores
\par complica\'e7\'f5es.
\par Para Marcela, as coisas n\'e3o foram assim t\'e3o f\'e1ceis. Os pais
\par nada sabiam sobre seu romance com Luciana e n\'e3o queriam permitir que ela partisse com a amiga para uma cidade grande e cheia de tenta\'e7\'f5es como o Rio. N\'e3o lhe deram
\par nenhum apoio e chegaram mesmo a proibi-la de ir. Fr\'e1gil demais para enfrent\'e1 -los, Marcela n\'e3o insistiu, mesmo porque Luciana prometera escrever-lhe sempre.
\par As cartas de Luciana chegavam regularmente, at\'e9 que, um dia a mo\'e7a lhe escreveu dizendo que havia passado num
\par concurso p\'fablico e agora dava aulas numa escola do
\par munic\'edpio. Alugara un pequeno apartamento de quarto e sala no sub\'farbio e convidava Marcela para ir viver com ela.
\par A felicidade foi tanta que Marcela pensou que o peito fosse explodir. Mas o que poderia fazer? Contar aos pais seria loucura porque eles jamais a deixariam partir.
\par Aos dezenove anos, decidiu que o melhor seria fugir. Como n\'e3o podia contar com a ajuda financeira do pai, escreveu a Luciana, que lhe enviou dinheiro suficiente
\par para a viagem. \'c0s escondidas, Marcela comprou a passagem e, no dia e na hora marcados, subiu no \'f4nibus e foi embora, ao encontro de Luciana, talvez para nunca mais
\par retornar \'e0 terra natal.
\par Foi assim que seu relacionamento come\'e7ou. Luciana estava indo bem na profiss\'e3o e passou no vestibular para odontologia Com sua ajuda, Marcela ingressou na faculdade
\par de letras e con seguiu um emprego de auxiliar numa escola particular. Mais tarde mudaram-se para um apartamento melhor, num bairro de
\par classe m\'e9dia, e levavam a vida
\par em paz e tranq\'fcilidade, sem ningu\'e9n para se intrometer em suas vidas. Os vizinhos nada sabiam sobre seu relacionamento e, para todos os efeitos, elas eram apenas
\par estudantes vindas de outra cidade que dividiam um apartamento.
\par Essas lembran\'e7as fizeram estremecer o cora\'e7\'e3o de Marcela. Haviam sido felizes por quase oito anos, e agora Luciana lhe dizia que tudo estava terminado. O que faria
\par da vida dali para a frente? Na verdade, n\'e3o tinha mais vida. A vida de Marcela havia acabado na hora em que Luciana cruzara a porta do apartamento dizendo que n\'e3o
\par pretendia mais voltar. Ela ainda n\'e3o entendia o que havia feito de errado. "Nada", dissera Luciana, mas Marcela n\'e3o acreditava. Alguma coisa havia acontecido. Chegou
\par a pensar que Luciana havia conhecido outra pessoa, mas ela lhe assegurou que n\'e3o. Simplesmente o amor que as unira no passado havia terminado, e Luciana achava que
\par j\'e1 era
\par hora de cada uma seguir o seu pr\'f3prio caminho.
\par Mas os caminhos de Marcela estavam entrela\'e7ados aos de Luciana, ou assim ela pensava. N\'e3o podia e n\'e3o queria viver sem ela. Quando ela se foi, Marcela ficou desesperada
\par e se atirou num choro profundo, at\'e9 que apanhou um livro de poesias, que era a \'fanica coisa que a acalmava. Come\'e7ou a ler Morte e Vida Severina, at\'e9 que aquela passagem
\par lhe chamou a aten\'e7\'e3o. Assim como a personagem, ela tamb\'e9m duvidava se ainda valia a pena viver. A mis\'e9ria tamb\'e9m havia invadido a sua vida, pela car\'eancia de amor.
\par Saltar da ponte lhe parecia a \'fanica solu\'e7\'e3o, e aquelas p\'edlulas seriam sua ponte para a outra vida, para o nada, para uma exist\'eancia em que o vazio n\'e3o lhe faria
\par sentir a falta da presen\'e7a de Luciana.
\par Marcela sentou-se na cama e ficou olhando o vidro de rem\'e9dios, ainda hesitando entre tom\'e1-los ou n\'e3o. De vez em quando, olhava para o livro no ch\'e3o e para o retrato
\par de Luciana na mesinha de cabeceira, e seus olhos voltavam a derramar l\'e1grimas sentidas.
\par - Ah! Luciana, n\'e3o posso viver sem voc\'ea! Por que fez isso comigo, por qu\'ea?
\par Ao pensar na amada, Marcela sentia que n\'e3o havia outra sa\'edda para a sua dor. Ou era a morte, ou a vida vazia. Preferia morrer. Decidida, levantou-se e foi apanhar
\par \'e1gua na cozinha. Voltou para o quarto e derramou o conte\'fado do vidro de rem\'e9dio nas m\'e3os, enfiando todos os comprimidos na boca e sorvendo a \'e1gua em goles largos.
\par Repetiu esse movimento at\'e9 n\'e3o restar mais nenhum comprimido no frasco. Chorando cada vez mais, deitou-se na cama, acomodando-se sobre os travesseiros. Apanhou o
\par retrato de Luciana, agarrou-se a ele e fechou os olhos. Agora era s\'f3 esperar a chegada da morte.
\par Ao sair do apartamento que dividia com Marcela, Luciana sentia a garganta estrangular. Afinal, foram muitos anos de conviv\'eancia e, por mais que n\'e3o quisesse continuar
\par a viver com Marcela, a situa\'e7\'e3o n\'e3o lhe era indiferente.
\par Haviam sido amigas, amantes e confidentes por muito tempo. Dividiram alegrias, tristezas e dificuldades. Venceram na vida sozinhas,
\par lutando contra tudo e contra todos, firmando-se no mundo como mulheres e pessoas de bem. Aquilo n\'e3o era um nada. Ao contr\'e1rio, era algo de que se lembrar e se orgulhar
\par por toda a vida.
\par Naquele \'faltimo ano, as coisas entre as duas n\'e3o iam nada bem. Luciana sentia vontade de conhecer outras pessoas, viajar, freq\'fcentar semin\'e1rios e congressos relacionados
\par \'e0 sua profiss\'e3o. Mas Marcela, embora n\'e3o se opusesse, ficava insegura com a sua aus\'eancia, telefonando a toda hora para os hot\'e9is em que ela se hospedava, cobrando
\par as liga\'e7\'f5es n\'e3o retornadas, temendo que ela se interessasse por mais algu\'e9m. Mas o que Luciana queria era viver com liberdade. Embora gostasse de conhecer pessoas
\par interessantes, n\'e3o era sexualmente que procurava se envolver com elas. Apreciava as conversas intelectuais, principalmente aquelas relacionadas a sua profiss\'e3o.
\par Pena que Marcela fosse t\'e3o insegura e assustada. A muito custo conseguira passar num concurso tamb\'e9m, para dar aulas de por tugu\'eas numa escola cient\'edfica. Ela, Luciana,
\par deixara o magist\'e9ric para se dedicar \'e0 odontologia, para se entregar exclusivamente ao pequeno consult\'f3rio que, com muito sacrif\'edcio, conseguia montar no M\'e9ier,
\par juntamente com Ma\'edsa, uma amiga de facul dade. Afinal, fora para isso que juntara dinheiro por tantos anos para poder realizar o sonho de ter um consult\'f3rio que
\par fosse seu.
\par A inseguran\'e7a e os medos de Marcela foram, talvez, os maiores respons\'e1veis pelo fim de seu relacionamento. Luciana era muito decidida e segura, independente e confiante,
\par tudo o que Marcela n\'e3o era. Isso a decepcionava, porque Marcela era o seu oposto e n\'e3o lhe causava admira\'e7\'e3o. Nunca fazia o que Luciana esperava, encolhia-se diante
\par de tudo e de todos, sempre com medo de que descobrissem o seu relacionamento. Tal atitude foi cansando Luciana cada vez mais, at\'e9 que, saturada e sem ver perspectivas
\par de mudan\'e7a em Marcela, decidiu que o melhor mesmo, dali em diante, seria se separarem.
\par Durante muito tempo, Luciana sentiu-se respons\'e1vel por Marcela, por t\'ea-la convencido a deixar Campos e a seguran\'e7a
\par dos pais. Fora Ma\'edsa quem lhe mostrara que Marcela era dona de sua vida e capaz de decidir o seu pr\'f3prio caminho.
\par -Sei como se sente - dissera Ma\'edsa. - Marcela veio de Campos atr\'e1s de voc\'ea. Mas veja o que fez por ela. N\'e3o fosse por voc\'ea, ela n\'e3o estaria formada nem teria
\par o emprego que tem. Se \'e9 professora de letras, \'e9 gra\'e7as a voc\'ea.
\par -N\'e3o \'e9 bem assim, Ma\'edsa - contestou Luciana. - Marcela sempre foi muito inteligente.
\par -Mas n\'e3o \'e9 nada decidida. \'c9 medrosa e insegura. Foi voc\'ea quem lhe deu for\'e7as, quem a encorajou a ser algu\'e9m. Agora est\'e1 na hora de ela caminhar com as pr\'f3prias
\par pernas. N\'e3o \'e9 justo que voc\'ea se mantenha presa a quem n\'e3o ama s\'f3 por sentimento de culpa ou gratid\'e3o.
\par Ma\'edsa tanto falou, que Luciana resolveu tomar aquela decis\'e3o. Gostava muito de Marcela, mas n\'e3o podia mais viver com ela. Queria liberdade para desfrutar da independ\'eancia
\par rec\'e9m-con-quistada. E depois, n\'e3o era justo abrir m\'e3o de seus planos para satisfazer as car\'eancias de Marcela. Ela agora era uma mulher mais madura e capaz de gerir
\par a pr\'f3pria vida.
\par Por isso, tomou aquela atitude. Foi dif\'edcil terminar uma rela\'e7\'e3o de mais de sete anos, mas estava decidida. Procurou ser o mais am\'e1vel poss\'edvel, sem deixar de ser
\par sincera. Exp\'f4s a Marcela os seus sentimentos, seus anseios e afirmou que a decis\'e3o era irrevog\'e1vel. N\'e3o a amava mais, embora lhe tivesse muito afeto. Queria o melhor
\par para ela, mas queria o melhor para si tamb\'e9m. Podiam continuar sendo amigas, mas sem envolvimento emocional ou sexual.
\par Quando Marcela desatou a chorar e atirou-se em seus bra\'e7os, implorando-lhe que n\'e3o partisse, Luciana quase desistiu, mas algo dentro dela lhe dizia que seria pior.
\par Estaria alimentando uma mentira e passaria a viver insatisfeita para que Marcela n\'e3o sofresse. N\'e3o era justo nem com ela, nem com Marcela. O melhor, para ambas,
\par era a separa\'e7\'e3o, por mais que Marcela n\'e3o conseguisse enxergar dessa forma. Com firmeza, Luciana desvencilhou-se da companheira, apanhou a mala e partiu apressada,
\par esquecendo-se at\'e9 de deixar suas chaves. Sabia que Marcela n\'e3o a seguiria,
\par com medo de que os vizinhos percebessem que ela estava desesperada por ter sido abandonada por outra mulher.
\par Luciana partiu, e Marcela ficou chorando atr\'e1s da porta, at\'e9 que resolveu tomar aquela atitude extrema e desesperada.
\par Embora Luciana n\'e3o soubesse de suas inten\'e7\'f5es,
\par uma inquieta\'e7\'e3o come\'e7ou a se alastrar por seu peito, e um medo indiz\'edvel se apossou de seu cora\'e7\'e3o. E se Marcela fizesse alguma besteira? Luciana foi caminhando
\par com
\par aquela sensa\'e7\'e3o horr\'edvel, tomou um t\'e1xi e se dirigiu para o apartamento de Ma\'edsa, com quem iria morar dali em diante. Ma\'edsa n\'e3o era homossexual, mas era pessoa de
\par cabe\'e7a
\par aberta e sem preconceitos, cujos pais a enviaram cedo para estudar no Rio de Janeiro.
\par Ao chegar \'e0 casa de Ma\'edsa, a amiga estava terminando de lavar a lou\'e7a do jantar, Luciana pousou a mala na saleta e foi a seu encontro na cozinha.
\par -Sinto se n\'e3o a esperei para jantar - disse Ma\'edsa -, mas voc\'ea demorou muito e eu estava morrendo de fome. Ainda tem arroz e feij\'e3o na panela. \'c9 s\'f3 fritar
\par um
\par bife. Ah! E tem salada na geladeira.
\par -N\'e3o quero nada, Ma\'edsa, obrigada.
\par Ma\'edsa enxugou as m\'e3os no pano de prato e aproximou-se de Luciana, que se sentou \'e0 mesa.
\par -E a\'ed? Como \'e9 que foi? Correu tudo bem?
\par -Pior do que eu imaginava. Marcela n\'e3o quis aceitar e ficou desesperada. Tive que larg\'e1-la chorando e sair meio na marra.
\par -Que coisa chata.
\par -Sim, foi muito chato. E triste tamb\'e9m.
\par -Mas o importante \'e9 que voc\'ea conseguiu.
\par -Consegui... \'e9, consegui. Mas estou preocupada. Sinto que Marcela \'e9 capaz de alguma besteira.
\par -Ser\'e1?
\par -N\'e3o sei. Meu cora\'e7\'e3o est\'e1 pequenininho.
\par -Voc\'ea quer que eu d\'ea um pulo l\'e1 e veja se est\'e1 tudo bem?
\par -Voc\'ea faria isso?
\par -\'c9 claro. N\'e3o me custa nada. E depois, tamb\'e9m n\'e3o quer que Marcela fa\'e7a nenhuma besteira.
\par De posse das chaves que Luciana se esquecera de entregar Ma\'edsa chegou ao apartamento de Marcela. Tocou a campainha
\par uma, duas, tr\'eas vezes e nada de Marcela abrir. Encostou o ouvido na porta, mas n\'e3o escutou nada. Ou ela havia sa\'eddo, ou n\'e3o queria atender; ou, o que era pior, alguma
\par coisa havia acontecido. Ma\'edsa n\'e3o podia esperar mais. Apanhou a chave na bolsa e meteu-a na fechadura, abrindo-a com m\'e3os tr\'eamulas.
\par - Marcela! - chamou. - Oi! Voc\'ea est\'e1 a\'ed?
\par O apartamento estava escuro e em total sil\'eancio, Ma\'edsa foi acendendo as luzes por onde passava. Acendeu a sala, o corredor e deu uma espiada na cozinha, do outro
\par lado. Parecia deserta, e Ma\'edsa seguiu para o quarto. A porta estava fechada, e ela bateu de leve. Ningu\'e9m respondeu, e ela bateu novamente. Sil\'eancio. Experimentou
\par a ma\'e7aneta, que cedeu de imediato. Ma\'edsa empurrou a porta, que foi abrindo lentamente, e acendeu a luz. Rapidamente, passou os olhos pelo quarto e viu...
\par Num \'e1timo, compreendeu tudo. Marcela deitada na cama, o retrato de Luciana em seus bra\'e7os, o frasco de rem\'e9dio no ch\'e3o. Ma\'edsa soltou um grito de pavor e correu para
\par a outra, tentando escutar seu cora\'e7\'e3o. As batidas pareciam fracas, a respira\'e7\'e3o, quase inexistente. Mais que depressa, correu para o telefone e ligou para o pronto-socorro.
\par Deu o endere\'e7o ao atendente, explicou mais ou menos a situa\'e7\'e3o, largou o fone no gancho e arrancou o retrato de Luciana das m\'e3os de Marcela, saindo \'e0s pressas logo
\par em seguida.
\par Cora\'e7\'e3o aos pulos, Ma\'edsa desceu as escadas correndo e foi ocultar-se do outro lado da rua, sob a sombra de um poste cuja l\'e2mpada estava queimada. Pouco depois, uma
\par ambul\'e2ncia apareceu, e homens vestidos de branco entraram apressados no edif\'edcio. Mais atr\'e1s, uma patrulhinha estacionou, e dois guardas desceram. Alguns vizinhos
\par apareceram nas janelas, mas ningu\'e9m sabia de nada, ningu\'e9m a havia visto. Ma\'edsa tinha medo de qualquer coisa que se relacionasse \'e0 pol\'edcia, por causa de seu envolvimento
\par com o movimento estudantil na faculdade. Fizera parte da UNE e chegara a ser fichada na pol\'edcia, mas o pai do namorado, que era desembargador no Tribunal de Justi\'e7a,
\par conseguira solt\'e1-la. De l\'e1 para c\'e1, jurara a si mesma que n\'e3o se envolveria mais com pol\'edtica ou a ditadura e evitava qualquer contato com a pol\'edcia.
\par Instantes depois, os enfermeiros apareceram carregando uma maca, com o corpo de Marcela estendido, e Ma\'edsa apertou
\par os dentes na m\'e3o cerrada. Estaria ela morta? N\'e3o saberia
\par dizer. Esperou at\'e9 que os guardas sa\'edssem tamb\'e9m e voltou para casa.
\par -E ent\'e3o? - indagou Luciana, logo que ela abriu a porta. - Como \'e9 que ela est\'e1?
\par Ma\'edsa estava l\'edvida feito uma folha de papel. Apanhou um copo de \'e1gua e bebeu com avidez, jogando-se pesadamente no sof\'e1.
\par -Voc\'ea nem queira imaginar - come\'e7ou ela a dizer. - Quando cheguei l\'e1, encontrei Marcela deitada na cama, agarrada ao seu retrato, com um vidro de p\'edlulas para dormir
\par ca\'eddo no ch\'e3o.
\par -Meu Deus! Ela est\'e1 morta?
\par -N\'e3o sei. Quando sa\'ed, ela estava respirando.
\par -Voc\'ea a deixou l\'e1?
\par -\'c9 claro que n\'e3o. Liguei para a emerg\'eancia e me mandei. Ah! E tirei a foto das m\'e3os dela.
\par Ma\'edsa apanhou na bolsa o retrato de Luciana, estendendo-o a ela.
\par -Por que fez isso? - quis saber Luciana.
\par -Voc\'ea sabe que n\'e3o posso ter complica\'e7\'f5es com a pol\'edcia. Pensei que voc\'ea tamb\'e9m n\'e3o quisesse. Imagine o que a pol\'edcia n\'e3o vai dizer quando descobrir que
\par ela
\par tentou se matar por sua causa.
\par -Mas o que aconteceu a ela? Para onde a levaram?
\par -Para o hospital, \'e9 claro.
\par -Que hospital? Como \'e9 que vamos saber para onde ela foi?
\par -Quer um conselho, Luciana? Sei que \'e9 dif\'edcil, mas \'e9 melhor esquecer o que houve. N\'e3o h\'e1 nada que voc\'ea possa fazer.
\par Marcela est\'e1 sendo cuidada, n\'e3o \'e9 mais problema seu.
\par -Como pode ser t\'e3o fria, Ma\'edsa? E se ela morrer?
\par -N\'e3o quero que ela morra, mas n\'e3o podemos fazer mais nada. Agora, \'e9 com os m\'e9dicos.
\par -Voc\'ea est\'e1 \'e9 com medo de que a pol\'edcia venha bater aqi n\'e3o \'e9?
\par -J\'e1 disse que n\'e3o posso me envolver...
\par -Eu sei, eu sei! Mas eu tamb\'e9m n\'e3o posso ficar aqui sentada sem saber o que aconteceu a Marcela. Tenho que fazer alguma coisa.
\par -Acho melhor voc\'ea n\'e3o fazer nada. A pol\'edcia vai querer saber quem foi que telefonou.
\par -Posso dizer que fui eu.
\par -Ah! \'c9? E por que se mandou? S\'f3 foge quem \'e9 culpado. Pelo amor de Deus, Luciana, n\'e3o me crie problemas. Mais tarde, posso pedir ao Breno para ver se o pai
\par dele descobre alguma coisa.
\par Embora contrariada, Luciana acabou aquiescendo. Tinha medo de comprometer Ma\'edsa, que tudo fizera para ajudar. Em considera\'e7\'e3o a ela, esperaria at\'e9 o dia seguinte,
\par quando Breno, seu namorado, poderia obter algum tipo de informa\'e7\'e3o atrav\'e9s do pai. Se ele n\'e3o conseguisse nada, ela mesma procuraria Marcela,
\par nem que tivesse que telefonar para todos os hospitais da cidade.
\par ***
\par Quando Marcela abriu os olhos, a primeira coisa que viu foi um mo\'e7o louro, olhos azuis, todo vestido de branco, sorrindo para ela.
\par -Eu morri? - divagou ela, ainda meio zonza.
\par -Isto aqui n\'e3o \'e9 o c\'e9u, nem eu sou o seu anjo da guarda - respondeu o rapaz, endere\'e7ando-lhe um sorriso compreensivo. - Voc\'ea est\'e1 no hospital do Andara\'ed,
\par e eu sou o m\'e9dico de plant\'e3o.
\par -M\'e9dico? Hospital? Mas o qu\'ea...?
\par S\'f3 ent\'e3o Marcela se lembrou do que havia acontecido: de Luciana, do desespero, dos rem\'e9dios. Sentiu-se profundamente constrangida com a situa\'e7\'e3o. Tinha medo de que
\par descobrissem que ela havia tentado se matar por causa de outra mulher.
\par -Est\'e1 tudo bem - confortou o m\'e9dico. - Conseguimos chegar a tempo.
\par -Obrigada - falou ela timidamente.
\par Em seguida, fechou os olhos e adormeceu. Certificando-se de que ela voltara a dormir, o m\'e9dico auscultou-a ainda uma vez e foi cuidar de outros doentes. N\'e3o conseguiu,
\par contudo, desviar os pensamentos daquela mo\'e7a. Havia algo nela que lhe chamara a aten\'e7\'e3o. O que levaria uma jovem t\'e3o linda \'e0quele ato extremo? Na certa, fora abandonada
\par pelo namorado e n\'e3o conseguira suportar a separa\'e7\'e3o. E onde estariam seus pais? Por que ningu\'e9m aparecera para cuidar dela?
\par Mais tarde, quando ele retornou \'e0 enfermaria, Marcela j\'e1
\par estava acordada, tomando a sopa que a enfermeira deixara en sua cabeceira.
\par -Ol\'e1 - cumprimentou ele gentilmente. - Que bom que j\'e1 est\'e1 melhor!
\par Obrigada... - murmurou ela, enfiando a colher de sopa na boca para n\'e3o precisar dizer mais nada.
\par -Voc\'ea se chama Marcela, n\'e3o \'e9?
\par -Como \'e9 que soube?
\par -A pol\'edcia me informou.
\par -Pol\'edcia? Mas eu n\'e3o fiz nada de errado!
\par -Bem, voc\'ea tentou se matar, e isso \'e9 caso de pol\'edcia. Sabe como \'e9, eles t\'eam que saber se foi tentativa de suic\'eddio mesmo
\par -Isso foi... uma loucura. Eu estava fora de mim.
\par -N\'e3o precisa falar nada. Sei o quanto deve ser doloroso para voc\'ea. Procure n\'e3o se lembrar de coisas tristes agora.
\par -Obrigada, doutor...
\par -Fl\'e1vio. Mas n\'e3o precisa me chamar de doutor, n\'e3o.
\par Marcela achou encantador o sorriso de Fl\'e1vio e abaixou os
\par olhos, envergonhada. Nunca, em toda a sua vida, tivera tal pensamento com rela\'e7\'e3o a um homem.
\par -Quando vou ter alta?
\par -Amanh\'e3. Voc\'ea est\'e1 muito bem, e n\'e3o vejo motivos para mant\'ea-la aqui - notando o seu ar de tristeza, Fl\'e1vio considerou - O que h\'e1? N\'e3o est\'e1 contente por poder
\par sair?
\par -Estou... Mas \'e9 que...
\par A frase morreu em seus l\'e1bios. Em lugar de palavras, o que saiu de sua boca foram solu\'e7os angustiados e sentidos, e ela afundou o rosto no travesseiro, chorando
\par copiosamente.
\par Penalizado, Fl\'e1vio alisou os seus cabelos, sentindo estranha como\'e7\'e3o a domin\'e1-lo e retrucou com ternura:
\par -Chorar faz bem \'e0 alma e ao cora\'e7\'e3o. Deixe que as l\'e1grimas lavem o seu peito de toda a dor.
\par Ouvindo t\'e3o ternas palavras, Marcela redobrou o pranto, aga rando a m\'e3o que a acariciava. S\'f3 depois de muitos minutos foi que ela parou e, durante todo aquele tempo,
\par Fl\'e1vio permitiu que ela segurasse a sua m\'e3o, apertando a dela como a lhe transmitir for\'e7a. Quando ela finalmente se acalmou, enxugou os olhos e evitando encar\'e1-lo,
\par disse em tom de desculpas:
\par -Sinto muito, doutor Fl\'e1vio... \'c9 que \'e9 tudo t\'e3o dif\'edcil...!
\par Eu sei, compreendo. Voc\'ea passou por momentos realmente dif\'edceis. Esteve entre a vida e a morte e, embora eu n\'e3o saiba nem queira saber que motivos a levaram a t\'e3o
\par desesperado ato, sei que deve ter sido algo tamb\'e9m muito dif\'edcil. Mas voc\'ea est\'e1 viva, e \'e9 isso o que importa.
\par -Estou sozinha no mundo. Nada mais me resta...
\par -N\'e3o diga isso. Voc\'ea \'e9 jovem, tem a vida toda pela frente.
\par -Sinto que minha vida acabou...
\par Fl\'e1vio estava certo de que Marcela havia passado por grave decep\'e7\'e3o amorosa, mas n\'e3o queria constrang\'ea-la nem reavivar lembran\'e7as dolorosas.
\par -Sua vida mal come\'e7ou - tornou ele, animador. - Pessoas e coisas v\'eam e v\'e3o de nossas vidas, deixam marcas em nossos cora\'e7\'f5es, mas n\'e3o t\'eam o poder de levar
\par nossa alegria com elas. Voc\'ea s\'f3 precisa se recuperar e descobrir quantas coisas boas pode fazer por voc\'ea.
\par -N\'e3o posso fazer nada por mim.
\par -N\'e3o \'e9 verdade. Pode dar o melhor de si. E a sua contribui\'e7\'e3o para o mundo?
\par -N\'e3o tenho nada para dar ao mundo.
\par -N\'e3o acredito. O que voc\'ea faz?
\par -Sou professora de literatura.
\par -\'c9 mesmo? Viu s\'f3 como voc\'ea \'e9 \'fatil e importante? Quantos alunos dependem de voc\'ea, neste momento, para se educar e crescer?
\par -H\'e1 muitos professores de literatura no mundo.
\par -Mas, se voc\'ea sumir, o mundo vai ter um a menos. N\'e3o ser\'e1 uma pena?
\par Marcela n\'e3o p\'f4de deixar de sorrir. O doutor Fl\'e1vio estava se esmerando para anim\'e1-la, e ela ficava contradizendo tudo o que ele dizia, com um pessimismo que j\'e1 come\'e7ava
\par a ser desagrad\'e1vel.
\par -O senhor tem raz\'e3o, doutor. O que fiz foi uma tolice, mas eu estava desesperada.
\par -Desespero tamb\'e9m vem e vai. Se tivermos paci\'eancia e confian\'e7a, ele desaparece como veio.
\par -O senhor \'e9 sempre assim t\'e3o otimista?
\par -Muito mais quando deixam de me chamar de senhor - ela riu com mais desenvoltura, e ele sentiu que estava preso \'e0quele
\par sorriso ing\'eanuo e at\'e9 mesmo infantil. - Sabia que tem um lindo sorriso? - prosseguiu ele, fazendo-a corar.
\par -Est\'e1 sendo gentil - retrucou ela, ao mesmo tempo feliz e embara\'e7ada com aquele elogio.
\par -Quantos anos voc\'ea tem?
\par -Vinte e seis, quase vinte e sete.
\par -Tudo isso? Parece mais jovem.
\par -Obrigada. E voc\'ea, quantos anos tem?
\par -Vinte e nove - e, baixando a voz, acrescentou em tom jovial: - E ainda estou solteiro.
\par Ela tornou a rir e, quando deu por si, estava em animada conversa com aquele m\'e9dico desconhecido. Ficaram conversando amenidades por quase uma hora, at\'e9 que a enfermeira
\par veio cham\'e1-lo para atender outro paciente.
\par -Vir\'e1 me ver antes de eu ir embora? - indagou ela, s\'f3 ent\'e3o se dando conta do quanto a companhia dele lhe fazia bem.
\par -\'c9 claro! Ou pensa que vou deix\'e1-la me abandonar assim?
\par Ele sorriu e lhe atirou um beijo com as m\'e3os, que ela fingiu
\par apanhar no ar. Por uns momentos, desligara-se da realidade, presa ao encantamento daquele m\'e9dico. O que seria aquilo? Por que sentira tanta simpatia por um estranho?
\par Marcela nunca tivera um namorado. A \'fanica pessoa com quem se relacionara fora Luciana. O que estaria acontecendo agora que a fazia interessar-se por um homem? Ser\'e1
\par que estaria mesmo interessada? Ou se deixara levar pela gentileza com que ele a tratava em um momento t\'e3o dif\'edcil? De qualquer forma, era muito bom sentir-se admirada
\par e desejada, ainda mais por um rapaz bem-apessoado como o doutor Fl\'e1vio.
\par Enquanto isso, Luciana se retorcia de preocupa\'e7\'e3o, colada a Breno, namorado de Ma\'edsa, que tentava descobrir o paradeiro de Marcela. Alguns telefonemas depois, finalmente
\par descobriu-a no hospital do Andara\'ed, onde dera entrada dois dias antes e fora imediatamente socorrida, submetendo-se a uma lavagem estomacal para retirada dos muitos
\par rem\'e9dios para dormir que havia ingerido. Naquele momento, encontrava-se bem e fora de perigo.
\par -Gra\'e7as a Deus! - exclamou Luciana, bastante aliviada. - Por instantes, temi pelo pior.
\par -Viu? - tornou Ma\'edsa. - Ela est\'e1 bem. Est\'e1 satisfeita?
\par -Gostaria de visit\'e1-la.
\par -N\'e3o sei se seria boa id\'e9ia - rebateu Breno. - A pol\'edcia pode fazer perguntas.
\par -Mas que medo da pol\'edcia, voc\'eas dois, hein?
\par -Sabe que Ma\'edsa n\'e3o pode envolver-se.
\par -Sei, sei. Mas e eu? N\'e3o tenho nada com isso.
\par -Por favor, Luciana - pediu Ma\'edsa -, n\'e3o v\'e1. Ela est\'e1 bem. Voc\'ea pode visit\'e1-la depois.
\par -Mas ela vai achar que eu n\'e3o estou me importando!
\par -Ou pode pensar que voc\'ea se arrependeu e quer voltar.
\par -Ora, Ma\'edsa, francamente, isso n\'e3o \'e9 hora de pensar nisso.
\par -Mande-lhe algumas flores - sugeriu Breno.
\par -Isso tamb\'e9m pode n\'e3o ser uma boa id\'e9ia - contrap\'f4s Ma\'edsa. - A pol\'edcia pode querer saber quem foi que mandou as flores.
\par -Querem saber de uma coisa, voc\'eas dois? - redarguiu Luciana, irritada. - Vou mandar-lhe flores, sim. E, se a pol\'edcia fizer perguntas, azar. Direi que fui
\par eu que chamei a emerg\'eancia e fugi apavorada.
\par Sem dar aten\'e7\'e3o aos protestos de Ma\'edsa, Luciana comprou um lindo buqu\'ea de rosas amarelas e o enviou a Marcela, no hospital. Queria ir pessoalmente, mas ainda n\'e3o
\par estava certa se seria mesmo uma boa id\'e9ia. Ma\'edsa dissera tantas coisas sobre pol\'edcia, que ela, no fundo, tinha medo de comprometer a amiga. Mas flores, ela pensava,
\par n\'e3o fariam nenhum mal.
\par Para a pol\'edcia, o caso estava encerrado antes mesmo de come\'e7ar. Assim que viram a mo\'e7a estirada na cama, com o vidro de rem\'e9dios ao lado, os policiais conclu\'edram
\par que se tratava mesmo de uma tentativa de suic\'eddio. N\'e3o havia d\'favidas. Os vizinhos disseram que ela morava com uma amiga, e eles deduziram que a tal amiga havia-lhe
\par roubado o namorado, o que a levara ao gesto extremo. N\'e3o havia mais o que questionar.
\par Ao despertar na manh\'e3 seguinte, Marcela sentiu o perfume suave das flores invadindo suas narinas e surpreendeu-se vendo que elas haviam sido enviadas por Luciana.
\par -Enfermeira! - chamou ela, com o cart\'e3ozinho nas m\'e3os - Quem trouxe estas flores?
\par -O rapazinho da floricultura. N\'e3o s\'e3o lindas?
\par -E a pessoa que as enviou? N\'e3o veio tamb\'e9m?
\par -Ningu\'e9m veio visit\'e1-la, sinto muito.
\par -N\'e3o tem import\'e2ncia.
\par -N\'e3o fique triste. Voc\'ea vai sair hoje. O doutor Fl\'e1vio, em pessoa, disse que vir\'e1 para assinar a alta. Ele n\'e3o \'e9 bonit\'e3o? - Marcela assentiu, sem gra\'e7a.
\par - E parece que gostou de voc\'ea.
\par -Acho que n\'e3o \'e9 bem assim. Ele estava apenas sendo educado.
\par -Muito educado! Ora, vamos, menina, n\'e3o ligue para esse antigo namorado. Foi por causa de um rapaz, n\'e3o foi? Que voc\'ea tentou se matar? Esque\'e7a-o. Ele n\'e3o
\par a merece.
\par Marcela sorriu meio sem jeito e ocultou o cart\'e3o entre as m\'e3os. N\'e3o queria que ningu\'e9m soubesse que ela tentara se matar por causa de uma mulher.
\par -Vou esquecer - afirmou, achando que seria melhor que todos pensassem que a tentativa de suic\'eddio fora devido a um namorado.
\par -Ah! Veja, o doutor Fl\'e1vio j\'e1 chegou. Adeus, menina, e boa sorte.
\par -Bom dia - cumprimentou ele, tomando-lhe o pulso nas m\'e3os. - Sente-se bem?
\par -Sim.
\par -\'d3timo - em seguida, auscultou-a novamente, examinou seus olhos e apertou sua barriga. - Sente alguma dor?
\par -N\'e3o.
\par -Muito bem. Voc\'ea j\'e1 pode ir. Tem algu\'e9m para busc\'e1-la?
\par Instintivamente, Marcela olhou para as flores ao lado da cama
\par e respondeu com tristeza:
\par -N\'e3o.
\par Foi ent\'e3o que Fl\'e1vio notou as rosas amarelas e retrucou com um certo desapontamento:
\par -Vejo que voc\'ea tem um admirador.
\par -N\'e3o. S\'e3o... de uma amiga.
\par -Uma amiga? Tem certeza?
\par -Tenho.
\par Ela exibiu o envelope onde Luciana depositara o cart\'e3ozinho e, ao ler o nome da mo\'e7a, Fl\'e1vio suspirou mais animado.
\par -Menos mal. Pensei que mais algu\'e9m estivesse interessado em roubar o seu cora\'e7\'e3o.
\par -Mais algu\'e9m?
\par -N\'e3o diga nada, mas eu sou o outro algu\'e9m. - Ela corou violentamente e n\'e3o respondeu. - Desde ontem, n\'e3o consigo parar de pensar em voc\'ea. Ser\'e1 que n\'e3o podemos
\par nos encontrar fora daqui?
\par -Nos encontrarmos fora daqui?
\par -Sei que o momento n\'e3o \'e9 o mais apropriado, mas gostaria de, ao menos, ser seu amigo.
\par -Meu amigo?
\par -Ser\'e1 que voc\'ea vai ficar repetindo tudo o que eu digo? Por que n\'e3o me d\'e1 uma resposta direta? Se voc\'ea n\'e3o quiser se encontrar comigo, tudo bem, eu vou embora
\par e n\'f3s nunca mais nos veremos. Mas, se voc\'ea me der uma chance, prometo que n\'e3o vai se arrepender.
\par Pelo jeito como falava, Fl\'e1vio parecia muito interessado nela. E, pelo visto, nada sabia sobre seu envolvimento com Luciana. Marcela ficou se perguntando o que todos
\par teriam pensado ao encontr\'e1-la inconsciente, agarrada ao retrato da outra, mas n\'e3o teve coragem de perguntar. Talvez Fl\'e1vio n\'e3o soubesse desse detalhe, e n\'e3o seria
\par ela quem iria lhe dizer. Ainda mais porque se sentia imensamente atra\'edda por ele. N\'e3o compreendia de onde vinha tanta atra\'e7\'e3o, mas, naquele momento, n\'e3o tencionava
\par questionar. Podia ser que Fl\'e1vio representasse apenas um amigo, algu\'e9m em quem pudesse se apoiar naquele momento t\'e3o dif\'edcil, e depois ela se desinteressasse dele
\par com a mesma velocidade com que se interessara. Fosse como fosse, precisava ocultar-lhe a verdade a qualquer custo.
\par -Gostaria muito de encontr\'e1-lo fora daqui - sussurrou ela, finalmente.
\par -S\'e9rio?
\par -S\'e9rio. Voc\'ea me parece uma boa pessoa, e estou precisando de um amigo.
\par -Excelente! Onde \'e9 que voc\'ea mora?
\par -D\'ea-me um peda\'e7o de papel, que escreverei meu telefone e o endere\'e7o.
\par Ele catou no bolso um pedacinho de papel, uma caneta e estendeu-os a ela, que os apanhou e anotou tudo. Devolveu-os, e ele a fitou com interesse.
\par -Quando poderei v\'ea-la?
\par -Quando quiser.
\par -Saio do plant\'e3o \'e0s sete. Posso passar na sua casa \'e0s oito? Apanh\'e1-la para jantar?
\par -\'c0s oito horas est\'e1 bom. Estarei esperando - Marcela abaixou novamente os olhos, engoliu em seco e prosseguiu constrangida: - Fl\'e1vio... N\'e3o sei como lhe
\par dizer isso, mas... estou sem dinheiro. Quando me trouxeram para c\'e1, vim sem a carteira. Ser\'e1 que voc\'ea podia me emprestar dinheiro para o t\'e1xi? Pago-lhe quando voc\'ea
\par chegar l\'e1 em casa.
\par Ele retirou algumas notas do bolso e depositou-as na m\'e3o de Marcela, acrescentando com carinho:
\par -V\'e1 com calma, menina. N\'e3o deixe que nada mais lhe aconte\'e7a. De hoje em diante, voc\'ea tem um amigo que se interessa por voc\'ea.
\par Marcela podia sentir a sinceridade na sua voz, e uma calma inigual\'e1vel foi tomando conta dela. Ele teve que sair para atender outros doentes, e ela se levantou,
\par indo aprontar-se para sair. Meteu o cart\'e3ozinho de Luciana no bolso, apanhou as flores do vaso e se foi.
\par ***
\par O apartamento parecia vazio sem os vest\'edgios de Luciana. O arm\'e1rio sem roupas, um buraco na estante onde ficavam seus livros. Marcela estava sozinha, e uma profunda
\par tristeza a foi dominando por inteiro. De repente, a lembran\'e7a de Luciana lhe trouxe l\'e1grimas aos olhos, e ela se atirou na cama, chorando sem parar. Ficou deitada
\par por quase uma hora, acariciando o lugar que ainda guardava o cheiro da outra.
\par Tudo parecia um sonho; ou melhor, um pesadelo. As flores que Marcela colocara no vaso, em cima da escrivaninha, davam-lhe a certeza de que Luciana se fora de vez.
\par Ela era sempre muito segura e n\'e3o costumava voltar atr\'e1s em suas decis\'f5es. Nunca se arrependia de nada, porque pesava muito os pr\'f3s e os contras antes de agir.
\par Luciana n\'e3o tinha medo de viver. Fazia o que bem entendia e enfrentava as dificuldades com coragem e persist\'eancia, sem depender de ningu\'e9m. N\'e3o era feito ela, medrosa
\par e insegura, dependente do amor e da presen\'e7a de mais algu\'e9m. Desde que sa\'edra de Campos, nunca ficara sozinha. As duas, at\'e9 ent\'e3o, estavam sempre juntas, sa\'edam juntas,
\par viajavam juntas. Luciana n\'e3o se importava com o que as pessoas pensassem dela e, embora n\'e3o assumisse publicamente que vivia com outra mulher, n\'e3o se escondia do
\par mundo nem inventava mentiras para manter as apar\'eancias.
\par Na faculdade, Marcela sempre se esquivara das outras mo\'e7as, com medo de que lhe fizessem perguntas e acabassem descobrindo sua rela\'e7\'e3o com Luciana. Para todos os
\par efeitos, elas eram apenas duas amigas que vieram de Campos e dividiam agora um apartamento. Se algu\'e9m desconfiou, n\'e3o disse nada, e Marcela tamb\'e9m n\'e3o pediu a opini\'e3o
\par de ningu\'e9m. Os rapazes, no come\'e7o, ainda tentaram umas investidas, mas ela era t\'e3o fria, t\'e3o distante e fechada, que eles logo desistiram.
\par S\'f3 vivia para Luciana. Por que ter outros amigos se Luciana lhe bastava? Embora a companheira lhe dissesse que era bom ter novas amizades, Marcela n\'e3o conseguia.
\par O medo e a inseguran\'e7a a afastavam de todos, e ela pensava que, enquanto tivesse Luciana, n\'e3o precisaria de mais ningu\'e9m. Achava que a outra tamb\'e9m agiria assim
\par e ficou um tanto decepcionada quando ela voltou para casa, um dia, em companhia de Ma\'edsa. Marcela ficou ofendida e magoada, com ci\'fames e insegura. Mas Ma\'edsa mostrou-se
\par desligada de tudo aquilo e apareceu depois com o namorado, deixando claro que n\'e3o estava interessada em Luciana. O ci\'fame foi passando, at\'e9 que ela teve certeza de
\par que as duas eram apenas amigas, e Luciana havia se aproximado de Ma\'edsa porque ela era uma mo\'e7a livre, que tamb\'e9m sa\'edra de casa, no interior, para vir estudar no
\par Rio, e n\'e3o se importava se elas eram l\'e9sbicas ou n\'e3o. Bem diferente das outras garotas, que viviam com os pais e estavam acostumadas a fazer tudo certinho.
\par Foram tempos maravilhosos ao lado de Luciana, mas aquilo agora havia acabado. Por causa dela, Marcela quase cometera uma loucura. Nem sabia por que n\'e3o tinha morrido.
\par Algu\'e9m a socorrera, mas ela n\'e3o sabia quem fora. E o retrato de Luciana, ao qual se agarrara antes de perder a consci\'eancia? Onde teria ido parar? Procurou-o rapidamente,
\par mas n\'e3o o encontrou por ali. Talvez Luciana tivesse voltado e a encontrado desmaiada, chamando ent\'e3o os m\'e9dicos e levando consigo o retrato. S\'f3 podia ser isso.
\par A campainha do telefone soou estridente, e Marcela levou um susto, correndo para ele com ansiedade. Talvez fosse Luciana. S\'f3 podia ser Luciana!
\par -Al\'f4? - atendeu com excita\'e7\'e3o.
\par -Marcela, \'e9 voc\'ea?
\par A voz de homem a assustou, e ela respondeu decepcionada:
\par -Eu mesma. Quem \'e9?
\par -Fl\'e1vio. J\'e1 se esqueceu de mim?
\par Ela se lembrou do m\'e9dico novamente, e seu cora\'e7\'e3o se desanuviou. De repente, a imagem de Luciana desapareceu de seus pensamentos, e uma alegria incontida tomou conta
\par de sua alma.
\par -Doutor Fl\'e1vio! \'c9 claro que n\'e3o me esqueci do senhor.
\par -Pensei que j\'e1 tiv\'e9ssemos superado a fase das formalidades.
\par Ela riu gostosamente e retrucou de bom humor:
\par -Desculpe-me, Fl\'e1vio. \'c9 que minha m\'e3e me ensinou a ser uma mo\'e7a educada.
\par -Voc\'ea \'e9. Educada e maravilhosa. - Ela n\'e3o respondeu, intimamente sorrindo ante aquelas palavras. - Ei! Voc\'ea ainda est\'e1 a\'ed?
\par -Estou aqui.
\par -Que bom. Pensei que j\'e1 tivesse me abandonado antes mesmo de come\'e7ar a sair comigo.
\par -\'c9 claro que n\'e3o.
\par -\'d3timo. E agora deixemos as brincadeiras de lado. Liguei para saber como voc\'ea est\'e1 passando.
\par -Estou bem.
\par -Nenhuma depress\'e3o? Sabe como \'e9, a volta para casa costuma trazer lembran\'e7as que reavivam o desejo de morrer.
\par Ele foi t\'e3o direto que ela se chocou e respondeu com hesita\'e7\'e3o:
\par -N\'e3o quero morrer... N\'e3o mais.
\par -Fico feliz. Ent\'e3o, descanse por hoje, ou melhor, at\'e9 a noite, e arrume-se bem bonita. Vou lev\'e1-la a um lugar especial.
\par -Que lugar?
\par -Voc\'ea vai ver. Um beijo e at\'e9 mais.
\par -Outro...
\par Fl\'e1vio desligou o telefone, e ela pousou o fone no gancho. O que seria aquilo que estava sentindo? Nunca se interessara por nenhuma outra pessoa al\'e9m de Luciana,
\par mas agora se pegava pensando naquele m\'e9dico. Era bonito, charmoso e muito espirituoso. E estava interessado nela. Ser\'e1 que ela estaria se interessando por ele tamb\'e9m?
\par Ou estaria apenas sensibilizada com tanta aten\'e7\'e3o? Pensando nisso, Marcela desejou que aquele sentimento que come\'e7ava a brotar pelo m\'e9dico n\'e3o se extinguisse com
\par o passar do tempo. Estava sendo muito bom sentir-se desejada por ele, e mais, desej\'e1-lo tamb\'e9m. De repente, ficou imaginando como seria fazer amor com um homem,
\par e seu corpo encheu-se de desejo. Que novas sensa\'e7\'f5es seriam aquelas que estava experimentando?
\par Subitamente, percebeu que queria estar bonita para quando ele chegasse. Deixando de lado a saudade de Luciana, abriu a porta do arm\'e1rio e come\'e7ou a revirar suas
\par roupas. N\'e3o tinha nada deslumbrante. N\'e3o costumava ser feminina, vestia-se com
\par simplicidade, geralmente de cal\'e7a jeans e camiseta de malha. Mesmo quando ia trabalhar, colocava uma saia reta e sem gra\'e7a, sapatos rasteiros e quase n\'e3o usava maquiagem.
\par S\'f3 um pouco de blush e batom bem clarinho.
\par Naquela noite, contudo, usaria algo especial. Queria impressionar Fl\'e1vio. Antes, queria impressionar a si mesma. Uma vontade de se fazer bonita para ele a foi dominando,
\par e ela amaldi\'e7oou o arm\'e1rio. Precisava sair e comprar roupas novas. Come\'e7aria uma nova vida dali em diante, e a mudan\'e7a no guarda-roupa seria a primeira que empreenderia.
\par Tomou um banho r\'e1pido, vestiu-se apressada e foi \'e0s compras.
\par Ainda bem que era per\'edodo de f\'e9rias escolares, e ela podia fazer de seu tempo o que bem entendesse. Passou a manh\'e3 toda fazendo compras, o que a ajudou a n\'e3o pensar
\par em Luciana. Comprou coisas bonitas, que nunca havia usado antes, e voltou para casa satisfeita, carregada de embrulhos. Fez uma arruma\'e7\'e3o no arm\'e1rio, separando as
\par pe\'e7as que j\'e1 n\'e3o queria mais, e usou o lado de Luciana para guardar as roupas e os sapatos novos.
\par A tarde passou, e ela nem percebeu. Ao terminar a arruma\'e7\'e3o, estava cansada e com fome, mas valera a pena. Juntara duas sacolas de roupas usadas, que entregaria
\par num asilo, e o arm\'e1rio estava limpo e arrumado, cheio de roupas bonitas penduradas e sapatos brilhantes enfeitando a sapateira. Terminara tudo bem a tempo. O rel\'f3gio
\par da sala batera seis horas. Era hora de come\'e7ar a se aprontar.
\par Marcela tomou um banho demorado, lavou os cabelos e escolheu o vestido branco que comprara especialmente para aquela noite. Cal\'e7ou sand\'e1lias de salto alto, que n\'e3o
\par estava acostumada a usar, e passou a maquiagem desajeitadamente. Atrapalhou-se um pouco com a sombra e o l\'e1pis de olho, mas insistiu at\'e9 conseguir um bom resultado.
\par O cabelo precisava de um corte, mas n\'e3o estava ruim, e ela o penteou vigorosamente, deixando-o solto por cima dos ombros. As unhas estavam pintadas com um esmalte
\par quase branco, e ela decidiu que, da pr\'f3xima vez, usaria um tom mais vivo, como um rosa ou um vermelho. Ao final, olhou-se no espelho, deu uma, duas voltas, apreciando
\par o efeito que a roda do vestido fazia, e sorriu satisfeita, muito satisfeita. Nunca se achara t\'e3o bonita como naquele dia.
\par \'c0s oito horas em ponto, Fl\'e1vio tocou a campainha, e seu cora\'e7\'e3o deu um salto. Ser\'e1 que ele a acharia bonita? Queria, desesperadamente, que ele a achasse bonita.
\par E Luciana? Se a visse daquele jeito, ser\'e1 que aprovaria? N\'e3o, n\'e3o queria pensar em Luciana. Balan\'e7ou a cabe\'e7a de um lado a outro, apanhou a bolsa nova e saiu cambaleante,
\par tentando se equilibrar no imenso salto a que n\'e3o estava acostumada.
\par -Voc\'ea est\'e1 linda - elogiou Fl\'e1vio assim que ela apareceu, beijando-a de leve no rosto. - Realmente deslumbrante.
\par -Obrigada - falou ela, abaixando os olhos e corando levemente.
\par Foram a um restaurante elegante, onde Fl\'e1vio j\'e1 era conhecido e havia reservado uma mesa. Escolheram os pratos, e ele pediu champanha. Esperou at\'e9 que o gar\'e7om os
\par servisse e levantou a ta\'e7a, dizendo com anima\'e7\'e3o:
\par -Ao futuro e \'e0 vida - e, olhando fixamente em seus olhos, concluiu: - E a n\'f3s dois.
\par Ela apenas sorriu e brindou com ele. Estava feliz e satisfeita, nem pensava em Luciana.
\par -Como foi o seu dia? - indagou ele, para puxar assunto.
\par -Foi bom. Fiz umas compras e arrumei o arm\'e1rio.
\par -Muito bem! Nada como jogar fora o velho para come\'e7ar vida nova.
\par -\'c9 verdade.
\par Fl\'e1vio evitava tocar no assunto do quase suic\'eddio, e ela tamb\'e9m n\'e3o queria falar sobre aquilo. N\'e3o havia pensado em nada para lhe dizer. S\'f3 o que sabia era que n\'e3o
\par poderia lhe contar a verdade. O que ele pensaria se descobrisse que ela fora amante de outra mulher e tentara se matar por causa dela? E, mais ainda, que estava
\par apaixonada por ela e queria muito que ela voltasse? Ah! Se Luciana voltasse, largaria tudo e correria para ela. Nem pensaria mais em Fl\'e1vio.
\par -Voc\'ea mora sozinha? - perguntou ele, de forma casual.
\par -Moro.
\par -E os seus pais, onde est\'e3o?
\par -Em Campos, onde nasci.
\par -Tem contato com eles?
\par -N\'e3o. Faz tempo que n\'e3o os vejo.
\par -N\'e3o sente falta deles?
\par Fazia muito tempo que Marcela n\'e3o pensava nos pais. Depois que fugira de Campos, telefonara para os tranq\'fcilizar, mas o pai a recebera mal, dizendo que n\'e3o tinha
\par mais filha. Ficara sabendo do seu envolvimento com Luciana e se chocara. N\'e3o queria v\'ea-la nunca mais. Dois anos depois, ligou para eles novamente, no Natal, e descobriu
\par que agora tinha um irm\'e3ozinho, e o pai fora bem claro ao afirmar que n\'e3o precisava mais dela. Tinha um filho que lhe traria orgulho e alegrias, e jamais o decepcionaria
\par como Marcela o fizera.
\par Ela ficou contente com o nascimento do beb\'ea e demonstrou o desejo de conhec\'ea-lo, mas o pai foi categ\'f3rico: n\'e3o queria que ela se envolvesse com o pequeno e n\'e3o pretendia
\par deixar que ele soubesse que, um dia, tivera uma irm\'e3. Marcela ainda tentou apelar para a m\'e3e, mas ela, encantada com o ca\'e7ula tempor\'e3o, endossou as palavras do pai
\par e pediu para que ela nunca mais os procurasse.
\par Fl\'e1vio, contudo, jamais poderia conhecer essa parte da sua vida, e ela respondeu com receio:
\par -Sa\'ed de Campos h\'e1 oito anos, e acabamos perdendo contato. Hoje somos quase estranhos.
\par -Mas por qu\'ea? Voc\'eas brigaram?
\par -N\'e3o \'e9 que tenhamos brigado. Fugi de casa aos dezoito anos. Queria estudar, viver numa cidade grande, e meus pais n\'e3o concordavam. Sabe como \'e9: gente de
\par cidade pequena, eles tinham medo de que eu me perdesse aqui no Rio.
\par -Entendo. Mas por que voc\'ea n\'e3o os procurou depois de formada? J\'e1 maior de idade, dona do seu nariz, com emprego.
\par -No come\'e7o, foi dif\'edcil. Mas eu consegui me formar e passar num concurso.
\par -Seus pais n\'e3o sentem orgulho de voc\'ea?
\par -Devem sentir... N\'e3o sei bem. Eles n\'e3o aprovam mulheres que trabalham fora.
\par -Voc\'ea \'e9 uma mo\'e7a muito corajosa e determinada. Poucas, no seu lugar, teriam ido t\'e3o longe. A maioria vem para c\'e1 e, ante as dificuldades, acaba se perdendo
\par e caindo na vida, ou ent\'e3o
\par consegue um emprego de dom\'e9stica ou balconista. N\'e3o que eu tenha algum tipo de preconceito contra essas profiss\'f5es, em absoluto. Acho que todas s\'e3o necess\'e1rias e
\par valorizo muito quem trabalha assim. Mas esse n\'e3o \'e9 o sonho de quem se muda para a cidade grande, n\'e3o \'e9 mesmo?
\par -Acho que n\'e3o.
\par Marcela respondeu com temor, embora ele nada percebesse. Ent\'e3o ele a achava corajosa e determinada? Mas como, se ela era insegura e amedrontada? Era o que parecia,
\par porque ele n\'e3o a conhecia, n\'e3o conhecia Luciana, n\'e3o sabia que fora ela a respons\'e1vel por todo o sucesso na sua vida. E agora, sem ela, sentia-se perdida e abandonada,
\par sem ningu\'e9m para cuidar dela. Talvez Fl\'e1vio cuidasse dela. Era um homem bom e, ele sim, determinado e muito seguro de si mesmo.
\par -Voc\'ea est\'e1 me ouvindo? - tornou ele, percebendo que ela n\'e3o lhe prestava mais aten\'e7\'e3o. - A comida chegou.
\par -O qu\'ea? - ela se assustou, vendo o prato que o gar\'e7om colocara diante dela. - Oh! Desculpe-me, Fl\'e1vio, de repente, me desliguei.
\par -Percebi. S\'e3o lembran\'e7as ou fantasmas?
\par -Acho que um pouco dos dois. Estava pensando na minha fam\'edlia.
\par -S\'f3 nisso?
\par -Sim. Por qu\'ea?
\par -Por nada.
\par \'c9 claro que Fl\'e1vio achava que ela pensava no suposto ex-namorado, causa de todo o seu infort\'fanio, mas ela nada fez para diluir essa impress\'e3o. Evitaria ao m\'e1ximo
\par tocar naquele assunto com Fl\'e1vio ou com qualquer outra pessoa. Ele, por sua vez, julgando que ela ainda n\'e3o estava pronta para falar, e n\'e3o querendo invadir a sua
\par privacidade, silenciou e n\'e3o fez mais perguntas a respeito.
\par -O que fazem seus pais? - retrucou ele, como se de nada desconfiasse.
\par -Minha m\'e3e \'e9 dona de casa, e meu pai tem uma padaria.
\par -Voc\'ea tem irm\'e3os?
\par -Tenho. Deve estar com uns seis anos agora.
\par -Deve ser bom ter um irm\'e3o pequeno.
\par -Voc\'ea \'e9 filho \'fanico?
\par -Sou.
\par -Na verdade, \'e9 como se eu tamb\'e9m fosse. Quando ele nasceu, eu j\'e1 tinha ido embora de Campos. Fui criada sozinha.
\par -Voc\'ea n\'e3o o conhece?
\par -N\'e3o.
\par Era a primeira vez que Marcela falava sobre a fam\'edlia com algu\'e9m, al\'e9m de Luciana, o que a deixou confusa. Mas Fl\'e1vio, notando o seu desconforto e n\'e3o conseguindo
\par mais conter a admira\'e7\'e3o, perguntou sem rodeios:
\par -Voc\'ea quer me namorar?
\par -O que foi que disse? - tornou ela, perplexa.
\par -Sei que a hora n\'e3o \'e9 a mais oportuna. Voc\'ea passou por momentos dif\'edceis e talvez ainda n\'e3o se sinta pronta para iniciar uma nova rela\'e7\'e3o. Mas, desde que
\par a vi hoje pela manh\'e3, n\'e3o consigo parar de pensar em voc\'ea. Estou sendo sincero, foi amor \'e0 primeira vista.
\par Ela riu em d\'favida e objetou:
\par -Amor \'e0 primeira vista... N\'e3o sei se acredito nisso.
\par -Eu tamb\'e9m n\'e3o acreditava, at\'e9 conhecer voc\'ea. Quando a vi, meu cora\'e7\'e3o deu uma cambalhota e quase foi parar no est\'f4mago. Parecia at\'e9 que j\'e1 a conhecia antes.
\par -Voc\'ea est\'e1 sendo rom\'e2ntico.
\par -Pode at\'e9 ser. Mas uma coisa \'e9 certa: voc\'ea me impressionou como nenhuma outra jamais o fez. Em um dia, cativou mais o meu cora\'e7\'e3o do que tantas outras j\'e1
\par tentaram fazer em anos.
\par -Convencido. S\'f3 para me dizer que j\'e1 teve muitas mulheres apaixonadas por voc\'ea.
\par -N\'e3o \'e9 nada disso. Tive muitas namoradas, n\'e3o nego, e algumas se apaixonaram mesmo por mim. Mas eu jamais me interessei por nenhuma delas. N\'e3o como estou
\par interessado em voc\'ea.
\par -E quem me garante que esse interesse n\'e3o vai passar um dia? Talvez voc\'ea descubra que eu sou como todas as outras e se desinteresse de mim tamb\'e9m.
\par -Voc\'ea n\'e3o \'e9 como as outras.
\par Aquela conversa estava deixando-a confusa e transtornada.
\par Como ser\'e1 que ele reagiria se soubesse de Luciana? Ele tinha raz\'e3o: ela n\'e3o era como as outras. Seria certo engan\'e1-lo, deixando-o pensar que ela s\'f3 se relacionara
\par com homens? Esse pensamento a assustou, e ela contrap\'f4s acabrunhada:
\par -Voc\'ea n\'e3o se incomoda com o fato de eu... ter feito o que fiz?
\par -O que voc\'ea fez? Nada. Foi um ato de desespero. Sei que n\'e3o faria isso de novo.
\par -Como pode ter tanta certeza?
\par -Eu estarei aqui para ajud\'e1-la. N\'e3o sei o que se passou entre voc\'ea e seu namorado, nem me interessa saber.
\par -N\'e3o interessa?
\par -N\'e3o. Se voc\'ea quiser me contar, muito bem. Antes de tudo, quero ser seu amigo, e voc\'ea pode confiar em mim. Mas, se n\'e3o quiser falar, n\'e3o faz mal. O que voc\'ea
\par fez da sua vida antes de me conhecer n\'e3o \'e9 problema meu.
\par -Tem certeza?
\par -Tenho.
\par -Qualquer coisa?
\par -Se est\'e1 tentando me dizer que se entregou ao seu namorado, n\'e3o precisa se preocupar. N\'e3o sou do tipo conservador e n\'e3o me importo com isso. N\'e3o me importaria
\par nem se voc\'ea j\'e1 tivesse dormido com a torcida do Flamengo inteira.
\par Como ele era inocente! Achava que ela dormira com outro homem e n\'e3o era mais virgem. \'c9 claro que ela n\'e3o era mais virgem, mas perdera a virgindade em suas loucuras
\par com Luciana. O que ele diria se soubesse que ela foi deflorada por outra mulher? Teria a mesma compreens\'e3o que demonstrava agora? Pensou em lhe contar a verdade
\par para ver como ele reagiria. Se n\'e3o a aceitasse, n\'e3o tinha problema. Era praticamente um desconhecido, e ela n\'e3o sentia nada por ele.
\par Ia se preparar para lhe contar tudo sobre Luciana quando algo surpreendente aconteceu. Eles estavam sentados, de frente um para o outro, e Fl\'e1vio, inesperadamente,
\par puxou a sua cabe\'e7a, aproximando-a de si, e pousou-lhe delicado beijo nos l\'e1bios, que ela correspondeu com medo e prazer.
\par -Isso \'e9 para voc\'ea ver como n\'e3o faz diferen\'e7a o que voc\'ea fez com seu namorado - falou ele, os l\'e1bios ainda se ro\'e7ando.
\par - Posso am\'e1-la e respeit\'e1-la ainda assim, tenha voc\'ea dormido ou n\'e3o com outros homens.
\par Aquele beijo encheu-a de desejo, e ela se pegou pensando novamente em como seria fazer sexo com ele. Quanto mais pensava, mais o desejo aumentava, e seu cora\'e7\'e3o
\par come\'e7ou a bater mais forte, a respira\'e7\'e3o foi-se acelerando, e um suor frio desceu de sua testa. Ele a beijou novamente e sussurrou em seu ouvido:
\par - Vamos sair daqui.
\par A decis\'e3o de lhe contar sobre Luciana se esvaiu naquele beijo, e ela nada disse. Ele pagou a conta, e sa\'edram para a noite. Entraram no carro, e ele dirigiu at\'e9 um
\par motel. Marcela estava assustada, nunca antes havia entrado em um motel, nunca antes se vira numa situa\'e7\'e3o daquelas com algu\'e9m al\'e9m de Luciana. Era a primeira vez
\par que se relacionaria com um homem. Um p\'e2nico a invadiu, e ela pensou em desistir, mas a m\'e3o direita de Fl\'e1vio, deslizando entre suas coxas, fez com que ela reconsiderasse
\par e s\'f3 pensasse nele.
\par Ao lev\'e1-la para o quarto, Fl\'e1vio agiu gentilmente, despertando-lhe sensa\'e7\'f5es que ela nunca antes havia experimentado com Luciana. Ela n\'e3o entendia. Como podia ser
\par que ela, que sempre fora apaixonada por Luciana, se pegava agora ardendo de desejo por um homem, suspirando e gemendo sob seu corpo e em seus bra\'e7os? Em dado momento,
\par n\'e3o conseguiu pensar em mais nada, entregando-se \'e0 paix\'e3o daquele homem com um ardor incontrol\'e1vel. Amaram-se por quase toda a noite e, ao final, ela estava feliz
\par e extasiada, certa de que nunca sentira tanto prazer em sua vida.
\par Olhando para ele, Marcela teve certeza de que agora mesmo \'e9 que n\'e3o conseguiria lhe contar nada. Os momentos que vivera com ele naquela noite haviam sido maravilhosos
\par e inigual\'e1veis, e ela come\'e7ava a sentir que n\'e3o suportaria perder algu\'e9m novamente. Se Fl\'e1vio desistisse dela, a frustra\'e7\'e3o seria muito grande. Por outro lado, se
\par ele tivesse que partir, seria prefer\'edvel que o fizesse logo no come\'e7o, enquanto ela ainda n\'e3o o amava. Marcela, no entanto, sabia que j\'e1 n\'e3o poderia mais lhe contar
\par a verdade. Envolvera-se com ele, em apenas uma noite, de tal forma, que n\'e3o poderia mais prescindir da sua presen\'e7a.
\par N\'e3o lhe contaria nada sobre Luciana. Ele nada sabia a respeito e n\'e3o precisava saber. N\'e3o fora ele mesmo que lhe dissera que seu passado n\'e3o lhe interessava? Que
\par ela n\'e3o tinha que lhe contar nada, se n\'e3o quisesse? Ent\'e3o, ela podia se sentir desobrigada de lhe contar a verdade. A d\'favida ainda era muito grande, por\'e9m, e ela
\par n\'e3o conseguia se decidir realmente, at\'e9 que ele a beijou de novo e recome\'e7ou a acarici\'e1-la, sussurrando com paix\'e3o:
\par - Voc\'ea \'e9 a mulher mais maravilhosa que j\'e1 conheci. Estou apaixonado...
\par Beijou-a com ardor, e ela se entregou a ele outra vez, finalmente sepultando, no mais profundo de seu ser, a vontade de lhe contar sobre Luciana.
\par Fazia muito calor, Luciana caminhava esbaforida, pulando de sombra em sombra para escapar do sol escaldante. Como gostaria de estar de f\'e9rias! Mas trabalhava em
\par seu pr\'f3prio consult\'f3rio particular, e profissionais liberais n\'e3o podiam se dar ao luxo de ter f\'e9rias enquanto ainda n\'e3o se firmassem e fizessem nome. E era para
\par isso que se esfor\'e7ava.
\par Mais alguns minutos e alcan\'e7ou o edif\'edcio comercial em que ficava o consult\'f3rio. Subiu de elevador e entrou encalorada em seu consult\'f3rio, indo direto beber \'e1gua.
\par Na outra sala, o barulho do motor se fazia ouvir, e ela se sentou para refrescar-se. Ainda bem que a sala tinha ar-condicionado. Fora o \'fanico luxo que ela e Ma\'edsa
\par puderam pagar. Mais alguns minutos, a porta da sala foi aberta, e o paciente de Ma\'edsa saiu.
\par -Precisamos contratar uma secret\'e1ria - disse ela, fechando a porta depois que o rapaz se foi. - Est\'e1 ficando dif\'edcil atender os clientes e ainda ter que
\par atender telefones, marcar consultas e cuidar da parte banc\'e1ria.
\par -Voc\'ea tem raz\'e3o. Providenciaremos isso mais tarde.
\par -Mais tarde, n\'e3o. Tem que ser para j\'e1.
\par -Podemos p\'f4r um an\'fancio no jornal.
\par -N\'e3o seria melhor pedirmos numa ag\'eancia? E se aparecer aqui alguma louca, espi\'e3 do governo...?
\par -Deixe de bobagens, Ma\'edsa. Voc\'ea agora n\'e3o se envolve mais
\par com essas coisas. Vou colocar um an\'fancio no jornal e marcar entrevistas para depois do expediente. O que voc\'ea acha?
\par -Se voc\'ea garante que n\'e3o tem perigo, para mim, est\'e1 bom.
\par -N\'e3o tem perigo. Pode crer.
\par -Ent\'e3o est\'e1 bem. Voc\'ea cuida disso?
\par -Cuido, pode deixar.
\par -Ah! J\'e1 ia me esquecendo. Sabe quem eu vi hoje de manh\'e3, quando vinha para c\'e1?
\par -Quem?
\par -A Marcela. E adivinhe s\'f3!
\par -O qu\'ea?
\par -Estava de m\'e3os dadas com um rapaz.
\par -Com um rapaz? Est\'e1 brincando!
\par -N\'e3o estou, n\'e3o. E parecia bem feliz.
\par -Ser\'e1 que ela virou hetero1 agora?
\par -Vai ver que depois que voc\'ea a deixou, ela ficou t\'e3o decepcionada que resolveu experimentar outras coisas. E pela cara dela, acho que gostou. Se bem que
\par n\'e3o posso culp\'e1-la. Os homens s\'e3o realmente muito bons...
\par Luciana riu bem-humorada. J\'e1 estava acostumada \'e0quelas brincadeiras de Ma\'edsa e n\'e3o se importava.
\par -Ela viu voc\'ea? - retrucou interessada.
\par -Acho que n\'e3o. Se viu, fingiu que n\'e3o viu. N\'e3o posso culp\'e1-la.
\par -Por que? Ela n\'e3o tem motivos para fingir que n\'e3o a viu. Ou ser\'e1 que tem?
\par -Voc\'ea sabe como as pessoas s\'e3o preconceituosas. E se o namorado n\'e3o aceitar que ela j\'e1 tenha tido um caso com outra mulher?
\par -Ent\'e3o n\'e3o deve gostar dela de verdade, n\'e3o \'e9 mesmo? Quem ama n\'e3o se importa com essas coisas.
\par -Voc\'ea n\'e3o conhece os homens. S\'e3o muito legais e bonzi-nhos, mas machistas que s\'f3 vendo.
\par -Isso n\'e3o \'e9 motivo para viver na mentira.
\par -Ei! Calma a\'ed. Voc\'ea nem sabe se ela mentiu para ele.
\par -Isso tamb\'e9m n\'e3o me interessa. Marcela \'e9 p\'e1gina virada na minha vida.
\par 1 Hetero: prefixo de heterossexual, utilizado na linguagem coloquial (N.A.).
\par -Ser\'e1 que voc\'ea n\'e3o est\'e1 com ci\'fame?
\par -N\'e3o \'e9 isso. N\'f3s convivemos por oito anos, e a gente se apega, de uma maneira ou de outra. Gosto de Marcela e quero-lhe muito bem, mas o que ela faz da sua
\par vida n\'e3o \'e9 problema meu.
\par -Tem certeza de que n\'e3o \'e9 ci\'fame?
\par -Se fosse para sentir ci\'fame, n\'e3o a teria deixado.
\par -Bom, isso \'e9 verdade, mas voc\'ea sabe como s\'e3o essas coisas do cora\'e7\'e3o: a gente n\'e3o quer mais o outro, mas, quando o v\'ea com mais algu\'e9m, bate um sentimento
\par de posse, o orgulho cutuca a vaidade, e l\'e1 vamos n\'f3s, enveredando pelo caminho do ci\'fame.
\par -Eu n\'e3o. N\'e3o sou ciumenta nem possessiva, e n\'e3o quero mais nada com Marcela. Se ela encontrou algu\'e9m que a fa\'e7a feliz, ainda que seja um homem, \'e9 muito bom
\par para ela. Fico feliz com isso tamb\'e9m.
\par -Voc\'ea \'e9 muito engra\'e7ada, Luciana. Se fosse comigo, estaria me roendo de despeito.
\par -Ainda bem que eu n\'e3o sou como voc\'ea.
\par O som da campainha interrompeu a conversa, e o primeiro cliente de Luciana chegou. Ma\'edsa se foi, e ela se concentrou no trabalho, afastando Marcela de seus pensamentos
\par e s\'f3 voltando a pensar nela no final da tarde. Fazia tempo que n\'e3o a via. Desde que a deixara. Soube que ela melhorou e teve alta do hospital, mas n\'e3o a procurou
\par depois disso.
\par Como ser\'e1 que estaria? Pelo que Ma\'edsa lhe contara, parecia feliz. Encontrara um homem e devia estar namorando. Luciana n\'e3o entendia bem como aquilo fora acontecer.
\par Tinha certeza de que Marcela n\'e3o gostava de homens, mas podia estar enganada. S\'f3 se ela realmente estivesse tentando modificar sua conduta para se adaptar aos padr\'f5es
\par sociais e deixar de sofrer. Ou, ent\'e3o, talvez estivesse tentando algo novo para ver se a esquecia. Nenhuma das duas hip\'f3teses seria boa, porque Marcela estaria levando
\par uma mentira para sua vida. Mas ela podia ainda estar apaixonada pelo rapaz. Seria isso poss\'edvel?
\par Receber not\'edcias de Marcela fez com que Luciana sentisse vontade de v\'ea-la novamente, de saber como estava, de conversar com ela. N\'e3o estava com ci\'fame nem queria
\par voltar, mas ainda se sentia um pouco respons\'e1vel por ela. Tinha-lhe afei\'e7\'e3o, gostaria
\par mesmo de ser sua amiga. Preocupava-se com o seu futuro e n\'e3o queria que ela sofresse. Se ela estivesse mesmo apaixonada pelo rapaz, n\'e3o teria com o que se preocupar.
\par Mas se o estivesse namorando s\'f3 para fugir do sofrimento e da desilus\'e3o, estaria cometendo um erro muito grande, pois acabaria sofrendo ainda mais e fazendo outra
\par pessoa sofrer tamb\'e9m.
\par No dia seguinte, foi colocar o an\'fancio no jornal, que sairia no domingo, e elas tencionavam marcar as entrevistas para o dia seguinte, se poss\'edvel. Ocupada com seus
\par afazeres, Luciana deixou de se preocupar com Marcela e concentrou a aten\'e7\'e3o no trabalho. O n\'famero de clientes aumentava a cada dia, porque ela e Ma\'edsa eram realmente
\par muito boas no que faziam, e eles, satisfeitos, as recomendavam a amigos e parentes. Precisavam mesmo de uma secret\'e1ria, e com urg\'eancia.
\par Na segunda-feira, logo pela manh\'e3, o telefone do consult\'f3rio come\'e7ou a tocar. Como Ma\'edsa atendia de manh\'e3, e ela, \'e0 tarde, resolveram se revezar ao telefone, marcando
\par as entrevistas para depois das seis horas. Muitas mo\'e7as apareceram. O desemprego era grande na \'e9poca, e as oportunidades de trabalho eram poucas, principalmente
\par para quem n\'e3o tinha experi\'eancia. Sens\'edveis a esse problema, Luciana e Ma\'edsa n\'e3o fizeram tal exig\'eancia, aceitando mo\'e7as inexperientes, que nunca haviam trabalhado,
\par desde que demonstrassem garra e vontade de aprender.
\par Entrevistaram muitas candidatas, deixando algumas para o dia seguinte. No primeiro dia, nenhuma delas lhes pareceu adequada. A maioria queria ganhar muito al\'e9m do
\par que elas podiam pagar e preferiam ficar sem o emprego a aceitar trabalhar por menos do que desejavam. Na ter\'e7a-feira, as entrevistas continuaram, e uma mo\'e7a, em
\par especial, chamou a aten\'e7\'e3o de Luciana. Era bonita, de boa apar\'eancia, muito viva e inteligente. N\'e3o tinha experi\'eancia, mas demonstrou ser paciente e n\'e3o se queixou
\par das condi\'e7\'f5es. Precisava trabalhar para ajudar no sustento da fam\'edlia e queria crescer na vida. Chamava-se Cec\'edlia e acabara de concluir o curso cient\'edfico, aos
\par dezenove anos.
\par -E ent\'e3o, o que voc\'ea achou? - perguntou Ma\'edsa, depois que as entrevistas se encerraram.
\par -Gostei dessa aqui - respondeu Luciana, exibindo a ficha
\par de Cec\'edlia. - N\'e3o tem experi\'eancia, mas n\'e3o \'e9 muito exigente e tem boa vontade.
\par -Hum... N\'e3o sei, n\'e3o. Achei-a um pouco ambiciosa.
\par -E da\'ed? Um pouco de ambi\'e7\'e3o n\'e3o faz mal a ningu\'e9m. Ajuda a crescer e progredir.
\par -N\'e3o sei. Algo nela n\'e3o me agradou.
\par -Voc\'ea est\'e1 de implic\'e2ncia s\'f3 porque ela \'e9 bonitinha.
\par -Ah! \'c9 por isso que quer contrat\'e1-la? Porque ela \'e9 bonitinha?
\par -N\'e3o seja boba. Quero contrat\'e1-la porque acho que ela serve para o cargo. Como n\'e3o tem experi\'eancia, podemos trein\'e1-la do nosso modo. Aposto como ela vai
\par aprender tudo com facilidade e rapidez, e n\'e3o demonstrou repulsa a sangue e inje\'e7\'f5es. Voc\'ea sabe que teremos que ensinar a auxiliar a preparar massas, anestesias
\par e radiografias, n\'e3o sabe? - Ma\'edsa assentiu. - Ent\'e3o? Cec\'edlia me parece perfeita para isso.
\par Ma\'edsa suspirou profundamente e deu de ombros:
\par -Est\'e1 bem. N\'e3o sei o que voc\'ea viu nessa Cec\'edlia, mas se gostou dela... seja feita a sua vontade.
\par -\'d3timo! Vou telefonar para ela amanh\'e3, dizendo que a vaga \'e9 dela, e ela pode come\'e7ar na quinta-feira mesmo, se n\'e3o tiver problemas.
\par Na quinta-feira, logo pela manh\'e3, Cec\'edlia se apresentou no consult\'f3rio, pronta para trabalhar. Como Luciana previra, apren deu tudo rapidamente, demonstrando efici\'eancia
\par e cordialidade com elas e com os clientes. At\'e9 Ma\'edsa ficou satisfeita.
\par -\'c9 - falou ela -, tenho que reconhecer que estava errada. Cec\'edlia est\'e1 se saindo muito bem.
\par -Eu n\'e3o disse?
\par Depois que tudo retomou a normalidade, Luciana voltou a pensar em Marcela. Como estaria se saindo? Estava em casa lendo uma revista odontol\'f3gica, quando lhe ocorreu
\par telefonar. O telefone tocou v\'e1rias vezes at\'e9 que algu\'e9m atendesse, e Luciana desligou assustada, ao ouvir a voz de um homem do outro lado.
\par -Est\'e1 tudo bem? - quis saber Ma\'edsa, vendo que ela bateu o telefone apressada.
\par -Liguei para Marcela... Um homem atendeu...
\par -Voc\'ea n\'e3o devia estar surpresa. N\'e3o sabe que ela est\'e1 namorando um rapaz?
\par -Luciana est\'e1 com ci\'fame - afirmou Breno, namorado de Ma\'edsa.
\par -N\'e3o estou, n\'e3o. E parem de me amolar, voc\'eas dois.
\par Ma\'edsa e Breno trocaram olhares maliciosos, e a mo\'e7a continuou:
\par -Estou pensando em convidar Marcela para o nosso casamento. O que voc\'ea acha?
\par -O casamento \'e9 seu. Fa\'e7a como quiser.
\par -N\'e3o precisa ser mal-educada - rebateu Ma\'edsa.
\par -Tem raz\'e3o, desculpe-me. Mas \'e9 que voc\'ea agora deu para cismar que estou com ci\'fame de Marcela, quando n\'e3o estou.
\par -Tudo bem, Luciana, eu \'e9 que devo pedir desculpas. N\'e3o soube a hora de parar com a brincadeira.
\par -Eu tamb\'e9m, Lu - acrescentou Breno. - N\'e3o queremos que fique aborrecida conosco.
\par -Ah! Deixem para l\'e1 - arrematou Luciana.
\par -Mas voc\'ea ainda n\'e3o respondeu a minha pergunta - prosseguiu Ma\'edsa. - Acha que eu devo convidar a Marcela?
\par -Quer mesmo saber a minha opini\'e3o?
\par -Se n\'e3o quisesse, n\'e3o perguntava.
\par -Voc\'ea gosta dela?
\par -Gosto. Conhe\'e7o-a h\'e1 tanto tempo quanto conhe\'e7o voc\'ea.
\par -Ent\'e3o convide. Acho mesmo que ela se sentiria magoada se soubesse que voc\'ea se casou e n\'e3o a convidou. Afinal de contas, n\'f3s terminamos, mas n\'e3o \'e9 por isso
\par que nos tornamos inimigas nem que os amigos t\'eam que se afastar dela.
\par -Luciana tem raz\'e3o - concordou Breno. - Marcela sempre foi nossa amiga e seria uma falta de considera\'e7\'e3o n\'e3o a convidarmos.
\par -Est\'e1 combinado, ent\'e3o - assentiu Ma\'edsa, colocando o nome de Marcela na lista que estavam fazendo. - Marcela ser\'e1 convidada. Com o namorado?
\par -Naturalmente.
\par -Mande dois convites individuais para a festa - sugeriu Breno. - Assim, ela pode levar quem quiser.
\par -Boa id\'e9ia. Dois convites para Marcela. E Cec\'edlia? Devo convid\'e1-la tamb\'e9m?
\par -Quem \'e9 Cec\'edlia? - quis saber Breno.
\par -Nossa nova secret\'e1ria.
\par -Seria uma descortesia n\'e3o a convidar - ponderou Luciana. - Ela trabalha para n\'f3s.
\par -Tem raz\'e3o. Mas vou mandar apenas um convite individual para ela.
\par -O certo seria mandar dois. Voc\'ea n\'e3o sabe se ela tem namorado.
\par -Ai, ai, ai. V\'e1 l\'e1: dois convites para Cec\'edlia tamb\'e9m. Assim desse jeito, essa lista vai ficar imensa.
\par -N\'e3o foi voc\'ea quem quis fazer festa? - perguntou Luciana.
\par -Meu pai n\'e3o abre m\'e3o - esclareceu Breno. - Sabe como \'e9, casamento do filho advogado, muitos parentes, amigos desembargadores...
\par -Sei, sei.
\par Enquanto os dois continuavam discutindo sobre a lista de convidados, Luciana se afastou e foi para o quarto, pensando se Marcela levaria o namorado. E Cec\'edlia? Ser\'e1
\par que levaria tamb\'e9m o seu? Ser\'e1 que tinha um namorado? De repente, Luciana se deu conta de que pensava em Cec\'edlia com uma insist\'eancia maior do que desejava. Achava
\par a mo\'e7a bonita e inteligente, admirava-a mesmo. Era esperta e ambiciosa, e n\'e3o tardaria muito para deixar aquele emprego e partir para uma coloca\'e7\'e3o melhor em uma
\par grande empresa. Tinha tudo para isso.
\par Desde que rompera com Marcela, Luciana decidira n\'e3o se envolver com mais ningu\'e9m durante um bom tempo. Precisava pensar na carreira, alugar um apartamento s\'f3 para
\par ela. Depois que Ma\'edsa se casasse, teria que entregar aquele. O propriet\'e1rio j\'e1 dissera que n\'e3o queria mais alugar, e ela precisaria sair. Queria alugar um outro,
\par maior e pr\'f3ximo da praia. Quem sabe at\'e9 n\'e3o poderia comprar um? Talvez fizesse um financiamento na Caixa Econ\'f4mica, realizando o sonho de ter uma casa pr\'f3pria.
\par Com tudo isso, n\'e3o estava em seus planos se envolver com ningu\'e9m. Gostava de ser independente e n\'e3o queria outra pessoa dependendo dela. Contudo, havia certas coisas
\par de que n\'e3o conseguia abrir m\'e3o. Gostava de sexo e pensava se n\'e3o poderia encontrar algu\'e9m com quem passar horas agrad\'e1veis, sem
\par envolvimento nem cobran\'e7as. Mas onde encontraria uma pessoa assim? Se quisesse um homem, seria mais f\'e1cil. Mas uma mulher que procurava outra mulher era complicad\'edssimo.
\par Ser homossexual era algo seriamente reprovado pela sociedade, e quem era l\'e9sbica esfor\'e7ava-se para n\'e3o parecer que era. Mesmo ela, que n\'e3o tinha vergonha de ser
\par como era, n\'e3o sa\'eda por a\'ed falando que gostava de mulheres nem adotava nenhum comportamento escandaloso que pudesse chocar algu\'e9m.
\par Agora, por\'e9m, seu corpo reclamava o contato de outro corpo, e ela se pegou pensando em Cec\'edlia. Nem sabia se a mo\'e7a era homossexual. De vez em quando a surpreendia
\par olhando-a com uma certa admira\'e7\'e3o, mas aquilo n\'e3o queria dizer nada. Admira\'e7\'e3o era um sentimento que estava al\'e9m do sexo e podia ter v\'e1rios motivos.
\par E Marcela? N\'e3o, decididamente, n\'e3o queria mais contato com Marcela. Pensar nela causava-lhe preocupa\'e7\'e3o, despertava-lhe ternura, mas n\'e3o desejo. Pensava em Marcela
\par como uma irm\'e3, n\'e3o como amante. O mesmo n\'e3o acontecia com Cec\'edlia. Pensar na mo\'e7a enchia-a de desejo, e ela se esfor\'e7ou ao m\'e1ximo para tir\'e1-la da cabe\'e7a. Cec\'edlia
\par devia ter namorado e comportar-se como qualquer mo\'e7a normal de sua idade.
\par Resolveu n\'e3o pensar em mais ningu\'e9m e foi para o chuveiro. Talvez uma ducha fria acalmasse seus sentimentos. Depois do banho, foi para a cama e apagou a luz, adormecendo
\par logo em seguida, sem sonhos ou fantasias a lhe povoar a mente.
\par Os trov\'f5es ao longe prenunciavam a tempestade de ver\'e3o que estava prestes a cair, enquanto uma lufada de vento quente entrava pelas janelas da casa de Fl\'e1vio, agitando
\par as cortinas e fazendo com que algumas portas batessem em seu interior. Na correria, os criados, tentando conter a ventania, n\'e3o ouviam a campainha da porta da frente,
\par que tocava sem parar.
\par -Voc\'eas est\'e3o surdos? - zangou-se Dolores, surgindo no alto da escada. - A campainha quase estourando de tanto tocar, e ningu\'e9m abre?
\par -Desculpe, dona Dolores-falou uma das criadas. - Est\'e1vamos t\'e3o ocupados com a ventania que nem ouvimos a campainha.
\par Mais que depressa, correu a abrir a porta da frente, e Ariane entrou no exato momento em que uma chuva grossa come\'e7ou a cair.
\par -O que foi que houve com todo mundo? - reclamou ela. - Estou h\'e1 quase uma hora tocando!
\par -Perd\'e3o, dona Ariane, \'e9 que est\'e1vamos tentando fechar as janelas e...
\par -Deixe para l\'e1. Dona Dolores est\'e1?
\par -Estou aqui mesmo - falou Dolores, dando beijinhos no ar, perto das bochechas de Ariane. - Como voc\'ea est\'e1?
\par -Mais ou menos... Fl\'e1vio sumiu.
\par -Sumiu? Pensei que ele estivesse saindo com voc\'ea.
\par -Comigo? N\'e3o.
\par -Mas ele sai todas as noites...
\par -Ele tem sa\'eddo com algu\'e9m?
\par Dolores a encarou em d\'favida. Nos \'faltimos dias, Fl\'e1vio s\'f3 voltava tarde da noite, e ela podia jurar que era em companhia de Ariane que ele estava.
\par -Estranho - divagou ela. - Com quem ser\'e1 que ele anda? Se n\'e3o \'e9 com voc\'ea, ent\'e3o, com quem \'e9?
\par -Era isso que eu gostaria de saber. Pensei que voc\'ea tivesse dito que ele seria meu.
\par -E vai ser. S\'f3 n\'e3o entendo o que est\'e1 acontecendo, mas, assim que descobrir, dou um jeito nisso.
\par -Est\'e1 demorando muito! J\'e1 estou ficando impaciente.
\par -V\'e1 com calma, Ariane. Voc\'ea sabe que fa\'e7o muito gosto no seu casamento com Fl\'e1vio, n\'e3o sabe? - Ela assentiu. - Por isso, n\'e3o ponha tudo a perder. Sua ansiedade
\par pode acabar afastando-o de voc\'ea. Fl\'e1vio n\'e3o gosta de ser pressionado.
\par Ariane sentou-se no sof\'e1 da sala e ficou olhando a chuva pela porta envidra\'e7ada que dava para a piscina.
\par -Precisamos descobrir se ele est\'e1 saindo com algu\'e9m.
\par -Cuidarei disso. E foi muito bom voc\'ea vir me procurar antes de tomar qualquer atitude. Tem que deixar essas coisas por minha conta.
\par -Quero me casar com ele, Dolores. Voc\'ea sabe o quanto gosto dele.
\par -Sei, sim. E \'e9 por isso que voc\'ea \'e9 a mo\'e7a ideal para ele. Bonita, culta. \'c9 a mulher perfeita para me dar netos.
\par -Ele n\'e3o pode me usar assim desse jeito. Fez o que fez comigo para depois cair fora.
\par -Ele n\'e3o vai cair fora. Vai casar-se com voc\'ea, e ambos ser\'e3o muito felizes aqui. Como eu n\'e3o fui - acrescentou em voz baixa, para que Ariane n\'e3o pudesse
\par ouvir.
\par O casamento de Dolores terminara no dia em que o marido descobrira que ela o tra\'eda com N\'e9lson, seu s\'f3cio e pai de Ariane. Justino n\'e3o fez nenhum esc\'e2ndalo. Simplesmente
\par apanhou as suas coisas e saiu de casa, entrando com o pedido de desquite na semana seguinte. Tudo correu de forma amig\'e1vel, para evitar esc\'e2ndalos, e Justino rompeu
\par a sociedade com N\'e9lson, montando sua pr\'f3pria cl\'ednica depois disso.
\par Apesar do desquite, continuava amigo do filho, a quem sempre via, e lhe ofereceu um emprego em sua cl\'ednica, logo que ele se formou. Fl\'e1vio aceitou prontamente. Era
\par uma cl\'ednica ortop\'e9dica, e ambos gostavam muito do que faziam. Apesar de n\'e3o precisar trabalhar em hospital, Fl\'e1vio quis auxiliar numa emerg\'eancia e fazia plant\'e3o,
\par uma vez por semana, no hospital do Andara\'ed, onde conhecera Marcela.
\par Justino jamais contou ao filho que a m\'e3e o tra\'edra. Para todos os efeitos, seu casamento terminara porque os dois j\'e1 n\'e3o se amavam mais. Fl\'e1vio aceitou tudo com naturalidade.
\par J\'e1 havia completado 21 anos e era maduro o bastante para compreender.
\par Dolores, por sua vez, n\'e3o terminou o relacionamento com N\'e9lson. A esposa dele, Anita, nunca desconfiou de que houvesse algo entre os dois. Era uma mulher feia e
\par apagada, e engordara excessivamente depois do nascimento do \'faltimo de seus quatro filhos, n\'e3o conseguindo mais retornar ao peso antigo. Essa mudan\'e7a na apar\'eancia
\par da mulher acabou direcionando os olhares de N\'e9lson para Dolores. Apesar de madura, era uma mulher muito bonita, jovem ainda, esbelta e quase sem rugas. Casara-se
\par aos dezesseis anos, gr\'e1vida de Fl\'e1vio, pelo que se sabia, e mantinha ainda a apar\'eancia da juventude.
\par Um casamento entre Fl\'e1vio e Ariane interessava muito a Dolores. Ela era uma mulher possessiva e autorit\'e1ria, e n\'e3o queria correr o risco de ter que se deparar com
\par uma nora que a enfrentasse. Por isso, era preciso escolher bem a mulher com quem Fl\'e1vio se casaria, e Ariane era perfeita. Apesar de dotada de rara beleza, n\'e3o dava
\par valor \'e0 intelig\'eancia, al\'e9m de n\'e3o se interessar por assuntos financeiros ou dom\'e9sticos. Era f\'fatil e facilmente manipul\'e1vel. Desde que houvesse muitas lojas para
\par fazer compras e festas onde pudesse se exibir, estava satisfeita. E depois de casados, ela e Fl\'e1vio viveriam em casa de Dolores, sob suas ordens, onde ela poderia
\par control\'e1-los e aos netos que chegariam.
\par No princ\'edpio, Fl\'e1vio at\'e9 se interessou por Ariane, atra\'eddo por sua beleza e eleg\'e2ncia. Mas depois, com o tempo, acabou se cansando dela, achando-a f\'fatil e vazia,
\par sem objetivos ou ideais. Ariane s\'f3 se interessava por festas, j\'f3ias e roupas, al\'e9m de ser arrogante e maltratar os criados e as pessoas humildes. Esse
\par comportamento desagradava Fl\'e1vio ao extremo. Acostumado \'e0 gentileza e cordialidade do pai, que demonstrava respeito por qualquer ser humano, a atitude soberba de
\par Ariane foi desgastando-o. Aprendera com o pai a dar valor \'e0s pessoas e aos sentimentos, e n\'e3o a coisas ou dinheiro, e o jeito de Ariane acabou convencendo-o de
\par que ela n\'e3o era a mulher ideal para ele.
\par S\'f3 que Ariane n\'e3o queria aceitar que Fl\'e1vio n\'e3o estava mais interessado nela. Estimulada por Dolores, continuou a freq\'fcentar a sua casa, convidando-o muitas vezes
\par para sair. De vez em quando, ele aceitava e a levava ao cinema ou para jantar, sem qualquer tipo de envolvimento, sem nem mesmo a beijar. Apenas como amigos. Mas,
\par depois que Fl\'e1vio conheceu Marcela, deixou de aceitar os convites de Ariane e passou a evit\'e1-la, dando sempre uma desculpa para n\'e3o ir mais a sua casa.
\par -H\'e1 tempos que Fl\'e1vio est\'e1 distante - queixou-se Ariane. - Nem me telefona mais.
\par -Quando ele chegar, vamos resolver tudo. Direi que a convidei para jantar, e ele vai ter que ficar em casa. Voc\'ea vai ver.
\par Ariane suspirou desalentada e concordou. Mais tarde, quando Fl\'e1vio chegou, n\'e3o conseguiu esconder o desagrado por v\'ea-la sentada na sala, em animada conversa com
\par a m\'e3e.
\par -Boa noite - cumprimentou ele da porta, j\'e1 se virando em dire\'e7\'e3o \'e0s escadas.
\par -Fl\'e1vio! - chamou a m\'e3e. - N\'e3o vem cumprimentar Ariane?
\par Ele voltou para a sala e estendeu a m\'e3o para ela.
\par -Como vai, Ariane? Tudo bem?
\par -Mais ou menos - foi a resposta direta. - Por que n\'e3o tem me procurado?
\par -Muito trabalho.
\par -N\'e3o podia ao menos telefonar?
\par -Tenho andado ocupado.
\par Notando que ele come\'e7ava a se irritar, Dolores resolveu intervir:
\par -Por que n\'e3o sobe, toma um banho e nos acompanha ao jantar?
\par -Lamento, mas n\'e3o posso. Tenho um compromisso.
\par -Com quem? - sondou Ariane.
\par -Com uma amiga.
\par -Voc\'ea est\'e1 saindo com algu\'e9m?
\par -Por favor, Ariane, n\'e3o quero conversar sobre isso, est\'e1 bem?
\par -Mas n\'f3s est\'e1vamos saindo juntos!
\par -Como amigos, nada mais.
\par -Voc\'ea est\'e1 namorando outra mo\'e7a? - intercedeu Dolores novamente.
\par -Isso n\'e3o \'e9 problema seu - irritou-se Fl\'e1vio. - N\'e3o gosto de interrogat\'f3rios. E agora, com licen\'e7a. J\'e1 estou atrasado.
\par Depois que ele saiu, Dolores encarou Ariane, que mantinha a boca entreaberta, perplexa com a atitude de Fl\'e1vio.
\par -Voc\'ea viu? - rugiu ela, col\'e9rica. - Eu n\'e3o lhe disse? Ele est\'e1 saindo com alguma vagabunda e n\'e3o quer nos contar.
\par -Acalme-se, Ariane, n\'f3s n\'e3o temos certeza. Ele n\'e3o disse que estava.
\par -E precisava dizer? Voc\'ea viu pelo jeito como ele falou. H\'e1 algu\'e9m na sua vida, e eu preciso descobrir quem \'e9.
\par -Voc\'ea n\'e3o vai fazer nada disso. Quer p\'f4r tudo a perder?
\par -Vou perd\'ea-lo se n\'e3o agir logo. N\'e3o posso ficar aqui sentada enquanto outra mulher me toma o namorado.
\par -Tenha calma, j\'e1 disse! Precisamos agir, sim, mas com cautela. N\'e3o quer que ele tome raiva de voc\'ea, quer?
\par -\'c9 claro que n\'e3o!
\par -Pois ent\'e3o, deixe de ser impulsiva e espere. Eu mesma vou me inteirar dessa hist\'f3ria. Sou m\'e3e, sei como agir e como fazer para ele confiar em mim.
\par -E enquanto isso, o que eu fa\'e7o?
\par -V\'e1 para casa e aguarde. Logo darei not\'edcias.
\par -Agora?
\par -Acho melhor. Se ficar, vai espant\'e1-lo ainda mais.
\par Mesmo contrariada, Ariane obedeceu e saiu furiosa. Dolores
\par esperou alguns minutos e subiu ao quarto do filho. Bateu na porta de leve, at\'e9 que ele abriu, com a toalha enrolada na cintura.
\par -O que quer, m\'e3e? Estava indo tomar banho.
\par Ela entrou e se sentou na cama, cruzando as pernas e fixando nele um olhar perscrutador.
\par -Seu pai vai bem?
\par -N\'e3o foi para falar de papai que voc\'ea veio aqui. \'c9 por causa de Ariane, eu sei.
\par -Calma, meu filho, n\'e3o se zangue comigo. N\'e3o tenho culpa se a mo\'e7a gosta de voc\'ea.
\par -Mas eu n\'e3o gosto dela.
\par -Mas fez parecer que gostava. Saiu com ela v\'e1rias vezes. O que esperava que ela pensasse?
\par -Nunca disse que gostava dela nem lhe fiz nenhuma promessa. Ao contr\'e1rio, sempre deixei claro que sa\'edamos como amigos.
\par -Amigos muito \'edntimos, n\'e3o \'e9 mesmo?
\par -N\'e3o sei o que ela lhe disse, mas, seja o que for, n\'e3o \'e9 verdade. Jamais tive intimidade alguma com Ariane.
\par -Tem certeza?
\par -Absoluta. Mesmo no come\'e7o, quando realmente est\'e1vamos namorando, nunca fomos al\'e9m de uns beijos e abra\'e7os. Mas, depois que terminamos e passamos a sair
\par como amigos, nunca mais nem a beijei.
\par -No entanto, ela se encheu de esperan\'e7as. Acha que voc\'ea \'e9 namorado dela.
\par -N\'e3o posso fazer nada. Ela se iludiu porque quis.
\par -Eu tamb\'e9m me enganei. Jurava que voc\'eas dois estavam apaixonados.
\par -Olhe, m\'e3e, n\'e3o \'e9 porque voc\'ea gosta de Ariane que eu tenho que gostar tamb\'e9m.
\par -Est\'e1 certo, meu filho, j\'e1 entendi. Voc\'ea n\'e3o gosta dela, mas sa\'eda com ela. De repente, deixou de sair. Posso saber por qu\'ea?
\par -N\'e3o quero ser grosseiro, mas isso n\'e3o lhe interessa.
\par -N\'e3o ser\'e1 porque voc\'ea conheceu outra pessoa?
\par -E se for? Qual o problema?
\par -Problema nenhum. Queria apenas que voc\'ea confiasse em mim e me contasse. Sou sua m\'e3e, n\'e3o estou contra voc\'ea.
\par -Sei que voc\'ea gostaria que eu me casasse com Ariane...
\par -Gostaria, mas n\'e3o posso obrig\'e1-lo a isso. Se voc\'ea escolheu outra mo\'e7a, n\'e3o vou me opor. Trata-se da sua felicidade, e \'e9 voc\'ea quem tem que escolher a mulher
\par com quem vai se casar.
\par Fl\'e1vio fitou-a perplexo. Nunca poderia imaginar que a m\'e3e fosse se mostrar t\'e3o compreensiva. Sempre achou que ela fazia quest\'e3o de que ele se casasse com Ariane
\par e n\'e3o admitiria que qualquer outra tomasse o seu lugar, mas agora estava surpreso.
\par -Aceitaria se eu lhe dissesse que estou apaixonado por outra mo\'e7a?
\par A palavra apaixonado soou muito forte para Dolores, que engoliu em seco e mentiu de forma convincente:
\par -Voc\'ea tem o direito de se apaixonar por quem quiser. E eu nada posso fazer al\'e9m de aceitar.
\par -N\'e3o vai se opor?
\par -De jeito nenhum - continuou a mentir, sentindo a raiva esquentar-lhe o sangue. - Gostaria at\'e9 de conhecer a mo\'e7a.
\par -N\'e3o vai destrat\'e1-la?
\par -\'c9 claro que n\'e3o! Antes de tudo, sou uma mulher de boa educa\'e7\'e3o.
\par -Hum... N\'e3o sei. Talvez voc\'ea n\'e3o goste dela.
\par -Por que? Ela n\'e3o \'e9 de boa fam\'edlia?
\par -\'c9, \'e9 de boa fam\'edlia.
\par -O que ela faz?
\par -\'c9 professora de portugu\'eas numa escola normal.
\par -Professora?
\par Dolores mal conseguiu conter a indigna\'e7\'e3o. Achava \'f3timo que as mo\'e7as freq\'fcentassem a escola normal para ter boa instru\'e7\'e3o, adquirir cultura e status, mas da\'ed a dar
\par aulas era outra hist\'f3ria. A tal mo\'e7a n\'e3o devia ser de fam\'edlia rica, caso contr\'e1rio, n\'e3o teria que trabalhar para sobreviver.
\par -Ela d\'e1 aulas porque gosta ou para se manter?
\par -As duas coisas.
\par -O que o pai dela faz?
\par -\'c9 dono de uma padaria, l\'e1 em Campos, de onde ela veio para estudar. Cursou a faculdade de letras aqui no Rio e est\'e1 pensando em fazer p\'f3s-gradua\'e7\'e3o.
\par Fl\'e1vio disse isso t\'e3o cheio de orgulho que nem percebeu o olhar horrorizado que Dolores lhe endere\'e7ava. Ent\'e3o o filho se atrevia a trocar uma mo\'e7a fina feito Ariane
\par pela filha de um padeiro, uma mulherzinha sem ber\'e7o, sem linha e pobre!? Era muita coragem.
\par -Seu pai a conhece?
\par -Ainda n\'e3o. Mas vai conhec\'ea-la em breve.
\par -O que ele acha disso?
\par -Voc\'ea sabe como papai \'e9: gosta de todo mundo. J\'e1 gosta
\par de Marcela antes mesmo de conhec\'ea-la, o que n\'e3o \'e9 nada dif\'edcil, por sinal. Marcela \'e9 uma mo\'e7a ador\'e1vel.
\par -Marcela... \'c9 esse o nome dela?
\par Ele assentiu e tornou com orgulho:
\par -N\'e3o \'e9 bonito?
\par -Voc\'ea disse que ela veio de Campos. N\'e3o mora com a fam\'edlia, ent\'e3o.
\par -N\'e3o, mora sozinha. Mas por pouco tempo. Se tudo correr bem, pretendo me casar em breve.
\par Aquilo j\'e1 era demais, e Dolores deu um salto da cama, virando-se para a janela para que Fl\'e1vio n\'e3o notasse o seu ar de repulsa. Jamais permitiria que o filho se
\par casasse com uma mulher qualquer, uma fulaninha sem eira nem beira, interessada apenas na fortuna da fam\'edlia.
\par -Se \'e9 assim t\'e3o s\'e9rio - falou ela entre os dentes -, preciso conhecer essa mo\'e7a. Afinal, ela vai ser minha nora.
\par -Calma, m\'e3e. No momento certo, vou traz\'ea-la aqui.
\par -Por que n\'e3o a convida para jantar?
\par -Marcela \'e9 muito t\'edmida. Preciso ir devagar.
\par -Mas eu quero muito conhec\'ea-la! Por favor, Fl\'e1vio, fa\'e7a isso por sua m\'e3e. Convide-a para jantar aqui em casa no s\'e1bado.
\par -No s\'e1bado? N\'e3o vai ser poss\'edvel. Temos um casamento para ir.
\par -Casamento de quem?
\par -De uma amiga dela.
\par -No domingo, ent\'e3o.
\par -Vou ver. Conversarei com ela e depois lhe direi. E agora, m\'e3e, se me der licen\'e7a, gostaria de tomar um banho. N\'e3o quero deixar Marcela esperando.
\par -Sim, claro.
\par Mordendo os l\'e1bios para n\'e3o gritar, Dolores saiu do quarto do filho. Aquilo era um insulto! Casar-se com algu\'e9m fora de seu c\'edrculo social era inadmiss\'edvel. N\'e3o
\par entendia como Fl\'e1vio podia interessar-se por algu\'e9m assim e ficou imaginando um jeito de destruir aquele romance. Mas como? Se agisse de forma direta, Fl\'e1vio se
\par zangaria e sairia de casa. Ela o conhecia bem demais para saber que ele era decidido e n\'e3o admitiria intromiss\'f5es em
\par sua vida. N\'e3o. Ela precisava agir, por\'e9m, de forma velada, sem que ele soubesse o que estava fazendo. Ainda n\'e3o sabia bem o que faria, mas o primeiro passo seria
\par conhecer a mo\'e7a. Em seguida, alertar Ariane e orient\'e1-la para que ela n\'e3o fizesse nenhuma besteira. Depois, pensaria numa estrat\'e9gia para acabar com aquele namoro
\par e fazer com que Fl\'e1vio se interessasse por Ariane novamente. E o que tivesse que fazer, tinha que ser bem feito.
\par ***
\par A cl\'ednica ortop\'e9dica estava cheia aquela manh\'e3. Fl\'e1vio terminava de atender o \'faltimo paciente quando o telefone na sua mesa come\'e7ou a tocar, e a recepcionista anunciou
\par que Marcela acabara de chegar.
\par -Pe\'e7a que ela me aguarde um instante. J\'e1 estou terminando.
\par Deu as \'faltimas orienta\'e7\'f5es ao paciente, prescreveu a medica\'e7\'e3o
\par e levou-o at\'e9 a porta, saindo atr\'e1s dele. Sentada na recep\'e7\'e3o, Marcela observava o movimento dos clientes, e ele se aproximou, estendendo-lhe a m\'e3o.
\par -Minha querida - falou, beijando a ponta de seus dedos. - Que bom que foi pontual.
\par -Eu sempre sou pontual! - afirmou ela de bom humor. - Principalmente quando estou apaixonada.
\par Os olhos de Fl\'e1vio brilharam, e ele a puxou com delicadeza. Apresentou-a \'e0s mo\'e7as da recep\'e7\'e3o e foi conduzindo-a ao consult\'f3rio do pai.
\par -Est\'e1 nervosa? - indagou ele, sentindo-a um tanto quanto tr\'eamula.
\par -Um pouco.
\par -Pois n\'e3o precisa. Meu pai \'e9 uma pessoa muito bacana. Voc\'ea vai ver - Fl\'e1vio bateu de leve na porta do pai, que se abriu no mesmo instante. - Est\'e1 sozinho?
\par -Estou - disse Justino. - Entre.
\par Fl\'e1vio entrou puxando Marcela pela m\'e3o, e Justino a cumprimentou com um sorriso.
\par -Esta \'e9 a Marcela, pai - apresentou Fl\'e1vio.
\par -Muito prazer - respondeu ele. - Fl\'e1vio fala muito em voc\'ea.
\par -No senhor tamb\'e9m - acrescentou Marcela, com um certo acanhamento.
\par -N\'e3o precisa me chamar de senhor - objetou ele, com jovialidade. - N\'e3o quero parecer t\'e3o velho.
\par A simpatia de Justino e a sua naturalidade logo colocaram Marcela \'e0 vontade, e ela se descontraiu, entregando-se a animada conversa. Fl\'e1vio marcara aquele encontro
\par para que ela e o pai se conhecessem e estava feliz porque eles estavam se dando bem. Ao final de uma hora de conversa, o telefone tocou, e a recepcionista anunciou
\par a chegada do pr\'f3ximo cliente.
\par -Bem - falou Justino -, o dever me chama.
\par -Vou levar Marcela para almo\'e7ar - avisou Fl\'e1vio. - Meu pr\'f3ximo paciente s\'f3 vir\'e1 \'e0s tr\'eas horas.
\par -Muito bem. Foi um prazer conhec\'ea-la, Marcela. Fl\'e1vio e voc\'ea formam um lindo casal.
\par Marcela corou levemente e respondeu com timidez:
\par -Obrigada, doutor Justino. O senhor \'e9 muito gentil.
\par Com um sorriso, despediram-se, e Fl\'e1vio foi com Marcela almo\'e7ar. Ficaram juntos at\'e9 quase \'e0s tr\'eas horas, quando ele a deixou em casa e retornou para atender o pr\'f3ximo
\par cliente.
\par -Vamos nos ver mais tarde? - quis saber ele, parando o carro em frente ao seu edif\'edcio.
\par -Se voc\'ea quiser...
\par -Eu sempre quero.
\par -Ent\'e3o, estarei esperando.
\par Ela saltou e ficou olhando at\'e9 que o carro sumisse na primeira esquina. Como se sentia feliz! Pensava no quanto amava Fl\'e1vio e como fora bom encontr\'e1-lo em um momento
\par t\'e3o dif\'edcil da sua vida, quando ela achava que n\'e3o suportaria viver sem Luciana. Fl\'e1vio era t\'e3o amoroso, t\'e3o atencioso, t\'e3o amigo, que ela come\'e7ou a se desligar
\par de Luciana. Ainda sentia o peito doer todas as vezes em que pensava nela, mas a dor n\'e3o era mais insuport\'e1vel. Era como sentir saudade de algu\'e9m que j\'e1 tivesse morrido.
\par Sentia falta de Luciana, mas sabia que ela nunca mais voltaria. Por isso, teve que utilizar todos os meios para se acostumar a viver sem ela. E estava conseguindo.
\par Ou melhor, fora Fl\'e1vio quem conseguira.
\par Ainda se perguntava se o amor que sentia por Fl\'e1vio n\'e3o era
\par apenas uma fuga. Temia que sim, que n\'e3o o amasse de verdade e, assim que pusesse os olhos em Luciana novamente, toda a loucura de seu amor por ela retornasse em
\par um segundo. Precisava certificar-se de seus sentimentos, e o casamento de Ma\'edsa viera bem a calhar. Ela queria ir, fazia quest\'e3o. S\'f3 estando diante de Luciana para
\par ver a sua rea\'e7\'e3o e ter certeza de que o que sentia por Fl\'e1vio j\'e1 era maior do que o amor que um dia sentira por ela.
\par Enquanto isso, Fl\'e1vio entrava no consult\'f3rio quando faltavam exatos cinco minutos para as tr\'eas horas, e o paciente j\'e1 o estava esperando. Durante o resto da tarde,
\par concentrou-se no trabalho, e s\'f3 ao final do expediente foi que tornou a ver o pai, quando ele sa\'eda de seu consult\'f3rio.
\par -Ser\'e1 que podemos conversar? - perguntou Justino.
\par -\'c9 sobre Marcela? - ele assentiu. - O que foi? N\'e3o gostou dela?
\par -Gostei muito, e esse \'e9 o problema.
\par -N\'e3o estou entendendo.
\par -Marcela \'e9 uma mo\'e7a encantadora, mas nota-se que n\'e3o pertence a nosso c\'edrculo social.
\par -N\'e3o pensei que voc\'ea fosse preconceituoso.
\par -E n\'e3o sou. Mas sua m\'e3e \'e9. Preocupa-me a rea\'e7\'e3o que ela vai ter quando conhecer a mo\'e7a.
\par -Est\'e1 se preocupando \'e0 toa. J\'e1 contei a mam\'e3e, e ela aceitou.
\par -Aceitou? Assim, sem mais nem menos?
\par -Pediu-me at\'e9 para convid\'e1-la para jantar.
\par -N\'e3o acha isso estranho?
\par -No come\'e7o, at\'e9 que achei. Mas depois, acabei me convencendo. Mam\'e3e n\'e3o me parecia fingir quando disse que aceitaria a mo\'e7a por quem eu me apaixonasse.
\par -Sei... Muito estranho. Dolores n\'e3o \'e9 disso.
\par -N\'e3o est\'e1 sendo severo demais com ela? Mam\'e3e tem l\'e1 as suas manias, mas quer o meu bem.
\par -A\'ed \'e9 que est\'e1: ela quer o seu bem de acordo com o julgamento dela. E algo me diz que ela est\'e1 interessada \'e9 no seu casamento com Ariane.
\par -Pode at\'e9 ser. Os pais de Ariane s\'e3o amigos da fam\'edlia, N\'e9lson j\'e1 foi seu s\'f3cio. Ali\'e1s, n\'e3o entendo at\'e9 hoje por que voc\'eas brigaram.
\par -N\'f3s n\'e3o brigamos. Apenas nos incompatibilizamos para a sociedade.
\par -Tudo bem. O problema \'e9 de voc\'eas, e eu n\'e3o tenho nada com isso. Quanto \'e0 mam\'e3e, acho que voc\'ea est\'e1 se preocupando demais. Ela pode n\'e3o ter ficado muito satisfeita,
\par porque realmente queria que eu me casasse com Ariane, mas, quando lhe disse que amava Marcela, ela aceitou prontamente. Acredito at\'e9 que intimamente ela tenha tido
\par uma certa relut\'e2ncia. Mas mam\'e3e n\'e3o se op\'f4s ao nosso namoro e est\'e1 se esfor\'e7ando para aceitar Marcela. Temos que louvar esse seu esfor\'e7o.
\par -N\'e3o quero lev\'e1-lo a desconfiar de Dolores, mas eu a conhe\'e7o muito bem. Temo que ela esteja aprontando alguma.
\par -N\'e3o se preocupe, pai. Mam\'e3e n\'e3o \'e9 perfeita, e eu sei que Marcela n\'e3o \'e9 a mulher com quem ela sonhou para nora. Mas ela me conhece e sabe que eu n\'e3o aceito
\par interfer\'eancias em minha vida. Se quiser que continuemos nos entendendo, sabe que tem que respeitar a minha escolha. E \'e9 isso que ela est\'e1 tentando fazer.
\par Justino suspirou profundamente e apertou o ombro do filho.
\par -Espero que voc\'ea esteja certo, Fl\'e1vio. Eu lamentaria muito se voc\'ea e Marcela acabassem brigando por causa de alguma arma\'e7\'e3o da sua m\'e3e.
\par -Ela n\'e3o vai armar nada, pai, n\'e3o se preocupe. E depois, n\'e3o sou nenhum idiota. Se ela aprontar, eu logo vou perceber.
\par -Espero.
\par Por mais que se esfor\'e7asse para acreditar no que Fl\'e1vio dizia, Justino tinha certeza de que Dolores n\'e3o se conformaria assim t\'e3o facilmente. N\'e3o era de seu feitio
\par aceitar com passividade aquilo que n\'e3o lhe agradava. Ela era maquiav\'e9lica e, com certeza, estava maquinando algum plano diab\'f3lico para terminar com o namoro de Fl\'e1vio
\par e atir\'e1-lo nos bra\'e7os de Ariane. O filho estava cego de amor e feliz com a rea\'e7\'e3o de Dolores, e n\'e3o conseguia perceber a falsidade por detr\'e1s de suas palavras.
\par Mais tarde, depois que Fl\'e1vio saiu, Justino foi \'e0 casa de Dolores. A mulher estranhou a sua visita e n\'e3o conseguiu esconder o desagrado que a sua presen\'e7a lhe causava.
\par -O que est\'e1 fazendo aqui? - perguntou ela, de mau humor. - Veio pedir para suspender a pens\'e3o?
\par -Embora voc\'ea n\'e3o precise do meu dinheiro - respondeu ele calmamente -, n\'e3o sou homem de fugir \'e0s minhas obriga\'e7\'f5es. Se a Justi\'e7a diz que eu tenho que lhe
\par pagar pens\'e3o, ainda que voc\'ea n\'e3o a mere\'e7a, n\'e3o vou discutir nem me recusar. \'c9 o meu dever.
\par Ela o olhou com desprezo e retrucou com frieza:
\par -Por que veio ent\'e3o? Para falar com Fl\'e1vio \'e9 que n\'e3o pode ser.
\par -Tem raz\'e3o, n\'e3o \'e9 para falar com Fl\'e1vio. \'c9 para falar com voc\'ea.
\par -O que \'e9? O que fa\'e7o da minha vida n\'e3o lhe diz respeito.
\par -Fique sossegada - tornou ele em tom ir\'f4nico. - N\'e3o me daria ao trabalho de vir at\'e9 aqui para falar da sua vida. Tenho coisas mais importantes a fazer.
\par -Ent\'e3o diga logo o que \'e9 e v\'e1 embora.
\par -Vim para falar de Fl\'e1vio. Ele me disse que voc\'ea aceitou de imediato a mo\'e7a que ele est\'e1 namorando.
\par -\'c9 verdade. E da\'ed?
\par -E da\'ed que n\'e3o sou tolo. Voc\'ea est\'e1 aprontando alguma.
\par -E se estiver, o que voc\'ea tem com isso?
\par -Tudo. Fl\'e1vio \'e9 meu filho, e n\'e3o vou admitir que voc\'ea interfira na sua felicidade.
\par -Ele \'e9 meu filho tamb\'e9m, e ningu\'e9m melhor do que a m\'e3e para saber o que \'e9 felicidade para seu filho.
\par -Voc\'ea n\'e3o sabe o que \'e9 isso. S\'f3 pensa em dinheiro e em colecionar bens materiais.
\par -Voc\'ea n\'e3o tem nada com isso, j\'e1 disse. E depois, n\'e3o lhe dou o direito de entrar na minha casa para vir questionar a minha rela\'e7\'e3o com meu filho.
\par -Tenho o direito de me preocupar com ele e de tentar livr\'e1-lo da sua ambi\'e7\'e3o.
\par -Como se atreve? Quem \'e9 voc\'ea para me falar em ambi\'e7\'e3o? Tem uma cl\'ednica que rende rios de dinheiro. Vai querer me convencer agora de que tamb\'e9m n\'e3o \'e9 ambicioso?
\par -H\'e1 uma grande diferen\'e7a nisso a\'ed, Dolores. A minha ambi\'e7\'e3o n\'e3o prejudica ningu\'e9m. Tive vontade de crescer, esforcei-me e cresci. Mas fiz isso honestamente,
\par sem ter que passar por cima de ningu\'e9m, sem manipular nem destruir a vida de outras pessoas.
\par -Acha mesmo que eu quero destruir a vida de Fl\'e1vio? Do meu pr\'f3prio filho? Quero o melhor para ele.
\par -Voc\'ea quer que ele fa\'e7a o que voc\'ea acha que \'e9 melhor para voc\'ea.
\par -Ele est\'e1 namorando uma mo\'e7a pobre e sem ber\'e7o. Acha que isso \'e9 o melhor para ele?
\par -A mo\'e7a \'e9 maravilhosa. E depois, quem tem que decidir isso n\'e3o \'e9 voc\'ea. \'c9 ele.
\par -Aposto como \'e9 uma aventureira, querendo se casar com ele pelo dinheiro.
\par -Por que a julga antes mesmo de a conhecer?
\par -N\'e3o preciso conhec\'ea-la para saber o que ela quer. Conhe\'e7o bem esse tipo de gente.
\par -Deixe-os em paz, Dolores. D\'ea a seu filho a chance de ser feliz.
\par -Ora, mas que desprop\'f3sito! Ent\'e3o n\'e3o fa\'e7o tudo para ele ser feliz? S\'f3 n\'e3o quero que ele se envolva com nenhuma aventureira, que fa\'e7a a escolha errada e
\par venha a sofrer depois.
\par -N\'e3o acredito que Marcela seja nenhuma aventureira, mas, ainda que fosse, Fl\'e1vio tem o direito de fazer as escolhas erradas tamb\'e9m.
\par -N\'e3o se eu puder evitar.
\par -Voc\'ea est\'e1 tentando evitar que ele viva a pr\'f3pria vida, o que n\'e3o \'e9 certo. E depois, a mo\'e7a \'e9 muito direita e correta.
\par -Voc\'ea \'e9 quem diz, que \'e9 t\'e3o tolo quanto ele.
\par -Sou tolo porque sou decente?
\par -Isso n\'e3o tem nada a ver com dec\'eancia. Fl\'e1vio vai trazer a mo\'e7a para jantar, se ela for o que voc\'ea e ele est\'e3o dizendo, ningu\'e9m tem com o que se preocupar.
\par Darei o meu consentimento para que eles namorem e se casem.
\par -Primeiro: ainda que ela n\'e3o seja o que pensamos, voc\'ea n\'e3o tem o direito de fazer nada para interferir. Se ela for uma aventureira, como voc\'ea diz, cabe a
\par Fl\'e1vio descobrir e decidir se quer ou n\'e3o ficar com ela. Segundo: voc\'ea n\'e3o tem que dar o seu consentimento para nada. Fl\'e1vio \'e9 um homem de quase trinta anos e n\'e3o
\par precisa da sua autoriza\'e7\'e3o para se casar.
\par -Voc\'ea est\'e1 me cansando, Justino. Por que n\'e3o arranja uma mulher e me deixa em paz?
\par -Estou-lhe avisando, Dolores. Se fizer algo contra Marcela, vai se ver comigo.
\par -Vai me amea\'e7ar agora, \'e9?
\par -N\'e3o. Mas lembre-se de que sou capaz de destruir a imagem de m\'e3e perfeita que voc\'ea empurra para o seu filho. A prop\'f3sito, N\'e9lson vai bem, n\'e3o vai?
\par -Voc\'ea n\'e3o se atreveria!
\par -Experimente.
\par Sem esperar resposta, Justino rodou nos calcanhares e foi embora, deixando Dolores entregue a uma f\'faria quase incontrol\'e1-vel. Ela ficou andando de um lado para outro
\par na sala, maldizendo o dia em que o ex-marido descobriu o caso que ela mantinha com N\'e9lson. Talvez fosse melhor terminar tudo com ele. Se Fl\'e1vio viesse a descobrir,
\par ela podia inventar uma desculpa qualquer, uma aventura passageira. Sim, faria isso. Fl\'e1vio ficaria indignado, mas acabaria entendendo. De toda sorte, ela j\'e1 estava
\par mesmo se cansando de N\'e9lson, e j\'e1 era hora de ele deix\'e1-la em paz.
\par Havia chegado a hora do casamento de Ma\'edsa, e ela estava atrasada para entrar na igreja. Luciana chegou cedo. Era madrinha e foi colocar-se no altar, ao lado de
\par um primo de Ma\'edsa, que faria par com ela como padrinho. Havia outros casais de ambos os lados, mas ela n\'e3o lhes prestou aten\'e7\'e3o. Passou os olhos pela igreja, procurando
\par por Cec\'edlia, sem a encontrar. Avistou Marcela ao fundo, em companhia de um rapaz atraente, e sentiu uma pontada de alegria no cora\'e7\'e3o. Gostava de Marcela e torcia
\par para que ela fosse feliz. Se escolhera construir a sua vida ao lado de um homem agora, Luciana entendia e respeitava. O que importava era a sua felicidade.
\par O \'f3rg\'e3o come\'e7ou a tocar a Marcha Nupcial, e todos os olhares se voltaram para a entrada da nave, onde Ma\'edsa despontou, linda, em seu vestido de noiva cintilante.
\par A cerim\'f4nia transcorreu sem maiores problemas, e a posterior recep\'e7\'e3o ocorreria em um clube pr\'f3ximo, onde os noivos receberiam os cumprimentos.
\par J\'e1 no clube, Luciana foi sentar-se a uma mesa com antigos colegas de faculdade e ficou observando o movimento dos convidados. As pessoas chegavam e iam-se espalhando
\par pelas mesas, mas ela n\'e3o via quem procurava. At\'e9 que Marcela chegou em companhia de Fl\'e1vio, e Luciana olhou-a com admira\'e7\'e3o. Ela estava muito atraente. Nunca a vira
\par t\'e3o bonita, num vestido altamente feminino, usando uma maquiagem luminosa que lhe
\par assentava t\'e3o bem. Seu rosto irradiava felicidade, e Luciana n\'e3o conseguiu conter o impulso. Levantou-se de sua mesa e foi direto para o lugar onde Marcela e o namorado
\par haviam-se sentado.
\par -Oi, Marcela - cumprimentou Luciana, beijando-a amigavelmente nas faces. - Como tem passado?
\par Marcela levou um susto. Por mais que tivesse esperado encontr\'e1-la ali, v\'ea-la parada diante dela, sentir os seus l\'e1bios em seu rosto deixou-a confusa e transtornada.
\par Luciana estava muito bem, e Marcela tamb\'e9m n\'e3o se lembrava de t\'ea-la visto t\'e3o linda como naquele dia. Luciana sempre usava roupas femininas, maquiava-se e pintava
\par as unhas. Mas aquele vestido azul-celeste que usava a deixava simplesmente deslumbrante, e Marcela pensou que n\'e3o poderia existir, no mundo, mulher mais bonita do
\par que Luciana.
\par -N\'e3o me apresenta ao seu namorado? - continuou ela, agora em d\'favida sobre se tomara a decis\'e3o mais acertada ao ir procurar a outra.
\par -Este \'e9 Fl\'e1vio - apresentou Marcela, maquinalmente. - Fl\'e1vio, esta \'e9 Luciana, uma amiga.
\par -Velha amiga - acrescentou ela, estendendo a m\'e3o para ele.
\par -Muito prazer - cumprimentou Fl\'e1vio, apertando sua m\'e3o. - N\'e3o quer se sentar conosco?
\par Para surpresa e temor de Marcela, Luciana aceitou o convite e se sentou ao lado deles. Naquele momento, olhando para ela, Marcela notou o quanto era importante que
\par Fl\'e1vio jamais descobrisse a verdade sobre as duas. Achara Luciana linda, maravilhosa, estonteante. Mas, estranhamente, n\'e3o sentia mais por aquela beleza nada al\'e9m
\par de uma profunda admira\'e7\'e3o. Fixando bem o seu rosto e o seu corpo, Marcela descobriu que n\'e3o tinha mais nenhum desejo por ela, e seu cora\'e7\'e3o, ao palpitar dentro do
\par peito, alertou-a da poss\'edvel trag\'e9dia que seria se Fl\'e1vio viesse a saber que ela e Luciana, um dia, haviam sido amantes.
\par Marcela n\'e3o conseguia dizer nada. Estava at\'f4nita e amedrontada. Desde que conhecera Fl\'e1vio e se envolvera com ele, temia que ele descobrisse que ela fora l\'e9sbica
\par e a desprezasse por isso. No entanto, seu temor nunca fora t\'e3o intenso como o que agora sentia. Pensava que, ao ver Luciana, fosse sentir um baque no cora\'e7\'e3o, e
\par toda aquela louca paix\'e3o retornaria e desabaria sobre
\par ela como uma avalanche. No entanto, Luciana agora lhe causava admira\'e7\'e3o, mas n\'e3o lhe despertava mais nenhum sentimento de amor ou de paix\'e3o.
\par -Voc\'ea n\'e3o diz nada? - era a voz de Fl\'e1vio, que parecia soar ao longe, como num sonho.
\par -Eu... - balbuciou ela, tentando encontrar o que dizer - quero ir ao toalete. Voc\'ea me acompanha, Luciana?
\par -Claro.
\par As duas se levantaram, e Marcela conduziu Luciana para um canto no jardim, fora do sal\'e3o de festas, onde ningu\'e9m as podia ver. Por uns instantes, Luciana pensou
\par que ela fosse tentar beij\'e1-la ou come\'e7ar a chorar, mas Marcela n\'e3o fez nada disso. Agarrou a outra pelos bra\'e7os e come\'e7ou a suplicar de forma atropelada:
\par -Pelo amor de Deus, Luciana, n\'e3o diga nada ao Fl\'e1vio. Ele n\'e3o pode saber! Nunca poder\'e1 descobrir!
\par -Ei! Calma. Saber o qu\'ea? Descobrir o qu\'ea?
\par -Estou apaixonada por ele... realmente apaixonada...
\par -Puxa, Marcela, isso \'e9 muito bom. Fico feliz por voc\'ea.
\par -Mas ele n\'e3o pode saber! N\'e3o vai compreender e vai me abandonar.
\par Pela carga de temor em suas palavras, Luciana come\'e7ava a entender aquilo a que ela estava se referindo. Marcela era uma mo\'e7a fraca e medrosa, sempre tentando esconder
\par de todos sua condi\'e7\'e3o de l\'e9sbica. Antes, quando sa\'edam juntas, nunca deixava que a tocasse, ainda que de forma inocente, porque Luciana tamb\'e9m n\'e3o era dada a cenas
\par em p\'fablico. E agora, seu medo dobrava de intensidade, porque n\'e3o queria que o namorado descobrisse o que ela era ou fora.
\par -Voc\'ea n\'e3o contou a ele sobre n\'f3s? - perguntou Luciana.
\par -Eu!? De jeito nenhum! Fl\'e1vio n\'e3o vai entender, ningu\'e9m entende.
\par -Como \'e9 que voc\'ea sabe? Ele me pareceu bem simp\'e1tico.
\par -Voc\'ea n\'e3o o conhece. A fam\'edlia dele \'e9 superconservadora. Ele \'e9 m\'e9dico, o pai \'e9 dono de uma cl\'ednica ortop\'e9dica. Acha que eles v\'e3o aceitar uma coisa dessas?
\par -N\'e3o acha que est\'e1 exagerando? Afinal, voc\'ea n\'e3o fez nada demais.
\par -Nada demais? N\'f3s duas faz\'edamos amor, Luciana! Isso n\'e3o \'e9 nada demais?
\par -Na \'e9poca, voc\'ea me pareceu bem \'e0 vontade.
\par -Mas isso foi antes. Agora, n\'e3o posso.
\par -Voc\'ea o ama realmente, Marcela?
\par -Amo. Sei que pode parecer estranho, mas amo Fl\'e1vio desde o primeiro dia em que o vi... naquele hospital.
\par -Voc\'eas se conheceram no hospital?
\par Marcela balan\'e7ou a cabe\'e7a e esclareceu:
\par -Foi ele que me atendeu naquele dia... em que fiz aquela loucura.
\par -Entendo. E voc\'ea n\'e3o lhe contou por que tentou se matar?
\par -Como poderia? Ele demonstrou interesse por mim desde o come\'e7o. Pensa que eu fiz aquilo por causa de um ex-namorado, e eu fui deixando que acreditasse nisso,
\par at\'e9 o estimulei a crer nessa vers\'e3o. N\'e3o sei como ele n\'e3o descobriu... N\'e3o soube do seu retrato, Lu. Lembro-me de ter agarrado o seu retrato quando comecei a me
\par sentir sonolenta. Ele deve ter ca\'eddo no ch\'e3o.
\par -N\'e3o caiu. Foi Ma\'edsa quem o encontrou e o retirou das suas m\'e3os.
\par -Ma\'edsa? Quer dizer ent\'e3o que foi ela que me socorreu?
\par -Foi, sim. Naquele dia, quando sa\'ed de casa, fiquei preocupada com voc\'ea e pedi a Ma\'edsa para dar um pulo l\'e1. Foi sorte, porque ela chegou bem a tempo de chamar
\par os m\'e9dicos, e voc\'ea foi salva.
\par -Por que ela n\'e3o me disse nada?
\par -Sabe como \'e9 a Ma\'edsa: morre de medo de complica\'e7\'f5es com a pol\'edcia. Quando ela viu voc\'ea e o vidro de rem\'e9dios ao lado, ligou para a emerg\'eancia, tirou o retrato
\par das suas m\'e3os e foi embora.
\par -Ma\'edsa... S\'f3 agora descobri quem me salvou. Ningu\'e9m sabia de nada. Preciso agradecer a ela. Foi gra\'e7as a ela que pude conhecer o Fl\'e1vio.
\par -Voc\'ea pode fazer isso depois. No momento, o que me preocupa \'e9 esse seu medo de que seu namorado descubra sobre n\'f3s.
\par -Olhe, Luciana, n\'e3o quero que voc\'ea fique chateada por causa do Fl\'e1vio. Eu realmente amei muito voc\'ea e quase morri por sua causa.
\par -Eu n\'e3o estou chateada. Quando sa\'ed, expliquei-lhe direitinho
\par o que estava sentindo. Gosto de voc\'ea como uma irm\'e3 e quero a sua felicidade. Se Fl\'e1vio \'e9 a pessoa que voc\'ea escolheu para faz\'ea-la feliz, se voc\'ea o ama de verdade,
\par ent\'e3o, fico feliz tamb\'e9m.
\par -Obrigada - tornou ela, olhos \'famidos de emo\'e7\'e3o. - Tamb\'e9m gosto muito de voc\'ea, embora de uma forma diferente agora.
\par -Creio que n\'f3s duas desenvolvemos um amor mais sublime, n\'e3o foi? - Marcela assentiu. - Isso \'e9 muito bonito, e eu estou realmente contente. N\'e3o queria que
\par voc\'ea ficasse magoada ou com raiva de mim.
\par -Por que n\'e3o me procurou?
\par -Tive medo de que voc\'ea n\'e3o compreendesse o meu interesse e voltasse a sofrer. Mas tive not\'edcias suas o tempo todo. Breno conseguiu descobrir o hospital em
\par que voc\'ea estava, e eu sempre ligava. At\'e9 mandei flores.
\par -\'c9 verdade. Guardo o cart\'e3ozinho at\'e9 hoje.
\par -Podemos ser amigas daqui para a frente, Marcela. E \'e9 como amiga que vou lhe dar um conselho: n\'e3o inicie um relacionamento na mentira...
\par -Eu n\'e3o minto para o Fl\'e1vio.
\par -Mas est\'e1 escondendo dele algo que pode ser importante para o futuro de voc\'eas dois.
\par -Sim, pode ser importante. T\'e3o importante que ele vai terminar comigo se souber.
\par -N\'e3o vai.
\par -Como \'e9 que voc\'ea pode saber? Voc\'ea nem o conhece.
\par -A melhor coisa \'e9 sermos francos. Se disser a verdade e ele a amar, ainda que n\'e3o a compreenda de imediato, vai refletir e acabar aceitando. Afinal, o que
\par importa \'e9 o amor de voc\'eas dois no presente.
\par -N\'e3o posso correr esse risco. Tem id\'e9ia do que eu sofri quando voc\'ea me deixou? - N\'e3o esperou resposta e foi logo dizendo: - Sofri tanto que queria morrer...
\par Por am\'e1-la demais. Depois, conheci Fl\'e1vio e tudo se transformou. Penso que o amo como jamais amei voc\'ea. N\'e3o digo isso por despeito nem para que voc\'ea fique chateada.
\par Digo porque \'e9 a verdade. Vim aqui hoje, n\'e3o s\'f3 porque gosto de Ma\'edsa, mas para fazer um teste comigo mesma. Queria encontrar voc\'ea para ver o que sentia.
\par -E...?
\par -Achei-a linda, maravilhosa, a mulher mais deslumbrante do mundo. Mas n\'e3o \'e9 para mim. S\'f3 o que senti foi admira\'e7\'e3o e uma certa emo\'e7\'e3o por rev\'ea-la ap\'f3s quase
\par quatro meses. Afinal, fizemos uma hist\'f3ria juntas.
\par -\'c9 isso mesmo, temos uma hist\'f3ria. Uma hist\'f3ria que voc\'ea quer negar e apagar. Ningu\'e9m apaga o passado. Precisamos aceit\'e1-lo como ele foi, porque n\'e3o podemos
\par mais modific\'e1-lo. \'c9 com as experi\'eancias do passado que precisamos viver no presente e construir o futuro.
\par -N\'e3o estou negando o passado. Apenas n\'e3o quero que ele venha \'e0 tona.
\par -Quanto tempo acha que vai conseguir esconder isso de Fl\'e1vio? E se ele descobrir por outra pessoa?
\par -As \'fanicas pessoas que sabem de n\'f3s s\'e3o voc\'ea, Ma\'edsa e Breno.
\par -Nenhum de n\'f3s vai contar, com certeza. Ainda assim, ele pode descobrir.
\par -Como? De que jeito?
\par -N\'e3o sei... Uma carta, uma foto, sei l\'e1.
\par -Vou me desfazer de tudo. Se voc\'ea quiser, envio para voc\'ea.
\par -N\'e3o \'e9 esse o problema, Marcela, \'e9 a mentira. N\'e3o seria mais honesto lhe contar a verdade?
\par -Honesto, seria. Mas eu n\'e3o posso, n\'e3o tenho coragem. N\'e3o vou me arriscar a perder tudo novamente.
\par -Pense bem. Ningu\'e9m constr\'f3i uma vida feliz sobre a mentira. Voc\'ea vai perder a paz e o sossego, sempre com medo de que ele venha a descobrir. E a desconfian\'e7a?
\par Qualquer coisa, vai achar que ele descobriu.
\par -N\'e3o \'e9 bem assim. Pretendo esquecer esse assunto. Nosso relacionamento morre hoje aqui conosco. De agora em diante, agiremos como se sempre tiv\'e9ssemos sido
\par amigas.
\par Luciana ia retrucar, mas uma voz de homem interrompeu a conversa, fazendo com que ambas se sobressaltassem:
\par -H\'e1, h\'e1! A\'ed est\'e3o voc\'eas! Posso saber por que tanto segredinho?
\par Marcela afastou-se de Luciana e apertou Fl\'e1vio de encontro
\par ao peito, para que ele n\'e3o visse as pequenas l\'e1grimas que tinha presas nos olhos.
\par -N\'e3o estamos de segredinho - justificou Marcela. - \'c9 que Luciana tinha algo a me contar. Algo particular.
\par -Sei... Bem, isso n\'e3o \'e9 problema meu. Voc\'eas s\'e3o amigas, e eu n\'e3o posso me interpor entre a sua amizade. Mas agora podemos voltar?
\par -Podemos.
\par -N\'e3o vem conosco, Luciana?
\par -V\'e3o indo. Vou depois.
\par Eles se afastaram, e Luciana ficou olhando-os pensativa. O que Marcela estava fazendo era uma loucura inconseq\'fcente, mas ela n\'e3o tinha o direito de interferir. Se
\par fosse ela, teria contado a Fl\'e1vio na primeira oportunidade, mas Marcela n\'e3o pensava assim. Era medrosa, t\'e3o medrosa que preferia arriscar-se numa mentira a revelar
\par a verdade. Fl\'e1vio n\'e3o a deixaria. Ele parecia apaixonado e acabaria entendendo. N\'e3o fora compreensivo ao pensar que ela tentara o suic\'eddio por causa de um ex-namorado?
\par Por que n\'e3o demonstraria a mesma compreens\'e3o ao saber que o ex-namorado n\'e3o era namorado, mas namorada? Que diferen\'e7a havia se a pessoa se apaixonava por um homem
\par ou uma mulher? Ela mesma, por mais que s\'f3 gostasse de mulheres, n\'e3o teria nenhum problema em manter um relacionamento com um homem se, porventura, se apaixonasse
\par por ele. Mas a primeira coisa que faria seria lhe
\par contar a verdade, quer ele a aceitasse, quer n\'e3o.
\par * * *
\par De volta \'e0 festa, Luciana viu Marcela conversando a s\'f3s com Ma\'edsa e deduziu que ela deveria estar agradecendo por ter-lhe salvado a vida. A conversa terminou rapidamente,
\par e ela voltou para junto de Fl\'e1vio, que havia ido buscar algumas bebidas. Luciana estava chateada e sem vontade de conversar, por isso evitou a mesa dos amigos. Apanhou
\par uma ta\'e7a de champanha e saiu de novo para o jardim. Havia uma piscina ao fundo, e ela se debru\'e7ou sobre a grade que a separava da \'e1rea da festa, bebendo sua champanha
\par em sil\'eancio. Passado algum tempo, ouviu passos na
\par grama, e a sombra de uma mulher se aproximou. Luciana pensou que Marcela havia voltado e se virou, sentindo o cora\'e7\'e3o disparar involuntariamente, ao ver a mo\'e7a que
\par se aproximava.
\par -Est\'e1 se escondendo aqui? - perguntou Cec\'edlia, caminhando para perto dela.
\par -N\'e3o... Vim aqui para pensar. E voc\'ea? Chegou agora?
\par -Nesse instante.
\par -N\'e3o a vi na igreja.
\par -Ah! N\'e3o tenho paci\'eancia para serm\'e3o de padre. Acho casamento religioso uma chatice.
\par Luciana n\'e3o aprovou o coment\'e1rio, mas n\'e3o disse nada. Cec\'edlia ainda era jovem e n\'e3o devia compreender aquelas coisas.
\par -Veio sozinha? - tornou Luciana, fixando nela o olhar.
\par -Vim.
\par -E o namorado?
\par -N\'e3o tenho namorado.
\par -N\'e3o acredito! Uma garota linda feito voc\'ea!
\par -Voc\'ea tamb\'e9m \'e9 linda e n\'e3o parece ter ningu\'e9m.
\par Pela primeira vez, Luciana corou. Havia, nas palavras de Cec\'edlia, uma segunda inten\'e7\'e3o que ela podia claramente perceber, embora temesse acreditar que era o que
\par ela pensava que deveria ser.
\par -N\'e3o tenho tempo para namoros.
\par -Por qu\'ea? Voc\'ea j\'e1 tem consult\'f3rio montado, s\'f3 trabalha \'e0 tarde e n\'e3o tem uma agenda cheia de compromissos.
\par -N\'e3o estou interessada em ningu\'e9m.
\par -N\'e3o? Que pena!
\par O olhar de Cec\'edlia, seus l\'e1bios carnudos e \'famidos pareciam convidar Luciana para um beijo, mas ela se conteve. Embora a conversa da mo\'e7a soasse comprometedora, Luciana
\par tinha medo de estar enganada e assust\'e1-la. Al\'e9m disso, n\'e3o descartava a possibilidade de que Cec\'edlia j\'e1 houvesse percebido a sua prefer\'eancia e estivesse simplesmente
\par brincando com ela, para depois rejeit\'e1-la como se nada houvesse notado.
\par Contudo, n\'e3o podia deixar passar aquela oportunidade. Esperara por Cec\'edlia a noite toda e, agora que ela estava ali, tinha que arranjar um meio de n\'e3o permitir que
\par se fosse.
\par -Bom... - divagou com cautela - talvez esteja interessada em algu\'e9m, afinal.
\par -\'c9 mesmo? Em quem? Por acaso ele est\'e1 na festa? - Ela n\'e3o respondeu. - Ou ser\'e1 que n\'e3o \'e9 ele?
\par -Por que diz isso? - redarguiu Luciana calmamente.
\par -Por nada. Brincadeira.
\par -E voc\'ea? Est\'e1 interessada em algu\'e9m daqui?
\par -N\'e3o sei. Pode ser.
\par -Pode ser? E em quem seria?
\par -Estamos fazendo um jogo de adivinha\'e7\'e3o?
\par -N\'e3o estou fazendo jogo nenhum. Posso ser clara e objetiva, mas o respeito me aconselha cautela.
\par -Por que? A quem estaria desrespeitando?
\par -A voc\'ea, talvez.
\par -A mim? Por qu\'ea?
\par -Ser\'e1 que voc\'ea n\'e3o sabe? - ela meneou a cabe\'e7a, olhando para Luciana com um olhar divertido. - Se n\'e3o sabe nem desconfia, ent\'e3o \'e9 melhor eu me calar.
\par -Pode dizer.
\par Luciana j\'e1 estava ficando cheia daquela brincadeira e revidou friamente:
\par -N\'e3o tenho nada a dizer.
\par -N\'e3o acredito. Voc\'ea tem algo a me falar, mas lhe falta coragem.
\par -Engana-se, Cec\'edlia. O que me falta \'e9 colocar de lado o fato de que voc\'ea trabalha para mim e n\'e3o posso correr o risco de perder uma boa assistente. Nem quero
\par que voc\'ea saia por a\'ed dizendo que eu n\'e3o a respeitei e me aproveitei da minha condi\'e7\'e3o de patroa para... - calou-se abruptamente, fitando a outra nos olhos.
\par -Para qu\'ea?
\par Em vez de responder, Luciana puxou Cec\'edlia para si e beijou-a nos l\'e1bios, com inseguran\'e7a e medo de que ela a repelisse. Cec\'edlia, no entanto, n\'e3o fez nada disso,
\par correspondeu ao beijo com ardor e come\'e7ou a acariciar Luciana.
\par -Vamos para o meu apartamento - sugeriu Luciana, soprando em seu ouvido.
\par As duas sa\'edram rapidamente. Luciana s\'f3 se despediu de Ma\'edsa e Breno, que olharam para Cec\'edlia de soslaio e sorriram, j\'e1 sabendo do que se tratava.
\par -Olhe l\'e1, hein? - brincou Ma\'edsa. - N\'e3o v\'e1 me fazer perder a secret\'e1ria.
\par Luciana piscou para ela e saiu com Cec\'edlia. Da porta do sal\'e3o, ainda teve tempo de dar uma \'faltima espiada em Marcela, que dan\'e7ava com Fl\'e1vio e nada percebera. Foram
\par para o apartamento de Ma\'edsa, que agora estava vazio, e amaram-se por toda a noite. Ao final, Luciana estava saciada e feliz, e Cec\'edlia parecia assustada e insegura.
\par -Tudo bem? - perguntou Luciana, alisando os cabelos dela.
\par -Tudo...
\par -Ent\'e3o, por que essa carinha?
\par -\'c9 que nunca fiz isso antes. Voc\'ea foi minha primeira experi\'eancia.
\par -E...?
\par -Foi maravilhoso! Imagine s\'f3! Eu, que sempre acreditei em pr\'edncipe encantado, namorando outra mulher!
\par -Espere um momento. Quem foi que disse que n\'f3s estamos namorando?
\par -E n\'e3o estamos?
\par -Olhe, Cec\'edlia, n\'e3o quero magoar voc\'ea, mas n\'e3o posso mentir. N\'e3o estou querendo me envolver com ningu\'e9m por enquanto.
\par -Mas... e n\'f3s? E o que aconteceu?
\par -Tamb\'e9m achei maravilhoso e podemos repetir. Mas sem compromissos.
\par -Como assim?
\par -Voc\'ea ainda \'e9 a minha secret\'e1ria, e eu sou sua chefe. N\'e3o gostaria que voc\'ea misturasse as coisas.
\par -Fica dif\'edcil. Depois do que houve esta noite, n\'e3o posso mais ver voc\'ea somente como chefe.
\par -Lamento, mas tem que ser assim. Do contr\'e1rio, nossa rela\'e7\'e3o no trabalho vai acabar se tornando insustent\'e1vel.
\par -E voc\'ea vai me despedir, n\'e3o \'e9?
\par -N\'e3o foi isso que eu disse. S\'f3 n\'e3o quero que esse nosso relacionamento atrapalhe suas obriga\'e7\'f5es no trabalho. Voc\'ea n\'e3o \'e9 minha namorada; \'e9 minha secret\'e1ria.
\par -Mas como espera que eu me porte com voc\'ea depois desta noite? N\'e3o posso fingir que n\'e3o houve nada.
\par -Na frente de Ma\'edsa e dos clientes, aja com naturalidade, como se nunca tivesse havido nada mesmo. Quando estivermos a s\'f3s, podemos nos comportar de maneira
\par mais \'edntima.
\par -N\'e3o entendo. Voc\'ea diz que n\'e3o quer me namorar, mas podemos ter intimidades?
\par -Podemos ter um relacionamento, se voc\'ea quiser. Eu quero. Gosto de voc\'ea, acho-a linda e inteligente, mas n\'e3o quero nenhum compromisso s\'e9rio. Passei oito
\par anos da minha vida ao lado de uma pessoa e agora n\'e3o quero me prender a ningu\'e9m.
\par -Que pessoa? Uma mulher?
\par -N\'e3o interessa.
\par -Diga-me apenas se foi com uma mulher.
\par -Sim, foi com uma mulher, e n\'e3o pretendo me envolver com outra t\'e3o cedo.
\par -Mas, e se eu me apaixonar por voc\'ea? E se voc\'ea se apaixonar por mim?
\par -Se isso acontecer, aconteceu. Ningu\'e9m pode mandar no cora\'e7\'e3o. Mas quero que fique bem claro que entre n\'f3s n\'e3o h\'e1 nenhum compromisso. Se voc\'ea n\'e3o quiser
\par aceitar assim, eu compreendo. Essa noite foi \'f3tima, mas, a partir de amanh\'e3, tudo pode voltar a ser como antes e podemos agir como se nada tivesse acontecido.
\par Naquele momento, uma raiva imensur\'e1vel se apossou de Cec\'edlia, que teria mandado Luciana para o inferno, n\'e3o fosse o interesse que a movia. Desde que come\'e7ara a trabalhar,
\par tinha certeza de que Luciana era l\'e9sbica, pelo seu comportamento e pelos olhares discretos que lhe lan\'e7ava. Estava na cara que Luciana a admirava, e ela come\'e7ou
\par a arquitetar o seu plano.
\par O consult\'f3rio estava indo muito bem, e o dinheiro entrava em quantidade. Fazia um m\'eas que ela estava trabalhando l\'e1, e logo na primeira semana teve aquela id\'e9ia
\par brilhante. Luciana parecia uma mulher dura e meio rebelde, o que Cec\'edlia atribuiu ao fato de ela ser l\'e9sbica num mundo masculino cheio de preconceitos. E era solit\'e1ria
\par tamb\'e9m. Ela n\'e3o sabia da exist\'eancia de outra na vida de Luciana e pensava que ela vivia sozinha por medo de se expor. Agora, contudo, via que a solid\'e3o de Luciana
\par era deliberada, e ela n\'e3o tinha ningu\'e9m porque n\'e3o queria se envolver.
\par Aquilo atrapalharia seus planos. Cec\'edlia estava disposta a conquistar o cora\'e7\'e3o, a confian\'e7a e a carteira de Luciana. Se ela se apaixonasse, tinha certeza de que
\par tudo lhe daria para torn\'e1-la
\par feliz. E Cec\'edlia queria uma vida f\'e1cil. Estava trabalhando e era ambiciosa, mas n\'e3o pretendia seguir carreira como secret\'e1ria. Aquilo n\'e3o tinha futuro. S\'f3 arranjara
\par aquele emprego porque o pai exigira, amea\'e7ando coloc\'e1-la para fora de casa, se ela n\'e3o colaborasse com as despesas. Mas n\'e3o queria trabalhar. Queria algu\'e9m que a
\par sustentasse e precisava se empenhar para alcan\'e7ar o seu intento.
\par Quando aceitou aquele emprego, n\'e3o imaginava que estaria ali a chance que procurava. A princ\'edpio, concordou com o trabalho porque precisava do dinheiro e o sal\'e1rio
\par era bom. Mentiu para as donas do consult\'f3rio, fazendo-as crer que o mais importante era estar empregada, e esfor\'e7ou-se o m\'e1ximo que p\'f4de para aprender aquele of\'edcio
\par chato e ma\'e7ante. Aprendeu a tirar radiografias e preparar massas e inje\'e7\'f5es, embora tivesse horror a tudo aquilo e visasse apenas o dinheiro.
\par Logo nos primeiros dias, percebeu o interesse de Luciana. Por mais que ela tentasse disfar\'e7ar, Cec\'edlia conhecia muito bem aqueles olhares. Estava acostumada a ser
\par assediada pelos rapazes e, embora nunca antes houvesse se envolvido com uma mulher, as rea\'e7\'f5es n\'e3o eram muito diferentes. O desejo falava igual nas pessoas de qualquer
\par sexo e qualquer prefer\'eancia. No come\'e7o, estranhou a id\'e9ia de se entregar a outra mulher e precisou de um tempo at\'e9 se acostumar, mas o casamento de Ma\'edsa pareceu
\par uma boa oportunidade para experimentar sua nova forma de sedu\'e7\'e3o.
\par Deu certo. Contando com o interesse de Luciana, que fatalmente estaria esperando que ela comparecesse \'e0 festa, Cec\'edlia se atrasou de prop\'f3sito. N\'e3o gostava mesmo
\par de cerim\'f4nia religiosa e dispensou-a, s\'f3 aparecendo na recep\'e7\'e3o bem mais tarde, quando achou que Luciana j\'e1 devia ter perdido as esperan\'e7as de que ela fosse. Dito
\par e feito. Luciana estava sozinha e triste, e demonstrou uma alegria contagiante logo que a viu. Dali para o sexo, foi um pulo. Cec\'edlia usou com Luciana as mesmas
\par manhas que utilizava quando queria envolver algum homem, e ela caiu feito um patinho. Na hora do beijo, pensou que fosse desistir, mas at\'e9 que gostou e correspondeu
\par sem maiores problemas.
\par Tudo estava saindo muito mais f\'e1cil do que ela imaginava. O \'fanico problema era que Luciana n\'e3o queria se envolver, e ela
\par precisava fazer com que Luciana se apaixonasse por ela. Mas como? Precisava ser esperta e agir com calma, ou a outra se afastaria dela e ainda a dispensaria do emprego.
\par Ao contr\'e1rio do que ela imaginara, Luciana era uma mulher segura e decidida, e n\'e3o uma l\'e9sbica solit\'e1ria e amarga, pronta para cair nos bra\'e7os de qualquer uma que
\par lhe desse aten\'e7\'e3o e lhe saciasse o desejo.
\par Pensando nisso, Cec\'edlia engoliu a raiva e retrucou com aparente docilidade:
\par -Acho que voc\'ea tem raz\'e3o, Luciana. Um envolvimento n\'e3o seria bom para nenhuma de n\'f3s. N\'f3s temos uma rela\'e7\'e3o de trabalho que poderia ficar abalada se nos
\par envolv\'eassemos emo-cionalmente. E eu preciso do emprego.
\par -Fico feliz que pense assim. Tamb\'e9m preciso da secret\'e1ria, e voc\'ea \'e9 muito boa no que faz.
\par Luciana encerrou a conversa com um beijo e foi tomar banho, deixando Cec\'edlia remoendo a raiva.
\par Na segunda-feira, quando Luciana chegou ao consult\'f3rio, cumprimentou Cec\'edlia formalmente, porque havia um cliente na sala de espera. Ma\'edsa viajara em lua de mel
\par e s\'f3 retornaria dali a quinze dias, de forma que ela estava sozinha, atendendo inclusive alguns pacientes de Ma\'edsa com casos mais urgentes.
\par No fim do dia, depois que todos os clientes haviam sa\'eddo, Cec\'edlia come\'e7ou a arrumar a mesa, guardando fichas e somando os cheques, e Luciana se aproximou. Cec\'edlia
\par n\'e3o queria parecer ansiosa e limitou-se a olh\'e1-la, contendo a ansiedade. Se demonstrasse excessivo interesse, Luciana logo se cansaria dela, e era por isso que precisava
\par se fazer de dif\'edcil.
\par -Deseja alguma coisa, Luciana? - perguntou ela, de forma estudadamente profissional.
\par Luciana n\'e3o respondeu. Puxou-a para si e amou-a ali mesmo, no sof\'e1 da sala de espera, para regozijo de Cec\'edlia. Efetivamente, aquele era o caminho certo. Luciana
\par n\'e3o gostava de mulheres carentes nem que se apegassem a ela, e Cec\'edlia estava disposta a fazer o papel de desligada e desinteressada.
\par Ao final, Luciana se levantou e come\'e7ou a se vestir, falando com satisfa\'e7\'e3o:
\par -Voc\'ea \'e9 maravilhosa, Cec\'edlia. Sabia que n\'e3o me enganaria com voc\'ea.
\par -Gosto muito de voc\'ea, Luciana, mas cheguei \'e0 conclus\'e3o de que tamb\'e9m n\'e3o quero me envolver. Ainda sou muito nova, quero experimentar outras coisas na vida.
\par Com uma express\'e3o indefin\'edvel no olhar, Luciana considerou:
\par -Fez uma op\'e7\'e3o segura e sensata, mas tenha cuidado com o que vai experimentar.
\par N\'e3o esperou resposta. Atirou um beijo no ar, apanhou a bolsa e saiu em dire\'e7\'e3o ao ponto de \'f4nibus. Precisava comprar um carro, mas primeiro tinha que pensar no apartamento.
\par Ma\'edsa se mudara, e o propriet\'e1rio n\'e3o queria alugar para ela. Dera-lhe um prazo de noventa dias para que ela se mudasse, tempo mais do que suficiente para encontrar
\par outro lugar.
\par No consult\'f3rio, Cec\'edlia exultava. Tinha certeza de que Luciana sa\'edra com os pensamentos voltados para ela, embora com medo de assumir. N\'e3o sabia, sequer imaginava,
\par que Luciana deixara de pensar nela assim que cruzara a porta da rua, os pensamentos tomados por coisas pr\'e1ticas que requeriam a sua aten\'e7\'e3o.
\par ***
\par De tanto Dolores insistir, Fl\'e1vio acabou por concordar em levar Marcela a um almo\'e7o em sua casa, no s\'e1bado seguinte ao casamento de Ma\'edsa. Marcela estava insegura,
\par sem saber como se portar diante de uma mulher t\'e3o distinta e requintada.
\par -Voc\'ea n\'e3o tem que se preocupar com nada - tranq\'fcilizou Fl\'e1vio. - Mam\'e3e pode parecer meio austera a princ\'edpio, mas n\'e3o \'e9 nenhuma megera.
\par -N\'e3o \'e9 isso... - argumentou Marcela. - \'c9 que nunca me vi numa situa\'e7\'e3o como essa antes.
\par -Que situa\'e7\'e3o? De conhecer a m\'e3e do namorado?
\par Ela ficou confusa e terminou por gaguejar:
\par -\'c9... isto \'e9, assim, t\'e3o de repente.
\par -N\'e3o \'e9 de repente. J\'e1 estamos juntos h\'e1 quatro meses, e pretendo assumir um compromisso formal com voc\'ea - notando o seu embara\'e7o, ele emendou: - Voc\'ea n\'e3o
\par quer?
\par -Quero...
\par -Voc\'ea n\'e3o me parece muito segura. Ser\'e1 que n\'e3o me ama?
\par -Amo...
\par -Se me ama, do que tem medo?
\par -De nada... Na verdade, tenho medo do meu passado...
\par Aquele era um terreno espinhoso, e Marcela temia acabar
\par revelando mais do que deveria. O que diria a m\'e3e de Fl\'e1vio se soubesse que ela tentara se matar por causa de outra mulher? Era preciso ocultar a verdade a qualquer
\par pre\'e7o.
\par -Se voc\'ea est\'e1 com medo de que mam\'e3e saiba que voc\'ea tentou suic\'eddio por causa de um ex-namorado, n\'e3o precisa se preocupar. Ela n\'e3o sabe de nada e, se depender
\par de mim, nunca vai saber.
\par -Voc\'ea n\'e3o lhe contou?
\par -N\'e3o. Por que contaria? Minha m\'e3e n\'e3o tem nada com a minha vida ou a sua, e n\'e3o sou homem de ficar dando explica\'e7\'f5es. Nem ela, nem meu pai sabem dessa particularidade
\par da sua vida.
\par -Obrigada, Fl\'e1vio - murmurou ela aliviada. - Eu n\'e3o saberia o que dizer se ela descobrisse a verdade.
\par -Voc\'ea n\'e3o precisa dizer nada. N\'e3o por vergonha ou medo, mas porque a sua vida s\'f3 a voc\'ea diz respeito. Voc\'ea n\'e3o \'e9 obrigada a revelar a sua vida a ningu\'e9m.
\par O seu passado s\'f3 a voc\'ea pertence.
\par -Voc\'ea acha mesmo isso? - admirou-se Marcela.
\par -\'c9 claro que acho.
\par -N\'e3o gostaria de conhecer o meu passado?
\par -J\'e1 sei de tudo o que interessa. O que voc\'ea fez antes de me conhecer n\'e3o \'e9 da minha conta. Se dormiu com um, dois ou dez homens, n\'e3o \'e9 problema meu.
\par Marcela n\'e3o disse nada. Ele parecia muito honesto no que dizia, ainda mais porque pensava, realmente, que ela tivera outro homem antes dele. Mas o que diria se sua
\par paix\'e3o anterior n\'e3o fosse por um homem, mas por outra mulher? De qualquer forma, n\'e3o iria lhe dizer. N\'e3o at\'e9 ter certeza de que ele entenderia e n\'e3o a julgaria nem
\par condenaria.
\par ***
\par Quando s\'e1bado chegou, fazia um dia de muito sol e c\'e9u azul, e Fl\'e1vio foi buscar Marcela por volta das onze horas. Ela estava muito bonita num vestido branco florido,
\par e ele a elogiou v\'e1rias vezes. A pr\'f3pria Marcela se envaidecia de sua rec\'e9m-descoberta feminilidade e tudo fazia para agrad\'e1-lo e deix\'e1-lo impressionado com a sua
\par beleza.
\par Chegaram \'e0 casa de Fl\'e1vio \'e0s onze e meia, e Dolores estava sentada na varanda dos fundos, bebendo um refresco, \'e0 sua espera. Quando eles entraram, ela se levantou
\par e estendeu a m\'e3o para Marcela, dizendo com uma cordialidade estudada e falsa:
\par -Mas ent\'e3o, \'e9 voc\'ea a Marcela. Agora entendo por que Fl\'e1vio ficou t\'e3o impressionado com voc\'ea.
\par O rosto de Marcela ardia profundamente, mas ela conseguiu se controlar e apertou a m\'e3o de Dolores.
\par -Muito prazer em conhec\'ea-la, dona Dolores. Fl\'e1vio fala muito bem da senhora.
\par -Isso n\'e3o me surpreende. Tenho um filho maravilhoso e espero que ele esteja me arranjando uma nora \'e0 altura.
\par -Deixe disso, mam\'e3e - cortou Fl\'e1vio, notando o constrangimento de Marcela.
\par -N\'e3o seja implicante - repreendeu ela. - Marcela e eu vamos ser muito amigas, n\'e3o \'e9 Marcela?
\par -Vamos... - respondeu Marcela hesitante.
\par -Viu s\'f3? Por isso, n\'e3o me amole. Tenho certeza de que ela corresponde bem \'e0s minhas expectativas de m\'e3e e n\'e3o vai me decepcionar.
\par Para desfazer o mal-estar, Fl\'e1vio tomou Marcela pela m\'e3o e desceu com ela os tr\'eas degraus que dariam no jardim.
\par -Vou mostrar a casa a Marcela - avisou \'e0 m\'e3e. - Voltaremos na hora do almo\'e7o.
\par Dolores pensou em protestar, mas tinha que se controlar. Sua vontade era de desmascarar aquela ca\'e7a-dotes ali mesmo, mas precisava agir com cautela. Fl\'e1vio parecia
\par muito interessado na mo\'e7a, e ela n\'e3o podia trat\'e1-la mal. N\'e3o entendia o que o filho vira naquela lambisgoia. Era bonita, de fato, mas beleza n\'e3o era tudo, e Ariane
\par era ainda mais bonita e tinha mais classe. N\'e3o sabia se era inteligente, mas devia ser, porque Fl\'e1vio lhe dissera que ela era professora de portugu\'eas, formada em
\par literatura.
\par Pelo seu comportamento, parecia uma mo\'e7a apagada e insegura, e acabaria dependendo de Fl\'e1vio para tudo. Aquilo poderia ser uma vantagem, porque pessoas fracas eram
\par facilmente manipul\'e1veis, mas ela n\'e3o tinha estilo. Era uma pobretona sem eira nem beira, n\'e3o tinha ber\'e7o nem educa\'e7\'e3o. Tinha jeito de empregadinha e ar subalterno.
\par Bem se via que era de origem humilde, para n\'e3o dizer inferior. E ela, Dolores C\'e2ndida Raposo, jamais permitiria que seu filho se casasse com uma gentinha feito ela.
\par No jardim, Marcela e Fl\'e1vio passeavam de m\'e3os dadas, e a mo\'e7a ia dizendo:
\par -Sua m\'e3e n\'e3o gostou de mim.
\par -Bobagem! Minha m\'e3e \'e9 assim mesmo.
\par -Ela pensa que eu n\'e3o sirvo para voc\'ea.
\par -Ela disse isso? Eu n\'e3o ouvi.
\par -Dava para perceber pelo jeito dela.
\par -Impress\'e3o sua. Ela quer apenas conhec\'ea-la melhor, e \'e9 natural que se interesse pela mulher com quem vou me casar.
\par -Casar!?
\par -Eu n\'e3o disse que queria assumir um compromisso s\'e9rio?
\par -Mas voc\'ea n\'e3o falou em casamento.
\par -Estou falando agora. Quer se casar comigo?
\par -Tenho medo...
\par -Voc\'ea n\'e3o me ama?
\par -Amo.
\par -Tem certeza? - ela assentiu. - Certeza absoluta?
\par -Tenho...
\par -Ent\'e3o, n\'e3o h\'e1 o que temer.
\par -Mas... e se sua m\'e3e n\'e3o me aceitar?
\par -Esque\'e7a minha m\'e3e. Quem tem que aceit\'e1-la sou eu, n\'e3o ela.
\par -E se ela descobrir o meu passado?
\par -De novo com essa hist\'f3ria de passado? Voc\'ea fala como se fosse uma criminosa ou algo parecido. J\'e1 esteve presa?
\par -Deus me livre!
\par -Andou metida em algum seq\'fcestro, roubo ou prostitui\'e7\'e3o?
\par -\'c9 claro que n\'e3o!
\par -Ent\'e3o, isso de passado \'e9 tolice, e voc\'ea n\'e3o devia voltar a essa hist\'f3ria. O seu passado n\'e3o me interessa, j\'e1 disse.
\par -Tem certeza? E se eu tiver feito algo que voc\'ea n\'e3o aprove?
\par -O qu\'ea?
\par -Sei l\'e1... Ter vivido com outra mulher, por exemplo.
\par -Como \'e9 que \'e9? - ele soltou uma gargalhada. - Mas que besteira! Desde quando voc\'ea \'e9 mulher de se envolver nessas esquisitices?
\par -Acha esquisitice?
\par -Ser l\'e9sbica? - ela aquiesceu. - Acho, sim. Mulher direita n\'e3o se mete com esse tipo de gente.
\par -Voc\'ea \'e9 preconceituoso!
\par -N\'e3o sei se sou preconceituoso. Olhe, Marcela, n\'e3o sei por que estamos conversando sobre isso. N\'e3o tem nada a ver com voc\'ea.
\par -Sei que n\'e3o... Mas gostaria de saber o que voc\'ea pensa a respeito.
\par -Por qu\'ea?
\par -Por nada. Curiosidade, apenas. Voc\'ea \'e9 m\'e9dico, e n\'e3o dizem que os m\'e9dicos n\'e3o podem ter preconceito?
\par -N\'e3o \'e9 bem assim. Se aparecer no meu consult\'f3rio uma l\'e9sbica ou um homossexual, vou atend\'ea-los normalmente. A vida \'e9 deles, e eu n\'e3o tenho nada com isso.
\par Minha fun\'e7\'e3o \'e9 cuidar da vida e da sa\'fade das pessoas, e \'e9 o que pretendo fazer, independentemente da pessoa que precise de meus cuidados. Mas n\'e3o entendo muito bem
\par a escolha que essa gente faz e n\'e3o gostaria de ningu\'e9m na minha fam\'edlia envolvido com isso. Muito menos a mulher com quem vou-me casar. - Marcela engoliu em seco,
\par decepcionada, e Fl\'e1vio considerou: - Voc\'ea n\'e3o tem nada a ver com isso, tem?
\par -\'c9 claro que n\'e3o! - mentiu ela, agora decidida a n\'e3o deixar que ele descobrisse a verdade. - Deus me livre de ter rela\'e7\'f5es com uma mulher! Acho nojento.
\par Assim que terminou de dizer essas palavras, Marcela sentiu-se mal. Estava traindo um sentimento que a alimentara por oito anos, traindo a pessoa com quem dividira
\par a sua vida por todo aquele tempo e lhe dera muito mais do que amor e amizade; traindo a si mesma, negando que fora feliz e se realizara ao lado de Luciana. Como
\par podia agora se desfazer de tudo aquilo, falando coisas que n\'e3o pensava ou sentia, apenas por medo de perder o homem por quem se julgava apaixonada?
\par Sua consci\'eancia lhe dizia que aquele era o momento de revelar a Fl\'e1vio toda a verdade. Talvez ele n\'e3o fosse t\'e3o preconceituoso, afinal. Se realmente a amasse, saberia
\par entender aquele seu momento e n\'e3o a julgaria ou criticaria pelo que fizera. Afinal, n\'e3o fora ele mesmo quem dissera que o seu passado n\'e3o lhe importava? Por outro
\par lado, era o mesmo Fl\'e1vio quem dizia que mulher direita n\'e3o se metia com aquelas coisas, e n\'e3o gostaria de se envolver com mulheres daquele tipo. Do mesmo tipo que
\par ela era.
\par O medo a fez calar-se novamente. N\'e3o negaria para si mesma
\par tudo o que vivera e sentira por Luciana, mas tamb\'e9m n\'e3o podia correr o risco de perder a pessoa que amava naquele momento. Luciana fora o grande amor de sua vida,
\par mas o que ela agora sentia por Fl\'e1vio ia crescendo a cada dia, e Marcela come\'e7ava a pensar que n\'e3o poderia viver sem ele, assim como um dia achou que n\'e3o conseguiria
\par viver sem Luciana. S\'f3 que Luciana fora passado. Fl\'e1vio representava o presente e o futuro.
\par -Vamos voltar? - ela ouviu Fl\'e1vio dizer, enquanto a puxava pela m\'e3o. - Estou vendo mam\'e3e acenando da varanda.
\par Efetivamente, Dolores acenava para eles da porta, chamando-os para o almo\'e7o. Fl\'e1vio foi conduzindo Marcela pela alameda do imenso jardim, e a conversa se perdeu
\par no ar. Apesar de achar estranho aquele assunto, Fl\'e1vio n\'e3o pensou mais nele. N\'e3o tinha nada a ver com Marcela, e ele preferia nem imaginar que ela pudesse ter-se
\par envolvido com l\'e9sbicas.
\par -O almo\'e7o est\'e1 servido - anunciou Dolores, logo que eles subiram os degraus da varanda. - N\'e3o vamos deixar a comida esfriar, n\'e3o \'e9 mesmo?
\par Os tr\'eas entraram na sala de jantar, e Dolores indicou o lugar em que Marcela deveria se sentar, do lado oposto de Fl\'e1vio.
\par -O que temos para comer? - indagou Fl\'e1vio, cheirando as travessas.
\par -Mandei fazer lagosta com salada de camar\'e3o - avisou Dolores. - Marcela me parece uma mo\'e7a simples, e eu n\'e3o queria fazer nada formal.
\par Lagosta? Marcela jamais comera lagosta em toda a sua vida. Nem sabia como retir\'e1-la da travessa e coloc\'e1-la no prato, mas Fl\'e1vio n\'e3o se deixou intimidar. Mandou
\par que a servissem e cortou tudo para ela, sob o olhar malicioso da m\'e3e.
\par -Marcela \'e9, realmente, uma mo\'e7a de gostos simples, mam\'e3e - esclareceu ele. - E ningu\'e9m que \'e9 simples come lagosta. Por que n\'e3o escolheu um prato menos complicado?
\par -Oh! Desculpe-me, querida. Pensei que voc\'ea estivesse acostumada e soubesse se servir.
\par Fl\'e1vio fuzilou-a com o olhar, mas n\'e3o respondeu. Parecia claro agora que a m\'e3e estava se esfor\'e7ando para deixar Marcela
\par sem gra\'e7a desde o come\'e7o. N\'e3o quis acreditar
\par achando que a inseguran\'e7a de Marcela a fazia imaginar coisas, mas agora reconhecia que servir um prato de lagosta a uma pessoa como Marcela era, no m\'ednimo, maldoso.
\par -Coma, meu bem - disse ele para Marcela, vendo que ela n\'e3o se mexia. - Voc\'ea vai gostar.
\par Bem lentamente, Marcela levou o garfo \'e0 boca e experimentou a lagosta. Estava gostosa, mas ela temia fazer algo inapropriado e olhou para Fl\'e1vio, pedindo socorro.
\par O olhar que ele lhe devolveu transmitiu-lhe tranq\'fcilidade, e ela acabou comendo tudo, lutando contra a vergonha e o embara\'e7o.
\par -Fl\'e1vio me disse que o seu pai \'e9 padeiro - comentou Dolores, com aquele ar de mal disfar\'e7ada mal\'edcia.
\par -Meu pai \'e9 dono de uma padaria, sim - confirmou Marcela.
\par -A vida de um padeiro deve ser emocionante! - ironizou ela, mordiscando a lagosta e evitando o olhar de censura do filho. - Levantar todo dia \'e0s quatro da
\par manh\'e3 para fabricar todo tipo de p\'e3o!
\par -N\'e3o sei se \'e9 emocionante - respondeu Marcela, sentindo o rubor cobrindo-lhe as faces. - Mas \'e9 um trabalho digno, e meu pai se esfor\'e7ou muito para conseguir
\par o seu pr\'f3prio neg\'f3cio.
\par -Imagino que sim... - deu um risinho mordaz e prosseguiu: - H\'e1 quanto tempo voc\'ea saiu de casa?
\par -Desde que vim estudar no Rio, h\'e1 cerca de oito anos.
\par -E n\'e3o tem visto os seus pais desde ent\'e3o?
\par -N\'e3o...
\par -Campos \'e9 muito longe, mam\'e3e - intercedeu Fl\'e1vio. - N\'e3o d\'e1 para ficar indo e vindo a toda hora.
\par -Ah! E a passagem de \'f4nibus deve ser muito cara tamb\'e9m.
\par -Isso n\'e3o nos interessa, n\'e3o \'e9 mesmo? - era Fl\'e1vio novamente.
\par -Nem um pouco! - disse Dolores. - Bem, voc\'ea veio para o Rio estudar letras, n\'e3o \'e9 mesmo?
\par -Sim, senhora.
\par -E hoje d\'e1 aulas.
\par -Dou. Numa escola normal.
\par -\'c9 muito bom ter um emprego nos dias de hoje, n\'e3o \'e9? Quer dizer, ser professora \'e9 melhor do que estar desempregada.
\par -Marcela \'e9 professora concursada - defendeu Fl\'e1vio. - E muito capaz.
\par -Imagino que sim. E deve ganhar bem.
\par -O suficiente para viver com uma certa tranq\'fcilidade - respondeu Marcela, cheia de orgulho.
\par -O que isso nos importa, m\'e3e? - censurou Fl\'e1vio. - Quanto Marcela ganha \'e9 problema dela.
\par Dolores ignorou o coment\'e1rio de Fl\'e1vio e prosseguiu em tom inquisidor:
\par -Suponho que voc\'ea pretende deixar de trabalhar depois que se casar com meu filho.
\par -Quem foi que disse que vamos nos casar? - explodiu Fl\'e1vio.
\par -N\'e3o \'e9 para isso que est\'e3o namorando? Com certeza, os dois n\'e3o t\'eam mais idade para namoricos de passatempo. Fl\'e1vio j\'e1 vai fazer trinta anos, e voc\'ea n\'e3o \'e9
\par mais nenhuma garotinha.
\par -A idade de Marcela n\'e3o \'e9 problema seu, mam\'e3e - rebateu Fl\'e1vio, bastante aborrecido. E, virando-se para a mo\'e7a: - J\'e1 terminou de comer?
\par Marcela aquiesceu e limpou os l\'e1bios no guardanapo, preparando-se para se levantar da mesa quando Dolores a impediu:
\par -Deixem de bobagens, voc\'eas dois, e terminem de almo\'e7ar.
\par -Voc\'ea est\'e1 sendo grosseira, mam\'e3e - afirmou Fl\'e1vio. - Est\'e1 me envergonhando na frente de Marcela.
\par -Estou? Perdoem-me, n\'e3o era essa a minha inten\'e7\'e3o. Voc\'ea sabe como eu sou, Fl\'e1vio, vou falando as coisas sem nem me dar conta. N\'e3o sabia que estava ofendendo
\par Marcela.
\par -N\'e3o faz mal - contemporizou Marcela. - N\'e3o foi nada.
\par -Viu s\'f3? Ela nem se aborreceu.
\par -Marcela s\'f3 est\'e1 sendo gentil, coisa que voc\'ea n\'e3o \'e9.
\par -J\'e1 pedi desculpas. N\'e3o queria ofender ningu\'e9m.
\par -Deixe para l\'e1, Fl\'e1vio - disse Marcela. - Tenho certeza de que sua m\'e3e n\'e3o fez por mal. N\'e3o vamos nos aborrecer por causa disso.
\par -Muito bem, Marcela. Voc\'ea \'e9 uma mo\'e7a sens\'edvel e sensata.
\par -Ent\'e3o, vamos mudar de assunto - retrucou Fl\'e1vio carrancudo.
\par A conversa mudou de rumo, e Dolores riu intimamente. N\'e3o
\par podia perder a chance de humilhar a mo\'e7a, ainda que n\'e3o houvesse ningu\'e9m para assistir. Contudo, precisava refrear a sua \'e2nsia de mostrar a Fl\'e1vio que tipo de mulher
\par era aquela, porque ele
\par acabaria se zangando, e sua atra\'e7\'e3o por ela aumentaria. Afinal, nada melhor do que uma mocinha desprotegida e carente para atrair a aten\'e7\'e3o de um homem firme e protetor
\par feito Fl\'e1vio. Mas sabia que precisava destruir aquele namoro. Jamais permitiria que seu filho estragasse a vida com uma professorinha de escola normal sem classe
\par nem distin\'e7\'e3o.
\par Como faria para separar aqueles dois? A mo\'e7a viera de Campos e n\'e3o via a fam\'edlia h\'e1 anos. Por que sa\'edra de sua cidade e nunca mais retornara? Por que nem sequer
\par mantinha contato com os pais? Uma mo\'e7a que sai de casa cedo para viver numa cidade grande, na certa, n\'e3o tem o apoio da fam\'edlia. Que pai permitiria que a filha solteira
\par fosse morar sozinha no Rio de Janeiro? A n\'e3o ser que a fam\'edlia n\'e3o ligasse para ela. Ou ent\'e3o, que ela tivesse fugido de casa.
\par Descobrir tudo sobre seu passado talvez fosse um caminho, mas Fl\'e1vio n\'e3o se deixaria impressionar por nada que se referisse \'e0 fam\'edlia de Marcela. Fl\'e1vio n\'e3o era
\par de se importar com regras de etiqueta e linhagem, e se os pais de Marcela n\'e3o fossem pessoas dignas ou honestas, ele n\'e3o ligaria. Decididamente, encontrar segredos
\par escabrosos dos pais da mo\'e7a n\'e3o serviria para nada. O que ela precisava era de algo na vida da pr\'f3pria Marcela, algo que lhe dissesse respeito diretamente e chocasse
\par ou desgostasse
\par o filho a tal ponto que ele nunca mais quisesse olhar para ela.
\par ***
\par Enquanto isso, em casa de Ariane, a situa\'e7\'e3o come\'e7ava a ficar insustent\'e1vel. Os pais viviam brigando, porque a m\'e3e desconfiava que N\'e9lson estivesse tendo um caso
\par com algu\'e9m. Os dois discutiam no quarto, mas a janela aberta facilitava que Ariane escutasse toda a conversa.
\par -N\'e3o suporto mais isso! - afirmava Anita. - Voc\'ea n\'e3o me d\'e1 mais aten\'e7\'e3o, n\'e3o me procura mais.
\par -Tenho andado ocupado - desculpou-se N\'e9lson, sem a encarar.
\par -As coisas entre n\'f3s j\'e1 n\'e3o s\'e3o mais as mesmas. Voc\'ea anda frio, distante... Tenho certeza de que arranjou outra mulher.
\par -Voc\'ea est\'e1 imaginando coisas. N\'e3o tenho tempo para mais ningu\'e9m.
\par -N\'e3o \'e9 verdade, eu sinto isso.
\par -Pare de me amolar, Anita. Tenho mais o que fazer.
\par Com ar irritado, N\'e9lson virou-lhe as costas e saiu do quarto, deixando-a entregue a profunda tristeza. Havia algo de errado com o seu casamento, e Anita sabia o
\par que era: ela. Desde o nascimento de seu \'faltimo filho, onze anos antes, ganhara peso e jamais conseguira se recuperar. De l\'e1 para c\'e1, o interesse de N\'e9lson foi minguando,
\par at\'e9 que, um dia, ele deixou de procur\'e1-la para o sexo, dando-lhe a certeza de que arranjara outra mulher.
\par Agora, ent\'e3o, as coisas pareciam bem piores. Al\'e9m de frio, ele andava irritadi\'e7o e mal-humorado, e n\'e3o se preocupava mais em manter as apar\'eancias. N\'e3o a levava para
\par jantar fora e s\'f3 comparecia acompanhado \'e0s recep\'e7\'f5es e festas quando absolutamente necess\'e1rio. Sem contar que a situa\'e7\'e3o financeira de ambos estava beirando a ru\'edna.
\par N\'e9lson n\'e3o falava, mas ela tinha certeza de que a cl\'ednica n\'e3o ia bem. Desde que Justino desfizera a sociedade, os neg\'f3cios pareciam ir de mal a pior. N\'e9lson era
\par p\'e9ssimo administrador, e ela ainda duvidava de suas habilidades m\'e9dicas.
\par De onde estava, Ariane percebeu a sa\'edda do pai e, chegando mais perto da janela, ouviu solu\'e7os abafados, deduzindo que a m\'e3e estava chorando. Ainda pensou algumas
\par vezes se deveria ou n\'e3o ir ao seu quarto, at\'e9 que decidiu ir. Aquela situa\'e7\'e3o a incomodava, e ela n\'e3o suportava mais ver a m\'e3e naquele estado. Bateu de leve na porta,
\par mas Anita n\'e3o respondeu, e ela entrou lentamente.
\par -M\'e3e - chamou ela, tocando no ombro de Anita, que tinha o rosto afundado nos travesseiros. - Voc\'ea est\'e1 bem?
\par Anita levantou a cabe\'e7a, enxugou os olhos vermelhos e se levantou.
\par -Estou bem - respondeu fungando. - Acho que peguei um resfriado.
\par -Pare de se enganar, voc\'ea n\'e3o tem resfriado algum. Brigou com papai de novo, n\'e3o foi?
\par -Seu pai est\'e1 diferente...
\par -Por que diz isso?
\par -N\'e3o \'e9 poss\'edvel que voc\'ea n\'e3o note como ele me trata - ela n\'e3o respondeu. - Ele n\'e3o me quer mais, sinto isso.
\par -Por qu\'ea?
\par -E eu \'e9 que sei?
\par A \'faltima coisa que Ariane queria era magoar a m\'e3e, mas aquilo j\'e1 estava indo longe demais. Algu\'e9m precisava despert\'e1-la para a realidade, e era isso que ela acabaria
\par fazendo:
\par -Ser\'e1 que posso lhe falar uma coisa, m\'e3e? Com toda a sinceridade?
\par -O que \'e9?
\par -Voc\'ea n\'e3o vai me levar a mal nem ficar chateada?
\par -N\'e3o. O que \'e9? Pode dizer.
\par -N\'e3o quero que voc\'ea se magoe... mas voc\'ea sabe como as mulheres vivem se cuidando hoje em dia...
\par -J\'e1 sei! - interrompeu ela, entre aborrecida e magoada. - Vai me dizer que eu estou gorda, n\'e3o \'e9?
\par -N\'e3o foi isso o que eu quis dizer.
\par -Foi isso, sim. Voc\'ea acha que seu pai perdeu o interesse em mim porque eu engordei. Mas o que eu posso fazer? Tive quatro filhos... Isso n\'e3o \'e9 para qualquer
\par uma.
\par -\'c9 claro que n\'e3o, e eu entendo. N\'e3o estou dizendo que voc\'ea teve culpa de engordar. Mas voc\'ea pode tentar emagrecer...
\par -Eu n\'e3o consigo! J\'e1 tentei de tudo, tomei rem\'e9dios, fiz gin\'e1stica, experimentei dietas milagrosas. Nada deu certo. E depois, pensei que seu pai me amasse
\par de qualquer jeito.
\par -M\'e3e, n\'e3o \'e9 bem assim...
\par -Tem raz\'e3o, n\'e3o \'e9 mesmo. Se seu pai realmente me amasse, n\'e3o se importaria com isso. Mas o fato \'e9 que ele n\'e3o me ama. Casou-se comigo porque eu era jovem,
\par rica e linda. Mas depois que os filhos vieram, e meu corpo se modificou, ele logo, logo, tratou de me trocar por alguma garota.
\par -Voc\'ea n\'e3o sabe se isso \'e9 verdade.
\par -S\'f3 pode ser. Voc\'ea mesma acha que eu estou horr\'edvel!
\par -Eu n\'e3o disse isso.
\par -Mas foi o que quis dizer.
\par -Eu s\'f3 acho que, se voc\'ea n\'e3o fizer alguma coisa, vai acabar perdendo o papai.
\par -Era s\'f3 o que me faltava! Minha pr\'f3pria filha contra mim.
\par -N\'e3o estou contra voc\'ea. Ao contr\'e1rio, quero ajud\'e1-la a conservar o seu casamento.
\par -E s\'f3 conseguirei isso se emagrecer?
\par -N\'e3o sei. Mas talvez ajude.
\par -Est\'e1 tudo errado - lamentou Anita, recome\'e7ando a chorar. - Eu sempre achei que o amor estivesse acima dessas coisas. Amor \'e9 algo que vem do cora\'e7\'e3o, n\'e3o
\par do corpo. Se a apar\'eancia f\'edsica \'e9 tudo o que importa, ent\'e3o, n\'e3o h\'e1 amor.
\par -N\'e3o \'e9 que papai n\'e3o a ame. Ele deve apenas estar chateado porque a mulher dele ficou gorda e relaxada. Voc\'ea j\'e1 viu como as mulheres dos outros s\'e3o bonitas
\par e bem cuidadas? Voc\'ea nem as unhas faz mais.
\par Anita olhou para a filha de boca aberta. Para ela, o amor independia da beleza f\'edsica, mas a filha parecia pensar de outro jeito. O marido tamb\'e9m pensava como Ariane.
\par Todo mundo pensava. Por outro lado, a filha tinha raz\'e3o. Sua apar\'eancia estava horr\'edvel. Os cabelos apresentavam v\'e1rios fios brancos que a tinta da farm\'e1cia n\'e3o conseguia
\par esconder. As unhas estavam lascadas e sem brilho. A pele oleosa e descuidada. As roupas, ent\'e3o, pareciam coisa de velha. Olhando-se no espelho, Anita achou que aparentava
\par bem mais do que os seus 44 anos.
\par -\'c9 isso que tem import\'e2ncia para voc\'ea? - retrucou ela, desanimada e triste.
\par -Apar\'eancia pode n\'e3o ser tudo, mas ajuda um bocado. Entre mulheres bonitas e inteligentes, os homens ficam com as bonitas.
\par -Mas est\'e1 errado. E o car\'e1ter, onde \'e9 que fica?
\par -Que car\'e1ter, m\'e3e? Desde quando mulher precisa disso?
\par -Ariane! - tornou ela, surpresa e embasbacada.
\par -Isso tudo \'e9 tolice - prosseguiu ela, ignorando o espanto da m\'e3e. - Veja Dolores, por exemplo. \'c9 mais velha do que voc\'ea, mas parece infinitamente mais jovem.
\par Est\'e1 sempre indo a sal\'f5es de beleza, faz massagem, tratamentos para a pele, tinge os cabelos. \'c9 uma mulher linda. N\'e3o h\'e1 quem n\'e3o a admire.
\par Os valores de Ariane pareceram distorcidos para Anita, mas ela resolveu se calar. N\'e3o tinha argumentos para rebater as argumenta\'e7\'f5es da filha. Podia dizer-lhe que
\par nada daquilo era importante, que o que importava eram os valores morais e espirituais, mas ela n\'e3o entenderia. Completamente aturdida, s\'f3 o que conseguiu foi balbuciar:
\par -N\'e3o reconhe\'e7o voc\'ea...
\par Ariane n\'e3o ouviu o seu coment\'e1rio e continuou falando, agora presa a outro assunto:
\par -E \'e9 por isso que vou-me casar com o filho dela. Ela me adora e faz muito gosto no meu casamento com Fl\'e1vio. Agora, imagine s\'f3 se eu fosse relaxada e descuidasse
\par da apar\'eancia. Fl\'e1vio nem olharia para mim, e Dolores n\'e3o ia me querer para nora.
\par -Voc\'ea e Fl\'e1vio ainda est\'e3o namorando? - indagou Anita agora envolvida pelo novo assunto, sentindo-se at\'e9 mesmo grata por n\'e3o ter mais que ouvir as barbaridades
\par de Ariane.
\par -Estamos... Isto \'e9, mais ou menos.
\par -Como \'e9 que algu\'e9m namora mais ou menos?
\par -Bom, Fl\'e1vio anda meio arredio, sabe como \'e9.
\par -N\'e3o, n\'e3o sei. E quer que lhe diga? Acho que Fl\'e1vio n\'e3o gosta de voc\'ea.
\par -Gosta, sim.
\par -Se voc\'ea quer se iludir, o problema \'e9 seu. Mas a verdade \'e9 que ele n\'e3o me parece nem um pouquinho interessado em voc\'ea.
\par -Voc\'ea n\'e3o sabe de nada, m\'e3e. Nem sai de casa! Como pode saber por quem Fl\'e1vio se interessa?
\par -Posso n\'e3o andar saindo muito ultimamente, mas sou mulher e entendo dessas coisas. Se Fl\'e1vio gostasse de voc\'ea, viria v\'ea-la com freq\'fc\'eancia. Mas ele nem sequer
\par a procura... nem telefona.
\par -Porque anda ocupado. E j\'e1 que voc\'ea falou, vou aproveitar o s\'e1bado e ligar para ele.
\par Um tanto quanto aborrecida, Ariane saiu do quarto e foi telefonar para Fl\'e1vio, deixando Anita sozinha. Depois que a filha saiu, ela se entregou novamente \'e0 reflex\'e3o.
\par Ariane podia estar com os valores distorcidos, mas n\'e3o deixava de ter l\'e1 a sua raz\'e3o. Ela andava mesmo muito descuidada da apar\'eancia, o que n\'e3o era bom. J\'e1 tentara
\par de tudo para emagrecer e n\'e3o conseguira nenhum resultado significativo. Por causa disso, desistira e se entregara ao des\'e2nimo. Mas agora pensava melhor. Ser\'e1 que
\par s\'f3 porque estava gorda precisava se vestir feito uma bruxa? N\'e3o seria melhor colocar uma roupa mais bonita, pentear os cabelos, pintar as unhas?
\par Talvez fosse uma boa id\'e9ia para levantar o \'e2nimo. Do jeito que
\par ela estava, n\'e3o podia mais ficar. O marido a ignorava, e os filhos tinham suas pr\'f3prias vidas para cuidar. Huguinho, o mais novo, estava crescendo, e os outros dois
\par estudavam na Europa. Ariane logo se casaria e deixaria a casa materna. E ela? O que seria dela depois que eles se fossem, cada vez mais velha e mais gorda?
\par Precisava tomar uma atitude. N\'e3o pelo marido nem pelos filhos, mas por ela mesma. O \'fanico problema \'e9 que ainda n\'e3o se resolvera. Faltavam-lhe \'e2nimo e coragem. Na
\par mente, a id\'e9ia era excelente, mas coloc\'e1-la em pr\'e1tica exigiria um pouco mais de esfor\'e7o. Precisava
\par de um est\'edmulo, um incentivo, mas n\'e3o tinha nada.
\par ***
\par Em seu quarto, Ariane desligava o telefone com f\'faria. A criada lhe dissera que Fl\'e1vio havia sa\'eddo logo depois do almo\'e7o e ainda n\'e3o voltara. Aonde teria ido? N\'e3o
\par queria admitir, mas a m\'e3e tinha raz\'e3o. Fl\'e1vio estava muito indiferente, n\'e3o demonstrava o menor interesse por ela. Dolores lhe garantira que ele se casaria com ela,
\par mas o que estaria fazendo para conseguir isso? Pelo visto, nada. Ariane j\'e1 n\'e3o ag\'fcentava mais esperar. Devia ter pedido para falar com Dolores, mas a raiva a fizera
\par desligar o telefone. Ia ligar de novo, contudo, mudou de id\'e9ia. Iria pessoalmente falar com ela.
\par Dolores estava em casa e n\'e3o se surpreendeu quando Ariane entrou com ar ansioso.
\par -Muito bem, Dolores - foi logo dizendo. - O que \'e9 que est\'e1 acontecendo com Fl\'e1vio?
\par -Em primeiro lugar, boa tarde - retrucou Dolores calmamente. - Em segundo, n\'e3o sei do que voc\'ea est\'e1 falando. N\'e3o aconteceu nada com Fl\'e1vio.
\par -Voc\'ea est\'e1 querendo me enrolar? N\'e3o me prometeu que Fl\'e1vio se interessaria por mim? N\'e3o \'e9 isso que est\'e1 acontecendo.
\par Dolores soltou um suspiro desanimado e encarou Ariane. N\'e3o adiantava mais lhe esconder nada. Depois de conhecer Marcela, tinha certeza de que o filho estava mesmo
\par disposto a se casar com ela. Era melhor contar a verdade a Ariane e tentar fazer com que ela a ajudasse.
\par -Voc\'ea tem raz\'e3o - come\'e7ou a dizer, com um certo tom dram\'e1tico na voz. - Fl\'e1vio n\'e3o est\'e1 mais interessado em voc\'ea. E, pelo visto, vai continuar assim, a n\'e3o
\par ser que voc\'ea me ajude.
\par -Como?
\par -Fl\'e1vio arranjou uma namorada. Uma professora pobre e sem classe, mas \'e9 por ela que ele se diz apaixonado.
\par -O qu\'ea!? Apaixonado por uma professorinha sem eira nem beira? N\'e3o pode ser!
\par -E ela nem \'e9 assim t\'e3o bonita, mas ele se tomou de amores pela mo\'e7a. Quem \'e9 que vai entender?
\par -Ningu\'e9m! Ningu\'e9m pode entender. Voc\'ea me prometeu que Fl\'e1vio seria meu. N\'e3o pode simplesmente se desfazer de mim agora!
\par -Quem disse que quero me desfazer de voc\'ea? Se bem me lembro, acabei de lhe dizer que vou precisar da sua ajuda.
\par -Mas o que posso fazer? Seduzi-lo?
\par -Isso n\'e3o vai adiantar. Marcela veio do interior e mora sozinha. J\'e1 deve ser mulher, se \'e9 que voc\'ea me entende.
\par Ariane corou at\'e9 as orelhas. Por mais que tivesse tentado, Fl\'e1vio nunca quis fazer amor com ela.
\par -O nome dela \'e9 Marcela? - tornou, tentando disfar\'e7ar a vergonha. - E voc\'ea diz que ela \'e9 mulher. Mas eu tamb\'e9m sou mulher!
\par -Voc\'ea \'e9 uma menina mimada que nada sabe da vida. E creio que foi justamente isso que o atraiu nessa mo\'e7a. Ela \'e9 independente, mas insegura, e deve ter um
\par passado, uma hist\'f3ria comovente que o sensibilizou e o aproximou dela. Os homens s\'e3o uns tolos e se sentem atra\'eddos por mulheres que t\'eam passado. Precisamos descobrir
\par o que \'e9.
\par Apesar de aborrecida com o coment\'e1rio sobre ela, Ariane ouvia atentamente o que Dolores dizia e indagou:
\par -Posso saber como faremos para descobrir isso?
\par -Pensei em procurar os pais dela, mas eles moram em Campos, e n\'e3o estou disposta a me aventurar numa cidadezinha desconhecida. Podia contratar um detetive,
\par mas tamb\'e9m n\'e3o \'e9 garantido. Fl\'e1vio pode descobrir, e a\'ed, podemos esquecer de vez. Ocorreu-me uma outra id\'e9ia... - ela fitou Ariane em tom enigm\'e1tico.
\par -Que id\'e9ia?
\par -Talvez seja melhor voc\'ea mudar de atitude e se aproximar dessa mo\'e7a, travar amizade com ela.
\par -Eu!? Nem pensar! Vai parecer muito estranho, voc\'ea n\'e3o acha? Num dia, estou apaixonada por Fl\'e1vio. No outro, viro amiga da namorada dele.
\par -D\'ea um jeito de parecer natural. Eu \'e9 que n\'e3o posso fazer amizade com ela. N\'e3o vai convencer ningu\'e9m.
\par -Mas como farei isso? N\'e3o sei nada sobre ela.
\par -Vou descobrir onde ela trabalha, e voc\'ea tratar\'e1 logo de agir.
\par -N\'e3o sei, Dolores, isso n\'e3o me agrada.
\par -Se n\'e3o a agrada, pode esquecer. N\'e3o tenho mais ningu\'e9m com quem contar.
\par -Fl\'e1vio vai desconfiar. Ele n\'e3o \'e9 tolo.
\par -N\'e3o precisa se preocupar com isso. Tenho tudo planejado. Voc\'ea vai conhecer a mo\'e7a, mas sem ser por interm\'e9dio de Fl\'e1vio. Vai fazer amizade com ela e vai
\par evitar encontrar-se com ele. Assim ter\'e1 oportunidade de descobrir tudo a respeito dela.
\par -E se eu n\'e3o conseguir?
\par -Se n\'e3o conseguir, esque\'e7a. Fl\'e1vio vai se casar com a professorinha e voc\'ea vai ficar a ver navios.
\par -N\'e3o sei... Tenho medo de me delatar.
\par -Aja com naturalidade, e tudo vai dar certo. Ent\'e3o? Vai ou n\'e3o colaborar?
\par Durante alguns instantes, Ariane ficou pensativa, imaginando se conseguiria levar adiante aquele plano ousado. Contudo, estava desesperada. N\'e3o queria perder Fl\'e1vio
\par por nada no mundo.
\par -Supondo que eu concorde, quando dar\'edamos in\'edcio a esse plano?
\par -Assim que eu descobrir onde ela trabalha. Ent\'e3o, aceita ou n\'e3o?
\par -N\'e3o sei.
\par -Voc\'ea tem que se decidir. Se ficar hesitante, vai perder a oportunidade, e Fl\'e1vio se casar\'e1 com a outra. Vamos, menina, n\'e3o seja indecisa. Gosto de voc\'ea
\par porque \'e9 uma mo\'e7a forte, segura e corajosa. N\'e3o me decepcione agora!
\par Dolores sabia que aqueles elogios a incentivariam, e n\'e3o estava errada. Para Ariane, seria a oportunidade de mostrar que ela n\'e3o era nenhuma garotinha mimada e ing\'eanua.
\par Tentando causar-lhe
\par admira\'e7\'e3o, Ariane estufou o peito, empinou o nariz e respondeu em tom altivo:
\par - Tem raz\'e3o, Dolores. Sou uma mulher de fibra, n\'e3o uma garota mimada e insegura. Aceito.
\par Estava resolvido. No dia seguinte se iniciaria o plano que colocaria em risco a felicidade e a vida de Fl\'e1vio e Marcela.
\par ***
\par A caminho do consult\'f3rio, Cec\'edlia ia imaginando como fazer para arrancar algum dinheiro de Luciana e impressionar o namorado. Conhecera Gilberto no baile do clube
\par e queria muito lhe causar admira\'e7\'e3o. Precisava de um vestido novo e de uma sand\'e1lia que combinasse, mas n\'e3o tinha dinheiro. A roupa que vira numa vitrina da cidade
\par era muito cara, e comprar a cr\'e9dito n\'e3o era uma boa id\'e9ia. Os juros eram altos, e ela acabaria sem nada.
\par Trabalhou normalmente durante o dia, at\'e9 que o \'faltimo paciente se foi. Depois de fechar o consult\'f3rio, seguiu para a casa de Luciana, como costumava fazer. Ela alugara
\par um novo apartamento e o estava decorando, e Cec\'edlia se oferecera para ajudar. Depois que terminaram de pendurar uns quadros na sala, as duas se deitaram no sof\'e1,
\par exaustas, e logo estavam se amando. Ao final, foram para o banho, e Cec\'edlia ia ensaboando as costas de Luciana, pensando que aquele seria o melhor momento para iniciar
\par a conversa:
\par -Vi um vestido lindo na vitrina hoje!
\par -\'c9 mesmo? - retrucou Luciana, desinteressada. - De que cor?
\par -Vermelho. N\'e3o acha que vermelho me cai bem?
\par -\'c9, cai.
\par -Pena que o meu dinheiro n\'e3o deu para comprar.
\par -\'c9 muito caro?
\par -Um pouco.
\par Era agora! Cec\'edlia achou que Luciana lhe ofereceria o dinheiro para comprar o vestido, mas ela n\'e3o disse nada. Terminou de se enxaguar e saiu do chuveiro.
\par -Vai demorar? - indagou, enrolando-se na toalha.
\par Cec\'edlia estava furiosa, mas n\'e3o podia deixar que Luciana percebesse e respondeu com fingida docilidade:
\par -J\'e1 estou saindo - desligou o chuveiro e saiu, retomando o assunto. - Voc\'ea tinha que ver o vestido, Luciana. Uma beleza!
\par -No seu pagamento, voc\'ea compra.
\par -Ah! Mas o meu dinheiro n\'e3o d\'e1. \'c9 muito, mas muito caro mesmo!
\par -Se n\'e3o fosse t\'e3o caro, eu poderia at\'e9 lhe dar de presente. Estou ganhando bem agora e n\'e3o me custaria nada. Mas um vestido muito, muito caro est\'e1 al\'e9m das
\par minhas possibilidades. Por que n\'e3o escolhe algo mais barato?
\par Algo mais barato n\'e3o servia. Tinha que ser aquele. O rapaz a convidara para sair no s\'e1bado, e ela precisava estar bem-vestida para ele. No entanto, n\'e3o podia deixar
\par que Luciana percebesse a sua ansiedade e lhe recusasse tudo. Um vestido barato era melhor do que nada.
\par -Eu n\'e3o quero que voc\'ea me d\'ea nada de presente! - objetou com veem\'eancia, fingindo-se ofendida. - N\'e3o \'e9 para isso que estou com voc\'ea.
\par Luciana n\'e3o se incomodou. Simplesmente deu de ombros e, alisando os cabelos com a escova, respondeu com naturalidade:
\par -Tudo bem. Voc\'ea \'e9 quem sabe.
\par Cec\'edlia quase a esganou. Se ela n\'e3o tivesse virado as costas naquele momento, teria percebido o seu olhar de raiva.
\par -Mas um empr\'e9stimo, eu aceitaria - emendou rapidamente, torcendo para que Luciana n\'e3o percebesse o tremor na sua voz.
\par Sem dizer nada, Luciana apanhou o tal\'e3o de cheques na bolsa e preencheu um deles, estendendo-o para Cec\'edlia.
\par -Considere como adiantamento de sal\'e1rio.
\par Cec\'edlia mordeu os l\'e1bios com tanta for\'e7a que quase os feriu. Apanhou o cheque com uma certa rispidez, que Luciana n\'e3o percebeu, e enfiou-o na carteira, fuzilando
\par de \'f3dio. Aquela t\'e1tica n\'e3o daria certo. Luciana era muito segura de si para cair naquela
\par armadilha. Era at\'e9 segura demais, confiante demais em sua capacidade e em si mesma. N\'e3o. Cec\'edlia estava tomando o rumo errado. O comportamento incisivo e objetivo
\par de Luciana parecia o de um homem. Ent\'e3o... por que n\'e3o? Por que n\'e3o dispensar a ela o mesmo tratamento que se dava \'e0s mulheres em geral? Luciana n\'e3o estava acostumada
\par a gentilezas, e Cec\'edlia precisava conquist\'e1-la com gestos simples e carinhosos, que lhe despertassem sentimentos mais doces e meigos. Se conseguisse isso, traria
\par \'e0 tona uma fragilidade desconhecida e poderia se aproveitar dela depois.
\par No dia seguinte, Cec\'edlia pediu licen\'e7a a Ma\'edsa e saiu mais cedo para o almo\'e7o. Queria estar de volta antes que Luciana chegasse. Comeu um sandu\'edche rapidamente e
\par parou numa floricultura. Comprou algumas margaridas, que eram mais baratas, e uma caixa de chocolates.
\par -O que \'e9 tudo isso? - indagou Ma\'edsa, vendo-a entrar com as flores e os bombons.
\par -\'c9 uma surpresa que quero fazer para Luciana.
\par Ma\'edsa n\'e3o respondeu. Logo que retornara da lua de mel ficara sabendo do novo romance entre Luciana e Cec\'edlia. Ela logo desaprovou aquele relacionamento, mas Luciana
\par foi categ\'f3rica e lhe assegurou que o envolvimento de ambas era apenas sexual.
\par -Isso ainda vai acabar mal - comentara Ma\'edsa. - Ambiente de trabalho n\'e3o \'e9 bom para essas coisas.
\par -Voc\'ea est\'e1 se preocupando \'e0 toa - argumentou Luciana. - Cec\'edlia n\'e3o est\'e1 interessada em compromisso s\'e9rio, assim como eu.
\par -N\'e3o sei. Isso n\'e3o me parece profissional.
\par -Eu tamb\'e9m pensava assim, mas Cec\'edlia me garantiu que n\'e3o vai deixar que o nosso relacionamento influencie no trabalho.
\par -E voc\'ea acreditou?
\par -Tenho motivos para n\'e3o acreditar?
\par -N\'e3o entendo voc\'ea, Luciana. \'c9 uma mulher segura, pr\'e1tica, experiente. Como \'e9 que se deixa iludir assim por essa garota?
\par -Quem disse que estou me iludindo?
\par -S\'f3 voc\'ea n\'e3o enxerga. Essa mo\'e7a est\'e1 tentando fazer voc\'ea de boba.
\par -N\'e3o est\'e1. E, se estivesse, n\'e3o conseguiria.
\par -Ser\'e1?
\par -N\'e3o se preocupe, Ma\'edsa, sei o que estou fazendo. Gosto de Cec\'edlia, mas n\'e3o sou a tola que voc\'ea imagina.
\par -Por mim, eu a mandava embora.
\par -De jeito nenhum! N\'e3o podemos perder uma boa secret\'e1ria.
\par Ma\'edsa se lembrou daquela conversa que tivera com Luciana e
\par sentiu um estremecimento. Por mais que a amiga dissesse que confiava em Cec\'edlia, havia algo na mo\'e7a que soava falso. Contudo, Luciana n\'e3o se convencia, e ela tamb\'e9m
\par n\'e3o tinha motivos para despedi-la. Com um olhar de desgosto e d\'favida, Ma\'edsa tirou o jaleco e, antes de sair, falou para Cec\'edlia:
\par -Deixe tudo arrumado.
\par Pouco depois, Luciana vinha entrando. Ela e Ma\'edsa se cruzaram no elevador, mas mal tiveram tempo de conversar. A fila do elevador era grande, e Luciana n\'e3o p\'f4de
\par interromper a entrada das pessoas.
\par A primeira coisa que Luciana percebeu quando entrou foram as flores na mesa de Cec\'edlia.
\par -Recebeu flores? - perguntou ela.
\par -N\'e3o - respondeu Cec\'edlia, aproximando-se dela. - S\'e3o para voc\'ea.
\par -Para mim?
\par -Sim. Achei que voc\'ea ia gostar.
\par -Eu adorei! - exclamou desconcertada. - Jamais recebi flores em toda a minha vida!
\par -\'c9 mesmo? N\'e3o acredito.
\par -Bem, quero dizer, recebi algumas no meu anivers\'e1rio, mas isso foi h\'e1 muito tempo. Nunca recebi flores assim, do nada.
\par -Achei que voc\'ea ia gostar. Mas n\'e3o \'e9 s\'f3. Trouxe-lhe isso tamb\'e9m.
\par Cec\'edlia estendeu a caixa de bombons, beijando-a gentilmente, e Luciana retrucou desconfiada:
\par -Por que fez isso? N\'e3o estamos comemorando nada de especial, estamos?
\par -N\'e3o. Eu s\'f3 quis lhe fazer um agrado. Por qu\'ea? N\'e3o posso?
\par -Pode... claro que pode...
\par A campainha tocou, e Cec\'edlia abriu a porta para o primeiro cliente
\par da tarde. Luciana sumiu na outra sala, e Cec\'edlia ficou rindo intimamente de sua esperteza. A id\'e9ia parecia ter dado certo. Luciana ficara confusa e balan\'e7ada, tocada
\par em sua sensibilidade feminina.
\par Dentro do consult\'f3rio, Luciana se desligou daquele epis\'f3dio, concentrada no trabalho que estava fazendo. S\'f3 no final da tarde foi que tornou a pensar nele, ao ver
\par Cec\'edlia pronta para sair, com as flores em uma m\'e3o e a caixa de bombons na outra. Dali, foram para o apartamento de Luciana, que seguia calada, pensando no que significava
\par tudo aquilo. Temia que Cec\'edlia estivesse come\'e7ando a se apaixonar por ela e acabou se retraindo. Em casa, n\'e3o fizeram nada naquela noite a n\'e3o ser jantar, e Luciana
\par comentou sobre suas suspeitas.
\par -Est\'e1 se preocupando \'e0 toa - garantiu Cec\'edlia. - Eu apenas acho que voc\'ea precisa de um pouco mais de alegria na sua vida. S\'f3 pensa em trabalho, trabalho...
\par H\'e1 coisas bonitas ao seu redor que voc\'ea nem percebe.
\par -Que coisas?
\par -As flores, por exemplo. V\'ea como ficaram bonitas na sua sala?
\par -\'c9 verdade.
\par -Voc\'ea est\'e1 precisando de um toque feminino - elas riram -, e sou eu que vou dar.
\par As flores passaram a ser um h\'e1bito. De vez em quando, Cec\'edlia enfeitava o consult\'f3rio e o apartamento de Luciana, sem demonstrar qualquer mudan\'e7a no seu comportamento
\par que pudesse deixar a outra cismada. Para retribuir, Luciana come\'e7ou a comprar presentinhos para Cec\'edlia, como roupas \'edntimas e algumas pe\'e7as de bijuteria, o que
\par n\'e3o a contentava. Queria j\'f3ias caras e roupas de grife. Passado algum tempo, Cec\'edlia voltou a insistir:
\par -Vi uma blusa na vitrina hoje...! Voc\'ea n\'e3o tem id\'e9ia!
\par -Voc\'ea gosta de roupa, hein? Vive apaixonada por vestidos e blusas.
\par -Mas voc\'ea tem que ver, Luciana. Maravilhosa! Pena que n\'e3o tenho dinheiro para comprar!
\par -Onde foi que voc\'ea viu?
\par -Numa loja chamada Eleg\'e2ncia. Conhece?
\par -Eleg\'e2ncia? Voc\'ea n\'e3o faz por menos, hein? \'c9 uma butique car\'edssima!
\par -Nem tanto assim. E essa blusa era cara, mas nada absurdo.
\par -Como \'e9 essa blusa?
\par -Linda! Azul, com lacinhos miudinhos bordados. Nunca vi nada igual.
\par -Voc\'ea \'e9 muito tolinha - finalizou Luciana, beijando-a nos l\'e1bios e encerrando a discuss\'e3o.
\par No dia seguinte, quando as duas foram para o apartamento de Luciana, Cec\'edlia encontrou uma caixa embrulhada para presente em cima da mesa da sala e, antes mesmo
\par de perguntar, j\'e1 sabia do que se tratava.
\par -O que \'e9 isso? - sondou, como se de nada desconfiasse.
\par -Uma coisa que comprei para voc\'ea.
\par -Para mim!? O que \'e9?
\par -Abra.
\par L\'e1 estava a blusa, e Cec\'edlia sorriu euf\'f3rica.
\par -Oh! - exclamou, com fingida surpresa. - N\'e3o devia ter feito isso, Luciana. Sei que essa blusa custou caro.
\par -Experimente.
\par A blusa serviu perfeitamente, e Cec\'edlia beijou Luciana v\'e1rias vezes.
\par -Ficou linda, Luciana! Adorei!
\par -Sabia que voc\'ea ia gostar.
\par Ao sair do apartamento de Luciana naquela noite, Cec\'edlia carregava nos l\'e1bios um sorriso malicioso e c\'ednico, fruto da alegria que experimentava n\'e3o apenas por ter
\par conseguido o que queria, mas por ter enganado Luciana, que se achava t\'e3o esperta e confiante. E aquilo era apenas o come\'e7o. Com sua ast\'facia, Cec\'edlia pretendia lucrar
\par muito mais.
\par Ainda era cedo, e ela n\'e3o precisava ir para casa dormir. Resolveu que estrearia a blusa naquela mesma noite. Gilberto a estava esperando para sa\'edrem, e ela n\'e3o queria
\par perder a oportunidade de lhe mostrar a roupa nova. Ao sair do apartamento de Luciana, foi ao encontro de Gilberto, e os dois passaram a noite fora, num motel barato.
\par No dia seguinte, Cec\'edlia acordou em cima da hora e nem teve tempo de passar em casa. Tomou um banho, vestiu a blusa nova e partiu para o trabalho.
\par -Mas que blusa linda! - elogiou Ma\'edsa, espantada com o fato de Cec\'edlia estar usando uma roupa aparentemente t\'e3o cara.
\par -Obrigada, Ma\'edsa. Foi Luciana quem me deu.
\par Ma\'edsa ficou chocada. Sabia que Luciana dava presentinhos a Cec\'edlia, mas aquilo parecia demais. Elas estavam ganhando bem, mas n\'e3o dava para ficar esbanjando. Naquele
\par dia, resolveu esperar Luciana e, assim que a mo\'e7a chegou, Ma\'edsa mandou Cec\'edlia almo\'e7ar e pagar umas contas no banco.
\par -O que foi que houve? - perguntou Luciana, notando o ar de preocupa\'e7\'e3o de Ma\'edsa.
\par -Sou eu que pergunto. O que foi que houve para voc\'ea dar presentes caros a Cec\'edlia?
\par -Refere-se \'e0quela blusa? Ora, nem foi t\'e3o cara assim.
\par -N\'e3o me venha com essa, Luciana. Vi a etiqueta da loja. Voc\'ea comprou na Eleg\'e2ncia.
\par -Ah! Mas estava em liquida\'e7\'e3o.
\par -N\'e3o tenho nada com a sua vida, mas voc\'ea n\'e3o acha que est\'e1 exagerando? Ser\'e1 que n\'e3o percebe que Cec\'edlia est\'e1 se aproveitando de voc\'ea?
\par -Gosto de Cec\'edlia e compro presentinhos para ela em compensa\'e7\'e3o \'e0s flores que ela sempre me d\'e1. Essa blusa foi uma exce\'e7\'e3o, realmente. Ela estava louca pela
\par blusa, e eu quis fazer-lhe um agrado maior. Mas n\'e3o pense que sou idiota. Sei muito bem at\'e9 onde posso ir, e se Cec\'edlia pensa que vai se aproveitar de mim, vai
\par ter uma baita decep\'e7\'e3o.
\par -Por que faz isso? Se sabe que ela est\'e1 tentando se aproveitar de voc\'ea, por que permite?
\par -Eu n\'e3o disse isso. Acho que ela est\'e1 um pouco deslumbrada e gosta de receber presentes, mas n\'e3o vai tirar nenhum proveito de mim. N\'e3o tenho dinheiro para
\par isso.
\par -Para ela, tem sim. Cec\'edlia sabe o quanto lucramos no consult\'f3rio, o que \'e9 muito mais do que ela ganha, com certeza.
\par -Pare de se preocupar, Ma\'edsa, j\'e1 est\'e1 ficando chata. E confie no que eu digo: sei muito bem o que estou fazendo e at\'e9 onde posso ir. Ningu\'e9m est\'e1 me enganando
\par nem me fazendo de idiota.
\par -Espero mesmo que voc\'ea saiba o que est\'e1 fazendo. N\'e3o quero que voc\'ea se decepcione depois.
\par -De jeito nenhum! Para isso, era preciso que eu fosse uma menina ing\'eanua, o que n\'e3o \'e9 o caso. Sei bem onde estou pisando e at\'e9 que ponto posso ir. N\'e3o se
\par preocupe. E pare de implicar com Cec\'edlia.
\par -Como voc\'ea pode ter tanta certeza?
\par Luciana abaixou o tom de voz e sussurrou perto do ouvido de Ma\'edsa:
\par -Sou eu quem durmo com ela, lembra-se?
\par Estava encerrada a discuss\'e3o. Luciana parecia muito segura do que dizia, mas Ma\'edsa n\'e3o estava bem certa. De toda sorte, n\'e3o podia interferir na vida da amiga e,
\par se ela n\'e3o queria seguir os seus conselhos, s\'f3 o que podia fazer era torcer para estar
\par errada e Cec\'edlia realmente n\'e3o ser nada daquilo que ela pensava.
\par ***
\par Como o s\'e1bado amanheceu nublado, n\'e3o havia muito o que fazer, e Luciana sentiu um certo aborrecimento ao ver as nuvens negras que se aglomeravam no horizonte. Contemplou
\par a decora\'e7\'e3o do apartamento e se sentiu cansada de ficar em casa sem fazer nada. Ningu\'e9m a convidava para uma festa e n\'e3o havia nenhum programa que pudesse fazer.
\par Ainda era muito cedo, e algumas got\'edculas de chuva come\'e7aram a cair. Luciana olhou pela janela e bocejou, sentindo as p\'e1lpebras pesarem, embaladas pela cad\'eancia
\par mi\'fada e ritmada dos pingos que batiam na janela. Em breve, adormeceu.
\par No mesmo momento, seu perisp\'edrito se desprendeu do corpo f\'edsico, e ela se levantou assustada. Parada a seu lado, uma mulher alta, morena, de fei\'e7\'f5es finas e porte
\par esguio, trajando um sari amarelo-ouro, com uma pedra igualmente amarela na testa, encarava-a com uma express\'e3o indefin\'edvel no olhar.
\par -Quem \'e9 voc\'ea? - indagou Luciana temerosa.
\par -N\'e3o me reconhece?
\par -N\'e3o. Deveria?
\par A mulher fez um ar sonhador e n\'e3o respondeu \'e0 sua pergunta, mas come\'e7ou a falar como se a conhecesse de longa data:
\par -N\'e3o adiantou nada trocar de corpo. Eu o reconheci mesmo assim. Formas femininas n\'e3o s\'e3o o bastante para me enganar. Confesso que demorei um pouco a localiz\'e1-lo,
\par mas finalmente, consegui.
\par Luciana abriu a boca, perplexa. N\'e3o compreendia nada do que aquela mulher dizia.
\par -Quem \'e9 voc\'ea? O que quer de mim?
\par -Voc\'ea n\'e3o se lembra mesmo, n\'e3o \'e9?
\par -Do que \'e9 que deveria me lembrar?
\par -Bem que me avisaram que, com a reencarna\'e7\'e3o, voc\'ea esqueceria tudo - fitou Luciana com olhar triste e prosseguiu:
\par -Como voc\'ea se chama agora?
\par -Luciana.
\par -\'c9 um bonito nome, mas n\'e3o combina com a sua alma negra.
\par -Alma negra? Pelo amor de Deus, do que \'e9 que voc\'ea est\'e1 falando?
\par -Ser\'e1 poss\'edvel que voc\'ea n\'e3o guarde nenhuma lembran\'e7a de mim?
\par -tornou a outra, a voz embargada pelo pranto que se avizinhava.
\par -Olhe, mo\'e7a, acho que nunca a vi. Mas se voc\'ea afirma, com tanta certeza, que eu a conhe\'e7o, e eu n\'e3o me lembro, ser\'e1 que n\'e3o \'e9 melhor me contar logo onde
\par foi que nos conhecemos?
\par O esp\'edrito suspirou tristemente e aproximou-se de Luciana com a m\'e3o estendida, tentando tocar o seu rosto. Luciana, por\'e9m, assustou-se e deu dois passos para tr\'e1s,
\par amea\'e7ando voltar ao corpo f\'edsico.
\par -N\'e3o fa\'e7a isso - pediu o esp\'edrito, olhando com tristeza para o corpo de Luciana estendido na cama. -Ainda n\'e3o.
\par Com uma certa hesita\'e7\'e3o, Luciana considerou:
\par -Se n\'e3o quer que eu v\'e1 embora, acho melhor ir-se explicando.
\par -Voc\'ea tem raz\'e3o. Fui uma tola em pensar que chegaria at\'e9 voc\'ea, e voc\'ea logo me reconheceria. Voc\'ea agora \'e9 outra pessoa, tem um corpo de carne que n\'e3o me agrada
\par muito. Mas a sua alma continua a mesma. Sua ess\'eancia ainda \'e9 aquela pela qual me apaixonei.
\par -Apaixonou-se? Por mim? Mas como? E por que voc\'ea fica o tempo todo se referindo a mim como se eu fosse homem? N\'e3o v\'ea que sou uma mulher?
\par -Agora...
\par -O que quer dizer?
\par -Nada... E eu que enfrentei tantas dificuldades para encontr\'e1-lo aqui...! S\'f3 agora me permitiram... n\'e3o tenho mais raiva de voc\'ea... quero ajudar...
\par -Ajudar-me em qu\'ea, se eu nem sequer a conhe\'e7o?
\par -Lamento... N\'e3o sei se posso...
\par Antes que Luciana pudesse contestar, o esp\'edrito desvaneceu no ar, e ela ficou parada no meio do quarto, fitando o vazio com uma express\'e3o de surpresa. Quando acordou,
\par j\'e1 passava das onze horas, e ela se levantou sonolenta. Assim que p\'f4s os p\'e9s no ch\'e3o, uma lembran\'e7a assaltou a sua mente. Quem era aquela mo\'e7a com quem sonhara,
\par com apar\'eancia de indiana, e que lhe dizia coisas das quais n\'e3o conseguia se recordar? Era fruto de um sonho, pensou. Um sonho bobo que n\'e3o queria dizer nada. Luciana
\par jamais estivera na \'edndia nem nunca conhecera uma indiana, logo, aquilo s\'f3 podia ser algum sonho idiota. Embora a sensa\'e7\'e3o de reconhecimento fosse muito forte, Luciana
\par n\'e3o pensou mais naquilo. N\'e3o costumava perder tempo com sonhos e n\'e3o perderia com aquele.
\par Depois de tomar banho, pensou em fazer algo para comer, mas uma imensa sensa\'e7\'e3o de solid\'e3o a acometeu, e ela correu a apanhar o telefone. Ligou para Cec\'edlia, convidando-a
\par para almo\'e7arem juntas. A outra prontamente aceitou, e ficaram de se encontrar num restaurante pr\'f3ximo, conhecido de ambas. Luciana foi a primeira a chegar e sentou-se
\par a uma mesa perto da janela, e logo Cec\'edlia apareceu.
\par -Oi - cumprimentou ela, puxando a cadeira e sentando-se a seu lado.
\par -Tudo bem? - respondeu Luciana, com um sorriso frio. Estava triste e nem sabia por qu\'ea.
\par -O que voc\'ea tem?
\par -Eu? Nada, por qu\'ea?
\par -N\'e3o sei. Voc\'ea est\'e1 estranha, sem brilho. Aconteceu alguma coisa?
\par -Nada que eu saiba.
\par -Ent\'e3o, deixe para l\'e1 - atalhou Cec\'edlia, afagando a m\'e3o da outra com discri\'e7\'e3o. - Gostaria de lhe pedir uma coisa.
\par -O que \'e9?
\par -Ser\'e1 que voc\'ea n\'e3o tem como me emprestar um dinheiro para eu me matricular num cursinho pr\'e9-vestibular?
\par -Vestibular? Est\'e1 querendo fazer faculdade?
\par -\'c9. Pensei em fazer odontologia, como voc\'ea. Desde que fui trabalhar no seu consult\'f3rio, me interessei pelo assunto e creio que levo jeito para a coisa. Voc\'ea
\par acha que eu posso?
\par -\'c9 claro! Qualquer um pode.
\par -Pois \'e9. Preciso estudar, porque o vestibular \'e9 dif\'edcil, mas n\'e3o tenho condi\'e7\'f5es de pagar um cursinho.
\par -Voc\'ea j\'e1 viu o pre\'e7o?
\par -Andei me informando. Pedi aos meus pais, mas eles, infelizmente, n\'e3o podem me ajudar. N\'e3o queria pedir isso a voc\'ea, mas n\'e3o vi outra sa\'edda. Tive que deixar
\par de lado o orgulho e arriscar.
\par S\'f3 posso contar com voc\'ea.
\par -Acho \'f3timo que voc\'ea queira estudar, Cec\'edlia, mas n\'e3o posso lhe dar um aumento agora. N\'e3o sem antes falar com Ma\'edsa.
\par -Mas eu n\'e3o estou pedindo aumento! Nem quero que voc\'ea me d\'ea nada. Gostaria apenas de um empr\'e9stimo.
\par -E como voc\'ea pretende me pagar esse empr\'e9stimo? Com o seu sal\'e1rio n\'e3o d\'e1, sen\'e3o voc\'ea n\'e3o o estaria pedindo.
\par Cec\'edlia abaixou a cabe\'e7a para engolir a raiva, sem que Luciana
\par percebesse. Gilberto lhe dera aquela id\'e9ia. Mas a outra ficava questionando tudo. \'c9 claro
\par que n\'e3o poderia lhe pagar o empr\'e9stimo. E era \'f3bvio tamb\'e9m que ela n\'e3o pretendia freq\'fcentar nenhum cursinho para o vestibular. Estava apenas interessada no dinheiro.
\par Luciana n\'e3o era m\'e3o-aberta e custava a lhe dar presentes. Dera-lhe aquela blusa com muito custo, mas, depois daquilo, nunca mais lhe dera nada. Nem uma calcinha.
\par Mas um curso era diferente. Luciana valorizava muito os estudos e n\'e3o lhe negaria aquela oportunidade. Ainda mais se ela dissesse que pretendia estudar odontologia.
\par Que odontologia, que nada! Cec\'edlia tinha pavor de agulhas e sangue. S\'f3 tolerava as suas fun\'e7\'f5es no consult\'f3rio porque n\'e3o tinha outro jeito. Precisava do emprego.
\par E mais: precisava de Luciana. S\'f3 que Luciana n\'e3o parecia muito disposta a facilitar as coisas. Pensava em pagamento de empr\'e9stimo, quando o que ela pretendia era
\par nunca lhe pagar.
\par Cec\'edlia estreitou bem os olhos, for\'e7ando as l\'e1grimas, e retrucou com uma vozinha de s\'faplica, escolhendo bem as palavras: - Sei que o que ganho n\'e3o \'e9 suficiente e
\par s\'f3 poderei lhe pagar a longo prazo, mas esperava poder contar com a sua ajuda. Voc\'ea \'e9 minha \'fanica esperan\'e7a. Contudo, se n\'e3o puder me emprestar, n\'e3o faz mal. Posso
\par entender.
\par -N\'e3o \'e9 isso, Cec\'edlia - contrap\'f4s Luciana, agora penalizada. - Quero muito ajud\'e1-la, mas n\'e3o sei se dar dinheiro \'e9 uma boa ajuda. Isso pode estimular o \'f3cio
\par e a pregui\'e7a.
\par -Agora voc\'ea est\'e1 me ofendendo, Luciana! Ent\'e3o eu n\'e3o trabalho? N\'e3o cumpro meu hor\'e1rio, n\'e3o desempenho minhas fun\'e7\'f5es satisfatoriamente? E estou pedindo dinheiro
\par para estudar. Como voc\'ea pode achar que eu vou me manter no \'f3cio?
\par -Tem raz\'e3o, voc\'ea n\'e3o \'e9 assim. Voc\'ea sempre se mostrou esfor\'e7ada e dedicada. Muito bem. Se a sua vontade \'e9 ingressar na faculdade, vou ajud\'e1-la nisso. Darei,
\par eu mesma, o dinheiro para o cursinho. Mas trate de estudar para passar em uma universidade do governo.
\par -Sem d\'favida! Obrigada, Luciana, voc\'ea n\'e3o vai se arrepender. Vou estudar, vou ser a melhor aluna da turma! E vou ser sua colega de trabalho, voc\'ea vai ver!
\par A conversa continuou animada, com Cec\'edlia mentindo para Luciana a respeito de seus planos para o futuro. Na verdade, Gilberto ficaria exultante. Ele tamb\'e9m estava
\par precisando de roupas novas, e ela pretendia lhe proporcionar aquele prazer. Depois que descontasse o cheque que Luciana lhe dera, passaria numa loja de artigos masculinos
\par e compraria um bonito conjunto de cal\'e7a e camisa que ele havia visto no outro dia.
\par Depois do almo\'e7o, enquanto assinava outro cheque para pagar a conta, Luciana perguntou a Cec\'edlia:
\par -N\'e3o gostaria de ir ao cinema mais tarde? Est\'e1 passando um novo filme do 007.
\par Aquilo n\'e3o estava em seus planos. Combinara de se encontrar com Gilberto \'e0 noite, para irem juntos ao baile do clube, e ele ficaria chateado se ela desmarcasse.
\par Fazendo voz de decep\'e7\'e3o, ela fingiu lamentar:
\par -Oh! Sinto muito, Luciana, mas hoje n\'e3o vai dar. Prometi a minha m\'e3e que a acompanharia at\'e9 a casa de minha av\'f3. Ela est\'e1 doente e me adora.
\par -Quantos anos tem a sua av\'f3? - perguntou Luciana, para esconder a frustra\'e7\'e3o.
\par -Oitenta e quatro - mentiu Cec\'edlia, dizendo a primeira coisa que lhe vinha \'e0 cabe\'e7a. Na verdade, ela nem tinha mais av\'f3 e nunca acompanhava a m\'e3e em nada.
\par -Que pena... - tornou Luciana, bastante desapontada. - Fica para outro dia. Amanh\'e3, quem sabe?
\par -Amanh\'e3? - temendo despertar as suspeitas de Luciana se recusasse seu convite duas vezes seguidas, Cec\'edlia achou melhor concordar: - Amanh\'e3 est\'e1 bem.
\par -\'d3timo. Ligo para voc\'ea amanh\'e3, para marcarmos o hor\'e1rio.
\par -Combinado.
\par Sa\'edram do restaurante, e Cec\'edlia seguiu exultante para casa. N\'e3o via a hora de dar a not\'edcia a Gilberto. Depois que Luciana telefonara, convidando-a para almo\'e7ar,
\par avisara Gilberto que se atrasaria para seu encontro, mas valeria a pena. Conseguira o dinheiro, e isso era tudo o que importava.
\par Depois que Cec\'edlia se foi, Luciana ficou pensativa. N\'e3o sabia o que estava acontecendo, mas a solid\'e3o tornou a invadir o seu peito. N\'e3o queria ficar sozinha naquele
\par dia e foi procurar Ma\'edsa. A amiga estava em casa com o marido, que a recebeu com alegria.
\par -Mas que surpresa! - exclamou Breno. - N\'e3o a vejo desde o nosso casamento.
\par -Tenho andado ocupada - desculpou-se Luciana. - E voc\'ea, como est\'e1? Gostando da vida de casado?
\par -Estou adorando. Voc\'ea devia experimentar.
\par -J\'e1 passei por essa experi\'eancia antes, Breno, e s\'f3 o que quero agora \'e9 desfrutar da minha liberdade.
\par -Sei. Quem diz que quer ser livre, o que quer, na verdade, \'e9 um amor que a prenda.
\par -Desde quando voc\'ea deu para filosofar? Voc\'ea \'e9 advogado, n\'e3o fil\'f3sofo.
\par Nesse momento, Ma\'edsa entrou na sala, os cabelos ainda molhados do banho.
\par -Ouvi a sua voz e mal pude acreditar que era voc\'ea quem estava aqui - disse ela, beijando a amiga na face. - O que deu em voc\'ea para vir nos visitar?
\par -Pare com isso, Ma\'edsa - protestou Luciana, um tanto quanto envergonhada. - N\'f3s sempre fomos amigas.
\par -Mas, desde que eu me casei, voc\'ea nunca mais veio a minha casa. Acho que nem a conhece.
\par -\'c9... Mas est\'e1 muito bonita. Foi voc\'ea quem a decorou?
\par -Ma\'edsa? - objetou Breno. - Imagine! Contratamos um decorador.
\par -Ficou uma beleza!
\par -N\'e3o foi para falar da decora\'e7\'e3o do meu apartamento que voc\'ea veio aqui, foi? - tornou Ma\'edsa.
\par -N\'e3o. Na verdade, queria conversar. Estou me sentindo sozinha.
\par -Ent\'e3o, venha comigo. Podemos conversar enquanto seco o cabelo.
\par -Voc\'eas v\'e3o sair?
\par -Mais tarde. Temos um casamento para ir.
\par -De quem?
\par -Voc\'ea n\'e3o conhece. De um amigo do Breno.
\par -Ah...
\par Luciana saiu acompanhando Ma\'edsa, triste, porque teria que ficar sozinha naquela noite. Sentia uma indefin\'edvel opress\'e3o no peito, uma sensa\'e7\'e3o estranha que ela n\'e3o
\par podia explicar.
\par -Aconteceu alguma coisa? - perguntou Ma\'edsa, sentando-se \'e0 penteadeira e ligando o secador de cabelos.
\par -N\'e3o sei! - gritou Luciana, para se fazer ouvir por cima do barulho do secador.
\par -Como assim, n\'e3o sabe?
\par -Estou me sentindo estranha, mas n\'e3o sei definir. \'c9 um sentimento de vazio, de solid\'e3o... a sensa\'e7\'e3o de que perdi algo que n\'e3o sei o que \'e9.
\par -Brigou com a Cec\'edlia?
\par -N\'e3o. Ao contr\'e1rio, estamos muito bem.
\par -Por que n\'e3o a procura?
\par -Estive com ela at\'e9 agora. Almo\'e7amos juntas e ela foi para casa. Vai com a m\'e3e visitar a av\'f3 doente.
\par -Eu nunca soube que Cec\'edlia tinha uma av\'f3.
\par -Nem eu, mas tem.
\par -Sei... Quer dizer ent\'e3o que voc\'eas almo\'e7aram juntas?
\par -Foi. E adivinhe s\'f3! Ela est\'e1 querendo fazer vestibular para odontologia.
\par -Que interessante! E voc\'ea vai lhe pagar um cursinho.
\par -Como voc\'ea sabe?
\par -N\'e3o \'e9 dif\'edcil adivinhar - Ma\'edsa desligou o secador e virou -se de frente para Luciana. - N\'e3o entendo voc\'ea, Lu. Sempre foi t\'e3o maliciosa, t\'e3o esperta. Como
\par \'e9 que se deixa enganar por essa aproveitadora? N\'e3o v\'ea o que ela est\'e1 fazendo com voc\'ea?
\par -Voc\'ea est\'e1 exagerando. Sei que ela \'e9 ambiciosa, mas eu a controlo bem.
\par -Mas por que voc\'ea tem que ficar lhe dando coisas?
\par -O que lhe dou \'e9 muito pouco. Nada al\'e9m de bobagens e pequenos agrados.
\par -N\'e3o est\'e1 apaixonada por ela, est\'e1?
\par -Acho que n\'e3o. Gosto dela, mas n\'e3o \'e9 amor.
\par -N\'e3o falei em amor, falei em paix\'e3o. E acho que voc\'ea est\'e1 apaixonada, sim. Est\'e1 empolgada com a beleza dela, com o seu entusiasmo, com a sua vontade de subir
\par na vida. E n\'e3o est\'e1 percebendo que ela est\'e1 se aproveitando de voc\'ea.
\par -N\'e3o creio que ela se aproveite de mim. E, se \'e9 assim, aproveito-me dela tamb\'e9m. \'c9 uma troca.
\par -S\'f3 quero ver o que ela vai fazer quando n\'e3o puder lhe tirar mais nada. Vai se mandar.
\par -Ela n\'e3o me tira nada demais e tem um emprego, o que n\'e3o \'e9 assim t\'e3o f\'e1cil de se arranjar.
\par -Isso \'e9 s\'f3 o come\'e7o, voc\'ea vai ver. Ali\'e1s, ela j\'e1 est\'e1 pedindo mais, n\'e3o \'e9? Voc\'ea vai lhe pagar um curso.
\par -\'c9 uma forma de ajud\'e1-la a crescer.
\par -Como se ela estivesse mesmo interessada em crescer...
\par -Deixe disso, Ma\'edsa. Sei bem o que fa\'e7o, e n\'e3o \'e9 por causa de Cec\'edlia que estou chateada.
\par -E por que \'e9, ent\'e3o?
\par -N\'e3o sei. De repente, me senti s\'f3...
\par -Se quiser, podemos lev\'e1-la ao casamento conosco. Ainda d\'e1 tempo de voc\'ea ir em casa e se arrumar, ou pode pegar um vestido meu emprestado.
\par -Obrigada, mas n\'e3o quero. N\'e3o estou com \'e2nimo para festas.
\par -Credo, Luciana, espante esse des\'e2nimo para l\'e1! Voc\'ea n\'e3o \'e9 disso.
\par -N\'e3o sou mesmo, mas hoje estou assim. O que posso fazer?
\par -N\'e3o \'e9 poss\'edvel. Aconteceu alguma coisa?
\par -N\'e3o aconteceu nada. De repente, acordei assim... -foi s\'f3 ent\'e3o que Luciana se lembrou do sonho e comentou em d\'favida: - Tive um sonho estranho hoje de manh\'e3.
\par Acordei muito cedo e, como estava chovendo, acabei dormindo de novo e sonhei com aquela mo\'e7a.
\par -Que mo\'e7a?
\par Em breves palavras, Luciana contou o sonho a Ma\'edsa.
\par -Acha que minha chatea\'e7\'e3o tem a ver com isso?
\par -N\'e3o sei - respondeu Ma\'edsa. - N\'e3o entendo nada de sonhos.
\par Luciana ficou pensativa e continuou conversando com Ma\'edsa
\par sobre outras coisas, at\'e9 que a opress\'e3o no peito come\'e7ou a diminuir, e ela foi para casa. Sentia-se melhor, embora confusa e, de repente, lembrou-se de Marcela.
\par Fazia tempo que n\'e3o a via e sentiu uma pontinha de saudades. Pensou em ligar para ela, mas mudou de id\'e9ia. Marcela estava namorando um rapaz e n\'e3o se sentia \'e0 vontade
\par em sua companhia. Ela sempre se envergonhara de ser o que era e agora, mais do que nunca, tinha medo de que algu\'e9m descobrisse a verdade. Luciana n\'e3o concordava
\par com aquilo, mas respeitava Marcela. Se ela queria fingir que nunca houvera nada entre elas, Luciana n\'e3o insistiria. Mas a saudade continuou, e ela n\'e3o conseguiu
\par afast\'e1-la.
\par Apesar da chuva, Marcela havia combinado de passar o domingo em companhia de Fl\'e1vio, que chegou a sua casa logo pela manh\'e3. Os dois pretendiam ir a Petr\'f3polis, mas
\par o tempo ruim desaconselhava subir a serra por causa da neblina e do ch\'e3o molhado e escorregadio.
\par -Que tempo, hein? - avaliou Fl\'e1vio, sacudindo o guarda-chuva na \'e1rea do apartamento de Marcela. - N\'e3o vai dar para ir a Petr\'f3polis. O que vamos fazer agora?
\par -Podemos ficar aqui. Posso cozinhar e preparar um almo\'e7o delicioso.
\par -Isso me parece irresist\'edvel - sussurrou ele, puxando-a pela cintura e colando seu corpo ao dele.
\par Come\'e7aram a se beijar, e ele a conduziu para o quarto, deitando-a na cama com carinho e paix\'e3o. Os dois estavam come\'e7ando a se despir quando a campainha da porta
\par soou, e Marcela fez men\'e7\'e3o de ir atender.
\par -Deixe tocar - protestou ele baixinho. - N\'e3o esperamos ningu\'e9m a essa hora. Deve ser algum chato.
\par Por mais que Marcela n\'e3o quisesse perder aquele momento, a campainha n\'e3o parava de tocar, e ela come\'e7ou a se irritar com o seu som estridente.
\par -Acho melhor atender - falou ela. - Seja quem for, n\'e3o parece disposto a desistir.
\par A surpresa foi instant\'e2nea, e Marcela ficou boquiaberta, vendo Luciana parada na porta, toda molhada de chuva.
\par -Luciana! - exclamou, entre assustada e confusa.
\par -Posso entrar?
\par Antes que Marcela pudesse responder, Luciana passou para o lado de dentro, sacudindo os cabelos encharcados e molhando o ch\'e3o da sala.
\par -Voc\'ea est\'e1 toda molhada - observou Marcela. - N\'e3o tem guarda-chuva?
\par -A chuva me pegou no meio do caminho, e eu...
\par Calou-se abruptamente, vendo Fl\'e1vio surgir na porta do quarto
\par com a camisa entreaberta e os cabelos em desalinho. Luciana olhou para Marcela e reparou que ela tamb\'e9m parecia um tanto quanto amarrotada, s\'f3 ent\'e3o se dando conta
\par de que interrompera algo importante.
\par -Ol\'e1 - cumprimentou Fl\'e1vio, tentando se lembrar de onde a conhecia.
\par -Eu... sinto muito... - gaguejou Luciana. - N\'e3o sabia que voc\'eas... que voc\'eas... Perdoem-me.
\par Rodou nos calcanhares e saiu pela porta entreaberta, deixando Marcela apavorada e Fl\'e1vio, curioso. Luciana saiu maldizendo a si mesma, a sua imprud\'eancia, a sua precipita\'e7\'e3o.
\par N\'e3o imaginava encontrar o rapaz ali t\'e3o cedo. E o que pretendia? N\'e3o havia terminado com Marcela? Por que resolvera procur\'e1-la, quando sabia que Marcela evitava
\par encontrar-se com ela?
\par Em casa, Marcela n\'e3o sabia o que dizer. Quase n\'e3o acreditava que Luciana irrompera pela porta de forma t\'e3o intempestiva. V\'ea-la causou-lhe um certo tremor no cora\'e7\'e3o,
\par muito mais pelo medo do que pela paix\'e3o. Marcela n\'e3o negava que fora apaixonada por Luciana nem queria rejeit\'e1-la e deix\'e1-la magoada, mas a situa\'e7\'e3o que vivia agora
\par era outra. Amava Fl\'e1vio e n\'e3o podia correr o risco de que ele a deixasse, caso descobrisse que ela e Luciana haviam sido amantes. Ainda mais depois da conversa que
\par tiveram no outro dia, quando ele lhe dissera que desaprovava a rela\'e7\'e3o entre duas mulheres.
\par -O que foi que houve, meu bem? - perguntou ele, olhando para ela com ar inocente. - Quem era aquela? Acho que j\'e1 a vi em algum lugar, mas n\'e3o me lembro de
\par onde.
\par -\'c9 Luciana - respondeu Marcela com cuidado. - Voc\'ea a viu no casamento de Ma\'edsa, lembra-se?
\par -Ah! Aquela sua amiga. Agora me lembro. O que ela queria?
\par -N\'e3o sei. Ela n\'e3o teve tempo de me dizer. Acho que ficou sem gra\'e7a e foi embora.
\par -Ser\'e1 que ela est\'e1 pensando mal de voc\'ea? Quero dizer, ela n\'e3o \'e9 do tipo puritana, \'e9?
\par -N\'e3o, n\'e3o. Luciana \'e9 uma mo\'e7a liberal. \'c9 dentista e tamb\'e9m mora sozinha. Na verdade - acrescentou com cautela -, n\'f3s moramos juntas quando viemos de Campos.
\par -Moraram? Mas ent\'e3o, voc\'eas devem ser amigas \'edntimas. O que foi que aconteceu entre voc\'eas? Brigaram?
\par -N\'e3o exatamente.
\par -N\'e3o v\'e1 me dizer que ela... - interrompeu a fala, conca-tenando as id\'e9ias, at\'e9 que prosseguiu: - N\'e3o v\'e1 me dizer que foi por causa dela que o seu ex-namorado
\par a deixou. Foi isso, Marcela? Foi por isso que voc\'ea tentou se matar? Porque o seu namorado a trocou pela sua melhor amiga?
\par Fl\'e1vio estava criando uma hist\'f3ria em cima do que acontecera a ela, s\'f3 que uma hist\'f3ria bem distante da realidade, o que deixou Marcela extremamente confusa. Tinha
\par a chance de lhe contar a verdade, mas o medo a paralisou. N\'e3o seria melhor deixar que ele acreditasse naquela fantasia, desviando assim as suspeitas sobre o seu
\par passado? A vinda de Luciana talvez ainda a ajudasse, fazendo com que Fl\'e1vio jamais desconfiasse de que elas haviam sido amantes. Era uma mentira, mas uma mentira
\par conveniente e providencial, que ela bem poderia aproveitar em seu benef\'edcio. Mas, ainda assim, era uma mentira, e ela n\'e3o estava acostumada a mentir. Sim, mas, na
\par verdade, ela n\'e3o seria obrigada a mentir. Podia simplesmente se calar e deixar que Fl\'e1vio pensasse o que quisesse.
\par -N\'e3o quero falar sobre isso - ela encerrou o assunto, com ar meio zangado.
\par A rea\'e7\'e3o de Marcela deu a Fl\'e1vio a certeza de que fora aquilo mesmo que acontecera, e ele se calou. Prometera a Marcela que n\'e3o faria perguntas sobre o seu passado
\par e pretendia cumprir a promessa. Apesar da curiosidade, n\'e3o disse nada e tomou-a nos bra\'e7os, amando-a com uma paix\'e3o e uma ternura ainda maiores, imaginando o quanto
\par ela deveria ter sofrido com aquela dupla trai\'e7\'e3o.
\par Na segunda-feira, Marcela levantou-se para trabalhar como sempre fazia. Havia passado um dia maravilhoso ao lado de Fl\'e1vio e estava ainda sob o efeito das lembran\'e7as
\par suaves do que haviam vivido na v\'e9spera, quando chegou \'e0 escola em que dava aulas. Ela estava de bem com a vida, e o dia transcorreu de forma maravilhosa. Quando
\par o turno da manh\'e3 terminou, Marcela apanhou as suas coisas e dirigiu-se para o ponto de \'f4nibus. Gostava de lecionar, mas Fl\'e1vio a convencera a parar de trabalhar
\par depois do casamento, e ela estava decidida a s\'f3 cuidar da casa e dos filhos.
\par No ponto de \'f4nibus, ficou esperando, at\'e9 que um carro \'faltimo tipo parou perto dela, e uma mo\'e7a jovem e muito bonita lhe pediu uma informa\'e7\'e3o:
\par -Estou perdida e n\'e3o sei como chegar a esse endere\'e7o. Voc\'ea pode me ajudar?
\par Ao pegar o papelzinho que a mo\'e7a lhe estendia, Marcela levou um susto. Era a sua rua, e o n\'famero ficava bem pr\'f3ximo do seu.
\par -Mo\'e7a, voc\'ea n\'e3o vai acreditar na coincid\'eancia, mas o fato \'e9 que eu moro nessa mesma rua e perto do n\'famero para onde voc\'ea vai.
\par -\'c9 mesmo? - a outra fingiu surpresa. - Mas que coincid\'eancia, hein?
\par -Nunca vi nada igual.
\par -Tenho uma id\'e9ia. Por que voc\'ea n\'e3o entra, e eu lhe dou uma carona? Assim voc\'ea me mostra onde fica e n\'e3o precisa tomar o \'f4nibus.
\par Marcela olhou para ela com hesita\'e7\'e3o. N\'e3o conhecia aquela mo\'e7a e lembrou-se dos conselhos da m\'e3e, quando era crian\'e7a, dizendo-lhe para n\'e3o entrar em carros de estranhos.
\par No entanto, a coincid\'eancia era um fato, e a mo\'e7a, apesar de estranha, n\'e3o parecia capaz de lhe fazer nenhum mal. Pela apar\'eancia e pelo carro, tratava-se de pessoa
\par muito rica, e ela bem podia imaginar a dificuldade em encontrar um endere\'e7o num bairro de classe m\'e9dia inferior feito o seu.
\par E depois, estava chovendo, e a condu\'e7\'e3o sempre demorava.
\par N\'e3o faria mal nenhum aceitar aquela carona. Seria bom para a mo\'e7a e para ela tamb\'e9m.
\par -Est\'e1 certo - concordou Marcela por fim, abrindo a porta do carro e entrando devagar.
\par A outra p\'f4s o autom\'f3vel em movimento e come\'e7ou a conversar:
\par -Meu nome \'e9 Adriana. E o seu?
\par -Marcela.
\par -Muito prazer, Marcela - revidou Ariane, entusiasmada por ter conseguido dar in\'edcio ao plano de Dolores com tanto sucesso.
\par N\'e3o foi dif\'edcil para Dolores descobrir onde Marcela trabalhava. O pr\'f3prio filho lhe deu a informa\'e7\'e3o, achando que tudo n\'e3o passava de uma natural curiosidade de
\par m\'e3e. Deu-lhe o nome da escola e o hor\'e1rio em que Marcela sa\'eda, inclusive o n\'famero do \'f4nibus que costumava tomar. Seu endere\'e7o tamb\'e9m foi f\'e1cil de conseguir porque,
\par numa conversa informal, ele disse tudo, at\'e9 satisfeito com o interesse da m\'e3e por Marcela.
\par De posse dessas informa\'e7\'f5es, n\'e3o foi dif\'edcil montar o plano. Dolores escolheu um n\'famero pr\'f3ximo \'e0quele em que Marcela vivia e mandou que Ariane lhe pedisse informa\'e7\'f5es.
\par -E o que vou fazer na casa de um estranho? - perguntou Ariane, logo que tomou conhecimento do plano.
\par -Seja sonsa e pergunte por qualquer um: Paulo, Pedro, sei l\'e1. Muito provavelmente, n\'e3o vai morar ningu\'e9m naquela casa com o nome que voc\'ea der. Pe\'e7a ent\'e3o
\par desculpas e chore no ombro de Marcela, dizendo-se enganada por algum rapaz por quem voc\'ea se apaixonou e se aproveitou da sua ingenuidade. Isso vai sensibiliz\'e1-la,
\par e ela vai tentar consolar voc\'ea.
\par -Como sabe que ela vai tentar me consolar?
\par -Isso faz bem o tipo de Marcela: a tola boazinha.
\par -E se o n\'famero n\'e3o existir?
\par -Ent\'e3o, ser\'e1 mais f\'e1cil ainda. Diga que ele lhe deu um endere\'e7o inexistente.
\par -Mas... e se ela me perguntar por que fui procurar o rapaz?
\par -Diga que ele n\'e3o lhe deixou n\'famero de telefone e voc\'ea est\'e1 apaixonada por ele, mas ele sumiu de repente, logo ap\'f3s conseguir lev\'e1-la para a cama. Isso vai
\par deix\'e1-la ainda mais sen sibilizada. Ah! E n\'e3o esque\'e7a: mude de nome.
\par No come\'e7o, Ariane sentiu medo de se aproximar da pessoa errada mas a descri\'e7\'e3o daquela mo\'e7a batia com a que Dolores lhe dera de Marcela. Mesmo com medo, arriscou
\par e acertou em cheio. Embora ela n\'e3o lhe dissesse o nome antes de entrar no carro, era imposs\'edvel haver duas pessoas, com a mesma descri\'e7\'e3o f\'edsica, trabalhando no
\par mesmo local e morando na mesma rua. Ariane chegou \'e0 escola antes do turno de Marcela terminar e viu quando ela atravessou a rua, a caminho do ponto de \'f4nibus. Achou-a
\par bonitinha, embora um tanto sem gra\'e7a, e ficou imaginando o que Fl\'e1vio vira naquela mo\'e7a para deix\'e1-lo t\'e3o apaixonado. Ela, Ariane, era muito mais bonita, fina, rica
\par e elegante do que aquela Marcela, que lhe pareceu muito t\'edmida e sem classe.
\par Era preciso, contudo, ocultar a indigna\'e7\'e3o e fingir-se de aflita, para que Marcela acreditasse na hist\'f3ria que lhe contaria.
\par -Estou muito nervosa, Marcela - comentou Ariane, emprestando um excessivo tom de nervosismo \'e0 voz. - Nunca vim \'e0 casa de um rapaz antes.
\par -\'c9 um rapaz que procura?
\par -\'c9, sim. Meus pais n\'e3o sabem que vim aqui, mas estou desesperada. Ele me fez mal e agora sumiu.
\par -Como assim, fez mal?
\par -Transou comigo. Por favor, n\'e3o fa\'e7a mau ju\'edzo de mim. Estou t\'e3o desesperada!
\par Ariane come\'e7ou a for\'e7ar o choro, e Marcela a tranq\'fcilizou:
\par -Acalme-se, Adriana, n\'e3o tenho nada com a sua vida e n\'e3o estou fazendo nenhum mau ju\'edzo de voc\'ea. Sei bem como s\'e3o essas coisas.
\par -Voc\'ea sabe?
\par -Sim... Quero dizer, j\'e1 estive apaixonada antes e entendo o que voc\'ea deve estar passando.
\par -Fico aliviada. N\'e3o tenho ningu\'e9m com quem conversar.
\par -Uma mo\'e7a t\'e3o bonita e fina! N\'e3o \'e9 poss\'edvel que n\'e3o tenha amigas.
\par -Minhas amigas se afastaram de mim quando comecei a namorar esse rapaz, s\'f3 porque ele \'e9 pobre.
\par -Oh! Mas que preconceito tolo!
\par -Tamb\'e9m acho, mas voc\'ea n\'e3o tem id\'e9ia de como as mo\'e7as da sociedade s\'e3o esnobes. At\'e9 meus pais s\'e3o assim, e \'e9 por isso que eles foram contra o nosso namoro.
\par Imagine, agora, se eles descobrem que eu e o Mike j\'e1 transamos.
\par Ela escolheu um nome estrangeiro para n\'e3o correr o risco de encontrar algu\'e9m com o mesmo nome na casa em que fosse procurar, e Marcela retrucou:
\par -Isso n\'e3o \'e9 nada demais, Adriana. Hoje em dia as coisas est\'e3o ficando mais liberais.
\par -Pode at\'e9 ser, desde que eu me entregasse a algu\'e9m de nosso meio. Mas a um p\'e9-rapado, como diz a minha m\'e3e...
\par Enquanto dirigia, Ariane ia seguindo as instru\'e7\'f5es de Marcela, at\'e9 que chegaram \'e0 rua em que ela morava.
\par -\'c9 aqui que eu moro - informou Marcela, apontando para um pr\'e9dio de quatro andares logo no come\'e7o da rua.
\par O pr\'e9dio pareceu horr\'edvel a Ariane, que virou o rosto para o lado, a fim de que Marcela n\'e3o visse o seu ar de repulsa. N\'e3o entendia como Fl\'e1vio podia se envolver
\par com aquela mulherzinha pobre e vulgar. Mas era preciso continuar fingindo e levar adiante o plano bolado por Dolores.
\par -Ser\'e1 que voc\'ea n\'e3o poderia me acompanhar at\'e9 a casa do Mike? Estou t\'e3o apavorada!
\par Marcela considerou por alguns segundos, j\'e1 come\'e7ando a sentir pena daquela mo\'e7a rica e infeliz.
\par -Est\'e1 bem - concordou. - Vou com voc\'ea at\'e9 l\'e1 e depois venho para casa.
\par Na mesma hora, Ariane acelerou o carro e parou em frente ao n\'famero que tinha anotado no papel. Era um outro pr\'e9dio, e Marcela lhe chamou a aten\'e7\'e3o para o fato de
\par que o n\'famero que ela possu\'eda n\'e3o indicava o apartamento.
\par -Ser\'e1 que \'e9 aqui mesmo? - duvidou Ariane.
\par -Esse \'e9 o n\'famero que voc\'ea tem.
\par -Mas qual ser\'e1 o apartamento?
\par -Vamos tocar em todos.
\par -Tocar em todos? Ficou maluca? V\'e3o-nos xingar. O pr\'e9dio \'e9 muito grande, vai ser imposs\'edvel localizar o apartamento do Mike.
\par -Vamos perguntar ao porteiro. Mike n\'e3o \'e9 um nome comum, e o porteiro deve conhecer.
\par Marcela saiu do carro, com Ariane atr\'e1s dela, envergonhada por se ver naquela situa\'e7\'e3o, parada diante de um edif\'edcio t\'e3o simples e em companhia de uma mo\'e7a t\'e3o pobre,
\par mas n\'e3o tinha jeito. Se pretendia levar avante o plano, tinha que engolir a repulsa e seguir as ordens de Dolores.
\par -Por favor - come\'e7ou Marcela, dirigindo-se ao homem que estava na portaria. - O senhor conhece algum Mike que more aqui?
\par -Mike? - repetiu o homem, de olho no carro elegante de Ariane. - Aqui n\'e3o \'e9 lugar de bacana, n\'e3o, mo\'e7as. Estrangeiro por aqui s\'f3 o Joaquim da padaria.
\par -Ele n\'e3o \'e9 estrangeiro - objetou Marcela, olhando de esguelha para Ariane, que negou com a cabe\'e7a.
\par -Pior ainda. Brasileiro com esse nome n\'e3o tem por aqui, n\'e3o.
\par -Tem certeza?
\par -Absoluta. Trabalho aqui h\'e1 oito anos e nunca vi nem ouvi falar de nenhum Mike.
\par -Ser\'e1 que n\'e3o se mudou ningu\'e9m para c\'e1 chamado Mike e o senhor n\'e3o viu?
\par -Mo\'e7a, n\'e3o se muda ningu\'e9m para c\'e1 h\'e1 bem uns cinco anos.
\par -Mas o senhor tem certeza?
\par -J\'e1 disse que tenho. N\'e3o tem nenhum Mike aqui nesse pr\'e9dio, n\'e3o. Pode acreditar.
\par -Est\'e1 certo - finalizou Marcela desapontada. - Obrigada.
\par As duas voltaram para o carro, e Ariane, apesar de exultante,
\par conseguiu imprimir \'e0s fei\'e7\'f5es uma express\'e3o de tanta dor, que Marcela se condoeu ainda mais.
\par -N\'e3o fique assim, Adriana, voc\'ea deve ter anotado o endere\'e7o errado.
\par -N\'e3o! Ele \'e9 um mentiroso, falso! Aproveitou-se de mim e depois me deixou. Eu bem devia ter desconfiado, mas sou uma tola, rom\'e2ntica, acreditei que ele me
\par amava. Isso \'e9 bem feito, para eu aprender a n\'e3o confiar nos homens.
\par -Voc\'ea diz isso agora, porque est\'e1 magoada, mas vai passar.
\par -Duvido. Nunca mais vou me apaixonar por ningu\'e9m, nunca!
\par Ela estava t\'e3o descontrolada que Marcela se preocupou e
\par apertou a sua m\'e3o.
\par -Por que n\'e3o vamos \'e0 minha casa? Posso lhe preparar um ch\'e1.
\par -Obrigada, Marcela, mas voc\'ea j\'e1 fez demais por mim. Eu nem a conhe\'e7o e a envolvi nos meus problemas, fiz voc\'ea se expor e estou perturbando-a com as minhas
\par lam\'farias. Voc\'ea n\'e3o tem nada com isso.
\par -N\'e3o posso deix\'e1-la ir embora assim. Vamos, venha at\'e9 a minha casa e beba alguma coisa. Voc\'ea vai se sentir melhor, tenho certeza.
\par Era tudo o que Ariane queria, e ela aceitou exultante, embora demonstrasse uma certa contrariedade.
\par -Est\'e1 bem, mas n\'e3o quero atrapalhar.
\par -N\'e3o vai atrapalhar.
\par Seguiram para o apartamento de Marcela, que levou Ariane direto para a cozinha e p\'f4s-se a preparar um ch\'e1.
\par -Voc\'ea mora sozinha? - indagou Ariane.
\par -Moro. Minha fam\'edlia \'e9 de Campos, e eu vim para o Rio estudar.
\par -Voc\'ea os v\'ea com freq\'fc\'eancia?
\par -Na verdade, desde que sa\'ed de l\'e1, foram poucas as vezes que os vi.
\par -Deve se sentir muito s\'f3.
\par -Um pouco.
\par -N\'e3o tem ningu\'e9m na sua vida? Um namorado?
\par -Tenho um namorado, mas ele n\'e3o mora comigo.
\par -Ele a ama?
\par -Acho que sim.
\par -E voc\'ea o ama?
\par -Muito. Sou louca por ele.
\par -Deve ser muito bom amar algu\'e9m - revidou ela, com raiva por Marcela estar se referindo a Fl\'e1vio.
\par -\'c9, sim, \'e9 maravilhoso.
\par -E como foi que voc\'eas se conheceram?
\par Marcela n\'e3o gostava de falar sobre a sua vida particular, mas Adriana era uma estranha que nada sabia a seu respeito e com quem poderia iniciar uma nova amizade.
\par -No hospital. Ele \'e9 m\'e9dico.
\par -E voc\'ea \'e9 enfermeira?
\par -N\'e3o, n\'e3o, sou professora. Trabalho naquela escola em frente ao ponto de \'f4nibus em que voc\'ea me encontrou. Conhecemo-nos no hospital porque eu estava doente,
\par e foi ele quem cuidou de mim.
\par -Doente? O que voc\'ea teve?
\par -Bem, n\'e3o propriamente doente. Eu passei mal e fui atendida por ele.
\par -Mal de qu\'ea?
\par -Eu... - ela hesitou - na verdade... eu tentei me matar.
\par Ariane n\'e3o esperava por aquilo e, instintivamente, levou a m\'e3o
\par \'e0 boca, sufocando um grito de espanto.
\par -Por que voc\'ea fez isso?
\par A curiosidade suplantou a raiva que ela sentia de Marcela e, por uns instantes, Ariane viu-se interessada na vida daquela mo\'e7a que mal conhecia. Marcela, por sua
\par vez, sentia estranha confian\'e7a em Ariane e sequer lhe passava pela cabe\'e7a a trama s\'f3rdida em que a estava envolvendo. Sentia vontade de lhe contar tudo, mas o medo
\par e a vergonha a fizeram recuar, e ela contou apenas uma parte da hist\'f3ria.
\par -Tive uma decep\'e7\'e3o amorosa.
\par -Meu Deus! E eu aqui, chorando por causa de um idiota qualquer.
\par -N\'e3o diga isso. Cada um tem os seus problemas, e a nossa dor parece sempre a maior, porque n\'e3o podemos sentir a de mais ningu\'e9m.
\par Ariane ficou vendo Marcela preparar o ch\'e1 em sil\'eancio e observou a cozinha. Era pequena, mas estava muito limpa e brilhando, como de resto, todo o apartamento. E
\par havia algo naquela mo\'e7a que a deixava inquieta. Ela a odiava s\'f3 pelo fato de estar lhe roubando o namorado, mas parecia simp\'e1tica e inteligente, bem diferente do
\par que lhe dissera Dolores. Ser\'e1 que era certo o que estava fazendo? Tentando descobrir seus segredos para us\'e1-los contra ela?
\par N\'e3o perguntou mais nada. Bebeu o ch\'e1 ainda em sil\'eancio e s\'f3 depois voltou a falar:
\par -Est\'e1 ficando tarde e tenho que ir embora.
\par -N\'e3o quer ficar para almo\'e7ar? Sou excelente cozinheira. Fl\'e1vio sempre diz isso.
\par -Fl\'e1vio?
\par -\'c9. O meu namorado.
\par O nome Fl\'e1vio, pronunciado com tanta intimidade por Marcela,
\par reavivou a raiva de Ariane, que se lembrou do porqu\'ea estava ali e do plano que deveria seguir. Mas j\'e1 era realmente tarde, e ela n\'e3o tinha mais est\'f4mago para prosseguir
\par no mesmo dia. Tinha que ir com calma e deixaria o resto para depois.
\par -Eu realmente preciso ir embora - lamentou, levantando-se e apanhando a bolsa. - Mas ser\'e1 que n\'e3o poder\'edamos nos ver novamente? Estou precisando tanto de
\par uma amiga, e voc\'ea foi t\'e3o atenciosa comigo!
\par -Venha quando quiser, Adriana. Ser\'e1 um prazer conversar com voc\'ea. Espere! Vou-lhe dar o meu telefone.
\par Ariane apanhou o telefone de Marcela e sorriu intimamente, certa de que a outra ca\'edra como um patinho em seu plano.
\par -Vou telefonar para voc\'ea, Marcela. Podemos nos encontrar para um ch\'e1 ou um lanche.
\par -Vai ser muito bom.
\par Despediram-se, e Ariane saiu com o cora\'e7\'e3o aos pulos. Estava dando certo! Ia dar tudo certo. Marcela n\'e3o desconfiara de nada e j\'e1 no primeiro encontro revelara particularidades
\par de sua vida. Em breve, todo o seu passado estaria desvendado, e Ariane tinha certeza de que teria em m\'e3os as armas com que poderia destru\'ed-la.
\par ***
\par Depois de deixar Marcela, Ariane voltou para casa exultante, ainda sob o efeito do sucesso de seu plano. Mal abriu a porta, vozes altercadas alcan\'e7aram seus ouvidos,
\par e ela parou hesitante. Os pais estavam brigando, o que a deixou transtornada. N\'e3o ag\'fcentava mais aquelas brigas. Aproximou-se vagarosamente e ficou observando-os
\par de longe. A m\'e3e suava frio e estava \'e0 beira das l\'e1grimas, e o pai parecia prestes a ter um ataque do cora\'e7\'e3o. Andava de um lado para outro da sala e gritava enraivecido:
\par -N\'e3o suporto mais isso! N\'e3o tenho sossego dentro da minha pr\'f3pria casa!
\par -Essa nem parece mais a sua casa. Voc\'ea entra como se fosse um estranho e sai feito um desconhecido.
\par -Isso \'e9 porque voc\'ea n\'e3o me d\'e1 paz. Vive me apoquentando com a sua ladainha!
\par -Ser\'e1 que \'e9 demais pedir que voc\'ea se comporte como meu marido? Voc\'ea n\'e3o me d\'e1 mais aten\'e7\'e3o, n\'e3o liga para mim.
\par -Quer saber, Anita? \'c9 voc\'ea quem n\'e3o liga mais para si mesma. Parece uma matrona, toda largada e feia.
\par -Ent\'e3o \'e9 por isso que voc\'ea n\'e3o me procura mais? Porque estou gorda e feia?
\par -Voc\'ea nem se parece mais com a mulher com quem me casei!
\par -E o nosso amor, N\'e9lson, onde \'e9 que fica?
\par -Nosso amor? - ele hesitou, mas acabou se enchendo de coragem e disparou: - Acabou. Quem \'e9 que pode amar uma criatura feito voc\'ea?
\par -N\'e3o fa\'e7a isso comigo - suplicou ela, atirando-se em seus bra\'e7os e tentando beij\'e1-lo. - Sou sua mulher, ainda o amo.
\par Ele se desvencilhou com rispidez, atirando-a para o lado, e rebateu com ar de repulsa:
\par -Voc\'ea me d\'e1 nojo. \'c9 asquerosa, gorda e desleixada. Nenhum homem pode sentir atra\'e7\'e3o por voc\'ea.
\par Anita come\'e7ou a chorar e se teria atirado no ch\'e3o, n\'e3o fosse a entrada s\'fabita de Ariane. Ouvira o suficiente para n\'e3o permitir que o pai humilhasse ainda mais a
\par m\'e3e.
\par -Papai! - berrou ela, com ar reprovador. - N\'e3o tem vergonha de falar assim com a sua pr\'f3pria mulher?
\par Ele ficou confuso, fitando a filha com ar de assombro. Sem dizer nada, virou as costas e saiu porta afora, lan\'e7ando ainda um \'faltimo olhar de raiva para Anita, que
\par chorava descontrolada. Ariane se aproximou dela e enla\'e7ou-a com ternura, sentando-a no sof\'e1 e tentando acalmar o seu pranto.
\par -Isso n\'e3o pode ficar assim, m\'e3e. N\'e3o est\'e1 direito o que papai faz com voc\'ea.
\par -Voc\'ea ouviu o que ele disse?
\par Ouvi o bastante para saber que o seu casamento acabou.
\par -N\'e3o diga isso! Casei-me para sempre.
\par -E voc\'ea vai ficar se sujeitando a essas humilha\'e7\'f5es? Est\'e1 na cara que ele n\'e3o a ama nem a deseja mais. Por que rasteja desse jeito?
\par -O que posso fazer, minha filha? N\'e3o tenho dinheiro, n\'e3o tenho ningu\'e9m. S\'f3 voc\'eas e ele.
\par -Huguinho ainda \'e9 muito crian\'e7a, n\'e3o entende dessas coisas, e os outros dois est\'e3o longe. Voc\'ea s\'f3 tem a mim, m\'e3e. N\'e3o pode contar com papai para nada.
\par -Oh! Ariane, o que vou fazer? Quero mudar, mas n\'e3o consigo!
\par -Voc\'ea devia ter umas conversas com Dolores, m\'e3e de Fl\'e1vio. Ela \'e9 uma mulher e tanto!
\par -De jeito nenhum! E onde fica o meu orgulho? Dolores \'e9 praticamente uma estranha. Al\'e9m disso, \'e9 esnobe e, provavelmente, vai rir de mim.
\par -Tudo bem, voc\'ea \'e9 quem sabe. Mas eu ainda acho que desse jeito n\'e3o d\'e1 para ficar. Por que ao menos n\'e3o experimenta mudar o visual? Voc\'ea podia sair, ir ao
\par cabeleireiro, fazer as unhas. Quem sabe at\'e9 comprar uma roupa nova?
\par -Que roupa? Daquelas lojas especiais que s\'f3 vendem roupas para gordinhas? N\'e3o, obrigada. Acho aquilo horr\'edvel.
\par -\'c9 melhor do que andar malvestida do jeito como voc\'ea anda.
\par -Oh! Ariane! - solu\'e7ou Anita, deitando no colo da filha. - Estou t\'e3o deprimida! Agora percebo que meu casamento foi um erro.
\par -Tamb\'e9m n\'e3o precisa exagerar. Nos primeiros tempos n\'e3o deve ter sido
\par assim.
\par -No come\'e7o, tudo parecia maravilhoso. Seu pai tinha dinheiro, e eu era linda. Mas agora compreendo que nunca houve amor por parte dele. Ele n\'e3o queria se
\par casar comigo, era por outra que estava apaixonado.
\par -O qu\'ea? Voc\'ea nunca me contou isso.
\par -Estou contando agora. Ele amava uma mo\'e7a pobre, mas os pais dele n\'e3o consentiram no casamento. Foi por isso que se casou comigo.
\par -Mas... que disparate! - ela estava confusa com aquela revela\'e7\'e3o, sem saber direito o que pensar. - Se ele amasse a mo\'e7a de verdade, teria batido o p\'e9 e
\par se casado com ela.
\par -Voc\'ea n\'e3o sabe... Sua av\'f3 e eu fizemos uma coisa terr\'edvel!
\par -O que voc\'eas fizeram? - interessou-se Ariane, cada vez mais aturdida.
\par -Oh! Minha filha, jura que n\'e3o vai me odiar por isso? N\'e3o vai me achar uma mulher cruel e mesquinha?
\par -N\'e3o vou achar nada de voc\'ea, m\'e3e. Mas me diga: o que foi que voc\'eas fizeram?
\par -N\'f3s lhe oferecemos dinheiro... muito dinheiro... para que
\par ela o deixasse.
\par -E ela o deixou?
\par -Sim.
\par -Mas, ent\'e3o, ela n\'e3o o amava. Se o amasse jamais teria aceitado. Voc\'ea n\'e3o devia se torturar por causa disso.
\par -Voc\'ea n\'e3o est\'e1 entendendo. N\'e3o \'e9 o fato de ele n\'e3o ter se casado com a mo\'e7a que me tortura. \'c9 porque ele acabou se casando comigo sem me amar. Eu o queria
\par a qualquer pre\'e7o, sem pensar nas conseq\'fc\'eancias de um casamento sem amor. N\'e3o se case sem amor, Ariane, n\'e3o estrague a sua vida como
\par eu estraguei a minha.
\par -Eu n\'e3o vou fazer isso...
\par -Quando vejo voc\'ea e Fl\'e1vio, fico pensando. Ele n\'e3o a ama, mas voc\'ea o quer assim mesmo. Cuidado para n\'e3o fazer como eu fiz.
\par Ariane se levantou nervosa e come\'e7ou a andar de um lado a outro, pensando no que a m\'e3e lhe dizia e no que ela pr\'f3pria tava fazendo.
\par -N\'e3o tenho nada a ver com voc\'ea, m\'e3e - rebateu ela rapidamente. - Ao contr\'e1rio de papai, Fl\'e1vio me ama.
\par N\'e3o force um casamento sem amor, Ariane. Vai estragar a sua vida.
\par -N\'e3o estou for\'e7ando nada. Fl\'e1vio me ama, voc\'ea vai ver.
\par -Tem certeza?
\par Se havia alguma coisa de que Ariane tinha certeza, era que Fl\'e1vio n\'e3o a amava. Percebia pelos seus gestos, as suas palavras, a forma como a tratava. Tudo indicava
\par que estava mesmo apaixonado por aquela tal de Marcela, que ela conhecera naquele dia. Contudo, apesar dessa certeza, Ariane ficava dizendo para si mesma que Fl\'e1vio
\par poderia vir a am\'e1-la com o tempo. Quando descobrisse o quanto ela era carinhosa e meiga, voltaria para ela a sua afei\'e7\'e3o, e os dois poderiam ser felizes juntos.
\par Seria isso verdade? Ouvindo as palavras de Anita, Ariane ficou confusa. Aquilo era uma revela\'e7\'e3o muito significativa do passado da m\'e3e e do pai. Ela nunca soubera
\par daquele detalhe do casamento dos dois e ficou comparando as duas situa\'e7\'f5es, dizendo a si mesma que eram diferentes. Mas diferentes em qu\'ea? Ela n\'e3o
\par tencionava dar dinheiro a Marcela, como a m\'e3e fizera com a tal mo\'e7a. O que pretendia era descobrir algo em seu passado que acabasse com a confian\'e7a e a admira\'e7\'e3o
\par que Fl\'e1vio tinha por ela.
\par Se n\'e3o descobrisse nada no passado de Marcela que pudesse servir aos seus prop\'f3sitos, o que faria? Seguia a intui\'e7\'e3o de Dolores. Dolores conhecia muito bem a vida
\par das pessoas para saber quando elas escondiam algo importante. E se Dolores achava que Marcela escondia algo importante de seu passado, era porque realmente escondia.
\par Isso n\'e3o era o mesmo que tentar comprar a mo\'e7a. At\'e9 porque, Dolores n\'e3o a julgava venal, sen\'e3o j\'e1 teria lhe oferecido uma boa quantia para ela sumir da vida de Fl\'e1vio.
\par O que elas tencionavam era muito diferente do que a m\'e3e fizera. Era um favor, um bem que fariam a Fl\'e1vio livrando-o de uma mentirosa, falsa e fingida. Com isso,
\par ele
\par se decepcionaria, e o amor que pensava sentir por Marcela se desmancharia, deixando-o livre para amar qualquer outra que o cobrisse de aten\'e7\'f5es e carinhos. E aquela
\par outra seria ela. Tinha que ser ela.
\par Contudo as palavras da m\'e3e ficavam se repetindo em sua cabe\'e7a: n\'e3o force um casamento sem amor, o que a deixava transtornada. N\'e3o queria for\'e7ar Fl\'e1vio a se casar
\par com ela; queria que ele a amasse. Estava fazendo aquilo em nome do amor, para despertar nele esse sentimento por ela. Mas n\'e3o estaria ela se iludindo? Ser\'e1 que n\'e3o
\par estava se deixando levar pela conversa de Dolores, prestando-se ao papel de espi\'e3 traidora s\'f3 para satisfazer a sua vontade? N\'e3o sabia mais o que pensar.
\par - Venha, m\'e3e - disse ela por fim, puxando Anita pela m\'e3o. - N\'e3o vamos mais pensar nisso. Vamos sair e nos distrair um pouco.
\par J\'e1 era de noite, e as duas se aprontaram para ir a um restaurante. Anita, pela primeira vez em muitos anos, aceitou um convite para sair sem o marido e foi jantar
\par com a filha. N\'e3o tinha nada bonito para vestir, mas Ariane improvisou algo, com um xale e sapatos altos. Maquiou a m\'e3e e prendeu seu cabelo num coque benfeito. N\'e3o
\par estava nenhuma maravilha, mas ao menos n\'e3o chamava a aten\'e7\'e3o de forma negativa.
\par Quando chegaram ao restaurante, n\'e3o havia mais mesas vagas, e elas tiveram que esperar, para desespero de Anita, que se sentia mal todas as vezes em que se via exposta
\par aos olhares alheios.
\par -N\'e3o podemos ir a outro lugar? - sugeriu ela, acabrunhada.
\par -Acho melhor - concordou Ariane, desanimada com a quantidade de pessoas \'e0 sua frente.
\par J\'e1 iam saindo quando o maitre as alcan\'e7ou, tocando Ariane no bra\'e7o.
\par -Perd\'e3o, senhoras - falou ele polidamente -, mas h\'e1 um senhor l\'e1 dentro que diz que as conhece e mandou perguntar se as senhoras n\'e3o gostariam de acompanh\'e1-lo
\par ao jantar.
\par -Quem? - indagou Ariane, olhando para o maitre com uma certa desconfian\'e7a.
\par -Acompanhem-me, que eu lhes mostro.
\par Anita olhou para a filha com ar de s\'faplica. N\'e3o queria que ningu\'e9m mais a visse, mas Ariane fingiu n\'e3o perceber. Ficou curiosa para saber quem as chamava e saiu
\par puxando a m\'e3e, apesar de seus protestos quase mudos, seguindo atr\'e1s do maitre. Ele as levou para uma mesa no centro, onde um senhor jovem tomava um drinque, desacompanhado,
\par tendo em m\'e3os o card\'e1pio aberto. Quando elas chegaram, o homem levantou os olhos e sorriu amistosamente, indagando com jovialidade:
\par -Como vai, Ariane? N\'e3o gostaria de me fazer companhia?
\par -Justino! Mas que surpresa! Ser\'e1 um prazer acompanh\'e1-lo.
\par Ariane se sentou e repreendeu a m\'e3e com o olhar, fazendo
\par com que ela se sentasse a seu lado.
\par -\'c9 sua m\'e3e, Ariane? - tornou Justino, observando Anita discretamente.
\par -\'c9, sim. N\'e3o se lembra dela?
\par -Est\'e1 um pouco diferente - Anita corou, temendo que ele fizesse algum coment\'e1rio pejorativo, mas ele continuou naturalmente: - Como vai, dona... Anita, n\'e3o
\par \'e9 mesmo?
\par -Este \'e9 o doutor Justino, m\'e3e - interrompeu Ariane. - O pai de Fl\'e1vio.
\par -Ah...! - respondeu ela, completamente sem gra\'e7a. - Vou bem, doutor Justino, e o senhor?
\par -Muito bem, gra\'e7as a Deus. Bom, ainda n\'e3o pedi o jantar. O que voc\'eas v\'e3o querer?
\par A um sinal de Justino, o gar\'e7om trouxe mais dois card\'e1pios, e os tr\'eas fizeram os pedidos. Enquanto comiam, estabeleceram
\par uma conversa amig\'e1vel e despretensiosa, e s\'f3 quando se despediram foi que Anita se deu conta do quanto havia se divertido naquela noite. Justino era um homem alegre
\par e bem-educado e, em momento algum, disse nada que pudesse deix\'e1-la pouco \'e0 vontade ou constrangida.
\par Elas estavam de carro, de forma que Justino n\'e3o precisou lev\'e1-las a casa. Acompanhou-as at\'e9 o estacionamento e tomou o seu pr\'f3prio autom\'f3vel, seguindo direto para
\par seu apartamento. No caminho, ia pensando naquela noite. Fora um jantar agrad\'e1vel e alegre, e ele descobrira que Ariane podia ser inteligente e interessante, muito
\par diferente da mo\'e7a que via sempre em companhia de Dolores.
\par E a m\'e3e dela ent\'e3o? Que mulher ador\'e1vel parecia ser Anita. Culta, inteligente, bonita \'e0 sua maneira, embora um pouco descuidada da apar\'eancia. Justino conhecia bem
\par as pessoas para saber o que os problemas familiares podiam causar \'e0 sua imagem f\'edsica. Ainda mais Anita, cujo marido era amante de sua ex-mulher. Ser\'e1 que ela sabia?
\par Seria por causa disso que relaxara daquela maneira, deixando de cuidar de si mesma e se entregando \'e0 falsa id\'e9ia de que era uma mulher feia e sem direito \'e0 beleza
\par e ao amor?
\par De repente, Justino percebeu que pensava em Anita mais do que deveria. Ela n\'e3o lhe sa\'eda da cabe\'e7a. Podia estar um pouco acima do peso e maltratada, mas isso n\'e3o
\par tinha import\'e2ncia para ele. Justino sabia que, por detr\'e1s daquela gordura, havia uma mulher exuberante e bela, pronta para ser amada e querida. Ele n\'e3o ligava para
\par apar\'eancias e julgava que beleza f\'edsica n\'e3o era nada. Bastava olhar para Dolores: uma mulher linda, elegante, fina, mas sem nenhuma beleza no cora\'e7\'e3o. De que valia
\par tanta beleza exterior, se por dentro s\'f3 o que se via era uma alma turva? E Dolores tinha a alma turva, como nenhuma mulher deveria ter.
\par Apesar do interesse por Anita, Justino procurou tir\'e1-la da cabe\'e7a. Ela era uma mulher casada, e ele n\'e3o pretendia seguir o exemplo de Dolores e de N\'e9lson. O fato
\par de os dois serem amantes n\'e3o era justificativa para que ele iniciasse um caso com Anita. Precisava parar de pensar nela, mas havia algo que o deixava inquieto.
\par Seria piedade, por ela estar sendo enganada pelo marido e deixada de
\par lado por causa da ex-mulher? Ou uma certa empatia, que o fazia aproximar-se dela por causa das circunst\'e2ncias? Ou, o que ele achava mais prov\'e1vel, seria apenas interesse
\par genu\'edno por uma mulher interessante, que n\'e3o precisava de desculpas para atrair a aten\'e7\'e3o de um homem? De qualquer forma, ela era casada, e ele pretendia respeit\'e1-la
\par por isso. E depois, talvez nunca mais a visse, o que o ajudaria a n\'e3o mais pensar nela.
\par O medo passou a ser uma constante na vida de Marcela, pois temia que Fl\'e1vio descobrisse o seu envolvimento com Luciana. V\'ea-la parada na sua porta, naquele dia, causou-lhe
\par imenso constrangimento, e Marcela n\'e3o sabia o que pensar ou como agir. Contudo, ainda sentia por Luciana uma grande afei\'e7\'e3o e n\'e3o podia simplesmente fingir que ela
\par n\'e3o a procurara. Mas por que ela o fizera? Luciana era uma mulher independente e decidida, e Marcela duvidava que ela tivesse voltado atr\'e1s na decis\'e3o de deix\'e1-la.
\par Alguma coisa deveria ter acontecido. Acima de tudo, elas sempre tinham sido amigas, e uma podia confiar na outra para qualquer coisa.
\par Tentou n\'e3o pensar mais naquilo, mas a preocupa\'e7\'e3o foi-se acentuando, at\'e9 deix\'e1-la a tal ponto inquieta, que ela n\'e3o conseguiu mais suportar. Se alguma coisa acontecesse
\par a Luciana, ela jamais se perdoaria por n\'e3o ter, ao menos, tentado ajud\'e1-la. Tomou uma decis\'e3o e foi ao seu consult\'f3rio no M\'e9ier. Chegou cedo, antes do hor\'e1rio de
\par Luciana, e foi Cec\'edlia quem a recebeu com uma certa desconfian\'e7a.
\par -Voc\'ea tem hora marcada? - indagou com um tom intimidador.
\par -N\'e3o. Sou uma amiga.
\par -Uma amiga? Lamento inform\'e1-la, mas a doutora Luciana est\'e1 com a agenda cheia, e n\'e3o sei se vai poder receb\'ea-la.
\par Vai me receber, sim, tenho certeza. Sou amiga de muitos anos.
\par Sem perceber a desconfian\'e7a e o desagrado de Cec\'edlia, Marcela sentou-se para esperar. Poucos minutos depois, a porta da sala de atendimentos se abriu, e Ma\'edsa saiu
\par logo atr\'e1s do \'faltimo paciente daquela manh\'e3. Ao ver Marcela ali sentada, levou um tremendo susto, mas exclamou com satisfa\'e7\'e3o:
\par -Marcela! Que bom ver voc\'ea! O que a trouxe aqui?
\par Marcela a abra\'e7ou meio sem jeito e respondeu baixinho:
\par -\'c9 a Luciana. Preciso falar com ela.
\par -Aconteceu alguma coisa?
\par -N\'e3o sei. Ela foi me procurar no domingo...
\par Nesse instante, Luciana vinha chegando e ficou deveras surpresa ao ver Marcela no consult\'f3rio.
\par -Aconteceu alguma coisa? - indagou ela, mal acreditando no que via.
\par -Foi exatamente o que perguntei a ela - informou Ma\'edsa.
\par -Foi uma surpresa e tanto v\'ea-la aqui.
\par -Sou eu que devo perguntar isso - retrucou Marcela, fitando Luciana com emo\'e7\'e3o. - Vim saber por que voc\'ea foi me procurar no domingo.
\par Luciana olhou de soslaio para Cec\'edlia, sem saber o que dizer. N\'e3o lhe agradava partilhar detalhes de sua vida particular com outras pessoas al\'e9m de Ma\'edsa.
\par -Por que voc\'eas n\'e3o v\'e3o beber alguma coisa? - sugeriu Ma\'edsa, sens\'edvel \'e0 situa\'e7\'e3o. - Deixe o seu primeiro paciente comigo, Luciana. Eu o atenderei.
\par -S\'e9rio?
\par -\'c9 claro. V\'e1, n\'e3o se preocupe.
\par Sob o olhar de f\'faria de Cec\'edlia, Luciana saiu em companhia de Marcela, e foram sentar-se numa lanchonete perto dali. Pediram dois refrigerantes, e Marcela foi a
\par primeira a falar:
\par -Sinto incomod\'e1-la no trabalho, Luciana, mas n\'e3o pude simplesmente ignorar o fato de que voc\'ea foi me procurar, debaixo daquela chuva toda. Aconteceu alguma
\par coisa?
\par -N\'e3o - respondeu Luciana, sem saber o que dizer. Na verdade, nem ela sabia ao certo por que fora procurar Marcela
\par -Espero n\'e3o ter estragado nada.
\par -N\'e3o estragou... Mas deixou Fl\'e1vio pensando que voc\'ea \'e9 a causa do meu quase suic\'eddio.
\par -Como \'e9 que \'e9?
\par -Ele pensa que meu namorado fugiu com voc\'ea, que era a minha melhor amiga.
\par -Que hist\'f3ria \'e9 essa, Marcela?
\par -Fl\'e1vio n\'e3o sabe do meu passado. Pensa que eu tentei me matar por causa de um ex-namorado. Quando viu voc\'ea, achou que esse tal ex-namorado tivesse me abandonado
\par por sua causa.
\par -E voc\'ea o deixou acreditando nessa mentira? Marcela aquiesceu e respondeu em tom de desculpa:
\par -Ele nem desconfia de que fomos amantes. Se souber, vai me deixar.
\par -N\'e3o tenho nada com a sua vida, Marcela, mas, como j\'e1 disse, n\'e3o acho justo engan\'e1-lo. E depois, se ele a ama de verdade, vai aceitar. Afinal, voc\'ea n\'e3o fez
\par nada de sujo nem de errado.
\par -Fl\'e1vio n\'e3o pensa assim.
\par -Ele lhe disse isso?
\par -Disse... mais ou menos.
\par -Tudo bem, Marcela, o problema \'e9 seu. Eu s\'f3 acho que n\'e3o se constr\'f3i um relacionamento em cima de uma mentira. Mais cedo ou mais tarde, ele vai acabar descobrindo.
\par -N\'e3o vai, n\'e3o. S\'f3 se voc\'ea lhe contar.
\par -Eu!? Era s\'f3 o que me faltava! N\'e3o se preocupe, de mim, ele n\'e3o vai saber nada.
\par -Obrigada, Luciana, sabia que podia contar com voc\'ea. Mas n\'e3o foi por isso que vim procur\'e1-la. Fiquei preocupada com voc\'ea. O que foi que houve para voc\'ea aparecer
\par l\'e1 em casa daquele jeito, debaixo daquele temporal?
\par -Aquilo? N\'e3o foi nada. Eu estava me sentindo sozinha e bateu uma saudade de voc\'ea...
\par -Saudade?
\par -\'c9. Das nossas conversas, da nossa amizade. Senti vontade de ver voc\'ea, de saber como estava passando. Gosto de voc\'ea como uma grande amiga e queria lhe dizer
\par isso.
\par A emo\'e7\'e3o levou l\'e1grimas aos olhos de Marcela, que apertou a m\'e3o de Luciana discretamente. As duas estavam t\'e3o entretidas na conversa que nem repararam que estavam
\par sendo observadas. Do outro lado da rua, Cec\'edlia as vigiava, mordendo os l\'e1bios a cada
\par instante. N\'e3o conhecia aquela Marcela, mas n\'e3o tinha d\'favidas de que ela e Luciana eram bem pr\'f3ximas. \'edntimas, para dizer a verdade, o que poderia representar uma
\par amea\'e7a aos seus planos.
\par Assim que o primeiro paciente da tarde havia chegado, Cec\'edlia o encaminhara para Ma\'edsa e esperara at\'e9 que ela fechasse a porta da sala de atendimento para sair.
\par Tirou o fone do gancho, para que o telefone n\'e3o come\'e7asse a tocar e atra\'edsse a aten\'e7\'e3o de Ma\'edsa, e saiu procurando Luciana. S\'f3 havia uma lanchonete a que elas pudessem
\par ter ido, e Cec\'edlia foi direto para l\'e1. Acertara em cheio. Luciana e Marcela conversavam muito pr\'f3ximas, demonstrando uma intimidade que ela nunca vira Luciana ter
\par com ningu\'e9m, nem com Ma\'edsa.
\par Um \'f3dio cego brotou dentro dela. N\'e3o era ci\'fame, mas medo. Medo de que Luciana a deixasse por aquela outra, por quem demonstrava vis\'edvel afei\'e7\'e3o. Com ela, era diferente.
\par Luciana a tratava bem, mas nunca lhe dirigira aquele olhar de ternura que tinha para com aquela mo\'e7a.
\par Alguns minutos depois, Luciana e Marcela se separaram, e Cec\'edlia correu na frente dela, de volta ao consult\'f3rio. Quando chegou, Ma\'edsa ainda estava na sala com o
\par paciente e n\'e3o desconfiou de nada. Passaram-se alguns instantes, e Luciana chegou tamb\'e9m. Vinha com ar de felicidade, o que encheu de \'f3dio o cora\'e7\'e3o de Cec\'edlia.
\par -Quem era aquela? - indagou Cec\'edlia, tentando n\'e3o emprestar \'e0 voz um tom de excessiva cobran\'e7a. - Ouvi Ma\'edsa cham\'e1-la de Marcela.
\par -\'c9 uma amiga - foi a resposta seca.
\par -Que amiga?
\par -N\'e3o interessa. N\'e3o lhe dou o direito de fazer interrogat\'f3rios sobre a minha vida.
\par O sangue subiu \'e0s faces de Cec\'edlia, que teve de fazer um esfor\'e7o tremendo para n\'e3o voar em cima de Luciana.
\par -Ser\'e1 que \'e9 demais eu sentir ci\'fames de uma desconhecida? Afinal, pensei que voc\'ea gostasse de mim.
\par -E gosto.
\par -Ent\'e3o, por que n\'e3o me diz quem \'e9 ela?
\par -Porque voc\'ea n\'e3o tem nada com isso.
\par -N\'e3o quero me intrometer em sua vida, se \'e9 o que est\'e1 pensando. Mas a cumplicidade e a confian\'e7a s\'e3o naturais no relacionamento entre duas pessoas. E voc\'ea
\par n\'e3o confia em mim.
\par -N\'e3o \'e9 isso... - retrucou Luciana, no fundo, dando raz\'e3o \'e0s palavras de Cec\'edlia. - Marcela \'e9 uma amiga de longa data, nada mais.
\par -No entanto, voc\'eas se tratavam com uma intimidade que n\'f3s nunca tivemos.
\par -Impress\'e3o sua. \'c9 que conhe\'e7o Marcela h\'e1 mais tempo do que conhe\'e7o voc\'ea.
\par -Voc\'eas namoraram?
\par Luciana hesitou. N\'e3o havia nada de mau em dizer que ela e Marcela haviam tido um romance, mas ela se lembrou da promessa que lhe fizera e teve medo de revelar a
\par verdade.
\par -Deixe isso para l\'e1, Cec\'edlia. N\'e3o vamos criar um caso por nada. Afinal, \'e9 com voc\'ea que eu estou no momento, n\'e3o \'e9? Esque\'e7a Marcela e pense s\'f3 em n\'f3s.
\par A sa\'edda do paciente foi providencial, deixando Luciana deveras aliviada. Ela se desculpou com o rapaz, agradeceu a Ma\'edsa e entrou na sala de atendimento, dando gra\'e7as
\par a Deus por se livrar do interrogat\'f3rio de Cec\'edlia.
\par No final da tarde, Cec\'edlia a estava esperando para sa\'edrem juntas do consult\'f3rio, mas n\'e3o fez nenhum outro coment\'e1rio sobre a visita de Marcela. Queria descobrir
\par mais, mas tinha que ir devagar, ou Luciana acabaria mandando-a embora. Por isso, ao inv\'e9s de crivar a outra de perguntas, n\'e3o disse nada e tratou
\par de agrad\'e1-la o mais que p\'f4de, para al\'edvio de Luciana.
\par ***
\par Mais tarde, naquele mesmo dia, Fl\'e1vio foi-se encontrar com Marcela em sua casa, como era de costume.
\par -Voc\'ea quer sair para jantar? - perguntou ele, logo ap\'f3s pousar a maleta de m\'e9dico na poltrona.
\par -N\'e3o. Podemos comer aqui hoje. Gosto de cozinhar para voc\'ea.
\par Ele a enla\'e7ou por tr\'e1s, e ela sorriu intimamente, perguntando-se
\par o que ele faria se descobrisse sobre Luciana. Ele nunca poderia descobrir. Luciana prometera n\'e3o contar, e Marcela confiava nela.
\par -O que fez hoje o dia inteiro? - prosseguiu ele. - Liguei para c\'e1 e voc\'ea n\'e3o estava.
\par Ela precisava inventar uma desculpa r\'e1pida para lhe dar, quando se lembrou da mo\'e7a que conhecera na v\'e9spera. Como se esquecera de contar sobre Adriana, podia dizer
\par que tudo se passara naquele dia, e n\'e3o no anterior, e ele jamais ficaria sabendo que ela fora ao encontro de Luciana.
\par -Voc\'ea nem imagina o que aconteceu! - come\'e7ou ela, despertando-lhe a curiosidade.
\par -O qu\'ea?
\par -Conheci uma mo\'e7a na sa\'edda da escola. Ela estava procurando um endere\'e7o, e adivinhe s\'f3: era justamente na minha rua.
\par -N\'e3o brinque! Que coincid\'eancia, n\'e3o?
\par -Pois \'e9. Como eu estava parada no ponto de \'f4nibus, ela me ofereceu uma carona...
\par Fl\'e1vio tinha a aten\'e7\'e3o presa na hist\'f3ria que Marcela lhe contava e ficou perplexo com a situa\'e7\'e3o daquela mo\'e7a.
\par -Como \'e9 que ela se chama?
\par -Adriana.
\par -Adriana de qu\'ea?
\par -Isso eu n\'e3o sei nem me interessei em perguntar. Por qu\'ea?
\par -Voc\'ea disse que ela \'e9 da alta sociedade. Talvez eu a conhe\'e7a.
\par -E se a conhecer, o que vai fazer? Vai contar aos pais dela o que lhe aconteceu?
\par -Eu, n\'e3o! Deus me livre de ser fofoqueiro. Perguntei apenas por curiosidade, porque acho um absurdo o que esse rapaz fez. Esse sujeito \'e9 um canalha. Onde
\par j\'e1 se viu enganar assim uma mo\'e7a?
\par -Para voc\'ea ver como existem pessoas ruins.
\par -Sei que existem - tornou ele com brandura, achando que ela se referia ao inexistente ex-namorado. - Mas existem pessoas boas tamb\'e9m. Pessoas como eu, que
\par a amo acima de qualquer coisa.
\par Fl\'e1vio parecia testar a sua confian\'e7a. Todas as vezes que ele lhe falava de seu amor, ela se sentia tentada a lhe contar a verdade, mas o medo de perd\'ea-lo era muito
\par grande, e ela se calava.
\par -Tamb\'e9m o amo - disse ela, beijando-o nos l\'e1bios. - Mais do que tudo no mundo.
\par Ele sorriu satisfeito e a beijou com vontade, at\'e9 que ela se soltou e continuou a fazer o jantar.
\par -Minha m\'e3e nos espera para o almo\'e7o no s\'e1bado - informou ele, comendo um peda\'e7o de cenoura.
\par -De novo?
\par -Minha m\'e3e quer conhec\'ea-la melhor. N\'e3o vejo nada demais nisso.
\par -Nem eu... Mas \'e9 que tenho medo dela.
\par -Sua bobinha, minha m\'e3e n\'e3o morde. E depois, voc\'ea n\'e3o tem com o que se preocupar. Sei que ela \'e9 autorit\'e1ria e arrogante, mas tem medo de me desagradar e
\par que eu me mude e a deixe sozinha.
\par -Por falar nisso, n\'f3s n\'e3o vamos morar com ela depois que nos casarmos, vamos?
\par -\'c9 claro que n\'e3o! Deus me livre! Gosto muito de minha m\'e3e, mas ela vai se meter na nossa vida de todas as maneiras, e eu n\'e3o quero isso. N\'e3o, minha querida,
\par quando nos casarmos, vamos para a nossa pr\'f3pria casa. S\'f3 eu e voc\'ea... e nossos filhos.
\par A conversa mudou de rumo, e Marcela se pegou pensando novamente em Luciana. Os dois eram muito parecidos: tanto Fl\'e1vio quanto Luciana eram decididos e sabiam muito
\par bem o que queriam. Seria por isso que ela se aproximara tanto de Fl\'e1vio? N\'e3o importava. O que tinha import\'e2ncia era que ela e Fl\'e1vio estavam apaixonados e iam se
\par casar, construir uma vida e um futuro, ao
\par passo que Luciana pertencia agora ao passado.
\par ***
\par Enquanto andava pela rua, a caminho de casa, Luciana ia pensando no seu relacionamento com Cec\'edlia. Ma\'edsa tinha raz\'e3o: j\'e1 estava indo longe demais. Por mais que
\par Cec\'edlia lhe dissesse que n\'e3o queria nenhum compromisso, n\'e3o era isso que suas atitudes demonstravam. Ela a tratava feito namorada e agora estava com ci\'fames, insistindo
\par para que lhe contasse sobre o seu relacionamento com Marcela, o que a deixou muito insatisfeita. Afinal, nunca lhe dera tanta intimidade para se intrometer em sua
\par vida, e as perguntas que ela fez lhe causaram imenso desagrado.
\par Se fosse para se envolver com algu\'e9m que quisesse dominar
\par a sua vida, era melhor terminar com ela. Luciana lamentaria ter que perder uma secret\'e1ria competente feito Cec\'edlia e esperava n\'e3o precisar chegar \'e0quela medida extrema.
\par Mas, se ela n\'e3o se contivesse, n\'e3o veria outra sa\'edda, a n\'e3o ser terminar de uma vez com o romance. Tudo dependeria de como Cec\'edlia se portaria em seu pr\'f3ximo encontro.
\par Naquela noite, Cec\'edlia n\'e3o apareceu em sua casa, e Luciana pensou que ela estivesse chateada com o ocorrido \'e0 tarde, mas a verdade era que ela estava em companhia
\par de Gilberto e nem pensava em Luciana. A visita de Marcela, embora tivesse despertado preocupa\'e7\'e3o em Cec\'edlia, n\'e3o a incomodou mais, porque pouco ou nada se importava
\par com os antigos casos de Luciana. Desde que n\'e3o atrapalhassem seus planos, n\'e3o se preocuparia.
\par Quando Luciana chegou ao trabalho na tarde seguinte, Cec\'edlia a tratou normalmente e n\'e3o fez nenhum coment\'e1rio sobre a v\'e9spera, o que deixou Luciana aliviada. Ao
\par final do expediente, enquanto trancava a porta, Cec\'edlia ia perguntando:
\par -O que vai fazer hoje \'e0 noite?
\par -Nada. Vou para casa, jantar e dormir. Estou muito cansada.
\par -N\'e3o gostaria de ir ao cinema?
\par -Hoje n\'e3o.
\par Cec\'edlia n\'e3o insistiu. Se pressionasse Luciana, ela se irritaria e a mandaria embora, quem sabe, at\'e9 de sua vida. Precisava agir com cautela.
\par No dia seguinte e no outro, Cec\'edlia n\'e3o fez mais nenhum coment\'e1rio sobre a visita de Marcela e ficou \'e0 espera de que Luciana a convidasse para sair, o que, efetivamente,
\par aconteceu. Embora receando mais perguntas indiscretas, Luciana convidou Cec\'edlia para ir a sua casa depois do expediente.
\par -Tem certeza, Luciana? - indagou Cec\'edlia, com cuidado. - N\'e3o quero atrapalhar voc\'ea.
\par -N\'e3o vai me atrapalhar. Tenho me sentido muito s\'f3... - calou-se, j\'e1 arrependida de ter demonstrado fraqueza.
\par -N\'e3o precisa ter vergonha de mim - afirmou Cec\'edlia, notando o embara\'e7o da outra. - Todo mundo se sente s\'f3, de vez em quando.
\par Luciana sorriu em agradecimento, e as duas foram para casa. Enquanto Luciana tomava banho, Cec\'edlia preparou um jantar
\par maravilhoso, que as duas comeram quase em sil\'eancio, e depois foram ver televis\'e3o. Era uma fita de amor e, em breve, as duas tamb\'e9m estavam se amando, at\'e9 adormecerem
\par em seguida. Durante todos os momentos em que estiveram juntas, Cec\'edlia n\'e3o fez nenhuma pergunta ou observa\'e7\'e3o a respeito de Marcela, o que deixou Luciana um pouco
\par mais tranq\'fcila.
\par Adormecida nos bra\'e7os de Cec\'edlia, Luciana sentiu que seu corpo flutuava e abriu os olhos assustada. A seu lado, l\'e1 estava aquela mulher novamente, fitando-a com
\par uma certa tristeza:
\par -Voc\'ea de novo? - indagou Luciana, hesitando entre retornar ao corpo f\'edsico e aproximar-se da desconhecida.
\par -Como voc\'ea consegue dormir com ela? - tornou o esp\'edrito, apontando com o queixo para Cec\'edlia.
\par -Gosto dela. Por qu\'ea? O que voc\'ea tem com isso?
\par -N\'e3o tenho nada com isso. Mas tamb\'e9m gosto de voc\'ea, Robert, apesar de tudo o que me fez.
\par -Robert? Perd\'e3o, mas voc\'ea deve estar me confundindo com algu\'e9m. Por que cisma de se referir a mim como homem?
\par -Voc\'ea n\'e3o se lembra mesmo, n\'e3o \'e9?
\par -Do que deveria me lembrar?
\par -De mim...
\par -Quem \'e9 voc\'ea?
\par -Sou Rani. N\'e3o se lembra? - Luciana meneou a cabe\'e7a. - N\'e3o se lembra dos nossos anos na \'edndia?
\par -\'edndia? Eu nunca estive na \'edndia.
\par -Ah! Esteve, sim. Conheceu-me l\'e1 e me levou para a Inglaterra. De l\'e1, viemos para o Brasil, tentar a sorte.
\par -Voc\'ea deve estar louca. Meu nome \'e9 Luciana e eu sempre estive aqui, no Brasil. Nada sei sobre a Inglaterra ou a \'edndia, al\'e9m do que se l\'ea nos livros ou jornais.
\par -Diz isso agora. Mas voc\'ea j\'e1 foi um aventureiro ingl\'eas que primeiro tentou a sorte na \'edndia, onde n\'e3o obteve o sucesso desejado. Quando me conheceu, eu era
\par uma mo\'e7a pobre e ing\'eanua, e acreditei nas suas juras de amor e promessas de casamento. Deixei minha casa e meus pais para seguir voc\'ea. A sorte n\'e3o nos sorriu, e
\par voltamos para a Inglaterra, mas as coisas l\'e1 tamb\'e9m n\'e3o estavam muito boas. Voc\'ea devia muito dinheiro, e o que eu
\par ganhava vendendo o meu corpo n\'e3o dava para cobrir as suas d\'edvidas. Por isso, viemos para o Brasil, onde ningu\'e9m o conhecia, e voc\'ea podia se fazer passar por um respeit\'e1vel
\par cavalheiro ingl\'eas acompanhado de sua esposa indiana. Isso tamb\'e9m n\'e3o deu certo, e eu continuei me vendendo para sustentar voc\'ea, at\'e9 que conseguimos juntar algum
\par dinheiro, e voc\'ea montou aquele bordel...
\par Luciana ouvia aquela hist\'f3ria entre at\'f4nita e cr\'e9dula. \'c0 medida que o esp\'edrito falava, sua mem\'f3ria ia-se reavivando, e ela conseguia vislumbrar pequenos peda\'e7os
\par de sua vida passada.
\par -Por que est\'e1 me contando isso? - perguntou confusa.
\par -Porque eu o amo. Apesar de tudo, meu cora\'e7\'e3o ainda est\'e1 preso ao seu, Robert.
\par -Gostaria que voc\'ea parasse de me chamar de Robert. Meu nome \'e9 Luciana, e eu sou uma mulher.
\par -Mais ou menos, n\'e3o \'e9 mesmo? - tornou ela em tom mordaz, apontando para Cec\'edlia novamente. - Voc\'ea sempre foi muito mulherengo. Devia saber que trocar de
\par corpo n\'e3o faria voc\'ea respeitar as mulheres.
\par Eu respeito as mulheres! Respeito todo mundo, inclusive voc\'ea, que eu nem conhe\'e7o e me aparece assim, de repente, para me contar uma hist\'f3ria fant\'e1stica e assombrosa!
\par Quem voc\'ea pensa que \'e9?
\par -Perdoe-me, Robert, eu n\'e3o quis ofender...
\par -Pare de me chamar de Robert! Meu nome \'e9 Luciana! Se n\'e3o consegue se acostumar com isso, pe\'e7o que v\'e1 embora e n\'e3o apare\'e7a mais. Sua presen\'e7a n\'e3o me faz bem.
\par Para surpresa de Luciana, o esp\'edrito a encarou com olhar magoado e se virou para a parede, sumindo em seguida. Furiosa, Luciana retornou ao corpo e acordou sobressaltada,
\par ainda sob a forte impress\'e3o que o esp\'edrito lhe causara. Que hist\'f3ria seria aquela de \'edndia e Inglaterra? A mulher no sonho lhe dissera algo a respeito daqueles pa\'edses
\par e a chamara por outro nome, um nome de homem, Roberto ou Robert, n\'e3o se lembrava bem. E lhe dissera tamb\'e9m o seu nome, mas ela n\'e3o se recordava. Era muito esquisito.
\par Durante o resto da semana, Rani n\'e3o apareceu para Luciana, magoada com a forma como ela a havia tratado. Desde que
\par Robert vivera na \'edndia, sempre fora um homem grosseiro e rude, apesar de ardoroso e bom amante. Muitas mulheres haviam sido enganadas por ele, e agora Robert se
\par disfar\'e7ara de mulher para fugir daquelas que o perseguiam. As que o achassem se decepcionariam ao encontr\'e1-lo preso num corpo feminino e perderiam o interesse por
\par ele.
\par Mas Rani n\'e3o. Durante muitos anos, ele se perdera para Rani, ela n\'e3o sabia onde ele estava. Mas tanto fez, tanto pensou nele que conseguiu captar a sua vibra\'e7\'e3o
\par e, com a permiss\'e3o dos esp\'edritos superiores, descobriu-o na vida atual. V\'ea-lo no corpo de uma mo\'e7a n\'e3o deixou de ser uma surpresa, mas, ao contr\'e1rio das outras,
\par n\'e3o se desanimou. Ainda era o seu Robert por debaixo daquelas curvas femininas, e o que ela amava em Robert n\'e3o era o seu corpo, mas a ess\'eancia do homem que ela
\par conhecera e por quem se apaixonara um dia.
\par N\'e3o fora por outro motivo que os esp\'edritos superiores a encarregaram de auxiliar Robert em sua nova trajet\'f3ria. Ela n\'e3o era nenhum ser iluminado e estava bem longe
\par da perfei\'e7\'e3o, mas o seu amor a impedia de tentar prejudicar Luciana e a fazia querer-lhe bem.
\par -O que voc\'ea tem? - questionou Cec\'edlia, que notava o quase alheamento de Luciana.
\par -Nada. Tenho andado cansada, s\'f3 isso.
\par -Tem certeza? N\'e3o \'e9 nada comigo?
\par -N\'e3o, \'e9 s\'f3 cansa\'e7o mesmo.
\par -Que bom.
\par -Vou tomar um banho e j\'e1 volto - disse Luciana, para encerrar o assunto, dirigindo-se ao banheiro.
\par Cec\'edlia estava deitada na cama e resolveu ligar a televis\'e3o, que ficava sobre a c\'f4moda. Levantou-se com pregui\'e7a e girou o bot\'e3o que acionava o aparelho, e a imagem
\par em preto e branco logo surgiu na tela. Por que \'e9 que Luciana ainda n\'e3o havia comprado uma TV colorida? Assim que terminou de ajustar o canal, Luciana entrou no quarto,
\par enrolada na toalha, e se dirigiu ao arm\'e1rio, para se vestir. Quando passou pela c\'f4moda, notou que havia esquecido ali algo que n\'e3o deveria: uma caixa de madeira
\par contendo todas as lembran\'e7as que guardava de Marcela. Estivera mexendo na caixa, \'e0 procura de uma foto, e se esquecera de guard\'e1-la depois.
\par Como Luciana n\'e3o queria que Cec\'edlia a visse, tratou logo de apanh\'e1-la para guard\'e1-la de volta no arm\'e1rio, mas n\'e3o foi cuidadosa o bastante. Na pressa, a caixa deslizou
\par de suas m\'e3os e foi direto ao ch\'e3o, espalhando todo o seu conte\'fado. Na mesma hora, Cec\'edlia se abaixou para ajudar a catar as coisas, apesar dos protestos de Luciana:
\par -Que desastrada! Pode deixar que eu mesma cato tudo, Cec\'edlia, n\'e3o precisa se incomodar.
\par Abaixada ao lado de Luciana, Cec\'edlia ia apanhando cartas e fotos viradas, e foi s\'f3 quando desvirou uma que percebeu do que se tratava. Eram todas fotografias de
\par Luciana ao lado de Marcela, e ela reconheceu a mo\'e7a que fora ao consult\'f3rio no outro dia.
\par -Quem \'e9 essa? - indagou Cec\'edlia, segurando a foto nas m\'e3os.
\par -Ningu\'e9m. D\'ea-me isso aqui.
\par Luciana arrancou o retrato da m\'e3o de Cec\'edlia e tornou a guard\'e1-lo na caixa, enquanto Cec\'edlia desdobrava um papel de carta cor-de-rosa e lia uma declara\'e7\'e3o comovente
\par de amor, de Marcela para Luciana.
\par -Ora, ora, mas ent\'e3o voc\'eas foram apaixonadas! - constatou ela, olhando para Luciana com ar de triunfo. - Por que o mist\'e9rio?
\par -N\'e3o h\'e1 mist\'e9rio nenhum.
\par -Como n\'e3o? Voc\'ea se recusa a falar sobre essa Marcela. Diz que s\'e3o apenas amigas.
\par -E somos.
\par -N\'e3o \'e9 o que parece - afirmou Cec\'edlia, abrangendo, com um gesto, as cartas e as fotos de Luciana.
\par -Tivemos um relacionamento um dia, mas hoje somos apenas amigas.
\par -E por que esconder isso? Voc\'ea n\'e3o me parece o tipo de pessoa que precise ocultar o passado.
\par Luciana, sentada sobre os tornozelos, ajeitou a toalha em volta do corpo e olhou para Cec\'edlia com ar desanimado. Por que fora mexer naquela caixa? Se a tivesse deixado
\par onde estava, a outra nem a teria percebido. Mas agora todo o seu conte\'fado estava ali, derramado no ch\'e3o, e ela n\'e3o tinha mais como esconder o relacionamento que
\par tivera com Marcela.
\par Pensando bem, por que deveria esconder? Marcela n\'e3o queria que o namorado soubesse que ela vivera com uma mulher no passado, mas Cec\'edlia n\'e3o era o seu namorado.
\par Sequer a conhecia. E ela, Luciana, n\'e3o tinha problema nenhum com aquilo. Sempre assumira a sua condi\'e7\'e3o de l\'e9sbica e n\'e3o se envergonhava do que era. Por que ent\'e3o
\par deixar que o temor de Marcela a contaminasse e a fizesse sentir vergonha de algo que lhe parecia t\'e3o natural?
\par -Olhe, Cec\'edlia - come\'e7ou ela a dizer -, voc\'ea tem raz\'e3o. N\'e3o d\'e1 mais para esconder, n\'e3o \'e9? Marcela e eu vivemos juntas muitos anos, mas isso acabou. Ela agora
\par est\'e1 namorando um rapaz, e n\'f3s quase n\'e3o nos vemos.
\par Ajudada por Cec\'edlia, Luciana terminou de guardar as coisas na caixa e come\'e7ou a trocar de roupa, enquanto ia contando tudo a respeito de seu relacionamento com Marcela.
\par Contou de suas vidas em Campos, de como fugiram para o Rio, de seus empregos, estudos, sua paix\'e3o, at\'e9 o dia em que Luciana a deixou e ela tentou se matar.
\par -Muito comovente essa hist\'f3ria - falou Cec\'edlia, tentando disfar\'e7ar o desprezo.
\par -\'c9, sim. Eu amei muito Marcela, e ainda amo, s\'f3 que de uma outra maneira. Contudo, ela tem vergonha do que foi e n\'e3o quer que o namorado saiba. Por isso,
\par eu lhe pe\'e7o: jamais diga qualquer coisa sobre o que hoje lhe contei.
\par -Por que eu diria alguma coisa? Eu nem a conhe\'e7o!
\par -E n\'e3o quero que voc\'ea sinta ci\'fames de Marcela. Gosto muito dela, mas ela \'e9 apenas minha amiga.
\par -N\'e3o estou com ci\'fames. Quando a vi no consult\'f3rio, naquele dia, fiquei enciumada, sim, mas depois passou. E agora que sei o que aconteceu, n\'e3o tenho mesmo
\par motivos para sentir ci\'fames.
\par -\'d3timo. Gosto de Marcela como se fosse minha irm\'e3 e, embora n\'e3o concorde com o fato de ela estar ocultando do rapaz o seu passado, n\'e3o tenho nada com isso.
\par A vida \'e9 dela, e eu pretendo respeit\'e1-la.
\par -\'c9 claro. N\'e3o se preocupe, nunca direi nada.
\par -Obrigada. Sabia que podia confiar em voc\'ea.
\par Cec\'edlia em nada se comoveu com aquela hist\'f3ria. Temia apenas que Marcela pudesse representar alguma amea\'e7a a seus
\par interesses e precisou disfar\'e7ar para que Luciana n\'e3o percebesse o seu receio. Fora isso, n\'e3o sentia nada al\'e9m de um profundo e quase indisfar\'e7\'e1vel desprezo.
\par Assim que saiu do col\'e9gio, Marcela notou o carro de Ariane parado perto do port\'e3o de entrada e se dirigiu para l\'e1. A mo\'e7a estava ao volante, de \'f3culos escuros, e
\par a chamou quando ela passou:
\par -Ol\'e1, Marcela. Como est\'e1?
\par -Oi, Adriana. Tudo bem e voc\'ea?
\par Ariane deu de ombros e indicou a porta do carro:
\par -N\'e3o quer uma carona?
\par Sem de nada desconfiar, Marcela entrou no carro e se sentou ao lado dela. Fazia algum tempo que Ariane, vez por outra, a procurava na sa\'edda da escola, e elas seguiam
\par conversando. O motivo era sempre o mesmo: solid\'e3o e falta de amigos.
\par -E a\'ed? - perguntou Marcela. - Teve not\'edcias do Mike?
\par -N\'e3o. Ele nunca mais apareceu...
\par -Por que voc\'ea n\'e3o o deixa para l\'e1? Est\'e1 na cara que ele n\'e3o a ama. Voc\'ea \'e9 uma mo\'e7a bonita, culta, sens\'edvel. Merece coisa melhor.
\par -Acha mesmo? - retrucou Ariane, segurando a tenta\'e7\'e3o de lhe dizer: "algu\'e9m melhor feito Fl\'e1vio".
\par -Acho, sim.
\par -Pena que as coisas n\'e3o sejam assim t\'e3o f\'e1ceis. Bons rapazes, hoje em dia, s\'e3o dif\'edceis de se encontrar.
\par -Nem tanto. Veja eu, por exemplo: conheci Fl\'e1vio num momento dif\'edcil, e ele me ajudou a me levantar da minha ru\'edna.
\par -Voc\'ea ficou assim t\'e3o mal quando o seu namorado rompeu com voc\'ea?
\par -Fiquei... Olhe, Adriana, sei que voc\'ea \'e9 minha amiga, mas n\'e3o gosto de falar do passado. \'c9 muito doloroso.
\par -Entendo. Bem, fale-me de Fl\'e1vio, ent\'e3o. Ele foi o m\'e9dico que a atendeu e salvou a sua vida, em todos os sentidos.
\par -\'c9 verdade. N\'e3o fosse por ele, acho que teria tentado me matar de novo. Mas ele me deu uma nova raz\'e3o para viver, trouxe um novo alento para a minha vida.
\par -Ser\'e1 que voc\'ea n\'e3o \'e9 muito dependente dele?
\par -N\'e3o sei. Talvez at\'e9 seja, mas ele \'e9 a \'fanica pessoa com quem posso contar.
\par -Voc\'ea gostaria de tomar um sorvete? - perguntou Ariane, parando o carro perto de uma sorveteria. - Podemos continuar conversando, se n\'e3o for atrasar voc\'ea.
\par -N\'e3o tenho nenhum compromisso agora. Fl\'e1vio s\'f3 vem mais tarde.
\par Sentaram-se a uma mesa e pediram duas ta\'e7as de sorvete, e Ariane se pegou muito mais interessada na vida de Marcela do que propriamente na de Fl\'e1vio.
\par -Pelo visto, Fl\'e1vio n\'e3o liga para o fato de voc\'ea ter tentado se matar por causa de outro.
\par -L\'f3gico que n\'e3o. Foi ele, inclusive, quem insistiu para que sa\'edssemos.
\par -Esse Fl\'e1vio deve mesmo ser um homem maravilhoso... Quem me dera encontrar um homem assim.
\par -N\'e3o perca as esperan\'e7as, Adriana. Tenho certeza de que esse homem est\'e1 por a\'ed, em algum lugar, esperando por voc\'ea.
\par -Mas n\'e3o sou mais virgem...
\par -E da\'ed? Quem \'e9 que se importa com isso hoje em dia?
\par -Muita gente. Fl\'e1vio n\'e3o se importa?
\par -\'c9 claro que n\'e3o.
\par -Voc\'eas transam, n\'e3o transam?
\par -Essa pergunta \'e9 um pouco indiscreta, mas n\'e3o faz mal contar para voc\'ea - ela deu um sorrisinho malicioso e completou: - Quando conheci Fl\'e1vio, j\'e1 n\'e3o tinha
\par mais o que preservar.
\par De repente, Ariane se deixou tomar por um ci\'fame incontrol\'e1-vel e por pouco n\'e3o estragou tudo, mas conseguiu se conter a tempo. Ent\'e3o Marcela se gabava de dormir
\par com Fl\'e1vio, enquanto ela ainda era virgem e nunca transara com ningu\'e9m.
\par -Ent\'e3o Fl\'e1vio n\'e3o foi o primeiro, foi? - revidou ela, mordendo os l\'e1bios para que Marcela n\'e3o percebesse o seu ci\'fame.
\par -Oh! N\'e3o!
\par -O primeiro foi seu antigo namorado.
\par -Foi... Mas n\'e3o quero falar sobre ele.
\par -Como \'e9 o nome dele?
\par -J\'e1 disse que n\'e3o quero falar sobre ele, Adriana. \'c9 muito doloroso.
\par -Est\'e1 bem, desculpe-me. Foi apenas curiosidade, perdoe-me.
\par -N\'e3o tem import\'e2ncia. Na verdade, sou eu quem deve lhe pedir perd\'e3o. N\'e3o queria ser grosseira, mas...
\par -Voc\'ea n\'e3o foi. Eu \'e9 que estava sendo indiscreta. Vamos fazer uma coisa? Vamos mudar de assunto.
\par Era preciso ir devagar ou Marcela acabaria desconfiando.
\par -E os seus pais, Marcela? Voc\'ea disse que quase n\'e3o os v\'ea. N\'e3o sente falta deles?
\par -Sinto, sim. Antigamente, no Natal, ligava para eles, mas eles deixaram bem claro que n\'e3o querem mais saber de mim. Com o tempo, desisti de procur\'e1-los.
\par -Por que eles fizeram isso?
\par -Meus pais s\'e3o gente de cidade pequena. N\'e3o aceitam mulheres independentes e jamais quiseram que eu viesse para o Rio.
\par -Mas ent\'e3o eles n\'e3o sabem o que lhe aconteceu?
\par -A tentativa de suic\'eddio? N\'e3o, n\'e3o sabem. E nem precisam saber.
\par Ariane ficou pensando se n\'e3o seria uma boa id\'e9ia procurar os pais de Marcela e lhes contar tudo, mas achou que s\'f3 serviria para aproxim\'e1-la ainda mais de Fl\'e1vio
\par e desistiu.
\par -E voc\'ea, Adriana? Por que n\'e3o me fala um pouco mais de voc\'ea?
\par -O que quer saber? J\'e1 lhe contei tudo sobre mim. Minha vida \'e9 muito vazia e sem gra\'e7a. Desde que o Mike se foi, n\'e3o tenho nem sa\'eddo mais.
\par -Isso \'e9 uma pena! Mas voc\'ea pode vir me visitar quando quiser. Por que n\'e3o marcamos para sair num s\'e1bado? Voc\'ea fica conhecendo o Fl\'e1vio, e ele pode levar
\par um amigo.
\par Aquela era a \'faltima coisa que Ariane pretendia fazer, e ela tornou com cuidado:
\par -N\'e3o d\'e1, Marcela. Voc\'ea e Fl\'e1vio querem namorar, e eu s\'f3 atrapalharia.
\par -Mas se estou dizendo que ele pode levar um amigo!
\par -N\'e3o estou pronta para isso ainda. Enquanto n\'e3o conseguir tirar Mike da cabe\'e7a, n\'e3o vou poder sair com mais ningu\'e9m.
\par -N\'e3o creio que lhe fa\'e7a bem ficar assim pensando num homem que n\'e3o lhe d\'e1 a m\'ednima. Ele n\'e3o merece voc\'ea.
\par -J\'e1 sei, mas n\'e3o consigo evitar. \'c9 duro quando o cora\'e7\'e3o est\'e1 ferido.
\par -Voc\'ea tem que tentar vencer isso.
\par -Eu estou tentando, mas tem que ser no meu tempo. N\'e3o adianta querer for\'e7ar o que n\'e3o estou sentindo.
\par -Tem raz\'e3o. Mas quero que saiba que sou sua amiga, e voc\'ea pode contar comigo sempre que precisar.
\par -Obrigada, Marcela.
\par Ariane sentiu o aperto de m\'e3o que Marcela lhe deu e ficou emocionada. Aquela mo\'e7a parecia muito sincera na amizade que lhe oferecia. Afinal, ela n\'e3o era assim t\'e3o
\par diferente da Adriana que inventara. N\'e3o tinha amigos e perdera o namorado. As mo\'e7as com quem se relacionava eram todas f\'fateis e viviam \'e0s voltas com festas e rapazes.
\par Pensando bem, no que \'e9 que ela diferia das outras mo\'e7as? Tamb\'e9m s\'f3 pensava em festas e num rapaz em particular. N\'e3o tinha nenhuma ocupa\'e7\'e3o, nada com o que se preocupar,
\par nenhum compromisso de trabalho, estudo ou outra coisa qualquer. Levava uma vida vazia, voltada para as apar\'eancias e os eventos sociais. Ser\'e1 que aquilo realmente
\par a agradava?
\par Marcela era diferente. Era professora, tinha uma profiss\'e3o e um objetivo. Havia pessoas que dependiam dela, que precisavam dela para alguma coisa. Ela era respons\'e1vel
\par por ensinar dezenas de alunos, o que tornava Marcela bem mais importante do que ela. Se Ariane morresse, n\'e3o faria falta a ningu\'e9m na sociedade, n\'e3o deixaria de
\par prestar algum servi\'e7o \'fatil. Mas, se Marcela viesse a morrer, o que seria de seus alunos? Mesmo que arranjassem outra para colocar no seu lugar, seria uma pessoa
\par a menos no mundo para colaborar com o seu crescimento. E ela? Com que crescimento contribu\'eda? Nem com o dela mesma.
\par Aqueles pensamentos incomodaram Ariane, e ela se apressou para sair da sorveteria. Deixou Marcela em casa e seguiu para a sua, levando no cora\'e7\'e3o aqueles questionamentos
\par todos. Poderia tentar dividi-los com a m\'e3e, que n\'e3o era uma pessoa f\'fatil, mas a m\'e3e estava muito envolvida em seus pr\'f3prios problemas para compreend\'ea-la. O pai n\'e3o
\par queria saber dela, e Dolores a chamaria de tola e idiota. A \'fanica pessoa que parecia capaz de realmente entend\'ea-la era mesmo Marcela.
\par Mais tarde, quando Fl\'e1vio chegou, encontrou Marcela preocupada e triste.
\par -Aconteceu alguma coisa? - perguntou, beijando-a como sempre.
\par -Lembra-se daquela mo\'e7a de quem lhe falei? Da Adriana?
\par -Lembro. Por qu\'ea?
\par -Ela apareceu na escola hoje de novo.
\par -E...?
\par -Est\'e1 cada vez mais triste, deprimida. O namorado desapareceu, e ela n\'e3o tem com quem se abrir.
\par -Ser\'e1 que essa mo\'e7a n\'e3o est\'e1 se apegando a voc\'ea?
\par -Creio que sim. Ela n\'e3o tem amigas, e eu lhe ofereci a minha amizade. Fiz mal?
\par -De jeito nenhum. Por que n\'e3o a convida para vir aqui uma noite dessas? Podemos lev\'e1-la para dar uma volta e espairecer.
\par -J\'e1 dei essa id\'e9ia. Disse at\'e9 que voc\'ea convidaria um amigo, mas ela n\'e3o aceitou. Ainda est\'e1 muito ligada no rapaz.
\par -Ent\'e3o, s\'f3 o tempo \'e9 que poder\'e1 ajud\'e1-la.
\par -Foi o que pensei. Quando essas coisas acontecem, \'e9 melhor dar tempo ao tempo. Mas n\'e3o posso deixar de me sentir triste.
\par -N\'e3o quero que se sinta assim. Voc\'ea est\'e1 sendo amiga dela. Quando ela quiser, vai sair dessa. - Ele a abra\'e7ou e mudou de assunto: - N\'e3o se esque\'e7a do nosso
\par almo\'e7o amanh\'e3. E voc\'ea pode convidar a Adriana, se quiser.
\par -Engra\'e7ado, Fl\'e1vio. Agora que voc\'ea mencionou isso \'e9 que me lembrei de que n\'e3o tenho nem o telefone, nem o endere\'e7o dela. N\'e3o posso entrar em contato com
\par ela.
\par -Que pena! Bom, deixe para uma pr\'f3xima vez. Quando ela aparecer de novo, pe\'e7a o seu telefone, e n\'f3s poderemos
\par convid\'e1-la numa outra oportunidade. E agora - tornou ele, em tom solene -, quero lhe mostrar uma surpresa.
\par -Uma surpresa? O que \'e9?
\par Ele tirou da bolsa uma caixinha e a depositou nas m\'e3os de Marcela, que soltou um gritinho de alegria. Entusiasmada, soltou o la\'e7o de fita que a envolvia e exibiu
\par o seu conte\'fado.
\par -Fl\'e1vio! - exclamou embevecida, admirando o solit\'e1rio que reluzia sob a luz. - \'c9 lindo!
\par -N\'e3o tanto quanto voc\'ea - contestou ele, retirando o anel da caixinha e colocando-o no dedo de Marcela. - Serviu feito uma luva. Parece que foi feito para
\par voc\'ea.
\par Marcela olhava admirada para o diamante e beijou Fl\'e1vio com paix\'e3o, acrescentando com embara\'e7o:
\par -N\'e3o precisava...
\par -Voc\'ea n\'e3o gostou?
\par -Se n\'e3o gostei? Eu adorei! Mas n\'e3o quero que voc\'ea gaste seu dinheiro comigo.
\par -Isso \'e9 porque eu a amo e quero me casar com voc\'ea.
\par -Est\'e1 me pedindo em casamento? - ele assentiu emocionado. - Oh! Fl\'e1vio, como eu o amo!
\par -Quer dizer ent\'e3o que aceita?
\par -E como poderia recusar? Amo-o mais do que a pr\'f3pria vida.
\par Ele retirou uma outra caixinha do bolso, contendo duas alian\'e7as de ouro, e experimentou a menor no dedo de Marcela, que a fitava embevecida.
\par -Ent\'e3o, est\'e1 resolvido - disse ele, enquanto empurrava o anel no anular direito de Marcela, junto com o solit\'e1rio. Deu a outra alian\'e7a para ela, que a colocou
\par no dedo dele. - Agora s\'f3 falta comunicar aos meus pais e aos seus. Come\'e7aremos com
\par a minha m\'e3e. Diremos a ela amanh\'e3, no almo\'e7o.
\par ***
\par No dia seguinte, Fl\'e1vio foi buscar Marcela para o almo\'e7o em sua casa, e encontraram Dolores mais sorridente do que o habitual. Minutos antes, Ariane a havia colocado
\par a par de todo o ocorrido, e ela considerou o resultado satisfat\'f3rio. Marcela j\'e1
\par estava come\'e7ando a se abrir com Ariane e n\'e3o tardaria muito a lhe fazer as confid\'eancias mais \'edntimas.
\par -Boa tarde, dona Dolores - cumprimentou Marcela, esten-dendo-lhe a m\'e3o.
\par -Como vai, Marcela?
\par -Bem, e a senhora?
\par -Muito bem tamb\'e9m.
\par -Mam\'e3e, h\'e1 algo que gostaria de lhe contar.
\par -Sim? O que \'e9?
\par -Mostre a ela, Marcela - ela mostrou o anel e a alian\'e7a a Dolores, e Fl\'e1vio anunciou em tom solene: - Marcela e eu decidimos nos casar.
\par Um raio n\'e3o a teria fuzilado com maior intensidade, e ela retrucou at\'f4nita, n\'e3o conseguindo ocultar o desagrado e a contrariedade:
\par -Casar? Mas j\'e1? Ainda \'e9 cedo...
\par -N\'e3o \'e9, n\'e3o. J\'e1 estou com quase trinta anos, e Marcela tem vinte e sete. N\'e3o somos mais crian\'e7as.
\par -N\'e3o, claro que n\'e3o. Mas n\'e3o era a isso que me referia. Um casamento n\'e3o se resolve assim, da noite para o dia. Precisamos organizar a festa de noivado,
\par a lista de convidados, a igreja, o sal\'e3o...
\par -N\'e3o precisa se preocupar com nada disso, mam\'e3e. Marcela e eu s\'f3 queremos uma cerim\'f4nia simples no civil, com um almo\'e7o em fam\'edlia.
\par -Mas... e os nossos amigos? E a sociedade?
\par -Mais tarde, mandaremos a todos um cart\'e3ozinho oferecendo a nossa casa.
\par -Isso n\'e3o \'e9 poss\'edvel, Fl\'e1vio! Todos j\'e1 conhecem a nossa casa.
\par -Conhecem a sua casa. Mas Marcela e eu pretendemos ter o nosso pr\'f3prio apartamento. Na segunda-feira vou entrar em contato com uma imobili\'e1ria e pedir que
\par nos encontrem algo.
\par -Voc\'eas n\'e3o v\'e3o morar aqui?
\par -\'c9 claro que n\'e3o.
\par -Mas n\'e3o pode ser! Voc\'ea n\'e3o pode me deixar sozinha. A casa \'e9 muito grande, tem espa\'e7o suficiente para voc\'eas e os filhos que vierem a ter.
\par -Conhece o ditado, m\'e3e: quem casa quer casa? Ent\'e3o? Vamos nos casar e queremos ter a nossa pr\'f3pria casa, onde Marcela possa fazer tudo do jeitinho dela.
\par N\'e3o \'e9, meu bem?
\par Marcela assentiu com um sorriso, o que encheu Dolores de f\'faria e indigna\'e7\'e3o:
\par -Mas isso \'e9 que n\'e3o! - explodiu. - N\'e3o vou permitir que meu \'fanico filho me envergonhe diante de toda a sociedade. J\'e1 n\'e3o basta querer se casar com algu\'e9m
\par fora de nosso meio? Ainda tem que fazer um casamento de pobre?
\par -Mam\'e3e, est\'e1 ofendendo Marcela - censurou ele, notando o rubor que subia \'e0s faces da mo\'e7a.
\par -Pouco me importa! N\'e3o vou admitir que meu filho envergonhe o nome da nossa fam\'edlia por causa de uma pobretona.
\par Indignada, Marcela se levantou de chofre e come\'e7ou a falar, envergonhada e aflita:
\par -Lamento se a desagrado, dona Dolores. Fl\'e1vio, eu... quero ir embora. Por favor, leve-me para casa.
\par Nem esperou que ele respondesse. Apanhou a bolsa, rodou nos calcanhares e saiu, indo aguard\'e1-lo do lado de fora.
\par -Viu o que voc\'ea fez, mam\'e3e? Insultou minha noiva e fez com que ela fosse embora.
\par -Ela n\'e3o \'e9 sua noiva. Voc\'eas ainda nem oficializaram o noivado.
\par -As alian\'e7as em nossos dedos s\'e3o mais do que oficiais. E, se quer saber, \'e9 tudo o que me importa. N\'e3o os an\'e9is em si, mas o que eles representam. Marcela
\par aceitou o anel, aceitou o meu pedido de casamento, e isso j\'e1 \'e9 mais do que tornar o nosso noivado oficial.
\par -\'c9 claro que ela aceitou! Que mo\'e7a pobre e sem classe n\'e3o aceitaria um diamante daqueles de um homem feito voc\'ea?
\par -Est\'e1 insinuando que Marcela s\'f3 quer se casar comigo por causa do meu dinheiro?
\par -Insinuando, n\'e3o. Estou afirmando.
\par -Lamento que pense assim, m\'e3e, mas n\'e3o posso fazer nada. Nosso casamento j\'e1 est\'e1 decidido, e nada do que voc\'ea diga vai me fazer mudar de id\'e9ia. E agora,
\par com licen\'e7a. Minha noiva est\'e1 me esperando l\'e1 fora.
\par Ante o olhar de f\'faria de Dolores, Fl\'e1vio voltou as costas e saiu ao encontro de Marcela, que chorava no port\'e3o da frente. Ele a abra\'e7ou por tr\'e1s, e ela enterrou
\par o rosto no seu peito, dando livre curso \'e0s l\'e1grimas.
\par 150
\par -Oh! Fl\'e1vio, ela foi mesquinha, horrorosa, cruel.
\par -Eu sei, minha querida, e lamento. Devia ter imaginado que algo assim pudesse acontecer.
\par -E agora? O que vamos fazer?
\par -Vamos nos casar, ora essa.
\par -Contra a vontade dela?
\par -Contra a vontade de todo mundo, se necess\'e1rio. S\'f3 o que me importa \'e9 voc\'ea. Voc\'ea me ama?
\par -Voc\'ea sabe que sim.
\par -Isso para mim j\'e1 \'e9 o suficiente. Lamento pela minha m\'e3e, mas, ou ela se acostuma, ou vai perder o filho.
\par -N\'e3o quero que voc\'eas briguem por minha causa.
\par -Nem eu, mas n\'e3o posso permitir que ela estrague a minha felicidade por causa dos seus conceitos mesquinhos. Sociedade... Pois sim! N\'e3o estou nem um pouco
\par interessado nisso.
\par -Mas Fl\'e1vio, ela pode ter raz\'e3o. Eu n\'e3o sou do seu n\'edvel.
\par -Que n\'edvel? Isso \'e9 besteira. N\'e3o me importo com isso, n\'e3o me importo com nada. Amo-a do jeito que voc\'ea \'e9.
\par -Tem certeza?
\par -Voc\'ea ainda duvida?
\par -Seria capaz de aceitar qualquer coisa de mim?
\par -Qualquer coisa... - ele a olhou ressabiado. - Por qu\'ea? Est\'e1 me escondendo algo?
\par -N\'e3o. Mas \'e9 que eu passei por tanta coisa!
\par -Isso n\'e3o me importa. J\'e1 disse que o seu passado n\'e3o me interessa. O que voc\'ea fez da sua vida antes de me conhecer n\'e3o \'e9 problema meu. Quando a conheci,
\par sabia o que voc\'ea havia feito e por qu\'ea. N\'e3o \'e9 novidade para mim que voc\'ea tenha tido outro homem antes de mim e tenha sido apaixonada por ele, t\'e3o apaixonada a ponto
\par de querer se matar. Voc\'ea quis morrer por ele, mas agora quer viver por mim. Isso n\'e3o \'e9 mais importante?
\par Ela n\'e3o conseguiu responder. Estava emocionada demais para falar. Fl\'e1vio a amava, n\'e3o tinha d\'favidas, e dizia que a aceitava de qualquer jeito, fosse o que fosse
\par que ela tivesse feito no passado. Contudo, ainda se lembrava do que ele dissera sobre relacionamentos homossexuais e sentiu medo. Ser\'e1 que ele ainda pensaria assim
\par se descobrisse que o ex-namorado por quem ela quase se matara n\'e3o era um homem, mas sim outra mulher?
\par ***
\par A not\'edcia que Fl\'e1vio trouxera deixou Dolores espumando de raiva. N\'e3o podia contar com aquilo. Por mais que imaginasse que Fl\'e1vio e Marcela tinham planos para se
\par casar, n\'e3o imaginou que fosse t\'e3o r\'e1pido. Era preciso agir, e agir com presteza. Precisava falar com Ariane, pression\'e1-la para que ela descobrisse logo alguma coisa
\par importante no passado de Marcela.
\par -Voc\'ea precisa fazer algo com urg\'eancia! - berrava ela ao telefone. - Ou pode esquecer Fl\'e1vio para sempre.
\par -Mas fazer o qu\'ea? - respondeu Ariane, do outro lado da linha. - S\'f3 me encontrei com Marcela algumas vezes. Por mais que ela esteja come\'e7ando a confiar em
\par mim, ainda \'e9 muito pouco tempo para confid\'eancias mais \'edntimas.
\par -N\'e3o interessa! Voc\'ea disse que ela j\'e1 estava come\'e7ando a se abrir, n\'e3o disse?
\par -Disse, mas...
\par -Pois ent\'e3o, fa\'e7a-a abrir-se de vez! Obrigue-a a lhe contar todos os seus segredos.
\par -Est\'e1 certo, Dolores, verei o que posso fazer. Mas antes de segunda-feira, n\'e3o poderei agir. Preciso esperar que Fl\'e1vio esteja no trabalho, ou ainda acabarei
\par dando de cara com ele, o que n\'e3o vai ser bom para ningu\'e9m.
\par Desligaram. Naquele momento, Ariane n\'e3o podia tomar nenhuma atitude. Tinha que esperar at\'e9 segunda-feira, quando ent\'e3o pensaria em algo. Mas o qu\'ea? Pensando melhor,
\par j\'e1 n\'e3o tinha mais certeza se queria mesmo fazer aquilo. Olhou para a m\'e3e, largada no sof\'e1, devorando uma caixa de bombons, e ficou imaginando se era aquele o futuro
\par que pretendia para si. A m\'e3e for\'e7ara o casamento com o pai, e para qu\'ea? Para terminar deixada de lado, gorda e relaxada, lamentando uma vida inteira sem amor? Ser\'e1
\par que o exemplo da m\'e3e n\'e3o era suficiente para ela? Por que insistia em repetir o seu erro? N\'e3o valia a pena tramar para destruir o romance de Fl\'e1vio se ele n\'e3o a
\par amava. Ele podia fazer como seu pai, casando-se com ela por desgosto, assim como o pai se casara com sua m\'e3e para ocultar a frustra\'e7\'e3o. Mas amor mesmo, n\'e3o havia.
\par O pai nunca amara a m\'e3e, assim como Fl\'e1vio tamb\'e9m n\'e3o a amava.
\par E depois, tinha Marcela. Desde que a conhecera, sentira uma forte amizade pela mo\'e7a, que era bem diferente do que Dolores dizia. Marcela era meiga, gentil e amiga.
\par Podia n\'e3o ser rica, mas n\'e3o tinha nada de vulgar ou interesseira. Ao contr\'e1rio, era uma mo\'e7a inteligente e agrad\'e1vel, e ela bem podia compreender por que Fl\'e1vio
\par se apaixonara por ela. Marcela sabia conversar, conhecia assuntos ricos em interesse e n\'e3o era f\'fatil. Muito diferente dela.
\par Contudo, Dolores insistia naquela empreitada. Dolores n\'e3o lhe daria tr\'e9gua e s\'f3 ficaria satisfeita quando separasse Marcela de Fl\'e1vio e o fizesse casar-se com Ariane.
\par Mas ela j\'e1 n\'e3o estava bem certa se queria se casar com Fl\'e1vio. Queria algu\'e9m que realmente a amasse, n\'e3o um homem que a desposasse s\'f3 por ter perdido a mulher amada.
\par Quando segunda-feira chegou, Ariane havia decidido que faria a \'faltima tentativa com Marcela. Talvez ainda valesse a pena arriscar com Fl\'e1vio, afinal de contas. Quem
\par sabe ele n\'e3o a amasse e estivesse apenas impressionado com a vida livre que Marcela levava? Pensava nisso enquanto se arrumava, para ir ao encontro de Marcela na
\par sa\'edda da escola, quando vozes altercadas entraram pela janela de seu quarto:
\par -N\'e3o ag\'fcento mais voc\'ea, Anita! - berrava N\'e9lson. - Quero o desquite!
\par -Voc\'ea n\'e3o pode fazer isso. E os nossos filhos? E os nossos bens?
\par -N\'e3o quero saber! Os filhos j\'e1 est\'e3o grandes, e temos muitos bens. Vamos dividir tudo meio a meio.
\par -Mas N\'e9lson, eu n\'e3o quero. Eu o amo...
\par -Mas eu n\'e3o a amo! Se quer saber, nunca a amei! Nem sei por que me casei com voc\'ea.
\par -Por favor, N\'e9lson, n\'e3o me deixe - choramingava ela. - Podemos tentar mais um pouco. Farei o poss\'edvel para agrad\'e1-lo. Vou emagrecer, me arrumar direito,
\par voc\'ea vai ver.
\par -Isso n\'e3o me interessa mais, Anita. Voc\'ea pode se tornar a miss Universo, que eu n\'e3o a quero mais. Acabou, entendeu bem? Acabou!
\par Ariane ouviu uma porta batendo, e solu\'e7os angustiados chegaram aos seus ouvidos. O pai havia sa\'eddo, e a m\'e3e estava
\par chorando. Ela n\'e3o ag\'fcentava mais aquilo. Era nisso que dava um casamento sem amor. E era isso que ela desejava para si mesma? N\'e3o. Decididamente, merecia um futuro
\par melhor. Decidira-se novamente por n\'e3o procurar Marcela, n\'e3o queria mais saber de nada de seu passado que a pudesse comprometer.
\par No entanto, os gritos da m\'e3e continuavam a ferir seus ouvidos, e Ariane n\'e3o conseguiu mais suportar. Seu lar se havia transformado num inferno, e ela come\'e7ou a chorar,
\par acompanhando o pranto da m\'e3e. Como queria que ela se desvencilhasse do pai e fosse feliz! Ariane estava muito sentida, at\'e9 que ouviu a voz da m\'e3e, que a chamava.
\par Mas ela n\'e3o queria ir. N\'e3o suportava mais as lam\'farias da m\'e3e, os gritos do pai. Tudo o que queria era fugir dali, ir para algum lugar onde ningu\'e9m nunca tivesse
\par ouvido falar nela.
\par Sem responder aos apelos da m\'e3e, Ariane passou a m\'e3o na chave do carro e correu porta afora. Foi guiando pela rua, a esmo, sem saber bem aonde ir, e, quando deu
\par por si, havia parado o carro em frente \'e0 escola em que Marcela dava aulas. Tinha ido at\'e9 ali sem querer e pensou em ir embora quando viu a mo\'e7a se aproximando pelo
\par outro lado, vindo do ponto de \'f4nibus.
\par -Oi, Adriana - cumprimentou ela. - Aconteceu alguma coisa?
\par -Oh! Marcela!
\par Ariane come\'e7ou a chorar convulsivamente, e Marcela abriu a porta do carona, sentando-se ao lado dela.
\par -Foi o Mike? Ele apareceu?
\par Naquele momento, Ariane quase lhe contou toda a verdade, mas tinha medo da rea\'e7\'e3o de Marcela. E depois, sentia-se t\'e3o sozinha que queria algu\'e9m para conversar.
\par -Ser\'e1 que n\'f3s podemos ir a algum lugar?
\par -Quer ir at\'e9 a minha casa?
\par -Fl\'e1vio n\'e3o est\'e1 para chegar?
\par -N\'e3o. Por qu\'ea?
\par -Queria conversar a s\'f3s com voc\'ea. Estou t\'e3o triste, Marcela!
\par -Vamos l\'e1 para casa, ent\'e3o. Fa\'e7o-lhe um ch\'e1 e conversaremos mais \'e0 vontade.
\par Durante todo o trajeto, Ariane permaneceu em sil\'eancio, e Marcela nada disse, achando que ela estava deprimida por algo
\par que houvesse acontecido com Mike. Chegaram em poucos minutos, e Marcela indicou o sof\'e1 para Ariane, indo preparar-lhe um ch\'e1. Voltou alguns instantes depois, estendendo
\par uma x\'edcara para Ariane, enquanto se sentava com a outra.
\par -Pode beber. \'c9 camomila, vai acalm\'e1-la.
\par Com um sorriso de gratid\'e3o, Ariane come\'e7ou a bebericar o ch\'e1, enquanto as l\'e1grimas desciam pelo seu rosto.
\par -Lamento procurar voc\'ea com os meus problemas - come\'e7ou ela a falar -, mas \'e9 que n\'e3o tenho mais ningu\'e9m.
\par -N\'e3o tem import\'e2ncia. N\'e3o disse que sou sua amiga? - Ariane assentiu. - Ent\'e3o, pode falar.
\par -S\'e3o os meus pais... Vivem brigando, e hoje...
\par Com a voz carregada de emo\'e7\'e3o e ang\'fastia, Ariane narrou a Marcela tudo sobre o casamento de seus pais e o que vinha acontecendo nos \'faltimos tempos, chorando muito
\par a cada passagem. Marcela ouviu a narrativa em sil\'eancio, apenas balan\'e7ando a cabe\'e7a de vez em quando e lan\'e7ando-lhe olhares de simpatia e compreens\'e3o.
\par -Deve ser muito dif\'edcil para voc\'ea - come\'e7ou Marcela a dizer, logo ap\'f3s Ariane terminar sua hist\'f3ria.
\par -N\'e3o \'e9 o fato de eles n\'e3o se amarem mais que me incomoda. \'c9 que eles n\'e3o se respeitam. Meu pai humilha minha m\'e3e, e ela, por sua vez, se humilha diante dele.
\par \'c9 deprimente.
\par -J\'e1 tentou conversar com eles?
\par -Com minha m\'e3e, sim. Com meu pai, n\'e3o tenho di\'e1logo.
\par -Sei que n\'e3o \'e9 algo agrad\'e1vel, mas talvez voc\'ea deva dar mais for\'e7a a sua m\'e3e.
\par -Mais do que eu fa\'e7o? Converso com ela, levo-a para sair, insisto para que ela se arrume. E tudo isso para nada. Ela n\'e3o se anima.
\par -Acho que voc\'ea deveria lhe mostrar o seu apoio. N\'e3o apenas insistir para que ela fa\'e7a algo que ainda n\'e3o est\'e1 pronta para fazer, mas mostrar a ela que, ainda
\par que ela n\'e3o consiga sair dessa situa\'e7\'e3o, voc\'ea estar\'e1 ali ao lado dela.
\par -Como assim?
\par -N\'e3o me leve a mal, Adriana, mas sua m\'e3e n\'e3o me parece querer, realmente, mudar a apar\'eancia. S\'f3 que voc\'ea fica insistindo
\par nisso, como se fosse a melhor solu\'e7\'e3o para a crise no seu casamento, quando voc\'ea sabe que n\'e3o \'e9 verdade. Isso deve angusti\'e1-la ainda mais, e ela deve se sentir cada
\par vez mais culpada por n\'e3o conseguir mudar.
\par -Mas eu n\'e3o a culpo de nada!
\par -Sei que n\'e3o, mas ser\'e1 que ela n\'e3o entende assim? Se voc\'ea chega perto dela quando ela est\'e1 chateada e vai logo falando da apar\'eancia f\'edsica, ser\'e1 que n\'e3o
\par est\'e1, indiretamente, acusando-a de ter contribu\'eddo para a perda de interesse de seu pai?
\par -Voc\'ea acha isso?
\par -Acho que \'e9 uma possibilidade. \'c0s vezes, queremos mudar, sabemos que precisamos, mas n\'e3o conseguimos. N\'e3o nos sentimos fortes ou preparados. Ou talvez n\'e3o
\par queiramos de verdade. Voc\'ea p\'f5e a apar\'eancia f\'edsica em primeiro lugar, quando os sentimentos \'e9 que deveriam vir antes. O que importa ser feio ou gordo quando h\'e1 amor?
\par -N\'e3o h\'e1 amor entre meus pais.
\par -Exatamente. E \'e9 por isso que seu pai quer o desquite: porque n\'e3o h\'e1 amor. N\'e3o porque sua m\'e3e est\'e1 gorda nem relaxada. Isso \'e9 apenas uma desculpa que ele
\par d\'e1 a si mesmo para justificar que n\'e3o sente nada por ela,
\par -Acho que voc\'ea tem raz\'e3o, Marcela. N\'e3o h\'e1 amor entre eles, e meu pai n\'e3o devia tentar justificar essa aus\'eancia de amor com a gordura da minha m\'e3e. Isso n\'e3o
\par \'e9 justo. E, afinal, ela nem est\'e1 t\'e3o gorda assim. Est\'e1 mais relaxada do que gorda. E depois, onde ficam as outras qualidades? Ela sempre foi boa esposa e boa m\'e3e.
\par Por que meu pai n\'e3o reconhece isso?
\par -N\'e3o o culpe, Adriana, porque tamb\'e9m n\'e3o deve ter sido f\'e1cil para ele se casar com ela s\'f3 porque a outra o deixou.
\par -N\'e3o o estou culpando. Vendo por esse \'e2ngulo, acho que ningu\'e9m \'e9 culpado de nada.
\par -Isso mesmo. Acho que o mais importante agora \'e9 voc\'ea dar apoio \'e0 sua m\'e3e, mas sem acusar o seu pai. Ela me parece mais fr\'e1gil, precisa mais de voc\'ea.
\par -\'c9 isso mesmo o que vou fazer, Marcela. Vou voltar para casa e procurar conversar com mam\'e3e. Talvez consiga ajud\'e1-la.
\par -Fa\'e7a isso e depois me conte como foi. Vai ver que ela vai se sentir bem melhor, e voc\'ea tamb\'e9m.
\par Mais calma, Ariane agradeceu e saiu, antes que Marcela se lembrasse de pedir o seu telefone e o seu endere\'e7o. Quando chegou a casa, saiu em busca de Anita, que estava
\par no quarto, devorando um pacote de biscoitos recheados. Sem dizer nada, Ariane se aproximou e, gentilmente, retirando o saco de biscoitos das m\'e3os da m\'e3e, abra\'e7ou-a
\par com carinho e falou emocionada:
\par -Eu estou aqui, m\'e3e, e a amo.
\par Era a primeira vez que Ariane a abra\'e7ava daquela maneira, e Anita se agarrou a ela, chorando sem parar.
\par -Oh! Ariane, voc\'ea nem imagina o que aconteceu! Seu pai... seu pai saiu de casa... disse que quer se desquitar.
\par -Eu sei, m\'e3e, eu ouvi.
\par -Voc\'ea ouviu?
\par Ela assentiu:
\par -Eu estava no quarto quando escutei os dois conversando, ou melhor, gritando.
\par -Tudo isso porque eu n\'e3o consigo emagrecer!
\par -N\'e3o pense assim, m\'e3e, porque n\'e3o \'e9 verdade. Gordura nada tem a ver com amor.
\par -Tamb\'e9m pensava desse jeito, at\'e9 seu pai se distanciar de mim. Ele esfriou comigo porque estou feia e gorda.
\par -N\'e3o \'e9 verdade. Ele esfriou com voc\'ea porque nunca a amou, porque s\'f3 se casou com voc\'ea para preencher o vazio que a outra deixou.
\par Anita engoliu o choro e tornou entre solu\'e7os:
\par -Eu n\'e3o devia ter feito aquilo, n\'e3o devia! \'c9 nisso que d\'e1 se casar sem amor. E eu ainda fui engordar...
\par -Pare de se acusar, m\'e3e, ningu\'e9m tem culpa. O casamento de voc\'eas acabou, mas voc\'ea n\'e3o. Voc\'ea ainda \'e9 uma mulher jovem, pode refazer a sua vida.
\par -Quem \'e9 que vai querer uma mulher gorda?
\par -Quem falou que voc\'ea precisa ter algu\'e9m? Voc\'ea n\'e3o precisa lutar consigo mesma para fazer algo que n\'e3o quer. Pode ser feliz assim mesmo do jeito que \'e9.
\par -Voc\'ea n\'e3o acha mais que seu pai me deixou porque eu estou gorda e feia?
\par -N\'e3o, m\'e3e, eu n\'e3o acho. Acho que ele a deixou porque n\'e3o
\par a ama, nunca amou. Mas voc\'ea pode amar a si mesma e fazer algo por voc\'ea. Pode levar a sua vida do jeito que quiser.
\par -Mas eu n\'e3o consigo emagrecer!
\par -Quem \'e9 que est\'e1 falando em emagrecer? - Anita ficou confusa. - Voc\'ea \'e9 que est\'e1 com id\'e9ia fixa. Por mim, amo-a do jeito que voc\'ea est\'e1.
\par -Isso \'e9 porque voc\'ea \'e9 minha filha.
\par -Para voc\'ea ver como o amor verdadeiro n\'e3o se incomoda com isso. E, assim como eu, quem a amar tamb\'e9m n\'e3o vai se importar.
\par -Voc\'ea est\'e1 mudada, Ariane. Aconteceu alguma coisa?
\par -Aconteceu. Refleti em tudo o que voc\'ea me contou e aprendi com o seu erro. N\'e3o quero repetir na minha vida o que voc\'ea fez com a sua.
\par -Mas o que aconteceu?
\par -Nada. Descobri que Fl\'e1vio ama outra mulher, n\'e3o a mim, e estou disposta a aceitar esse fato, ainda que isso custe a minha felicidade a seu lado.
\par -Ariane!
\par -\'c9 verdade, mam\'e3e. Quero ser feliz ao lado de algu\'e9m que me ame, assim como voc\'ea ainda pode encontrar a felicidade ao lado de um homem que tamb\'e9m a ame de
\par verdade. N\'f3s merecemos isso.
\par Anita estava deveras impressionada com Ariane. Apesar de sempre terem sido muito ligadas, nunca a filha demonstrara tanta maturidade quanto agora. Ela se abra\'e7ou
\par a Ariane e beijou suas faces, sentindo inexplic\'e1vel vontade de viver e se sentir viva.
\par -Quer saber de uma coisa? - ela perguntou, olhando para a filha com uma desconhecida vivacidade no olhar. - Vamos sair. N\'f3s duas. E vamos procurar ser felizes.
\par Ariane n\'e3o respondeu, mas concordou com um aceno de cabe\'e7a, intimamente agradecendo o conselho que Marcela lhe dera. Era o primeiro passo para fazer a m\'e3e acreditar
\par que tamb\'e9m merecia ser feliz.
\par ***
\par N\'e9lson respirou aliviado. Aquele casamento de mentiras j\'e1 o estava desgastando, e ele n\'e3o estava mais disposto a continuar
\par com aquela farsa. Deixou as malas no hotel e telefonou para Dolores, pedindo para falar-lhe com urg\'eancia. Agora sim, podia assumir a vida ao lado da mulher que realmente
\par amava.
\par Combinaram de se encontrar em um restaurante discreto e afastado dos lugares freq\'fcentados por conhecidos. Quando Dolores chegou, N\'e9lson j\'e1 a estava aguardando, bebendo,
\par a goles largos, seu segundo copo de u\'edsque.
\par -Gra\'e7as a Deus, Dolores! - exclamou ele, assim que ela chegou. - Mal podia esperar a hora de lhe contar a not\'edcia.
\par -Sua voz parecia grave ao telefone. O que houve? Alguma coisa com Anita?
\par -Eu me separei de Anita. Sa\'ed de casa hoje cedo e n\'e3o pretendo mais voltar. Resolvi pedir o desquite. - Dolores ficou boquiaberta, olhando para ele com ar
\par de assombro. - Voc\'ea ouviu o que eu disse, Dolores? Pedi o desquite. Vamos poder ficar juntos publicamente. N\'e3o \'e9 maravilhoso?
\par O sangue subiu e desceu das faces de Dolores com a rapidez de uma cascata, para depois subir novamente, deixando-a rubra de raiva e indigna\'e7\'e3o.
\par -Voc\'ea ficou louco? - berrou. - Est\'e1 fora do seu ju\'edzo?
\par -Mas... mas... - gaguejou ele - n\'e3o entendo... Pensei que voc\'ea fosse ficar feliz.
\par -Como posso ficar feliz se voc\'ea quer atirar o meu nome na lama? Acha mesmo que eu vou comprometer o nome da minha fam\'edlia assumindo um romance com voc\'ea?
\par -E por que n\'e3o? Estou livre agora, podemos viver juntos.
\par -Nem pensar! O que as pessoas v\'e3o dizer? Que n\'f3s j\'e1 t\'ednhamos um caso antes do seu desquite.
\par -As pessoas n\'e3o v\'e3o dizer nada. N\'f3s podemos esperar...
\par -De jeito nenhum! Todo mundo vai falar que voc\'ea saiu de casa por minha causa.
\par -E n\'e3o foi?
\par -Se foi, voc\'ea \'e9 muito est\'fapido! O que o fez pensar que eu assumiria um compromisso p\'fablico e s\'e9rio com voc\'ea?
\par -Pensei que voc\'ea me amasse.
\par -Nunca disse que o amava. Se voc\'ea pensou assim, sinto muito, mas \'e9 problema seu.
\par -Se n\'e3o me ama, por que ficou comigo esses anos todos?
\par -Pelo mesmo motivo que voc\'ea ficou comigo.
\par -Eu a amo!
\par -Ent\'e3o, eu me enganei, e nossos motivos foram diferentes. Pensei que estiv\'e9ssemos juntos por conveni\'eancia de ambas as partes.
\par -Que conveni\'eancia?
\par -Voc\'ea sabe. Sua mulher est\'e1 um lixo, e meu marido nunca
\par foi l\'e1 grande coisa.
\par -Como pode dizer isso com tanta frieza, Dolores? N\'e3o sente
\par nada por mim?
\par Dolores olhou bem dentro de seus olhos e respondeu com voz glacial:
\par -N\'e3o. Nosso relacionamento acabou. Ningu\'e9m mandou voc\'ea ser burro e sair de casa. De hoje em diante, n\'e3o me procure mais.
\par Antes mesmo que o gar\'e7om pudesse anotar os pedidos, Dolores passou a m\'e3o na bolsa e saiu apressada. Entrou no autom\'f3vel rapidamente e foi embora, deixando N\'e9lson
\par no restaurante, segurando o copo de u\'edsque, tomado de verdadeiro assombro.
\par Dolores n\'e3o podia acreditar que ele havia feito aquilo. Estragara tudo! Ela jamais amara N\'e9lson, como nunca amara homem algum, nem o marido. N\'e9lson fora bom amante,
\par mas ela j\'e1 come\'e7ava a se cansar dele. E depois, ele dera para beber al\'e9m da conta e estava praticamente falido. Aquela parte, ela n\'e3o desejava. Deixava para a mulher
\par dele aturar os seus problemas. S\'f3 o que lhe interessava era o prazer do sexo que ele podia lhe proporcionar. Mas, se ele come\'e7ava a misturar sexo com sentimento,
\par estava na hora de deix\'e1-lo de lado e arranjar outro.
\par Da parte de N\'e9lson, a \'fanica coisa que lhe interessava era Ariane. Dolores at\'e9 que gostava de Ariane. Sempre desejara ter uma menina, mas, por complica\'e7\'f5es no parto
\par de Fl\'e1vio, ficara impossibilitada de ter outros filhos. Por isso tamb\'e9m lhe interessava o casamento dos dois. Ariane era uma mo\'e7a tola e faria o que ela desejasse,
\par desde que continuasse vivendo aquela vida de compras e festas. Se tudo corresse bem, Ariane lhe daria uma neta, a menina que tanto desejara e manteria sob seus cuidados
\par e sob sua vigil\'e2ncia, para fazer o que ela quisesse.
\par E N\'e9lson aparecia para estragar os seus planos. Ariane n\'e3o
\par se sentiria nada \'e0 vontade se Dolores e ele fossem viver juntos. Por mais tola que a menina fosse, era muito ligada \'e0 m\'e3e e n\'e3o aceitaria aquela trai\'e7\'e3o. E se Ariane
\par se aborrecesse e lhe virasse as costas, Fl\'e1vio se casaria com Marcela, e seus planos iriam por \'e1gua abaixo. Era prefer\'edvel que ela e N\'e9lson n\'e3o se vissem mais. Ele
\par n\'e3o estava mesmo valendo mais a pena. Dolores gostava de sexo, mas homens, havia muitos pelo mundo, e ela tinha dinheiro. Podia comprar um rapag\'e3o musculoso e de
\par cabe\'e7a vazia, que
\par fizesse sexo e nenhuma pergunta ou observa\'e7\'e3o mais complexa.
\par ***
\par Depois de uma semana longe de casa, N\'e9lson come\'e7ou a sentir o vazio que a falta da mulher deixara. Ele n\'e3o a amava, mas n\'e3o podia viver s\'f3. Acostumara-se \'e0 boa vida
\par que ela lhe dava e n\'e3o lhe fazia bem o atendimento distante e frio daquele hotel barato. Al\'e9m disso, as despesas come\'e7avam a pesar. O dinheiro estava acabando, e
\par ele n\'e3o tinha mais de onde tirar. Resolveu voltar para casa. Anita lhe implorara que n\'e3o se fosse e o aceitaria de volta sem questionar, e ainda lhe agradeceria.
\par Quando tocou a campainha, foi Ariane quem atendeu. Ela estava de sa\'edda e abriu a porta assim que a campainha soou.
\par -Papai! - assustou-se ela.
\par -Perdi minhas chaves... - balbuciou ele, ansioso para passar.
\par -O que faz aqui?
\par -Ora, o que fa\'e7o aqui... Eu moro aqui, se esqueceu?
\par -Que eu saiba, voc\'ea saiu de casa h\'e1 uma semana.
\par -Mas estou de volta. Tive apenas uma briguinha com sua m\'e3e, coisas de casal, mas j\'e1 passou. E agora, deixe-me entrar.
\par Ele tentou entrar, mas Ariane postou o corpo na frente dele e estendeu os bra\'e7os, barrando a sua passagem.
\par -Lamento, pai, mas aqui n\'e3o \'e9 mais a sua casa.
\par -Que disparate \'e9 esse, menina? Trate de me respeitar.
\par -Se quer ser respeitado, d\'ea-se ao respeito primeiro.
\par -N\'e3o fale assim comigo, Ariane! Eu n\'e3o admito.
\par -E eu n\'e3o admito que voc\'ea trate a minha m\'e3e da forma como a tratou.
\par -Isso \'e9 assunto de marido e mulher! Voc\'ea n\'e3o tem nada com isso!
\par -Tenho. Se a sua mulher \'e9 a minha m\'e3e, eu tenho tudo com isso.
\par -Saia da frente - ordenou ele, tentando empurr\'e1-la para tr\'e1s.
\par -N\'e3o! Aqui voc\'ea n\'e3o entra. E, se insistir, chamo a pol\'edcia.
\par -Onde j\'e1 se viu chamar a pol\'edcia para me impedir de entrar na minha pr\'f3pria casa? - desdenhou ele, empurrando-a novamente. - Deixe-me passar, j\'e1 disse!
\par -N\'e3o! V\'e1 procurar as suas vagabundas e pe\'e7a abrigo a elas.
\par -Olhe l\'e1 como fala comigo, menina.
\par Nesse momento, Hugo, irm\'e3o mais novo de Ariane, vinha chegando da escola e parou abismado diante daquela cena.
\par -O que est\'e1 acontecendo? - perguntou ele confuso.
\par -Sua irm\'e3 n\'e3o quer me deixar entrar na minha casa - respondeu N\'e9lson com raiva, dirigindo-se a ela: - E seu irm\'e3o? Vai deix\'e1-lo na rua tamb\'e9m?
\par Ariane n\'e3o respondeu e afrouxou os bra\'e7os, para dar passagem ao irm\'e3o, e N\'e9lson, percebendo a manobra, agarrou o filho pelo punho e empurrou Ariane com viol\'eancia,
\par atirando-a de costas ao ch\'e3o. O menino come\'e7ou a chorar assustado, e Anita entrou na sala nessa hora, vindo do banheiro, os cabelos molhados ca\'eddos sobre o rosto.
\par -Mas o que \'e9 isso? - indagou at\'f4nita, correndo para levantar a filha do ch\'e3o. - Ariane, voc\'ea est\'e1 bem?
\par -Estou bem, mam\'e3e - respondeu ela. - Apesar de meu pai se comportar como um animal, eu estou bem.
\par Anita n\'e3o a escutava direito, preocupada que estava em acalmar Hugo. Abra\'e7ou o menino com amor e, virando-se para N\'e9lson, explodiu com f\'faria:
\par -Voc\'ea n\'e3o tem o direito de vir \'e0 minha casa maltratar os meus filhos! Olhe s\'f3 o que voc\'ea fez!
\par -Eles s\'e3o meus filhos tamb\'e9m. Ariane \'e9 muito atrevida, e Hugo vai acabar se tornando um maricas, de tanto que voc\'ea o mima.
\par -O que veio fazer aqui, N\'e9lson? J\'e1 n\'e3o estava decidido a pedir o desquite?
\par -Mudei de id\'e9ia. Meu lugar \'e9 na minha casa, ao lado da minha mulher e dos meus filhos.
\par -Mas que cinismo! - disparou Ariane. - Desde quando voc\'ea se interessou em ficar conosco?
\par -V\'e1 para o seu quarto, Ariane! - ordenou o pai. - E leve seu irm\'e3o. Isso n\'e3o \'e9 assunto de crian\'e7as.
\par -Eu n\'e3o sou mais crian\'e7a! N\'f3s tamb\'e9m moramos nessa casa e temos o direito de saber o que acontece aqui.
\par -Saiam, vamos!
\par -N\'e3o vamos sair.
\par N\'e9lson avan\'e7ou para ela, e Anita se colocou entre os dois, ainda com Hugo agarrado a sua cintura:
\par -Voc\'ea n\'e3o vai bater na minha filha! N\'e3o vou permitir!
\par Ele se conteve e retrocedeu dois passos, mas continuava disposto a ficar e esbravejou:
\par -O que \'e9 isso, afinal? Um compl\'f4 dentro da minha pr\'f3pria casa?
\par -Esta n\'e3o \'e9 mais a sua casa - tornou Anita. - Quando voc\'ea escolheu nos deixar, deixou tamb\'e9m o seu lar.
\par -Vai me impedir de ficar?
\par -Vou.
\par -Voc\'ea n\'e3o pode fazer isso. Eu tenho meus direitos.
\par -Pois ent\'e3o, v\'e1 busc\'e1-los na Justi\'e7a!
\par A atitude de Anita, em seguida, foi inesperada. Desvencilhou-se do filho, fazendo sinal para que Ariane o acolhesse, e saiu empurrando N\'e9lson, que foi caminhando
\par para tr\'e1s a cada cutuc\'e3o que ela lhe dava. Tinha vontade de esbofete\'e1-la, mas a presen\'e7a dos filhos o intimidou, e ele foi-se deixando enxotar, at\'e9 que ela o empurrou
\par porta afora.
\par -Anita... - ele ainda tentou suplicar.
\par Anita n\'e3o respondeu. Empurrou-o com for\'e7a, o que o fez tombar sobre as malas, desabando no ch\'e3o tal qual Ariane, e Anita bateu a porta em sua cara. Durante alguns
\par segundos, todos sustiveram a respira\'e7\'e3o, esperando que ele esmurrasse a porta, mas nada aconteceu. Ferido em seu orgulho e espumando de \'f3dio, N\'e9lson apanhou as malas
\par e foi embora. Ouviram o barulho da porta do elevador se fechando, e Ariane correu para a janela. Pouco depois, o pai apareceu na portaria, seguindo pela rua com
\par as malas.
\par -Ele foi embora! - espantou-se ela. - Mam\'e3e, voc\'ea o colocou para fora!
\par -Coloquei - confirmou Anita, mal acreditando que havia feito aquilo. - Posso suportar tudo de um homem, menos que maltrate meus filhos.
\par Os filhos correram para ela e a abra\'e7aram emocionados, Hugo ainda chorando assustado. Anita o abra\'e7ou fortemente, beijou sua cabe\'e7a e o levou para o quarto, esperando
\par at\'e9 que se acalmasse. Sentou-se na cama e conversou com ele longamente, at\'e9 que as horas foram avan\'e7ando, e ele acabou se distraindo com um epis\'f3dio antigo de Viagem
\par ao Fundo do Mar. Anita tornou a abra\'e7\'e1-lo e o beijou v\'e1rias vezes, repetindo, a todo instante, o quanto o amava.
\par Certificando-se de que ele havia realmente se acalmado e tinha a aten\'e7\'e3o presa na TV, Anita se levantou e foi procurar Ariane.
\par -Como ele est\'e1? - indagou ela, correndo para a m\'e3e.
\par -Est\'e1 mais calmo. Ficou assustado, mas agora est\'e1 melhor.
\par -Voc\'ea foi admir\'e1vel, mam\'e3e! - elogiou Ariane. - Teve muita coragem e determina\'e7\'e3o.
\par -N\'e3o posso permitir que N\'e9lson trate os meus filhos desse jeito. Isso n\'e3o!
\par -Espero que voc\'ea mantenha essa decis\'e3o de n\'e3o o aceitar de volta.
\par -Quer que lhe diga mesmo, Ariane? - ela assentiu. - Eu gostei de ter tomado a atitude que tomei. Serviu para me mostrar que sou capaz de cuidar de mim e
\par dos meus filhos. N\'e3o preciso me submeter a todo tipo de humilha\'e7\'e3o s\'f3 para ter um marido ao meu lado. Foi seu pai quem escolheu nos deixar, n\'e3o eu. Mas eu n\'e3o posso
\par ficar aqui sentada, \'e0 espera de que ele volte, para aceit\'e1-lo seja de que maneira for.
\par -Por que acha que ele voltou?
\par -Quem \'e9 que vai saber? Talvez a amante n\'e3o o queira, afinal.
\par -Voc\'ea acha que ele tem uma amante?
\par -Ele diz que n\'e3o, mas eu tenho quase certeza. Ele nunca mais me procurou, parece at\'e9 que tem nojo de mim. Homem, quando fica assim com a mulher em casa,
\par \'e9 porque tem outra na rua.
\par -E isso n\'e3o a incomoda?
\par -J\'e1 incomodou. Agora que estou decidida a n\'e3o aceitar mais o seu pai de volta, ele pode fazer o que quiser, que eu n\'e3o me importo. Quero viver a minha vida
\par em paz.
\par -Assim \'e9 que se fala, mam\'e3e. Voc\'ea ainda pode ser muito feliz.
\par -Gorda desse jeito? N\'e3o acredito.
\par -L\'e1 vem voc\'ea de novo com essa hist\'f3ria de que est\'e1 gorda.
\par -E n\'e3o estou?
\par -E da\'ed? Voc\'ea pode emagrecer, se quiser. Se n\'e3o quiser, n\'e3o faz mal. Aceite-se desse jeito e voc\'ea vai ser muito mais feliz. Se algu\'e9m tiver que amar voc\'ea,
\par vai am\'e1-la de qualquer maneira.
\par -Voc\'ea est\'e1 estranha, Ariane. Muito mudada.
\par -Estou aprendendo com a vida, m\'e3e. Conheci uma mo\'e7a que est\'e1 me ensinando outros valores.
\par -Que mo\'e7a \'e9 essa?
\par -Voc\'ea n\'e3o conhece.
\par -Ela \'e9 do nosso meio?
\par -N\'e3o. Por qu\'ea? Tem preconceito?
\par -De jeito nenhum! Seu pai \'e9 que se prende a essas bobagens.
\par -Ela \'e9 professora. Um dia, apresento-a a voc\'ea.
\par A conversa tomou outro rumo, e Anita percebeu que respirava mais aliviada. A aus\'eancia de N\'e9lson at\'e9 que estava lhe fazendo bem. Quando ele estava em casa, ela vivia
\par sobressaltada, com medo de que ele partisse, e se humilhava constantemente. Ele a destratava, n\'e3o lhe tinha respeito e n\'e3o a desejava. O dinheiro que dava em casa
\par tamb\'e9m come\'e7ou a diminuir, e ela foi obrigada a cortar algumas despesas. E agora ele come\'e7ava a maltratar os filhos. Aquilo fora a gota d'\'e1gua. Ela podia suportar
\par qualquer coisa, menos que maltratassem seus filhos.
\par Olhando o acontecido por um \'e2ngulo mais otimista, Anita achou que at\'e9 que o resultado fora positivo. Ela tomou consci\'eancia do tipo de homem em que N\'e9lson se transformara
\par e revolveu nela o amor por si mesma. Atrav\'e9s dos filhos, Anita percebeu que precisava se amar e se valorizar como mulher e como pessoa, para inclusive dar-lhes um
\par exemplo de dignidade e respeito.
\par E o exemplo de mulher que queria ser para os filhos era bem diferente do modelo de m\'e3e insegura e apagada que fora at\'e9 aquele momento. Ela podia estar feia e gorda,
\par mas era uma
\par pessoa decente e honrada, e ningu\'e9m no mundo tinha o direito de lhe tirar a dignidade. Queria mostrar isso aos filhos, para que eles tamb\'e9m se impusessem no mundo
\par como pessoas dignas e conscientes do seu valor, para que ningu\'e9m os humilhasse ou os desrespeitasse. A partir daquele momento, preocupar-se-ia em dar-lhes esse exemplo.
\par Mais um almo\'e7o na casa de Dolores, e Marcela acabaria por enlouquecer. Dolores j\'e1 demonstrara claramente a opini\'e3o que tinha a seu respeito, e ela n\'e3o pretendia
\par se sujeitar aos rompan-tes da futura sogra. O noivo que a perdoasse, mas ela n\'e3o tinha est\'f4mago para aquilo.
\par Marcela saiu da escola no hor\'e1rio de sempre e, como de costume, deu uma olhada para ver se o carro de Adriana estava l\'e1, mas ela n\'e3o aparecera. Fazia alguns dias
\par que n\'e3o vinha, e ela estava preocupada. Da \'faltima vez que se tinham visto, ela estava aflita com o casamento dos pais e sa\'edra de sua casa disposta a ajudar a m\'e3e.
\par Ser\'e1 que conseguira? Marcela tencionava pedir o seu telefone, mas acabara esquecendo e agora n\'e3o tinha como obter not\'edcias.
\par Quando Marcela se aproximou de casa, estranhou um carro parado diante da sua porta. Era um carro muito elegante para aquela vizinhan\'e7a, e ela n\'e3o sabia de ningu\'e9m
\par que possu\'edsse um modelo daqueles. Ao se aproximar ainda mais, a porta se abriu subitamente, e Dolores saltou, fitando Marcela com olhar mordaz.
\par -Dona Dolores! - exclamou Marcela, realmente espantada. - Que surpresa...
\par -Como vai, Marcela? - indagou ela, olhando com ar de proposital desagrado para o edif\'edcio em que ela vivia. - \'c9 aqui que voc\'ea mora?
\par -Sim, senhora.
\par -N\'e3o vai me convidar para entrar?
\par -Sim, claro.
\par A visita de Dolores n\'e3o agradara Marcela, mas o que ela podia fazer? N\'e3o podia ser grosseira com a futura sogra e n\'e3o teve outro rem\'e9dio, sen\'e3o abrir a porta e deixar
\par que ela passasse. Dolores torceu o nariz e entrou no pr\'e9dio, fingindo que disfar\'e7ava a repulsa. Subiu os dois lances de escada at\'e9 o apartamento de Marcela, n\'e3o
\par sem antes fazer um coment\'e1rio desagrad\'e1vel sobre a falta que faziam os elevadores. Marcela apenas assentiu, at\'e9 que chegaram ao segundo andar, e abriu a porta para
\par Dolores passar.
\par O apartamento, apesar de pequeno, estava muito bem cuidado, e Dolores lamentou n\'e3o poder chamar Marcela de relaxada. Marcela indicou o sof\'e1, e Dolores se sentou
\par e sorriu de um jeito afetado, esfor\'e7ando-se para que a mo\'e7a conseguisse ler, em seus olhares estudados, a desaprova\'e7\'e3o que fazia a sua pessoa.
\par -Muito bem - falou Dolores, utilizando um tom de voz excessivamente alto para uma simples visita. - Aqui estamos.
\par Marcela sorriu sem jeito e retrucou pouco \'e0 vontade:
\par -A senhora gostaria de beber alguma coisa? Uma \'e1gua, um caf\'e9?
\par -Gostaria mesmo de um c\'e1lice de xerez, mas n\'e3o creio que voc\'ea tenha algum por aqui.
\par As faces de Marcela enrubesceram at\'e9 a raiz do cabelo, e ela concordou constrangida:
\par -Desculpe-me, dona Dolores, mas eu n\'e3o bebo.
\par -\'c9 claro que n\'e3o - ela ficou tamborilando com os dedos no bra\'e7o do sof\'e1, estudando o ambiente com olhar cr\'edtico, at\'e9 que encarou Marcela de frente e disparou:
\par - Muito bem. Vou ser sincera com voc\'ea, Marcela. Dei-me o trabalho de vir at\'e9 aqui procur\'e1-la porque estou muito preocupada com o futuro do meu filho. Voc\'ea me entende,
\par n\'e3o \'e9?
\par -N\'e3o, n\'e3o entendo - respondeu Marcela, sustentando o seu olhar e lutando para n\'e3o demonstrar o p\'e2nico que a invadia.
\par -Ora, vamos, menina, n\'e3o precisa se fazer de tola comigo. Bem sei o quanto \'e9 esperta.
\par -Lamento, dona Dolores, mas n\'e3o sei do que a senhora est\'e1 falando. Sou uma mo\'e7a simples.
\par -Muito simples, para dizer a verdade. N\'e3o sei se tanta simplicidade assim faria bem ao meu Fl\'e1vio.
\par -N\'e3o estou entendendo...
\par -N\'e3o est\'e1? Pois eu acho que me entendeu muito bem.
\par -Por que a senhora n\'e3o fala com mais clareza? N\'e3o compreendo esse jogo de adivinhas.
\par -Tem raz\'e3o, Marcela. N\'e3o sou mesmo mulher de fazer rodeios. A verdade \'e9 que tenho minhas d\'favidas se Fl\'e1vio fez uma boa escolha. N\'e3o sei se voc\'ea \'e9 a mo\'e7a
\par certa para ele. N\'e3o que eu tenha alguma coisa contra voc\'ea, n\'e3o \'e9 nada disso. Mas \'e9 que eu a acho... um pouco simpl\'f3ria demais. Meu Fl\'e1vio \'e9 um homem da alta sociedade,
\par e n\'e3o estou bem certa se voc\'ea conseguiria acompanhar o seu estilo.
\par -A senhora est\'e1 querendo dizer que n\'e3o me aprova como esposa do seu filho. \'c9 isso, n\'e3o \'e9?
\par -N\'e3o \'e9 que n\'e3o aprove. \'c9 que, no fundo, me preocupo com voc\'ea. Como se sentir\'e1 quando tiver que comparecer a festas e recep\'e7\'f5es, com esse seu jeito simples
\par de mo\'e7a do interior? N\'e3o acha que vai se sentir envergonhada?
\par Cada vez mais ruborizada, Marcela ainda tentou contra-argumentar:
\par -Posso n\'e3o ter tido uma educa\'e7\'e3o esmerada, mas tamb\'e9m n\'e3o sou mal-educada. Sou professora e tenho meus princ\'edpios. Isso n\'e3o conta para nada?
\par -Que princ\'edpios voc\'ea tem? - rebateu Dolores de imediato. - Conte-me que princ\'edpios s\'e3o esses, para que eu possa conhec\'ea-la melhor.
\par -Sou uma pessoa decente, dona Dolores! - exaltou-se ela, levantando-se de chofre. -A senhora, nem ningu\'e9m, tem o que dizer de mim.
\par -Acalme-se, menina, e sente-se. N\'e3o vim aqui para acus\'e1-la. Quero apenas lhe mostrar onde voc\'ea est\'e1 se metendo.
\par -N\'e3o creio que esteja me metendo em lugar nenhum. Fl\'e1vio e eu nos amamos, e \'e9 s\'f3 isso que importa.
\par -Ser\'e1 que o amor de voc\'eas vai ser forte o suficiente para enfrentar as diferen\'e7as sociais?
\par -A senhora fala como se eu fosse uma mulher vulgar e grosseira. Posso n\'e3o ter tido ber\'e7o, mas creio que meus pais me educaram muito bem.
\par -Por falar em seus pais, por que eles n\'e3o v\'eam v\'ea-la?
\par -J\'e1 falei sobre isso. Meus pais est\'e3o ficando velhos e t\'eam medo do Rio.
\par -Eles n\'e3o v\'eam para o casamento?
\par -Na \'e9poca certa, irei busc\'e1-los. Mas n\'e3o creio que a senhora tenha vindo at\'e9 aqui para falar de meus pais.
\par -N\'e3o. Como disse, gostaria de conhecer os seus princ\'edpios. Soube que Fl\'e1vio a conheceu no hospital.
\par -Foi.
\par -Porque voc\'ea tinha tentado o suic\'eddio.
\par -Como \'e9 que a senhora sabe disso? - espantou-se. - Ele lhe contou?
\par Dolores apenas sorriu. Quem lhe dera a informa\'e7\'e3o fora Ariane, que soubera pela pr\'f3pria Marcela.
\par -Por que voc\'ea tentou se matar? Alguma decep\'e7\'e3o amorosa?
\par -Eu... sinto muito, dona Dolores, mas n\'e3o gosto de falar sobre isso. O que aconteceu no passado ficou enterrado no passado.
\par -\'c9 mesmo? E o que aconteceu no passado?
\par -Nada, j\'e1 disse. N\'e3o quero ser grosseira, mas isso \'e9 problema meu. Nem Fl\'e1vio me faz essas perguntas.
\par -Fl\'e1vio \'e9 muito ing\'eanuo, mas eu gostaria de saber.
\par -Por que?
\par -Curiosidade de sogra, talvez. Ou, quem sabe, n\'e3o poderia ajud\'e1-la? Voc\'ea fez algum aborto?
\par -N\'e3o!
\par -Mas voc\'ea e Fl\'e1vio j\'e1... Voc\'ea sabe.
\par -Isso tamb\'e9m n\'e3o lhe diz respeito - retorquiu ela, o rosto parecendo em chamas.
\par -Meu filho n\'e3o liga para essas coisas. Nem eu, na verdade.
\par -Se n\'e3o liga, por que est\'e1 me crivando de perguntas? Ser\'e1 que n\'e3o \'e9 suficiente a senhora saber que Fl\'e1vio e eu nos amamos?
\par -Eu acredito nisso, mas gostaria de conhec\'ea-la melhor. Por que voc\'ea \'e9 t\'e3o relutante em falar do passado?
\par -N\'e3o sou relutante. O passado acabou, n\'e3o interessa mais.
\par -Est\'e1 escondendo alguma coisa, Marcela?
\par -N\'e3o tenho nada a esconder. Sou uma mo\'e7a simples que, num momento de desespero, atentou contra a pr\'f3pria vida, mas gra\'e7as a Deus n\'e3o consegui. Seu filho
\par me salvou a tempo.
\par -\'c9 por isso que ele se apegou tanto a voc\'ea. Sente-se respons\'e1vel.
\par -N\'e3o \'e9 nada disso! Fl\'e1vio n\'e3o \'e9 respons\'e1vel por mim. Ele salvou a minha vida, mas eu sou adulta e capaz de responder por meus atos. O que aconteceu foi que
\par n\'f3s nos apaixonamos. Por que \'e9 t\'e3o dif\'edcil para a senhora aceitar isso?
\par Dolores n\'e3o respondeu, mas ficou olhando para ela com aquele sorriso ir\'f4nico de quem est\'e1 se divertindo com a situa\'e7\'e3o. Estava claro que Marcela escondia algo, mas
\par ela n\'e3o conseguia atinar o que fosse. J\'e1 ia fazer outra das suas perguntas maldosas quando um som insistente de buzina entrou pela janela. Seria Fl\'e1vio?
\par Ao se aproximar da janela, Marcela suspirou aliviada. Adriana estava l\'e1 embaixo buzinando, e ela acenou para a mo\'e7a, fazendo sinal para que subisse. Ariane saltou
\par e trancou o carro, entrando no edif\'edcio, e Marcela foi abrir-lhe a porta.
\par -Gra\'e7as a Deus voc\'ea chegou - sussurrou ela, assim que Ariane surgiu.
\par -Voc\'ea nem vai imaginar o que aconteceu, Marcela! - falou ela exaltada, sem notar o ar de al\'edvio da outra. - Minha m\'e3e deu um basta na situa\'e7\'e3o. Colocou meu
\par pai para fora e...
\par Calou-se abismada, ao dar de cara com Dolores, que olhava de uma para outra com um ar entre divertido e zangado.
\par -Esta \'e9 dona Dolores, Adriana. M\'e3e de Fl\'e1vio.
\par -Muito prazer - cumprimentou Dolores, levantando-se e estendendo a m\'e3o para Ariane.
\par -Dona Dolores, esta \'e9 minha amiga Adriana.
\par -Ol\'e1... - respondeu Ariane, l\'edvida de espanto e surpresa.
\par -Sente-se bem, minha filha? - continuou Dolores em tom zombeteiro. - Voc\'ea ficou p\'e1lida de repente.
\par -Estou bem... - afirmou Ariane, apoiando-se em uma cadeira para n\'e3o cair.
\par -Bem - fez Dolores, levantando-se e apanhando a bolsa -, acho que sua amiga veio aqui para conversar com voc\'ea. Parecia mesmo muito entusiasmada para lhe
\par contar algo, e eu n\'e3o quero atrapalhar. At\'e9 logo.
\par -At\'e9 logo - repetiu Marcela, que n\'e3o esperava essa atitude de Dolores.
\par -Ah! - exclamou Dolores, virando-se para Ariane. - Seja o que for que tenha vindo conversar com sua amiga, espero que n\'e3o seja nada que n\'e3o se possa resolver.
\par -Obrigada - falou Marcela, porque Ariane n\'e3o se mexia nem piscava.
\par Em seguida, Dolores saiu, caminhando para seu carro a passos largos. Ver Ariane ali naquela hora n\'e3o foi tanta surpresa. Fazia parte de seu plano aproximar-se de
\par Marcela. O que Dolores realmente estranhou foi o entusiasmo, a alegria com que ela se dirigira \'e0 outra. Havia um tom de amizade e confian\'e7a nas suas palavras, o
\par que deixou Dolores desconfiada e preocupada. Seria poss\'edvel que Ariane tivesse tomado amizade pela tonta da
\par Marcela? Aquilo, al\'e9m de imposs\'edvel, era um desastre.
\par ***
\par Em seu apartamento, Marcela suspirou aliviada, assistindo, pela janela, ao carro de Dolores sumir no fim da rua. A seu lado, Ariane parecia petrificada. No af\'e3 de
\par contar a Marcela as novidades de sua casa, nem percebera que o carro parado na frente do seu era o de Dolores.
\par -Ufa! - suspirou Marcela. - At\'e9 que enfim, ela se foi.
\par -O que ela veio fazer aqui? - perguntou Ariane, sinceramente interessada.
\par -Essa mulher \'e9 terr\'edvel! N\'e3o aprova o meu casamento com Fl\'e1vio.
\par -Por que n\'e3o?
\par -Porque eu n\'e3o perten\'e7o \'e0 alta sociedade.
\par -Mas que besteira...
\par -Voc\'ea pensa assim. J\'e1 esteve apaixonada por um rapaz pobre e entende essas coisas do cora\'e7\'e3o. Mas dona Dolores queria uma princesa encantada para o filho,
\par e eu n\'e3o fa\'e7o esse tipo.
\par -Mas o que ela queria?
\par -Veio me fazer perguntas... perguntas sobre o meu passado. Perguntou da tentativa de suic\'eddio. Como \'e9 que ela soube disso? - Ariane engoliu em seco, sinceramente
\par arrependida de
\par ter aceitado aquele papel de espi\'e3. - Ser\'e1 que foi o Fl\'e1vio quem contou? Mas por que ele faria isso, conhecendo a m\'e3e que tem?
\par -Vai ver que n\'e3o foi ele.
\par -Mas quem foi ent\'e3o? Ningu\'e9m mais sabia disso. S\'f3 ele e Luciana... - Marcela parou de falar abruptamente e olhou para Ariane, que havia escutado o que ela
\par dissera.
\par -Quem \'e9 Luciana?
\par -Uma amiga.
\par -Voc\'ea nunca me falou sobre ela.
\par -\'c9 que... faz tempo que n\'e3o a vejo. Ela... ela... se mudou. \'c9 isso, Luciana se mudou do Rio. N\'e3o sei mais onde mora.
\par Marcela come\'e7ou a andar de um lado para o outro nervosamente, apavorada porque havia falado demais.
\par -Por que voc\'ea ficou assim de repente? - tornou Ariane desconfiada.
\par -Assim como?
\par -Nervosa, aflita.
\par -N\'e3o estou nervosa. Ou melhor, estou. \'c9 que dona Dolores me tira do s\'e9rio.
\par -N\'e3o foi por causa dessa Luciana?
\par -De Luciana? \'c9 claro que n\'e3o. Imagine... N\'e3o vejo Luciana h\'e1 tanto tempo!
\par Era vis\'edvel que ela estava mentindo, mas Ariane achou melhor n\'e3o perguntar mais nada. O nome Luciana mexera demais com Marcela, e tudo indicava que havia algo mais
\par naquela hist\'f3ria. Quem seria aquela Luciana? Onde estaria? E que import\'e2ncia tivera na vida de Marcela? Essas eram as perguntas que Ariane se fazia, e uma curiosidade
\par m\'f3rbida foi-se apossando dela. Ser\'e1 que ela e a tal de Luciana haviam sido comparsas em alguma atividade il\'edcita ou imoral? Ser\'e1 que se drogavam juntas? Ou ser\'e1
\par que foram companheiras na prostitui\'e7\'e3o?
\par Por mais que Ariane estivesse um pouco arrependida de iniciar aquele jogo de espionagem e trai\'e7\'e3o, a curiosidade foi-se agu\'e7ando, e ela se pegou louca de vontade
\par de conhecer mais sobre aquela Luciana. Talvez Dolores tivesse raz\'e3o afinal, e houvesse alguma hist\'f3ria escabrosa no passado de Marcela. Ser\'e1 que valia a pena descobri-la
\par para us\'e1-la contra a mo\'e7a?
\par Ariane se afei\'e7oara a Marcela, mas aquela n\'e3o era uma amizade verdadeira. N\'e3o podia ser. Ariane precisava deixar de lado o sentimentalismo e se concentrar em seu
\par objetivo. S\'f3 assim
\par conseguiria reconquistar Fl\'e1vio.
\par ***
\par Era s\'e1bado, Luciana havia acabado de chegar da praia em companhia de Cec\'edlia. Estava tomando banho, enquanto a outra preparava o almo\'e7o, at\'e9 que o telefone come\'e7ou
\par a tocar com insist\'eancia. Cec\'edlia deu uma espiada na dire\'e7\'e3o do banheiro, mas a porta fechada e a \'e1gua do chuveiro indicavam que Luciana n\'e3o estava ouvindo. Cec\'edlia
\par largou a colher de pau dentro da panela e correu a atender:
\par -Al\'f4?
\par -Luciana? - falou a voz do outro lado.
\par -N\'e3o. Luciana est\'e1 no banho. Quer deixar recado? - sil\'eancio. - Se n\'e3o, pode ligar mais tarde.
\par -Quem \'e9, Cec\'edlia? - perguntou Luciana, que acabara de sair do banheiro.
\par -N\'e3o sei. Uma mo\'e7a.
\par Luciana estendeu a m\'e3o, e Cec\'edlia colocou nela o fone, voltando para a cozinha. Luciana esperou at\'e9 que ela sa\'edsse para atender:
\par -Al\'f4? Quem fala?
\par -Sou eu, Lu, a Marcela.
\par -Ah! Oi, Marcela, tudo bem? Como conseguiu o meu telefone?
\par -Peguei com a Ma\'edsa. Espero que n\'e3o se importe.
\par -Voc\'ea sabe que n\'e3o me importo. Eu o teria dado a voc\'ea, se tivesse pedido.
\par -Obrigada.
\par -Diga-me l\'e1! O que a fez ligar para mim?
\par -N\'e3o sei... - pausa. - Estou confusa... com medo...
\par -De qu\'ea?
\par -Tenho medo, Luciana. Sinto que vou perder o Fl\'e1vio.
\par Ela estava chorando, e Luciana tentou tranquiliz\'e1-la:
\par -Tenha calma, Marcela. O que foi que aconteceu?
\par -Ser\'e1 que n\'e3o podemos conversar?
\par -Tem certeza de que \'e9 isso que voc\'ea quer?
\par -Voc\'ea disse que era minha amiga!
\par -E sou. Mas \'e9 voc\'ea quem tem vergonha da nossa amizade.
\par -Oh! Luciana, estou t\'e3o confusa! Diga-me o que fazer. Voc\'ea sempre soube o que fazer.
\par -Acho melhor termos essa conversa em outro lugar. Por telefone, n\'e3o d\'e1.
\par -Ser\'e1 que posso ir \'e0 sua casa?
\par -Hum... N\'e3o sei se seria bom.
\par -Voc\'ea est\'e1 com algu\'e9m, n\'e3o est\'e1? Foi quem atendeu o telefone.
\par -Sim, tenho outra pessoa e n\'e3o sei se seria boa id\'e9ia conversarmos aqui.
\par -Ela pode n\'e3o gostar, n\'e3o \'e9 mesmo? N\'e3o quero atrapalhar a sua vida, Luciana. Se vou lhe trazer problemas, deixe para l\'e1.
\par -N\'e3o, espere. Cec\'edlia \'e9 s\'f3 uma amiga. - Deu um riso maroto e emendou num sussurro: - Um pouco mais do que uma amiga, mas bem menos do que voc\'ea.
\par De onde estava, Cec\'edlia n\'e3o perdia uma s\'f3 palavra do que Luciana dizia. Fingira que voltara para a cozinha e se pusera a escutar no corredor, fora das vistas da
\par outra. Amiga, n\'e3o \'e9? E menos do que Marcela? O que ela queria com Luciana? Pelo tom de sua voz no come\'e7o, e pelo jeito de Luciana, era algo s\'e9rio. Cec\'edlia s\'f3 esperava
\par que ela n\'e3o representasse nenhum perigo. De jeito nenhum, poderia permitir isso.
\par Alguns instantes depois, Luciana desligou o telefone, e Cec\'edlia correu para a cozinha, apanhou a colher de pau e fingiu que mexia a panela. Passaram-se mais alguns
\par minutos, at\'e9 que Luciana apareceu toda arrumada, pronta para sair.
\par -Quem era? - indagou Cec\'edlia, de forma estudadamente desinteressada.
\par -Uma amiga.
\par -Marcela? - Luciana aquiesceu. - O que ela queria?
\par -Falar comigo.
\par -N\'e3o posso saber o que \'e9?
\par -\'c9 assunto particular, Cec\'edlia. N\'e3o lhe diz respeito.
\par -Voc\'ea vai sair? - retrucou ela, mordendo os l\'e1bios.
\par -Vou almo\'e7ar com ela.
\par -E o almo\'e7o que estou preparando?
\par -Guarde para o jantar. Poderemos comer juntas.
\par -No jantar, n\'e3o estarei mais aqui.
\par -Voc\'ea \'e9 quem sabe.
\par O pretenso ci\'fame de Cec\'edlia era o que irritava Luciana. Ela queria ter a posse de sua vida, e Luciana n\'e3o gostava de pessoas possessivas. Cec\'edlia j\'e1 a estava cansando
\par com suas cobran\'e7as e o seu apego, e j\'e1 era hora de deixarem de se ver.
\par -Sabe de uma coisa, Cec\'edlia? - prosseguiu Luciana. - Acho melhor que voc\'ea n\'e3o esteja mesmo aqui na hora do jantar.
\par -Como assim?
\par -Creio que j\'e1 \'e9 hora de terminarmos esse relacionamento. Foi muito bom, mas acabou. Quero de volta a minha liberdade.
\par -Voc\'ea n\'e3o pode estar falando s\'e9rio! \'c9 por causa dessa Marcela, n\'e3o \'e9? Voc\'ea ainda gosta dela.
\par -Marcela n\'e3o tem nada a ver com isso. O que sinto por ela \'e9 apenas amizade.
\par -Ela vai lhe pedir para voltar, e voc\'ea vai aceitar. \'c9 por isso que n\'e3o me quer mais.
\par -Como lhe disse, Marcela agora namora outra pessoa, e eu n\'e3o a amo mais. Gosto dela como uma irm\'e3, s\'f3 isso.
\par -Mas quer terminar comigo s\'f3 porque ela telefonou.
\par -Engano seu. Vou sair para conversar com ela, sim, mas estou terminando com voc\'ea porque j\'e1 estou cansada das suas cobran\'e7as. Desde que nos conhecemos, eu
\par lhe disse que n\'e3o gostava de ficar presa a ningu\'e9m, mas voc\'ea parece se esquecer disso \'e0s vezes.
\par -Isso \'e9 porque eu a amo!
\par -N\'e3o sei se acredito nesse seu amor. Acho que voc\'ea est\'e1 empolgada comigo e pensa que me ama, mas n\'e3o ama. Voc\'ea ainda \'e9 jovem e vai arranjar outra pessoa
\par em breve.
\par -Voc\'ea n\'e3o pode fazer isso comigo, Luciana. N\'e3o \'e9 justo.
\par -N\'e3o queria que as coisas fossem assim, mas n\'e3o posso mentir ou fingir s\'f3 para agradar voc\'ea.
\par -Voc\'ea n\'e3o tem mais interesse por mim?
\par -N\'e3o. Lamento, Cec\'edlia, mas \'e9 assim que eu sou.
\par -N\'e3o pode! N\'e3o aceito!
\par -Eu lhe avisei quando come\'e7amos e voc\'ea concordou. Disse que tamb\'e9m n\'e3o queria compromisso.
\par -Mas era porque n\'f3s mal nos conhec\'edamos. Com o tempo, fui-me apegando a voc\'ea e hoje a amo de verdade. \'c9 imposs\'edvel que voc\'ea n\'e3o sinta nada por mim.
\par -Sinto apenas amizade.
\par -Amizade \'e9 um sin\'f4nimo bonito para desinteresse.
\par -N\'e3o \'e9 verdade. Interesso-me por voc\'ea, pelo seu futuro, o seu bem-estar. Vou continuar pagando seu cursinho pr\'e9-vestibular e voc\'ea vai continuar trabalhando
\par no consult\'f3rio. Nada vai mudar.
\par -S\'f3 n\'e3o dormiremos mais juntas.
\par -S\'f3 isso.
\par -S\'f3 isso? Voc\'ea acha que \'e9 pouco?
\par -N\'e3o sei se \'e9 muito ou pouco, mas \'e9 assim que vai ser.
\par -Por favor, Luciana, n\'e3o fa\'e7a isso comigo! - ela come\'e7ou a chorar. - Vou sentir muito a sua falta.
\par -Voc\'ea se acostuma.
\par -Por que est\'e1 sendo t\'e3o fria e cruel?
\par -Estou sendo apenas verdadeira. Voc\'ea n\'e3o ia querer estar ao lado de uma pessoa que diz que a ama s\'f3 da boca para fora, ia?
\par -N\'e3o...
\par -Pois ent\'e3o? Eu n\'e3o a amo, Cec\'edlia, e lamento se voc\'ea pensa me amar. N\'e3o d\'e1 mais para continuarmos, e nosso relacionamento termina agora. Vou sair e, quando
\par voltar, espero n\'e3o a encontrar mais aqui.
\par -Est\'e1 me mandando embora?
\par -N\'e3o, em absoluto! Estou apenas tentando fazer as coisas da forma mais clara poss\'edvel.
\par -Vai voltar com Marcela, n\'e3o vai?
\par -Marcela \'e9 s\'f3 minha amiga, j\'e1 disse. Vivemos juntas por muito tempo, mas agora somos s\'f3 amigas. Por favor, n\'e3o me fa\'e7a mais repetir isso.
\par Cec\'edlia se calou por um momento, engolindo o \'f3dio que, naquele momento, jorrava aos borbot\'f5es de seu cora\'e7\'e3o.
\par -Por favor, Luciana...
\par -N\'e3o! Por favor, pe\'e7o eu. N\'e3o rasteje nem se humilhe. \'c9 repugnante.
\par Repugnante? Aquilo j\'e1 era demais. Luciana a estava rejeitando e humilhando, o que era muito mais grave. E tudo por causa daquela Marcela. Se perdesse a fonte de
\par renda de Luciana, ela ia ver s\'f3.
\par Luciana bateu a porta e deu um suspiro doloroso. N\'e3o gostava de magoar ningu\'e9m, muito menos Cec\'edlia, que fora sua amante durante muito tempo. Mas era melhor terminar
\par tudo antes que Cec\'edlia se apaixonasse verdadeiramente por ela, o que n\'e3o acreditava que j\'e1 houvesse acontecido. Ela fora dura, mas tinha um prop\'f3sito: s\'f3 assim conseguiria
\par fazer com que Cec\'edlia entendesse e aceitasse que seu romance chegara ao fim.
\par Saiu do edif\'edcio e deixou a lembran\'e7a de Cec\'edlia para tr\'e1s, concentrada no telefonema de Marcela. N\'e3o precisava nem encontr\'e1-la para saber que o problema era ela,
\par o envolvimento que tiveram no passado. Chegou ao restaurante cinco minutos adiantada, e Marcela j\'e1 a estava aguardando, olhando o rel\'f3gio a cada segundo.
\par -Oi, Marcela - cumprimentou Luciana, puxando uma cadeira para se sentar.
\par -Oh! Luciana, estou t\'e3o aflita! N\'e3o sei mais o que fazer. Estou me enfurnando cada vez mais numa mentira.
\par -O que foi que houve dessa vez?
\par -Fiz amizade com uma mo\'e7a... Ela me perguntou de voc\'ea, e eu inventei que voc\'ea havia se mudado. Mas isso foi porque dona Dolores foi me procurar, me fazendo
\par perguntas...
\par -Ei, ei! Calma. Uma coisa de cada vez. N\'e3o estou entendendo nada.
\par Marcela parou de falar e respirou fundo, sentindo as l\'e1grimas umedecerem seus olhos. Tomou f\'f4lego algumas vezes, assoou o nariz e come\'e7ou a contar tudo o que vinha
\par acontecendo desde que ela conhecera Fl\'e1vio.
\par -\'c9 isso, Luciana - finalizou. - N\'e3o sei mais o que fazer. Estou entrando cada vez mais fundo nessa mentira e n\'e3o vejo como retornar.
\par -Bom, vamos por partes. Essa tal de Adriana \'e9 uma amiga
\par recente e n\'e3o conhece o Fl\'e1vio, logo, n\'e3o pode prejudicar voc\'ea. Quanto \'e0 m\'e3e dele, acho que voc\'ea n\'e3o lhe deve satisfa\'e7\'e3o nenhuma. O problema \'e9 o Fl\'e1vio mesmo. Voc\'ea
\par devia contar para ele.
\par -Mas eu n\'e3o posso! Ele j\'e1 externou a sua opini\'e3o sobre l\'e9sbicas. N\'e3o vai me aceitar!
\par -Voc\'ea n\'e3o \'e9 l\'e9sbica.
\par -Mas j\'e1 fui!
\par -Olhe, Marcela, eu nem sei se algu\'e9m deixa de ser l\'e9sbica. Essas coisas n\'e3o s\'e3o assim, a gente n\'e3o escolhe o que vai ser de repente. \'c9 a natureza. O que
\par eu acho mesmo \'e9 que voc\'ea \'e9 bissexual e agora se apaixonou por Fl\'e1vio...
\par -Eu o amo, Luciana! Paix\'e3o \'e9 pouco.
\par -Tudo bem, voc\'ea o ama. Mais um motivo para lhe falar a verdade.
\par -Mas ele vai romper comigo, sei que vai.
\par -N\'e3o acredito que ele fa\'e7a isso. Mas, se fizer, n\'e3o \'e9 melhor do que construir a vida em cima de uma mentira?
\par -Ele n\'e3o precisa saber!
\par -Ele vai acabar descobrindo, pode crer.
\par -S\'f3 se voc\'ea contar a ele.
\par -\'c0s vezes, essa \'e9 a vontade que d\'e1. S\'f3 assim, voc\'ea acaba com essa agonia.
\par -Nem pensar! Voc\'ea n\'e3o tem o direito.
\par -Sei que n\'e3o, mas tamb\'e9m n\'e3o me agrada ver voc\'ea nesse estado. E falar assim do nosso relacionamento depois de todos esses anos, Marcela, francamente... Eu
\par esperava um pouco mais de considera\'e7\'e3o da sua parte.
\par -Voc\'ea est\'e1 chateada comigo?
\par -N\'e3o \'e9 que esteja chateada, mas d\'f3i ouvir voc\'ea falar de mim como se eu fosse uma aberra\'e7\'e3o. Pense bem: como voc\'ea se sentiria se eu lhe dissesse que tenho
\par vergonha de voc\'ea?
\par -Mas eu n\'e3o tenho vergonha de voc\'ea!
\par -Tem, sim. De mim e de voc\'ea. Tudo seria muito mais f\'e1cil se voc\'ea chegasse para o Fl\'e1vio e, naturalmente, lhe contasse tudo. Ele pode ficar chocado no come\'e7o,
\par mas vai entender. E, se n\'e3o entender, \'e9 porque n\'e3o ama voc\'ea tanto assim.
\par -N\'e3o posso, Luciana. Sei que voc\'ea est\'e1 certa, mas n\'e3o me pe\'e7a para fazer isso.
\par -Quer que eu fa\'e7a por voc\'ea?
\par -Como assim?
\par -Quer que eu conte a ele? N\'e3o tenho problema nenhum quanto a isso.
\par -Deus me livre! A\'ed mesmo \'e9 que ele vai me odiar.
\par -Acho que voc\'ea est\'e1 fazendo um julgamento precipitado sobre seu noivo. Afinal, o que n\'f3s fizemos n\'e3o foi t\'e3o grave assim.
\par -Pode n\'e3o ter sido para voc\'ea, mas para ele e a sociedade foi, sim.
\par -Ele n\'e3o pensa que voc\'ea tentou se suicidar por causa de um rapaz?
\par -Pensa.
\par -E n\'e3o a aceitou mesmo assim, mesmo imaginando que voc\'ea j\'e1 n\'e3o era mais virgem porque havia transado com outro?
\par -Mas \'e9 diferente...
\par -N\'e3o \'e9, n\'e3o. Basta voc\'ea dizer que ele est\'e1 certo em quase tudo. O \'fanico ponto em que ele errou foi no sexo do seu namorado. N\'e3o era namorado, era namorada...
\par -Isso n\'e3o \'e9 hora para brincadeiras, Luciana! O assunto \'e9 s\'e9rio.
\par -Tem raz\'e3o, desculpe-me. Ent\'e3o me diga: o que voc\'ea quer que eu fa\'e7a?
\par -S\'f3 quero que me ajude. Se algu\'e9m vier lhe perguntar alguma coisa, diga que fomos apenas amigas.
\par -Voc\'ea quer que eu minta?
\par -Por favor, Luciana, eu estou implorando.
\par -Voc\'ea sabe que eu n\'e3o gosto de mentiras. Nem sei mentir.
\par -\'c9 s\'f3 desta vez.
\par -Que vez? Ningu\'e9m nem me conhece!
\par -Eu sei, mas o meu cora\'e7\'e3o est\'e1 pequenininho. Sinto que algo vai acontecer.
\par -Bobagem sua.
\par -Voc\'ea n\'e3o vai contar nada a ele, vai?
\par -J\'e1 disse que n\'e3o.
\par -Mas h\'e1 pouco voc\'ea falou que tinha vontade...
\par -Mas n\'e3o vou contar. Embora n\'e3o concorde com essa sua decis\'e3o, vou respeitar a sua vontade. Quem tem que contar \'e9 voc\'ea.
\par -Obrigada, Lu - suspirou ela aliviada. - Sabia que voc\'ea compreenderia.
\par Naquele momento, um estranho pressentimento perpassou o cora\'e7\'e3o de Luciana, e uma sombra cinzenta turvou o semblante de Marcela. O destino na terra \'e9 tra\'e7ado pelas
\par pr\'f3prias pessoas que o vivem, que, muitas vezes, conseguem alterar o rumo que suas vidas tomam. Mas, quando isso n\'e3o acontece, e as desgra\'e7as sobrev\'eam, a tend\'eancia
\par dos encarnados \'e9 culpar a sorte, a fatalidade, Deus e os esp\'edritos. Em tudo procuram uma desculpa para os seus infort\'fanios, mas se esquecem de que a \'fanica justificativa
\par para o seu sofrimento \'e9 a sua pr\'f3pria vontade, a sua imprevid\'eancia e a sua invigil\'e2ncia.
\par Depois de deixar Marcela, Luciana voltou para casa pensativa. As mentiras da amiga ainda a colocariam em uma situa\'e7\'e3o dif\'edcil, e ela n\'e3o poderia evitar. Respeitava
\par a decis\'e3o de Marcela e tinha seus pr\'f3prios problemas para resolver.
\par Seu maior problema, no momento, era Cec\'edlia. Na verdade, nem era Cec\'edlia, mas ela mesma. Sua \'e2nsia desenfreada por liberdade, a avers\'e3o que tinha a compromissos
\par e liga\'e7\'f5es s\'e9rias a deixavam intrigada. Ela dizia a si mesma que tudo era reflexo do enorme tempo que vivera com Marcela, mas sabia que n\'e3o estava sendo verdadeira
\par consigo mesma. O que ela sentia era uma necessidade indescrit\'edvel de ser livre e n\'e3o se apegar a ningu\'e9m.
\par Reconhecia que acabava ferindo o sentimento alheio, como fora com Marcela e agora com Cec\'edlia. Mas ela n\'e3o podia evitar. N\'e3o podia fingir o que n\'e3o sentia nem enganar
\par a si mesma e \'e0s outras. Procurava ser sincera ao m\'e1ximo, mas sempre acabava machucando algu\'e9m.
\par J\'e1 estava cansada. Bem l\'e1 no fundo, o que queria era algu\'e9m que a aceitasse do jeito que ela era, que a fizesse aquietar o cora\'e7\'e3o e se sentir amada. Mas algo dentro
\par dela relutava em se submeter \'e0 passividade das rela\'e7\'f5es est\'e1veis e estava sempre em busca de algo mais que ela n\'e3o sabia precisar ou definir.
\par Nunca se envergonhara de ser como era. Desde menina,
\par aceitara com naturalidade a sua prefer\'eancia por mulheres. S\'f3 que agora come\'e7ava a questionar o porqu\'ea de muitas coisas. Ser l\'e9sbica n\'e3o era problema, mas por que
\par ela precisava temer tanto o envolvimento emocional? Ficara aquele tempo todo com Marcela porque praticamente a dominava e representava o papel masculino na rela\'e7\'e3o,
\par no sentido de ser aquela que resolvia tudo e tomava a frente em todos os assuntos. Marcela era mais fr\'e1gil, mais feminina, ao passo que ela sentia em si mesma uma
\par alma forte e destemida, como se sua ess\'eancia fosse mesmo a de um homem.
\par Ela era uma mulher, mas n\'e3o se comportava muito como tal. Bem que gostaria de ter nascido homem, mas n\'e3o fora aquele o destino que a natureza lhe reservara. Por
\par qu\'ea? Por que nascera num corpo t\'e3o diferente de sua ess\'eancia? Muitas vezes, ela vivia imenso conflito consigo mesma. Se, de um lado, era uma pessoa sens\'edvel; de
\par outro, era muito pr\'e1tica e at\'e9 mesmo fria. Nascer mulher talvez a estivesse ensinando a exercitar uma sensibilidade que lhe parecia sufocada, mas por que ser\'e1 que
\par ela precisava de tudo aquilo? Eram essas as perguntas que se fazia e para as quais n\'e3o conseguia encontrar as respostas.
\par A \'fanica certeza que tinha era de que estava ficando cansada.
\par Na segunda-feira seguinte, Cec\'edlia apareceu no consult\'f3rio acabrunhada e silenciosa, tentando fazer parecer que estava triste com o rompimento de Luciana, quando,
\par na verdade, o que temia era perder para sempre a sua fonte de renda. Logo pela manh\'e3, Ma\'edsa estranhou o seu quase mutismo e indagou com uma certa preocupa\'e7\'e3o:
\par -Est\'e1 tudo bem?
\par -Est\'e1 - foi a resposta lac\'f4nica.
\par -Voc\'ea parece meio abatida. Est\'e1 doente?
\par -N\'e3o tenho nada, estou bem.
\par Ma\'edsa n\'e3o insistiu e entrou em sua sala, preparando-se para come\'e7ar os atendimentos. Tudo transcorreu normalmente durante a manh\'e3, embora a quietude excessiva de
\par Cec\'edlia causasse estranheza. Mais tarde, quando Luciana chegou, as coisas permaneceram iguais. Cec\'edlia n\'e3o queria que ela percebesse o seu temor e a sua raiva, mas
\par sim que julgasse que ela estava sofrendo com a sua falta.
\par A posi\'e7\'e3o que Luciana adotou foi de n\'e3o dizer nada. J\'e1 havia dito tudo o que precisava e n\'e3o pretendia voltar atr\'e1s. Chegou em cima da hora, um pouco depois do paciente,
\par e entrou logo para o atendimento. Entre um cliente e outro, Cec\'edlia redobrava o ar de tristeza, para chamar a aten\'e7\'e3o de Luciana. Por fim, ao final do expediente,
\par comovida com o ar desolado da secret\'e1ria, Luciana considerou:
\par -N\'e3o gostaria que ficasse assim, Cec\'edlia. N\'e3o gosto de ver voc\'ea sofrer.
\par Com gestos estudados, Cec\'edlia encarou Luciana e for\'e7ou as l\'e1grimas, que umedeceram e avermelharam seus olhos, para, em seguida, responder baixinho:
\par -O que voc\'ea queria? Estou triste, n\'e3o d\'e1 para disfar\'e7ar.
\par -N\'e3o precisa disfar\'e7ar. S\'f3 n\'e3o queria que voc\'ea sofresse.
\par -N\'e3o se pode mandar nos sentimentos, e eu estou sofrendo muito.
\par -Cec\'edlia, por favor...
\par Nessa hora, Cec\'edlia se levantou e se virou de costas para Luciana, ocultando o rosto entre as m\'e3os.
\par -N\'e3o d\'e1 para ag\'fcentar, Luciana. Eu a amo muito... - calou-se com um solu\'e7o abafado e fungou algumas vezes, ainda sem se voltar.
\par -Voc\'ea est\'e1 enganada. N\'e3o pode me amar.
\par -Como \'e9 que voc\'ea sabe? - fingiu explodir. - Por acaso voc\'ea est\'e1 dentro de mim?
\par -N\'e3o \'e9 isso. \'c9 que acho que o que voc\'ea sente por mim n\'e3o \'e9 amor.
\par -Ah! N\'e3o? E o que \'e9 ent\'e3o? Desejo?
\par -N\'e3o sei... pode ser...
\par -Voc\'ea n\'e3o sabe nada, Luciana. N\'e3o sabe o que eu sinto ou o que desejo. N\'e3o sabe nem o que voc\'ea sente.
\par -Isso n\'e3o \'e9 verdade. Sei muito bem o que quero e o que n\'e3o quero...
\par -E o que voc\'ea n\'e3o quer sou eu, mas o que quer \'e9 Marcela, n\'e3o \'e9?
\par -N\'e3o diga isso. J\'e1 falei que Marcela \'e9 apenas uma amiga.
\par -Uma amiga t\'e3o \'edntima! - ela fitou Luciana com olhos injetados e disparou em tom de deboche, imitando a voz de Luciana ao telefone: - Um pouco mais do que
\par uma amiga, mas bem menos do que voc\'ea... \'c9, Luciana, eu ouvi. Ouvi quando voc\'ea disse isso a sua amiguinha Marcela. O que queria que eu pensasse?
\par -Voc\'ea n\'e3o tinha o direito de escutar minha conversa ao telefone! - zangou-se.
\par -E voc\'ea n\'e3o tinha o direito de falar assim de mim! O que fui
\par para voc\'ea, afinal? Um passatempo? Uma distra\'e7\'e3o? Ou algu\'e9m para satisfazer os seus desejos e as suas fantasias sexuais?
\par -Como se atreve a dizer uma coisa dessas? Tivemos uma rela\'e7\'e3o de cumplicidade e troca.
\par Luciana estava se exaltando, e Cec\'edlia, perdendo a cabe\'e7a. Era preciso ter calma e intelig\'eancia para n\'e3o p\'f4r tudo a perder.
\par -Perdoe-me, Luciana - reconsiderou ela, imitando voz de choro e tentando aparentar arrependimento. -Voc\'ea tem raz\'e3o... Nossa rela\'e7\'e3o sempre foi de troca.
\par \'c9 que eu estou sofrendo tanto! Estou desesperada!
\par A raiva fez com que o pranto brotasse do peito de Cec\'edlia, e ela deu livre curso \'e0s l\'e1grimas, fazendo parecer a Luciana que chorava de dor.
\par -N\'e3o precisa ficar assim - ponderou Luciana, penalizada. - Voc\'ea \'e9 jovem, bonita. Pode ter a pessoa que quiser.
\par -Mas eu quero voc\'ea! S\'f3 voc\'ea me interessa.
\par -Sinto muito, Cec\'edlia, mas isso n\'e3o \'e9 poss\'edvel. N\'e3o posso ficar com voc\'ea s\'f3 para agrad\'e1-la ou impedi-la de sofrer. N\'e3o seria honesto nem comigo, nem com
\par voc\'ea.
\par -Por favor, Luciana, pelo amor de Deus! O que voc\'ea quer que eu fa\'e7a? Que implore? Que me ajoelhe a seus p\'e9s?
\par Num gesto dram\'e1tico, Cec\'edlia atirou-se aos p\'e9s de Luciana e abra\'e7ou as suas pernas, solu\'e7ando de tal forma que quase n\'e3o conseguia mais falar. Aquela cena provocou
\par uma esp\'e9cie de choque el\'e9trico em Luciana. Se, por um lado, sentia piedade de pessoas em sofrimento; por outro, tinha repulsa daquelas que rastejavam e abandonavam
\par o orgulho e a raz\'e3o. Por isso, naquele breve momento, tomou uma decis\'e3o.
\par -Olhe aqui, Cec\'edlia - falou ela, com voz entre compreensiva e firme, levantando a outra do ch\'e3o -, assim, do jeito que est\'e1, n\'e3o vai dar. N\'e3o tem condi\'e7\'e3o
\par de voc\'ea continuar trabalhando para mim.
\par -Est\'e1 me mandando embora? - indignou-se.
\par Luciana hesitou, mas era o melhor que deveria ser feito.
\par -Estou - afirmou convicta.
\par -Mas como? Do que \'e9 que eu vou viver? E o cursinho pr\'e9-vestibular?
\par -Lamento, mas \'e9 assim que tem que ser. N\'e3o queria que as coisas chegassem a esse ponto, mas voc\'ea n\'e3o me deixa escolha. N\'e3o quero que voc\'ea sofra nem pretendo
\par prejudic\'e1-la, mas manter voc\'ea aqui s\'f3 vai piorar as coisas.
\par -Por que? Trabalhei normalmente hoje, n\'e3o foi?
\par -Voc\'ea passou o dia todo acabrunhada.
\par -N\'e3o tenho nem o direito de ficar triste? Por acaso eu destratei algu\'e9m? Fiz alguma grosseria para algum cliente?
\par -N\'e3o se trata disso. N\'e3o \'e9 com o trabalho que estou preocupada. O que me preocupa \'e9 voc\'ea. Acho que ficar perto de mim n\'e3o vai lhe fazer bem.
\par -Voc\'ea n\'e3o sabe o que me faz bem ou n\'e3o. Amo voc\'ea, Luciana, mas n\'e3o posso perder o meu emprego.
\par -Sinto, mas \'e9 o melhor. Tamb\'e9m n\'e3o queria mand\'e1-la embora, mas n\'e3o vejo outra sa\'edda. Vou lhe pagar o aviso pr\'e9vio, e voc\'ea pode ir procurando outro emprego.
\par -Aviso pr\'e9vio? Mas assim, dessa forma?
\par -Amanh\'e3 formalizaremos tudo.
\par -Mas Luciana...
\par -Vou pedir ao contador para resolver isso para mim. Voc\'ea vai ficar muito bem. Vou lhe pagar a indeniza\'e7\'e3o e ainda lhe dar uma gratifica\'e7\'e3o por fora.
\par -Quanta generosidade! Eu n\'e3o quero esmola, quero o meu emprego e ganhar o meu dinheiro gra\'e7as ao meu trabalho!
\par -Voc\'ea pode arranjar outro emprego. Vou lhe dar refer\'eancias...
\par A vontade de Cec\'edlia era apertar o pesco\'e7o de Luciana at\'e9 ouvi-lo
\par estalar em suas m\'e3os, mas ela n\'e3o podia fazer nada. Perder o emprego significava perder a boa vida que Luciana estava lhe dando, e isso, ela n\'e3o podia permitir.
\par Mas com Luciana, n\'e3o podia agir de forma rude ou agressiva. Ela era geniosa e temperamental, e uma rea\'e7\'e3o brusca s\'f3 serviria para afast\'e1-la ainda mais. Era preciso
\par despertar a sua compaix\'e3o e a sua simpatia.
\par -Luciana, por favor...
\par -N\'e3o adianta, Cec\'edlia, estou decidida. A partir de amanh\'e3, voc\'ea n\'e3o trabalha mais aqui.
\par -Voc\'ea n\'e3o pode fazer isso. E a Ma\'edsa? Ela n\'e3o vai gostar.
\par -Ma\'edsa n\'e3o vai se opor, tenha certeza. Vou falar com ela e explicar tudo.
\par -Ela ainda n\'e3o sabe do nosso rompimento?
\par -Ainda n\'e3o. N\'e3o queria envolv\'ea-la em nossos assuntos pessoais, mas agora n\'e3o tem mais jeito. Hoje mesmo, conto-lhe tudo.
\par -Mas Luciana, eu a amo!
\par -Por favor, Cec\'edlia, n\'e3o repita mais isso. \'c9 degradante e humilhante.
\par -Como voc\'ea pode falar assim do meu amor?
\par -N\'e3o vamos come\'e7ar com isso de novo. J\'e1 est\'e1 decidido, e eu n\'e3o vou voltar atr\'e1s.
\par -Luciana, me escute... - choramingou ela, as m\'e3os postas em sinal de s\'faplica. - Eu n\'e3o posso viver sem voc\'ea. N\'e3o \'e9 justo...
\par -Humilhar-se s\'f3 vai piorar as coisas. Lamento muito que tenha que ser assim, Cec\'edlia, mas \'e9 o melhor. Sei que voc\'ea vai me odiar hoje, mas isso vai passar,
\par e a\'ed ent\'e3o voc\'ea vai me dar raz\'e3o.
\par -Eu a amo - insistia Cec\'edlia, com voz cada vez mais s\'faplice.
\par -J\'e1 disse que n\'e3o acredito nesse amor.
\par -Mas \'e9 verdade! Voc\'ea n\'e3o pode falar sobre os meus sentimentos.
\par -N\'e3o quero come\'e7ar tudo outra vez, j\'e1 disse. E, ainda que seja verdade, ainda que voc\'ea me ame, eu n\'e3o a amo. Nunca a amei.
\par O sangue foi subindo \'e0 cabe\'e7a de Cec\'edlia que, por mais que n\'e3o quisesse se descontrolar diante de Luciana, n\'e3o conseguia mais conter o seu \'f3dio.
\par -Voc\'ea me usou, n\'e3o foi mesmo? Enquanto eu servia, me quis ao seu lado. Mas, quando sua ex-amante apareceu, voc\'ea logo aproveitou para me enxotar e voltar
\par correndo para os bra\'e7os daquela l\'e9sbica vagabunda!
\par -Isso j\'e1 \'e9 demais! - vociferou Luciana, dirigindo-se para a porta e escancarando-a. - V\'e1 embora. D\'ea-me a chave do consult\'f3rio e saia daqui!
\par Completamente vencida e atordoada, Cec\'edlia apanhou a bolsa e passou por Luciana feito uma bala. J\'e1 n\'e3o pensava mais em reatar o romance. Queria se vingar de Luciana
\par de uma forma que ela jamais esquecesse. Em seu \'edntimo, pensamentos atrozes a visitavam, e ela foi-se deixando consumir por um \'f3dio desmesurado e irracional. Durante
\par quase um ano, tivera que se submeter aos caprichos e fantasias de Luciana, quando, na verdade, o que
\par queria era estar na cama de Gilberto. Suportara tudo em sil\'eancio e com fingida paix\'e3o e, embora tivesse alcan\'e7ado alguns momentos de prazer com Luciana, aquilo n\'e3o
\par era nada se comparado ao turbilh\'e3o de emo\'e7\'f5es que sentia ao fazer sexo com Gilberto. Luciana era o seu p\'e9-de-meia, e Gilberto, sua verdadeira paix\'e3o. Submetera-se
\par a tudo por causa dele, para agrad\'e1-lo, para conseguir algum dinheiro a mais e se colocar bonita e vistosa para ele. E, agora, Luciana queria acabar com tudo.
\par -Isso n\'e3o vai ficar assim - rosnou Cec\'edlia entre os dentes, seguindo pela rua aos trope\'e7\'f5es.
\par Era preciso tomar alguma atitude antes que algu\'e9m descobrisse o que acontecera. Ningu\'e9m presenciara aquela discuss\'e3o e ningu\'e9m sabia que elas haviam rompido. Cec\'edlia
\par precisava agir antes que Luciana tomasse alguma provid\'eancia. Mas o que poderia fazer? Pensando com rapidez, aproximou-se de um orelh\'e3o e ligou para Gilberto, rezando
\par para que ele estivesse em casa. O rapaz logo atendeu, e Cec\'edlia lhe narrou brevemente o que havia acontecido, pedindo que ele fosse ao seu encontro no endere\'e7o de
\par Luciana, o mais r\'e1pido que pudesse.
\par De l\'e1, Cec\'edlia tomou um t\'e1xi e se dirigiu para a casa de Luciana. N\'e3o podia se dar \'e0queles luxos, mas aquela era uma ocasi\'e3o especial. Chegou praticamente junto
\par com ela, e Gilberto apareceu cerca de dez minutos depois.
\par Enquanto isso, dentro de casa, Luciana caminhava de um lado a outro na sala. A discuss\'e3o que tivera com Cec\'edlia deixara-a transtornada e aflita. Nunca imaginara
\par que Cec\'edlia pudesse falar aquelas coisas e se surpreendera com a forma agressiva e grosseira com que reagira. Ser\'e1 que Ma\'edsa tinha raz\'e3o?
\par Pensando na amiga, apanhou o telefone e ligou para ela. Foi Breno quem atendeu e foi chamar a mulher, que estava terminando o jantar.
\par -Oi, Lu - falou. - O que foi?
\par -Voc\'ea est\'e1 muito ocupada?
\par -Estou fazendo o jantar. Por qu\'ea? Quer vir comer aqui?
\par -N\'e3o. Preciso conversar com algu\'e9m. Aconteceu uma coisa hoje, no consult\'f3rio...
\par -Que coisa?
\par Nesse momento, a campainha do apartamento de Luciana come\'e7ou a soar, e ela respondeu apressada:
\par -Um momento. Est\'e3o tocando a campainha.
\par Luciana largou o fone em cima da mesinha e foi atender a porta. Pelo olho m\'e1gico, viu que era Cec\'edlia e balan\'e7ou a cabe\'e7a, contrariada. N\'e3o conseguiu ver Gilberto,
\par que estava escondido no patamar da escada, aguardando, e acabou por abrir a porta, pronta para mandar Cec\'edlia embora novamente. Mas, antes mesmo que ela pudesse
\par dizer alguma coisa, Gilberto saltou de onde estava e foi empurrando-a para dentro, ao mesmo tempo que a imobilizava e cobria sua boca com uma das m\'e3os.
\par -N\'e3o pensou em me ver novamente, n\'e3o \'e9, cadela? - rugiu Cec\'edlia. - Pensou que podia me usar e me colocar na rua com uma m\'e3o na frente e outra atr\'e1s? Pois
\par n\'e3o pode, ouviu? N\'e3o sou mulher de se dispensar. Pensa que estou realmente apaixonada? Por voc\'ea? Ora, francamente! Como \'e9 que uma mulher feito eu poderia se apaixonar
\par por uma aberra\'e7\'e3o feito voc\'ea? Eu sou mulher, entendeu? Gosto \'e9 do meu homem.
\par Luciana sentiu uma umidade repulsiva em seu rosto e percebeu que Gilberto passava a l\'edngua em sua face, rindo e debochando dela.
\par -Voc\'ea s\'f3 gosta de mulher \'e9, sua vadia? - escarneceu ele, ao mesmo tempo em que enfiava a m\'e3o entre as suas coxas. - Isso \'e9 porque ainda n\'e3o experimentou
\par um homem de verdade.
\par Ela conseguiu se desvencilhar um pouco e tentou correr, mas Gilberto foi mais r\'e1pido e a alcan\'e7ou, jogando-a no sof\'e1 com brutalidade. O seu riso era debochado e
\par frio, e Cec\'edlia come\'e7ou a rir freneticamente, enquanto repetia com voz maldosa:
\par -Mostre a ela, Gilberto! Mostre o que \'e9 ser mulher de verdade.
\par Recobrando o dom\'ednio sobre si mesma, Luciana come\'e7ou a se
\par debater, tentando se soltar dos bra\'e7os de Gilberto, que a apertou ainda mais. Ela gritava e estava quase se soltando quando ele, com medo de que algu\'e9m pudesse ouvir,
\par acertou-lhe um murro violento na face, depois outro, e outro, fazendo-a calar-se, o rosto inchado e sangrando. Mais que depressa, ele puxou o short que ela vestia
\par e se deitou sobre ela, novamente apertando a sua boca para que ela n\'e3o fizesse barulho. Ela soltou um grito abafado quando ele a penetrou, por\'e9m suportou tudo e
\par n\'e3o se permitiu
\par chorar. Estava com raiva, mas n\'e3o daria a Cec\'edlia o gostinho de v\'ea-la chorando e suplicando que n\'e3o lhe fizessem mal.
\par Com a boca tapada, Luciana n\'e3o podia dizer nada e disfar\'e7ava o medo. Instintivamente, olhou para o telefone pousado na mesinha, e Cec\'edlia, seguindo o seu olhar,
\par viu-o tamb\'e9m. Correu para ele e o apanhou, colocando-o no ouvido. Estava mudo.
\par -Com quem estava falando? - perguntou ela, com raiva. - Com a tonta da Ma\'edsa? Ou com sua amante l\'e9sbica?
\par Gilberto j\'e1 havia terminado de estupr\'e1-la e olhou assustado para Cec\'edlia.
\par -Vamos embora daqui - disse, cheio de medo. - Ela estava falando com algu\'e9m. Devem ter ouvido tudo!
\par Luciana estava exausta. N\'e3o tinha sequer for\'e7as para gritar e s\'f3 o que conseguiu foi ficar ouvindo os dois tramando seus pr\'f3ximos passos.
\par -Sua cadela! -vociferou Cec\'edlia, esbofeteando-a novamente. - Merecia era morrer!
\par -Vamos embora! - insistiu Gilberto com gravidade.
\par -N\'e3o! Ela vai contar \'e0 pol\'edcia.
\par -Vamos fugir! Vamos fugir! - repetia ele descontrolado.
\par Mas Cec\'edlia n\'e3o o escutava. Deixara-se invadir a tal ponto pelo
\par \'f3dio que nada nem ningu\'e9m poderia demov\'ea-la do prop\'f3sito de matar Luciana. A passos r\'e1pidos, ela se aproximou da outra, desfalecida no ch\'e3o, e se abaixou junto a
\par ela, quando s\'f3 ent\'e3o Gilberto percebeu uma faca reluzindo em sua m\'e3o. Nem teve tempo de falar. Com extrema agilidade, e um olhar de loucura e \'f3dio sobrenatural,
\par Cec\'edlia enterrou a faca no peito de Luciana, que gemeu baixinho e depois se calou. Ela teria ainda enfiado a faca outras vezes se Gilberto, vendo a sangueira que
\par se espalhava sobre o tapete, n\'e3o a tivesse arrancado de suas m\'e3os e berrado cheio de pavor:
\par -Voc\'ea a matou! Vamos embora daqui!
\par Cec\'edlia olhou para o corpo inerte de Luciana e deteve a m\'e3o, acompanhando, com um misto de prazer e fasc\'ednio, o sangue que escorria pelo tapete. Sem dizer palavra,
\par virou-se para a porta
\par da frente, soltou a faca e correu.
\par ***
\par Assim que Luciana pousou o fone na mesinha, uma forte apreens\'e3o foi tomando conta do esp\'edrito de Ma\'edsa. Durante alguns minutos, apenas o sil\'eancio vinha pelo outro
\par lado da linha, at\'e9 que, de repente, palavras de agress\'e3o, perfeitamente aud\'edveis, chegaram at\'e9 seus ouvidos. O tom era inconfund\'edvel, e Ma\'edsa reconheceu a voz de
\par Cec\'edlia. Apesar do \'f3dio com que falava, Ma\'edsa conseguiu entender tudo o que ela dizia. Somou a suas palavras as poucas que trocara com Luciana momentos antes, o
\par que foi suficiente para deduzir que ela e Cec\'edlia haviam terminado, e Cec\'edlia fora \'e0 casa dela movida por alguma inten\'e7\'e3o escusa.
\par Quando o sil\'eancio irrompeu pelo fone novamente, Ma\'edsa desligou o telefone e chamou Breno, para juntos irem \'e0 casa de Luciana.
\par -Mas querida, e o jantar? - ele tentou argumentar.
\par -Desligue o fogo e vamos! Sinto que \'e9 urgente!
\par Ele n\'e3o protestou. Ma\'edsa n\'e3o era mulher de fazer esc\'e2ndalos nem de se descontrolar por qualquer motivo e, se ela estava assustada e preocupada, uma boa raz\'e3o havia
\par de ter. Mais que depressa, sa\'edram de casa e partiram para o apartamento de Luciana, Breno guiando o mais r\'e1pido que podia. Luciana morava relativamente perto, e
\par eles chegaram em menos de quinze minutos.
\par A porta do apartamento estava fechada, mas n\'e3o trancada, e Ma\'edsa a abriu facilmente. As luzes da sala estavam acesas, e a primeira coisa que ela viu quando entrou
\par foi o corpo ca\'eddo de Luciana, uma ferida aberta no peito, por onde escorria um fio grosso e espesso de sangue. Ma\'edsa soltou um grito e teria desmaiado, n\'e3o fossem
\par a preocupa\'e7\'e3o e a urg\'eancia que o caso requeria.
\par Nem tiveram tempo de chamar a ambul\'e2ncia. Ma\'edsa estava t\'e3o nervosa que nem saberia dizer se Luciana estava viva ou morta, e Breno teve que agir com rapidez. Ergueu
\par o seu corpo, e foram correndo ao hospital. Ela ainda estava viva, mas a respira\'e7\'e3o parecia que ia sumindo, e Ma\'edsa p\'f4s-se a chorar e a rezar. A seu lado, Rani acompanhava
\par tudo. Desde o momento em que Luciana e Cec\'edlia haviam brigado, no consult\'f3rio, permanecera junto a ela, j\'e1 sabendo o que aconteceria.
\par Chegaram em instantes a um hospital particular, e Luciana foi logo socorrida e levada \'e0 sala de cirurgia. A ferida era grave, e ela tinha que ser operada imediatamente.
\par Durante horas, Luciana
\par ficou na sala de cirurgia, entregue aos cuidados dos m\'e9dicos e dos orientadores espirituais daquele hospital. Ao final da opera\'e7\'e3o, o m\'e9dico respons\'e1vel foi falar
\par com Ma\'edsa e Breno, que permaneceram o tempo todo na sala de espera.
\par -Foram voc\'eas que a trouxeram? - indagou ele, aproximando-se dos dois.
\par -Fomos - respondeu Breno. - Como ela est\'e1?
\par -Ainda \'e9 cedo para dizer. O estado \'e9 grave, mas ela tem chance de sobreviver. A ferida \'e9 profunda, e ela est\'e1 com o rosto muito ferido, al\'e9m de ter sido
\par estuprada.
\par -Estuprada!? - chocou-se Ma\'edsa. - Mas por quem?
\par O m\'e9dico n\'e3o respondeu, e Breno retrucou:
\par -Ela est\'e1 consciente?
\par -N\'e3o. Est\'e1 em coma desde que chegou.
\par -Oh! Meu Deus! - exclamou Ma\'edsa chorando, agarrada ao peito de Breno.
\par -Ser\'e1 que voc\'eas podem avisar \'e0 fam\'edlia?
\par -Ela n\'e3o tem fam\'edlia no Rio. S\'f3 n\'f3s.
\par -Entendo. Bem, pelos procedimentos legais, a pol\'edcia j\'e1 foi avisada. Deve chegar aqui em alguns instantes.
\par Com efeito, o detetive de plant\'e3o na pol\'edcia, naquela noite, chegou poucos minutos depois, e Ma\'edsa e Breno foram conversar com ele. Ma\'edsa deixou de lado o medo da
\par pol\'edcia e contou tudo o que ouvira pelo telefone, mas as suas declara\'e7\'f5es n\'e3o eram suficientes para prender Cec\'edlia. O policial, contudo, ficou de investigar.
\par -\'c9 um absurdo! - desabafou Ma\'edsa para Breno, depois que chegaram a casa. - Sei que foi Cec\'edlia. Eu ouvi a voz dela!
\par -Querida, a pol\'edcia n\'e3o pode sair por a\'ed prendendo as pessoas s\'f3 porque voc\'ea acha que ouviu a voz de Cec\'edlia ao telefone. E se voc\'ea estiver enganada?
\par -Mas n\'e3o estou. E tinha mais algu\'e9m com ela. N\'e3o sei quem, mas ela foi estuprada, o que significa que havia um homem com Cec\'edlia.
\par -O detetive sabe de tudo isso e vai investigar. Logo, logo, descobrem o meliante.
\par -Isso n\'e3o \'e9 justo. Tenho certeza de que foi Cec\'edlia. Se a prenderem, ela revela o nome de seu comparsa. Eles n\'e3o podem ficar impunes!
\par -E n\'e3o v\'e3o. Contudo, temos que aguardar. Se foi Cec\'edlia quem fez isso, e n\'f3s sabemos que foi, a pol\'edcia vai descobrir e vai prend\'ea-la. Ela e seu c\'famplice.
\par -Pobre Luciana - lamentou-se Ma\'edsa. - Eu cansei de avis\'e1-la sobre Cec\'edlia. E agora vejo s\'f3 no que deu.
\par -N\'e3o \'e9 hora de ficar pensando nisso.
\par -Acha que eu deveria avisar a Marcela?
\par -E por que n\'e3o? Marcela e Luciana viveram juntas por muito tempo. Ela precisa saber.
\par -Tem raz\'e3o. Vou telefonar para ela.
\par ***
\par O dia havia acabado de nascer quando Marcela entrou no hospital em que Luciana estava internada. Recebera a not\'edcia poucas horas antes e quase desfaleceu de susto
\par e tristeza. Deu o nome de Luciana na recep\'e7\'e3o e foi informada de que ela estava no Centro de Tratamento Intensivo, onde n\'e3o podia receber visitas.
\par -Quero apenas not\'edcias dela - implorou Marcela. - Por favor!
\par -A senhora \'e9 parenta?
\par -N\'e3o... Sou uma amiga.
\par -Est\'e1 bem. V\'e1 ao segundo andar e siga pelo corredor \'e0 direita do elevador. No final, vai encontrar uma outra recep\'e7\'e3o, que \'e9 a do CTI. D\'ea o nome dela e pe\'e7a
\par informa\'e7\'f5es.
\par Marcela fez como a mo\'e7a lhe dissera e foi pedir not\'edcias de Luciana na outra recep\'e7\'e3o, onde foi informada de que o estado da amiga era grave.
\par -Posso v\'ea-la?
\par -Lamento, mas s\'f3 parentes e, assim mesmo, por alguns poucos minutos.
\par Marcela saiu do hospital desolada. Como aquilo podia ter acontecido a Luciana? Ma\'edsa dissera que estava certa de que fora Cec\'edlia, a mo\'e7a com quem ela estava saindo.
\par Mas por que teria feito aquilo?
\par Uma profunda tristeza envolveu o cora\'e7\'e3o de Marcela. Precisava ao menos ver como Luciana estava, mas ela n\'e3o era parenta nem m\'e9dica, e n\'e3o podia entrar. Sim, ela
\par n\'e3o era m\'e9dica, mas Fl\'e1vio
\par era. Talvez ele pudesse ajud\'e1-la a entrar. Aquela parecia ser a \'fanica oportunidade de ver Luciana pessoalmente, por\'e9m havia outras coisas a considerar. Fl\'e1vio faria
\par perguntas... mas ela n\'e3o precisava lhe contar sobre o seu envolvimento com Luciana. Ele sabia que elas haviam sido amigas e que tinham morado juntas. Ele at\'e9 pensava
\par que Luciana era a respons\'e1vel pelo seu quase suic\'eddio, porque, supostamente, haveria roubado o homem por quem Marcela se apaixonara.
\par -Por que voc\'ea quer v\'ea-la? - indagou Fl\'e1vio, quando ela lhe contou o que havia acontecido.
\par -Ela \'e9 minha amiga... ou era... Viemos juntas de Campos e...
\par -E ela lhe roubou o namorado, n\'e3o foi? - Marcela n\'e3o respondeu. - Tudo bem, Marcela, n\'e3o precisa me explicar nada. Admiro a sua generosidade e o seu desprendimento.
\par Qualquer uma, no seu lugar, n\'e3o ligaria a m\'ednima e ainda acharia bem feito.
\par -N\'e3o sou qualquer uma.
\par -E \'e9 por isso que eu amo voc\'ea.
\par -Vai me ajudar, ent\'e3o?
\par -Como n\'e3o poderia ajud\'e1-la?
\par -Vai at\'e9 l\'e1 comigo?
\par -\'c9 claro. Quando \'e9 que voc\'ea quer ir?
\par -Pode ser agora?
\par -Pode. Vamos l\'e1.
\par N\'e3o foi dif\'edcil arranjar a visita de Marcela. Fl\'e1vio gozava de nome e prest\'edgio na comunidade m\'e9dica e foi prontamente atendido em seu pedido. Marcela, contudo,
\par foi avisada de que o estado de Luciana era grave e n\'e3o seria nada agrad\'e1vel a vis\'e3o da mo\'e7a ligada a aparelhos e toda espetada de agulhas. Marcela quis ir assim
\par mesmo, e Fl\'e1vio foi com ela.
\par Realmente, ver a amiga naquele estado provocou incontidas l\'e1grimas em Marcela que, durante alguns minutos, permaneceu parada diante dela, olhando o seu corpo com
\par um assombro mudo. De repente, apanhou uma das m\'e3os de Luciana e levou-a aos l\'e1bios, chorando com ang\'fastia e sussurrando coisas inaud\'edveis, que Fl\'e1vio n\'e3o conseguiu
\par compreender. Ela estava a ponto de se descontrolar quando Fl\'e1vio a retirou dali.
\par -Voc\'ea est\'e1 bem? - perguntou ele, do lado de fora, preocupado com o estado em que Marcela havia ficado.
\par -Oh! Fl\'e1vio, \'e9 t\'e3o horr\'edvel! Como algu\'e9m p\'f4de fazer isso com ela?
\par -Ser\'e1 que n\'e3o foi o namorado? - sondou ele com cautela. - Quero dizer, o mesmo que...
\par Marcela n\'e3o conseguiu mais ouvir e desatou a correr pelo corredor do hospital. Queria fugir dali o mais r\'e1pido poss\'edvel, para n\'e3o escutar as conjeturas de Fl\'e1vio
\par e n\'e3o ter que mentir novamente. Aquela mentira estava chegando ao limite do insustent\'e1vel, e ela estava a ponto de lhe contar toda a verdade. Se ele quisesse deix\'e1-la
\par depois disso, n\'e3o teria import\'e2ncia. O que ela n\'e3o suportava mais era conviver com tanta mentira, tendo que esconder seus sentimentos justamente do homem que amava
\par e em quem deveria confiar.
\par Foi s\'f3 quando alcan\'e7ou a recep\'e7\'e3o da entrada que Marcela parou de correr, e Fl\'e1vio chegou logo em seguida. Ela chorava muito, e ele a abra\'e7ou comovido.
\par -Tenha calma, Marcela - ele procurava consolar. - Seja quem for que tenha feito isso, vai ter que se entender com a Justi\'e7a.
\par -N\'e3o estou preocupada com a Justi\'e7a, Fl\'e1vio. Mas \'e9 que ver Luciana naquele estado... Uma mo\'e7a t\'e3o jovem, t\'e3o cheia de vida. E eu, que a conheci antes disso...
\par \'c9 muito doloroso!
\par -Eu sei, querida, mas n\'e3o fique assim. Tudo vai acabar bem.
\par -N\'e3o importa o que ela tenha feito... o que n\'f3s tenhamos feito... Eu a amava mesmo assim. Ser\'e1 que voc\'ea pode compreender o que \'e9 o verdadeiro amor?
\par -\'c9 claro que sim, meu bem. Acho isso muito bonito de sua parte. N\'e3o guardar m\'e1goa nem rancor. \'c9 admir\'e1vel que algu\'e9m seja dotado de tanta capacidade de amor
\par e compreens\'e3o quanto voc\'ea.
\par -Ah! Fl\'e1vio... - suspirou ela, certa de que ele n\'e3o compreendia o que ela estava falando.
\par -Marcela - eles ouviram uma voz chamar nesse instante.
\par Os dois se viraram ao mesmo tempo e viram Ma\'edsa parada
\par perto deles, com profundas olheiras e ar cansado.
\par -Ah...! Oi, Ma\'edsa - cumprimentou Marcela, enxugando os olhos e assoando o nariz no len\'e7o. - Lembra-se de Ma\'edsa, Fl\'e1vio?
\par -\'c9 claro - respondeu ele, apertando-lhe a m\'e3o. - Como vai?
\par -Quem \'e9 que pode estar bem numa situa\'e7\'e3o como essa?
\par -\'c9 verdade.
\par -Voc\'eas foram ver Luciana?
\par -Fomos - disse Marcela. - Oh! Ma\'edsa, fiquei t\'e3o chocada!
\par -Foi uma coisa horr\'edvel.
\par -J\'e1 sabem quem foi que fez isso? - perguntou Fl\'e1vio.
\par Conhecendo o problema de Marcela, Ma\'edsa a fitou discretamente e tornou de forma vaga:
\par -Ainda n\'e3o. Mas a pol\'edcia est\'e1 investigando.
\par -Espero que prendam logo o bandido. Um crime como esse n\'e3o pode passar impune.
\par -Espero que ela sobreviva-desabafou Marcela, entre l\'e1grimas.
\par -\'c9 claro, querida, eu tamb\'e9m.
\par -Bom - finalizou Ma\'edsa -, vou l\'e1 em cima ver como ela est\'e1.
\par -Voc\'ea pode entrar?
\par -Posso. Como Luciana n\'e3o tem fam\'edlia no Rio, tive que assinar como sua respons\'e1vel.
\par Marcela assentiu com a cabe\'e7a e, bra\'e7os dados com Fl\'e1vio, saiu do hospital, deixando l\'e1 dentro a vontade e a determina\'e7\'e3o de lhe contar a verdade. Estava muito fragilizada
\par com o que acontecera a Luciana e, se Fl\'e1vio a abandonasse naquele momento, era bem capaz de tentar matar-se novamente. A verdade podia esperar.
\par Havia apenas tr\'eas pacientes no Centro de Tratamento Intensivo daquele hospital, e Rani os observou com piedade. Os corpos flu\'eddicos de todos estavam adormecidos
\par acima de seus corpos f\'edsicos, inclusive o de Luciana, que pairava a alguns cent\'edmetros do leito. Ela esperou pacientemente. Os esp\'edritos de luz lhe disseram que
\par Luciana logo despertaria, e caberia a ela recepcion\'e1-la naquele mundo.
\par Efetivamente, cerca de dez minutos depois, Luciana abriu os olhos e levou um susto, sentindo seu corpo flutuar bem mais pr\'f3ximo do teto do que normalmente estaria.
\par Assustada, tentou se levantar e acabou se virando para baixo, dando de cara com seu corpo f\'edsico estirado na cama, todo ligado a aparelhos. Ela come\'e7ou a se debater
\par no ar, e Rani resolveu ajudar. Estendeu-lhe a m\'e3o e ajudou-a a reequilibrar-se, puxando-a gentilmente para baixo. Os p\'e9s de Luciana tocaram o ch\'e3o, e ela fitou novamente
\par o seu corpo f\'edsico, sentindo um temor diante do desconhecido.
\par -Estou morta? - perguntou a Rani.
\par -N\'e3o. Sua mat\'e9ria densa est\'e1 em processo de coma, contudo, ainda vive.
\par Luciana ouviu as explica\'e7\'f5es com ar de assombro e encarou Rani desconfiada.
\par -Quem \'e9 voc\'ea? N\'e3o a conhe\'e7o de algum lugar?
\par -Estive algumas vezes em sua companhia, durante o sono f\'edsico.
\par -\'c9 isso mesmo! Agora me lembro... Voc\'ea \'e9 a mulher que me confundiu com o tal de... Robert...
\par -Voc\'ea n\'e3o \'e9 mais Robert. Agora compreendo isso. Sei quem voc\'ea \'e9 hoje e n\'e3o estou aqui para prejudic\'e1-la.
\par -Por que est\'e1 aqui? O que quer comigo?
\par -Fui designada para auxili\'e1-la nesse momento dif\'edcil.
\par -Quem a designou?
\par -Esp\'edritos iluminados que s\'e3o superiores a mim.
\par -Onde est\'e3o eles?
\par -N\'e3o sei. Deram-me a incumb\'eancia de conversar com voc\'ea e expor o seu problema.
\par Luciana virou-se para o seu corpo f\'edsico e observou com azedume:
\par -Parece-me que voc\'ea n\'e3o pode resolver o meu problema.
\par -S\'f3 quem pode resolver esse problema \'e9 voc\'ea.
\par -Olhe... Como \'e9 mesmo o seu nome?
\par -Rani.
\par -Olhe, Rani, vamos parar com essa conversa e vamos direto ao ponto. Eu nem a conhe\'e7o, mas voc\'ea diz que foi mandada para me ajudar. Posso saber por qu\'ea? Quem
\par a mandou?
\par -Porque eu a amo sinceramente, e h\'e1 esp\'edritos superiores a mim interessados no seu crescimento. Se voc\'ea est\'e1 recebendo uma chance de se reconciliar com a
\par vida, eu tamb\'e9m estou recebendo a minha de me reconciliar com o passado.
\par -Chance de qu\'ea? N\'e3o estou entendendo nada.
\par -Voc\'ea n\'e3o se lembra do seu passado de mentiras e manipula\'e7\'f5es, n\'e3o \'e9 mesmo? - Luciana meneou a cabe\'e7a. - Pois foi isso que levou Cec\'edlia a tentar matar voc\'ea.
\par -Isso o qu\'ea?
\par -N\'e3o se lembra do que fez a todas n\'f3s?
\par -Eu fiz alguma coisa a voc\'eas?
\par -Voc\'ea sabe. Apenas n\'e3o quer se lembrar. Mas est\'e1 tudo a\'ed dentro de voc\'ea.
\par De repente, foi como se um v\'e9u se descortinasse, e Luciana quedou estarrecida diante do que via. As paredes do hospital foram se desmanchando, e algo parecido com
\par uma tela surgiu em seu lugar, ligada a fios t\'eanues e transparentes que, por sua vez, se ligavam \'e0 sua mente. Os pensamentos come\'e7aram a se
\par atropelar, e imagens de v\'e1rios momentos de suas vidas zuniam pela sua cabe\'e7a, enquanto Luciana ia-se recordando de v\'e1rias passagens do que vivera no passado. Era
\par ela quem controlava a m\'e1quina, que respondia ao que ela pensava e relembrava, projetando na tela imagens vividas de suas recorda\'e7\'f5es.
\par V\'e1rias cenas iam surgindo e desaparecendo, at\'e9 que, em dado momento, sua mente se fixou em uma lembran\'e7a espec\'edfica, e ela come\'e7ou a ver, na tela diante de si, o
\par que se desenrolava na tela de seus pensamentos.
\par Ela n\'e3o era ela, mas um ingl\'eas bonito e elegante, que caminhava por uma rua suja e escura de uma cidade que ela reconheceu como o Rio de Janeiro do s\'e9culo XVIII.
\par O ingl\'eas, Robert, trazia pela m\'e3o uma mo\'e7a ainda muito novinha, de seus treze anos, toda tr\'eamula e assustada. Ao final da rua, entraram no que parecia ser uma taverna,
\par mas na verdade era um prost\'edbulo clandestino que oferecia aos fidalgos da corte mocinhas rec\'e9m-sa\'eddas da puberdade, todas entre doze e quatorze anos no m\'e1ximo.
\par -Por favor, senhor - dizia ela -, n\'e3o quero. Tenho medo.
\par -Deixe de ser tola - respondeu ele num portugu\'eas mal falado e carregado de sotaque brit\'e2nico. - Voc\'ea vai ganhar muito dinheiro.
\par -Mas meus pais v\'e3o me matar se eu fizer isso.
\par -Se n\'e3o fizer, quem vai mat\'e1-la sou eu.
\par A menina come\'e7ou a chorar, e Robert a empurrou para dentro de um quarto tosco e mal iluminado, onde um homem velho e gordo ressonava em cima da cama. Robert cutucou
\par o homem com a bengala, e ele despertou assustado. Assim que abriu os olhos, viu a menina ao lado de Robert, e seus olhos se encheram de cobi\'e7a. Robert colocou a
\par menina diante dele e rasgou as suas roupas com viol\'eancia, expondo seu corpo esguio ao homem, que passava a l\'edngua pelos dentes, j\'e1 se contorcendo de prazer. Em seguida,
\par atirou-a nos bra\'e7os dele e saiu, sem ligar para o seu choro e as suas s\'faplicas.
\par Duas horas depois, a porta do quarto se abriu, e o homem saiu satisfeito. Pagou a Robert o prometido e foi embora sem dizer nada. Robert ent\'e3o entrou no quarto e
\par encontrou a menina deitada na cama, chorando, toda machucada com a brutalidade do homem.
\par -Levante-se da\'ed, vamos! - ordenou ele. - Voc\'ea j\'e1 pode ir embora.
\par Apesar de dolorida, ela obedeceu. Levantou-se da cama e apanhou as roupas, vestindo-se em l\'e1grimas.
\par -O que vou dizer a meus pais?
\par -N\'e3o diga nada. Mostre-lhes o dinheiro, e eles ficar\'e3o satisfeitos.
\par -Por que fez isso comigo, mister Robert?
\par -Quando lhe ofereci o dinheiro, voc\'ea concordou.
\par -Mas eu n\'e3o sabia o que aconteceria. O senhor me disse que ele era pintor...
\par -Deixe de lam\'farias, menina, e tome o seu dinheiro. Foi merecido.
\par Robert atirou v\'e1rias c\'e9dulas em cima dela, que as recolheu entre solu\'e7os.
\par -Nunca mais quero fazer isso, nunca mais...
\par Ela se levantou para ir embora e, ao passar rente a ele, sentiu que suas m\'e3os a seguravam.
\par -Voc\'ea \'e9 uma menina muito bonita - elogiou ele, ro\'e7ando os l\'e1bios nos dela. - Pena que n\'e3o fui o primeiro.
\par Assustada, a menina recuou e se desvencilhou dele, correndo porta afora, e as imagens se misturaram e passaram correndo pela tela e a mente de Luciana, ora indo
\par para a frente, ora para tr\'e1s. Em dado momento, tornaram a parar, e l\'e1 estava Robert novamente, deitado ao lado da mesma menina. Ela agora estava com ar mais descansado,
\par aparentando paix\'e3o nos gestos e na voz.
\par -Mister Robert - falou ela, quase num sussurro -, quando \'e9 que o senhor vai me tirar da minha casa?
\par -Tenha calma, menina. Voc\'ea ainda \'e9 muito jovem, e seu pai n\'e3o vai permitir. Voc\'ea n\'e3o quer que eu seja acusado de rapto, quer?
\par -Oh! N\'e3o! Mas \'e9 que eu gosto tanto do senhor!
\par Novamente, as imagens se misturaram, at\'e9 pararem no mesmo
\par quarto, em outro momento, e a menina dizia novamente:
\par -Estou esperando, mister Robert. Meu pai j\'e1 est\'e1 ficando desconfiado.
\par -Voc\'ea tem que ter paci\'eancia, j\'e1 disse. N\'e3o posso me casar com voc\'ea assim, de uma hora para outra.
\par -Mas o senhor disse que me amava. E eu amo tanto o senhor!
\par -Se me ama de verdade, ent\'e3o vai ter que esperar.
\par As imagens deram outra volta, e mais outra, e todas mostraram a Luciana a mesma cena que se repetia: a menina declarando o seu amor e suplicando a Robert que se
\par casasse com ela. Por fim, uma \'faltima cena preencheu a tela, e a menina ia dizendo, aos prantos:
\par -Isso n\'e3o est\'e1 certo! O senhor prometeu.
\par -Deixe de sandices, menina! Ent\'e3o n\'e3o v\'ea que n\'e3o posso me casar com voc\'ea?
\par -Mas o senhor prometeu. Disse que me levaria embora da minha casa.
\par -E voc\'ea acreditou? Ora, vamos, mas quanta burrice.
\par -O senhor mentiu para mim.
\par -Eu at\'e9 que tinha vontade de lev\'e1-la comigo para bem longe daqui, mas isso n\'e3o \'e9 poss\'edvel. Tenho neg\'f3cios a cuidar, e minhas garotas dependem de mim.
\par -N\'e3o posso ser uma de suas garotas?
\par -Voc\'ea \'e9. N\'e3o lhe arranjo clientes especiais?
\par -O senhor s\'f3 me arranja velhos.
\par -Isso \'e9 porque eu gosto de voc\'ea e n\'e3o quero correr o risco de que voc\'ea se envolva com nenhum jovem galante.
\par Era mentira. A menina, de nome Mariana, era oferecida aos velhos e ricos fidalgos porque era jovem e pouco experiente, o que rendia um dinheiro extra a Robert. As
\par mo\'e7as de seu prost\'edbulo s\'f3 atendiam homens do povo, sem muitos recursos, porque os nobres se recusavam a pisar num bordel sujo, com mulheres castigadas pelo tempo
\par e malvestidas. O futuro de Mariana, fatalmente, seria aquele, mas enquanto ela ainda era jovem e fresca, Robert podia se aproveitar para extrair um pouco mais de
\par dinheiro daqueles homens ricos e nobres, que procuravam mulheres fora do lar e pagavam bem em troca de seu segredo. E, enquanto elas serviam aos ricos, serviam tamb\'e9m
\par a ele, porque Robert n\'e3o gostava de mulheres velhas e usadas, mas s\'f3 das menininhas de corpo rijo e doce.
\par -Quero me casar com o senhor - prosseguiu Mariana. - Se n\'e3o, vou contar tudo a meu pai.
\par -Voc\'ea n\'e3o faria isso. Ele a expulsaria de casa.
\par -Mas mataria o senhor primeiro. Meu pai \'e9 soldado da guarda real e n\'e3o vai deixar o senhor sair impune.
\par -Soldado? Mas voc\'ea n\'e3o disse que seu pai era artes\'e3o?
\par -Disse. Mas s\'f3 porque tive medo de que o senhor n\'e3o me quisesse. Ou acha que eu me deitei com aqueles porcos velhos por causa do dinheiro? Deitei-me com
\par eles para agradar o senhor, porque era o que o senhor queria, mas o que eu queria mesmo era me deitar com o senhor.
\par -Por que fez isso, menina? N\'f3s dois podemos acabar muito mal.
\par -Eu sempre via o senhor da minha janela... t\'e3o bonito, t\'e3o distinto... Apaixonei-me pelo senhor s\'f3 de v\'ea-lo passar.
\par -Voc\'ea \'e9 louca? O que est\'e1 dizendo?
\par -Estou dizendo que fiz o que fiz por amor ao senhor. E agora que consegui o que queria, n\'e3o posso perder. O senhor vai ser sempre meu. Se eu falar com o
\par meu pai, ele vai obrigar o senhor a se casar comigo.
\par -Ele vai me matar! Voc\'ea mesma disse.
\par -S\'f3 se o senhor n\'e3o quiser se casar. Meu pai tem verdadeira adora\'e7\'e3o por mim e nunca me mataria.
\par -N\'e3o fa\'e7a isso, Mariana! N\'e3o posso me casar. Voc\'ea \'e9 s\'f3 uma menina!
\par -E o senhor \'e9 um homem muito mau. Enganou-me para conseguir o que queria, fez-me milh\'f5es de promessas e agora quer fugir ao seu compromisso. Meu pai precisa
\par saber disso.
\par -Se seu pai me matar, voc\'ea vai ficar sem mim. N\'e3o \'e9 isso o que voc\'ea quer, \'e9?
\par -N\'e3o. Mas prefiro v\'ea-lo morto a v\'ea-lo nos bra\'e7os de outra mulher. Ou o senhor se casa comigo, ou n\'e3o vai ser de mais ningu\'e9m.
\par -Voc\'ea \'e9 louca! Louca! Devia estar num sanat\'f3rio!
\par Robert estava apavorado. Casar-se com aquela doidivanas
\par era a \'faltima coisa que desejava. J\'e1 estava ficando cansado dela e pretendia terminar tudo, mas aquela revela\'e7\'e3o o deixou estarrecido e amedrontado. Mariana mentira,
\par dizendo que o pai era artes\'e3o, mas ele era um soldado, provavelmente violento, que n\'e3o hesitaria em matar o homem que tivesse roubado a honra de sua \'fanica filha.
\par O que poderia ele fazer?
\par -Ele j\'e1 sabe sobre n\'f3s? - perguntou Robert, o rosto iluminado pela terr\'edvel id\'e9ia que tivera.
\par -Ainda n\'e3o.
\par -Contou a mais algu\'e9m sobre n\'f3s?
\par -N\'e3o, j\'e1 disse. Ningu\'e9m sabe. Por enquanto.
\par -Pois ent\'e3o - tornou ele, um brilho frio no olhar -, ningu\'e9m nunca vai saber.
\par De um salto, Robert agarrou o pesco\'e7o de Mariana, que come\'e7ou a se debater assustada, nos olhos uma indiz\'edvel express\'e3o de surpresa e dor. Ela era pequena e fr\'e1gil
\par e, em poucos minutos, tudo estava terminado. Depois que ela morreu, Robert enrolou o seu corpo num cobertor e, altas horas da madrugada, colocou-o numa carruagem
\par e saiu com ele da cidade. Chegou a um rio turbulento e profundo, e amarrou v\'e1rias pedras no corpo de Mariana, atirando-o na \'e1gua. As \'e1guas imediatamente o tragaram,
\par e o corpo de Mariana sumiu para sempre; nunca mais foi encontrado.
\par O desaparecimento de Mariana foi um mist\'e9rio. Ningu\'e9m sabia que ela e Robert se encontravam. As mo\'e7as do bordel nem desconfiavam de que ele estava dormindo com uma
\par menina. Apenas Rani, sua preferida e confidente, sabia de seu envolvimento com ela, mas Rani nunca disse nada. O pai de Mariana ficou feito louco, procurando-a por
\par toda parte, afirmando que ela era um pouco estranha e perturbada, sempre fantasiando as coisas, e precisava de cuidados, mas n\'e3o conseguiu apurar nada. Os fidalgos
\par que se deitaram com ela, por medo e vergonha, se calaram, at\'e9 que ningu\'e9m nunca mais ouviu falar da pobre e pequenina Mariana.
\par Nesse ponto, as imagens se desvaneceram na mente de Luciana, e a tela projetada na parede do quarto se dissolveu. Luciana encarou Rani com l\'e1grimas nos olhos e se
\par ajoelhou diante dela, enla\'e7ando seus joelhos. Em seguida, deitou a cabe\'e7a em
\par seu colo e simplesmente chorou.
\par ***
\par Rani teve que aguardar alguns minutos at\'e9 que as l\'e1grimas de Luciana secassem. As lembran\'e7as haviam levado a mo\'e7a a extrema como\'e7\'e3o, e ela sentia a dor da culpa
\par pesar sobre seus ombros.
\par -Agora compreendo tudo - lamentou-se Luciana, ainda agarrada ao colo de Rani. - Pobre Cec\'edlia... foi aquela menina.
\par -N\'e3o fui autorizada a lhe trazer essas lembran\'e7as para que voc\'ea se sentisse culpada.
\par -Como \'e9 que voc\'ea acha que eu deveria me sentir? Agora me lembro de quem fui e do que fiz a ela. Acha que \'e9 f\'e1cil saber que matou algu\'e9m?
\par -\'c9 por isso que temos consci\'eancia: para que ela nos alerte sobre o que fizemos de bom ou mau, de certo ou errado, mas para que possamos consertar e evoluir.
\par N\'e3o \'e9 para nos castigar nem para nos infligir puni\'e7\'f5es.
\par -Mas e o remorso?
\par -O remorso \'e9 muito bom, porque \'e9 atrav\'e9s dele que reconhecemos o mal que fizemos. Mas n\'e3o encare o mal como essa coisa terr\'edvel e conden\'e1vel. O mal \'e9 parte
\par do crescimento humano, porque \'e9 atrav\'e9s dele que aprendemos o valor do bem. E, mais cedo ou mais tarde, todo mundo aprende.
\par -Ah! Rani, o que foi que eu fiz? Eu nasci homem e abusei das mulheres. E hoje, vim como l\'e9sbica para aprender o qu\'ea?
\par -Voc\'ea nasceu mulher para experienciar o universo feminino que tanto desprezou. Robert jamais acreditou que as mulheres possu\'edssem intelig\'eancia e vontade.
\par Para ele, as mulheres eram objetos in\'fateis e descart\'e1veis. Quando jovens e belas, serviam para o prazer. Se feias, tinham utilidade nas tarefas dom\'e9sticas. As velhas
\par eram dispens\'e1veis e podiam ser abandonadas. Quantas mulheres Robert colocou na rua porque, ao envelhecer, ficavam impedidas de trabalhar ou n\'e3o despertavam mais
\par o interesse dos homens? Quantas mo\'e7as gr\'e1vidas ele abandonou porque n\'e3o podiam mais se deitar com ningu\'e9m? E quantos abortos provocou para n\'e3o perder os seus lucros?
\par Foram muitos lares desfeitos, muitas vidas perdidas, muitas esperan\'e7as destru\'eddas.
\par -Obrigada, Rani, isso s\'f3 faz com que me sinta mais culpada - ironizou Luciana.
\par -Pois n\'e3o devia. Devia era agradecer a Deus a oportunidade que teve de reencarnar e se modificar. Eu ainda n\'e3o consegui essa chance.
\par -Por que n\'e3o?
\par -Porque s\'f3 queria estar junto de voc\'ea, e isso n\'e3o ser\'e1 poss\'edvel.
\par -E voc\'ea, Rani? Onde \'e9 que entra nisso tudo?
\par -J\'e1 disse que voc\'ea me trouxe da \'edndia para a Inglaterra, e depois, para o Brasil. Eu sempre fui a sua preferida, a \'fanica que voc\'ea respeitava e a quem realmente
\par amou. Mas n\'e3o era a \'fanica em sua vida, apesar de voc\'ea sempre voltar para mim. Tive que suportar muitas humilha\'e7\'f5es para ter voc\'ea ao meu lado.
\par -N\'e3o tem \'f3dio de mim?
\par -Meu cora\'e7\'e3o n\'e3o aprendeu a odiar, s\'f3 a amar. Durante muito tempo, procurei-a, porque queria estar perto de voc\'ea, partilhar da sua vida, mesmo que no mundo
\par astral. Demorei muito a encontr\'e1-la, porque procurava um homem. Mas os seus pensamentos acabaram me atraindo, e eu a reconheci sob essa capa de mulher. O amor que
\par sentia naquela \'e9poca, ainda sinto, mas o desejo que experimentei em sua companhia esfriou quando a vi. Foi bom, porque pude perceber o que \'e9, realmente, o amor.
\par Tanto faz, para mim, que voc\'ea seja homem ou mulher. O que sinto por voc\'ea vem daqui de dentro - ela colocou uma das m\'e3os sobre o seu cora\'e7\'e3o e outra sobre o cora\'e7\'e3o
\par de Luciana. - Quando entendi isso, ficou mais f\'e1cil perdo\'e1-la.
\par -Voc\'ea me perdoou?
\par -J\'e1 disse que sim. Sabe, Luciana, quando desencarnei, passei algum tempo no astral inferior, presa \'e0 paix\'e3o que sentia por voc\'ea. Mas, depois que voc\'ea sumiu,
\par fiquei pensando... de que me valia tanto sofrimento se voc\'ea j\'e1 n\'e3o estava mais ali? E, ainda que estivesse, do que valia, para mim, estar ao seu lado naquele momento
\par de solid\'e3o e dor? Resolvi partir tamb\'e9m. Os esp\'edritos que me acolheram ressaltaram que eu possu\'eda muitas qualidades e as foram mostrando a mim, uma a uma. Disseram
\par que eu era uma pessoa generosa e boa, amiga de todos, compreensiva, sens\'edvel, honesta e sincera, incapaz de maltratar ou de querer mal a quem quer que fosse, ainda
\par que a meus inimigos, e acima de tudo dotada de grande capacidade de amar. Meu \'fanico problema, eles diziam, era o apego que sentia por voc\'ea.
\par -E as outras mulheres? Tamb\'e9m pensam como voc\'ea?
\par -A maioria a odeia, mas muitas desistiram de voc\'ea quando a encontraram nesse corpo. Disseram que n\'e3o tinha gra\'e7a se
\par vingar de um homem que agora era mulher. Outras sequer a encontraram, porque estavam t\'e3o presas ao sexo e \'e0 sua mas-culinidade que n\'e3o conseguiram enxergar, no corpo
\par de Luciana, a alma do Robert de antigamente.
\par -Pelo que voc\'ea est\'e1 me dizendo, eu nasci mulher para fugir das minhas inimigas. \'c9 isso?
\par -Mais ou menos. N\'e3o para fugir, propriamente, mas para ter liberdade de viver as suas experi\'eancias sem interfer\'eancias indesej\'e1veis.
\par -N\'e3o sei se adiantou muito vir mulher...
\par -Se est\'e1 se referindo ao fato de ser l\'e9sbica, isso n\'e3o tem nada a ver com os seus projetos. A sua prefer\'eancia sexual, \'e9 claro, est\'e1 ligada \'e0 sua sexualidade
\par do passado. Voc\'ea sempre foi um homem atra\'eddo pelas mulheres, com uma sexualidade muito ativa e forte. Mas n\'e3o foi para compreender a feminilidade sexual que voc\'ea
\par reencarnou como mulher. Voc\'ea nem fez disso um plano de vida. Voc\'ea gosta de mulheres porque sempre gostou, isso est\'e1 impregnado em sua alma. Continua com essa prefer\'eancia
\par porque isso n\'e3o influi nos seus projetos de crescimento. Tanto faz que voc\'ea goste de fazer sexo com homens ou mulheres. Sua necessidade \'e9 de valoriza\'e7\'e3o dos ensinamentos
\par morais, de amor e respeito ao seu semelhante.
\par -E eu n\'e3o poderia conseguir isso reencarnando como homem?
\par -Se voc\'ea tivesse vindo homem, estaria usando as mulheres, talvez n\'e3o da mesma forma, porque os tempos hoje s\'e3o outros, mas continuaria n\'e3o tendo respeito
\par por elas, julgando-as seres inferiores e servis. Talvez voc\'ea se casasse, e sua esposa seria praticamente uma escrava, sem vontade ou direitos. Se tivesse filhas,
\par n\'e3o permitiria que elas estudassem nem que vivessem suas pr\'f3prias vidas, mas as criaria para o lar e para servir a seus maridos. Se possu\'edsse empregadas a seu servi\'e7o,
\par iria discrimin\'e1-las e trat\'e1-las como subalternas, pagando-lhes sal\'e1rios menores e dando-lhes cargos inferiores aos dos homens. Foi para isso que voc\'ea veio mulher:
\par para ter essa compreens\'e3o de que homens e mulheres s\'e3o iguais em import\'e2ncia no mundo, e o papel que cabe \'e0 mulher na sociedade n\'e3o a torna incapaz de exercer as
\par suas pr\'f3prias escolhas nem de dar vaz\'e3o \'e0 intelig\'eancia e \'e0 liberdade de seguir o destino que eleger. Uma mulher pode ser
\par carinhosa e m\'e3e, ao mesmo tempo em que est\'e1 apta a estudar e seguir a carreira que quiser.
\par -\'c9 algo a se pensar, Rani.
\par -O que voc\'ea fez no passado n\'e3o deve influir nessa vida a ponto de pensar em deix\'e1-la antes do tempo programado. Voc\'ea precisa voltar.
\par -Entendo o que voc\'ea diz, mas, no fundo, no fundo, n\'e3o sei se sinto alegria nessa vida. Acho que as culpas, inconscientemente, me levam a querer desistir.
\par -Voc\'ea n\'e3o pode desistir. Pense no que j\'e1 conquistou at\'e9 agora.
\par -Estou pensando no que ainda n\'e3o consegui conquistar. A atitude de Cec\'edlia me fez pensar na minha falta de amor. Sou uma mulher muito sozinha, e isso me
\par d\'f3i bastante.
\par -D\'f3i porque voc\'ea estava acostumada a viver rodeada de mulheres, mas agora n\'e3o tem ningu\'e9m.
\par -N\'e3o sei, Rani. Sinto que falta alguma coisa. Um amor, talvez... um amor de verdade.
\par Os olhos de Luciana se encheram de l\'e1grimas, bem como os de Rani. Naquele momento, Luciana tinha vividas na mem\'f3ria as lembran\'e7as de todas as mulheres que conhecera
\par em outras vidas, inclusive de Marcela, que fora uma das que mais abusara, e de Rani, que sempre fora sua companheira e amiga. Agora compreendia o vazio dentro de
\par si e o desejo oculto que a levava a pensar em retornar ao mundo espiritual, ainda que, conscientemente, seu c\'e9rebro f\'edsico n\'e3o tivesse aquela impress\'e3o.
\par -Voc\'ea n\'e3o deve se sentir assim - falou Rani, lendo-lhe os pensamentos. - Por mais que eu a ame, n\'e3o poderei estar com voc\'ea.
\par -Estou t\'e3o cansada! Tenho medo de estar usando as mulheres novamente, como fazia antes.
\par -Isso n\'e3o est\'e1 acontecendo. Voc\'ea as respeita, porque \'e9 uma delas e sabe o quanto de potencial possui para fazer coisas boas e produtivas.
\par -Mas n\'e3o consigo amar ningu\'e9m. Nem Marcela, que viveu comigo tantos anos.
\par -Voc\'ea e Marcela j\'e1 aprenderam a se amar, e \'e9 por isso que n\'e3o est\'e3o mais juntas. Marcela agora tem outras experi\'eancias
\par para viver, assim como voc\'ea tem as suas. Sei que voc\'ea n\'e3o quer
\par mesmo morrer. Est\'e1 apenas triste e cansada, mas vai superar
\par Voc\'ea \'e9 um espirito forte e determinado, e n\'e3o vai desistir da vida com tanta rapidez.
\par -Voc\'ea tem raz\'e3o, mas eu preciso de um pouco mais de tempo para pensar.
\par -E voc\'ea ainda tem uma tarefa a cumprir.
\par -Que tarefa?
\par -Algo que vai ajud\'e1-la a compreender o que seja o ser feminino.
\par -O que \'e9?
\par -Logo vai descobrir. Quando chegar o momento, virei prepar\'e1-la.
\par -Para qu\'ea?
\par -N\'e3o quero deix\'e1-la curiosa nem apressar o curso das coisas. Vim apenas alert\'e1-la de que h\'e1 uma miss\'e3o muito importante em sua vida, que impulsionar\'e1 o seu
\par crescimento.
\par -N\'e3o sei do que est\'e1 falando, mas confio em voc\'ea.
\par -\'d3timo. E agora, volte logo, que \'e9 para n\'e3o causar danos ao seu corpo f\'edsico. E, se precisar, chame por mim. Virei ajud\'e1-la, se puder.
\par Rani e Luciana trocaram um abra\'e7o efusivo, e o esp\'edrito de Rani desapareceu num piscar de olhos. Durante algum tempo, Luciana ficou fitando o lugar vazio onde ela
\par estivera e depois se virou para o corpo f\'edsico, deitado na cama branca do hospital. Caberia a ela decidir se aquele corpo viveria ou n\'e3o, o que a assustava um pouco.
\par Ela sempre achara que a vida ou a morte eram estados de poder, e esse poder estava nas m\'e3os de Deus.
\par E estava. Deus era soberano em todas as coisas, mas deixava a seus filhos o livre-arb\'edtrio para direcionar as suas vidas. Tratava-se de uma concess\'e3o, e Luciana
\par pensou que deveria aproveitar aquela concess\'e3o da melhor forma poss\'edvel. Por isso, sabia que tinha que retornar e, na volta, tentaria fazer diferente.
\par Ainda havia a misteriosa tarefa que Rani dissera que lhe cabia. Embora n\'e3o soubesse do que se tratava, algo em seu \'edntimo lhe dizia que era importante. Era algo
\par relacionado ao ser feminino, algo que talvez transformasse a sua vida para sempre. Luciana nem desconfiava o que poderia ser, mas sua alma se agitou e se colocou
\par na expectativa.
\par O tempo estava come\'e7ando a esquentar, ap\'f3s uma breve e refrescante chuva, e Ariane n\'e3o queria ficar em casa e perder a oportunidade de sentir na pele a proximidade
\par do ver\'e3o. Estava se preparando para sair quando a m\'e3e veio cham\'e1-la ao telefone.
\par -Quem \'e9? - perguntou Ariane desinteressada.
\par -\'c9 a m\'e3e de Fl\'e1vio. Disse que \'e9 urgente.
\par Dolores detestava ter que falar com Anita e, por isso, raramente telefonava para sua casa. Mas era imperioso que conversasse com Ariane, ou ela acabaria estragando
\par todos os seus planos.
\par -Al\'f4? - disse Ariane ao telefone.
\par -Venha a minha casa imediatamente - ordenou Dolores, com voz arrogante. - Estou esperando.
\par Desligou antes que Ariane pudesse responder. Pelo tom de sua voz, Dolores parecia bem aborrecida, o que s\'f3 podia ter uma raz\'e3o: ela presenciara Ariane em companhia
\par de Marcela, e era vis\'edvel a amizade que entre as duas havia se firmado. Ariane pensou em n\'e3o ir, mas sentiu inc\'f4moda hesita\'e7\'e3o. Afinal, travar amizade com Marcela
\par fora id\'e9ia de Dolores, na tentativa de descobrir algo no passado da mo\'e7a que pudesse aniquilar o seu relacionamento com Fl\'e1vio. No meio do processo, Ariane come\'e7ou
\par a mudar de id\'e9ia, em fun\'e7\'e3o do afeto e da verdadeira amizade que j\'e1 sentia por Marcela.
\par Chegou mesmo a pensar em desistir, mas algo lhe dizia que estava chegando perto de conhecer algum segredo importante
\par da vida de Marcela, um segredo que talvez a ajudasse a reconquistar Fl\'e1vio. E aquele segredo parecia estar relacionado a uma mo\'e7a chamada Luciana, que Ariane n\'e3o
\par conhecia e de quem nunca antes ouvira falar, nem mesmo pela pr\'f3pria Marcela. Fora por acaso que ela deixara escapar aquele nome, em tom de nervosismo e medo, o que
\par dava a Ariane a certeza de que Marcela e Luciana eram c\'famplices em algum segredo s\'f3rdido e escuso.
\par Mas teria ela o direito de vasculhar a vida de Marcela e revelar esse segredo, se \'e9 que havia realmente um?
\par De toda sorte, era melhor atender o chamado de Dolores. Ela estava zangada, e com uma certa raz\'e3o, porque presenciara uma camaradagem entre Marcela e Ariane que
\par jamais deveria existir. Poucos instantes depois, Ariane entrava na casa de Dolores, que a aguardava com impaci\'eancia.
\par -At\'e9 que enfim! - exclamou Dolores. - Pensei que n\'e3o fosse aparecer mais.
\par -Estive ocupada... - desculpou-se a mo\'e7a, \'e0 falta de coisa melhor para dizer.
\par -Fazendo o qu\'ea? Voc\'ea n\'e3o trabalha nem estuda. Gasta a vida em butiques e restaurantes. Ser\'e1 que n\'e3o lhe sobra tempo para prestar contas de suas atividades
\par a sua futura sogra? - Ariane n\'e3o disse nada. Queria protestar, mas havia uma supremacia nas palavras e nos gestos de Dolores que a fazia calar-se. - Muito bem, explique-se.
\par -Explicar-me? - balbuciou Ariane. - Como assim?
\par -N\'e3o se fa\'e7a de tonta, menina! Vi muito bem a forma como voc\'ea e Marcela se tratavam. Pareciam at\'e9 grandes amigas!
\par -Foi impress\'e3o sua. Quero dizer, Marcela at\'e9 que \'e9 uma garota legal, mas...
\par -Uma garota legal? - esbravejou ela, os olhos chispando fogo. - Voc\'ea j\'e1 se esqueceu de que foi ela quem lhe tomou o noivo?
\par -N\'e3o.
\par -Pois ent\'e3o, comece a agir como se ela fosse sua inimiga. Do contr\'e1rio, de nada adiantar\'e1 essa farsa.
\par -Isso n\'e3o \'e9 verdade, Dolores. Voc\'ea n\'e3o sabe o que est\'e1 acontecendo.
\par -Pelo visto, muitas coisas est\'e3o acontecendo, e uma delas \'e9
\par que voc\'ea e Marcela se tornaram amigas. Ser\'e1 que ela vai convidar voc\'ea para ser madrinha do seu casamento?
\par -N\'e3o diga uma coisa dessas. Fl\'e1vio vai se casar comigo - concluiu ela, sem muita convic\'e7\'e3o.
\par -Voc\'ea n\'e3o me parece muito segura disso.
\par -As coisas n\'e3o s\'e3o t\'e3o f\'e1ceis como voc\'ea pensa. E depois, Marcela \'e9 uma pessoa com sentimentos...
\par -Voc\'ea est\'e1 desistindo do nosso plano? \'c9 isso? Encantou-se pela pobretona e est\'e1 querendo partilhar com ela sua vida ingl\'f3ria? O que h\'e1? \'c9 monotonia? Cansou-se
\par da vida regalada e farta que voc\'ea leva? Da vida que eu lhe dei, porque, sem a minha ajuda financeira, o seu pai j\'e1 teria falido!
\par -O qu\'ea?! Que hist\'f3ria \'e9 essa? Meu pai tem a cl\'ednica...
\par -Que quase faliu quando Justino se retirou da sociedade. E quem voc\'ea pensa que ajuda seu pai a manter aquela porcaria? Sua m\'e3e? - ela n\'e3o respondeu. - Voc\'ea
\par n\'e3o sabe, n\'e3o \'e9, sua tonta, mas quem d\'e1 apoio financeiro ao incompetente do seu pai sou eu. E sabe por qu\'ea? Porque quero que a filha dele se case com o meu filho.
\par Vim preparando voc\'ea desde pequena para isso e n\'e3o admito que voc\'ea me traia agora. Ou voc\'ea segue adiante com o plano e se casa com Fl\'e1vio, ou pode ir procurando uma
\par cama vaga no apartamento f\'e9tido da sua amiguinha. Voc\'ea, sua m\'e3e e seu irm\'e3ozinho!
\par Aquilo era uma humilha\'e7\'e3o. Por que o pai nunca dissera que mantinha a cl\'ednica gra\'e7as \'e0 ajuda de Dolores? Ser\'e1 que a m\'e3e sabia daquilo? N\'e3o devia saber, porque nunca
\par comentara nada.
\par -Por que est\'e1 sendo t\'e3o cruel, Dolores? Voc\'ea sabe que amo Fl\'e1vio, mas n\'e3o me julgo capaz de concluir esse plano.
\par -Ah! N\'e3o? Quero ver s\'f3 quando voc\'ea estiver debaixo da ponte, o que \'e9 que vai pensar. Vai se arrepender de n\'e3o haver seguido as minhas ordens.
\par -O que voc\'ea quer que eu fa\'e7a? - tornou Ariane, em l\'e1grimas. - J\'e1 tentei, mas n\'e3o consegui nada. N\'e3o \'e9 culpa minha se Marcela \'e9 uma boa pessoa...
\par -N\'e3o acredito nisso! Ela esconde alguma coisa, sei que esconde! E voc\'ea sabe o que \'e9!
\par -N\'e3o sei de nada...
\par -Imposs\'edvel. Voc\'ea n\'e3o sabe mentir. Est\'e1 em seus olhos que descobriu alguma coisa. O que \'e9? Vamos, fale. Eu exijo que me conte a verdade!
\par -N\'e3o sei se \'e9 importante - hesitou Ariane, oprimida pela irresist\'edvel for\'e7a de Dolores.
\par -Ah! Ent\'e3o existe algo, n\'e3o \'e9? O que \'e9? Diga-me!
\par -N\'e3o \'e9 nada... quero dizer, \'e9 apenas uma suspeita, nada de concreto.
\par -Que suspeita \'e9 essa? Fale logo, Ariane, porque eu j\'e1 estou perdendo a paci\'eancia! O que est\'e1 esperando? Fale, ou vou p\'f4r o seu pai na fal\'eancia!
\par A amea\'e7a era muito grave para Ariane resistir. Ela era jovem e achava que podia se virar sem o luxo e o conforto, mas o que dizer da m\'e3e e do irm\'e3o? A m\'e3e j\'e1 n\'e3o
\par tinha mais idade para procurar emprego e n\'e3o sabia fazer nada, e o irm\'e3o ainda estava estudando. E quanto ao pai? Ariane n\'e3o se importava com ele. Era por culpa
\par dele que ela agora se encontrava nessa situa\'e7\'e3o, mas n\'e3o podia permitir que a incapacidade do pai colocasse em risco a vida de todos na sua fam\'edlia.
\par -Marcela tem uma amiga... - come\'e7ou ela a dizer, entre a contrariedade e o medo.
\par -Que amiga?
\par -O nome dela \'e9 Luciana.
\par -E da\'ed? O que tem essa amiga demais?
\par -Desconfio que ela e Luciana guardam algum segredo. Acho que compartilharam algo escuso ou il\'edcito, n\'e3o sei.
\par -Por que pensa assim?
\par -No dia em que voc\'ea esteve l\'e1, Marcela deixou escapar o nome de Luciana e ficou muito nervosa com isso.
\par -Hum... O que voc\'ea acha que pode ser?
\par -N\'e3o sei ao certo. Pensei em drogas ou prostitui\'e7\'e3o.
\par -Sim! - berrou Dolores de repente. - S\'f3 pode ser isso. Ela mora sozinha e j\'e1 mant\'e9m rela\'e7\'f5es com Fl\'e1vio h\'e1 muito tempo. E meu filho n\'e3o foi o primeiro, tenho
\par certeza. A infeliz veio de Campos e, n\'e3o tendo como sobreviver, tratou logo de se prostituir. Deve ter conhecido essa tal de Luciana na vida, e ela a apresentou
\par \'e0s drogas. Todo mundo se droga quando as coisas v\'e3o mal, n\'e3o \'e9 mesmo?
\par -Pode ser. O fato \'e9 que Luciana sabia, inclusive, da tentativa de suic\'eddio.
\par -Sabia? Mas que interessante! Deve ter sido por isso que ela tentou se matar. A vida foi ficando dura, ela deve ter apanhado de algum malandro e j\'e1 devia
\par estar cheia de maconha ou hero\'edna quando resolveu que viver assim n\'e3o valia a pena. Vai ver que foi por isso que tentou dar cabo da pr\'f3pria exist\'eancia. Menina idiota!
\par Nem se matar conseguiu!
\par -Por falar nisso, por que voc\'ea foi falar sobre o suic\'eddio com Marcela? Ela est\'e1 pensando que foi o Fl\'e1vio quem contou.
\par -E da\'ed? Melhor que pense. Vai achar que n\'e3o pode confiar nele e, quem sabe, n\'e3o cai fora? - Ariane n\'e3o respondeu, e Dolores prosseguiu: - Se essa tal de
\par Luciana sabia da tentativa de suic\'eddio, \'e9 porque deve ser uma pessoa bem chegada, voc\'ea n\'e3o acha? \'edntima mesmo. Ser\'e1 que Fl\'e1vio sabe a seu respeito?
\par -N\'e3o sei.
\par -Precisamos descobrir mais. Voc\'ea est\'e1 no caminho certo, Ariane, algo me diz que est\'e1. Em breve, essa vagabunda vai se delatar e vai colocar todos os podres
\par para fora.
\par -Ela \'e9 professora concursada. N\'e3o deve ser nenhuma vagabunda. Pensando melhor agora, essa hist\'f3ria est\'e1 muito exagerada. Nunca ouvi falar de prostitutas
\par drogadas que consigam se formar professoras e ainda passar num concurso p\'fablico.
\par -\'c9, isso \'e9 esquisito. Mas talvez ela s\'f3 puxasse um baseado de vez em quando, para diminuir a dor da sua mis\'e9ria. Devia estudar de dia e se prostituir \'e0 noite.
\par Isso n\'e3o \'e9 t\'e3o incomum assim. Depois que se formou, abandonou a vida e as drogas, mas duvido que tenha contado algo a Fl\'e1vio. Se isso for verdade, ele precisa saber.
\par Pelo bem da nossa fam\'edlia, Fl\'e1vio tem que ser alertado sobre o passado sombrio e negro dessa mo\'e7a.
\par -V\'e1 com calma, Dolores. N\'f3s nem sabemos se isso \'e9 verdade.
\par -\'c9 por isso que voc\'ea tem que voltar l\'e1 e descobrir. N\'e3o quero fazer intrigas infundadas, porque Fl\'e1vio n\'e3o \'e9 nenhum tolo e, se n\'e3o for verdade, ele vai se
\par voltar contra mim.
\par -E se ele j\'e1 souber de tudo? E se ela lhe contou e ele a aceitou desse jeito? Afinal, foi ele quem cuidou dela no hospital.
\par -Duvido muito. Ela deve ter inventado uma hist\'f3ria comovente,
\par e Fl\'e1vio, cora\'e7\'e3o mole, caiu direitinho. Mas eu sei a cria\'e7\'e3o que dei a meu filho e duvido muito que ele aceitasse se casar com uma prostituta.
\par -Marcela diz que tentou se matar por causa de um ex-namorado.
\par -Muito conveniente, n\'e3o \'e9 mesmo? Uma mo\'e7a pobre e sozinha, seduzida e abandonada pelo namorado numa cidade grande. Quer algo mais tocante e comovente? O
\par tolo do Fl\'e1vio logo amoleceu e resolveu que tinha que cuidar da pobrezinha. Est\'e1 a\'ed a mentira.
\par -N\'e3o sei, Dolores, algo nessa hist\'f3ria n\'e3o cai bem. Ela n\'e3o combina com a personalidade de Marcela.
\par -Marcela \'e9 uma idiota que pensa que \'e9 esperta. Se ela acha que vai dar o golpe do ba\'fa no meu filho, est\'e1 muito enganada. N\'e3o vou permitir!
\par -Engra\'e7ado, n\'e3o \'e9? Voc\'ea n\'e3o quer que Fl\'e1vio se case com Marcela porque ela \'e9 pobre. No entanto, pelo que voc\'ea mesma disse, eu n\'e3o estou muito longe de me
\par tornar t\'e3o ou mais pobre do que ela.
\par -\'c9 diferente, meu bem - ironizou. - Voc\'ea tem ber\'e7o, tem estilo. Sua fam\'edlia \'e9 do nosso meio, e voc\'ea n\'e3o vai causar coment\'e1rios em sociedade.
\par -Ser\'e1 mesmo por isso? Ou ser\'e1 porque voc\'ea espera a minha gratid\'e3o e a minha obedi\'eancia?
\par -Isso n\'e3o tem import\'e2ncia. O que importa \'e9 que voc\'ea \'e9 a mulher ideal para o meu filho. Venho sonhando com esse casamento desde que voc\'ea nasceu. N\'e3o \'e9 justo
\par que Fl\'e1vio destrua os meus sonhos de m\'e3e. Ele n\'e3o tem esse direito.
\par -Ele n\'e3o tem o direito de ser feliz?
\par -Ele n\'e3o sabe o que \'e9 felicidade. Se ele se casar com essa mo\'e7a, vai ver como o preconceito da sociedade pode torn\'e1-lo extremamente infeliz. Estou lhe fazendo
\par um favor e, mais tarde, ele ainda vai me agradecer.
\par -Acho que voc\'ea est\'e1 sendo ego\'edsta. Est\'e1 pensando apenas em si mesma e nas apar\'eancias sociais.
\par -Quem \'e9 voc\'ea para me julgar, menina? - enfureceu-se ela. - N\'e3o me queira como inimiga, porque posso destruir voc\'ea e a sua fam\'edlia com uma simples assinatura.
\par -E voc\'ea seria bem capaz disso, n\'e3o \'e9 mesmo?
\par -Quer experimentar?
\par -N\'e3o precisa. Sei bem quem voc\'ea \'e9.
\par -Voc\'ea devia estar do meu lado. Fiz tudo por voc\'ea, para que seja feliz com o homem que ama. Por que se volta contra mim agora?
\par -\'c9 voc\'ea que est\'e1 contra o mundo, Dolores. Pensa que o mundo lhe pertence e n\'e3o se conforma que ele gire em dire\'e7\'e3o contr\'e1ria \'e0 que voc\'ea pretende.
\par -Muito bonito e filos\'f3fico, mas n\'e3o quer dizer nada. O mundo n\'e3o me pertence por inteiro, mas existe uma parcela dele que eu posso comprar.
\par -Voc\'ea n\'e3o pode comprar amor. E \'e9 por isso que vai acabar sozinha nesse seu mundo de riquezas e dinheiro.
\par -Pare com essa discuss\'e3o tola - cortou ela irritada. - N\'e3o gosto de serm\'f5es nem de digress\'f5es moralistas. E depois, voc\'ea n\'e3o \'e9 ningu\'e9m para me dar li\'e7\'f5es
\par de moral. Deixe de lado as crises de consci\'eancia e alie-se a mim. Ver\'e1 que s\'f3 tem a lucrar.
\par A vontade de Ariane era de chorar, mas nem l\'e1grimas ela conseguia mais verter. S\'f3 agora conseguia enxergar a mulher mesquinha e ego\'edsta que era Dolores. E acabara
\par se deixando envolver por suas maldades. Em sua paix\'e3o irracional por Fl\'e1vio, embrenhara-se num caminho de trai\'e7\'e3o do qual n\'e3o via mais como voltar. N\'e3o gostaria
\par de levar adiante aquele plano p\'e9rfido, mas tinha que pensar em sua fam\'edlia.
\par A noite mal dormida e os pesadelos constantes impediram Marcela de ir \'e0 escola naquele dia. A visita que fizera a Luciana na v\'e9spera a deixara transtornada e aflita,
\par e do\'eda-lhe no cora\'e7\'e3o lembrar-se da imagem da amiga, toda ligada a tubos e fios, jogada inerte na cama daquele hospital. Apanhou o telefone e ligou para a escola,
\par informando que n\'e3o poderia ir naquele dia. N\'e3o era seu costume faltar. Nem as faltas mensais a que tinha direito, ela costumava tirar. Por isso, ningu\'e9m reclamou
\par de sua aus\'eancia, e ela tranq\'fcilizou a diretora afirmando que apenas n\'e3o se sentia muito bem.
\par Foi para a cozinha preparar um caf\'e9 e ligou para Fl\'e1vio v\'e1rias vezes naquela manh\'e3. Sentia-se insegura e com medo, porque o estado de Luciana lhe despertava muitas
\par preocupa\'e7\'f5es, ao mesmo tempo que a assustava a possibilidade de que, com isso, Fl\'e1vio viesse a descobrir a natureza de sua liga\'e7\'e3o.
\par J\'e1 perto da hora do almo\'e7o, vencida pelo cansa\'e7o, recostou-se no sof\'e1 e acabou adormecendo, s\'f3 despertando quando a campainha da porta come\'e7ou a tocar insistentemente.
\par Marcela se levantou sonolenta e olhou o rel\'f3gio da parede. Passava de duas horas da tarde, e o est\'f4mago doeu de repente. Ela passara a manh\'e3 toda sem se alimentar
\par e agora sentia fome. Mas n\'e3o tinha vontade de preparar nada nem se animava a sair para comer.
\par Quando Marcela abriu a porta, ouviu a exclama\'e7\'e3o de Ariane, que a encarava com ar de espanto:
\par -O que foi que houve, Marcela? Estou h\'e1 meia hora tocando!
\par -Eu dormi, Adriana. Passei a noite em claro e acabei pegando no sono no sof\'e1.
\par -Voc\'ea n\'e3o foi trabalhar hoje. Fiquei preocupada.
\par -N\'e3o estou me sentindo bem.
\par -Voc\'ea est\'e1 com uma cara horr\'edvel! Est\'e1 doente?
\par -N\'e3o se preocupe, n\'e3o \'e9 nada.
\par -Ningu\'e9m fica assim por nada. Se n\'e3o est\'e1 doente, o que foi que houve?
\par -N\'e3o estou me sentindo bem, j\'e1 disse.
\par -Mas o que voc\'ea tem? \'c9 dor de cabe\'e7a? De barriga? C\'f3lica?
\par -Por favor, Adriana, eu estou bem. Apenas gostaria de ficar sozinha, se n\'e3o se importa.
\par -Quer que eu v\'e1 embora? - Marcela assentiu. - Tem certeza?
\par Marcela n\'e3o resistiu. N\'e3o ag\'fcentava mais guardar tanta dor
\par dentro do peito sem poder partilh\'e1-la com algu\'e9m. A \'fanica com quem ainda podia falar sobre Luciana era Ma\'edsa, mas ela quase n\'e3o a via. Estava sozinha e apavorada,
\par com medo de Luciana morrer e de acabar revelando a verdade a Fl\'e1vio. Mas ela n\'e3o queria realmente ficar sozinha. Dissera aquilo s\'f3 porque sabia que, se Ariane ficasse,
\par ela acabaria se abrindo e lhe contando o que a machucava tanto. E foi exatamente isso o que aconteceu. Marcela se atirou no pesco\'e7o de Ariane e desatou a chorar
\par de tal forma que a outra ficou deveras preocupada.
\par -O que \'e9 isso? - perguntou Ariane, abra\'e7ando a amiga com carinho. - O que foi que houve?
\par -Oh! Adriana!
\par -Foi o Fl\'e1vio? Voc\'eas brigaram? - ela meneou a cabe\'e7a, e Ariane prosseguiu, deveras preocupada: - Foi a m\'e3e dele? Ela lhe fez alguma coisa?
\par -N\'e3o \'e9 nada disso... Mas eu estou t\'e3o desesperada!
\par -Por que voc\'ea n\'e3o se acalma e me conta o que aconteceu? Sou sua amiga, quero ajud\'e1-la.
\par -Ser\'e1 que posso confiar em voc\'ea?
\par Ariane engoliu em seco e respondeu com uma quase convic\'e7\'e3o:
\par -Voc\'ea sabe que pode - o est\'f4mago de Marcela roncou, e Ariane tornou com preocupa\'e7\'e3o: - J\'e1 almo\'e7ou?
\par -Ainda n\'e3o.
\par -Pois ent\'e3o venha. S\'f3 sei fazer macarr\'e3o, mas, pelo menos, voc\'ea n\'e3o morre de fome.
\par Enquanto Ariane apanhava as panelas e os ingredientes da macarronada, Marcela se sentou \'e0 mesa da cozinha e afundou o rosto entre as m\'e3os, come\'e7ando a chorar novamente.
\par -Estou me sentindo p\'e9ssima... - balbuciou ela. -Aconteceu algo t\'e3o horr\'edvel!
\par -Com voc\'ea? - ela negou. - Com Fl\'e1vio? - negou novamente. - Ent\'e3o, com quem?
\par -Luciana...
\par -Quem?
\par -Luciana. Lembra-se de que lhe falei sobre ela?
\par -Lembro-me de que voc\'ea falou o nome dela, mas n\'e3o me disse nada a seu respeito. O que foi que houve com Luciana?
\par -Voc\'ea n\'e3o sabe o quanto n\'f3s somos amigas! E agora... - ela come\'e7ou a chorar novamente, at\'e9 que conseguiu falar com voz sofrida: - tentaram mat\'e1-la...
\par -Mat\'e1-la? Mas quem, meu Deus? Foi assalto?
\par -N\'e3o... foi... uma... ex... companheira...
\par -Meu Deus! E por que ela fez isso? Foi por causa de algum namorado?
\par -Voc\'ea n\'e3o entendeu. Luciana n\'e3o tem namorado. Ela tem...
\par -Tem o qu\'ea? Um amante?
\par -N\'e3o - Marcela achou que j\'e1 era hora de parar de divagar e, enchendo-se de coragem, disparou: - Na verdade, Luciana foi esfaqueada pela mulher que era sua
\par amante.
\par -O qu\'ea?! - Ariane parou o que estava fazendo e abriu a boca, pasmada. - Quer dizer que Luciana \'e9 l\'e9sbica?
\par -\'c9.
\par -Que coisa nojenta!
\par -N\'e3o diga isso, Adriana, n\'e3o \'e9 nojento. Somos apenas pessoas comuns.
\par -Somos? Marcela, n\'e3o v\'e1 me dizer que voc\'ea e essa Luciana... - calou-se, com medo das pr\'f3prias palavras - que voc\'ea e ela tiveram... um caso!
\par -Tivemos. Sinto se a decepciono, mas a verdade \'e9 que eu
\par fui perdidamente apaixonada por Luciana, e foi por causa dela que tentei me matar.
\par Nesse ponto, Ariane soltou as panelas e se sentou ao lado de Marcela, fitando-a com um assombro mudo. E ela, que imaginara tantas coisas que justificassem um segredo,
\par nem de longe pensara que Marcela pudesse ser l\'e9sbica. Como poderia pensar aquilo, se ela e Fl\'e1vio iam se casar?
\par -N\'e3o estou entendendo - murmurou Ariane confusa. -Voc\'ea e Fl\'e1vio... voc\'ea o est\'e1 enganando?
\par -N\'e3o. Fl\'e1vio \'e9 tudo o que me resta, e eu o amo mais do que a pr\'f3pria vida. No entanto, n\'e3o posso negar a pessoa importante que Luciana foi e ainda \'e9 em minha
\par vida.
\par -Isso \'e9 um disparate! - gritou Ariane, levantando-se da mesa e afastando-se de Marcela. - E eu que pensei que voc\'ea quisesse a minha amizade. O que pretendia
\par comigo? Seduzir-me? V\'e1 esquecendo, Marcela, porque n\'e3o sou disso.
\par -Voc\'ea est\'e1 sendo injusta, Adriana. Quando a conheci, era voc\'ea quem estava procurando uma amiga. Foi voc\'ea quem me procurou todas as vezes, quem ia ao meu
\par trabalho me esperar na hora da sa\'edda. E nunca, em todos esses momentos, sequer me passou pela cabe\'e7a ter alguma rela\'e7\'e3o \'edntima com voc\'ea. Gosto muito de voc\'ea, mas
\par \'e9 como amiga. \'c9 Fl\'e1vio que amo e \'e9 s\'f3 com ele que quero estar.
\par Raciocinando em cima das palavras de Marcela, Ariane se acalmou e tornou a se sentar, levantando-se em seguida para mexer a panela no fogo. N\'e3o sabia o que fazer
\par e n\'e3o queria encarar Marcela, por isso, p\'f4s-se a preparar a comida, tentando pensar em algo para dizer.
\par -Como foi que isso aconteceu? - perguntou ela, lutando contra a indigna\'e7\'e3o.
\par -O qu\'ea?
\par -Como foi que voc\'ea e Luciana...
\par -Como n\'f3s nos conhecemos? - ela assentiu. - N\'f3s \'e9ramos amigas em Campos...
\par De forma pausada e paciente, Marcela contou a Ariane toda a sua hist\'f3ria desde que sa\'edra de Campos, para ir atr\'e1s de Luciana. Contou de seus primeiros anos juntas,
\par dos estudos, dos empregos,
\par dos concursos, da for\'e7a que Luciana sempre lhe dera e como a incentivara a ser algu\'e9m na vida.
\par -Luciana trabalha como dentista? - perguntou Ariane, surpresa com a hist\'f3ria que Marcela contara.
\par -Tem um consult\'f3rio com uma amiga, e est\'e3o indo muito bem, pelo que Ma\'edsa me disse.
\par -Ma\'edsa \'e9 outra de suas amantes?
\par -N\'e3o. \'c9 a amiga que divide o consult\'f3rio com Luciana. S\'e3o amigas desde a faculdade, mas Ma\'edsa n\'e3o \'e9 l\'e9sbica, se \'e9 o que quer saber. \'c9 casada com um advogado,
\par filho de um desembargador.
\par -Como uma mulher que n\'e3o \'e9 l\'e9sbica pode ser amiga de outra que \'e9?
\par -Amizade n\'e3o tem nada a ver com sexo.
\par -Acho dif\'edcil. Quem n\'e3o \'e9 l\'e9sbica n\'e3o aceita uma coisa dessas.
\par -N\'e3o julgue os outros por si mesma. S\'f3 porque \'e9 precon-ceituosa, n\'e3o quer dizer que todo mundo tenha que ser.
\par -Ou\'e7a, Marcela, n\'e3o tenho nada a ver com a vida dessa sua amiga Luciana. Se ela quer enveredar por esse caminho, o problema \'e9 dela. Mas o fato \'e9 que voc\'ea
\par me enganou. Fez-se passar por algu\'e9m que n\'e3o \'e9.
\par -Eu a enganei? Nunca menti para voc\'ea. Apenas guardei um segredo que s\'f3 a mim pertence e j\'e1 me arrependo de ter revelado.
\par De repente, as palavras de Marcela provocaram, em Ariane, uma reflex\'e3o sobre si mesma. Quem era ela para falar em enganar ou mentir? Marcela estava certa: ocultara-lhe
\par aqueles fatos porque sabia que ningu\'e9m compreenderia, mas eram coisas que s\'f3 a ela diziam respeito e n\'e3o faziam mal a ningu\'e9m. Mas, e quanto a ela? Ariane, sim,
\par mentia e se fazia passar por algu\'e9m que n\'e3o era, s\'f3 para descobrir segredos com que pudesse destruir a vida de Marcela. Ser\'e1 que aquilo era correto? Onde estava
\par a sua capacidade de discernir e avaliar o que era certo ou errado? E depois, fora ela mesma quem dissera a Marcela que podia confiar-lhe o seu segredo. Que amiga
\par era aquela, afinal, que oferecia confian\'e7a, mas o que dava mesmo era recrimina\'e7\'e3o? E quem era ela para julgar? Se havia algu\'e9m ali com uma conduta reprov\'e1vel, esse
\par algu\'e9m era ela, que se fingia de amiga quando, na verdade, n\'e3o passava de uma impostora.
\par Esses pensamentos envergonharam Ariane, que come\'e7ou a se sentir mal com tudo aquilo. De repente, percebeu que a verdade que Marcela lhe contara n\'e3o era assim t\'e3o
\par terr\'edvel. Teria sido muito pior se ela fosse viciada, prostituta ou ladra. Mas n\'e3o. Marcela era uma mo\'e7a direita e honesta, e ela n\'e3o tinha como p\'f4r em d\'favida a
\par sua amizade. Nunca fizera ou dissera nada que revelasse inten\'e7\'f5es escusas. Ao contr\'e1rio, procurou ajud\'e1-la em seu caso com o fict\'edcio Mike e deu-lhe s\'e1bios conselhos
\par referentes \'e0 problem\'e1tica da m\'e3e. Sempre se demonstrou muito apaixonada todas as vezes em que falava de Fl\'e1vio. Afinal, onde \'e9 que estaria a raz\'e3o?
\par Se Dolores soubesse daquilo, seria um desastre. A primeira coisa que faria seria contar a Fl\'e1vio, e Ariane n\'e3o sabia o que ele pensava sobre o assunto, porque nunca
\par antes haviam conversado a respeito. Naquele ponto, ela come\'e7ou a se sentir curiosa e perguntou com mais calma:
\par -Seu namorado sabe disso?
\par -N\'e3o.
\par Marcela estava magoada, o que era bastante compreens\'edvel.
\par -N\'e3o fique chateada comigo, Marcela - desculpou-se Ariane.
\par -O que voc\'ea queria? Contei-lhe o meu maior segredo, e voc\'ea veio logo com um monte de recrimina\'e7\'f5es. Acreditei que voc\'ea era minha amiga, confiei em voc\'ea,
\par mas voc\'ea n\'e3o p\'f4de me compreender. Estou decepcionada comigo mesma, porque pensei que voc\'ea fosse algo que realmente n\'e3o \'e9.
\par -Como assim? - tornou Ariane assustada.
\par -Pensei que voc\'ea fosse compreensiva, mas agora vejo que \'e9 igual a todo mundo: preconceituosa e cr\'edtica.
\par -Perdoe-me, Marcela, eu n\'e3o quis criticar voc\'ea nem nada. Mas \'e9 que voc\'ea me pegou de surpresa. Jamais poderia imaginar que voc\'ea fosse l\'e9sbica.
\par -Eu n\'e3o sou. Luciana diz que n\'e3o, porque estou apaixonada por Fl\'e1vio e pretendo me casar com ele. E, ainda que fosse, o que isso tem demais? Por acaso diminuiu
\par a amizade que sinto por voc\'ea, e voc\'ea sente por mim?
\par -N\'e3o sei... Acho que n\'e3o...
\par -Voc\'ea n\'e3o sabe de nada mesmo. Veja Ma\'edsa, por exemplo.
\par Voc\'ea n\'e3o a conhece, mas ela sempre foi muito amiga de Luciana. No come\'e7o, at\'e9 eu senti ci\'fames, mas depois percebi que o que havia entre as duas era amizade mesmo.
\par Ma\'edsa nunca se importou com a homossexualidade de Luciana nem se preocupou com o que os outros poderiam falar. \'c9 amiga porque \'e9, porque gosta de Luciana, porque
\par sente com o cora\'e7\'e3o. N\'e3o acha isso bonito?
\par -Se \'e9 como voc\'ea diz, \'e9 bonito, sim - ela se calou por uns instantes, fitando a outra e se permitindo sentir apenas com o cora\'e7\'e3o. - E quer saber? Voc\'ea tem
\par raz\'e3o. Acho que eu me deixei impressionar pelo preconceito da sociedade e me esqueci de dar mais valor ao sentimento. Amizade n\'e3o tem pre\'e7o. Preconceito \'e9 descart\'e1vel.
\par Gosto de voc\'ea assim mesmo, Marcela.
\par -Eu n\'e3o sou l\'e9sbica, Adriana. N\'e3o mais. Mas n\'e3o posso negar ou me envergonhar do que senti por Luciana nem do que ela representou em minha vida. S\'f3 tenho
\par medo \'e9 que Fl\'e1vio n\'e3o entenda isso.
\par -Foi por isso que n\'e3o lhe contou?
\par -Eu tentei, v\'e1rias vezes. Mas ele j\'e1 me deu a sua opini\'e3o a respeito, e n\'e3o \'e9 muito favor\'e1vel. Tenho medo de perd\'ea-lo.
\par Em vez de sentir-se vitoriosa com o segredo que, finalmente, conseguira arrancar de Marcela, Ariane descobriu-se preocupada com o futuro da amiga ao lado de Fl\'e1vio
\par e percebeu que n\'e3o desejava mais separ\'e1-los. Nem se incomodava com o fato de que Marcela fora apaixonada por outra mo\'e7a. S\'f3 o que lhe importava, naquele momento,
\par era a felicidade da amiga, a preocupa\'e7\'e3o que ela sentia por Luciana e o medo de perder Fl\'e1vio.
\par -Quer que eu v\'e1 com voc\'ea ao hospital visitar Luciana? - perguntou Ariane, sinceramente interessada em ajudar.
\par -Voc\'ea realmente faria isso? - ela assentiu. - Oh! Adriana, eu adoraria! Fl\'e1vio sabe que Luciana est\'e1 internada, mas desconhece a verdade, e eu tenho medo.
\par Se voc\'ea fosse comigo, eu me sentiria bem melhor.
\par -Ent\'e3o est\'e1 combinado. Vamos almo\'e7ar, e eu a acompanharei ao hospital.
\par Marcela se aproximou de Ariane e segurou a sua m\'e3o, falando emocionada:
\par -Sabia que voc\'ea era minha amiga. Entendo a sua primeira
\par rea\'e7\'e3o, mas sabia que voc\'ea tamb\'e9m acabaria me entendendo. Obrigada, Adriana.
\par O nome Adriana deu uma pontada no cora\'e7\'e3o de Ariane. Ela estava arrependida de haver iniciado aquele jogo e queria deixar tudo para tr\'e1s, mas sua mentira a levara
\par longe demais. Ariane mentira sobre seu nome, sobre o namorado fict\'edcio e, principalmente, sobre seu relacionamento com Fl\'e1vio e com Dolores. N\'e3o havia como convencer
\par Marcela de que tudo n\'e3o passara de um mal-entendido e, se ela descobrisse, terminaria a primeira e \'fanica amizade que conquistara em toda a sua vida. Pensando naquilo,
\par Ariane abaixou a cabe\'e7a e chorou. Ela tamb\'e9m tinha um segredo que n\'e3o queria que ningu\'e9m descobrisse.
\par No hospital, a visita transcorreu sem altera\'e7\'f5es. O estado de Luciana era est\'e1vel, e ela tinha boas chances de sair do coma. N\'e3o havia seq\'fcelas aparentes, e tudo
\par indicava que, se ela retornasse, se curaria e voltaria a ter uma vida normal. S\'f3 o que faltava era reagir.
\par Ariane n\'e3o p\'f4de entrar com Marcela, de forma que ela teve que
\par ir SOZinha. As enfermeiras se lembravam dela como a noiva do
\par doutor Fl\'e1vio Raposo Epion, conceituado ortopedista que tinha particular interesse na doente. Sozinha com Luciana, Marcela desprendeu a emo\'e7\'e3o do peito e deixou
\par que as l\'e1grimas se derramassem em abund\'e2ncia, extravasando os sentimentos que, na presen\'e7a de Fl\'e1vio, n\'e3o podia se permitir demonstrar. Em seu estado de coma, Luciana
\par via e ouvia tudo o que Marcela dizia, mas seu esp\'edrito, embora determinado a voltar ao corpo f\'edsico e reassumir a sua vida no plano material, n\'e3o se sentia forte
\par o bastante para recome\'e7ar em meio a uma torrente de l\'e1grimas.
\par Quando Marcela deixou o Centro de Tratamento Intensivo, tinha os olhos inchados e vermelhos, e Ariane, num primeiro momento, sentiu raiva daquela situa\'e7\'e3o. Estava
\par perdendo o noivo para uma mulher que chorava por causa de outra mulher. N\'e3o pela amizade, mas pelas lembran\'e7as de uma antiga paix\'e3o. Aquilo n\'e3o lhe parecia justo.
\par Por que Fl\'e1vio tinha que ser o primeiro homem por quem Marcela se interessara?
\par Por outro lado, apiedou-se de seu estado dolorido. Era \'f3bvio que Marcela vivia um dilema muito grande, um conflito com seus pr\'f3prios sentimentos. Ariane experimentava
\par sensa\'e7\'f5es contradit\'f3rias no que se referia a Marcela, dividindo-se entre a revolta pela perda do amado, naquelas circunst\'e2ncias, e a amizade que sentia por ela.
\par Queria reconquistar Fl\'e1vio, mas se afei\'e7oara a Marcela a tal ponto que sofria com a sua dor.
\par -Foi tudo bem? - perguntou Ariane, logo que Marcela saiu do CTI.
\par Marcela assentiu pausadamente e respondeu com tristeza:
\par -D\'e1 uma dor no cora\'e7\'e3o v\'ea-la naquele estado!
\par -Ela vai melhorar, tenho certeza.
\par J\'e1 dentro do carro, Marcela apertou a m\'e3o de Ariane e falou com emo\'e7\'e3o e sinceridade:
\par -Estou muito agradecida a voc\'ea, Adriana. Est\'e1 sendo minha amiga de verdade, a \'fanica que tive depois de Luciana. A amizade que sinto por voc\'ea n\'e3o tem pre\'e7o,
\par e pode ter certeza de que \'e9 sincera e desinteressada, assim como sei que a sua \'e9 por mim.
\par Uma pontada de remorso descompassou o cora\'e7\'e3o de Ariane, que apenas sorriu e virou a chave na igni\'e7\'e3o. Tinha medo de que Marcela descobrisse quem ela realmente era
\par e se sentia atormentada pela culpa de estar enganando e traindo a outra. Mas agora j\'e1 fora longe demais e n\'e3o podia voltar. Marcela n\'e3o a compreenderia e n\'e3o a perdoaria
\par jamais. O melhor que tinha a fazer era sumir. Desapareceria da vida de Marcela como uma nuvem de fuma\'e7a. Ela n\'e3o sabia o seu endere\'e7o ou o seu telefone, de forma
\par que n\'e3o a veria nunca mais. Sim, pensando bem, era o melhor. N\'e3o tinha for\'e7as para contar a verdade e n\'e3o podia mais prosseguir naquela farsa.
\par Dolores que a desculpasse, mas ela n\'e3o era mulher para aquilo. No come\'e7o, deixara-se levar pelo ci\'fame e a paix\'e3o, mas agora percebia que de nada valia prender um
\par homem que n\'e3o a amava. E depois, havia coisas mais importantes do que assegurar um bom casamento: a amizade era uma delas, e s\'f3 agora Ariane compreendia o seu verdadeiro
\par valor.
\par Na porta da casa de Marcela, Ariane parou o carro e, sem desligar o motor, abra\'e7ou a amiga e disse emocionada:
\par -Gosto muito de voc\'ea, Marcela. De verdade. Perdoe-me por ter parecido incompreensiva e chocada com o seu segredo, mas foi pura surpresa. Jamais pensaria
\par mal de voc\'ea ou deixaria de acreditar na sua amizade. E, se algum dia eu a magoar ou decepcionar, n\'e3o ter\'e1 sido por querer, mas porque sou uma mulher cheia de fraquezas
\par e imperfei\'e7\'f5es. Tente me compreender e pense em mim apenas como um ser humano.
\par -Por que est\'e1 dizendo isso? - estranhou Marcela.
\par -Queria que voc\'ea soubesse.
\par Ariane tornou a abra\'e7\'e1-la e procurou sorrir com naturalidade e, embora Marcela achasse muito estranha a sua atitude, n\'e3o fez nenhum coment\'e1rio. Talvez ela tamb\'e9m
\par estivesse sensibilizada com o ambiente do hospital, ou n\'e3o estivesse sendo sincera quanto \'e0 revela\'e7\'e3o de sua homossexualidade.
\par -Voc\'ea est\'e1 assim por causa do que lhe falei esta manh\'e3? - indagou Marcela, parada a meio caminho da sa\'edda.
\par -N\'e3o, em absoluto - respondeu Ariane, com tanta convic\'e7\'e3o, que a convenceu de imediato.
\par -Ent\'e3o, por qu\'ea?
\par -Coisas minhas, que nada t\'eam a ver com voc\'ea. N\'e3o se preocupe com o seu segredo; jamais o revelarei a ningu\'e9m.
\par -N\'e3o estou preocupada com isso. Preocupo-me com voc\'ea.
\par -N\'e3o se preocupe. N\'e3o \'e9 nada.
\par Ariane deu um beijo no rosto de Marcela e empurrou-a gentilmente para fora, tornando a ligar o carro. Marcela desceu com um estranho pressentimento e, quando o autom\'f3vel
\par se afastou alguns metros, novamente se lembrou de que n\'e3o possu\'eda ainda o telefone e o endere\'e7o de Adriana. Ela ainda chegou a cham\'e1-la de volta e agitar os bra\'e7os,
\par mas Ariane fingiu que n\'e3o a viu pelo espelho retrovisor. Continuou o seu curso, deixando Marcela com o
\par estranho pressentimento de que Adriana pretendia se afastar dela.
\par ***
\par Quando Ariane chegou a casa, encontrou a m\'e3e em frente ao espelho, arrumando-se para sair, o que a deixou um pouco mais aliviada, depois da comovente tarde que passara
\par com Marcela.
\par -Voc\'ea vai sair? - perguntou Ariane surpresa, observando a m\'e3e se arrumar.
\par -Pensei em ir ao cinema, ver Um Estranho no Ninho. Estava apenas esperando voc\'ea chegar para saber se n\'e3o quer ir comigo.
\par -Hum... Jack Nicholson? - ela assentiu. - Voc\'ea sabe que adoro Jack Nicholson.
\par -Por isso mesmo, pensei logo em voc\'ea. Dizem que o filme \'e9 maravilhoso.
\par -E o Huguinho?
\par -Foi dormir na casa de um amigo. Ent\'e3o? Vamos ou n\'e3o vamos?
\par Ariane considerou por alguns minutos. N\'e3o estava com muito
\par \'e2nimo para sair, mas n\'e3o podia perder a oportunidade de ver a m\'e3e se distrair.
\par -Est\'e1 certo - concordou por fim. - D\'ea-me apenas meia hora para tomar um banho e me aprontar.
\par -Vista uma roupa bonita. Depois, vamos jantar. Dessa vez, fiz reserva naquele restaurante elegante a que fomos da outra vez.
\par -Qual? Aquele em que encontramos o doutor Justino, e ele nos convidou para nos sentarmos com ele?
\par -Esse mesmo.
\par Ariane estranhou o fato de a m\'e3e fazer reservas em um restaurante, ainda mais em um restaurante chique feito aquele, mas n\'e3o disse nada. Era bom que ela quisesse
\par sair e se distrair, e n\'e3o seria ela a estragar a sua alegria e a sua noite. Na verdade, nem Anita sabia que escolhera aquele restaurante movida pelo desejo inconsciente
\par de reencontrar Justino.
\par Depois do filme, seguiram direto para o restaurante. Anita usava um conjunto de saia e blusa preto, que Ariane n\'e3o conhecia.
\par -Essa roupa \'e9 nova? - indagou, quando se sentaram \'e0 mesa.
\par Anita assentiu e respondeu com um sorriso, feliz porque a filha
\par havia, finalmente, reparado.
\par -Comprei hoje. Voc\'ea gostou?
\par -Voc\'ea est\'e1 querendo me dizer que saiu sozinha para fazer compras?
\par -O que \'e9 que tem? N\'e3o posso?
\par -\'c9 claro que pode! E deve. Ah! Mam\'e3e, fico muito feliz por voc\'ea estar reagindo a essa situa\'e7\'e3o.
\par -Obrigada. Mas voc\'ea ainda n\'e3o me disse se gostou ou n\'e3o.
\par -Gostei! Ficou muito bem em voc\'ea. Preto sempre emagrece.
\par Anita sorriu satisfeita e apanhou o card\'e1pio que o gar\'e7om lhe
\par estendia. Ambas estavam com os rostos enfiados no menu quando ouviram uma voz conhecida soando acima de suas cabe\'e7as:
\par -Acho que dessa vez fui eu que sobrei. Ser\'e1 que n\'e3o posso me juntar a voc\'eas?
\par As duas olharam ao mesmo tempo, e Anita distendeu as fei\'e7\'f5es num largo sorriso:
\par -Doutor Justino! Mas que surpresa!
\par -O restaurante est\'e1 cheio, como sempre, e eu n\'e3o consegui um lugar. Ia jantar com um cliente, mas ele desmarcou em cima da hora, e eu n\'e3o confirmei minha
\par reserva aqui, como sempre fa\'e7o, de forma que fiquei sem mesa. Ent\'e3o, posso me sentar com voc\'eas?
\par -\'c9 claro - respondeu Ariane, mudando a bolsa de lugar para que ele se sentasse.
\par -Ser\'e1 um prazer retribuir o favor que nos fez da outra vez - acrescentou Anita, mais alegre do que normalmente estaria.
\par Ele se sentou e fitou Anita discretamente, por\'e9m com interesse, fazendo-a corar por uns instantes. De seu lugar, Ariane percebeu o olhar de Justino e o rubor da
\par m\'e3e, e seu cora\'e7\'e3o bateu mais forte. Seria poss\'edvel que Justino estivesse interessado nela? Se estivesse, parecia \'f3bvio que a m\'e3e tamb\'e9m n\'e3o lhe era indiferente,
\par embora se esfor\'e7asse ao m\'e1ximo para n\'e3o demonstrar um interesse anormal.
\par Que \'f3tima id\'e9ia, pensou Ariane. Justino estava desquitado de Dolores, e a m\'e3e e o pai n\'e3o tinham mais chances de se reconciliar. Justino era um homem atraente e
\par simp\'e1tico, muito digno e correto, um verdadeiro cavalheiro. Bem o tipo de que Anita precisava. Ariane resolveu prestar mais aten\'e7\'e3o aos dois e tudo faria para incentivar
\par um envolvimento entre eles.
\par -Voc\'eas n\'e3o v\'eam sempre aqui, v\'eam? - perguntou Justino.
\par -N\'e3o - respondeu Anita. - Mas gostei muito do lugar e, desta vez, fiz reserva.
\par -Que sorte a minha! N\'e3o fosse por voc\'eas, eu n\'e3o conseguiria jantar esta noite.
\par -Voc\'ea s\'f3 janta fora? - indagou Ariane.
\par -Normalmente. Agora estou solteiro e n\'e3o tenho ningu\'e9m que me prepare um bom jantar.
\par Terminou as \'faltimas palavras fitando Anita diretamente nos olhos, o que lhe causou um estranho tremor e deu a Ariane a certeza de que ele estava interessado na m\'e3e.
\par -Voc\'ea precisa ir jantar l\'e1 em casa um dia desses - convidou Ariane.
\par -Eu bem que gostaria... Mas, infelizmente, n\'e3o posso.
\par -Por qu\'ea? - era Anita.
\par -N\'e3o me leve a mal, dona Anita, mas \'e9 que seu marido e eu j\'e1 nos desentendemos uma vez...
\par -Mam\'e3e e papai est\'e3o separados - cortou Ariane rapidamente, evitando o olhar de reprova\'e7\'e3o de Anita.
\par -Est\'e3o? Mas que pena! Sinto muito.
\par -N\'e3o sinta - objetou Anita, voltando-se para encar\'e1-lo. - Foi a melhor coisa que j\'e1 fiz por mim at\'e9 hoje.
\par -Se \'e9 assim, sinto-me mais \'e0 vontade para aceitar o seu convite, Ariane. Isto \'e9, se sua m\'e3e n\'e3o se incomodar.
\par -N\'e3o me incomodo - declarou ela, quase num sussurro.
\par -Acho uma \'f3tima id\'e9ia! - era Ariane. - Hum... vejamos... que tal amanh\'e3?
\par -Amanh\'e3? - indignou-se Anita.
\par -Por que n\'e3o? Amanh\'e3 \'e9 sexta-feira. Um \'f3timo dia para jantar em casa de amigos. O que voc\'ea acha, Justino?
\par -Por mim, est\'e1 tudo bem. A n\'e3o ser que dona Anita n\'e3o queira.
\par -Ela quer, n\'e3o \'e9, mam\'e3e? - Anita, confusa, n\'e3o respondeu, e Ariane insistiu: - N\'e3o \'e9, mam\'e3e?
\par -Sim... Amanh\'e3 est\'e1 bem.
\par -Ent\'e3o est\'e1 combinado - confirmou Justino. - Amanh\'e3 janto em sua casa.
\par -Ser\'e1 um prazer receb\'ea-lo, doutor Justino - declarou Anita, saindo de seu estado de torpor. - Se n\'e3o se importar com um jantar simples e caseiro.
\par -Faz tempo que n\'e3o provo comida caseira - contrap\'f4s ele, com simpatia. - E a senhora tem cara de quem cozinha muito bem.
\par -Por que voc\'eas n\'e3o param com a formalidade, hein?
\par - interrompeu Ariane. - Essa hist\'f3ria de dona para c\'e1, de doutor para l\'e1, \'e9 muito cafona.
\par -Acho uma excelente id\'e9ia - concordou Justino. - Ainda mais porque agora considero Anita minha amiga, e formalismos s\'e3o reservados apenas a estranhos. E
\par n\'f3s n\'e3o somos mais estranhos, somos?
\par Novamente aquele olhar penetrante, que fez com que Anita quase engasgasse. Ela sentiu o corpo gelar e teve vontade de sair correndo dali, agora que estava mais do
\par que claro que Justino a estava cortejando abertamente. Mas como poderia ser aquilo, se ela era uma mulher gorda e velha? Seria poss\'edvel que ele estivesse apenas
\par se divertindo com ela, fazendo-a crer que ele a cortejava quando, na verdade, s\'f3 o que queria era zombar de sua apar\'eancia?
\par Pensando nisso, Anita se retraiu um pouco e procurou se conter, embora a simpatia natural de Justino fizesse com que ela se desarmasse mesmo sem querer ou sentir.
\par A noite transcorreu agrad\'e1vel, at\'e9 que chegou a hora de se separarem, e Justino lamentou profundamente o fato de elas estarem de carro e n\'e3o precisarem que ele as
\par levasse em casa. De toda sorte, o jantar ficou acertado para a noite seguinte, \'e0s oito horas, e ele n\'e3o pretendia faltar.
\par No caminho para casa, Ariane ia falando com euforia:
\par -Ele est\'e1 interessado em voc\'ea, m\'e3e! Voc\'ea viu?
\par Ser\'e1? Acho que deve ser impress\'e3o. Um homem fino e elegante feito o doutor Justino deve ter muitas mulheres lindas \'e0 disposi\'e7\'e3o. N\'e3o se interessaria por uma gorducha
\par feito eu.
\par -Por que voc\'ea se diminui tanto assim? Ele est\'e1 interessado em voc\'ea, sim.
\par -N\'e3o \'e9 poss\'edvel. N\'e3o sou nenhuma beldade.
\par -E da\'ed? Justino \'e9 um homem de princ\'edpios e valores. E depois, voc\'ea n\'e3o est\'e1 t\'e3o gorda assim. Mesmo que estivesse, ele pareceu n\'e3o se importar. Bastava ver
\par os olhares que ele lhe deu. Pareceu-me bem interessado.
\par -Tem certeza de que ele olhou mesmo para mim com interesse? Ser\'e1 que n\'e3o est\'e1 zombando de mim? Ou ser\'e1 que n\'f3s n\'e3o estamos nos iludindo?
\par -Quanta besteira, mam\'e3e! J\'e1 disse que Justino \'e9 um homem de princ\'edpios. N\'e3o perderia o seu tempo flertando com uma mulher s\'f3 para zombar dela. E n\'f3s n\'e3o
\par estamos nos iludindo. Se ele n\'e3o tivesse interesse em voc\'ea, n\'e3o aceitaria o nosso convite para jantar.
\par -Voc\'ea ouviu o que ele disse: est\'e1 enjoado de comida de restaurante.
\par -Isso \'e9 desculpa. Ele pode muito bem pagar uma cozinheira. S\'f3 falou isso para justificar o fato de que estava louco para aceitar o convite. Louco para jantar
\par com voc\'ea.
\par Aquelas palavras sacudiram o seu cora\'e7\'e3o, e Anita corou novamente. Fazia muitos anos que nenhum homem demonstrava interesse por ela e parecia-lhe dif\'edcil convencer-se
\par de que um homem feito Justino, dentre tantas mulheres jovens e bonitas, fosse interessar-se justo por ela.
\par -Foi muita coincid\'eancia encontr\'e1-lo ali, n\'e3o foi?
\par -Nem tanta. Justino costuma freq\'fcentar aquele restaurante. A coincid\'eancia foi ele n\'e3o ter feito reserva justo no dia em que n\'f3s fizemos. E, c\'e1 entre n\'f3s,
\par foi uma feliz coincid\'eancia. Do contr\'e1rio, voc\'ea e ele n\'e3o teriam se aproximado.
\par Anita n\'e3o respondeu. Algo dentro dela retornara \'e0 vida, e ela via reacender, em si mesma, o fogo da paix\'e3o. N\'e3o uma paix\'e3o de adolescente, desvairada, louca, inconseq\'fcente.
\par Mas uma paix\'e3o madura e comedida, um fogo que n\'e3o chega a queimar, ilumina sem ofuscar, um sentimento de euforia controlada n\'e3o pela ditadura da raz\'e3o, mas pela
\par pr\'f3pria experi\'eancia de vida que faz assentar o \'edmpeto e despertar a pondera\'e7\'e3o.
\par No depoimento que deu \'e0 pol\'edcia, Ma\'edsa acabou falando sobre o telefonema que Luciana lhe dera e sobre as vozes altercadas que escutara em seguida, quando ela largou
\par o fone para atender a campainha. Diante disso, a pol\'edcia intimou Cec\'edlia para depor, mas ela negou tudo e, como Breno previra, nada p\'f4de ser comprovado. Vozes ao
\par telefone eram uma prova fr\'e1gil demais para uma acusa\'e7\'e3o formal.
\par A faca deixada na cena do crime ainda estava sob exame, e o resultado da identifica\'e7\'e3o pelas digitais levaria algum tempo para sair. Cec\'edlia compareceu ao consult\'f3rio
\par uma semana depois, dizendo-se chocada e impossibilitada de trabalhar, mas foi logo dispensada por Ma\'edsa, que sentia horror s\'f3 de olhar para ela.
\par -N\'e3o vai me pagar indeniza\'e7\'e3o? - perguntou Cec\'edlia, em tom de desafio, logo que Ma\'edsa a despediu.
\par -Voc\'ea \'e9 muito descarada mesmo, n\'e3o \'e9? Depois do que fez, ainda se atreve a voltar aqui e, pior, pedir indeniza\'e7\'e3o?
\par -\'c9 o meu direito.
\par -Pois ent\'e3o, v\'e1 busc\'e1-lo na Justi\'e7a. De mim, voc\'ea n\'e3o vai ter nem um tost\'e3o.
\par -\'c9 isso mesmo o que farei. Voc\'ea n\'e3o pode me despedir assim, com uma m\'e3o na frente e outra atr\'e1s.
\par -Devia ter pensado nisso antes de fazer o que fez.
\par -Eu n\'e3o fiz nada - objetou ela calmamente.
\par -A mim, voc\'ea n\'e3o engana. Sei muito bem que foi voc\'ea que esfaqueou Luciana e posso imaginar por qu\'ea. Ela ia me contar tudo minutos antes de voc\'ea aparecer.
\par -Eu n\'e3o apareci. Voc\'ea est\'e1 me acusando de algo que n\'e3o fiz. Posso process\'e1-la por isso, sabia?
\par -Pois fa\'e7a! Vou adorar ver a sua cara na Justi\'e7a quando ficar provado que voc\'ea \'e9 uma criminosa.
\par Coberta de \'f3dio, Cec\'edlia saiu batendo a porta do consult\'f3rio. Estava furiosa e bem podia matar Ma\'edsa tamb\'e9m. N\'e3o fosse a enrascada em que j\'e1 se metera, daria cabo
\par daquela megera. Ma\'edsa jamais gostara dela, e ela tamb\'e9m n\'e3o gostava de Ma\'edsa. Contudo, tinha que ter cautela. A pol\'edcia j\'e1 a interrogara e estava desconfiada, embora
\par n\'e3o pudesse provar nada.
\par -O que vamos fazer? - perguntou ela a Gilberto, minutos mais tarde.
\par -O melhor \'e9 fugir.
\par -N\'e3o posso fugir antes de apanhar o meu dinheiro. Ma\'edsa me deve e vai ter que pagar.
\par -N\'e3o seja tola, Cec\'edlia. Como pretende obrigar Ma\'edsa a lhe dar dinheiro?
\par -Posso ir \'e0 Justi\'e7a do Trabalho.
\par -Voc\'ea deve ter enlouquecido mesmo. Se estamos tentando fugir da Justi\'e7a, voc\'ea vai at\'e9 a Justi\'e7a para qu\'ea? Para se incriminar?
\par -Tenho os meus direitos.
\par -Que direitos? Raciocine, Cec\'edlia! Voc\'ea quase matou uma mulher e est\'e1 com a corda no pesco\'e7o. Se pensa que a pol\'edcia n\'e3o desconfia de voc\'ea, est\'e1 muito enganada.
\par -Ningu\'e9m nos viu.
\par -Luciana nos viu.
\par -Ela est\'e1 em coma e duvido que acorde.
\par -Pior para n\'f3s. Assassinato tem pena maior.
\par -Voc\'ea est\'e1 se apavorando \'e0 toa. Ningu\'e9m pode provar nada contra n\'f3s.
\par -Ah! n\'e3o? E a faca? Esqueceu-se de que voc\'ea a deixou l\'e1 quando fugimos? E se tirarem as suas impress\'f5es digitais?
\par Ela havia esquecido. Na pressa de fugir, Cec\'edlia deixara cair a faca no ch\'e3o da sala de Luciana e se esquecera dela
\par completamente. No depoimento que dera \'e0 pol\'edcia, n\'e3o mentira sobre seu envolvimento com Luciana, fingindo-se triste e chocada, o que justificaria a presen\'e7a de suas
\par impress\'f5es digitais no apartamento inteiro. Mas a faca, com o sangue de Luciana e contendo as suas digitais, era uma prova incontest\'e1vel.
\par -Temos que apanhar essa faca - anunciou ela, olhar febril. - \'c9 a \'fanica prova contra n\'f3s.
\par -Ficou louca? A faca est\'e1 nas m\'e3os da pol\'edcia.
\par -Precisamos fazer alguma coisa! - descontrolou-se. -Tinha me esquecido da droga da faca. Por que voc\'ea n\'e3o a apanhou? Por que a deixou l\'e1?
\par -N\'e3o venha me culpar agora. Voc\'ea n\'e3o devia ter feito aquilo.
\par -Ela vai nos incriminar. A faca vai nos incriminar!
\par -Nos incriminar? Vai incriminar voc\'ea. Foi voc\'ea quem a usou.
\par -Vai dar para tr\'e1s agora, vai? - revidou ela at\'f4nita. - Vai se acovardar e pular fora?
\par -N\'e3o se trata disso. Mas eu n\'e3o fiz nada. Dei uns socos na cara dela, mas n\'e3o a matei.
\par -N\'e3o a matou, mas a deixou bem machucada. E ainda a estuprou. Acha que isso tamb\'e9m n\'e3o \'e9 crime?
\par -Estupro n\'e3o \'e9 homic\'eddio, e os sopapos que lhe dei n\'e3o a mataram. Ningu\'e9m pode me acusar de algo que n\'e3o fiz.
\par -Eu posso! Voc\'ea foi meu c\'famplice. Direi que, depois de estupr\'e1-la, voc\'ea a segurou enquanto eu a esfaqueava. Todo mundo vai acreditar. Quem \'e9 que vai duvidar?
\par Um homem que estupra e esmurra uma mulher indefesa \'e9 capaz de qualquer coisa.
\par -Isso \'e9 uma loucura! - choramingou ele. - Por que fui me deixar envolver por uma doida feito voc\'ea?
\par -Agora eu sou doida, n\'e3o \'e9? Na hora que trans\'e1vamos, voc\'ea n\'e3o pensava isso. Quando trazia dinheiro para voc\'ea, minha loucura nunca o incomodou.
\par -\'c9 diferente. Voc\'ea n\'e3o tinha matado ningu\'e9m.
\par -E voc\'ea? J\'e1 havia estuprado algu\'e9m antes?
\par -Eu... perdi a cabe\'e7a. Tinha fumado um baseado...
\par -Mais um motivo para n\'e3o duvidarem de mim: viciado, estu-prador e assassino.
\par -Eu nunca matei ningu\'e9m.
\par -Voc\'ea foi comigo \'e0 casa de Luciana porque quis! - esbravejou ela.
\par -Voc\'ea n\'e3o pode fazer isso comigo. Eu estava doid\'e3o e n\'e3o sabia o que voc\'ea ia fazer. Voc\'ea me disse que n\'f3s s\'f3 \'edamos dar um susto nela. Eu nem sabia que voc\'ea
\par estava com uma faca!
\par -N\'e3o adianta se fazer de inocente agora. Ningu\'e9m vai acreditar nessa sua hist\'f3ria.
\par -Vamos fugir - cortou ele desesperado. - Antes que nos prendam, vamos desaparecer daqui.
\par -E o dinheiro...?
\par -Deixe o dinheiro para l\'e1! Vamos arrumar nossas trouxas e meter o p\'e9 na estrada. Antes que seja tarde!
\par Cec\'edlia estava t\'e3o desesperada quanto ele e come\'e7ava a ver sentido no que ele dizia. Tentar arrancar dinheiro de Ma\'edsa era uma inutilidade, e ela n\'e3o podia recorrer
\par \'e0 Justi\'e7a. O depoimento de Ma\'edsa a comprometera e, em breve, a pol\'edcia acabaria prendendo-a, seguindo a pista das impress\'f5es digitais na faca que usara no crime.
\par Que outra alternativa lhes restava? Estavam sem dinheiro, mas ela sempre podia se prostituir para arranjar algum. N\'e3o era isso mesmo que vinha fazendo com Luciana?
\par Algo que, de uma certa forma, at\'e9 lhe parecia normal?
\par -Est\'e1 bem - concordou ela afinal. - Vamos fugir hoje \'e0 noite. N\'e3o quero que meus pais desconfiem de nada.
\par -Precisamos ter cuidado. A pol\'edcia mandou que voc\'ea n\'e3o se ausentasse da cidade e, se nos pegar em fuga, ser\'e1 o seu fim.
\par -Ser\'e1 o nosso fim. Voc\'ea est\'e1 comigo nessa, n\'e3o se esque\'e7a.
\par A pol\'edcia nada sabia sobre Gilberto, porque, at\'e9 aquele
\par momento, Cec\'edlia n\'e3o havia ainda revelado o seu nome, e ele n\'e3o tocara em nada na casa de Luciana. Uma id\'e9ia assomou em sua mente, e ele come\'e7ou a raciocinar com
\par rapidez. A surra e o estupro deviam ser crimes s\'e9rios, mas n\'e3o t\'e3o s\'e9rios quanto um assassinato. A faca n\'e3o continha suas digitais, s\'f3 as de Cec\'edlia, e ningu\'e9m poderia
\par provar que ele a usou. Restava a alega\'e7\'e3o de Cec\'edlia de que ele segurara Luciana. Precisava desmentir isso. Talvez houvesse uma sa\'edda...
\par -Esteja pronta \'e0s dez horas - anunciou ele, tentando conter a excita\'e7\'e3o em sua voz. - Virei busc\'e1-la.
\par -N\'e3o se preocupe, estarei esperando.
\par Com um aceno de despedida, Gilberto se foi. Mais tarde,
\par \'e0 hora aprazada, Cec\'edlia o aguardava ansiosamente, a trouxa pronta, contendo as roupas e as pequeninas bugigangas que Luciana lhe dera. \'c0s dez e cinco, ela ouviu
\par um assobio embaixo de sua janela e a abriu com cuidado, para n\'e3o acordar as irm\'e3s que dormiam com ela.
\par -Por que demorou tanto? - sussurrou, enquanto empurrava a trouxa para ele e enfiava uma perna pelo peitoril.
\par -Vamos embora - resmungou ele em resposta, ajudando-a a saltar.
\par Assim que ela pulou para o lado de fora e ajeitou as roupas, uma luz branca e brilhante se derramou sobre seu rosto, tornando-a cega por uns instantes. Colocou
\par a m\'e3o na frente dos olhos, tentando ver o que estava acontecendo, at\'e9 que uma voz grave e autorit\'e1ria soou a seu lado:
\par -Vai a algum lugar, dona Cec\'edlia?
\par Ela se assustou e, num \'e1timo de segundo, compreendeu tudo. Gilberto a havia tra\'eddo e a entregara \'e0 pol\'edcia, avisando, inclusive de sua fuga, da fuga que ele mesmo
\par sugerira. Tentou correr, mas foi agarrada por bra\'e7os fortes que a seguraram e a conduziram para o cambur\'e3o parado do outro lado da rua, oculto pela escurid\'e3o.
\par -Voc\'eas n\'e3o podem fazer isso! - berrava ela. - Conhe\'e7o os meus direitos! N\'e3o podem me prender assim!
\par O homem que fizera a pergunta exibiu um papel sob os seus olhos e anunciou friamente:
\par -N\'e3o se preocupe. N\'f3s temos um mandado de pris\'e3o.
\par Ela come\'e7ou a chorar desesperada e se virou para Gilberto,
\par mas ele havia sumido, e os guardas a empurraram para dentro do cambur\'e3o e trancaram a porta, deixando-a aos gritos e dando socos na parede do carro.
\par Em outro carro, longe das vistas de Cec\'edlia, Gilberto tremia. Fizera a sua parte entregando-a \'e0s autoridades, mas n\'e3o podia simplesmente ficar parado vendo-a ser
\par levada \'e0 for\'e7a para a pris\'e3o. Ele gostava muito dela, mas n\'e3o era justo o que ela pretendia fazer com ele. Queria acus\'e1-lo de algo que ele n\'e3o fizera nem desejara.
\par Aquilo l\'e1 era amor?
\par Na delegacia, informaram-lhe sobre o que aconteceria. Se Luciana n\'e3o desse queixa do estupro, o que eles achavam que ela n\'e3o faria se acordasse, ele seria acusado
\par de invas\'e3o de domic\'edlio e les\'f5es corporais leves, mas n\'e3o de tentativa de homic\'eddio. E, o que era pior, se Luciana viesse a morrer, de homic\'eddio consumado e qualificado.
\par Ele n\'e3o entendia o que isso significava, mas devia ser algo bem ruim. Embora n\'e3o lhe agradasse passar uns anos na cadeia, convenceram-no de que era melhor do que
\par ser acusado de assassinato. Assim, contou toda a verdade, que pareceu bem veross\'edmil para a pol\'edcia, e Cec\'edlia foi presa, enquanto ele
\par aguardaria, em liberdade, o julgamento pelos seus crimes.
\par ***
\par A not\'edcia deixou Ma\'edsa entusiasmada. Ela n\'e3o se conformava de ver Cec\'edlia livre enquanto Luciana se consumia naquela cama de hospital. Ma\'edsa estava a seu lado naquela
\par tarde e, baixinho, contara sobre a pris\'e3o de Cec\'edlia. Depois, pediu que Luciana reagisse e, de olhos fechados, rezava, segurando a sua m\'e3o por cima do len\'e7ol. Luciana
\par abriu os olhos lentamente e ouviu, ainda sem compreender, as s\'faplicas de Ma\'edsa:
\par -Por favor, Deus, n\'e3o a deixe morrer. Ela \'e9 t\'e3o jovem, tem ainda tanto a viver...
\par -Tenho mesmo... - confirmou Luciana, a voz meio cavernosa como se acabasse de sair do t\'famulo. - O que estou fazendo aqui...?
\par -Luciana! - gritou Ma\'edsa, hesitando entre abra\'e7ar a amiga e correr para chamar a enfermeira.
\par -Estou com sede - prosseguiu ela, a voz ainda bastante fraca. - Pode me dar um copo de \'e1gua?
\par -Espere um instante... - falou ela apressada, enquanto sa\'eda pelo corredor em busca da enfermeira.
\par Poucos minutos depois, a enfermeira apareceu, seguida pelo m\'e9dico, que correu a examin\'e1-la. Ma\'edsa teve que aguardar do lado de fora, mas logo recebeu a not\'edcia de
\par que Luciana estava fora de perigo e estaria sendo transferida para o quarto ainda naquela tarde.
\par -Voc\'ea n\'e3o sabe o que tive que fazer por voc\'ea - anunciou
\par Ma\'edsa de bom humor, assim que p\'f4de v\'ea-la novamente. - At\'e9 o medo da pol\'edcia venci por sua causa.
\par -Jura? Ent\'e3o, minha interna\'e7\'e3o valeu para alguma coisa.
\par -N\'e3o tem gra\'e7a, Luciana. O m\'ednimo que voc\'ea deve fazer \'e9 ficar em minha casa quando sair e deixar que eu cuide de voc\'ea.
\par Luciana n\'e3o teve como contestar e ficou acertado que passaria uns dias na casa de Ma\'edsa, at\'e9 se recuperar totalmente. A not\'edcia da pris\'e3o de Cec\'edlia deixou-a entristecida,
\par porque ela jamais poderia esperar que algu\'e9m que ela julgava que a amasse fosse capaz de fazer uma coisa daquelas. Ela se lembrava vagamente do ocorrido. Lembrava-se
\par do aparecimento repentino de um rapaz atr\'e1s de Cec\'edlia, da discuss\'e3o que elas tiveram e das m\'e3os do homem a segurando. Em seguida, os socos em seu rosto, o gosto
\par de sangue e uma dor violenta nas entranhas, quando ele a violentou com brutalidade. J\'e1 meio desfalecida, ouviu a voz dele a dist\'e2ncia, pedindo a Cec\'edlia que fossem
\par embora. E, quando a consci\'eancia amea\'e7ava esvanecer-se por completo, experimentou uma dor aguda e cortante na proximidade do cora\'e7\'e3o, e a fraqueza a dominou inteiramente,
\par \'e0 medida que o sangue aflu\'eda numa torrente, fugindo sem controle de seu peito. Depois disso, a escurid\'e3o e o sil\'eancio a atiraram no vazio de si mesma.
\par ***
\par -Isso \'e9 maravilhoso! - dizia Fl\'e1vio ao telefone. - Vou j\'e1 para a\'ed.
\par Ele colocou o fone no gancho e se levantou para sair, parando com aborrecimento ao ver a m\'e3e barrando a sua passagem na porta do quarto.
\par -O que \'e9 maravilhoso? - perguntou Dolores curiosa.
\par -Nada. Uma amiga de Marcela que sofreu um atentado e saiu do coma.
\par -Um atentado? Como assim?
\par -Algu\'e9m tentou mat\'e1-la com facadas no peito. Deve ter sido um ex-namorado.
\par -Ex-namorado, \'e9? Estranha a capacidade que a sua noiva tem de se envolver com gente desse tipo.
\par -Gente de que tipo, mam\'e3e? - impacientou-se.
\par -N\'e3o precisa fingir para mim, Fl\'e1vio, porque sei de tudo.
\par -Sabe de tudo o qu\'ea?
\par -Sei que ela tentou se matar por causa de um ex-namorado.
\par -Quem foi que lhe contou isso?
\par -N\'e3o interessa. Sou uma pessoa influente e tenho amigos em toda parte.
\par -E da\'ed? O que voc\'ea tem com isso?
\par -Nada. Mas n\'e3o \'e9 estranho que, agora, a amiga quase tenha sido morta pelo ex-namorado?
\par -N\'e3o vejo nada de estranho nisso. S\'e3o coisas que acontecem.
\par -A fatalidade parece rondar a sua noivinha. Ser\'e1 que tudo tem que acontecer com ela? - Fl\'e1vio n\'e3o respondeu. - Como \'e9 mesmo o nome da amiga dela?
\par -Luciana. Por qu\'ea?
\par Ela gelou ao ouvir aquele nome, o mesmo que Ariane pronunciara da \'faltima vez que estivera ali. Era coincid\'eancia demais.
\par -Luciana de qu\'ea? - questionou ela, enquanto sua cabe\'e7a ia maquinando.
\par -N\'e3o sei e n\'e3o me interessa.
\par -Ser\'e1 que essa Luciana \'e9 uma pessoa direita?
\par -Como assim?
\par -N\'e3o estar\'e1 envolvida com drogas ou coisa assim? Talvez seja por isso que tenham tentado mat\'e1-la.
\par -Mam\'e3e, voc\'ea devia ser escritora. Tem uma imagina\'e7\'e3o muito f\'e9rtil. Luciana \'e9 uma mo\'e7a decente e morou com Marcela quando elas vieram de Campos.
\par Dolores fingiu surpresa:
\par -\'c9 mesmo?
\par -\'c9, sim. As duas se formaram, e Luciana hoje \'e9 dentista. Tem um consult\'f3rio particular, que divide com uma amiga.
\par -Onde \'e9 o consult\'f3rio dela?
\par -Acho que no M\'e9ier. Por qu\'ea? Est\'e1 precisando se tratar?
\par -N\'e3o seja tolo, Fl\'e1vio. Estou pensando em enviar-lhe umas flores.
\par -Ela est\'e1 no hospital. Envie para l\'e1.
\par -Muito bem. Em que hospital?
\par -Deixe de bobagens, mam\'e3e. Conhe\'e7o-a muito bem e sei que voc\'ea n\'e3o est\'e1 nem um pouco interessada em enviar flores a Luciana. Mas Marcela est\'e1 aflita para
\par v\'ea-la. Por favor, deixe-me passar. Minha noiva est\'e1 me esperando.
\par Com olhos brilhantes, Dolores saiu do caminho para que Fl\'e1vio passasse. Assim que escutou o ronco do motor de seu carro saindo da garagem, ela apanhou o telefone
\par e ligou para Ariane.
\par -Venha aqui imediatamente - ordenou ela com voz fria, batendo o telefone em seguida.
\par Ariane j\'e1 esperava uma liga\'e7\'e3o de Dolores e n\'e3o se surpreendeu
\par nem ficou contrariada com o seu telefonema e a sua ordem. Estava decidida a acabar com aquela farsa e, embora n\'e3o pudesse dizer isso a Dolores, agiria como se n\'e3o
\par tivesse descoberto nada. Mas n\'e3o precisava se apressar. Arrumou-se com calma e s\'f3 apareceu na casa de Dolores duas horas depois.
\par Dolores andava em c\'edrculos pela sala, fumando um cigarro atr\'e1s do outro, quando ela chegou.
\par -Por que demorou tanto? - questionou contrariada. - Estou esperando h\'e1 duas horas.
\par -S\'f3 agora pude vir. Tenho meus assuntos para resolver.
\par -Que assuntos? Deixe isso para l\'e1. Quero informa\'e7\'f5es sobre a tal de Luciana. Por que n\'e3o me contou que ela foi v\'edtima de uma tentativa de assassinato?
\par -Como foi que descobriu?
\par -Fl\'e1vio me contou. Por que n\'e3o me disse?
\par -Achei que n\'e3o era importante.
\par -N\'e3o era importante? Onde \'e9 que voc\'ea est\'e1 com a cabe\'e7a, Ariane? Essa mo\'e7a talvez seja a resposta aos nossos problemas.
\par -N\'e3o sei por qu\'ea. Tentaram matar a mo\'e7a, o que n\'e3o tem nada a ver com Marcela.
\par -Duvido muito. Algo me diz que essa mo\'e7a \'e9 a chave de tudo.
\par -Impress\'e3o sua. Voc\'ea est\'e1 se deixando levar pelo desespero e quer se agarrar a qualquer coisa.
\par -Deixe que eu mesma decida isso. E agora me diga: quem tentou mat\'e1-la?
\par -E eu \'e9 que sei? Pergunte \'e0 pol\'edcia. Ou a ela, quando acordar.
\par -Ela j\'e1 acordou. Fl\'e1vio est\'e1 indo para l\'e1 com Marcela.
\par -J\'e1? - Ariane demonstrou genu\'edna surpresa e alegria ao mesmo tempo.
\par -Voc\'ea parece satisfeita. Por qu\'ea?
\par -Quem n\'e3o ficaria satisfeita em saber que algu\'e9m, seja quem for, est\'e1 se recuperando e voltou \'e0 vida?
\par -N\'e3o fuja do assunto. Ela \'e9 importante para Marcela, n\'e3o \'e9? Muito importante.
\par -Isso, voc\'ea j\'e1 sabe.
\par -O que h\'e1 entre as duas?
\par -N\'e3o sei.
\par -Voc\'ea sabe, mas n\'e3o quer me contar.
\par -N\'e3o sei de nada, j\'e1 disse.
\par -Em que hospital ela est\'e1?
\par Ariane n\'e3o queria dizer, mas n\'e3o teve escolha. Dolores n\'e3o acreditaria se ela dissesse que n\'e3o sabia e a pressionaria at\'e9 conseguir.
\par -No S\'e3o Lucas - respondeu maquinalmente.
\par -Em que quarto?
\par -N\'e3o sei. Da \'faltima vez que soube algo, ela estava no CTI.
\par -Ela agora est\'e1 no quarto. Preciso descobrir qual \'e9. Voc\'ea vai ter que agir novamente.
\par -Para qu\'ea? O que voc\'ea pretende fazer? Interrogar Luciana?
\par -N\'e3o seja tola! Estou seguindo a minha intui\'e7\'e3o. Quero que voc\'ea v\'e1 at\'e9 l\'e1 e descubra algo.
\par -N\'e3o posso fazer isso.
\par -Por que n\'e3o?
\par -\'c9 perigoso. Posso me encontrar com Fl\'e1vio.
\par -Tem raz\'e3o. Havia me esquecido desse detalhe.
\par Ariane suspirou aliviada. Ao menos por enquanto estava livre
\par de ter que procurar Marcela novamente, o que n\'e3o estava mais disposta a fazer. N\'e3o podia dizer a Dolores que mudara de plano mas n\'e3o faria mais nada que ela pedisse.
\par Ficou imaginando o que ela diria se soubesse que Justino freq\'fcentava agora a sua casa e vivia em companhia de sua m\'e3e, levando-a ao cinema, restaurantes. Na certa,
\par ficaria
\par furiosa e a amea\'e7aria ainda mais.
\par -Deixe Luciana para l\'e1 - aconselhou Ariane. - Ela n\'e3o pode nos ajudar em nada. \'c9 apenas uma amiga de Marcela.
\par -Duvido muito. Sou uma pessoa muito intuitiva, e a intui\'e7\'e3o me diz que h\'e1 algo revelador entre essas duas, e estou disposta a descobrir o que \'e9.
\par Dolores n\'e3o sabia o qu\'e3o pr\'f3xima estava da verdade. A seu lado, esp\'edritos das sombras a acompanhavam diuturnamente interessados tamb\'e9m na infelicidade de Marcela.
\par Poderosos aliados de outras vidas, n\'e3o perdiam a oportunidade de
\par intu\'ed-la sobre os fatos da vida de Marcela, o que levava Dolores sempre ao caminho certo. Sem imaginar,
\par ela seguia as dicas de seus amigos das sombras e ia adivinhando tudo o que era importante para o deslinde daquele mist\'e9rio.
\par Naquele momento, a intui\'e7\'e3o lhe dizia que deveria abandonar o plano que tra\'e7ara com Ariane. A mo\'e7a j\'e1 fizera muito, e ela devia agora agir por conta pr\'f3pria.
\par -Pode deixar que eu resolvo tudo sozinha de agora em diante - falou para Ariane, seguindo os conselhos de seus amigos. - N\'e3o preciso mais de voc\'ea, por enquanto.
\par Foi uma surpresa que Dolores n\'e3o quisesse mais a interven\'e7\'e3o de Ariane. Ela pensava que teria que prosseguir naquele plano at\'e9 o final e n\'e3o entendia o que a havia
\par feito mudar de id\'e9ia. Contudo, era \'f3timo n\'e3o mais precisar fingir.
\par Depois que Ariane se foi, Dolores ficou pensando numa maneira de descobrir algo que ela nem sabia bem o que seria. Precisava obter informa\'e7\'f5es de Luciana, mas n\'e3o
\par podia ir ao hospital visit\'e1-la. Foi quando teve uma id\'e9ia que talvez pudesse surtir efeito. Arrumou-se toda e, em poucos instantes, seguia para a cl\'ednica decadente
\par de N\'e9lson.
\par Ao chegar, foi informada de que ele n\'e3o estava, e sentou-se em sua sala para esperar. O lugar estava precisando de uma pintura e havia poucos pacientes. Sem a sua
\par ajuda, em breve, a cl\'ednica estaria falida. N\'e9lson chegou meia hora mais tarde e foi tomado de imensa alegria ao v\'ea-la sentada em seu consult\'f3rio.
\par -Dolores, minha querida! - balbuciou ele, certo de que ela estava ali para reatar o seu caso. - Mal pude acreditar quando me disseram, na recep\'e7\'e3o, que voc\'ea
\par estava aqui.
\par -N\'e3o v\'e1 se animando - cortou ela, esquivando-se dele. - N\'e3o vim para o que voc\'ea pensa. Preciso de um favor.
\par -Um favor? Meu?
\par -Sim, seu. Voc\'ea \'e9 amigo do diretor do hospital S\'e3o Lucas, n\'e3o \'e9?
\par -Sou. Ou fui, n\'e3o sei bem.
\par -N\'e3o importa. Quero que voc\'ea ligue para ele e obtenha umas informa\'e7\'f5es para mim.
\par -Que tipo de informa\'e7\'f5es?
\par -A respeito de uma mo\'e7a. Seu nome \'e9 Luciana, n\'e3o sei o sobrenome. Ela deu entrada h\'e1 alguns dias, v\'edtima de uma facada no peito. Quero saber tudo sobre ela,
\par principalmente, o autor e o motivo do crime.
\par -Por que eu faria isso por voc\'ea? - retrucou ele de m\'e1 von tade, encarando-a agora com ar hostil.
\par -Porque este lugar est\'e1 um lixo, e eu posso limp\'e1-lo para voc\'ea. - Antes que ele respondesse, ela retirou o tal\'e3o de cheques da bolsa e preencheu um, exibindo-o
\par para N\'e9lson. - Isso \'e9 o suficiente para come\'e7ar a limpeza?
\par Ele apanhou o cheque e engoliu em seco. Era muito mais do que poderia esperar faturar em um m\'eas de servi\'e7o com a cl\'ednica dando lucros. Ele a fitou com rancor, mas
\par ela nem se incomodou. Estava com o fone na m\'e3o e o passou para ele, que o apanhou sem qualquer emo\'e7\'e3o.
\par -Ligue para o hospital S\'e3o Lucas - disse para a recepcionista. - Diga que \'e9 urgente.
\par Em poucos minutos, Dolores tinha em m\'e3os todas as informa\'e7\'f5es que N\'e9lson conseguira obter com o diretor do hospital. Ele teve que esperar pacientemente at\'e9 que o
\par diretor
\par entrasse em contato com o setor correspondente e se informasse sobre a mo\'e7a, o que levou cerca de meia hora.
\par Pelas informa\'e7\'f5es que obtivera, inclusive atrav\'e9s dos coment\'e1rios que as enfermeiras ouviam, a mo\'e7a fora ferida por uma
\par outra de nome Cec\'edlia, que se encontrava agora
\par na pris\'e3o. O motivo do crime, ele n\'e3o conhecia nem ningu\'e9m parecia comentar,
\par a pol\'edcia estivera poucas vezes no local, por causa do estado de Luciana, e fora aconselhada
\par a aguardar at\'e9 que ela tivesse alta para depor.
\par Mas o que Dolores conseguira j\'e1 era o suficiente. A criminosa fora presa e seria de grande utilidade, ainda mais se ela lhe acenasse com a possibilidade de uma ajuda
\par financeira para sua defesa. Iria procur\'e1-la pessoalmente, certa de que estava prestes a descobrir o grande segredo de Marcela, um segredo
\par que, esperava, aquela mo\'e7a pudesse lhe revelar.
\par ***
\par A ansiedade foi t\'e3o grande que Dolores n\'e3o esperou muito para fazer uma visita a Cec\'edlia na cadeia.
\par Sua presen\'e7a na delegacia causou estranheza, mas o delegado era esperto e prudent
\par e o nome Dolores C\'e2ndida Raposo era conhecido como o de uma das maiores socialites de ent\'e3o. O que uma dama distinta e elegante como aquela poderia querer com uma
\par criminosa de baixo n\'edvel feito Cec\'edlia, era algo que ele jamais poderia supor. Contudo, o pedido foi feito, e ele n\'e3o teve como negar a visita.
\par O delegado lhe arranjou uma sala reservada para que ela pudesse conversar a s\'f3s com Cec\'edlia, que chegou algemada, conduzida pelas m\'e3os indelicadas de um guarda.
\par Num primeiro momento, Cec\'edlia pensou que aquela mulher fosse a defensora designada para o seu caso e se largou sobre a cadeira de madeira que lhe foi indicada, fitando
\par Dolores com uma certa expectativa e ansiedade.
\par Logo que o guarda as deixou a s\'f3s, Dolores come\'e7ou a falar com ar de superioridade:
\par -Sabe quem eu sou?
\par -Minha defensora? - Dolores meneou a cabe\'e7a. - Ent\'e3o, nem imagino.
\par -Meu nome \'e9 Dolores C\'e2ndida Raposo. Esse nome diz algo a voc\'ea?
\par -N\'e3o. Deveria?
\par -Talvez. Mas isso n\'e3o vem ao caso no momento. Basta que voc\'ea saiba que eu sou uma pessoa muito importante e influente na sociedade.
\par Cec\'edlia pensou em perguntar: "e da\'ed?", mas teve medo de que ela fosse amiga ou parenta de Luciana e achou melhor n\'e3o dizer nada.
\par -Sabe por que vim? - prosseguiu Dolores.
\par -N\'e3o fa\'e7o a m\'ednima id\'e9ia - respondeu Cec\'edlia, agora com cautela.
\par -Voc\'ea deve ter tido um motivo muito s\'e9rio para tentar matar Luciana, n\'e3o teve?
\par -Quem foi que disse que fui eu que tentei mat\'e1-la?
\par -N\'e3o precisa fazer teatro comigo, menina. N\'e3o estou aqui para julg\'e1-la nem conden\'e1-la.
\par -O que a senhora tem com isso?
\par -Nada, particularmente. Estou apenas interessada em conhecer algo a respeito dessa mo\'e7a.
\par -Por qu\'ea?
\par Notando o medo no olhar de Cec\'edlia, Dolores aproximou mais o rosto do dela e tornou em tom baixo, por\'e9m, claro e aud\'edvel:
\par -Tenho dinheiro, menina. Dinheiro suficiente para pagar o melhor advogado do pa\'eds para fazer a sua defesa.
\par -E por que a senhora faria isso por mim? - retrucou Cec\'edlia, cada vez mais desconfiada.
\par -Porque eu preciso de um favor seu e posso lhe oferecer um meu. Por que n\'e3o fazermos a troca?
\par Durante alguns minutos, Cec\'edlia permaneceu estudando aquela senhora rica e elegante sentada \'e0 sua frente. N\'e3o sabia quem ela era nem por que estava ali, mas se ela
\par lhe oferecia dinheiro para pagar uma defesa brilhante, por que n\'e3o aceitar? Estava mesmo comprometida at\'e9 a alma, n\'e3o tinha nada a perder.
\par -Muito bem - falou ela, o olhar vivido de quem agora se sentia um pouco dona da situa\'e7\'e3o. - Farei como a senhora me pede. Mas em troca, quero um bom advogado
\par para fazer a minha defesa.
\par -N\'e3o se preocupe com isso. J\'e1 disse que posso pagar o melhor.
\par -Ent\'e3o, vamos l\'e1 - ela jogou o corpo para tr\'e1s e esticou as pernas sobre a mesa. - O que a senhora gostaria de saber?
\par -Em primeiro lugar, preciso saber por que voc\'ea tentou matar Luciana. N\'e3o tenha medo. O que disser ficar\'e1 apenas entre n\'f3s. N\'e3o sou espi\'e3 nem estou aqui a
\par servi\'e7o da pol\'edcia ou da Justi\'e7a.
\par Cec\'edlia venceu a desconfian\'e7a e contou tudo. Aparentemente, a tentativa de homic\'eddio de Luciana nada tinha a ver com Marcela, e n\'e3o havia ind\'edcios de uma liga\'e7\'e3o
\par entre as duas. Mas os amigos espirituais de Dolores, irradiando baixas vibra\'e7\'f5es, iam inspirando-a para que tomasse o rumo certo, e Dolores seguia as suas sugest\'f5es
\par sem nem titubear, atribuindo-as a sua pr\'f3pria intui\'e7\'e3o, sem saber que a intui\'e7\'e3o nada mais era do que o pensamento dos esp\'edritos que a acompanhavam.
\par N\'e3o apenas os bons esp\'edritos s\'e3o capazes de inspirar pensamentos ou id\'e9ias na mente dos encarnados. Os esp\'edritos das trevas tamb\'e9m podem intuir para o mal e, estando
\par o encarnado em afinidade com eles, seguir\'e1 os seus conselhos como o faria
\par uma pessoa mais avisada e vigilante, que tende a obedecer \'e0s sugest\'f5es de seus guias e mentores. Estabelecida a sintonia de prop\'f3sitos, os pensamentos se ligam como
\par em cadeias, formando elos poderosos que s\'f3 com a ora\'e7\'e3o poderiam se romper.
\par Mas Dolores n\'e3o sabia de nada disso e, ainda que soubesse, nada faria para alterar esse estado, pois o que lhe interessava era atingir o seu objetivo, fosse quem
\par fosse que a estivesse ajudando. E os esp\'edritos lhe diziam que seria atrav\'e9s de Cec\'edlia que ela descobriria o grande segredo de Marcela.
\par Agora um pouco intimidada pelo tom de voz de Dolores, al\'e9m de tamb\'e9m estar sujeita \'e0 influ\'eancia dos esp\'edritos ignorantes que as cercavam, Cec\'edlia desviou os olhos
\par do rosto da outra e contou com cuidado:
\par -Luciana me traiu.
\par -Como?
\par -Ela me traiu... Prometeu-me coisas e depois me deixou a ver navios.
\par -Que tipo de coisas? Vamos, menina, fale! Seja o que for, pode me contar. Estou velha demais para me chocar com as sujeiras do mundo.
\par Dolores esperava que Cec\'edlia lhe contasse algo sobre drogas e prostitui\'e7\'e3o e j\'e1 come\'e7ava a se impacientar.
\par -Bem... - prosseguiu Cec\'edlia, ainda com cautela - ela me prometeu dinheiro... mais ou menos.
\par -Por que? O que voc\'ea teria que fazer para ela?
\par -Olhe, dona, na verdade eu n\'e3o tinha que fazer nada. S\'f3 transar com ela.
\par -O qu\'ea?! Transar? Quer dizer, sexualmente? - ela assentiu. - Est\'e1 querendo me dizer que Luciana \'e9 l\'e9sbica?
\par -Isso mesmo.
\par -S\'f3 isso? - havia um tom de desapontamento na voz de Dolores que Cec\'edlia n\'e3o entendeu, e ela prosseguiu decepcionada: - Nem drogas, nem prostitui\'e7\'e3o?
\par Cec\'edlia n\'e3o sabia o que Dolores queria escutar. Se soubesse, teria inventado uma hist\'f3ria s\'f3 para agrad\'e1-la, mas como n\'e3o conhecia os seus prop\'f3sitos, achou melhor
\par dizer a verdade:
\par -N\'e3o sei a que a senhora est\'e1 se referindo, mas Luciana n\'e3o usa drogas e, que eu saiba, nunca se prostituiu.
\par -Sei... E o que sabe sobre uma mo\'e7a chamada Marcela?
\par -Marcela? Nada. S\'f3 sei que era amiga de Luciana.
\par -Amiga? Elas tamb\'e9m foram amantes?
\par -Foram. Luciana me contou que ela e Marcela foram apaixonadas. Fugiram de Campos e viveram oito anos juntas aqi no Rio. Depois, Luciana se cansou dela e
\par terminou tudo. Parece que a tal de Marcela tentou at\'e9 se matar por causa disso.
\par -Tentou se matar? - repetiu Dolores, come\'e7ando a vislumbrar o desfecho daquela hist\'f3ria, que come\'e7ava a lhe parecer interessante.
\par -Foi. A garota \'e9 uma tonta. Apaixonou-se pelo m\'e9dico que a salvou e vive com medo de que ele descubra a verdade.
\par Os olhos de Dolores brilharam intensamente, e ela concluiu com frieza:
\par -Obrigada, menina, voc\'ea me foi muito \'fatil. Aguarde uma visita de meu advogado.
\par -\'c9 s\'f3 isso?
\par -Voc\'ea j\'e1 disse o que eu queria saber. - Dolores se levantou abruptamente e chamou o guarda que esperava do lado de fora - Pode lev\'e1-la agora. Estou satisfeita.
\par O guarda n\'e3o esperou uma segunda ordem. Levantou Cec\'edlia pelo bra\'e7o e saiu conduzindo-a pelo corredor. Cec\'edlia queria perguntar por que a entrevista se encerrara
\par t\'e3o
\par repentinamente, mas nem teve tempo. Esperava ser crivada de perguntas por aquela mulher, mas ela fora sucinta em seus questionamentos e pareceu interessada apenas
\par no
\par relacionamento de Luciana e Marcela.
\par Para Dolores, tudo estava satisfatoriamente esclarecido. Particularmente, ela n\'e3o via na atitude de Marcela algo que por si s\'f3, levasse a um rompimento do noivado
\par com
\par Fl\'e1vio. E conhecia a opini\'e3o do filho a respeito de homossexualidade, sabia que ele n\'e3o a aprovava, mas n\'e3o estava certa sobre a rea\'e7\'e3o que ele teria ao saber que
\par Marcela
\par era ou fora l\'e9sbica. Ele estava apaixonado demais, e homens apaixonados tendia a fazer coisas est\'fapidas em nome do amor.
\par E se Fl\'e1vio j\'e1 conhecesse aquela hist\'f3ria? Se ela lhe contasse a verdade agora, talvez ele se aborrecesse e brigasse com ela acusando-a de querer fazer intrigas
\par para
\par destruir o seu noivado.
\par E se ele nada soubesse, ser\'e1 mesmo que se importaria? Talvez nem se incomodasse e at\'e9 ficasse feliz porque Marcela n\'e3o tivera outro homem antes dele. Mas tamb\'e9m
\par podia ser que ele se desgostasse da mo\'e7a e a condenasse pelo que fez. Como poderia ela saber? N\'e3o podia agir de forma direta com o filho. Tinha que estudar uma maneira
\par de afast\'e1-los usando aquela verdade, o que n\'e3o significava que, necessariamente, precisasse contar tudo a ele.
\par Cec\'edlia lhe dissera algo que parecia muito importante: Marcela tinha medo de que ele descobrisse a verdade. Se era assim, ele n\'e3o devia saber nada. O passado de
\par Marcela permanecia obscuro
\par e sigiloso, o que constitu\'eda uma arma em suas m\'e3os.
\par ***
\par Enquanto isso, Marcela e Fl\'e1vio deixavam juntos o hospital, onde haviam acabado de visitar Luciana. Apesar do temor de que o noivo descobrisse algo, Marcela fez
\par quest\'e3o de ir com ele, para n\'e3o o deixar cismado. Al\'e9m disso, o estado de Luciana ainda era delicado, e ela n\'e3o podia falar muito, o que evitaria que Fl\'e1vio fizesse
\par perguntas comprometedoras.
\par Quando chegaram ao apartamento de Marcela, Fl\'e1vio comentou:
\par -Voc\'ea sabia que foi uma mo\'e7a que a esfaqueou?
\par -Uma mo\'e7a? Como assim? Como \'e9 que voc\'ea sabe?
\par Marcela j\'e1 sabia, por Ma\'edsa, que Cec\'edlia era a poss\'edvel autora
\par daquele crime horrendo, mas ela ainda n\'e3o estivera com Ma\'edsa para saber que Cec\'edlia estava presa, e Luciana n\'e3o tocou no assunto.
\par -Era o coment\'e1rio entre as enfermeiras - prosseguiu ele. - Dizem que a mo\'e7a a esfaqueou por ci\'fame.
\par -Ser\'e1?
\par -\'c9 o que dizem. E n\'e3o foi por ci\'fame de namorado, n\'e3o! Parece que as duas tinham um caso.
\par Marcela ouvia as palavras de Fl\'e1vio cheia de horror, e um suor gelado come\'e7ou a brotar de sua testa.
\par -Isso \'e9 fofoca - rebateu ela, esfor\'e7ando-se para que a voz n\'e3o sa\'edsse t\'e3o tr\'eamula quanto seu cora\'e7\'e3o. - Essas enfermeiras n\'e3o sabem de nada. Pegam um coment\'e1rio
\par aqui, outro ali, e criam uma hist\'f3ria sensacionalista.
\par -N\'e3o sei, n\'e3o. N\'e3o creio que todas juntas fossem inventar a mesma hist\'f3ria. Dizem que foi o pr\'f3prio detetive da pol\'edcia quem contou, meio em tom de chacota,
\par que a outra j\'e1 est\'e1 at\'e9 presa.
\par O sangue fugiu do rosto de Marcela, que sentiu os l\'e1bios gelarem e o cora\'e7\'e3o petrificar, ao mesmo tempo em que tentava ainda reverter aquela situa\'e7\'e3o:
\par -Luciana n\'e3o \'e9 assim.
\par -N\'e3o era, voc\'ea quer dizer. Ou talvez fosse, e voc\'ea nunca tivesse percebido. Ela nunca tentou nada com voc\'ea? - Marcela meneou a cabe\'e7a. - Nunca lhe deu uma
\par cantada?
\par -N\'e3o...
\par -N\'e3o \'e9 poss\'edvel que voc\'ea n\'e3o tenha percebido nada em oito anos de conviv\'eancia com ela.
\par -Luciana n\'e3o \'e9 assim, j\'e1 disse!
\par -N\'e3o entendo essas meninas - continuou ele, sem dar aten\'e7\'e3o \'e0s palavras de Marcela. - Tanto homem dando sopa por a\'ed, e elas v\'e3o escolher logo outra mulher
\par para transar.
\par -Por que voc\'ea \'e9 t\'e3o preconceituoso? - rebateu Marcela, j\'e1 no limite de suas for\'e7as.
\par -N\'e3o sou preconceituoso. Se Luciana e a tal querem ter um caso, o problema \'e9 delas. Eu s\'f3 n\'e3o consigo entender... - ele parou de falar e retrucou desconfiado:
\par - Voc\'ea nunca teve nada com ela, teve?
\par -E se tivesse tido? Terminaria comigo?
\par -N\'e3o, porque sei que voc\'ea n\'e3o teve. Voc\'ea n\'e3o \'e9 desse tipo.
\par -Responda-me uma coisa, Fl\'e1vio: o que voc\'ea sente ao ver duas mulheres transando?
\par -Nojo.
\par -Tem certeza? N\'e3o fica excitado tamb\'e9m?
\par -N\'e3o...
\par -N\'e3o \'e9 o que parece. Quando vamos ao motel, voc\'ea bem que se anima vendo aquelas fitas de mulheres transando.
\par -\'c9 diferente. Aquilo \'e9 filme, s\'e3o mulheres desconhecidas, n\'e3o \'e9 com voc\'ea.
\par -Isso \'e9 hipocrisia.
\par -Est\'e1 tentando me dizer alguma coisa, Marcela? - rebateu ele, j\'e1 agora bastante desconfiado e se afastando dela uns cent\'edmetros.
\par Por uma fra\'e7\'e3o de segundos, ela se viu contando toda a verdade, sem se importar com o que ele diria ou qual seria a sua rea\'e7\'e3o. Mas o olhar de expectativa e paix\'e3o
\par que ele lhe lan\'e7ava deu um choque na sua determina\'e7\'e3o, e ela voltou os olhos para dentro de si e examinou o seu cora\'e7\'e3o. Como se sentiria se Fl\'e1vio a deixasse por
\par causa de seu passado com Luciana? Certamente, ela n\'e3o suportaria e, por mais que dissesse a si mesma que o suic\'eddio era um erro, sabia que seria a \'fanica coisa que
\par poderia fazer por si mesma. Era covarde e n\'e3o tinha coragem de enfrentar a vida e seus dissabores.
\par -N\'e3o estou tentando lhe dizer nada - respondeu ela vagarosamente. - S\'f3 me incomoda o fato de voc\'ea ser preconceituoso, porque eu n\'e3o sou.
\par Disse essas \'faltimas palavras com cautela e olhou para ele, que sustentou o olhar e revidou:
\par -Voc\'ea pode n\'e3o ser preconceituosa, mas at\'e9 que ponto vai essa sua liberalidade? Ser\'e1 que voc\'ea e Luciana j\'e1 chegaram a ter algum caso?
\par Era agora ou nunca. A \'faltima chance que poderia esperar de contar toda a verdade e acabar com aquela agonia. Marcela chegou a articular o monoss\'edlabo, mas a coragem
\par lhe escapou na hora. O medo de perd\'ea-lo ainda era muito grande, e ela calou a voz da verdade e mentiu mais uma vez:
\par -\'c9 claro que n\'e3o. Quando mor\'e1vamos juntas, Luciana nunca demonstrou nenhuma tend\'eancia homossexual.
\par Mentir lhe fazia grande mal. Na verdade, aquela era a primeira vez que precisava elaborar uma mentira. At\'e9 ent\'e3o, o que vinha fazendo era silenciar quanto \'e0s afirma\'e7\'f5es
\par de Fl\'e1vio, levando-o a crer que suas desconfian\'e7as sobre um poss\'edvel ex-namorado eram corretas.
\par -Posso lhe fazer uma pergunta que, at\'e9 ent\'e3o, jamais quis formular? - questionou ele, olhando-a com ar entre severo e s\'faplice.
\par -Pode. O que \'e9?
\par -Por que voc\'ea tentou se matar?
\par Ela sentiu como se uma corrente el\'e9trica descarregasse inteira sobre o seu cora\'e7\'e3o, que quase se tornou aud\'edvel, tamanha a intensidade com que se descompassava.
\par -Voc\'ea sabe...
\par -Na verdade, n\'e3o sei. Apenas fiz suposi\'e7\'f5es sobre o que parecia ser. Mas agora gostaria de ouvir de voc\'ea. O que,
\par realmente, aconteceu?
\par -Eu... n\'e3o gosto de falar sobre isso... E voc\'ea prometeu que nunca perguntaria... que n\'e3o se importava com o meu passado.
\par -Isso foi antes... - ele ia tocar no nome de Luciana, mas desistiu. - Mas agora preciso saber. N\'e3o quero que a mulher com quem vou me casar esconda nada
\par de
\par mim. Precisamos de cumplicidade at\'e9 nos nossos segredos mais \'edntimos.
\par Mais uma vez, a oportunidade de revelar a verdade se fazia; mas ela n\'e3o tinha coragem e se atirou de cabe\'e7a no po\'e7o da mais profunda mentira:
\par -Eu tinha um namorado, e ele me deixou. Quando fugi de Campos, estava sozinha com Luciana, \'e9ramos duas meninas e eu conheci esse rapaz num bar. N\'f3s nos apaixonamos,
\par e eu me entreguei a ele. Depois de oito anos, ele simplesmente me abandonou. Pensei que o mundo tivesse desabado sobre mim e quis morrer.
\par -E Luciana? Quando foi que saiu daqui? Foi antes ou depois disso tudo acontecer? Foi por causa desse rapaz que ela se mudou? Voc\'eas brigaram porque ele a
\par trocou
\par por ela?
\par A press\'e3o estava por demais forte e, nesse ponto, Marcela nem conseguiu mais se conter, desabando num pranto angustiado e pontilhado de solu\'e7os aflitos, demonstrando
\par o seu estado de patente desespero.
\par -Por que est\'e1 fazendo isso comigo? - lamentou ela. - Eu n\'e3o fiz nada... Por que est\'e1 me tratando como se eu tivesse feito alguma coisa errada? Eu o amo,
\par Fl\'e1vio,
\par ser\'e1 que n\'e3o v\'ea? O que importa o meu passado? N\'e3o percebe o quanto est\'e1 me fazendo sofrer com essa sua desconfian\'e7a?
\par As s\'faplicas o comoveram, e ele correu para ela, os olhos \'famidos de arrependimento. Estreitou-a com for\'e7a e beijou-a diversas vezes na boca, nos olhos, nas faces.
\par Ela chorava e solu\'e7ava, nem conseguia mais falar. Seu desespero era t\'e3o vis\'edvel que ele come\'e7ou a se desesperar tamb\'e9m e praticamente implorou:
\par -Pelo amor de Deus, Marcela, perdoe-me! Como sou est\'fapido!
\par Eu a amo e sei que voc\'ea me ama. Por que estamos discutindo bobagens quando o que importa \'e9 o nosso amor?
\par -Ah! Fl\'e1vio...! - solu\'e7ava ela.
\par -N\'e3o diga mais nada. N\'e3o quero que voc\'ea diga mais nada. Eu acredito em voc\'ea, sei que voc\'ea me ama e n\'e3o seria capaz de fazer nada de errado. Vamos deixar
\par isso tudo para l\'e1 e viver a nossa vida.
\par Ela redobrou o choro porque ele ainda n\'e3o havia compreendido a verdade, e ela fracassara na coragem de ser sincera. Agora sabia que n\'e3o poderia lhe contar. Embrenhara-se
\par na mentira e n\'e3o sabia como desatar tantos n\'f3s. Por isso, encostou o rosto em seu peito e continuou a chorar, at\'e9 que as l\'e1grimas se cansaram e pararam de cair.
\par Ao deixar Marcela em casa, Fl\'e1vio seguiu dirigindo em sil\'eancio, refletindo sobre tudo o que acontecera naquele dia: a visita a Luciana, os coment\'e1rios das enfermeiras
\par e a discuss\'e3o com a noiva. Ele n\'e3o sabia o que pensar. Algo dentro dele lhe dizia que a verdade estava no que n\'e3o fora dito, nas palavras distorcidas e nos pensamentos
\par adulterados. Mas o que dizer do que sentia? Onde estaria a verdade a respeito de seus sentimentos?
\par Fl\'e1vio n\'e3o duvidava de seu amor por Marcela, mas estava preso \'e0 id\'e9ia do modelo de mulher perfeita que a sociedade lhe impingira desde a mais tenra inf\'e2ncia. E agora
\par n\'e3o sabia o que fazer. Por mais que Marcela negasse o seu envolvimento com Luciana, uma voz dentro dele dizia que ela estava mentindo, mas ainda assim, era melhor
\par n\'e3o saber. Por outro lado, por que ela mentiria? Seria medo da sua rea\'e7\'e3o ou vergonha de si mesma? Aquele era um assunto espinhoso, e ele preferia n\'e3o ter que discuti-lo
\par com Marcela. N\'e3o lhe agradava imagin\'e1-la trocando com outra mulher as mesmas car\'edcias a que se entregavam, chegando mesmo a sentir uma certa repulsa. Preferiu n\'e3o
\par pensar mais no assunto e centrou os pensamentos no futuro. Marcela e ele se casariam, teriam muitos filhos, e ele n\'e3o precisaria mais se preocupar com aquela hist\'f3ria.
\par Quando chegou a casa, Dolores ainda estava acordada e o viu passar a caminho do quarto. Pensou em cham\'e1-lo, mas
\par conseguiu se conter. Suas palavras tinham destinat\'e1rio certo, e n\'e3o era o filho.
\par No dia seguinte, Dolores acordou mais cedo do que o habitual e saiu sem dizer nada a ningu\'e9m. N\'e3o pediu motorista e foi, ela mesma, dirigindo at\'e9 a casa de Marcela.
\par Queria encontr\'e1-la antes que sa\'edsse para o trabalho.
\par N\'e3o eram nem sete horas quando ela tocou a campainha do apartamento de Marcela, que abriu a porta j\'e1 arrumada para trabalhar.
\par -Dona Dolores! - surpreendeu-se ela. - O que faz aqui t\'e3o cedo?
\par -Tenho urg\'eancia em lhe falar - respondeu ela, passando para o lado de dentro e fechando a porta com cuidado.
\par -N\'e3o pode ser outra hora? Estou de sa\'edda para o trabalho.
\par -Tem que ser agora.
\par -Mas vou me atrasar...
\par -Ligue e diga que est\'e1 doente. Depois de ouvir o que tenho a lhe dizer, voc\'ea n\'e3o vai conseguir trabalhar.
\par Mesmo sem saber do que se tratava, Marcela sentiu medo. Jamais vira aquele olhar de v\'edbora amea\'e7\'e1-la de forma t\'e3o exuberantemente feroz. Apanhou o telefone e ligou
\par para a escola, dizendo que estava doente e precisaria faltar. Em seguida, desligou e foi sentar-se junto de Dolores.
\par -O que foi que aconteceu? - come\'e7ou ela, quase em s\'faplica.
\par -N\'e3o vou fazer rodeios com voc\'ea, Marcela. Diga-me apenas o quanto quer para deixar meu filho em paz.
\par -O qu\'ea!? - retrucou ela, mal acreditando no que ouvia. - A senhora enlouqueceu? Amo Fl\'e1vio, e n\'f3s vamos nos casar.
\par -S\'f3 se eu morrer antes. Voc\'ea n\'e3o se casa com ele nem que eu tenha que mover c\'e9us e terra para impedir.
\par -Por que est\'e1 dizendo isso, dona Dolores? A senhora pode n\'e3o gostar de mim, mas pensei que j\'e1 havia me aceitado.
\par -Como voc\'ea \'e9 est\'fapida, menina! Ent\'e3o acha que eu me conformaria em ver o meu filho, meu \'fanico filho, se casando com uma mulherzinha apagada, vulgar e sem
\par classe feito voc\'ea? E, ainda mais, l\'e9sbica?
\par Os olhos de Marcela se esbugalharam, e ela pensou que fosse desmaiar.
\par -O que a senhora est\'e1 dizendo?
\par -N\'e3o se fa\'e7a de inocente comigo, garota. Sei muito bem que voc\'ea e uma tal de Luciana dormiram juntas por oito anos. Foram caso uma da outra, l\'e9sbicas, sim!
\par -Quem lhe contou isso?
\par -N\'e3o importa. O fato \'e9 que eu sei, e n\'e3o adianta nem voc\'ea tentar mentir. - Marcela abaixou a cabe\'e7a, derrotada, e come\'e7ou a chorar de mansinho. - Isso, chore
\par mesmo, sua oportunista-zinha barata. Seu plano de escalada social est\'e1 desmascarado, e voc\'ea pode parar de fingir para o meu filho e voltar para a sua amante l\'e9sbica
\par quando ela sair daquele hospital.
\par -Isso n\'e3o \'e9 verdade, dona Dolores. N\'e3o sou interesseira nem oportunista. Vou me casar com seu filho porque o amo de verdade.
\par -Como o ama, se voc\'ea gosta \'e9 de transar com mulheres? Ou ser\'e1 que pretende enganar meu filho, depois do casamento, com sua amante de saias?
\par -Isso \'e9 uma afronta! - ela se levantou indignada. - Sou uma mulher decente, assim como Luciana tamb\'e9m \'e9. A senhora n\'e3o tem o direito de vir a minha casa
\par e nos insultar.
\par -N\'e3o precisa fazer cena comigo, Marcela, porque n\'e3o vai funcionar. Sei muito bem quem voc\'ea \'e9 e o que pretende, e estou aqui para impedir que voc\'ea arruine
\par a vida do meu filho. Pela \'faltima vez, quanto voc\'ea quer para deix\'e1-lo em paz e sumir da sua vida?
\par -A senhora n\'e3o pode fazer isso. N\'e3o pode me obrigar a aceitar.
\par -Posso, sim. Ou ser\'e1 que prefere que eu conte a verdade a meu filho? Ele ainda n\'e3o sabe da sua estranha prefer\'eancia, sabe? - ela n\'e3o respondeu. - Duvido
\par muito. Voc\'ea n\'e3o \'e9 mulher o suficiente para lhe dizer a verdade. Mas eu sou. E n\'e3o hesitarei em lhe contar tudo o que sei.
\par -O que a senhora ganha fazendo isso? Fl\'e1vio pode muito bem me aceitar como sou.
\par -Duvido muito. Conhe\'e7o a educa\'e7\'e3o que dei a meu filho, e nela n\'e3o se inclui o trato com gente da ral\'e9.
\par -A senhora n\'e3o faria isso. Vai fazer Fl\'e1vio sofrer.
\par -Aposto como ele sofreria muito menos se voc\'ea simplesmente
\par desaparecesse. Voc\'ea lhe pouparia o desgosto de saber que a noiva que ele tanto pensa que ama nada mais \'e9 do que uma l\'e9sbica safada e interesseira.
\par -Que prazer a senhora sente em me humilhar, dona Dolores? Que mal eu fiz \'e0 senhora?
\par -Voc\'ea faz mal \'e0 pr\'f3pria vida. Sua exist\'eancia corrompe a sociedade e macula as pessoas de bem.
\par -Isso n\'e3o \'e9 verdade - solu\'e7ou ela. - Eu amo Fl\'e1vio, e nem a senhora, nem ningu\'e9m pode negar meu sentimento.
\par -N\'e3o estou aqui para discutir o seu amor. E estou sendo generosa com voc\'ea, porque podia simplesmente contar tudo a meu filho, e ele a abandonaria de qualquer
\par jeito. Mas n\'e3o. N\'e3o quero que voc\'ea fique na pior. Sei que voc\'ea \'e9 pobre e trabalha duro naquele col\'e9gio para ter o que comer. Por isso quero lhe dar uma ajuda. Voc\'ea
\par pode melhorar de vida, nem vai precisar casar-se com Fl\'e1vio ou com qualquer outro homem. Pode simplesmente pegar o dinheiro e ir buscar a sua amante para viver com
\par ela confortavelmente em qualquer outro lugar. Por que n\'e3o voltam para Campos?
\par -A senhora est\'e1 sendo cruel. N\'e3o sabe nada a meu respeito, n\'e3o conhece os meus sentimentos. Por que me julga dessa maneira?
\par -Conhe\'e7o gente feito voc\'ea. Ca\'e7adoras de dote, h\'e1 muitas por a\'ed. Voc\'ea n\'e3o ser\'e1 a primeira nem a \'faltima. Mas o meu filho n\'e3o vai ser v\'edtima de nenhum golpe
\par barato para lev\'e1-lo ao altar. N\'e3o enquanto eu ainda estiver viva.
\par Havia tanta ang\'fastia no olhar de Marcela que Dolores, ao inv\'e9s de se condoer, sentiu-se vitoriosa e capaz. Ela, sozinha, podia manipular toda a vida de uma pessoa,
\par o que lhe dava uma sensa\'e7\'e3o de poder indescrit\'edvel, como se ela fosse a senhora do destino de Marcela.
\par -Vou lhe dar um tempo para pensar - prosseguiu Dolores. - At\'e9 amanh\'e3 de manh\'e3. Depois disso, conto tudo a Fl\'e1vio, e voc\'ea pode esquecer o noivado e o dinheiro.
\par Pense bem.
\par N\'e3o havia mais o que fazer ali, e Dolores se levantou elegantemente para sair. Depois que ela se foi, Marcela ficou alguns minutos parada, olhando para a porta que
\par acabara de fechar. Aquilo devia ser algum pesadelo. Ainda na v\'e9spera estivera
\par conversando com Fl\'e1vio, e tudo parecia ter-se acertado. Ele n\'e3o fizera mais perguntas, e os dois haviam se amado com intensi dade e paix\'e3o. Como podia ser que agora
\par Dolores aparecia em sua casa para lhe fazer aquele tipo de amea\'e7a? E quem poderia ter-lhe contado tudo? Teria sido a pr\'f3pria Luciana?
\par N\'e3o. Luciana prometera que jamais contaria. Ma\'edsa tamb\'e9n n\'e3o. Fl\'e1vio n\'e3o tinha certeza de nada. S\'f3 sobrava Adriana, mas a nova amiga n\'e3o conhecia Fl\'e1vio nem a m\'e3e
\par dele. Ah! Que falta fazia Adriana. Marcela n\'e3o tinha o seu telefone, mas era com ela que gostaria de conversar. Luciana estava no hospital, e ela n\'e3o podia levar-lhe
\par problemas. Ma\'edsa, apesar de amiga, n\'e3o era \'edntima e ela n\'e3o costumava fazer-lhe confid\'eancias. Com Fl\'e1vio, n\'e3o podia nem pensar em falar. Quem sobrara ent\'e3o para
\par conversar?
\par Ningu\'e9m. Marcela n\'e3o tinha amigos nem ningu\'e9m com quem pudesse abrir o seu cora\'e7\'e3o. De repente, sentiu-se t\'e3o sozinha, t\'e3o infeliz! Come\'e7ou a chorar descontrolada
\par e atirou-se na cama fitando o retrato de Fl\'e1vio em cima da mesinha. Seus olhos percorreram o quarto, pousando sobre o exemplar de Morte e Vida Severina, e algo significativo
\par assomou em sua mente: n\'e3o seria melhor pular da ponte e da vida?
\par Marcela n\'e3o queria morrer porque amava Fl\'e1vio e sabia que ele a amava. Mas n\'e3o poderia suportar separar-se dele.
\par Tamb\'e9m n\'e3o ag\'fcentaria se ele descobrisse a verdade
\par atrav\'e9s de Dolores. O ju\'edzo que ele faria dela seria pior do que a morte, e Marcela n\'e3o conseguiria enfrentar seu olhar de decep\'e7\'e3o. Se era assim, se era para decepcion\'e1-lo,
\par para faz\'ea-lo infeliz e estragar a imagem que ele constru\'edra sobre o seu amor, o melhor mesmo era morrer.
\par Atordoada e vencida, Marcela se levantou da cama e foi procurar rem\'e9dios para dormir, mas, desde o dia em que Fl\'e1vio entrara em sua casa pela primeira vez, retirara
\par todos os comprimidos do arm\'e1rio e a proibira de comprar outros. No arm\'e1rio do
\par banheiro havia um aparelho de barbear com o qual se depilava, e ela retirou a gilete.
\par Experimentou a l\'e2mina no dedo, e um filete de sangue aflorou, t\'eanue e quase impercept\'edvel.
\par Voltou para a cama com a gilete e se deitou, apanhando o retrato de Fl\'e1vio e agarrando-se a ele. Igualzinho ao que fizera com o de Luciana, pensou. A \'fanica diferen\'e7a
\par era que sujaria o
\par retrato de sangue. Ser\'e1 que valia mesmo a pena fazer aquilo? Ser\'e1 que n\'e3o preferia viver? Ficou pensando na rea\'e7\'e3o das pessoas quando soubessem, na cara de quem
\par descobrisse o seu corpo. Dessa vez, n\'e3o haveria Ma\'edsa para impedir a consuma\'e7\'e3o de seu ato extremo.
\par Faltava ainda uma coisa: Marcela n\'e3o podia partir sem deixar uma mensagem a Fl\'e1vio. Ele precisava saber, ao menos, do seu amor. N\'e3o pretendia lhe contar sobre aquela
\par mentira s\'f3rdida, mas n\'e3o podia deix\'e1-lo pensando que ela se fora porque n\'e3o o amava. Ao contr\'e1rio, partia por excesso de amor a ele, para n\'e3o ter que faz\'ea-lo sofrer.
\par Apanhou a caneta em sua escrivaninha e arrancou uma folha de caderno, escrevendo com uma caligrafia bonita e caprichada, a t\'edpica letra de professor:
\par Meu querido Fl\'e1vio,
\par Parto desta vida por minha covardia, por falta de amor a mim mesma e medo de ser o que sou. O que sou agora n\'e3o importa. Basta que voc\'ea saiba que sou uma mulher
\par cheia de erros e defeitos, mas que talvez tenha, como \'fanica virtude, o verdadeiro amor que sente por voc\'ea.
\par N\'e3o chore a minha morte nem se sinta culpado por eu ter desistido de viver, e lembre-se de mim como aquela que mais o amou na vida, porque o meu amor por voc\'ea n\'e3o
\par tem limites nem raz\'e3o.
\par Amo voc\'ea.
\par Amo voc\'ea.
\par E s\'f3 voc\'ea.
\par Marcela
\par Terminou de escrever o bilhete e o colocou em cima da cama, no travesseiro ao lado do seu. Queria que estivesse vis\'edvel para quem o encontrasse. Em seguida, apertou
\par a gilete contra o pulso, fechou os olhos e chorou.
\par ***
\par Assim que chegou a casa, a primeira coisa que Dolores fez foi telefonar para Ariane.
\par -Venha at\'e9 aqui imediatamente - ordenou e bateu o telefone; sem esperar resposta.
\par Do outro lado da linha, Ariane fitava o fone mudo, coberta de indigna\'e7\'e3o. Dolores n\'e3o podia mandar nela daquela maneira. J\'e1 estava passando dos limites. Afinal,
\par ela n\'e3o era sua criada nem secret\'e1ria particular, e ela n\'e3o tinha o direito de dispor de seu tempo como se este lhe pertencesse. Contudo, mesmo contrariada, achou
\par melhor atender o chamado de Dolores, pois, pelo tom de sua voz, alguma coisa muito importante deveria ter acontecido.
\par Ariane estava se preparando para ir \'e0 manicura, mas mudou de id\'e9ia e rumou direto para a casa de Dolores. Encontrou-a recostada numa espregui\'e7adeira, \'e0 beira da
\par piscina, fumando tranq\'fcilamente ao sol frio da manh\'e3 invernal.
\par -Bom dia, Dolores - cumprimentou ela, sem muito interesse.
\par -Por que me chamou t\'e3o cedo?
\par -Voc\'ea sabe o que fiz hoje? - retrucou Dolores, em tom de irritante vit\'f3ria.
\par -N\'e3o. O qu\'ea?
\par -Salvei a honra de meu filho, a sua felicidade e a minha realiza\'e7\'e3o.
\par -Como \'e9 que \'e9?
\par -Resumindo: dei um jeito de fazer aquela Marcela sumir.
\par -Voc\'ea o qu\'ea?
\par -Acabei com ela, Ariane. Voc\'ea tinha que ver a cara dela quando eu a desmascarei.
\par -Como assim, voc\'ea a desmascarou?
\par -Sente-se aqui, e eu lhe conto tudo. Voc\'ea n\'e3o vai acreditar. Fiz, em um dia, bem mais do que voc\'ea em v\'e1rios meses. Sabe o que descobri? - Ariane meneou a
\par cabe\'e7a. - Que a sua amiguinha Marcela \'e9 l\'e9sbica e vivia com a tal de Luciana. Voc\'ea sabia?
\par -Ariane n\'e3o respondeu, e Dolores continuou falando, sem lhe prestar muita aten\'e7\'e3o. - Isso n\'e3o importa. O importante \'e9 que eu acabei com aquele ar de anjo
\par que ela pendurou na cara s\'f3 para impressionar o meu filho. Podemos nos considerar vitoriosas. Marcela est\'e1 fora da jogada, e Fl\'e1vio vai se voltar para voc\'ea. Trate
\par de estar bem-disposta para lhe oferecer conforto e carinho.
\par -O que voc\'ea fez? - tornou Ariane at\'f4nita. - Como foi que descobriu essa... particularidade de Marcela?
\par -Eu sou esperta, meu bem. Peguei as suas informa\'e7\'f5es e rapidinho consegui desvendar a hist\'f3ria toda. Descobri por que e por quem Luciana foi esfaqueada e
\par o paradeiro da quase assassina. Ela est\'e1 presa, e eu fui visit\'e1-la na cadeia. \'c9 uma pobretona, mau car\'e1ter e interesseira, e n\'e3o foi dif\'edcil arrancar-lhe a verdade.
\par -Que verdade?
\par -A que lhe contei, ora! Que Marcela \'e9 l\'e9sbica e vivia com Luciana. A mo\'e7a, que se chama Cec\'edlia, me contou tudo...
\par Enquanto Dolores falava, o cora\'e7\'e3o de Ariane ia se tornando pequenininho de dor e arrependimento, pois sabia que fora ela quem come\'e7ara aquela hist\'f3ria toda. Se
\par n\'e3o tivesse se aproximado de Marcela, Dolores jamais descobriria sobre Luciana e, muito menos, sobre a tal de Cec\'edlia. E agora, Dolores fizera alguma coisa para
\par terminar com o namoro de Marcela e Fl\'e1vio, e ela era a \'fanica culpada. N\'e3o queria aquela culpa, n\'e3o podia conviver com a lembran\'e7a de que conquistara a felicidade
\par passando por cima da felicidade de mais algu\'e9m.
\par Dolores n\'e3o parava de falar, sentindo um prazer m\'f3rbido ao narrar para Ariane a conversa que tivera com Marcela e ver a rea\'e7\'e3o da mo\'e7a ao se descobrir desmascarada.
\par Havia at\'e9 uma certa euforia ao descrever o ar de assombro, de frustra\'e7\'e3o, de medo e de desespero de Marcela quando ela desferiu o golpe fatal, procurando for\'e7\'e1-la
\par a aceitar dinheiro e sumir, antes que ela contasse ao filho a verdade sobre o seu passado sujo.
\par No fundo, sabia que estava atingindo Ariane tamb\'e9m. Fingia falar descontroladamente, mas n\'e3o havia nada que Dolores fizesse que n\'e3o fosse estudado e planejado. Contava
\par o que acontecera entre ela e Marcela com ar de superioridade e vit\'f3ria, deixando claro, nas entrelinhas, que esmagara Marcela como poderia esmagar qualquer uma que
\par atravessasse o seu caminho.
\par Para Ariane, o efeito era diferente. A cada palavra de Dolores, ela se lembrava da hist\'f3ria que a m\'e3e lhe contara sobre o seu casamento, sobre ter dado dinheiro
\par \'e0 mo\'e7a por quem o pai fora apaixonado para que a m\'e3e pudesse se casar com ele. E no que foi que deu? Anita vivera uma vida infeliz, e o pai tamb\'e9m nunca sentira
\par o que era a verdadeira felicidade, porque se casara com uma mulher a quem n\'e3o amava apenas para se compensar da perda.
\par Ser\'e1 que era essa vida que queria para ela tamb\'e9m?
\par Decididamente, Ariane queria ser feliz ao lado do homem por quem se apaixonasse. Mas era essencial que esse homem a amasse tamb\'e9m. Tinha o exemplo da m\'e3e e do pai
\par e sabia como podia ser infeliz e destrutiva uma conviv\'eancia sem amor, principalmente naquelas circunst\'e2ncias. N\'e3o, n\'e3o queria isso para si mesma nem para Fl\'e1vio.
\par Nem para Marcela. Eles eram pessoas que mereciam a chance de, ao menos, errar por si mesmas, sem que algu\'e9m mais tivesse que determinar os seus erros. Era direito
\par deles tentar o que achassem melhor, viver as suas pr\'f3prias experi\'eancias, sofrer ou ser felizes com as escolhas que fizessem livremente. Dolores n\'e3o tinha o direito
\par de fazer isso por eles.
\par Antes que Dolores terminasse a sua narrativa s\'f3rdida e mordaz, Ariane se levantou e virou-lhe as costas, caminhando para a rua a passos apressados.
\par -Aonde voc\'ea vai? - ela ainda ouviu Dolores gritar. - Volte, Ariane, ainda n\'e3o acabei de contar...
\par Ariane n\'e3o ouvia mais nada. Sua pressa a levou at\'e9 o carro e fez surdos os seus ouvidos. Entrou rapidamente e ligou o motor, cantando pneus rumo \'e0 casa de Marcela.
\par Tocou a campainha v\'e1rias vezes, mas ningu\'e9m respondeu. Tentou a ma\'e7aneta, que estava trancada, e p\'f4s-se a dar murros na porta, mas ningu\'e9m atendia. Come\'e7ou a se
\par apavorar. Algo em seu \'edntimo lhe dizia que alguma coisa muito errada estava acontecendo.
\par -Marcela! Marcela! - gritava em desespero, virando a ma\'e7aneta v\'e1rias vezes. - Voc\'ea est\'e1 a\'ed? Pelo amor de Deus, Marcela!
\par Como Marcela n\'e3o respondesse, Ariane correu at\'e9 um orelh\'e3o pr\'f3ximo e ligou para o n\'famero particular da mesa de Fl\'e1vio, no consult\'f3rio. Era a \'fanica coisa que lhe
\par ocorria naquele momento, e ele era a \'fanica pessoa que ela conhecia e que conhecia Marcela tamb\'e9m.
\par -Al\'f4! Fl\'e1vio? \'c9 Ariane! - ele ia dizer qualquer coisa, mas ela n\'e3o lhe deu tempo. - Venha \'e0 casa de Marcela agora! \'c9 urgente!
\par Desligou e voltou correndo para o apartamento de Marcela, deixando Fl\'e1vio sem nada entender do outro lado da linha. O que Ariane estaria fazendo em casa de Marcela?
\par E desde quando as duas se conheciam? Sua voz, muito grave e aflita, o deixou preocupado. Por mais que n\'e3o entendesse por que Ariane havia
\par lhe telefonado para cham\'e1-lo \'e0 casa da noiva, n\'e3o podia simplesmente ignorar.
\par Fl\'e1vio deu um sorriso sem gra\'e7a para o paciente que aguardava atendimento e ligou para a casa de Ariane. Quem atendeu foi a m\'e3e, e ele pediu para falar com a mo\'e7a,
\par mas Anita o informou de que ela havia sa\'eddo para ir \'e0 manicura e n\'e3o havia retornado. Ainda assustado, tentou a sua casa, e a empregada lhe disse que Ariane l\'e1 estivera,
\par mas que havia sa\'eddo apressada fazia quase uma hora.
\par Ele consultou o rel\'f3gio e constatou que o hor\'e1rio conferia com o tempo que Ariane levaria para ir da sua casa \'e0 casa de Marcela, o que o deixou ainda mais preocupado.
\par \'c0quela hora, Marcela deveria estar na escola, dando aulas, de forma que ele n\'e3o esperava encontr\'e1-la em casa. Ainda assim, ligou para l\'e1. O telefone tocou insistentemente
\par por v\'e1rias vezes, mas ningu\'e9m atendeu, e ele deduziu que Marcela deveria estar trabalhando.
\par N\'e3o havia com o que se preocupar. Ariane, com certeza, fora \'e0 sua casa e conversara com sua m\'e3e, retomando aquelas id\'e9ias absurdas de namoro e casamento. Talvez
\par a m\'e3e tivesse lhe dito algo que a desagradara, e Ariane, de prop\'f3sito, resolvera se vingar, deixando-o preocupado e angustiado por causa de Marcela, cujo endere\'e7o
\par ela nem conhecia.
\par Ainda assim, uma opress\'e3o se espalhou pelo seu peito, e Fl\'e1vio foi tomado por um indiz\'edvel medo de perder Marcela. Ele olhou para o paciente, sentado \'e0 sua frente
\par com ar de interroga\'e7\'e3o, apertou o interfone e chamou a secret\'e1ria, dando-lhe ordens para transferi-lo, imediatamente, ao consult\'f3rio do pai.
\par - Sinto muito, seu Od\'e9cio, mas recebi um chamado urgente. Tenho que sair.
\par O cliente fez uma express\'e3o de pasmo e ia contestar, mas Fl\'e1vio j\'e1 havia atirado longe o jaleco e disparado porta afora. Em seus pensamentos, mil coisas se atropelavam
\par e, por mais que ele tentasse encontrar alguma explica\'e7\'e3o que o fizesse compreender por que Ariane estaria em casa de Marcela, n\'e3o conseguia pensar em nada que fosse,
\par ao menos, razo\'e1vel. Mesmo assim, seguiu avante,
\par procurando n\'e3o se deixar levar pela surpresa e as indaga\'e7\'f5es.
\par ***
\par Enquanto isso, Ariane chegava ao patamar onde ficava a porta do apartamento de Marcela e estranhou que ela agora estivesse apenas encostada. Pela pequenina fresta
\par que se abria, ela aprumou um olho e espiou para dentro. O apartamento estava
\par escuro com todas as cortinas cerradas, e parecia deserto. Ariane sentiu medo e quase desistiu
\par de entrar. Podia haver algu\'e9m escondido ali, esperando para surpreend\'ea-la e atac\'e1-la, o que lhe causou calafrios. Podia at\'e9 mesmo ser que Cec\'edlia tivesse sido solta
\par e houvesse ido \'e0 casa de Marcela para ultimar sua vingan\'e7a con Luciana. Quem poderia saber?
\par Talvez fosse melhor esperar que Fl\'e1vio chegasse. Ela j\'e1 havia telefonado para ele e tinha certeza de que ele n\'e3o hesitaria em atender o seu chamado. N\'e3o depois que
\par ela
\par dissera que se tratava de Marcela e era urgente. Mas, se esperasse,
\par quando Fl\'e1vio chegasse, bem podia ser tarde demais. E se a porta estivesse aberta porque o malfeitor,
\par ouvindo o som da campainha houvesse resolvido ir embora? Podia ser que Marcela
\par estivesse ferida e precisando de ajuda, e cabia a ela ajudar.
\par N\'e3o pensou em mais nada. Decidida a descobrir o que havia sido feito a Marcela, Ariane empurrou a porta e entrou na escurid\'e3o da sala. Olhou ao redor e n\'e3o encontrou
\par Marcela
\par em lugar nenhum. Queria cham\'e1-la, mas a voz entalou na garganta, presa pelo medo de ser descoberta. Sem produzir qualquer ru\'eddo, Ariane dirigiu-se ao quarto e escancarou
\par a
\par porta.
\par O quarto tamb\'e9m estava vazio e parecia intocado, a n\'e3o ser por uma pequena mancha de sangue derramada sobre a colcha branca que cobria a cama de Marcela. A vis\'e3o
\par do sangue
\par sobre o branco do tecido causou um choque em Ariane, que levou as m\'e3os aos l\'e1bios e abafou um grito de agonia e pavor, virando bruscamente para a porta de sa\'edda.
\par N\'e3o chegou
\par nem a dar um passo e se chocou de frente com a pr\'f3pria Marcela, que
\par vinha do banheiro com olhos vermelhos e um dos pulsos enfaixado.
\par -Adriana! - exclamou ela, debulhando-se em l\'e1grimas e atirando-se ao pesco\'e7o da outra.
\par -Marcela... - balbuciou Ariane, tentando entender o que havia passado. - O que foi que houve? Voc\'ea se machucou? Ariane se havia desvencilhado de Marcela
\par e segurava
\par seu pulso
\par ferido com uma das m\'e3os, o sangue ainda a tingir a bandagem malfeita. - O que foi isso? Voc\'ea se cortou?
\par -N\'e3o foi nada - esclareceu Marcela, puxando o bra\'e7o \'e0s pressas e se atirando na cama logo em seguida. - Oh! Adriana, voc\'ea n\'e3o sabe o que aconteceu! Dona
\par Dolores... Foi horr\'edvel!
\par Ela desatou a chorar convulsivamente, e Ariane aproximou-se dela, sentando-se na cama ao seu lado. S\'f3 ent\'e3o percebeu a gilete perto de onde o sangue se derramara
\par e apanhou-a com cuidado.
\par -O que isso est\'e1 fazendo aqui? - perguntou desconfiada, exibindo a l\'e2mina para a outra. - N\'e3o v\'e1 me dizer que voc\'ea...
\par -calou-se, temendo as pr\'f3prias palavras.
\par -Oh! Adriana! - choramingou Marcela novamente.
\par -Voc\'ea ficou louca, Marcela? - revidou Ariane, entre zangada e aflita. - Ia tentar se matar novamente?
\par -De que adianta viver? - disparou a outra, redobrando o pranto. - Dona Dolores descobriu tudo! Sobre mim, Luciana e at\'e9 sobre Cec\'edlia! Como p\'f4de isso ter
\par acontecido? Quem foi que teve a coragem de lhe contar s\'f3 para me fazer infeliz?
\par Ariane sabia quem havia contado, mas n\'e3o podia dizer. Estava feliz porque nada de mau havia acontecido a Marcela, e maldisse a si mesma por haver-se precipitado
\par e ligado para Fl\'e1vio. Ele j\'e1 devia estar chegando, e ela precisava arranjar uma boa desculpa para ir embora no meio daquela como\'e7\'e3o.
\par -N\'e3o devia ter feito isso, Marcela. Voc\'ea ainda tem o Fl\'e1vio.
\par -N\'e3o tenho mais! Ele vai descobrir e vai me desprezar.
\par -N\'e3o acha que o est\'e1 julgando mal? J\'e1 n\'e3o \'e9 hora de acabar com essa agonia e lhe contar toda a verdade? Voc\'ea j\'e1 foi longe demais com essa mentira, e veja
\par s\'f3 no que deu. Fl\'e1vio precisa saber...
\par Antes que Marcela pudesse dizer alguma coisa, Fl\'e1vio chegou ao quarto e estava parado no umbral da porta, fitando aquela cena sem nada entender.
\par -Saber o qu\'ea? - falou ele, assustando as mo\'e7as. - E Ariane, o que est\'e1 fazendo aqui?
\par -Voc\'eas se conhecem? - retrucou Marcela, surpresa com essa constata\'e7\'e3o.
\par -\'c9 claro que conhe\'e7o Ariane! - continuou ele, indignado.
\par -Conhe\'e7o-a desde pequeno.
\par -Como pode ser isso? Adriana, isso \'e9 verdade?
\par Na confus\'e3o, Marcela n\'e3o percebera a troca de nomes, mas Fl\'e1vio, sim. Num \'e1timo, compreendeu tudo: Adriana, a amiga misteriosa que ele nunca via e n\'e3o deixava telefone
\par nem endere\'e7o. Nome muito parecido ao seu verdadeiro.
\par -Isso, por acaso, foi id\'e9ia da minha m\'e3e? - perguntou ele, cheio de raiva, e sem notar o sangue no pulso e na cama de Marcela.
\par -Foi - confirmou Ariane, a voz sumida de medo e vergonha.
\par -Isso o qu\'ea? - intercedeu Marcela. - Que id\'e9ia? Ser\'e1 que voc\'eas podem me explicar o que est\'e1 acontecendo? N\'e3o estou entendendo nada.
\par -Conte a ela, Ariane. Explique para que ela possa compreender que grande amiga voc\'ea \'e9.
\par -O nome dela \'e9 Adriana - corrigiu Marcela, s\'f3 agora se dando conta de que ele a chamava de outro jeito.
\par -N\'e3o \'e9 n\'e3o, Marcela! O nome dela \'e9 Ariane mesmo. Ela \'e9 filha do ex-s\'f3cio de meu pai e amiga \'edntima de minha m\'e3e. - Ele apontou o dedo para a outra e disparou
\par em tom acusador: - Fazia parte do plano de voc\'eas fazer-se passar por amiga de Marcela para destruir o nosso noivado? \'c9 isso, Ariane?
\par Marcela olhava de Ariane para Fl\'e1vio t\'e3o surpresa com o que ele dizia que at\'e9 se esquecera de seu pr\'f3prio sofrimento. De repente, foi como se uma nuvem sa\'edsse da
\par frente de seus olhos, e ela p\'f4de enxergar e compreender a realidade daquela situa\'e7\'e3o.
\par -Voc\'ea est\'e1 querendo me dizer, Fl\'e1vio, que Adriana adotou um nome falso e se fez passar por minha amiga s\'f3 para destruir o meu namoro com voc\'ea? - Ele assentiu.
\par - Por qu\'ea?
\par -Porque ela quer se casar comigo, e \'e9 o que minha m\'e3e quer tamb\'e9m.
\par Marcela fitou-a cheia de horror, sentindo no peito a dor aguda da trai\'e7\'e3o.
\par -Adriana, como p\'f4de? Eu acreditei em voc\'ea, confiei em voc\'ea, contei a voc\'ea os meus segredos mais \'edntimos... Agora compreendo tudo - ela ocultou o rosto entre
\par as m\'e3os e desatou a chorar. - Foi voc\'ea, n\'e3o foi? Foi voc\'ea quem cometeu aquela trai\'e7\'e3o e contou tudo a dona Dolores.
\par A muito custo, Ariane conseguiu retomar o dom\'ednio sobre si mesma e falar algo em sua defesa.
\par -Por favor, Marcela, em primeiro lugar, pe\'e7o que me perdoe. Meu nome n\'e3o \'e9 Adriana, como voc\'ea v\'ea, mas Ariane. Conheci-a seguindo o plano de Dolores, que
\par sugeriu que eu me aproximasse de voc\'ea e me tornasse sua amiga, para descobrir os seus segredos e us\'e1-los contra voc\'ea, afastando-a de Fl\'e1vio.
\par Aquela confiss\'e3o estava sendo muito dolorosa e sofrida, mas Ariane n\'e3o podia parar e tentar inventar uma desculpa qualquer que a isentasse de responsabilidade em
\par tudo o que acontecera.
\par -Voc\'ea se fingiu de minha amiga! - acusou Marcela, entre a raiva e a decep\'e7\'e3o. - E eu lhe contei toda a minha vida, dei-lhe as armas para voc\'ea me destruir.
\par Quantas noites passei aqui, com pena de voc\'ea, julgando-a uma pobre menina rica abandonada pelo namorado e sem o apoio da fam\'edlia. Como fui ing\'eanua e burra!
\par -Voc\'ea foi ing\'eanua, mas n\'e3o burra - contestou Ariane, a voz cada vez mais sumida. - Voc\'ea \'e9 uma pessoa muito especial, Marcela, e eu me afei\'e7oei a voc\'ea de
\par verdade.
\par -Como quer que eu acredite em voc\'ea? Voc\'ea fingiu para me destruir... Conseguiu... Ariane... n\'e3o foi? Como p\'f4de ser t\'e3o cruel...? - calou-se decepcionada,
\par engolindo o pranto, os l\'e1bios tr\'eamulos e o cora\'e7\'e3o dolorido.
\par -Voc\'ea n\'e3o sabe o que est\'e1 dizendo. Fl\'e1vio est\'e1 ao seu lado.
\par Marcela chorava angustiada. N\'e3o sabia o que lhe do\'eda mais:
\par se o medo de perder Fl\'e1vio ou a trai\'e7\'e3o de Ariane.
\par -Por que fez isso comigo quando s\'f3 o que eu quis foi ajud\'e1-la? Eu era sua amiga... Ariane. E voc\'ea? Nunca sentiu nada por mim?
\par Vendo o quanto ela chorava, Fl\'e1vio se aproximou e estreitou-a em seus bra\'e7os, s\'f3 ent\'e3o percebendo a bandagem manchada de sangue que cobria o seu punho.
\par -Mas o que \'e9 isso? - questionou ele alarmado. - O que houve com seu pulso?
\par Marcela se calou e voltou a aten\'e7\'e3o para ele, olhando de soslaio para a gilete que Ariane deixara sobre a mesinha, e o sangue que manchava a colcha. Fl\'e1vio seguiu
\par o seu olhar e ficou surpreso por n\'e3o haver notado o que havia se passado ali.
\par -Voc\'ea tentou se matar novamente? - prosseguiu ele indignado. - Por qu\'ea?
\par Marcela e Ariane se olharam naquele momento, uma com ang\'fastia e medo, a outra com ang\'fastia e arrependimento.
\par -Seja o que for que ela lhe disser, Fl\'e1vio - considerou Ariane -, ter\'e1 sido em nome do amor.
\par -O que quer dizer com isso? O que houve entre voc\'eas duas que eu n\'e3o sei?
\par -N\'e3o houve nada entre n\'f3s, exceto, talvez, uma grande amizade que mal chegou a nascer e j\'e1 foi eliminada. Arrependo-me muito pelo mal que lhe causei, Marcela,
\par e quero que saiba que eu gosto, realmente, de voc\'ea. Se fiz o que fiz, foi porque pensei que amava Fl\'e1vio e o queria a qualquer pre\'e7o. Hoje sei o quanto estava enganada
\par e posso lhe afirmar com toda a sinceridade do meu cora\'e7\'e3o: n\'e3o quero me casar com Fl\'e1vio, e nada me daria mais alegria do que v\'ea-lo casado e feliz com voc\'ea.
\par -N\'e3o acredito em voc\'ea - contestou Marcela, embora sem muita convic\'e7\'e3o.
\par -Eu tamb\'e9m n\'e3o acreditaria, se fosse voc\'ea, mas \'e9 a mais pura verdade. Aprendi a gostar de voc\'ea e a dar valor \'e0 amizade, embora estivesse presa ao poder de
\par Dolores.
\par -Voc\'ea me traiu...
\par -Eu n\'e3o a tra\'ed. Voc\'ea pode n\'e3o acreditar em mim, mas jamais disse uma palavra a ningu\'e9m... - ela parou de falar abruptamente, encarando Fl\'e1vio, que as fitava
\par cheio de assombro. - Lamento o mal que lhe fiz. Vou embora e prometo que voc\'ea nunca mais vai ouvir falar de mim.
\par Marcela n\'e3o conseguiu se mover ou dizer nada que a impedisse. Estava decepcionada, triste, com raiva e com medo, tudo ao mesmo tempo. Queria ir atr\'e1s dela e lhe
\par pedir maiores explica\'e7\'f5es, mas a presen\'e7a de Fl\'e1vio a paralisou. Ele ouvira mais do que deveria e n\'e3o tardaria a questionar sobre tudo aquilo. E ela agora j\'e1 n\'e3o
\par tinha mais como lhe omitir a verdade ou inventar uma mentira que a salvasse.
\par Ningu\'e9m seguiu Ariane. Por mais surpreso e indignado que Fl\'e1vio estivesse, havia preocupa\'e7\'f5es maiores do que aquela com que se ocupar. Marcela havia tentado novamente
\par o suic\'eddio, o que indicava que ela estava com problemas s\'e9rios outra vez.
\par -Muito bem - disse ele, algum tempo depois que Ariane saiu. - Deixe-me ver esse pulso agora.
\par -N\'e3o foi nada.
\par -Isso, quem decide sou eu. Vamos, mostre-me.
\par Embora contrariada, Marcela exibiu-lhe o pulso ferido. Ele
\par desatou as bandagens, fez um ar de reprova\'e7\'e3o e foi com ela para o banheiro refazer o curativo.
\par -Sorte que foi superficial - anunciou, examinando o corte com aten\'e7\'e3o. - Passou perto da veia, mas n\'e3o vai precisar levar pontos.
\par Com extremo cuidado e muito profissionalismo, Fl\'e1vio apanhou o material de primeiros socorros dentro do arm\'e1rio e p\'f4s-se a cuidar da ferida, enquanto Marcela puxava
\par o pulso de vez em quando, \'e0 medida que ele limpava o local.
\par -Est\'e1 doendo - queixou-se ela, mas ele n\'e3o lhe deu muita aten\'e7\'e3o.
\par Depois de refeito o curativo, ele a conduziu de volta ao quarto e tirou a colcha da cama, sentando-se com ela sobre o len\'e7ol nu.
\par -E agora, ser\'e1 que voc\'ea pode me explicar o que aconteceu?
\par Voc\'ea n\'e3o viu? - falou ela, tentando desviar o assunto. - Sua ex-namorada se fez passar por minha amiga para me destruir.
\par -Voc\'ea sabe que n\'e3o \'e9 a isso que me refiro. Quero saber o que aconteceu para voc\'ea cortar os pulsos.
\par -Eu... n\'e3o cortei... foi um acidente...
\par -Acidente com uma gilete, em cima da cama, no pulso esquerdo? N\'e3o me convenceu.
\par -Mas \'e9 a verdade... Eu estava vendo se a gilete estava afiada... precisava me depilar... passei-a por acaso sobre o pulso, e ele sangrou...
\par Fl\'e1vio colocou os dedos sobre os seus l\'e1bios e a censurou com ternura:
\par -Est\'e1 tentando enganar a si mesma, porque a mim, voc\'ea n\'e3o engana. Ouvi muito bem Ariane dizer que voc\'ea j\'e1 havia ido longe demais com a sua mentira e precisava
\par me contar a verdade, porque eu precisava saber. Saber o qu\'ea?
\par -\'c9 alguma inven\'e7\'e3o daquela fingida! - objetou ela, tentando imprimir \'e0 voz um tom de f\'faria. - Provavelmente, mais uma de suas mentiras para fazer intriga.
\par -N\'e3o me pareceu mentira nem intriga. Ela falava de algo que voc\'ea sabia muito bem o que era.
\par -Voc\'ea n\'e3o pode dar cr\'e9dito ao que ela disse. Ariane j\'e1 provou que \'e9 falsa e mentirosa.
\par -N\'e3o se trata de dar cr\'e9dito, mas eu vi o jeito como voc\'eas duas estavam falando. Voc\'ea est\'e1 tentando me esconder algo.
\par -Prefere acreditar nas artimanhas daquela fingida em vez de confiar em mim? Como pude ser t\'e3o est\'fapida confiando nela? Que \'f3dio que sinto de mim mesma!
\par -Acho que voc\'ea est\'e1 tentando fugir do assunto.
\par -Ser\'e1 que voc\'ea n\'e3o percebe que est\'e1 fazendo justamente o que ela quer? Est\'e1 entrando no jogo de Ariane e de sua m\'e3e.
\par -N\'e3o estou entrando no jogo de ningu\'e9m. Estou apenas querendo descobrir a verdade.
\par -A verdade \'e9 cristalina. Voc\'ea n\'e3o v\'ea, Fl\'e1vio? Ela nos enganou com as suas artimanhas, fez-me passar por tola. E eu fiquei com pena dela. Jamais poderia imaginar
\par que sua m\'e3e estivesse por tr\'e1s disso.
\par -Sei que mam\'e3e e Ariane tramaram contra n\'f3s, mas n\'e3o conseguiram nada. Ali\'e1s, nem tiveram tempo, porque foram desmascaradas antes. Mas o que eu ouvi n\'e3o
\par foi um truque nem artimanha. Ariane n\'e3o sabia que eu estava aqui e se referia a algo que me pareceu bem real. O que \'e9 que eu deveria saber e voc\'ea n\'e3o me contou?
\par -Nada... - hesitou. - Por que n\'e3o acredita em mim? Se n\'e3o acredita, por que n\'e3o corre para Ariane e vai perguntar a ela? Talvez a palavra dela tenha mais
\par peso do que a minha.
\par -Voc\'ea est\'e1 usando Ariane como desculpa para n\'e3o me contar a verdade, seja ela qual for.
\par -Eu, usando Ariane? Mas se foi ela quem me usou!
\par -Vamos esquecer Ariane. Quero que voc\'ea me diga o que est\'e1 acontecendo.
\par -Ela n\'e3o est\'e1 aqui, mas plantou a sua semente de disc\'f3rdia. Voc\'ea est\'e1 me pressionando por causa dela.
\par -Pode at\'e9 ser. Mas o que ela disse n\'e3o foi inven\'e7\'e3o, e voc\'ea parecia bem transtornada. Vamos, Marcela, o que \'e9?
\par -Ariane \'e9 quem deve saber. Afinal, foi ela quem disse...
\par -N\'e3o tente me fazer de tolo, Marcela. Se voc\'ea est\'e1 me escondendo algo, eu preciso saber. - Ela o encarava \'e0 beira das l\'e1grimas, e ele pressionou mais um
\par pouco: - Por que voc\'ea tentou se matar?
\par -Eu n\'e3o tentei...!
\par -Voc\'ea acusou Ariane de mentirosa, mas n\'e3o est\'e1 me parecendo muito diferente dela. Por que reluta em me contar a verdade?
\par N\'e3o havia mais sa\'edda, e Marcela sabia disso. Fl\'e1vio escutara pouco, contudo, o que ouvira fora suficiente para lhe dar a certeza de que ela escondia algo importante.
\par -Por favor, Fl\'e1vio, n\'e3o \'e9 nada. Acredite em mim.
\par -Ningu\'e9m tenta se matar por nada. E, no seu caso, o nada j\'e1 quase a matou por duas vezes. N\'e3o acha que \'e9 demais?
\par -Eu... - ela estava tentando imaginar algo convincente para lhe falar, mas n\'e3o lhe vinha nada \'e0 cabe\'e7a. A verdade lhe parecia, naquele momento, a \'fanica solu\'e7\'e3o
\par poss\'edvel. - Tenho medo...
\par -De qu\'ea? De mim?
\par -De voc\'ea n\'e3o aceitar.
\par -O qu\'ea? Voc\'ea fez alguma coisa? - ela assentiu. - O qu\'ea? Vamos, diga-me. Eu exijo saber a verdade.
\par -Voc\'ea n\'e3o tem o direito de me pressionar - objetou ela, quase em desespero.
\par -Tem raz\'e3o, n\'e3o tenho. Mas voc\'ea tamb\'e9m n\'e3o tem o direito de exigir que eu me conforme com mentiras e evasivas. Se n\'e3o me contar a verdade, \'e9 porque n\'e3o confia
\par em mim, e se n\'e3o h\'e1 confian\'e7a entre n\'f3s, n\'e3o pode haver casamento.
\par Ao ouvir isso, Marcela liberou o pranto e come\'e7ou a chorar angustiada. Atirou-se ao pesco\'e7o de Fl\'e1vio e deixou-se ficar abra\'e7ada a ele por alguns minutos. Ele a
\par estreitou contra si, sentindo os tremores que os solu\'e7os infligiam a seu corpo fr\'e1gil. Esperou pacientemente at\'e9 que ela se acalmasse. Secou seus olhos, alisou seus
\par cabelos e deu-lhe um beijo suave nos l\'e1bios, acrescentando com a voz mais doce que conseguiu entoar:
\par -Voc\'ea sabe que a amo, n\'e3o sabe? Seja o que for que voc\'ea tenha feito, eu sempre vou continuar amando voc\'ea.
\par -Eu sei... - solu\'e7ou ela. - Mas o seu amor... ser\'e1 capaz de aceitar coisas com as quais voc\'ea n\'e3o concorda e n\'e3o consegue entender? Coisas que voc\'ea despreza
\par e das quais sente repulsa e desprezo?
\par -Por que diz isso?
\par Ela ainda relutava em falar, mas descia por uma corredeira sem volta, que a obrigava a soltar o destino e deix\'e1-lo seguir seu curso normal na correnteza da vida.
\par -Ser\'e1 que voc\'ea n\'e3o sabe? Nem desconfia?
\par Fl\'e1vio abaixou os olhos e balan\'e7ou a cabe\'e7a, falando com uma certa ang\'fastia:
\par -Voc\'ea \'e9 l\'e9sbica, n\'e3o \'e9? Tentou se matar duas vezes por causa de Luciana, n\'e3o foi?
\par Ela simplesmente cobriu o rosto com as m\'e3os e assentiu, sem coragem de encar\'e1-lo.
\par -Eu n\'e3o queria que as coisas fossem assim - murmurou ela, entre um solu\'e7o e outro. - Mas n\'e3o podia apagar meu passado.
\par -Por que n\'e3o me contou?
\par -Pensei em contar, mas tive medo. E depois, voc\'ea mesmo foi criando uma hist\'f3ria, acreditando que eu havia tentado o
\par suic\'eddio por causa de um ex-namorado. Criou at\'e9 uma parte para Luciana, como se ela fosse a mulher que tivesse tirado o namorado de mim.
\par -E voc\'ea achou melhor me deixar acreditar numa mentira...
\par -Tive medo. N\'e3o queria que voc\'ea me desprezasse. Quando o conheci, fiquei confusa e assustada, nunca antes me havia relacionado com um homem, e era tudo novo
\par para mim. Cheguei a pensar que estava confundindo as coisas...
\par -E n\'e3o estava?
\par -No come\'e7o, pensei que sim, porque voc\'ea foi aquele que salvou a minha vida, que me deu carinho e aten\'e7\'e3o, que se importou comigo sem ligar para o meu passado
\par ou para o que eu havia feito. Pensei que tudo n\'e3o passasse de gratid\'e3o e car\'eancia, porque voc\'ea se preocupava comigo de verdade e parecia sincero no sentimento que
\par me oferecia. Mas depois fui percebendo que a sua presen\'e7a me enchia de alegria, e a sua falta me causava tristeza e saudade. Depois que fizemos amor pela primeira
\par vez, tive certeza de que estava mesmo apaixonada. Nunca antes havia experimentado algo t\'e3o bom e maravilhoso e me senti satisfeita e completa. Se isso n\'e3o \'e9 amor,
\par ent\'e3o desconhe\'e7o o que seja amar.
\par -Voc\'ea possui uma forma muito estranha de amar.
\par -Por que diz isso?
\par -Seu amor a aprisiona na depend\'eancia.
\par -Est\'e1 sendo injusto, Fl\'e1vio. Quando voc\'ea me conheceu, sabia que eu estava fr\'e1gil e carente. N\'e3o queria que eu me apegasse a voc\'ea e dependesse do seu amor?
\par -Ningu\'e9m deve ser t\'e3o dependente a ponto de abrir m\'e3o da vida quando v\'ea amea\'e7ada a seguran\'e7a que pensa que a depend\'eancia traz. Foi por isso que Luciana a
\par deixou, n\'e3o foi? Porque se cansou da sua depend\'eancia.
\par -Voc\'ea n\'e3o tem o direito de falar de coisas que desconhece! Est\'e1 me julgando por fatos que ocorreram antes de voc\'ea surgir na minha vida e dos quais voc\'ea nada
\par sabe.
\par -Voc\'ea est\'e1 fugindo do assunto porque tem medo de me contar a verdade. Mas o fato \'e9 que ela a deixou, e foi por isso que voc\'ea tentou se matar.
\par -E da\'ed? - explodiu ela, agitando as m\'e3os nervosamente.
\par - Luciana simplesmente deixou de me amar. Isso acontece \'e0s vezes, sabia?
\par Com os olhos marejados, Fl\'e1vio se afastou de Marcela e p\'f4s-se a caminhar de um lado a outro do quarto, mordendo os l\'e1bios para n\'e3o desabar no pranto. Estava diante
\par de uma situa\'e7\'e3o que lhe despertava sentimentos contradit\'f3rios e confusos. Se, por um lado, n\'e3o aprovava a homossexualidade; por outro, amava Marcela acima de tudo.
\par O que deveria fazer?
\par -Por que tentou se matar novamente? - indagou ele, seguindo o emaranhado de pensamentos que n\'e3o o levavam a lugar algum. - Foi porque Luciana quase morreu?
\par -N\'e3o - objetou ela, entre perplexa e magoada. - J\'e1 n\'e3o sinto mais por Luciana o amor que sentia na \'e9poca em que o conheci.
\par O olhar de Fl\'e1vio n\'e3o parava de acompanh\'e1-la, e Marcela come\'e7ou a se sentir encurralada, como um animal acuado pelo predador faminto.
\par -Por que tentou se matar novamente? - repetiu Fl\'e1vio, agora tomado por s\'fabita rispidez e impaci\'eancia. Como \'e9 que ela podia lhe falar do amor por outra mulher
\par como se estivesse se referindo a um namoradinho de inf\'e2ncia?
\par -Eu... - balbuciou ela, percebendo a sua hostilidade rec\'e9m-aflorada - tive medo de perd\'ea-lo... N\'e3o queria perder voc\'ea, Fl\'e1vio.
\par -E preferiu se matar a arriscar me contar a verdade.
\par -Tive medo... - repetiu ela, a voz sumida na garganta.
\par -O \'fanico medo real que voc\'ea tem \'e9 de perder.
\par -Estou perdendo voc\'ea?
\par -N\'e3o sei se posso conviver com isso. Sinto-me enganado e tra\'eddo.
\par -N\'e3o fa\'e7a isso, Fl\'e1vio. Eu o amo...
\par -Voc\'ea diz que me ama, no entanto, n\'e3o confiou em mim o suficiente para me contar o seu grande segredo. Por qu\'ea? Ser\'e1 que n\'e3o \'e9 porque ainda ama Luciana?
\par -Isso \'e9 um disparate! J\'e1 disse que n\'e3o contei porque tive medo de voc\'ea n\'e3o me aceitar. Depois de me dar a sua opini\'e3o sobre homossexuais e l\'e9sbicas, o que
\par queria que eu pensasse?
\par Fl\'e1vio ficou por um tempo refletindo no que ela lhe dissera. Realmente, falara coisas ruins sobre o assunto, mas de uma forma
\par impessoal. Era diferente quando a pessoa envolvida era aquela com quem pretendia se casar.
\par -N\'e3o me referia a voc\'ea - defendeu-se ele.
\par -Referia-se, sim. Voc\'ea mesmo disse que n\'e3o gostaria de me ver envolvida com isso. Como eu poderia me abrir com voc\'ea depois disso? Para mim, voc\'ea me deixaria.
\par -Ainda assim, devia ter-me contado. Por mais que me chocasse no come\'e7o, meu amor por voc\'ea acabaria fazendo-me compreender e aceitar.
\par Ela deu um sorriso esperan\'e7oso e procurou abra\'e7\'e1-lo, mas ele n\'e3o correspondeu.
\par -Por que n\'e3o esquecemos tudo isso? - sussurrou ela. - O que importa \'e9 que n\'f3s nos amamos.
\par -N\'e3o estou bem certo. Se voc\'ea realmente me amasse, teria assumido o risco de me perder e teria me contado a verdade.
\par -Mas voc\'ea n\'e3o queria saber! Por v\'e1rias vezes, tentei lhe contar, mas foi voc\'ea mesmo quem disse que o meu passado n\'e3o lhe interessava. Por que se importa
\par com ele agora?
\par Era vis\'edvel a confus\'e3o de Fl\'e1vio. Queria deixar aquilo de lado e estreit\'e1-la com ardor, mas se lembrava da rea\'e7\'e3o dela quando Luciana fora esfaqueada, da sua afli\'e7\'e3o
\par e de seu quase desespero. N\'e3o seria aquilo uma prova de amor? Marcela n\'e3o estaria sofrendo por medo de perder a pessoa a quem verdadeiramente amava?
\par E um pensamento maldoso o incomodava: Marcela o amava, n\'e3o tinha d\'favidas, mas ser\'e1 que o seu amor resistiria se Luciana quisesse voltar para ela? Como ele se sentiria
\par se a sua noiva - ou esposa - o abandonasse por outra mulher?
\par -O que me importa agora - considerou ele - \'e9 a possibilidade de voc\'ea ainda amar Luciana...
\par -Mas eu n\'e3o a amo!
\par -Voc\'ea n\'e3o me deixou terminar. Incomoda-me esse amor, a mentira e a inseguran\'e7a que sentirei daqui para a frente, o medo de ser trocado por uma l\'e9sbica.
\par -Voc\'ea est\'e1 sendo cruel.
\par -E voc\'ea pode n\'e3o conter as suas tend\'eancias.
\par -Que tend\'eancias? O que est\'e1 querendo dizer? Que eu sou l\'e9sbica tamb\'e9m?
\par -E n\'e3o \'e9?
\par -Eu sabia! Tudo n\'e3o passa de desculpa para o seu preconceito.
\par -Ao contr\'e1rio de voc\'ea, eu nunca menti. Sempre fui sincero e claro a respeito do que pensava sobre homossexualidade.
\par -Est\'e1 querendo me dizer que vai romper comigo por causa de um preconceito idiota?
\par -N\'e3o. N\'e3o me agrada que voc\'ea tenha se relacionado com outra mulher, mas eu at\'e9 poderia relevar isso se voc\'ea tivesse sido honesta desde o princ\'edpio. A sua
\par mentira s\'f3 me faz imaginar que voc\'ea me usa como ref\'fagio para a sua frustra\'e7\'e3o. N\'e3o digo que voc\'ea n\'e3o me ame. Sei que ama. Mas o que pergunto \'e9: ser\'e1 que o seu amor
\par \'e9 genu\'edno ou \'e9 fruto da sua car\'eancia?
\par -Voc\'ea est\'e1 sendo injusto novamente. Nunca fiz nada para que voc\'ea duvidasse do meu amor.
\par -N\'e3o mesmo? E o que me diz do seu desespero quando soube que Luciana estava no hospital?
\par -\'c9 diferente! N\'e3o queria que ela morresse.
\par -Isso n\'e3o \'e9 amor?
\par -\'c9, mas n\'e3o o amor que voc\'ea est\'e1 pensando. Luciana e eu, hoje, somos como irm\'e3s. Por favor, Fl\'e1vio, acredite em mim!
\par -Eu quero acreditar, mas tenho medo de ser enganado.
\par -Isso n\'e3o vai acontecer. Eu juro!
\par -Voc\'ea j\'e1 mentiu uma vez. N\'e3o pode estar mentindo novamente agora?
\par -Por que \'e9 t\'e3o impiedoso? J\'e1 disse por que menti. Voc\'ea me obrigou a isso.
\par -Eu a obriguei? Ora, essa \'e9 boa.
\par -N\'e3o, n\'e3o voc\'ea, mas as circunst\'e2ncias. Ser\'e1 que o que fiz foi assim t\'e3o terr\'edvel? Voc\'ea n\'e3o pode me perdoar?
\par -Tenho medo de estar me iludindo. Voc\'ea n\'e3o confiou em mim. Como posso confiar em voc\'ea agora?
\par -Confie no meu amor. Perdoe-me por n\'e3o lhe ter contado. Sei que errei, mas n\'e3o foi com a inten\'e7\'e3o de engan\'e1-lo. Foi a minha inseguran\'e7a.
\par -Preciso de tempo para pensar, Marcela.
\par -Voc\'ea n\'e3o pode estar falando s\'e9rio. Por favor, n\'e3o me deixe.
\par -N\'e3o estou deixando voc\'ea. Mas preciso de um tempo. H\'e1 muito a considerar nesse caso.
\par -Voc\'ea est\'e1 fazendo parecer que eu cometi um crime. E \'e9 o que sua m\'e3e quer. N\'e3o percebe?
\par -Minha m\'e3e n\'e3o tem nada a ver com as suas mentiras.
\par -Mas foi ela quem tramou isso tudo! Ela e Ariane. Sua m\'e3e esteve aqui e me amea\'e7ou. N\'e3o sei como ela descobriu, mas amea\'e7ou contar tudo a voc\'ea, caso eu n\'e3o
\par sumisse da sua vida.
\par Fl\'e1vio sentiu a contrariedade que aquela not\'edcia lhe causava e tornou com desagrado:
\par -Minha m\'e3e esteve aqui?
\par -Hoje cedo.
\par Era bem o tipo de sua m\'e3e. Aquilo podia ter sido mesquinho e cruel, mas n\'e3o alterava as circunst\'e2ncias. Fora Marcela quem mentira, n\'e3o sua m\'e3e.
\par -Isso n\'e3o muda nada - contrap\'f4s ele. - Voc\'ea me devia fidelidade e confian\'e7a, n\'e3o ela.
\par -Pelo amor de Deus, Fl\'e1vio, ela usou isso para nos destruir! Se ela n\'e3o tivesse vindo aqui, eu n\'e3o teria tentado me matar novamente, e Adriana n\'e3o o teria
\par chamado, e voc\'ea n\'e3o teria descoberto, e...
\par -E eu continuaria vivendo na mentira. Era isso que voc\'ea pretendia? - Ela abaixou os olhos e n\'e3o respondeu, e ele continuou: - Ent\'e3o me diga por que desistiu
\par de se matar. Ia me deixar, como minha m\'e3e queria?
\par -N\'e3o...
\par -Mas ent\'e3o ela me contaria a verdade. Voc\'ea assumiria esse risco?
\par -N\'e3o sei! - ela desatou a chorar e foi falando aos trope\'e7\'f5es: - N\'e3o sei o que faria. A \'fanica coisa que sabia era que n\'e3o queria mais morrer. Quis viver
\par porque voc\'ea deu um novo significado a minha vida.
\par -Voc\'ea mesma me contaria, ent\'e3o?
\par -N\'e3o sei, j\'e1 disse! Oh! Por favor, n\'e3o me pressione mais! N\'e3o sei de mais nada. Tudo o que sei, Fl\'e1vio, \'e9 que o amo. Por que n\'e3o pode acreditar nisso?
\par -N\'e3o sei se posso acreditar em voc\'ea depois de tudo. Minha m\'e3e n\'e3o devia ter feito o que fez, mas n\'e3o foi ela quem inventou essa hist\'f3ria. E se voc\'ea tivesse
\par me contado antes, nada disso teria acontecido.
\par -Por favor, Fl\'e1vio, reflita. E acredite em mim quando digo que o amo.
\par -N\'e3o sei, Marcela. S\'f3 com o tempo \'e9 que poderei dizer.
\par Ele se levantou para sair, mas ela tentou segur\'e1-lo.
\par -Por favor, n\'e3o v\'e1.
\par -Deixe-me, Marcela. Ficar aqui com voc\'ea s\'f3 vai aumentar a minha inseguran\'e7a.
\par Mesmo contrariada, Marcela afrouxou as m\'e3os que seguravam o seu bra\'e7o, e ele se encaminhou para a porta.
\par -Voc\'ea n\'e3o vai mais voltar, n\'e3o \'e9? - indagou ela, com voz sofrida.
\par Fl\'e1vio n\'e3o respondeu. Hesitou alguns segundos, mas logo se reequilibrou e partiu sem olhar para tr\'e1s.
\par Uma ang\'fastia indescrit\'edvel sacudiu o cora\'e7\'e3o de Marcela, que j\'e1 n\'e3o tinha mais for\'e7as para discutir nem para tentar convenc\'ea-lo a ficar. Um extremo cansa\'e7o dominou
\par todo o seu ser, e ela foi arriando o corpo at\'e9 que seu rosto tocasse o ch\'e3o, e as l\'e1grimas se espalhassem sobre ele. Fechou os olhos lentamente e suspirou entre
\par solu\'e7os. Perdera tudo. Ser\'e1 que ainda valia a pena viver?
\par Fl\'e1vio voltou para casa com o cora\'e7\'e3o oprimido e subiu direto para o quarto. Dolores se preparava para um encontro com um playboy de 28 anos e n\'e3o queria se atrasar,
\par mas n\'e3o conseguiu simplesmente ignorar a chegada do filho. Ouviu seus passos no corredor e foi atr\'e1s dele em seu quarto.
\par -Est\'e1 tudo bem? - sondou ela.
\par -O que voc\'ea acha?
\par -N\'e3o acho nada. Por isso, estou perguntando.
\par Ele remoeu a raiva que sentia, naquele momento, da m\'e3e e retrucou com uma f\'faria contida:
\par -Marcela tentou se matar outra vez. Voc\'ea sabia?
\par Ela meneou a cabe\'e7a e respondeu com ironia:
\par -Como poderia saber? Quem dorme com ela \'e9 voc\'ea, n\'e3o eu.
\par -N\'e3o se fa\'e7a de c\'ednica, m\'e3e! Sei muito bem que voc\'ea foi \'e0 casa dela e a amea\'e7ou.
\par O rosto de Dolores estava impass\'edvel. N\'e3o era surpresa que Fl\'e1vio tivesse descoberto a verdade. S\'f3 o que ela n\'e3o podia era deixar que ele se voltasse contra ela.
\par -Fui \'e0 casa dela, sim - concordou Dolores com seguran\'e7a. - Mas n\'e3o lhe fiz nenhuma amea\'e7a.
\par -N\'e3o adianta fingir, m\'e3e, porque j\'e1 sei de tudo. Ela mesma me contou.
\par -Contou o qu\'ea?
\par -Contou-me de seu plano s\'f3rdido, mandando Ariane se fazer passar por Adriana para fazer amizade com Marcela e a destruir.
\par -E da\'ed? Fiz o que toda m\'e3e faria por seu filho.
\par -Quanta dedica\'e7\'e3o - desdenhou ele. - O que voc\'ea lucra destruindo a vida das pessoas? N\'e3o se importa em destruir a felicidade de seu pr\'f3prio filho?
\par -Quanto drama... Eu lhe fiz um favor. Voc\'ea ia se casar com uma l\'e9sbica oportunista. Devia me agradecer por t\'ea-la desmascarado a tempo.
\par -Como pode ser t\'e3o insens\'edvel e mesquinha?
\par -Quem foi que disse que sou insens\'edvel? Sensibiliza-me a sua vida, a sua felicidade.
\par -Voc\'ea n\'e3o se importa com isso. S\'f3 o que v\'ea s\'e3o os seus interesses.
\par -Eu apenas tentei evitar que voc\'ea estragasse a sua vida se casando com uma l\'e9sbica.
\par -N\'e3o a chame assim! Marcela n\'e3o \'e9 l\'e9sbica.
\par -E como \'e9 que se chama ent\'e3o uma mulher que vive de amores com outra?
\par -Marcela n\'e3o \'e9 assim.
\par -Creio que voc\'ea j\'e1 sabe de tudo, n\'e3o \'e9 mesmo? Do romance nefasto que ela teve com aquela dentista de sub\'farbio.
\par -Isso n\'e3o \'e9 problema seu. E depois, quem tem que se preocupar com isso sou eu.
\par -Voc\'ea devia aceitar o meu conselho e se casar com Ariane. Ela \'e9 a mulher ideal para voc\'ea.
\par -Ariane \'e9 uma mentirosa! E foi ela quem me telefonou quando Marcela tentou se matar novamente! Ela estava l\'e1, na casa dela, fingindo-se de amiga. Ningu\'e9m
\par me contou. Eu vi!
\par -Ariane, sim, o ama de verdade. N\'e3o \'e9 uma aventureira feito Marcela.
\par -\'c9 pior. \'c9 falsa, intrigante, maquiav\'e9lica.
\par -Mas n\'e3o \'e9 l\'e9sbica. Raciocine, Fl\'e1vio. Como voc\'ea pode ser feliz se casando com uma l\'e9sbica? Marcela gosta \'e9 de mulheres, e de voc\'ea, s\'f3 o que quer \'e9 o dinheiro.
\par Fl\'e1vio n\'e3o conseguiu mais ouvir. Estava enojado daquilo tudo, sem
\par saber quem era pior naquela hist\'f3ria: se Marcela, a m\'e3e ou Ariane.
\par ***
\par Mas Fl\'e1vio n\'e3o era o \'fanico a se lamentar pelo ocorrido. Ariane, muito mais do que ele, perdia-se em seu remorso. Se Fl\'e1vio terminasse com Marcela, e se ela tentasse
\par se matar novamente, ser\'e1 que poderia conviver com a culpa? Ficou andando de um lado para outro no quarto, at\'e9 que resolveu ligar para Marcela. Precisava saber se
\par ela estava bem. J\'e1 tentara se matar duas vezes. Quem garantia que n\'e3o tentaria uma terceira? O telefone tocou insistentemente na casa de Marcela antes que ela atendesse,
\par e Ariane exclamou aliviada:
\par -Marcela? Gra\'e7as a Deus voc\'ea est\'e1 bem!
\par Na mesma hora, Marcela reconheceu a voz de Ariane e desligou o telefone. N\'e3o queria falar com ela nunca mais. N\'e3o queria a sua amizade nem a sua simpatia. Muito
\par menos a sua piedade.
\par Ariane sentiu uma infind\'e1vel tristeza com a rea\'e7\'e3o de Marcela, mas n\'e3o podia esperar nada diferente. Ela estava magoada e com raiva, o que era compreens\'edvel. Mas
\par estava viva, e isso era tudo o que importava. Sim, viva. Ficou pensando no que poderia fazer para ajud\'e1-la e achou que a \'fanica solu\'e7\'e3o poss\'edvel seria tentar entrar
\par em contato com Luciana.
\par Foi ao hospital em que ela estava internada, rezando para que Luciana ainda n\'e3o tivesse tido alta. Encontrou-a acordada no quarto e pediu licen\'e7a para entrar. Luciana
\par n\'e3o a conhecia e ficou \'e0 espera de que ela lhe dissesse por que estava ali.
\par -Sou amiga de Marcela - come\'e7ou ela a dizer, e Luciana abriu um sorriso simp\'e1tico. - Meu nome \'e9 Ariane e... bem, n\'e3o sei como lhe dizer isso. Sei que o seu
\par estado \'e9 grave, mas n\'e3o sabia mais a quem procurar.
\par -Eu estou me sentindo muito bem - rebateu Luciana, j\'e1 come\'e7ando a se preocupar. - Pode me contar o que quer que seja. Se aconteceu alguma coisa a Marcela,
\par pode falar.
\par -N\'e3o aconteceu nada, ainda... \'c9 o que espero.
\par -Como assim? Por favor, seja mais clara. Sinto-me confusa com tanto rodeio.
\par Ariane inspirou fundo, tomando coragem, e foi falando sem encarar Luciana:
\par -Gostaria que voc\'ea me perdoasse por vir procur\'e1-la, mas sei que voc\'ea \'e9 a \'fanica amiga que ela tem. Acho que Marcela e Fl\'e1vio brigaram, e estou com medo do
\par que ela possa fazer...
\par -Brigaram? Voc\'ea quer dizer, terminaram? - ela assentiu.
\par -E voc\'ea est\'e1 com medo de que ela tente o suic\'eddio outra vez?
\par -Ela assentiu novamente. - Mas por qu\'ea? Eles pareciam t\'e3o apaixonados!
\par -Voc\'ea sabe o quanto Marcela se esfor\'e7ou para esconder a rela\'e7\'e3o de voc\'eas duas, n\'e3o sabe? - Era uma surpresa que aquela mo\'e7a soubesse daquilo, mas Luciana
\par n\'e3o fez nenhum coment\'e1rio, limitando-se a aquiescer com a cabe\'e7a. - Pois \'e9, a m\'e3e de Fl\'e1vio descobriu e amea\'e7ou contar tudo a ele, caso ela n\'e3o terminasse o namoro.
\par Por isso, ela tentou se matar de novo...
\par -O qu\'ea!? Est\'e1 me dizendo que a doida da Marcela tentou outro suic\'eddio? Mas voc\'ea disse que temia...
\par -Temia que ela tentasse ainda um outro, depois deste \'faltimo.
\par -O terceiro, voc\'ea quer dizer?
\par -\'c9. N\'e3o sei no que deu a conversa que ela teve com Fl\'e1vio, mas temo pelo pior. Se eles terminaram, Marcela bem pode tentar se matar outra vez.
\par -N\'e3o me leve a mal por perguntar, mas qual o seu papel nessa hist\'f3ria toda? Se \'e9 amiga de Marcela, e amiga \'edntima, pois conhece at\'e9 o seu passado, por que
\par n\'e3o vai correndo \'e0 casa dela averiguar e impedir?
\par -Porque... n\'f3s brigamos. Marcela est\'e1 aborrecida comigo.
\par Por mais que Luciana quisesse saber por que, n\'e3o teve tempo
\par de perguntar. A preocupa\'e7\'e3o com a vida de Marcela era muito maior, e ela falou em tom incisivo:
\par -Apanhe o telefone e ligue para ela.
\par Ariane obedeceu sem titubear. Discou o n\'famero da casa de Marcela e estendeu o fone para Luciana, que o apanhou aflita. Como sempre, a campainha soou in\'fameras vezes,
\par mas ningu\'e9m atendeu.
\par -Tente de novo - pediu Luciana, e Ariane ligou mais uma vez.
\par O som da campainha continuou a tocar, at\'e9 que, l\'e1 pela d\'e9cima
\par quinta vez, Marcela atendeu. Tinha uma voz sonolenta e pastosa, e Luciana falou com pressa:
\par -Marcela? \'c9 voc\'ea?
\par -Sim... Quem \'e9? Luciana?
\par -Sou eu. Como voc\'ea est\'e1?
\par -Bem... E voc\'ea? Aconteceu alguma coisa para estar me ligando?
\par -Na verdade, Marcela... - ela pensava rapidamente em uma desculpa convincente para lhe dar - eu gostaria que voc\'ea viesse me visitar. Estou me sentindo t\'e3o
\par sozinha...
\par -Agora?
\par -Se poss\'edvel.
\par -Eu gostaria, Luciana, mas n\'e3o sei se vai dar. Tomei uns comprimidos para dormir e estou me sentindo um pouco zonza.
\par -Voc\'ea o qu\'ea?
\par -Tomei uns comprimidos... - calou-se, s\'f3 ent\'e3o percebendo o temor na voz de Luciana. - Espere um pouco, n\'e3o \'e9 o que voc\'ea est\'e1 pensando.
\par -N\'e3o?
\par -Eu estava com dor de cabe\'e7a e um pouco nervosa. Por isso, tomei umas p\'edlulas.
\par -Pensei que o m\'e9dico tivesse proibido as p\'edlulas para dormir.
\par -Fui \'e0 farm\'e1cia e comprei. Voc\'ea sabe que ningu\'e9m pede receita m\'e9dica mesmo.
\par -Isso n\'e3o importa. Por que o nervosismo?
\par Ela demorou a responder, at\'e9 que falou quase num sussurro:
\par -Fl\'e1vio rompeu comigo...
\par Luciana fitou Ariane com ar significativo e retrucou:
\par -Isso n\'e3o \'e9 motivo para fazer nenhuma besteira, \'e9?
\par -N\'e3o sei... Mas n\'e3o quero que voc\'ea se preocupe.
\par -Imposs\'edvel n\'e3o me preocupar. Ou\'e7a, Marcela, por que voc\'ea n\'e3o vem at\'e9 aqui, e n\'f3s conversamos sobre isso?
\par -N\'e3o estou com vontade de sair.
\par -Por favor, estou pedindo. Venha me fazer companhia. Falaremos sobre o assunto e, quem sabe, voc\'ea n\'e3o se sentir\'e1 melhor? - Ela n\'e3o respondeu. - Por favor,
\par s\'f3 um pouquinho.
\par -Est\'e1 bem. J\'e1 que insiste, vou tomar um caf\'e9 forte e vou para a\'ed.
\par -\'d3timo! Venha logo. Estarei esperando.
\par Desligaram, e Ariane falou em seguida:
\par -Eu n\'e3o disse?
\par -Mas gra\'e7as a Deus ela est\'e1 bem. Est\'e1 vindo para c\'e1.
\par -Ent\'e3o, \'e9 melhor que eu me v\'e1. Se ela me vir aqui, vai ficar com raiva e \'e9 bem capaz de ir embora.
\par -Foi s\'f3 para isso que veio?
\par -Como disse, voc\'ea foi a \'fanica pessoa em quem pude pensar e lhe sou grata por isso. Fa\'e7a por ela o que n\'e3o consegui fazer: seja amiga.
\par O assunto estava encerrado, e Ariane se despediu de Luciana, tomando o caminho de volta para sua casa. N\'e3o queria que Marcela a encontrasse ali de jeito nenhum.
\par Quando Marcela chegou, Ariane h\'e1 muito j\'e1 havia partido. Ela beijou Luciana no rosto e sentou-se na poltrona ao lado da cama.
\par -E ent\'e3o? - disse ela. - Como \'e9 que estamos?
\par -Muito bem. Acho que amanh\'e3 ou depois terei alta.
\par -Fico feliz, Luciana. Esse hospital \'e9 deprimente.
\par -Hospitais n\'e3o lhe trazem boas lembran\'e7as, n\'e3o \'e9?
\par -N\'e3o.
\par -Que bom que n\'e3o precisa mais deles.
\par -\'c9 verdade.
\par -Bem, diga-me l\'e1: o que aconteceu entre voc\'ea e Fl\'e1vio? Nada grave, espero.
\par -Ele rompeu comigo - ela come\'e7ou a chorar. - Acho que nunca mais vai voltar.
\par -N\'e3o vai? Por qu\'ea?
\par S\'f3 depois que o pranto se acalmou foi que Marcela conseguiu contar, em min\'facias, tudo o que havia acontecido. Contou de Dolores, de Ariane e da rea\'e7\'e3o de Fl\'e1vio,
\par o que fez com que Luciana entendesse por que Ariane n\'e3o queria que Marcela a encontrasse.
\par -Estou t\'e3o deprimida, Lu! Sinto que desejo morrer.
\par -N\'e3o deseja, n\'e3o. Tem que viver para lutar pelo seu amor. Se morrer, quem \'e9 que vai lhe provar que voc\'ea \'e9 uma mulher de fibra e de coragem?
\par -Mas eu n\'e3o sou.
\par -\'c9, sim. S\'f3 n\'e3o sabe disso.
\par -Estou me sentindo um lixo. Pensei que Fl\'e1vio me amasse.
\par -Ele a ama. S\'f3 est\'e1 um pouco confuso, chateado com a mentira e inseguro. Mas vai passar.
\par -N\'e3o sei. Ele estava muito decepcionado quando deixou a minha casa.
\par -E essa tal de Ariane? N\'e3o me parece assim t\'e3o ruim.
\par -Ela foi uma v\'edbora! Onde j\'e1 se viu se fazer passar por amiga, mudar de nome e tudo, s\'f3 para me enganar?
\par -Talvez ela esteja arrependida.
\par -Tomara! Tomara que morra de remorso.
\par -Quem a ouve falar desse jeito at\'e9 pensa que \'e9 rancorosa.
\par -N\'e3o sou rancorosa, mas o que ela fez foi imperdo\'e1vel.
\par Luciana n\'e3o quis insistir. Afinal, n\'e3o conhecia Ariane para tentar defend\'ea-la. O pouco que sabia era o que vira alguns minutos antes, n\'e3o sendo suficiente para formar
\par um ju\'edzo de valor.
\par -Preocupo-me com voc\'ea, Marcela - falou Luciana em tom s\'e9rio. - Tenho medo de que tente aquilo novamente.
\par -N\'e3o vou tentar.
\par -Promete?
\par -Prometo.
\par -Olhe l\'e1, hein? Pense que n\'e3o vale a pena perder a vida por ningu\'e9m.
\par Era a primeira vez que Luciana tocava no assunto da tentativa de suic\'eddio de Marcela, que perguntou:
\par -Como foi que voc\'ea se sentiu, Luciana? Qual foi a sensa\'e7\'e3o de saber que algu\'e9m tentou se matar por sua causa?
\par -Nada agrad\'e1vel. Senti-me horr\'edvel, com medo e culpa, embora soubesse que fiz o que achava certo. Mas fiquei me questionando se havia feito da forma correta
\par e no momento mais apropriado. N\'e3o \'e9 uma sensa\'e7\'e3o das mais confort\'e1veis para ningu\'e9m.
\par -Imagino.
\par -N\'e3o adianta tentar se matar, Marcela, voc\'ea s\'f3 vai se enganar.
\par -Como assim, me enganar?
\par -Acredito que exista vida ap\'f3s a morte, e o que ser\'e1 de voc\'ea quando acordar l\'e1 do outro lado, sem um corpo de carne e s\'f3 com o seu arrependimento?
\par -O que quer dizer com isso?
\par -Quero dizer, e se voc\'ea se arrepender? Se destruir o seu corpo f\'edsico, n\'e3o pode mais voltar atr\'e1s. E dizem que os suicidas sofrem \'e0 be\'e7a no outro mundo.
\par Ouvi dizer que at\'e9 revivem o momento da morte e ficam sentindo os vermes comendo o seu corpo.
\par -Cruzes, Luciana! Onde foi que ouviu isso? Em alguma hist\'f3ria de terror?
\par -Eu li em algum lugar - afirmou, tentando se lembrar de onde poderia ter sido. Na verdade, suas palavras vinham de Rani, que se encontrava a seu lado, tentando
\par incutir um pouco de ju\'edzo na cabe\'e7a de Marcela, nem que fosse pelo medo. - De qualquer forma, \'e9 melhor n\'e3o arriscar. Se for verdade o que dizem, sua alma pode ficar
\par vagando por a\'ed, sem sossego, at\'e9 a exaust\'e3o da energia vital que voc\'ea teria para usar at\'e9 o fim de seus dias.
\par -Pare com isso, Luciana, est\'e1 me assustando! Eu nunca a ouvi falar nessas coisas.
\par -Nem eu - concordou Luciana, sem saber de onde vinham aquelas id\'e9ias estranhas.
\par -E eu n\'e3o estou mais pensando em me matar. Essa hist\'f3ria de suic\'eddio j\'e1 est\'e1 ficando mon\'f3tona.
\par -Que bom que pensa assim. Ao inv\'e9s de procurar um caminho que voc\'ea pensa que \'e9 o mais f\'e1cil, mas que n\'e3o \'e9, deveria se fortalecer para continuar vivendo.
\par Eu ainda acho que Fl\'e1vio vai acabar voltando para voc\'ea, e voc\'ea precisa estar pronta para receb\'ea-lo de volta.
\par Receb\'ea-lo de volta... Era tudo o que Marcela queria, embora n\'e3o acreditasse mais que aquilo fosse acontecer. Para ela, Fl\'e1vio parecia um sonho perdido para sempre
\par nas brumas da desilus\'e3o.
\par -Acho que isso n\'e3o ser\'e1 mais poss\'edvel - finalizou. - Eu o perdi para sempre.
\par Ela apertou a m\'e3o de Luciana, abaixou os olhos e chorou.
\par O envolvimento entre Anita e Justino cada vez mais se intensificava, e ela come\'e7ava agora a perder o temor que tinha de si mesma. Ele se demonstrava sempre gentil
\par e interessado, e lhe fazia observa\'e7\'f5es que elevavam o seu moral e a sua autoestima. Jamais fizera qualquer coment\'e1rio a respeito de sua gordura; parecia mesmo n\'e3o
\par se importar com ela, ressaltando os pontos favor\'e1veis que via em Anita. Isso fazia com que ela se sentisse segura e confiante, e recuperasse o gosto de se vestir
\par e se arrumar, ficando mais satisfeita com sua apar\'eancia f\'edsica.
\par Eles haviam terminado de almo\'e7ar, e Justino acabara de deix\'e1-la em casa para retornar ao trabalho. Anita se despediu com um longo e suave beijo e subiu ao apartamento
\par com uma sensa\'e7\'e3o de felicidade soprando em seu peito. O filho j\'e1 havia retornado da escola e estava vendo televis\'e3o na sala. Anita passou por ele e o beijou no rosto,
\par afagando seus cabelos desalinhados.
\par -Tudo bem? - perguntou ela. - Como foi na escola?
\par -Bem...
\par -E a sua irm\'e3?
\par Huguinho deu de ombros e falou sem desviar a aten\'e7\'e3o do aparelho de TV:
\par -Acho que est\'e1 l\'e1 no quarto.
\par Anita assentiu e foi bater \'e0 porta do quarto de Ariane, entrando euf\'f3rica e contando as novidades de seu envolvimento com
\par Justino. Contudo, ao perceber o estado de des\'e2nimo da filha, ficou alarmada e indagou aflita:
\par -Aconteceu alguma coisa? Voc\'ea est\'e1 abatida.
\par Ariane olhou para ela com os olhos cheios de l\'e1grimas e se atirou em seus bra\'e7os, solu\'e7ando.
\par -Ah! Mam\'e3e, voc\'ea n\'e3o sabe... n\'e3o tem id\'e9ia do que eu fiz...
\par Aos prantos, Ariane contou a Anita tudo o que havia se passado
\par entre ela e Marcela, desde o dia em que aceitara compactuar com o plano diab\'f3lico de Dolores. Anita ouviu tudo com tristeza, temendo que o futuro da filha fosse
\par igual ao seu se ela prosseguisse com aquela loucura.
\par -Voc\'ea n\'e3o pode voltar para ele - objetou Anita.
\par -N\'e3o vou fazer isso. Primeiro, acho praticamente imposs\'edvel que ele me queira depois de tudo o que aconteceu. E depois, eu mesma n\'e3o o quero mais. N\'e3o quero
\par que a minha vida seja uma repeti\'e7\'e3o da sua.
\par -Fico muito feliz que voc\'ea pense assim. Espero que tenha aprendido com o meu erro e n\'e3o o repita. Ao menos essa utilidade teve a infelicidade do meu casamento:
\par servir de exemplo para impedi-la de estragar a sua felicidade e a de Fl\'e1vio, assim como eu estraguei a minha e a de seu pai.
\par -Tamb\'e9m n\'e3o exagere, m\'e3e. Meu pai se casou com voc\'ea porque quis. Voc\'eas dois foram imaturos e n\'e3o refletiram no que estavam fazendo. Se voc\'ea se deixou levar
\par pela paix\'e3o inconseq\'fcente, ele se deixou levar pela fraqueza e a conveni\'eancia. Ambos tiveram sua quota de participa\'e7\'e3o.
\par -Que n\'e3o precisa ser tamb\'e9m a sua. N\'e3o fique triste. Tudo passa nessa vida.
\par -Apenas uma coisa me incomoda... o fato de Marcela n\'e3o querer mais ser minha amiga.
\par -Isso tamb\'e9m h\'e1 de passar. Com o tempo, a raiva de Marcela vai esfriar, e ela vai perceber que voc\'ea, apesar de ter tra\'eddo a confian\'e7a dela, tentou ajud\'e1-la
\par de todas as maneiras. Vai se sensibilizar e acreditar que o seu arrependimento e a sua amizade s\'e3o sinceros.
\par -Espero.
\par -Voc\'ea \'e9 uma boa mo\'e7a. Deixou-se envenenar pelas loucuras de Dolores, mas n\'e3o \'e9 feito ela. Dolores \'e9 uma mulher ambiciosa
\par e mesquinha, e n\'e3o se importa com a felicidade de ningu\'e9m, s\'f3 com a dela. Nem com a do filho se importa.
\par -O que ela diria se soubesse que voc\'ea e o ex-marido dela est\'e3o namorando?
\par -Anita corou levemente e retrucou envergonhada:
\par -Namorar \'e9 para garotinhas. Estamos nos relacionando...
\par -D\'e1 no mesmo. O que interessa \'e9 que est\'e3o juntos. E Dolores se roeria toda se descobrisse.
\par -Vai acabar descobrindo. Mais cedo ou mais tarde, isso vai chegar aos seus ouvidos.
\par -E da\'ed? Est\'e1 com medo?
\par -N\'e3o tenho do que ter medo. Quando comecei a sair com Justino, ele j\'e1 era desquitado. Quem \'e9 casada sou eu...
\par -Voc\'ea est\'e1 se separando. E depois, foi papai quem deixou o lar.
\par -Tenho medo de que ele tire Huguinho de mim.
\par -Duvido at\'e9 que tente. N\'e3o se preocupe com isso. Justino, al\'e9m de tudo, pode ajud\'e1-la. Aposto como conhece bons advogados que poder\'e3o defender a sua causa,
\par se isso vier a acontecer, no que n\'e3o acredito.
\par -Voc\'ea \'e9 muito especial, Ariane, e agrade\'e7o a Deus por ter uma filha como voc\'ea. Sem o seu apoio, n\'e3o sei o que seria de mim.
\par Emocionada, Ariane abra\'e7ou a m\'e3e e rebateu com olhos \'famidos:
\par -E voc\'ea \'e9 a melhor m\'e3e do mundo, que agora est\'e1 se redescobrindo como mulher. Est\'e1 mais bonita, bem-vestida, com ar de felicidade. A companhia de Justino
\par est\'e1 lhe fazendo bem.
\par -Ele n\'e3o se importa que eu seja gorda...
\par -Ele \'e9 um homem de verdade e d\'e1 valor ao que voc\'ea tem por dentro. E depois, nem \'e9 t\'e3o gorda assim. Est\'e1 um pouco acima do peso, mas nada de extraordin\'e1rio.
\par Ainda \'e9 uma mulher bonita.
\par Abra\'e7aram-se novamente, e Ariane consultou o rel\'f3gio. Tinha uma id\'e9ia em mente, algo que precisava fazer e n\'e3o aliviaria apenas a sua consci\'eancia, mas talvez ajudasse
\par na reconcilia\'e7\'e3o de Marcela e Fl\'e1vio.
\par ***
\par Quando o \'faltimo paciente do dia se retirou, Fl\'e1vio se preparou para ir embora, n\'e3o sem antes procurar o pai para uma conversa.
\par Encontrou-o em seu consult\'f3rio, examinando as radiografias de alguns pacientes.
\par -Ol\'e1, pai - cumprimentou da porta. - Posso entrar?
\par -E precisa perguntar? Entre, vamos. - Fl\'e1vio entrou e foi-se sentar na poltrona defronte \'e0 mesa de Justino, que abaixou as chapas e olhou para ele. - Algum
\par problema?
\par -Marcela e eu rompemos - anunciou ele, ap\'f3s uma breve hesita\'e7\'e3o.
\par -Romperam? Por qu\'ea?
\par -Porque... ela mentiu para mim, me enganou, \'e9... - calou-se, engolindo a \'faltima palavra.
\par -\'c9 o qu\'ea?
\par -L\'e9sbica.
\par -O que voc\'ea disse? Marcela \'e9 l\'e9sbica? N\'e3o acredito. Como pode ser?
\par Com um suspiro de tristeza, Fl\'e1vio contou tudo ao pai, que balan\'e7ava a cabe\'e7a de um lado a outro, ouvindo as palavras do filho com indigna\'e7\'e3o e surpresa.
\par -Ela n\'e3o me ama, pai - finalizou Fl\'e1vio. - Est\'e1 comigo apenas para esquecer uma antiga paix\'e3o.
\par Justino ficou olhando o filho por alguns instantes, at\'e9 que considerou:
\par -N\'e3o creio que isso seja verdade. E voc\'ea tamb\'e9m, no fundo, n\'e3o acredita nisso. Pode-se sentir o amor verdadeiro apenas com a sua proximidade. E duvido que
\par voc\'ea n\'e3o o sinta em Marcela.
\par -N\'e3o sei mais o que sinto. Muitas coisas j\'e1 me passaram pela cabe\'e7a desde ent\'e3o, inclusive que ela s\'f3 esteja interessada no meu dinheiro.
\par -N\'e3o se deixe levar pelas id\'e9ias de sua m\'e3e. Isso \'e9 ela quem acha. Mas voc\'ea, no fundo, acredita nisso tamb\'e9m?
\par -N\'e3o - desabafou ele, ap\'f3s breves segundos. - Marcela n\'e3o faz o tipo interesseira.
\par -Voc\'ea est\'e1 com preconceito.
\par -N\'e3o sei bem se \'e9 isso. \'c9 claro que n\'e3o fico feliz em saber que a mulher com quem pretendia me casar transava com outra mulher. Mas o meu amor por Marcela
\par poderia at\'e9 superar isso...
\par -Ent\'e3o, qual \'e9 o problema?
\par -Pense bem, pai. No meu lugar, o que voc\'ea faria? Aceitaria tudo numa boa, como se n\'e3o fosse nada demais?
\par -N\'e3o sei se \'e9 demais ou n\'e3o. S\'f3 sei que n\'e3o perderia um amor verdadeiro por causa disso.
\par -Voc\'ea n\'e3o concorda que \'e9, no m\'ednimo, estranho? Quero dizer, me casar com uma ex-l\'e9sbica?
\par -Tamb\'e9m n\'e3o posso responder a essa pergunta - considerou ele com ar de d\'favida. - Talvez eu me chocasse um pouco no in\'edcio, porque n\'e3o estou acostumado a
\par esse tipo de rela\'e7\'e3o. Mas acabaria por aceitar. Se voc\'ea analisar bem, Marcela n\'e3o fez mal a ningu\'e9m. Fez o que quis da vida dela, e ningu\'e9m tem nada com isso.
\par -Mas ser\'e1 que isso \'e9 certo?
\par -O que \'e9 certo ou errado, meu filho? Quem somos n\'f3s para julgar?
\par -Tudo bem, eu posso at\'e9 aceitar seu envolvimento com Luciana. Mas e a mentira? Ela me enganou uma vez. Quem garante que n\'e3o o far\'e1 de novo?
\par -S\'f3 porque ela n\'e3o lhe revelou um segredo n\'e3o quer dizer que v\'e1 tra\'ed-lo. Marcela n\'e3o \'e9 nenhuma mentirosa. E, depois, o que voc\'ea esperava? Nesse ponto, se
\par eu estivesse no lugar dela, talvez tivesse feito a mesma coisa.
\par -N\'e3o acredito. Voc\'ea sempre foi sincero e assumiria o risco.
\par -Marcela n\'e3o tem que ser como eu. Al\'e9m do mais, se ela n\'e3o disse a verdade, voc\'ea n\'e3o queria ouvi-la. Foi voc\'ea quem provocou a mentira.
\par Ele fez ar de indigna\'e7\'e3o e revidou:
\par -Quer dizer que o culpado agora sou eu?
\par -N\'e3o h\'e1 culpados. Voc\'ea teve medo de ouvir a verdade, ela teve medo de falar. Mas agora, seja de que maneira for, tudo se esclareceu. Ent\'e3o, qual o problema?
\par Surpresas e choques se resolvem na confian\'e7a e no amor.
\par -A\'ed \'e9 que est\'e1. N\'e3o sei se ainda confio em Marcela. Receio que ela possa estar me usando para esquecer Luciana ou para conseguir salvar a sua reputa\'e7\'e3o.
\par -Nisso mesmo \'e9 que n\'e3o acredito. Marcela n\'e3o \'e9 esse tipo de mo\'e7a. Teve medo da sua rea\'e7\'e3o e pode ter medo do preconceito
\par social, o que \'e9 bastante compreens\'edvel, mas n\'e3o leva jeito de quem usa um rapaz s\'f3 para sustentar ares de respeitabilidade. Afinal de contas, ela j\'e1 \'e9 uma pessoa
\par respeit\'e1vel. \'c9 professora, trabalha, vive de forma decente e ama voc\'ea. O que importa o resto?
\par -Voc\'ea acha que eu estou errado em me afastar dela?
\par -O seu cora\'e7\'e3o \'e9 que vai lhe dizer isso, n\'e3o eu. Voc\'ea \'e9 um homem decente, Fl\'e1vio, mas se deixou impregnar pelas id\'e9ias idiotas de sua m\'e3e. N\'e3o perca o amor
\par da sua vida por preconceito ou inseguran\'e7a.
\par -Mas, e se ela me trair? E se voltar a sair com mulheres?
\par -E se sair com outros homens? N\'e3o \'e9 a mesma coisa?
\par Fl\'e1vio ia dizer: \'e9 pior, mas mudou de id\'e9ia e acrescentou
\par taciturno:
\par -N\'e3o quero que ela me traia com ningu\'e9m.
\par -Por que ent\'e3o n\'e3o espera para tomar uma atitude quando isso acontecer, se acontecer? N\'e3o vale a pena ficar imaginando situa\'e7\'f5es que, provavelmente, nunca
\par v\'e3o se concretizar. Voc\'ea n\'e3o a ama?
\par -Amo.
\par -Pois ent\'e3o, apresse-se. V\'e1 procur\'e1-la antes que ela se canse e voc\'ea a perca para algu\'e9m que a compreenda e a aceite sem acusa\'e7\'f5es ou temores. Quer que isso
\par aconte\'e7a?
\par Fl\'e1vio desviou o olhar do pai e fixou o pensamento em Marcela, imaginando como seria a sua vida sem ela. Depois que a conhecera, sentira que tudo mudara e ganhara
\par um significado que antes n\'e3o existia. Marcela o preenchia em todos os sentidos: era meiga, carinhosa, inteligente, amiga e n\'e3o era dada a futilidades como as mo\'e7as
\par de sociedade que conhecia. Era, enfim, tudo o que poderia desejar numa mulher.
\par Ele encarou o pai, que o fitava com ar de compreens\'e3o, e respondeu com voz sumida:
\par -N\'e3o.
\par Com um sorriso que se misturava \'e0s l\'e1grimas, Fl\'e1vio se levantou resoluto, feliz por ter ouvido os conselhos de Justino. Sim, ele realmente amava Marcela e n\'e3o achava
\par que o que ela havia feito era crime ou pecado, algo reprov\'e1vel que n\'e3o merecesse compreens\'e3o. O que o incomodava mesmo era o fato de ela ter
\par escondido aquilo por tanto tempo, de t\'ea-lo enganado e n\'e3o ter confiado nele. Mas, como o pai lhe dissera, ele n\'e3o quis lhe dar a chance de contar a verdade.
\par E quanto ao fato de que ela havia vivido com outra mulher, e da\'ed? Que import\'e2ncia isso poderia ter diante do amor que sentiam um pelo outro? Ele acreditava que Marcela
\par o amava. Ela n\'e3o era aquela interesseira que a m\'e3e dizia. A m\'e3e fizera aquilo tudo s\'f3 para afast\'e1-los, para que ele se casasse com Ariane. Mas ele n\'e3o amava Ariane.
\par Amava Marcela, e era com ela que se casaria.
\par Resolveu passar em casa antes de procurar Marcela. Precisava de um banho, de roupas limpas e descontra\'eddas. Compraria flores e bombons para ela. Faria tudo ao estilo
\par antigo e rom\'e2ntico. Passou na floricultura e comprou um lindo buqu\'ea de rosas vermelhas. Em seguida, foi a uma loja de doces e pediu a caixa de bombons mais finos
\par que havia. Apanhou tudo e foi para casa se aprontar.
\par Assim que entrou em casa, foi surpreendido pelo som de gargalhadas que partiam da sala de estar. A m\'e3e estava recebendo visitas, mas ele n\'e3o estava nem um pouco
\par interessado nelas. Sequer iria cumpriment\'e1-las. Passou em sil\'eancio pela porta da sala, tomando o caminho da escada. A porta dupla de vidro estava apenas encostada,
\par de forma que, ao passar diante dela, p\'f4de ouvir o que diziam l\'e1 dentro.
\par -Essa \'e9 muito boa, Dolores - falava uma mulher com voz esgani\'e7ada, entre gargalhadas sonoras. - Uma l\'e9sbica! Quanto atrevimento!
\par -Ah! Mas o meu Fl\'e1vio colocou-a direitinho no lugar dela. Ela pensou que lhe tomaria dinheiro, mas ele descobriu tudo e a enxotou.
\par -E o que ela fez? - acrescentou outra amiga. - Foi correndo chorar nos bra\'e7os da amante?
\par Nova gargalhada, puxada por Dolores, que respondeu convicta:
\par -Certamente! Correu para o colo de sua mulher de cal\'e7as... ou homem de saias, n\'e3o sei bem...
\par Nesse instante, a porta da sala se escancarou com estrondo, quase quebrando os vidros, e Fl\'e1vio apareceu com o rosto em chamas. N\'e3o disse nada. Fitou uma a uma das
\par presentes com \'f3dio e terminou em Dolores, que o olhava com ar de triunfo. Em seguida,
\par rodou nos calcanhares e saiu, deixando as mulheres em um estado de torpor indescrit\'edvel, envergonhadas com aquela situa\'e7\'e3o.
\par Apenas Dolores n\'e3o sentia nenhum constrangimento. Na verdade, chamara as amigas ali para um ch\'e1 bem na hora em que sabia que Fl\'e1vio chegaria do trabalho, manipulando
\par a conversa de forma que ela se prolongasse at\'e9 a hora em que ele chegasse. Era de seu interesse que ele ouvisse aquilo. As amigas ficaram impressionadas com a hist\'f3ria,
\par e ela as insuflou ainda mais com uma quase histeria, rindo de suas pr\'f3prias observa\'e7\'f5es e
\par levando-as a acompanh\'e1-la nas gargalhadas ensaiadas.
\par ***
\par Em seu quarto, Fl\'e1vio espumava de \'f3dio. N\'e3o podia mais conviver com aquilo. Al\'e9m de tramar contra ele, a m\'e3e ainda o desmoralizava na frente das amigas, fazendo-o
\par passar por idiota. Aquilo j\'e1 era demais. N\'e3o ag\'fcentaria viver naquela casa nem mais um minuto e resolveu partir. Apanhou uma mala grande e come\'e7ou a arrumar suas
\par coisas, at\'e9 que a m\'e3e apareceu, meia hora depois. Entrou sem bater e foi-se postar diante dele, cruzando os bra\'e7os e acompanhando o seu trabalho de fazer a mala.
\par -Aonde \'e9 que pensa que vai? - indagou ela com ar reprovador.
\par -Isso n\'e3o \'e9 da sua conta. E agora, saia, por favor. N\'e3o lhe dei permiss\'e3o para entrar no meu quarto.
\par -A porta n\'e3o estava trancada.
\par -Saia, j\'e1 disse!
\par -Est\'e1 aborrecido comigo porque eu falei a verdade, ao contr\'e1rio do que Marcela fez com voc\'ea?
\par Ele soltou as camisas que dobrava em cima da cama e a fitou com raiva.
\par -Por que fez isso, m\'e3e? O que voc\'ea ganha me humilhando dessa forma?
\par -Humilhando?! Mas se eu s\'f3 o elogiei! Contei a minhas amigas o quanto voc\'ea foi digno e honrado ao despachar aquela vagabunda l\'e9sbica.
\par -Pare de repetir isso! - explodiu ele. - Voc\'ea n\'e3o tinha o direito de falar da minha vida com ningu\'e9m!
\par -Por que ficou t\'e3o aborrecido, Fl\'e1vio? Minhas amigas acharam at\'e9 engra\'e7ado.
\par -Muito engra\'e7ado, n\'e3o \'e9? Devia se envergonhar de fazer fofoca. Ou acha que suas amiguinhas v\'e3o segurar a l\'edngua e n\'e3o v\'e3o falar isso com mais ningu\'e9m?
\par -E da\'ed? Qual o problema? Todo mundo vai felicitar voc\'ea por ter posto aquela aventureira... (ia dizer l\'e9sbica, mas se conteve) no seu devido lugar. A n\'e3o
\par ser, \'e9 claro, que voc\'ea volte para ela. A\'ed, sim, todos v\'e3o falar mal de voc\'ea.
\par Se ela n\'e3o fosse sua m\'e3e, ele a teria estrangulado, tamanho \'f3dio que sentia naquele momento.
\par -\'c9 isso que voc\'ea quer, n\'e3o \'e9? Espalhar essa hist\'f3ria para todo mundo, para que eu fique com medo do falat\'f3rio, para que eu sinta vergonha e nunca mais volte
\par para Marcela.
\par -A l\'edngua da sociedade \'e9 implac\'e1vel, Fl\'e1vio, mas ningu\'e9m vai falar de voc\'ea.
\par -Quer saber de uma coisa, m\'e3e? Eu n\'e3o ligo. Pouco me importam os coment\'e1rios dessa gente hip\'f3crita, f\'fatil e vazia que freq\'fcenta a sociedade.
\par Para Dolores, presa \'e0s apar\'eancias sociais, os coment\'e1rios em seu meio constitu\'edam uma esp\'e9cie de estigma, uma marca vergonhosa que se deveria evitar. Pensou que
\par havia passado esse temor ao filho, mas n\'e3o se surpreendeu muito com a sua rea\'e7\'e3o.
\par -Os coment\'e1rios n\'e3o incomodam voc\'ea - observou ela, em tom malicioso. - Mas deveriam. Quem \'e9 que quer ficar malvisto na sociedade?
\par -Voc\'ea \'e9 asquerosa! - disparou ele, coberto de f\'faria. - Tenho vergonha de ser seu filho.
\par -Pode se envergonhar, desde que n\'e3o me envergonhe.
\par -N\'e3o ligo a m\'ednima se voc\'ea sente vergonha ou n\'e3o.
\par -Pelo visto, voc\'ea j\'e1 perdoou a sua noivinha por ser l\'e9sbica. E por ser interesseira? Perdoou-a tamb\'e9m?
\par -N\'e3o me aborre\'e7a, m\'e3e.
\par -Aposto como, assim que se casar com voc\'ea, ela vai voltar \'e0 sua vid\'ednha de l\'e9sbica, s\'f3 que agora com dinheiro e posi\'e7\'e3o social. Muito conveniente.
\par -Voc\'ea n\'e3o sabe o que diz. Marcela me ama.
\par -Ama? Quem lhe garante isso? Ela ou a outra? Sim, porque duvido que ela e Luciana realmente parem de se encontrar. Essa gente \'e9 assim: come\'e7a no v\'edcio e
\par n\'e3o larga mais.
\par -Marcela n\'e3o \'e9 nenhuma viciada. Viveu a vida dela, e ningu\'e9m tem nada com isso. Muito menos voc\'ea.
\par -Tudo bem. N\'e3o tenho nada com isso. Mas e voc\'ea, n\'e3o tem? Quem lhe garante que Marcela n\'e3o vai cair em tenta\'e7\'e3o outra vez e se atirar nos bra\'e7os de sua namoradinha
\par na primeira oportunidade que tiver? - ela acertou em cheio no seu questionamento, e ele n\'e3o respondeu. - Ser\'e1 que vale a pena arriscar tudo por uma noivinha l\'e9sbica?
\par -Para de cham\'e1-la de l\'e9sbica!
\par -Mas n\'e3o \'e9 isso que ela \'e9?
\par -O que ela \'e9 n\'e3o \'e9 da sua conta, e voc\'ea n\'e3o tem o direito de falar dela. Quem voc\'ea pensa que \'e9? Uma mulher f\'fatil, maquiav\'e9lica, maldosa. Acha que \'e9 melhor
\par do que algu\'e9m?
\par -Pelo menos, n\'e3o sou nenhuma pervertida.
\par -\'c9 pervertida, sim. Perverteu-se em sua moral e em seus valores. - Ele fechou o trinco da mala e lhe lan\'e7ou um olhar faiscante de revolta. - E agora, saia
\par da minha frente. Voc\'ea n\'e3o \'e9 mais minha m\'e3e.
\par Fl\'e1vio a empurrou para o lado e saiu enfurecido. J\'e1 n\'e3o escutava mais nada. Ganhou a rua e entrou em seu carro, completamente transtornado. No banco ao lado, as
\par flores e os bombons que comprara para Marcela jaziam \'e0 espera de um final feliz. Ele os apanhou com f\'faria e os atirou pela janela. Estava t\'e3o irritado com a m\'e3e
\par que aquele n\'e3o lhe parecia o melhor momento para uma reconcilia\'e7\'e3o, pois poderia estourar com Marcela e descontar nela a sua indigna\'e7\'e3o. Ou, o que era pior, podia
\par atirar sobre ela as desconfian\'e7as que nutria, e a m\'e3e, t\'e3o habilmente, conseguira alimentar.
\par Resolveu ir para a casa do pai. Era o \'fanico lugar onde poderia
\par sentir a proximidade e o apoio de uma pessoa amiga.
\par ***
\par N\'e3o era bem o final que Dolores esperava para aquela hist\'f3ria, mas nem tudo estava perdido. Fl\'e1vio esfriaria a cabe\'e7a e voltaria
\par para casa, mas ela precisava se aproveitar de seu desequil\'edbrio para afast\'e1-lo de vez de Marcela. Era hora de Ariane agir, de lhe dar apoio e estar ao seu lado.
\par Ligou para ela e mandou que fosse a sua casa imediatamente.
\par -Lamento muito, Dolores - respondeu Ariane com frieza -, mas n\'e3o tenho nada que fazer a\'ed. Nossa rela\'e7\'e3o acabou.
\par -O que \'e9 isso, menina? - rebateu Dolores com espanto. - E o nosso plano? Vai desistir, logo agora que estamos conseguindo sucesso?
\par -Prossiga com ele voc\'ea. N\'e3o estou mais interessada.
\par -N\'e3o est\'e1 mais interessada em Fl\'e1vio?
\par -N\'e3o.
\par Desligou. N\'e3o suportava mais nem ouvir a voz de Dolores. Lamentava ter-se deixado envolver por suas maldades, mas agora n\'e3o tinha como apagar o que fizera. S\'f3 n\'e3o
\par queria continuar se enredando cada vez mais naquela sordidez. Sentia-se culpada pelo rompimento entre Marcela e Fl\'e1vio, e n\'e3o queria atrair mais culpas para sua
\par consci\'eancia.
\par Dolores ficou parada com o fone na m\'e3o, hesitando entre a f\'faria e a indigna\'e7\'e3o. Pensou em telefonar novamente, mas n\'e3o daria aquela import\'e2ncia toda a Ariane. Seria
\par melhor aguardar, at\'e9 que ela, sufocada pelo amor, voltasse correndo e implorando sua ajuda para conquistar Fl\'e1vio outra vez.
\par Mas n\'e3o era nada disso que Ariane pretendia fazer. Estava t\'e3o arrependida que n\'e3o tencionava mais se envolver nem com Fl\'e1vio, nem com Dolores. S\'f3 o que queria era
\par a sua consci\'eancia tranq\'fcila de volta.
\par Ao meio-dia do dia seguinte, foi postar-se diante da cl\'ednica em que Fl\'e1vio trabalhava. Sabia que ele costumava sair para o almo\'e7o por volta dessa hora e resolveu
\par esperar. Dez minutos depois, ele apareceu em companhia do pai, o que a contrariou um pouco. N\'e3o pretendia envolver Justino na conversa que precisava ter com ele.
\par Mesmo assim, n\'e3o desistiu. Aproximou-se dos dois e cumprimentou-os com um esfor\'e7o para parecer natural.
\par -Ah! Ariane, boa tarde - falou Justino, rapidamente se apercebendo da situa\'e7\'e3o.
\par Fl\'e1vio n\'e3o respondeu, e Ariane falou com uma certa hesita\'e7\'e3o:
\par -Est\'e3o indo almo\'e7ar?
\par -O que voc\'ea acha? - rebateu Fl\'e1vio com rispidez.
\par Ela n\'e3o conseguiu dizer mais nada, j\'e1 pensando em desistir, at\'e9 que Justino interveio:
\par -Estamos indo almo\'e7ar, sim. Gostaria de nos fazer companhia?
\par -Se n\'e3o for inc\'f4modo...
\par O olhar que Fl\'e1vio lhe dirigiu veio t\'e3o carregado de \'f3dio que ela pensou em desistir novamente, mas Justino continuou tomando a dianteira:
\par -Que inc\'f4modo voc\'ea poderia nos causar? Venha conosco, ser\'e1 um prazer.
\par Os dois come\'e7aram a andar pela cal\'e7ada, mas Fl\'e1vio n\'e3o se disp\'f4s a acompanh\'e1-los. Permaneceu parado onde estava, fitando-os com uma certa f\'faria.
\par -Fl\'e1vio, voc\'ea n\'e3o vem? - perguntou Justino.
\par -N\'e3o, podem ir. Perdi a fome.
\par -N\'e3o precisa ficar sem almo\'e7o, Fl\'e1vio - contestou Ariane. - Quem est\'e1 sobrando aqui sou eu. Deixe que eu vou embora.
\par -De jeito nenhum! - objetou Justino. - Fl\'e1vio vai nos acompanhar, ora se vai! - Aproximou-se do filho e cochichou em seu ouvido: - N\'e3o se esque\'e7a de que
\par estou saindo com a m\'e3e dela. Sei que voc\'ea n\'e3o quer a sua companhia, mas fa\'e7a isso por mim.
\par Mesmo contrariado, Fl\'e1vio os acompanhou s\'f3 para n\'e3o recusar o pedido do pai. No restaurante, sentaram-se, e Fl\'e1vio tomou a cadeira o mais distante de Ariane poss\'edvel,
\par embora ficasse de frente para ela. Pediram o almo\'e7o e come\'e7aram a comer em sil\'eancio, que s\'f3 era quebrado por uma observa\'e7\'e3o ou outra que Justino fazia.
\par Justino comia apressado, o que n\'e3o foi percebido nem por Fl\'e1vio, nem por Ariane. De repente, olhou para o rel\'f3gio e soltou uma exclama\'e7\'e3o:
\par -Meu Deus! Como fui me esquecer?
\par -De qu\'ea? - indagou Fl\'e1vio.
\par -Marquei uma consulta de emerg\'eancia hoje, ao meio-dia e meia, e j\'e1 \'e9 quase uma hora. - Fl\'e1vio olhou-o surpreso, mas Justino prosseguiu: -Voc\'eas v\'e3o ter que
\par me desculpar; tenho que ir.
\par -Mas, pai, voc\'ea n\'e3o pode - rebateu Fl\'e1vio perplexo.
\par -Desculpe-me, filho, mas preciso correr. Acerte tudo a\'ed, sim? E n\'e3o se esque\'e7a de levar Ariane em casa depois.
\par Rapidamente, Justino deu um beijo na face de Ariane e outro na cabe\'e7a do filho, saindo apressado do restaurante. N\'e3o tinha cliente nenhum para atender de emerg\'eancia,
\par mas sua sensibilidade dizia que Ariane tinha algo de importante para conversar com o filho, e ele estava disposto a ajudar. N\'e3o s\'f3 pela mo\'e7a, mas por Anita tamb\'e9m,
\par que estava muito preocupada com o abatimento da filha por causa do que fizera a Fl\'e1vio. Ela lhe contara sobre o arrependimento de Ariane, e ele n\'e3o achava justo
\par que ela sofresse tanto por causa de uma irresponsabilidade da qual estava sinceramente arrependida.
\par Fl\'e1vio cruzou os talheres em cima do prato e virou o rosto para o outro lado. Tinha que esperar Ariane terminar de comer, mas n\'e3o estava disposto a lhe dar motivos
\par para conversa. Ela, por sua vez, comia lentamente, de olhos baixos, tentando ganhar tempo e coragem para falar. Ficaram em sil\'eancio por quase quinze minutos, e a
\par comida no prato de Ariane j\'e1 havia esfriado porque fazia um bom tempo que ela n\'e3o levava o garfo \'e0 boca.
\par -J\'e1 acabou? - perguntou Fl\'e1vio por fim, em tom bastante irritado.
\par -Estou acabando - respondeu ela, o rosto corado e em fogo.
\par -Ent\'e3o ande logo. Tenho um paciente para atender daqui a pouco.
\par Ela deu uma garfada na comida e come\'e7ou a chorar de mansinho, sentindo a carne mais salgada do que realmente estava. Fl\'e1vio n\'e3o percebeu, ou fingiu n\'e3o perceber,
\par que ela chorava e consultava o rel\'f3gio a todo instante. At\'e9 que, em dado momento, seus olhares se cruzaram, e ela sustentou o olhar dele, deixando que as l\'e1grimas
\par descessem abundantes pelo seu rosto.
\par - Eu sinto muito... - balbuciou ela, entre solu\'e7os.
\par Ariane soltou o garfo em cima do prato e escondeu o rosto entre as m\'e3os, chorando e solu\'e7ando sem parar, para desespero de Fl\'e1vio. Algumas pessoas no restaurante
\par se viraram para olhar, e ele se viu obrigado a dizer alguma coisa.
\par -Sente muito pelo qu\'ea?
\par -Por tudo. Pelo mal que lhes causei... a voc\'ea e a Marcela.
\par -N\'e3o acha que isso \'e9 um pouco tarde agora?
\par -N\'e3o sei. Nunca \'e9 tarde quando se ama.
\par -A quem voc\'ea ama, Ariane? A mim? Duvido muito. E mesmo que me ame, essa n\'e3o foi a melhor maneira de me dizer, voc\'ea n\'e3o acha?
\par -N\'e3o. Mas n\'e3o \'e9 de mim que estou falando. Refiro-me a voc\'ea e a Marcela.
\par -Por que? Em que lhe interessa o nosso amor? Voc\'ea n\'e3o fez tudo para nos destruir?
\par -Se quisesse destru\'ed-los, n\'e3o teria ligado para voc\'ea no dia em que Marcela tentou se matar novamente.
\par -\'c9 verdade - refletiu ele, por instantes. - Mas tenho certeza de que voc\'ea s\'f3 fez isso porque n\'e3o queria, na sua consci\'eancia, o peso de um suic\'eddio.
\par -N\'e3o exatamente. Fiz porque gosto de Marcela e n\'e3o queria que nada de mau lhe acontecesse.
\par -Estranho voc\'ea dizer isso, n\'e3o \'e9, Ariane? Depois de tudo o que fez.
\par -Sei que agi mal, mas n\'e3o fui eu que os separei.
\par -N\'e3o. Foi a sua intriga.
\par -Eu n\'e3o contei nada a ningu\'e9m. Nem a voc\'ea, nem a sua m\'e3e.
\par -Voc\'ea e minha m\'e3e tramaram tudo. S\'e3o iguaizinhas e s\'f3 o que merecem \'e9 o meu desprezo.
\par -N\'e3o quero me desculpar acusando sua m\'e3e, e n\'e3o foi para isso que vim procurar voc\'ea. N\'e3o foi para implorar que voc\'ea me perdoe nem que volte para mim, porque
\par isso, j\'e1 n\'e3o quero mais.
\par -N\'e3o? E por que foi que veio me procurar ent\'e3o?
\par -Apenas para me explicar.
\par -N\'e3o precisa.
\par -Preciso, sim. Voc\'ea tem todo o direito de me odiar, se quiser, mas ao menos me d\'ea a chance de me explicar.
\par -Por que isso \'e9 t\'e3o importante para voc\'ea?
\par -Porque \'e9. Sabe, Fl\'e1vio, desde que voc\'ea me deixou, eu...
\par -Eu n\'e3o deixei voc\'ea, Ariane. N\'f3s nunca tivemos nada.
\par -Tudo bem, que seja. Mas eu pensei que tiv\'e9ssemos. Estava apaixonada por voc\'ea e me deixei iludir pelos meus sonhos, achando que \'edamos nos casar. S\'f3 que voc\'ea
\par come\'e7ou a esfriar comigo e
\par deixou de ir \'e0 minha casa. Depois, apareceu com Marcela, que ningu\'e9m sabia de onde tinha surgido. Senti-me tra\'edda, fiquei desesperada. Queria voc\'ea a qualquer custo.
\par - Ela o olhou com uma certa m\'e1goa e prosseguiu: - Na \'e9poca, era ing\'eanua e imatura, e acreditei que poderia t\'ea-lo de volta simplesmente afastando Marcela de seu caminho.
\par Sua m\'e3e me prometeu ajuda e me convenceu a tomar parte no plano para separar voc\'eas dois. Eu devia fazer amizade com Marcela e descobrir algo em seu passado que denegrisse
\par a sua imagem diante de seus olhos. Sua m\'e3e tinha certeza de que Marcela escondia algo, e eu me dispus a descobrir. Sob um falso nome, tornei-me amiga de Marcela
\par e passei a conviver com ela. Mas o que eu n\'e3o esperava era que me afei\'e7oasse a ela...
\par -N\'e3o acredito nisso. Voc\'ea? Afei\'e7oando-se a sua rival?
\par -Ela, ent\'e3o, j\'e1 estava deixando de ser minha rival. Descobri em Marcela uma pessoa t\'e3o doce, meiga e amiga, que comecei a refletir no que estava fazendo
\par e percebi que a amizade que sentia por ela valia mais do que o meu desejo de ter voc\'ea de volta. Eu nunca tive amigos, e Marcela me ensinou o que \'e9 ser amiga de verdade.
\par Aos poucos, fui desistindo do plano, mas tinha a sua m\'e3e me pressionando do outro lado. N\'e3o quero acusar Dolores, porque eu me deixei envolver deliberadamente. Hoje
\par estou pronta para assumir a minha parcela de responsabilidade nessa hist\'f3ria toda e, embora n\'e3o queira acus\'e1-la de nada, n\'e3o h\'e1 como lhe contar o que aconteceu sem
\par tocar no nome dela.
\par -Sei do que minha m\'e3e \'e9 capaz e sei o que ela fez. Voc\'ea n\'e3o vai me contar nenhuma novidade.
\par -N\'e3o quero que pense que estou tentando me justificar em cima do comportamento dela.
\par -N\'e3o estou pensando nada.
\par -Muito bem. Pressionada por ela, contei-lhe algumas particularidades da vida de Marcela, mas n\'e3o todas. Ela sabia de Luciana, mas eu nunca lhe disse que
\par elas haviam vivido juntas.
\par -E como foi que minha m\'e3e descobriu?
\par -Atrav\'e9s de Cec\'edlia, a mo\'e7a que esfaqueou Luciana. Sua m\'e3e descobriu onde ela estava presa e conseguiu as informa\'e7\'f5es. Depois chantageou Marcela que, com
\par medo do que voc\'ea faria
\par se descobrisse, pensou at\'e9 mesmo em se matar. Da\'ed em diante, acho que voc\'ea j\'e1 conhece a hist\'f3ria.
\par -J\'e1. N\'e3o precisa mais perder o seu tempo para me contar.
\par -Por que est\'e1 me tratando assim?
\par -Conhe\'e7o as suas artimanhas.
\par -N\'e3o o amo mais, Fl\'e1vio...
\par Aquela conversa o estava deixando aborrecido, e ele perguntou de repente:
\par -J\'e1 acabou de comer?
\par Ela percebeu que havia chegado ao seu limite e n\'e3o insistiu. Balan\'e7ou a cabe\'e7a afirmativamente, e ele pediu a conta. Pagou-a, e os dois sa\'edram.
\par -N\'e3o precisa me levar em casa - disse ela, n\'e3o desejando mais a sua companhia.
\par -N\'e3o poderia mesmo. Tenho muito trabalho me esperando.
\par Despediram-se, cada qual tomando o seu caminho. Ariane
\par ia se questionando sobre a efic\'e1cia daquela conversa, e Fl\'e1vio pensava em Marcela. O que Ariane dissera n\'e3o o influenciaria em nada. Ele j\'e1 tinha mesmo se decidido
\par a procur\'e1-la e s\'f3 n\'e3o o fizera porque a conversa com a m\'e3e, na v\'e9spera, o deixara muito irritado, e ele n\'e3o queria encontrar Marcela com \'f3dio no cora\'e7\'e3o. Preferia
\par se acalmar e se preparar para um encontro amistoso e cheio de amor.
\par Reconhecia, contudo, que Ariane tivera coragem. O pai j\'e1 havia lhe falado do seu arrependimento, mas ele n\'e3o lhe dera import\'e2ncia. N\'e3o fosse a raiva que sentia,
\par a teria at\'e9 admirado por sua sinceridade. Mas ela agira muito mal, e ele n\'e3o sabia se conseguiria perdo\'e1-la. N\'e3o sabia nem se deveria tentar.
\par Luciana voltou ao trabalho duas semanas depois de retornar do coma. Passou um tempo em casa de Ma\'edsa, se recuperando, at\'e9 que a ferida sarou por completo, e ela
\par p\'f4de retomar suas atividades. Depois desse epis\'f3dio, parecia mudada. Continuava a mesma mulher forte e decidida de antes, mas uma certa maturidade indescrit\'edvel
\par havia marcado o seu semblante. Come\'e7ou a reavaliar sua vida e concluiu que precisava de experi\'eancias que lhe ensinassem o que fosse, verdadeiramente, o amor.
\par -J\'e1 n\'e3o tenho mais idade para viver aventuras inconseq\'fcentes - disse ela a Ma\'edsa. - Preciso de algo novo, bom e duradouro em minha vida.
\par -N\'e3o seja t\'e3o r\'edgida - censurou Ma\'edsa. - Seu relacionamento com Marcela foi bastante verdadeiro, e voc\'eas s\'f3 terminaram porque o amor acabou.
\par -N\'e3o \'e9 a isso que me refiro. N\'e3o sei explicar, Ma\'edsa. Sinto que falta algo na minha vida, mas n\'e3o sei dizer o que \'e9.
\par -N\'e3o \'e9 um amor?
\par -N\'e3o.
\par -Dinheiro n\'e3o deve ser. Estamos indo bem financeiramente. Voc\'ea trabalha no que gosta. Ser\'e1 que \'e9 um carro ou casa pr\'f3pria?
\par -N\'e3o \'e9 nada disso. N\'e3o s\'e3o bens materiais.
\par -Mas ent\'e3o, o que \'e9?
\par -J\'e1 disse que n\'e3o sei. S\'f3 sei que sinto um vazio indefin\'edvel
\par dentro do peito. Preciso de um objetivo novo e estimulante, que me encha de amor e prazer.
\par -Bem, n\'e3o sei o que pode ser isso. Quando descobrir, me avise.
\par Naquela noite, Luciana foi dormir ainda com esses pensamentos, e Rani lhe apareceu novamente em sonhos. J\'e1 mais acostumada \'e0 presen\'e7a do esp\'edrito, com quem agora
\par come\'e7ava at\'e9 a simpatizar, Luciana logo se desprendeu do corpo f\'edsico e foi ao seu encontro.
\par -Ouvi a sua conversa com Ma\'edsa hoje \'e0 tarde - comentou Rani.
\par -Ouviu? E da\'ed?
\par -Sua alma anseia por novas experi\'eancias, algo que lhe ensine o valor da vida e do amor.
\par -Talvez. Mas n\'e3o posso amar mais ningu\'e9m.
\par -Voc\'ea fala de amor f\'edsico. Esse voc\'ea j\'e1 aprendeu. Falta-lhe a ess\'eancia do que \'e9 divino, do amor verdadeiro que n\'e3o se acaba e n\'e3o esmorece nunca.
\par -Como assim?
\par -J\'e1 pensou em ser m\'e3e?
\par -Eu?! N\'e3o sei... Adoro crian\'e7as, mas n\'e3o me vejo tendo rela\'e7\'f5es com nenhum homem.
\par Rani sorriu enigmaticamente e retrucou em tom de quem conhecia algum mist\'e9rio:
\par -J\'e1 pensou em adotar uma crian\'e7a?
\par -N\'e3o, nunca. Para falar a verdade, por mais que goste de crian\'e7as, tamb\'e9m n\'e3o consigo me ver como m\'e3e.
\par -Isso \'e9 porque voc\'ea n\'e3o viu ainda a crian\'e7a.
\par -Que crian\'e7a? - tornou ela surpresa.
\par -Em breve, voc\'ea vai saber. Mas agora h\'e1 outra coisa que preciso lhe perguntar: como vai o seu sentimento em rela\'e7\'e3o a Cec\'edlia?
\par -Bem, n\'e3o quero mais assunto com ela.
\par -\'c9 compreens\'edvel. Mas voc\'ea a odeia?
\par Depois de pensar alguns instantes, Luciana respondeu convicta:
\par -N\'e3o. N\'e3o pretendo lhe dar a chance de tornar a fazer o que fez comigo, mas n\'e3o a odeio. Acho at\'e9 que compreendo os seus motivos.
\par -Voc\'ea tirou a vida de Cec\'edlia em outra vida, lembra-se?
\par -\'c9 por isso que digo que a compreendo. Deve ser dif\'edcil para a alma esquecer uma coisa assim.
\par -Pois \'e9. Cec\'edlia n\'e3o se esqueceu, assim como o pai dela tamb\'e9m n\'e3o.
\par -O que o pai dela tem a ver com isso?
\par -Muita coisa. Ele nunca desconfiou de voc\'ea em vida, mas, depois que desencarnou e descobriu que voc\'ea havia matado a sua filha, ficou com muito \'f3dio de voc\'ea.
\par \'d3dio esse que precisa ser dissolvido.
\par -Como?
\par -A melhor forma de dissolver \'f3dios e ressentimentos s\'e3o os la\'e7os de fam\'edlia.
\par -La\'e7os de fam\'edlia? Mas ele n\'e3o \'e9 da minha fam\'edlia... - ela se calou, temerosa, e come\'e7ou a gaguejar: - N\'e3o pode ser... n\'e3o o que estou pensando...
\par -Em que est\'e1 pensando?
\par -O estupro... - calou-se novamente, j\'e1 sentindo l\'e1grimas nos olhos. - Mas eu fiquei menstruada... Por favor, Rani, diga que n\'e3o \'e9 isso. Diga que n\'e3o estou
\par gr\'e1vida daquele miser\'e1vel que me estuprou.
\par -N\'e3o posso dizer nada - objetou Rani, fechando o cenho de repente. - Mas em breve voc\'ea vai descobrir. S\'f3 lhe pe\'e7o para ter equil\'edbrio e pondera\'e7\'e3o. Procure
\par se lembrar de tudo isso que falamos. O pai de Cec\'edlia precisa de uma nova chance, e chegou a hora de voc\'ea provar que n\'e3o guarda rancor.
\par -Mas n\'e3o posso aceitar ser m\'e3e de um filho assim!
\par -Ningu\'e9m est\'e1 falando isso.
\par -Voc\'ea est\'e1 sugerindo.
\par -N\'e3o estou, n\'e3o. Estou apenas lhe pedindo para refletir.
\par -Voc\'ea est\'e1 me pedindo demais! Nenhuma mulher pode amar um filho gerado num ato de viol\'eancia!
\par -Deus nunca pede demais. Nada que voc\'ea n\'e3o possa suportar.
\par -Mas, mas...
\par Rani n\'e3o lhe deu mais ouvidos. Abra\'e7ou-a com ternura e partiu. No dia seguinte, quando Luciana acordou, n\'e3o se lembrava do sonho da noite anterior, mas achava que
\par alguma situa\'e7\'e3o surpreendente e complicada estava por vir. Tomou o caf\'e9 em sil\'eancio e,
\par ao final, um enjoo repentino lhe causou \'e2nsia de v\'f4mito. Correu para o banheiro e colocou tudo para fora, arriando no ch\'e3o com os joelhos tr\'eamulos. O que ser\'e1 que
\par teria comido?
\par De repente, a id\'e9ia de gravidez brotou em sua mente, e ela sufocou um grito. Seria poss\'edvel? Quando estava no hospital, fora examinada pela sua ginecologista particular
\par e fizera exames para saber se havia contra\'eddo alguma doen\'e7a, mas os resultados haviam sido todos negativos. S\'f3 n\'e3o fizera nenhum teste de gravidez, porque isso nem
\par lhe passava pela cabe\'e7a.
\par Estava apavorada ante a id\'e9ia de estar gr\'e1vida, ainda mais daquele canalha. Se estivesse, faria o aborto. Era contra o aborto, mas n\'e3o via outra sa\'edda. Se tivesse
\par aquele filho, seria um desastre. Reconhecia que o beb\'ea n\'e3o tinha culpa de nada, mas ela n\'e3o podia se impor um sentimento que sabia que jamais seria capaz de sentir.
\par N\'e3o seria justo nem com ela, nem com a crian\'e7a.
\par Lembrava-se de haver menstruado naquele m\'eas, mas isso n\'e3o significava nada. Sabia de mulheres que haviam ficado menstru-adas e, ainda assim, estavam gr\'e1vidas, provavelmente,
\par fora isso que acontecera com ela. N\'e3o. Decididamente, precisava abortar. Arrancar de suas entranhas aquele ser indesejado e odioso.
\par Mas aquele ser indesejado era um beb\'ea inocente que nada sabia sobre o car\'e1ter do pai e nada tinha de odioso. Nasceria livre de toda aquela sujeira, sem sequer desconfiar
\par de sua proced\'eancia. Nesse momento, algo das palavras de Rani lhe veio \'e0 mente, e ela come\'e7ou a pensar na crian\'e7a como um ser inocente e indefeso que, como todos
\par os seres, s\'f3 queria viver. Ser\'e1 que ela teria o direito de privar uma pessoa do seu direito de nascer, cortando-lhe as esperan\'e7as de vida antes mesmo de ver as primeiras
\par luzes do mundo?
\par N\'e3o, pensando melhor, n\'e3o faria o aborto. Era contra tudo aquilo em que acreditava como mais sagrado na vida, que era a pr\'f3pria vida. O mais correto seria d\'e1-lo
\par para ado\'e7\'e3o. Sim, faria isso. Deixaria que nascesse e o mandaria para ado\'e7\'e3o antes mesmo de v\'ea-lo. Nem queria tomar conhecimento de sua exist\'eancia. Limitaria sua
\par participa\'e7\'e3o at\'e9 o parto e depois o entregaria a outras pessoas. Havia muitos casais sem filhos que dariam tudo por um beb\'ea forte e saud\'e1vel, que era como ela esperava
\par ger\'e1-lo
\par em seu ventre. Ao menos dessa parte se encarregaria. Daria a ele o sustento da vida intrauterina, e depois ele, ou ela, poderia se arranjar com outras pessoas e
\par uma verdadeira fam\'edlia.
\par E ningu\'e9m poderia culp\'e1-la por isso. Ningu\'e9m.
\par Chegou ao trabalho com ar cansado, e Ma\'edsa j\'e1 estava de sa\'edda.
\par -Precisamos contratar outra secret\'e1ria... - queixou-se Ma\'edsa, mas, notando o abatimento de Luciana, indagou aflita: - O que voc\'ea tem?
\par Luciana olhou-a com um quase desespero. Precisava dividir aquilo com algu\'e9m ou morreria asfixiada na pr\'f3pria dor.
\par -Voc\'ea nem pode imaginar. Aconteceu algo terr\'edvel.
\par -O qu\'ea?
\par -Acho que estou gr\'e1vida.
\par -Gr\'e1vida? Daquele bandido que a estuprou?
\par -S\'f3 pode ser dele, Ma\'edsa. N\'e3o transei com nenhum homem.
\par -Meu Deus! E agora?
\par -N\'e3o sei.
\par -Voc\'ea vai abortar?
\par -Acho que n\'e3o. N\'e3o tenho coragem.
\par -Vai ter a crian\'e7a?
\par -Vou. E vou d\'e1-la para ado\'e7\'e3o.
\par -\'c9, talvez seja o melhor. Abortar \'e9 sempre um risco, nunca se sabe. Ainda mais nessas cl\'ednicas clandestinas, com esses carniceiros.
\par -N\'e3o \'e9 por isso, Ma\'edsa. Estou pensando na crian\'e7a. Ela tem o direito de viver.
\par -Tem. Mas voc\'ea tamb\'e9m tem o seu direito.
\par -Desde quando voc\'ea \'e9 a favor do aborto?
\par -N\'e3o sou. Mas no seu caso... A lei lhe d\'e1 esse direito, sabia? N\'e3o sei qual o procedimento para isso, mas sugiro que voc\'ea procure um advogado.
\par -N\'e3o vou abortar, j\'e1 disse. Vou ter o beb\'ea e d\'e1-lo para ado\'e7\'e3o.
\par -Tudo bem, se \'e9 o que voc\'ea quer. No fundo, n\'e3o sou contra. Acho at\'e9 que \'e9 melhor mesmo. Voc\'ea tem raz\'e3o quando diz que ele tem direito \'e0 vida. Afinal de contas,
\par \'e9 um inocente e n\'e3o tem culpa das maldades do pai. Pensando bem, por que voc\'ea n\'e3o fica com ele?
\par -Ficar com ele?
\par -J\'e1 que vai passar pelos problemas da gravidez e sentir as dores do parto, por que n\'e3o fica com ele logo de uma vez?
\par -Voc\'ea muda de id\'e9ia r\'e1pido, hein? H\'e1 pouco achava que eu devia abortar. Agora me aconselha a ficar com ele.
\par -Pensei melhor. Tamb\'e9m n\'e3o sou a favor do aborto e, se fosse eu, n\'e3o teria coragem.
\par -Mas voc\'ea n\'e3o ficaria com ele.
\par -N\'e3o sei. Talvez ficasse. Imagine-se segurando nos bra\'e7os um beb\'ea lindo e rosado. Voc\'ea vai se apaixonar por ele... ou ela. Todo mundo se apaixona por beb\'eas.
\par -\'c9 por isso que n\'e3o pretendo nem colocar os olhos nele.
\par O primeiro paciente de Luciana chegou, e ela teve que encerrar
\par a conversa.
\par -Precisamos de uma nova secret\'e1ria - observou Ma\'edsa novamente.
\par -E eu preciso fazer o teste antes - sussurrou Luciana.
\par -Amanh\'e3 irei com voc\'ea.
\par Luciana agradeceu com um sorriso e entrou no consult\'f3rio com o paciente. Durante o resto do dia, procurou n\'e3o pensar no assunto, embora sentisse que algo estava
\par prestes a mudar sua
\par vida. E ela bem sabia o que era: um beb\'ea.
\par ***
\par A primeira coisa que Luciana fez ao acordar foi ir ao laborat\'f3rio fazer o teste. Ma\'edsa chegou cedo a sua casa e foi com ela. O resultado s\'f3 ficaria pronto no dia
\par seguinte, e ela teve que aguardar com uma estranha ansiedade. Queria muito que o resultado desse negativo, mas a id\'e9ia de se tornar m\'e3e lhe deu uma nova perspectiva
\par de vida. N\'e3o desejava estar gr\'e1vida naquele momento, mas quem sabe, mais tarde, n\'e3o encontrasse um homem disposto a transar com ela apenas para lhe dar um filho
\par e nunca mais tornar a v\'ea-la? Ela poderia criar o beb\'ea sozinha ou com a companheira que escolhesse para dividir a sua vida. Quem sabe um filho n\'e3o seria o algo mais
\par que lhe faltava?
\par No dia seguinte, as duas foram buscar o resultado do exame.
\par Luciana abriu-o avidamente e leu apressada, seu rosto n\'e3o demonstrava nenhuma emo\'e7\'e3o.
\par -Ent\'e3o? - perguntou Ma\'edsa, ansiosa. - O que foi que deu?
\par -Negativo.
\par -Gra\'e7as a Deus!
\par -\'c9, gra\'e7as a Deus.
\par Ela estava aliviada e, ao mesmo tempo, decepcionada. O que se lembrava do sonho com Rani n\'e3o era suficiente para que insistisse na possibilidade de gravidez e num
\par poss\'edvel erro no resultado do teste. Por mais que se recordasse da indiana, n\'e3o dava cr\'e9dito a suas palavras e via naquele sonho fragmentado apenas um sonho idiota,
\par que n\'e3o dizia nada. N\'e3o dava import\'e2ncia ao alerta da maternidade.
\par Ma\'edsa seguiu para o trabalho, e Luciana foi resolver outros assuntos. O dia transcorreu normalmente, at\'e9 que a noite chegou, e ela voltou para casa. Havia deixado
\par de lado aquela hist\'f3ria de maternidade e beb\'eas, e estava caminhando pela rua quando um carro parou a seu lado. Instintivamente, ela se afastou, temendo que fosse
\par algum tarado ou coisa pior, e j\'e1 ia se preparando para correr quando ouviu uma voz conhecida chamar o seu nome:
\par -Luciana!
\par Ela se voltou espantada e julgou reconhecer o rosto que a mirava pela janela do autom\'f3vel.
\par -Fl\'e1vio?
\par -Eu mesmo. Quer uma carona?
\par -N\'e3o, obrigada. Moro logo ali.
\par Luciana sabia o que havia acontecido entre ele e Marcela, e ficou se perguntando o que ele poderia querer com ela. \'c9 claro que n\'e3o estava ali para lhe oferecer carona,
\par parecendo muito mais que a estava esperando.
\par -Ser\'e1 que eu poderia falar com voc\'ea? - tornou ele, um tanto hesitante.
\par Ela estranhou aquele pedido, mas n\'e3o quis recusar. Devia ser importante, ou ele n\'e3o a procuraria assim, uma quase estranha que fora amante de sua noiva.
\par -\'c9 claro - respondeu ela, curiosa. - Vamos at\'e9 a minha casa.
\par Ela entrou no carro e indicou o pr\'e9dio. Fl\'e1vio estacionou em
\par frente, e os dois saltaram em sil\'eancio, Luciana tentando adivinhar por que ele a procurara. J\'e1 no apartamento, ela fez com que ele se sentasse e se sentou diante
\par dele, fitando-o com curiosidade e expectativa.
\par -Muito bonito o seu apartamento - observou ele, olhando ao redor.
\par -Obrigada. Quer beber alguma coisa?
\par -N\'e3o precisa se incomodar. N\'e3o pretendo me demorar, porque sei que voc\'ea teve um dia cheio e deve estar louca para descansar. - Ela n\'e3o disse nada, at\'e9 que
\par ele come\'e7ou a dizer o motivo por que estava ali. - Desculpe-me por vir procur\'e1-la assim t\'e3o de repente... Na verdade, estava esperando voc\'ea chegar.
\par -Por que?
\par -Gostaria de falar com voc\'ea a respeito de Marcela - ela aguardou, e ele prosseguiu: - N\'e3o sei se voc\'ea sabe que eu j\'e1 sei de tudo. - Ela assentiu. - Marcela
\par acabou me contando. Gostaria de ouvir a sua vers\'e3o. O que leva uma mo\'e7a bonita, inteligente e culta a tomar um rumo desse?
\par -O que o levou a ser m\'e9dico?
\par Ele se surpreendeu, mas respondeu com uma certa vergonha:
\par -Eu sempre gostei da medicina.
\par -E n\'f3s sempre gostamos de mulheres.
\par A resposta foi t\'e3o direta que o chocou.
\par -Mas... por qu\'ea...? - balbuciou. - N\'e3o me parece... natural...
\par -Tamb\'e9m n\'e3o me parece natural que algu\'e9m que adore medicina estude direito s\'f3 porque o pai assim quer.
\par -N\'e3o estou entendendo.
\par -A escolha da profiss\'e3o deve decorrer da voca\'e7\'e3o, voc\'ea n\'e3o acha? Cada um tem uma prefer\'eancia, e ningu\'e9m pode interferir nisso. \'c9 natural, faz parte da pessoa.
\par Quando ela segue um outro rumo, porque algu\'e9m assim determinou, na verdade, est\'e1 indo contra a sua natureza, est\'e1 se for\'e7ando a ser algu\'e9m que n\'e3o \'e9. N\'e3o \'e9 assim?
\par - Ele concordou com a cabe\'e7a. - Pois com o sexo \'e9 a mesma coisa. Cada um tem a sua prefer\'eancia e, quando se for\'e7a a seguir aquela que n\'e3o \'e9 a sua, mas que \'e9 a \'fanica
\par aceita pela fam\'edlia ou a sociedade, est\'e1 tamb\'e9m for\'e7ando a sua natureza e se impondo ser algu\'e9m que n\'e3o \'e9. Vai se sentir
\par frustrado, incompleto e infeliz, assim como os profissionais que optam por carreiras que n\'e3o s\'e3o de seu desejo, mas agradam aos pais, ou s\'f3 lhe d\'e3o dinheiro. Se
\par falta amor no que se faz ou se \'e9, n\'e3o pode haver felicidade. S\'f3 frustra\'e7\'e3o e insatisfa\'e7\'e3o.
\par -Entendo... - rebateu ele, admirado. - E \'e9 da sua natureza, e de Marcela, gostar de mulheres.
\par -S\'f3 posso falar por mim, embora essa seja uma conversa que n\'e3o me agrade muito, mexe com a minha privacidade e viola a minha intimidade.
\par -Sinto muito... - balbuciou ele envergonhado. - Na verdade, n\'e3o vim procur\'e1-la para saber de sua intimidade. Vim aqui porque gostaria de conhec\'ea-la melhor.
\par -Por que?
\par -Voc\'ea foi... - calou-se, sem achar a palavra certa, at\'e9 que emendou encabulado: - namorada de Marcela. Ela foi muito apaixonada por voc\'ea... n\'e3o foi?
\par -Foi. Mas n\'e3o \'e9 mais, se \'e9 o que est\'e1 tentando descobrir.
\par -Tem certeza disso?
\par -Por que n\'e3o pergunta a ela? J\'e1 que o sentimento lhe pertence, ningu\'e9m melhor do que ela para responder.
\par -N\'e3o me leve a mal, Luciana. N\'e3o vim aqui \'e0s escondidas para descobrir coisas sobre Marcela. A verdade \'e9 que estou confuso, com medo. Eu a amo muito e n\'e3o
\par gostaria de perd\'ea-la.
\par -J\'e1 lhe disse isso?
\par -Ainda n\'e3o.
\par -Pois se a ama, devia estar falando com ela, n\'e3o comigo.
\par -Tem raz\'e3o. \'c9 justamente o que pretendo fazer, mas n\'e3o sem antes ter a certeza de que ela me ama de verdade, e n\'e3o a voc\'ea.
\par -J\'e1 entendi. Pensa que Marcela se afei\'e7oou a voc\'ea para suprir a minha falta. \'c9 isso?
\par -De uma certa forma, sim.
\par -A certeza que voc\'ea quer, ningu\'e9m pode lhe dar. Nem ela. S\'f3 o tempo.
\par -Voc\'ea ainda a ama?
\par -Amo, embora n\'e3o da maneira como voc\'ea pensa. Hoje somos mais como irm\'e3s. Passamos muita coisa juntas, lutamos para sobreviver na cidade grande e ser algu\'e9m
\par na vida. Ambas
\par conseguimos e somos pessoas respeit\'e1veis, temos nossas profiss\'f5es, nossos empregos. Pagamos nossas contas como todo mundo, damos nossa contribui\'e7\'e3o \'e0 sociedade.
\par Por que precisamos ser tratadas como marginais?
\par -N\'e3o \'e9 isso. N\'e3o creio que voc\'eas sejam marginais.
\par -No entanto, terminou com ela s\'f3 porque soube que ela viveu comigo no passado.
\par -Eu me senti tra\'eddo. Ela devia ter me contado desde o in\'edcio.
\par -Nisso, voc\'ea tem raz\'e3o. N\'e3o foram poucas as vezes que a aconselhei. Mas ela teve medo, e voc\'ea devia entender isso.
\par -Agora entendo. E, como disse, pretendo procur\'e1-la e me reconciliar com ela. S\'f3 gostaria de conhecer voc\'ea...
\par -E ter a certeza de que eu n\'e3o represento nenhuma amea\'e7a.
\par -Perdoe-me, mas \'e9 mais ou menos isso, sim. Amo Marcela demais, contudo, n\'e3o quero sofrer.
\par -Entendo. Bem, voc\'ea j\'e1 me conheceu. Espero que esteja satisfeito e isso lhe d\'ea um pouco da seguran\'e7a que procura.
\par -Deu. Voc\'ea me ajudou bastante. Obrigado.
\par Ele j\'e1 ia saindo, mas ela o interrompeu:
\par -Se pretende procur\'e1-la, n\'e3o deixe para amanh\'e3, pois ela n\'e3o vai estar em casa. Est\'e1 procurando apartamento para se mudar.
\par -Mudar?
\par -Sim, mudar. Sei que amanh\'e3 vai passar o dia na rua, olhando uns apartamentos, e me pediu para ir ver um com ela. Vou lhe dar o endere\'e7o e direi que n\'e3o
\par poderei ir. O resto \'e9 com voc\'ea.
\par -E se ela n\'e3o for?
\par -Ela vai.
\par Luciana sabia que, para Marcela, seu apartamento passara a ter uma atmosfera pesada, fazendo-a sentir-se sufocada e triste. Ali, Marcela vivera anos de felicidade
\par ao lado de Luciana, e fora ali tamb\'e9m que, por causa dela, tentara se matar. Naquele lugar tivera momentos inesquec\'edveis com Fl\'e1vio e, novamente ali, desejara mais
\par do que nunca morrer quando soube que o perderia. N\'e3o podia mais viver entre aquelas paredes carregadas de lembran\'e7as, umas felizes, outras desesperadoras, que insistiam
\par em jogar sua casca de tristeza sobre o que ela, um dia, conhecera como felicidade.
\par Estava na hora de se mudar, e ela resolvera entregar o im\'f3vel. Avisara o locador de sua inten\'e7\'e3o e sa\'edra \'e0 procura de um novo lugar para morar, longe de todas aquelas
\par lembran\'e7as, onde pudesse come\'e7ar de novo sem a sombra marcante e assustadora do passado. Conseguira juntar um bom dinheiro, com o qual poderia dar entrada num pequeno
\par apartamento. Come\'e7ara a procurar no jornal e passava os dias visitando apartamentos em v\'e1rios bairros da cidade. N\'e3o fazia quest\'e3o de nenhum em
\par especial. Desde que pudesse ter algo seu, tanto fazia onde fosse.
\par ***
\par Fl\'e1vio anotou o endere\'e7o e o hor\'e1rio em que Luciana disse que se encontrariam com o corretor para visitar um apartamento. Chegou meia hora mais cedo, e n\'e3o havia
\par ningu\'e9m. Estacionou o carro perto do pr\'e9dio e ficou esperando. Vinte e cinco minutos depois, Marcela chegou com o corretor e entrou no edif\'edcio, sem nem se dar conta
\par da sua presen\'e7a. Ele esperou at\'e9 que ela entrasse e saltou do carro, subindo atr\'e1s dela.
\par Como era de se esperar, a porta n\'e3o estava trancada, e o corretor percorria os pequenos c\'f4modos com ela, mostrando-lhe tudo. Eles estavam de costas, apreciando
\par a vista da janela da sala, que dava para um morro ainda verdinho, quando ele se aproximou por tr\'e1s e falou:
\par -N\'e3o acha um pouco pequeno para n\'f3s?
\par Os dois se voltaram assustados, e Marcela ficou muda, n\'e3o sabendo se chorava de emo\'e7\'e3o ou se fugia correndo de pavor. O corretor, por sua vez, achando que ele era
\par o noivo, come\'e7ou a falar apressadamente, ressaltando as qualidades do apartamento:
\par -Ah! Mas o lugar \'e9 muito bom. Tem com\'e9rcio, condu\'e7\'e3o, tudo perto. E depois, se o senhor olhar melhor, vai ver que n\'e3o \'e9 t\'e3o pequeno assim. \'c9 \'f3timo para o
\par in\'edcio de vida de um casal...
\par Fl\'e1vio n\'e3o estava mais escutando. Fitava Marcela com um misto de ternura e medo. Sentia o quanto a amava, mas temia que ela, magoada com a forma como ele a tratara,
\par ignorasse a sua presen\'e7a e o deixasse sozinho ali. Ela, contudo, tremia por dentro de felicidade. Realmente, estava magoada com ele, sentia-se
\par humilhada pela forma como ele a tratara e achava mesmo que nunca mais deveria olhar para ele. Mas o cora\'e7\'e3o falou mais alto, e ela come\'e7ou a chorar de mansinho,
\par sem coragem de se mexer.
\par Ele se aproximou dela e tomou o seu pequeno queixo entre os dedos, fazendo com que ela voltasse os olhos para ele.
\par -Ser\'e1 que pode me perdoar? - sussurrou.
\par Em vez de responder, Marcela aproximou dele os l\'e1bios e fez com que ele a tomasse nos bra\'e7os e a beijasse, deixando o corretor embara\'e7ado.
\par -Bem... - balbuciou o homem - acho que vou deix\'e1-los sozinhos. Talvez queiram conversar sobre o apartamento e...
\par -N\'e3o precisa se incomodar - cortou Fl\'e1vio, ainda retendo Marcela em seus bra\'e7os. - O apartamento \'e9 bom, mas \'e9 pequeno para n\'f3s. Agrade\'e7o a sua boa vontade,
\par mas n\'e3o \'e9 o que procuramos.
\par Ainda abra\'e7ados, os dois se desculparam com o corretor e deixaram o im\'f3vel. Foram para a casa de Marcela e se amaram como nunca. De t\'e3o feliz, Marcela n\'e3o conseguia
\par nem falar. Nem pensava mais na avers\'e3o que sentia de sua pr\'f3pria casa. Naquele momento, parecia um peda\'e7o do para\'edso, porque era Fl\'e1vio que fazia a beleza do lugar.
\par -Ser\'e1 que voc\'ea pode me perdoar? - suplicou ele ao final, estreitando-a cada vez mais. - Fui o maior idiota do mundo, mas n\'e3o posso viver sem voc\'ea.
\par -Voc\'ea me magoou muito.
\par -Eu sei. N\'e3o h\'e1 justificativa para o que fiz, mas quero compens\'e1-la por tudo. Perdoe-me, Marcela, por favor. N\'e3o devia ter falado aquelas coisas nem ter
\par feito o que fiz. Voc\'ea n\'e3o merecia.
\par -O que foi que aconteceu para voc\'ea chegar a essa conclus\'e3o?
\par -Ouvi alguns conselhos, mas, principalmente, segui o meu cora\'e7\'e3o. Voc\'ea \'e9 a mulher que eu amo, e n\'e3o poderia perd\'ea-la por uma bobagem.
\par -Acha bobagem agora?
\par -Sim. Pessoas amigas me fizeram ver que nada disso importa. O seu passado s\'f3 a voc\'ea pertence, como eu mesmo lhe repeti tantas e tantas vezes. O que importa
\par \'e9 o que sentimos um pelo outro agora.
\par -Tem certeza do que diz, Fl\'e1vio? N\'e3o vai me atirar isso na cara depois? Sempre que discutirmos, n\'e3o vai usar isso como arma para me ferir?
\par -Nunca! Se estou pedindo para voc\'ea me aceitar de volta, \'e9 porque esse assunto est\'e1 superado e encerrado. N\'e3o \'e9 mais importante para mim que voc\'ea tenha vivido
\par com outra mulher ou n\'e3o. S\'f3 o que lhe pe\'e7o \'e9 que seja somente minha a partir de agora.
\par -Sou somente sua desde o dia em que o conheci.
\par -Promete que nunca vai me trair?
\par -Se vamos come\'e7ar com desconfian\'e7as, ent\'e3o \'e9 melhor nem come\'e7armos.
\par -Tem raz\'e3o, perdoe-me novamente. N\'e3o tenho motivos para desconfiar de voc\'ea. Voc\'ea sempre foi leal e sincera, sei que nunca me enganou nem me enganaria com
\par ningu\'e9m.
\par -Acredita no meu amor?
\par -Acredito. E voc\'ea? Acredita no meu?
\par -Confesso que cheguei a duvidar, porque achei a sua conduta incompat\'edvel com quem diz amar tanto. Mas hoje, quando voc\'ea apareceu, n\'e3o tive mais d\'favidas.
\par Ningu\'e9m que n\'e3o ama \'e9 capaz de um beijo t\'e3o apaixonado como o que voc\'ea me deu l\'e1 naquele apartamento.
\par Ele a beijou novamente e considerou:
\par -Voc\'ea precisa mesmo sair daqui. Vamos logo marcar a data do casamento e procurar uma casa para n\'f3s. N\'e3o um apartamento pequenininho como o que voc\'ea arranjou
\par hoje cedo, mas uma casa grande, arejada e confort\'e1vel. Quero ter muitos filhos, e eles v\'e3o precisar de espa\'e7o para correr.
\par -Tem certeza de que \'e9 isso mesmo o que voc\'ea quer? - tornou ela, ainda em d\'favida.
\par -Absoluta! Voc\'ea \'e9 a mulher que eu amo, e \'e9 com voc\'ea que quero me casar.
\par Passaram o resto do dia conversando e fazendo planos. Falaram sobre Luciana e Ariane, sobre Dolores e suas intrigas. Nada disso, por\'e9m, os abalou. Fl\'e1vio concordou
\par que Luciana era uma boa amiga e admitiu que a admirava. Dolores ficaria furiosa quando soubesse, mas nenhum dos dois se importava.
\par Apenas Ariane os incomodava. Ainda n\'e3o estavam bem certos sobre suas atitudes, mas, por enquanto, preferiam n\'e3o reatar amizade com ela.
\par Daquele dia em diante, come\'e7aram os preparativos, e a not\'edcia logo se espalhou. Algumas pessoas que os conheciam, ao ver Fl\'e1vio e Marcela em algum restaurante ou
\par qualquer outro lugar p\'fablico, riam e cochichavam entre si, mas eles nem se incomodavam. Exibiam as alian\'e7as com naturalidade, e Marcela ostentava
\par o anel de brilhante que ele lhe dera com indisfar\'e7\'e1vel orgulho.
\par ***
\par A not\'edcia logo se espalhou, e Dolores n\'e3o tardou a saber da reconcilia\'e7\'e3o dos noivos. Espumando de \'f3dio, come\'e7ou a ligar para a cl\'ednica e o apartamento de Justino,
\par onde sabia que Fl\'e1vio estava morando. Na cl\'ednica, ele n\'e3o atendia e, no apartamento, ela nunca conseguia encontr\'e1-lo. Ele e Marcela haviam, finalmente, achado uma
\par casa e estavam empenhados em reform\'e1-la, passando l\'e1 muitas noites, planejando a decora\'e7\'e3o e entregues ao amor.
\par Dolores n\'e3o sabia disso e foi ficando cada vez mais furiosa. At\'e9 que resolveu ir pessoalmente ao apartamento de Justino para tentar falar com o filho. Precisava
\par cham\'e1-lo \'e0 raz\'e3o, mostrar a ele algumas fotos em colunas sociais e uma observa\'e7\'e3o maldosa feita numa revista de fotonovelas. Com isso, esperava que ele acordasse
\par e rompesse de vez com aquela aventureira l\'e9sbica.
\par A campainha do apartamento de Justino quase estourou de tanto tocar. Era \'f3bvio que ele n\'e3o estava em casa, e ela, por pouco, n\'e3o teve um acesso. Esmurrou a porta,
\par chutou, mas nada. N\'e3o adiantava, ele n\'e3o estava mesmo, e ela n\'e3o via outro rem\'e9dio, sen\'e3o ir embora. Teve que esperar alguns minutos at\'e9 que o elevador chegasse
\par e, quando puxou a porta pelo lado de fora, algu\'e9m a empurrou pelo lado de dentro, quase acertando a sua testa, o que a fez espumar ainda mais. J\'e1 ia se preparando
\par para dizer um desaforo quando percebeu quem havia chegado. Justino estava parado no corredor, ainda segurando a porta do elevador e, l\'e1 dentro, afigura de uma mulher,
\par que Dolores conhecia vagamente, levando-a a fazer tremendo esfor\'e7o para se recordar.
\par -Anita! - gritou ela, finalmente se lembrando de quem era e avaliando a outra. - O que faz aqui com o meu marido?
\par -N\'e3o sou seu marido, Dolores - objetou Justino com frieza. - E Anita n\'e3o lhe deve satisfa\'e7\'f5es.
\par Ao ver Dolores ali parada, os olhos chispando fagulhas de \'f3dio, Anita pensou em recuar. Sua velha inseguran\'e7a havia voltado, e ela se sentiu amedrontada e intimidada
\par com a figura elegante, esbelta e confiante de Dolores.
\par -Acho melhor eu ir para casa - murmurou ela. - Posso chamar um t\'e1xi...
\par -Nada disso! - protestou Justino. - Voc\'ea veio comigo, e \'e9 Dolores quem n\'e3o tem nada para fazer aqui.
\par -Tenho um assunto a tratar, mas n\'e3o \'e9 com voc\'ea - comentou ela com azedume. - \'c9 com meu filho. Onde est\'e1 ele?
\par -Ele n\'e3o est\'e1 aqui.
\par -Isso, eu j\'e1 percebi. Quero saber onde ele est\'e1.
\par -N\'e3o \'e9 da sua conta.
\par Justino a empurrou para o lado e abriu a porta, puxando Anita pela m\'e3o.
\par -E agora, se nos der licen\'e7a, temos muito o que fazer - anunciou ele, entrando com Anita no apartamento. - At\'e9 logo.
\par Diante do ar embasbacado de Dolores, Justino fechou a porta delicadamente. Ela estava perplexa e, ao mesmo tempo, furiosa. Ouvira falar que Justino estava saindo
\par com uma mulher, mas jamais poderia imaginar que fosse com a ex-mulher de seu ex-amante. Ela estava horr\'edvel: gorda, velha e malvestida. Justino deveria estar muito
\par necessitado para aceitar sair com uma mulher daquela. Era revoltante e inadmiss\'edvel! Como podia ele se deixar envolver por algu\'e9m sem linha feito aquela Anita?
\par Do lado de dentro, Anita tremia. Sentia-se pequenininha diante daquela mulher poderosa e cheia de classe. Justino percebeu o seu constrangimento e a abra\'e7ou com
\par ternura, passando-lhe amor e confian\'e7a.
\par -Por que est\'e1 desse jeito? - perguntou gentilmente. - N\'e3o se deixe intimidar por Dolores.
\par -\'c9 que sua ex-mulher \'e9 t\'e3o... t\'e3o bonita... t\'e3o elegante... t\'e3o senhora de si...
\par -E t\'e3o f\'fatil, t\'e3o m\'e1, t\'e3o mesquinha. Por que se diminui diante dela? Ela n\'e3o \'e9 melhor do que voc\'ea em nada.
\par -Ela ainda \'e9 uma mulher muito bonita.
\par -Voc\'ea tamb\'e9m \'e9.
\par -N\'e3o sou, n\'e3o. Envelheci muito depois de meu \'faltimo filho. Deixei-me engordar e perdi a vontade de me arrumar, frustrada com o fracasso do meu casamento
\par e a indiferen\'e7a de meu marido.
\par -Pois eu acho que voc\'ea est\'e1 muito bem.
\par -Voc\'ea est\'e1 apenas sendo gentil.
\par -Se n\'e3o gostasse de voc\'ea do jeito que \'e9, n\'e3o a teria convidado para sair.
\par -Ainda hoje me pergunto o que foi que voc\'ea viu em mim...
\par -Al\'e9m de achar voc\'ea uma mulher atraente, interessante, sens\'edvel, culta, inteligente e espirituosa? - Ela assentiu, surpresa com tantos elogios. - Apaixonei-me
\par por voc\'ea.
\par -Oh! Justino!
\par Os dois se abra\'e7aram, e ele foi at\'e9 o bar. Serviu duas ta\'e7as de champanha e ofereceu-lhe uma.
\par -Vamos brindar.
\par -A qu\'ea?
\par -Ao privil\'e9gio de sermos pessoas maduras, que sabem o que querem e s\'e3o livres para viver um amor sereno, confiante e verdadeiro.
\par Ela sorriu, e ambos estalaram as ta\'e7as. Anita estava feliz como nunca antes se sentira em toda a sua vida. Sabia que podia confiar em Justino, em suas palavras e
\par no seu amor. Dali em diante, n\'e3o pensaria mais em si mesma como algu\'e9m inferior e procuraria melhorar n\'e3o apenas a apar\'eancia f\'edsica, mas, principalmente, os pensamentos.
\par N\'e3o queria mais ser uma mulher insegura. Queria ser algu\'e9m forte e corajosa, ciente de seu valor e do valor que Justino conseguia reconhecer nela. Ela o amava, mas
\par n\'e3o queria fazer isso por ele. Faria por si mesma.
\par A cada dia que passava, Dolores ficava mais e mais furiosa. Al\'e9m de o filho estar visivelmente evitando falar com ela, descobrira o caso rid\'edculo de seu marido com
\par aquela mulher insossa e idiota. N\'e3o fosse a ex-mulher de N\'e9lson, ela at\'e9 acharia gra\'e7a em ver que Justino se envolvera com uma feiosa sem classe. Tratando-se de
\par quem era, ficava pensando se ele realmente gostava dela ou se estaria fazendo aquilo somente para humilh\'e1-la. N\'e3o acreditava, todavia, na segunda op\'e7\'e3o. Justino
\par fazia o tipo gentil e bonzinho, e o mais prov\'e1vel era que tivesse mesmo se apaixonado pela bruaca velha.
\par Mas Justino podia ficar para depois. N\'e3o tinha tempo para perder em conjecturas sobre as aventuras sexuais do ex-marido. O que lhe interessava no momento era o filho.
\par Fl\'e1vio estava evitando falar com ela h\'e1 semanas. Tinha certeza de que Justino lhe informara que ela estivera \'e0 sua procura, e ele n\'e3o a procurara de prop\'f3sito. No
\par entanto, precisava conversar com ele e fazer com que voltasse \'e0 realidade.
\par N\'e3o precisou esperar muito. Uma semana depois, Fl\'e1vio apareceu em sua casa, levando em m\'e3os um envelope alinhado.
\par -O que significa isso? - rugiu ela entre os dentes, segurando nas m\'e3os o convite ainda lacrado.
\par -\'c9 um convite de casamento, m\'e3e. N\'e3o deu para perceber?
\par -Quem vai se casar? Voc\'ea? - Ele assentiu. - Com aquela l\'e9sbica aventureira?
\par -Ela n\'e3o \'e9 l\'e9sbica e, muito menos, aventureira.
\par -Ora, vamos, Fl\'e1vio, voc\'ea conhece o passado dessa mo\'e7a t\'e3o bem quanto eu. Todos conhecem. Vai ser massacrado pela sociedade se voc\'ea se casar com ela.
\par -Isso n\'e3o me interessa. Ningu\'e9m tem nada com a minha vida.
\par -Voc\'ea saiu de casa por causa dessa mo\'e7a e agora pretende levar adiante um casamento que vai causar a sua ru\'edna.
\par -Engano seu. Meu casamento tem tudo para ser bem-sucedido, porque n\'f3s nos amamos, nos compreendemos e nos respeitamos. Ah! E eu n\'e3o sa\'ed de casa por causa
\par de Marcela. Foi por sua causa que me mudei: por causa de suas intrigas e da humilha\'e7\'e3o que me fez passar.
\par -Meu filho, deixemos isso para l\'e1. J\'e1 passou.
\par -Sim, passou, e \'e9 por isso que n\'e3o pretendo mais retornar a esse assunto. Procuro relevar o que voc\'ea fez, dizendo para mim mesmo que voc\'ea pode ser orgulhosa,
\par esnobe e intrigante, mas \'e9 minha m\'e3e e, presumivelmente, quer o meu bem. Ainda que o meu bem n\'e3o seja, exatamente, o que voc\'ea quer me oferecer.
\par -Mas \'e9 claro que quero o seu bem!
\par -Ent\'e3o, aceite o meu casamento com Marcela como fato consumado.
\par -Voc\'ea est\'e1 me pedindo para abrir m\'e3o da nossa dignidade e conviver com uma l\'e9sbica?
\par -Ela n\'e3o \'e9 l\'e9sbica. E, ainda que fosse, isso n\'e3o faria dela essa pessoa desprez\'edvel que voc\'ea quer fazer parecer.
\par -Est\'e1 bem, est\'e1 certo. Concordo que talvez isso n\'e3o tenha tanta import\'e2ncia. Mas o fato \'e9 que Marcela \'e9 uma pobretona, uma mulherzinha de classe inferior,
\par sem eira nem beira. O que um homem da alta sociedade como voc\'ea pode esperar de uma criatura assim?
\par -Agora voc\'ea est\'e1 sendo mais verdadeira. Est\'e1 claro para mim que o seu problema com Marcela \'e9 a sua condi\'e7\'e3o social. Pois ent\'e3o, m\'e3e, deixe que lhe diga o
\par que posso esperar de Marcela: amor. \'c9 s\'f3 isso que me importa.
\par -Amor, pois sim! Tudo muito bonito enquanto ela n\'e3o o fizer passar vergonha na frente dos seus amigos.
\par -Marcela \'e9 uma mo\'e7a culta e educada. N\'e3o vai me fazer passar vergonha em lugar nenhum.
\par -Mas n\'e3o \'e9 do nosso meio, n\'e3o tem o seu n\'edvel! Al\'e9m de tudo, n\'e3o gosta de mim.
\par -Voc\'ea \'e9 quem n\'e3o gosta dela. E n\'e3o gosta porque n\'e3o vai poder manipul\'e1-la como pensava fazer com Ariane.
\par -Ariane anda meio sumida, contaminada pelas id\'e9ias estranhas que Marcela colocou na cabe\'e7a dela. Mas ainda \'e9 a mulher certa para voc\'ea.
\par -Ariane n\'e3o me quer mais, m\'e3e. Ela mesma me disse.
\par -\'c9 mentira. Ela est\'e1 apenas escabreada com tudo o que passou. Mas se voc\'ea a quiser, duvido que ela o rejeite.
\par -Ela est\'e1 arrependida. Ao contr\'e1rio de voc\'ea, Ariane mostrou senso de dignidade e veio se desculpar comigo.
\par -E voc\'ea a desculpou? - Ele n\'e3o respondeu. - Pois eu acho que voc\'ea devia. Com o tempo, voc\'ea vai ver como ainda t\'eam chance juntos.
\par -N\'e3o adianta, m\'e3e. Ariane e eu somos dois estranhos agora. \'c9 com Marcela que vou-me casar, quer voc\'ea queira, quer n\'e3o.
\par -E veio me convidar para o casamento? - retrucou ela com indigna\'e7\'e3o, exibindo o convite fechado. - Como se eu fosse uma estranha?
\par -Voc\'ea n\'e3o \'e9 uma estranha, mas vai ser apenas mais uma convidada. N\'e3o a quero no altar junto comigo.
\par -Eu \'e9 que n\'e3o quero que me vejam no altar, recebendo aquela l\'e9sbica como nora!
\par -Pouco me importa. S\'f3 n\'e3o quero que Marcela se sinta mal no dia que deve ser o mais feliz da sua vida. - Ela o olhava com raiva, e ele finalizou: - Bom,
\par o convite est\'e1 entregue. Se quiser comparecer, \'f3timo. Se n\'e3o quiser, tudo bem tamb\'e9m.
\par Com um sorriso frio, Fl\'e1vio se despediu. N\'e3o tinha mais paci\'eancia para as encena\'e7\'f5es da m\'e3e e n\'e3o queria lhe dar a chance de encher os seus ouvidos com as suas hist\'f3rias
\par maledicentes. Entregara-lhe o convite por insist\'eancia de Marcela, que era uma pessoa boa e n\'e3o guardava ressentimentos. Mas n\'e3o a queria no altar e n\'e3o pretendia
\par mais lhe dar a chance de lhe causar
\par embara\'e7os ou humilhar sua noiva.
\par ***
\par O casamento se realizou conforme o esperado, em uma recep\'e7\'e3o simples, por\'e9m elegante, para a qual foram convidados todos os amigos e conhecidos de Fl\'e1vio e Marcela.
\par Ele n\'e3o queria que dissessem que se casara em segredo, para n\'e3o expor a noiva l\'e9sbica, como dizia a m\'e3e, por isso, fez quest\'e3o de uma cerim\'f4nia sem luxo, mas grande
\par o bastante para comportar todos aqueles a quem, supostamente, deveria temer em sociedade.
\par Ele e Marcela receberam a todos com alegria e satisfa\'e7\'e3o, e n\'e3o havia quem n\'e3o elogiasse a beleza, a eleg\'e2ncia e a delicadeza da mo\'e7a. Alguns diziam mesmo que o
\par que se falava sobre ela devia ser inven\'e7\'e3o, pois uma mo\'e7a t\'e3o bonita e inteligente n\'e3o se prestaria \'e0quelas coisas. Quem ouviu os coment\'e1rios foi Luciana que, apesar
\par de entristecida com a hipocrisia, a intoler\'e2ncia e o preconceito das pessoas, n\'e3o rebateu nem emitiu qualquer opini\'e3o, como teria feito em outros tempos.
\par -Deixe isso para l\'e1 - falou Ma\'edsa, a seu lado. - As pessoas falam mal daquilo que temem ou n\'e3o compreendem. Muitos desses a\'ed devem fazer o diabo \'e0s escondidas,
\par mas, como ningu\'e9m sabe nem nunca viu, podem fazer-se passar por certinhos e moralistas.
\par -\'c9 uma ignor\'e2ncia, Ma\'edsa. O que beleza e intelig\'eancia t\'eam a ver com isso?
\par -J\'e1 disse para n\'e3o ligar, Lu. N\'e3o importa o que elas dizem.
\par -N\'e3o sei nem por que me calei. Devia era ter-lhes dito umas poucas e boas.
\par -O mundo, infelizmente, \'e9 cheio de preconceitos e falsidades, mas isso ainda h\'e1 de mudar um dia. Esse dia ainda n\'e3o chegou, e acho que n\'e3o cabe a voc\'ea fazer
\par o papel de transformadora. N\'e3o sozinha nem nesse momento. Vai se expor sem necessidade, atrair a aten\'e7\'e3o das pessoas que podem atirar sobre voc\'ea energias ruins.
\par Para que isso? O importante \'e9 que voc\'ea sabe quem \'e9 e conhece o seu valor. Deixe que os outros fiquem com o seu preconceito e a sua hipocrisia, porque n\'f3s, que j\'e1
\par ultrapassamos esse est\'e1gio, podemos nos preocupar com coisas mais \'fateis.
\par Luciana olhou-a sem entender e retrucou admirada:
\par -Voc\'ea diz cada coisa, Ma\'edsa...
\par -Ah! Deixe para l\'e1.
\par Nesse momento, a orquestra come\'e7ou a tocar uma m\'fasica
\par rom\'e2ntica, e Breno tirou Ma\'edsa para dan\'e7ar, deixando Luciana sozinha \'e0 mesa. Em poucos minutos, Marcela estava a seu lado, e as duas come\'e7aram a conversar:
\par -Estou t\'e3o feliz por voc\'ea, Marcela!
\par -Eu tamb\'e9m.
\par -Voc\'ea est\'e1 radiante. Tenho certeza de que vai ser muito feliz.
\par -Sabe, Lu, amo Fl\'e1vio imensamente, mas n\'e3o posso dizer que foi o \'fanico que amei em minha vida. - Luciana limitou-se a olh\'e1-la, e ela completou: - Voc\'ea sabe
\par do que estou falando, n\'e3o sabe?
\par -N\'e3o creio que essa seja uma conversa muito apropriada para o seu casamento - rebateu Luciana, sem entender o porqu\'ea daquilo tudo.
\par -N\'e3o se preocupe. Sei o que estou falando, e Fl\'e1vio tamb\'e9m sabe. Depois de tudo o que aconteceu, prometi a ele que n\'e3o lhe esconderia mais nada.
\par -\'c9 o mais sensato. Mas por que est\'e1 me dizendo isso agora?
\par -Gostaria que voc\'ea soubesse. O que sinto por Fl\'e1vio hoje \'e9 \'fanico, mas n\'e3o apaga o que senti por voc\'ea. Foi \'fanico tamb\'e9m.
\par -Eu sei, mas n\'e3o entendo por que est\'e1 me dizendo isso. Nunca lhe cobrei nada nem fiz compara\'e7\'f5es entre mim e Fl\'e1vio.
\par -\'c9 claro que n\'e3o. Estou falando isso por mim mesma, porque preciso assumir, para mim, que posso amar um homem sem precisar negar ou me envergonhar de ter
\par amado uma mulher. Hoje aprendi que o que se ama \'e9 a ess\'eancia, n\'e3o o corpo f\'edsico.
\par -Bom, esse deve ser o amor verdadeiro, mas eu ainda n\'e3o consigo amar s\'f3 a ess\'eancia... - disse ela, olhando de soslaio para uma mo\'e7a bonita que vinha passando.
\par As duas ca\'edram na gargalhada, e Marcela abra\'e7ou Luciana com carinho.
\par -Eu amo voc\'ea, sabia disso? - declarou Marcela. - Como uma verdadeira irm\'e3.
\par -Mas que comovente! - disse uma voz ir\'f4nica atr\'e1s delas. - Mas a despedida de solteira n\'e3o deveria ser hoje, no dia do casamento.
\par As duas desfizeram o abra\'e7o e se voltaram ao mesmo tempo. Dolores estava parada perto da mesa, a essa altura bastante
\par alterada pela bebida, acompanhada de tr\'eas mulheres que ostentavam sorrisos igualmente ir\'f4nicos. A surpresa de Marcela foi genu\'edna, porque Dolores garantira que n\'e3o
\par compareceria ao casamento. Logo um grupinho come\'e7ou a se formar ao redor delas, e Dolores continuou falando:
\par -N\'e3o sei se todos conhecem Luciana... Luciana de qu\'ea, mesmo? N\'e3o importa. Luciana \'e9 amiga \'edntima de Marcela, n\'e3o \'e9 mesmo?
\par Ela frisou bem aquele \'edntima e encarou a nora com olhar divertido e maldoso.
\par -\'c9, sim - concordou Marcela, o rosto em chamas. - Luciana \'e9 minha amiga de muitos anos.
\par -O que voc\'ea faz, Luciana? - indagou uma mulher, que a olhava com ar malicioso.
\par -Sou dentista - respondeu ela, devolvendo o olhar com outro, cheio de dignidade.
\par -Ah! Ent\'e3o \'e9 doutora Luciana.
\par -Doutora, n\'e3o, doutor - cochichou algu\'e9m bem baixinho logo atr\'e1s, mas todos ouviram e come\'e7aram a rir, inclusive Dolores.
\par A conversa estava tomando um rumo bastante desagrad\'e1vel, e as duas queriam sair correndo dali, mas n\'e3o viam como. Luciana ainda sustentava os coment\'e1rios e os olhares,
\par mas Marcela estava vermelha desde a raiz do cabelo, e seus olhos j\'e1 come\'e7avam a umedecer.
\par O grupinho estava sendo observado por Justino e Anita, que imaginavam bem o que deveria estar acontecendo. Justino pediu licen\'e7a a Anita e foi procurar o filho,
\par que cumprimentava um casal de tios idosos do outro lado do sal\'e3o. Ele chegou bem perto do filho e sussurrou em seu ouvido:
\par -Acho melhor voc\'ea vir comigo. Sua m\'e3e est\'e1 aprontando das dela.
\par Fl\'e1vio olhou por cima do ombro, surpreso com o aparecimento repentino da m\'e3e, e imediatamente percebeu o que acontecia. Marcela e Luciana, sentadas a uma mesa, em
\par meio a um grupo de fofoqueiros liderados pela m\'e3e, s\'f3 podia significar uma coisa: a m\'e3e as estava envolvendo em seus gracejos maldosos, humilhando-as a pretexto
\par de divertir todo o grupo. Na mesma
\par hora, pediu licen\'e7a e se dirigiu para l\'e1, em companhia do pai, e Anita se juntou a eles. Tamb\'e9m n\'e3o queria mais evitar Dolores. N\'e3o tinha por que tem\'ea-la.
\par -Divertindo-se, mam\'e3e? - perguntou Fl\'e1vio, pondo-se entre Marcela e Luciana, e envolvendo o ombro de cada uma com um bra\'e7o.
\par -Est\'e1vamos apenas conversando.
\par -\'c9 mesmo? E sobre o que falavam de t\'e3o engra\'e7ado? Conte-me, para que eu possa rir tamb\'e9m.
\par De repente, a conversa parecia ter perdido a gra\'e7a, e os convidados se sentiam constrangidos com a presen\'e7a de Fl\'e1vio, abra\'e7ando a noiva e a amiga, demonstrando,
\par nitidamente, o apoio que dava a Luciana. Alguns come\'e7aram a se afastar, e outros, muito pouco \'e0 vontade, olhavam a cena com um sorriso morto nos l\'e1bios.
\par -N\'e3o est\'e1vamos falando nada demais - defendeu-se ela. - Apenas convers\'e1vamos sobre Marcela e sua amiga.
\par -N\'e3o vejo que interesse isso possa despertar em nossos convidados.
\par -Nenhum. \'c9 que elas estavam se abra\'e7ando... t\'e3o bonitinho! N\'e3o pudemos evitar. \'c9 t\'e3o lindo ver uma amizade como essa: t\'e3o verdadeira, t\'e3o duradoura, t\'e3o...
\par \'edntima.
\par Novamente aquele \'edntima frisado, que irritou Fl\'e1vio.
\par -Bom, sinto estragar a sua divers\'e3o, mas Marcela e eu ainda temos muitos convidados para cumprimentar. Ah! Luciana, venha conosco. Quero apresent\'e1-la a algu\'e9m.
\par -Uma namorada nova, como pr\'eamio de consola\'e7\'e3o para substituir a perdida?
\par Dolores falou praticamente sem pensar. Estava b\'eabada e t\'e3o contrariada com o casamento e, mais ainda, com a presen\'e7a de Luciana, que n\'e3o conseguiu se conter. A indaga\'e7\'e3o
\par mordaz apenas extravasou o que h\'e1 muito ia represado em seu cora\'e7\'e3o.
\par -Com que direito voc\'ea se atreve a fazer julgamentos e coment\'e1rios sobre a vida de Marcela? - dessa vez, foi Justino quem falou, a voz tr\'eamula de indigna\'e7\'e3o.
\par Ela lhe lan\'e7ou um olhar cortante, fitou Anita com desd\'e9m rebateu em tom de zombaria:
\par -Marcela, por acaso, \'e9 sua noiva? N\'e3o, claro que n\'e3o. Voc\'ea n\'e3o gosta de mocinhas. Gosta de mulheres maduras e inchadas, que j\'e1 est\'e3o caindo do p\'e9.
\par Ningu\'e9m aguentou. A gargalhada foi geral, deixando Anita roxa de vergonha, Fl\'e1vio, Marcela e Luciana, perplexos, e Justino, furioso. Em meio \'e0s risadas, Dolores
\par se virou para o sal\'e3o, fazendo sinal para que os outros a acompanhassem. O grupo come\'e7ou a se dispersar, mas Dolores foi interrompida pela observa\'e7\'e3o perfurante
\par de Justino:
\par -Por que n\'e3o conta a todos qual a sua prefer\'eancia, j\'e1 que estamos falando de gostos? Quero dizer, antes de se envolver com rapazinhos.
\par Ela se virou bruscamente e o encarou com f\'faria:
\par -Cale-se! N\'e3o lhe dou o direito de falar da minha vida particular.
\par -Mas voc\'ea se acha no direito de falar da vida de seu filho, de sua nora, de minha mulher e de outras pessoas, n\'e3o \'e9 mesmo?
\par -N\'e3o estou falando nada demais. E voc\'ea n\'e3o tem nada com isso.
\par -Gra\'e7as a Deus, n\'e3o tenho mais nada a ver com a sua vida mentirosa e libertina.
\par -Veja l\'e1 como fala! - urrou ela. - N\'e3o admito que ofendam a minha reputa\'e7\'e3o!
\par O clima estava horrivelmente tenso, e nem Fl\'e1vio entendia por que o pai dizia aquelas coisas naquele momento. Dolores estava visivelmente alcoolizada, mas Justino
\par parecia s\'f3brio e consciente do que dizia.
\par -Pai, por favor, pare com isso - pediu Fl\'e1vio, tentando pux\'e1-lo pelo bra\'e7o. - Deixe-a, ela bebeu demais.
\par -Eu n\'e3o estou b\'eabada! - gritou ela novamente, o rosto totalmente transformado pela c\'f3lera. - S\'f3 n\'e3o vou permitir que seu pai, ou qualquer outro homem, tente
\par me desmoralizar!
\par Ningu\'e9m entendia por que Dolores, de repente, ficara t\'e3o furiosa. Ningu\'e9m, \'e0 exce\'e7\'e3o de Justino. Na verdade, ela tremia de medo de que ele revelasse alguma coisa
\par sobre o seu antigo caso com N\'e9lson.
\par -N\'e3o precisa se alterar dessa maneira, m\'e3e. Vamos acabar com essa discuss\'e3o por aqui.
\par -Sua m\'e3e est\'e1 assim, meu filho - falou Justino -, porque tem medo de que eu revele a todos por que nos separamos.
\par -Voc\'ea n\'e3o ousaria!
\par -Eu lhe avisei, Dolores. Avisei-a para deixar Marcela em paz, mas voc\'ea n\'e3o quis me ouvir. Pensou que eu n\'e3o fosse capaz de expor as suas sujeiras? Pois se
\par enganou. Eu sou capaz, sim!
\par -Cale essa boca, Justino! - berrou ela. - N\'e3o se atreva a comentar nossa vida particular em p\'fablico!
\par -Pai, por favor...
\par -N\'e3o, agora vou falar. Voc\'ea acha que \'e9 melhor do que todo mundo, n\'e3o \'e9, Dolores? S\'f3 porque tem dinheiro, pensa que est\'e1 acima de tudo e de todos. Mas n\'e3o
\par est\'e1. Seu dinheiro pode comprar rapazolas interesseiros, mas n\'e3o pode comprar a sua dignidade e, muito menos, o meu sil\'eancio!
\par -Voc\'ea est\'e1 louco. N\'e3o sabe o que diz!
\par Ela come\'e7ou a se afastar rapidamente, mas Justino elevou a voz e disparou:
\par -Tem medo de que todos saibam por que nos separamos, n\'e3o \'e9? Tem medo de que todos saibam que nos separamos porque eu descobri que voc\'ea estava de caso com
\par N\'e9lson Moreira, meu antigo s\'f3cio na cl\'ednica e ex-marido de Anita!
\par Fez-se um sil\'eancio geral, e Dolores fechou os olhos, lutando para n\'e3o voar no pesco\'e7o de Justino.
\par -Justino! - interrompeu Anita surpresa. - Do que \'e9 que voc\'ea est\'e1 falando?
\par -\'c9 isso mesmo! Dolores tinha um caso com N\'e9lson, e era ela quem sustentava a sua cl\'ednica depois que nos separamos. Mas acho que se cansou dele tamb\'e9m, porque
\par hoje prefere gastar o seu dinheiro com playboyzinhos desocupados e tostados de sol.
\par Aquilo j\'e1 era demais. Dolores n\'e3o conseguiu se conter e se virou para ele, fuzilando-o com um olhar de tanto \'f3dio, que muitos n\'e3o conseguiram nem olhar para ela.
\par -Voc\'ea n\'e3o tem o direito! - vociferou.
\par -E voc\'ea n\'e3o tem o direito de falar de Marcela ou de Luciana, ou de quem quer que seja. Quem \'e9 voc\'ea para julgar algu\'e9m? Como pode acusar os outros quando
\par a sua vida \'e9 um mar de sujeiras e intrigas? Que moral voc\'ea tem para levantar o dedo acusador e decidir o que \'e9 certo ou errado na vida? Voc\'ea n\'e3o \'e9 nada, Dolores.
\par -Cachorro! - grunhiu ela, avan\'e7ando sobre ele e desferindo-lhe v\'e1rios tapas e arranh\'f5es no rosto.
\par Justino n\'e3o fez nada al\'e9m de se defender. Segurou as suas m\'e3os, e ela come\'e7ou a chut\'e1-lo vigorosamente, at\'e9 que Fl\'e1vio intercedeu e a agarrou por tr\'e1s, puxando-a
\par para fora do sal\'e3o. Ela foi arrastada aos berros e pontap\'e9s, completamente transtornada e ensandecida. Do lado de fora, agarrou-se ao filho e desabou num pranto
\par convulsivo e atropelado por palavras desconexas, carregadas de \'f3dio.
\par -Venha, m\'e3e, vou lev\'e1-la para casa - anunciou ele, entrando
\par com ela no carro e partindo pela rua.
\par ***
\par O epis\'f3dio foi a sensa\'e7\'e3o do ano nas colunas sociais. N\'e3o havia uma s\'f3 revista de fofocas que n\'e3o noticiasse o ocorrido. Para Dolores, foi uma desmoraliza\'e7\'e3o total,
\par e ela se fechou em sua casa, recusando-se a receber visitas. Nem o telefone queria atender. Os amigos que ligavam n\'e3o estavam interessados em levar-lhe algum conforto,
\par mas queriam saber detalhes sobre aquele caso secreto e t\'e3o bem oculto, de que ningu\'e9m sequer chegou a desconfiar.
\par Para sua surpresa, as \'fanicas pessoas que foram a sua casa para tentar confort\'e1-la foram Fl\'e1vio e Marcela. No come\'e7o, ela pensou que a nora havia aparecido para tripudiar
\par sobre o seu sofrimento, mas Marcela n\'e3o fez nada disso. Sentou-se a seu lado e demonstrou um carinho que Dolores nunca antes havia visto, mas que a deixou envergonhada
\par e irritada ao mesmo tempo. N\'e3o queria a compaix\'e3o daquela mulher.
\par -Voc\'eas n\'e3o precisam se incomodar comigo - disse ela em tom arrogante, ainda sustentando uma pose de orgulho. - Estou muito bem.
\par -Dona Dolores, quero que saiba que n\'e3o lhe guardo qualquer rancor. Se precisar de alguma coisa, pode contar comigo.
\par A vontade de Dolores era cham\'e1-la de fingida, mas n\'e3o conseguiu detectar nenhuma falsidade nas suas palavras, o que a deixou ainda mais desgostosa. Por que a nora
\par tinha que ser t\'e3o
\par boazinha daquele jeito? N\'e3o podia ser como todo mundo e aproveitar aquela arma para disparar contra ela? Mas n\'e3o. Marcela se mostrava compreensiva e disposta a ajudar,
\par dando uma facada no seu orgulho.
\par Fl\'e1vio, por sua vez, apesar da surpresa que a atitude da m\'e3e lhe causou, logo apiedou-se dela, vendo ali uma mulher decadente e solit\'e1ria, escrava do dinheiro e
\par das apar\'eancias.
\par -Deixe isso para l\'e1 - ele tentou consolar. - Com o tempo, isso passa. As pessoas logo se cansam e arranjam outra coisa para fofocar.
\par -Seu pai n\'e3o podia ter feito isso comigo - queixou-se ela. - S\'f3 pode ter sido por vingan\'e7a.
\par -Meu pai n\'e3o \'e9 homem de se vingar.
\par -Ele me desmoralizou publicamente.
\par -Mas tamb\'e9m, m\'e3e, voc\'ea exagerou. Por que foi tentar humilhar Marcela e Anita na frente de todo mundo, no dia do nosso casamento?
\par Ela ergueu os olhos para Marcela e n\'e3o disse nada. N\'e3o tinha que dar satisfa\'e7\'f5es.
\par -Acho melhor n\'e3o tocarmos mais nesse assunto - ponderou Marcela.
\par -Tamb\'e9m acho - concordou Dolores. - E voc\'eas podem ir. Eu estou muito bem e n\'e3o preciso de nada.
\par Vendo que n\'e3o adiantava oferecer-lhe ajuda, Fl\'e1vio desistiu e resolveu deix\'e1-la sozinha. O tempo daria um jeito naquelas marcas, e ela logo estaria de volta ao seu
\par c\'edrculo social de futilidades e apar\'eancias. Mas ele n\'e3o sabia o quanto estava errado. Apesar de n\'e3o perder a arrog\'e2ncia, desde aquele dia, Dolores se manteve quieta
\par em seu canto, fazendo quest\'e3o de n\'e3o ser notada nem se
\par envolvendo em nada que pudesse chamar a aten\'e7\'e3o sobre ela.
\par ***
\par Justino se arrependeu de ter falado aquilo tudo no casamento do filho. De uma certa forma, ele contribuiu para estragar a festa. Depois do ocorrido, partiram o bolo
\par assim que Fl\'e1vio retornou da casa de Dolores, e a maioria dos convidados se retirou, encerrando a recep\'e7\'e3o mais cedo do que o esperado.
\par -Sinto muito, meu filho - disse Justino a Fl\'e1vio mais tarde, depois que todos se foram. - N\'e3o queria estragar o seu casamento. Estava uma festa t\'e3o bonita!
\par -N\'e3o foi culpa sua, pai. Mam\'e3e estava pedindo por isso.
\par -Mas eu devia ter escolhido um outro momento.
\par -N\'e3o faz mal. Aconteceu no momento que tinha que ser. E depois, ela estava humilhando Marcela, Luciana e at\'e9 Anita diante dos nossos convidados. Apesar do
\par estrago que fez na festa, foi bem feito para ela. Algu\'e9m tinha que lhe p\'f4r um freio.
\par Depois disso, eles haviam ido viajar em lua de mel, e Justino foi procurar Anita. Ela estava muito abalada, e ele se sentia na obriga\'e7\'e3o de lhe dar alguma explica\'e7\'e3o.
\par Anita estava em casa e havia narrado o epis\'f3dio a Ariane, que n\'e3o comparecera ao casamento, temendo desgostar os noivos. N\'e9lson tamb\'e9m n\'e3o havia ido. Andava sempre
\par embriagado e metido em jogatinas, afastado do conv\'edvio com a sociedade e envolvido com indiv\'edduos de reputa\'e7\'e3o duvidosa.
\par -Foi horr\'edvel - comentou Anita. - Ainda bem que voc\'ea e seu irm\'e3o n\'e3o estavam l\'e1.
\par -O que disse a ele?
\par -Nada, por enquanto. E nem sei se vou dizer alguma coisa.
\par -Acho melhor voc\'ea contar a verdade. Sabe como s\'e3o essas coisas: as pessoas comentam em casa, os filhos ouvem e contam tudo na escola. \'c9 melhor que ele saiba
\par por voc\'ea.
\par -Tem raz\'e3o. Vou conversar com ele mais tarde.
\par A campainha soou, e Justino apareceu acabrunhado. Deu um beijo no rosto de Anita, cumprimentou Ariane com um aceno de cabe\'e7a e indagou preocupado:
\par -Como \'e9 que voc\'ea est\'e1?
\par -Melhor do que eu esperava - respondeu Anita. - Ainda estou tentando digerir isso tudo, mas tenho que confessar que, no fundo, n\'e3o me surpreendi. \'c9 como
\par se achasse N\'e9lson e Dolores capazes desse tipo de trai\'e7\'e3o.
\par -E s\'e3o mesmo.
\par -Por que n\'e3o me contou isso antes?
\par -Porque achei que n\'e3o devia. Quando n\'f3s come\'e7amos a sair, tanto eu quanto voc\'ea j\'e1 est\'e1vamos separados. N\'e3o faria diferen\'e7a.
\par -E como foi que voc\'ea descobriu?
\par -Eu os surpreendi.
\par Naquele ponto, j\'e1 n\'e3o havia mais por que ocultar as coisas de Anita, e Justino lhe contou exatamente o que acontecera. Anita e Ariane escutaram atentamente, sem
\par fazer qualquer interrup\'e7\'e3o.
\par -De meu pai, pode-se esperar tudo - observou Ariane, depois que Justino terminou.
\par -E de Dolores tamb\'e9m - acrescentou ele.
\par -Deve ter sido muito dif\'edcil para voc\'ea, na \'e9poca - disse Anita. - N\'e9lson era seu amigo.
\par -\'c9 verdade, foi. Mas eu consegui me recuperar muito bem. Abri a minha pr\'f3pria cl\'ednica, juntamente com meu filho, e encontrei uma mulher realmente digna a
\par quem amo. N\'e3o posso querer coisa melhor.
\par Anita corou levemente e falou:
\par -Quanto a mim, s\'f3 posso agradecer estar separada dele agora. Se tivesse descoberto isso quando ainda est\'e1vamos casados, teria sido muito doloroso.
\par -As coisas sempre aparecem no momento certo.
\par Os dois continuaram conversando, e Ariane foi para o quarto. A revela\'e7\'e3o de Justino n\'e3o a deixara surpresa, nem revoltada, nem entristecida. Ela e o pai nunca haviam
\par se dado bem mesmo, e era at\'e9 melhor que os pais estivessem separados. Contudo, ficou pensando no casamento de Fl\'e1vio e Marcela, sentindo uma alegria interna por
\par ver que eles haviam conseguido ficar juntos. A \'fanica coisa que a entristecia era n\'e3o poder compartilhar com Marcela aquele momento.
\par Sabia que Marcela n\'e3o confiava mais nela e talvez nunca mais lhe dirigisse a palavra novamente, mas precisava demonstrar o seu arrependimento e o seu afeto de alguma
\par maneira. Resolveu sair e comprar algo para ela. N\'e3o havia lhe dado nada de presente de casamento e ficou imaginando o que poderia dar que demonstrasse a sua amizade.
\par Todas as coisas eram comuns, e ela escolheu um presente pessoal, que n\'e3o fosse muito caro. Havia uma promo\'e7\'e3o de len\'e7\'f3is numa loja, e ela acabou comprando um jogo
\par completo, com as iniciais M e F gravadas. Deu o novo endere\'e7o deles, que
\par havia conseguido no caderninho de telefones da m\'e3e, e comprou um cart\'e3o numa loja. Come\'e7ava a escrever votos de felicidades e aquelas coisas que sempre se colocam
\par em cart\'f5es, quando a emo\'e7\'e3o a dominou, e ela acabou escrevendo uma mensagem bonita e cheia de sentimento.
\par Marcela e Fl\'e1vio s\'f3 receberam o presente uma semana depois, quando voltaram da lua de mel. Eles ainda nem haviam terminado de desembrulhar todos os presentes quando
\par a campainha tocou, e a empregada que eles haviam contratado entrou com um pacote grande e bonito.
\par -Este chegou atrasado, dona Marcela - comentou a criada, depositando o embrulho ao lado dos outros.
\par -Deixe-me ver - pediu Marcela, apanhando o cart\'e3o e abrindo-o com curiosidade.
\par Foi direto na assinatura e se surpreendeu ao ver o nome de Ariane.
\par -De quem \'e9? - indagou Fl\'e1vio, com interesse.
\par -De Ariane.
\par -De Ariane? N\'e3o me diga!
\par -Vou ler o cart\'e3o: Querida Marcela. N\'e3o sei se deveria lhe enviar nenhum presente, muito menos lhe escrever, mas n\'e3o posso deixar passar a emo\'e7\'e3o que me
\par invade nesse momento. Agora que voc\'ea e Fl\'e1vio est\'e3o casados, e nenhum interesse mais eu poderia ter em voc\'ea, posso lhe revelar o que realmente sinto. Dizer que me
\par arrependo n\'e3o \'e9 o suficiente, porque eu j\'e1 lhe disse (e a Fl\'e1vio tamb\'e9m). N\'e3o escrevo para falar sobre isso, mas para dizer como me senti quando soube do seu casamento,
\par ao qual n\'e3o compareci por raz\'f5es \'f3bvias, e n\'e3o por falta de vontade. Fiquei e estou muito feliz por voc\'ea, porque muito mais do que o meu arrependimento, o que me
\par conforta \'e9 saber que voc\'ea e Fl\'e1vio conseguiram se entender e est\'e3o felizes. Isso, para mim, j\'e1 \'e9 motivo de felicidade. Que voc\'eas possam sempre alimentar esse amor,
\par um amor que eu, um dia, espero poder conhecer por um homem que me ame de verdade. Porque o amor que nasce da amizade, esse j\'e1 conquistei ao conhecer voc\'ea. Mesmo
\par que nunca mais nos falemos, jamais vou deixar de admir\'e1-la e am\'e1-la, porque a considero a melhor amiga de meu cora\'e7\'e3o.
\par Marcela soltou o cart\'e3o com l\'e1grimas nos olhos e olhou para Fl\'e1vio, que tinha o olhar vago e refletia as palavras de Ariane.
\par -Ela me procurou um dia desses - contou ele.
\par -Procurou-o para qu\'ea?
\par -Para me falar de voc\'ea. Disse que estava arrependida e me pareceu bem sincera.
\par -Tamb\'e9m acredito no seu arrependimento. N\'e3o sei por qu\'ea...
\par -Meu pai, que fica sabendo de muitas coisas atrav\'e9s de Anita, garantiu que ela realmente se arrependeu e que gosta muito de voc\'ea.
\par -Voc\'ea acha que \'e9 verdade?
\par -Acho, sim. Quando ela me procurou, n\'e3o me pareceu interessada em mim como antes. S\'f3 estava preocupada com a sua amizade. Acho que ela, realmente, se afei\'e7oou
\par a voc\'ea.
\par Marcela ficou pensativa. Mais tarde, quando foram dormir, teve um sonho estranho. Nele, ela e Ariane eram irm\'e3s, mas Ariane, por ser a mais velha, tinha que se casar
\par primeiro. Era uma \'e9poca muito remota, e as fam\'edlias da noiva e do noivo haviam acertado o casamento dos filhos assim que eles nasceram, e Ariane era a prometida
\par de Fl\'e1vio. Eles n\'e3o se amavam. Como Fl\'e1vio e Marcela estavam apaixonados, os pais de ambos haviam concordado em transferir o compromisso para Marcela, pois assim
\par o acordo se manteria entre as fam\'edlias, mas Ariane n\'e3o aceitou, for\'e7ando os pais a manterem a palavra e concretizarem o enlace. E assim foi feito. Ariane e Fl\'e1vio
\par se casaram, e Marcela ficou solteira para sempre, mas Fl\'e1vio nunca a esqueceu e foi infeliz ao lado de Ariane, fazendo-a infeliz tamb\'e9m.
\par No dia seguinte, Marcela contou o estranho sonho a Fl\'e1vio, que n\'e3o o compreendeu muito bem.
\par Voc\'ea ficou impressionada com o cart\'e3o que Ariane lhe escreveu - explicou ele. - Por isso sonhou essa bobagem.
\par N\'e3o era bobagem. Na verdade, Marcela sonhara com uma vida passada, sem o saber. Algo despertara dentro dela. Desde que lera aquele cart\'e3o, come\'e7ou a sentir compaix\'e3o
\par de Ariane. N\'e3o que tivesse pena propriamente. Mas conseguia se colocar no lugar da outra e tentou imaginar o que faria se ela mesma estivesse apaixonada por um homem
\par que n\'e3o a amasse, influenciada por algu\'e9m que lhe prometia milagres de amor.
\par Ela, na certa, faria diferente. Mas ela era outra pessoa. N\'e3o tinha aquela fraqueza de Ariane, mas tinha outras. E depois, quem na vida n\'e3o cometia seus erros? Seria
\par justo condenar Ariane eternamente por ter-se deixado envolver por uma ilus\'e3o?
\par Marcela fora capaz de superar a avers\'e3o que sentia por Dolores e lhe oferecera a sua amizade, mesmo depois de tudo o que ela fizera. Por que ent\'e3o n\'e3o fazia o mesmo
\par com Ariane? A resposta parecia \'f3bvia. Ariane a havia decepcionado, ao passo que, de Dolores, podia-se esperar qualquer coisa.
\par Mas, se era assim, tamb\'e9m estava claro que havia um sentimento por Ariane, o que n\'e3o existia com rela\'e7\'e3o a Dolores. Marcela se sentira frustrada pela atitude de
\par Ariane justamente porque se afei\'e7oara a ela. Reconhecia que gostava dela e, se gostava, por que n\'e3o perdoar?
\par Ariane n\'e3o se satisfazia mais com a vida que levava, repleta de ideais vazios e sonhos de casamento. Queria ser algu\'e9m diferente. Queria se orgulhar de si mesma,
\par de sua contribui\'e7\'e3o ao mundo em que vivia. Resolveu estudar, contudo, como a situa\'e7\'e3o financeira de sua fam\'edlia n\'e3o andava l\'e1 muito boa, pensou em arranjar tamb\'e9m
\par um emprego, o que n\'e3o era muito f\'e1cil naqueles dias.
\par -Voc\'ea n\'e3o pode ajudar? - indagou Marcela a Fl\'e1vio, quando este lhe contou o que soubera.
\par -N\'e3o sei. Meu pai sugeriu que o fiz\'e9ssemos. Tem presenciado o esfor\'e7o dela e me garantiu que ela est\'e1 disposta a mudar de vida. Perguntou-me se eu n\'e3o concordaria
\par em lhe oferecer um emprego em nossa cl\'ednica.
\par -E o que voc\'ea disse?
\par -Que ia conversar com voc\'ea primeiro. Nem ele, nem eu queremos fazer nada que a desagrade.
\par -Isso n\'e3o vai me desagradar. Ao contr\'e1rio, gostaria mesmo de ajudar Ariane. Hoje compreendo a sua atitude e n\'e3o tenho mais raiva dela.
\par -Nem eu. Ariane estava perdida e se deixou levar por uma ilus\'e3o. Mas n\'e3o \'e9 m\'e1.
\par -\'c9 claro que n\'e3o! Agora que a raiva passou, percebo isso. Sinto que ela, realmente, gostava de mim.
\par -Posso oferecer-lhe o emprego, ent\'e3o?
\par -\'c9 claro que pode.
\par -Muito bem. Vou falar com meu pai amanh\'e3 mesmo.
\par Ariane recebeu a not\'edcia com alegria e um certo receio. Gostaria
\par muito de trabalhar na cl\'ednica de Justino e Fl\'e1vio, mas temia que Marcela n\'e3o se sentisse muito \'e0 vontade.
\par -N\'e3o se preocupe com Marcela - informou Justino. - Foi id\'e9ia dela tamb\'e9m.
\par -Foi!? - surpreendeu-se Ariane.
\par -Marcela \'e9 uma boa mo\'e7a. N\'e3o guarda raiva de voc\'ea.
\par Logo na segunda-feira, Ariane come\'e7ou a trabalhar como
\par recepcionista. Mostrou-se dedicada e atenciosa, e todos os pacientes gostavam muito da sua companhia. Isso influenciou a sua decis\'e3o na hora de escolher o que estudar.
\par Ia fazer faculdade de enfermagem, e Justino lhe garantiu que ela teria uma vaga certa em sua cl\'ednica.
\par Ela e Fl\'e1vio se viam todos os dias, at\'e9 que ele resolveu convid\'e1-la para almo\'e7ar. Ariane aceitou, embora sem nenhuma outra inten\'e7\'e3o que n\'e3o fosse tentar conquistar
\par a sua amizade. Sentaram-se \'e0 mesa, e Fl\'e1vio pediu uns drinques antes de fazerem o pedido.
\par -Por que n\'e3o pedimos logo? - indagou ela aflita. - N\'e3o quero me atrasar na volta do almo\'e7o.
\par -N\'e3o se preocupe. Meu pai est\'e1 sabendo que voc\'ea veio almo\'e7ar conosco.
\par -Conosco?
\par Nesse instante, Ariane levantou os olhos e viu que algu\'e9m se encaminhava para a mesa, sorrindo para ela. Ela se levantou confusa e fitou a outra com uma emo\'e7\'e3o incontida
\par no olhar. Marcela se aproximou e a abra\'e7ou com ternura.
\par -Como est\'e1, Ariane? - perguntou ela de forma amistosa. - Faz muito tempo que n\'e3o nos falamos.
\par -\'c9 verdade... - respondeu a outra, confusa.
\par -N\'e3o v\'e3o sentar-se? - interveio Fl\'e1vio. - Acabamos de pedir alguns drinques.
\par -Hum... - fez Marcela. - Deixe ver... Acho que vou querer um coquetel de frutas, sem \'e1lcool.
\par Fl\'e1vio fez o novo pedido e esperou at\'e9 que o gar\'e7om trouxesse os drinques.
\par -O motivo pelo qual a convidei para almo\'e7ar, Ariane - come\'e7ou Fl\'e1vio a dizer -, \'e9 que Marcela e eu estivemos pensando muito em voc\'ea...
\par Marcela o interrompeu com um gesto de m\'e3os e acrescentou em seguida:
\par -Deixe que eu fale, por favor. Afinal de contas, Ariane foi mais minha amiga do que sua. - Fitou a outra, que n\'e3o sabia em que pensar, e concluiu: - N\'e3o
\par foi, Ariane?
\par Ela tomou um gole da bebida e encarou Marcela de volta, respondendo com toda a sinceridade:
\par -Sempre fui sua amiga, Marcela.
\par -Eu sei - concordou Marcela. - Hoje posso compreender. Li o seu bilhete no presente de casamento e compreendi tudo.
\par -Fui sincera quando escrevi aquilo. Eu realmente gosto muito de voc\'ea. Tenho-lhe uma amizade que jamais tive por mais ningu\'e9m.
\par -Sei disso e agrade\'e7o. No princ\'edpio, logo que a verdade veio \'e0 tona, fiquei furiosa, sentindo-me tra\'edda, mas depois consegui entender a sua ilus\'e3o.
\par -N\'e3o quero me desculpar novamente pelo que fiz. Nem quero justificar a minha atitude acusando ningu\'e9m. Fiz o que fiz porque, como voc\'ea mesma falou, deixei-me
\par levar por uma ilus\'e3o... - fitou Fl\'e1vio discretamente e abaixou os olhos - a ilus\'e3o de que, afastando-a de Fl\'e1vio, ele seria meu. Hoje n\'e3o penso mais assim e sei
\par que o que julgava sentir por Fl\'e1vio era outra ilus\'e3o. Eu n\'e3o o amo, e voc\'ea pode acreditar em mim quando digo isso. Tenho-lhe muito carinho, mas n\'e3o o amo. Do contr\'e1rio,
\par n\'e3o poderia estar aqui, conversando sobre isso com voc\'eas dois.
\par Fl\'e1vio desviou o olhar, meio sem jeito por estarem falando dele, mas Marcela prosseguiu:
\par -Sabemos de tudo isso. E n\'e3o creio que seja saud\'e1vel revivermos o passado. Fiz com que Fl\'e1vio a trouxesse aqui hoje para lhe dizer que n\'e3o estou mais com
\par raiva e acredito na sua amizade.
\par -Minha atitude naquela \'e9poca pode ter sido trai\'e7oeira, mas meu sentimento n\'e3o foi. E eu me sentia muito mal por ter que fazer aquilo.
\par -Sei disso.
\par Durante o resto do almo\'e7o, continuaram conversando sobre
\par o passado e os projetos para o futuro, acertando as diferen\'e7as e esclarecendo os mal-entendidos. Quando aquele almo\'e7o terminou e Ariane voltou para o trabalho, sentia
\par o peito mais leve e o cora\'e7\'e3o livre. A amizade de Marcela era muito importante para
\par ela, muito mais do que o amor que pensara sentir por Fl\'e1vio.
\par ***
\par Com o passar dos meses, as coisas foram retomando a normalidade. Ariane tinha um bom emprego e se preparava para ingressar na faculdade de enfermagem. A m\'e3e e Justino
\par j\'e1 come\'e7avam a pensar em morar juntos, assim que o desquite de Anita se consumasse.
\par Numa tarde de domingo, Ariane estava em casa dando um jeito em suas gavetas quando o telefone tocou. A m\'e3e e Justino haviam ido levar o irm\'e3o ao cinema, junto com
\par alguns amiguinhos, e ela estava sozinha. Ao atender o telefone, prendeu a respira\'e7\'e3o e escutou em sil\'eancio a voz do outro lado. Sem dizer nada, fez uma anota\'e7\'e3o
\par num caderninho e, em seguida, colocou o fone no gancho, trocou de roupa e saiu. Na rua, fez sinal para um t\'e1xi e deu ao motorista o endere\'e7o que havia anotado minutos
\par antes.
\par Levaram algum tempo para chegar ao local indicado, e Ariane se surpreendeu quando o motorista parou o t\'e1xi e, voltando-se para ela, informou:
\par - S\'f3 d\'e1 para ir at\'e9 aqui, madame. O resto, a senhora vai ter que ir a p\'e9.
\par Estavam parados em uma ladeira, e Ariane constatou que o n\'famero indicado no papel ficava na parte que subia o morro, onde n\'e3o havia mais passagem para carros. Assustada,
\par pagou o motorista e saltou. Havia bares dos dois lados da rua, e as pessoas a olharam desconfiadas, mas n\'e3o disseram nada. Embora pobres, eram, em sua maioria, gente
\par direita e decente, que aproveitava o domingo para tomar uma cerveja e ver jogos de futebol com os amigos, pela pequena TV em preto e branco colocada em um dos bares.
\par Sem dizer nada, ela come\'e7ou a subir a ladeira, que agora se estreitava para s\'f3 dar passagem a uma pessoa de cada vez. O
\par 337
\par cal\'e7amento era prec\'e1rio, e ela, v\'e1rias vezes, escorregou ou prendeu o salto do sapato nas reentr\'e2ncias das pedras. N\'e3o precisou caminhar muito at\'e9 que encontrou
\par o n\'famero que procurava. Bateu na porta uma, duas, tr\'eas vezes, mas ningu\'e9m atendeu, at\'e9 que ela colocou a m\'e3o na ma\'e7aneta, e a porta cedeu sem maiores esfor\'e7os.
\par Ariane entrou num c\'f4modo escuro e sujo, cheirando a mofo e v\'f4mito. Imediatamente, sentiu n\'e1useas e recuou, respirando o ar puro da tarde. Encheu o peito de ar e
\par tomou coragem, entrando novamente. Deixou a porta aberta e foi caminhando na
\par semiescurid\'e3o, at\'e9 que viu algu\'e9m deitado numa cama perto da parede, roncando sonoramente.
\par Ela se aproximou e fitou o pai ali largado, lutando contra a vontade de fugir correndo. Abaixou-se perto dele e cutucou-o gentilmente primeiro e, depois, com mais
\par for\'e7a.
\par -Pai! - chamou. - Acorde, pai!
\par Ele levou algum tempo para abrir os olhos, piscando-os v\'e1rias vezes, at\'e9 que a reconheceu e se sentou na cama.
\par -Ariane! - surpreendeu-se. - Voc\'ea veio.
\par -O que est\'e1 fazendo num lugar desses? - tornou ela, indicando o ambiente ao redor.
\par -Estou falido, minha filha - come\'e7ou a chorar. - Arruinado. Desde que sua m\'e3e me deixou...
\par -N\'e3o culpe mam\'e3e pelos seus erros, pai. E depois, todos sabemos que voc\'ea n\'e3o est\'e1 assim por causa dela, mas sim de Dolores.
\par Ele arregalou os olhos, admirado, e balbuciou:
\par -Como... como foi que descobriram?
\par -Isso n\'e3o importa agora. Venha. Vou tir\'e1-lo daqui.
\par Ela o ajudou a se levantar e guardou suas roupas em uma mala, dando gra\'e7as a Deus por ainda estarem em bom estado.
\par -Para onde vamos? - quis saber N\'e9lson, apoiando-se nela para n\'e3o cair.
\par -N\'e3o sei. Para qualquer lugar com ar fresco e luz. Isso aqui cheira mal, e o ar est\'e1 viciado.
\par Quando ela saiu amparando o pai, notou que algumas pessoas os encaravam com uma certa hostilidade e sentiu medo. Estava num lugar distante, e ningu\'e9m sabia que ela
\par fora ali. Contudo, ela e o pai passaram em seguran\'e7a e foram descendo a ladeira, at\'e9 que alcan\'e7aram a rua, e ela p\'f4de chamar um t\'e1xi.
\par -Para onde vamos, mo\'e7a? - perguntou o motorista.
\par -Voc\'ea conhece alguma pens\'e3o que n\'e3o seja cara, mas decente?
\par -Hum... Deixe ver. Sei de uma no centro da cidade. Normalmente, \'e9 utilizada por caixeiros viajantes para o pernoite. Serve?
\par -\'c9 um lugar direito?
\par -\'c9. N\'e3o \'e9 de luxo, mas \'e9 limpo e n\'e3o s\'e3o permitidos encontros, se \'e9 o que est\'e1 pensando.
\par -Ent\'e3o serve. Leve-nos para l\'e1.
\par Seguiram para l\'e1, e o pai come\'e7ou a chorar, apertando as m\'e3os da filha nos olhos \'famidos.
\par -N\'e3o posso ir para minha casa? - choramingou ele.
\par -Voc\'ea n\'e3o tem mais casa, pai. Foi voc\'ea quem nos deixou, lembra-se?
\par -Estou arrependido...
\par Ariane sabia muito bem o que era o arrependimento, mas n\'e3o podia for\'e7ar a m\'e3e a aceitar o pai de volta. N\'e3o agora, que ela havia, finalmente, encontrado a felicidade
\par ao lado de Justino.
\par -Sei que est\'e1 - respondeu ela. - Mas mam\'e3e tem outra vida agora.
\par -Ela tem outra pessoa?
\par -Tem - Ariane n\'e3o queria tocar no nome de Justino naquele momento e mudou de assunto: - De quem era aquele barraco em que voc\'ea estava?
\par -De uma amiga.
\par Ariane n\'e3o fez mais perguntas, imaginando que tipo de amiga seria aquela. De qualquer forma, n\'e3o lhe cabia julgar e devia mesmo agradecer \'e0 tal amiga por ter mantido
\par o pai vivo at\'e9 aquele momento.
\par Finalmente, chegaram \'e0 pens\'e3o, e eles saltaram defronte a um pr\'e9dio antigo no centro da cidade, tombado pelo patrim\'f4nio hist\'f3rico, meio descascado e com janelas
\par altas. \'c0 primeira vista, n\'e3o parecia grande coisa, mas entraram mesmo assim. Na recep\'e7\'e3o, Ariane se surpreendeu com a limpeza e o bom gosto do ambiente que, embora
\par simples, era bem arrumadinho, com m\'f3veis lustrosos e cortinas de rendas nas janelas.
\par Uma senhora gorda veio atend\'ea-los, e ela pediu um quarto para o pai.
\par -\'c9 para passar a noite? - indagou ela desconfiada, olhando de Ariane para N\'e9lson.
\par -N\'e3o, senhora. \'c9 para passar uns tempos. N\'e3o se preocupe, pago adiantado. -A mulher ainda os olhava desconfiada, e ela achou melhor esclarecer: - \'c9 para
\par o meu pai.
\par -Ah! Bom, ent\'e3o est\'e1 bem. Quer com banheiro ou sem banheiro?
\par -Com banheiro.
\par Ela apanhou uma chave e levou os dois para o quarto, enquanto ia ditando as regras da pens\'e3o. Ariane concordou com tudo e acomodou o pai numa cadeira, satisfeita
\par porque era um c\'f4modo arrumado e limpo. Depois que a mulher se foi, ela falou:
\par -Muito bem, pai, estou disposta a ajud\'e1-lo porque voc\'ea \'e9 meu pai e n\'e3o vou deix\'e1-lo largado por a\'ed, em qualquer pocilga. Mas voc\'ea tem que me prometer que
\par vai parar de beber - ele assentiu, e ela continuou: - O que houve com a cl\'ednica?
\par -Est\'e1 fechada. Estou falido, devendo a Deus e o mundo.
\par -Ent\'e3o, vamos vend\'ea-la e saldar suas d\'edvidas. Com o que sobrar, veremos o que fazer.
\par -N\'e3o vai sobrar nada.
\par -N\'e3o faz mal. Pelo menos, pague o que deve e durma em paz.
\par -De que vou viver?
\par -Vai ter que arranjar um emprego.
\par -Quem \'e9 que vai me dar emprego nessa idade?
\par -Voc\'ea \'e9 m\'e9dico.
\par -Sempre fui um p\'e9ssimo m\'e9dico.
\par -Pois ent\'e3o, trate de melhorar. Voc\'ea tem um diploma, use-o.
\par -Ah! Minha filha, sou um fracassado. Perdi a cl\'ednica, os amigos e a fam\'edlia. Tudo por causa daquela mulher!
\par -N\'e3o acuse ningu\'e9m pela sua derrota, pai. Voc\'ea se envolveu com Dolores porque quis. Sei bem o que \'e9 isso.
\par Embora N\'e9lson n\'e3o tivesse compreendido muito bem o que Ariane dissera, n\'e3o fez mais perguntas. Ela o estava ajudando, e ele devia ser-lhe grato. Ainda mais depois
\par de tudo o que havia feito.
\par -Voc\'ea est\'e1 com raiva de mim? - perguntou ele.
\par -Se estivesse, n\'e3o teria vindo ajud\'e1-lo.
\par -\'c9 verdade. Sei que a magoei... a voc\'ea e a seu irm\'e3o, principalmente. Mas estou arrependido.
\par -Compreendo o seu arrependimento, e voc\'ea vai ter muitas oportunidades de demonstr\'e1-lo. Mas agora, voc\'ea precisa reagir e sair desse estado lastim\'e1vel. Ou
\par quer que Huguinho fique decepcionado com voc\'ea?
\par -\'c9 claro que n\'e3o! Quero que meu filho volte a se orgulhar de mim.
\par -Pois ent\'e3o, fa\'e7a o que eu digo. Por hoje, descanse. Amanh\'e3, depois do trabalho, passo aqui para ver como voc\'ea est\'e1 e vou ajud\'e1-lo a procurar emprego.
\par -Voc\'ea est\'e1 trabalhando? - ela assentiu. - Onde?
\par -Na cl\'ednica de Justino e Fl\'e1vio. Tamb\'e9m eu encontrei quem me ajudasse.
\par Ele n\'e3o disse nada. Sentia-se cansado e com vontade de beber, mas tinha que resistir.
\par -Estou com fome - queixou-se ele.
\par -Vou ver se arrumo alguma coisa para voc\'ea comer. Agora, tome um banho e descanse. J\'e1 est\'e1 ficando tarde, e preciso voltar para casa. Qualquer coisa, me telefone.
\par Ela deu um beijo no rosto do pai e saiu. Pagou uma semana adiantado pelo quarto e, por uns trocados a mais, a dona da pens\'e3o arrumou um prato de comida para N\'e9lson.
\par Nos outros dias, ele comeria juntamente com os demais h\'f3spedes.
\par N\'e9lson sempre foi um m\'e9dico incompetente, e tornou-se dif\'edcil arranjar-lhe emprego nessa \'e1rea. Mas Ariane contou a Justino e Fl\'e1vio que o encontrara, e Justino a
\par ajudava, mandando algum dinheiro para as despesas dele, sem que ele soubesse.
\par Ao menos, ele estava tentando melhorar. Com a ajuda de Ariane, deixou de beber e largou as jogatinas. Perdeu a cl\'ednica, que Ariane vendeu para quitar as d\'edvidas,
\par sobrando muito pouco para ele. Todos os dias, ela ia visit\'e1-lo na pens\'e3o, o que o ia reanimando, at\'e9 que p\'f4de se sentir forte o suficiente para voltar a trabalhar.
\par A muito custo, e novamente com a interfer\'eancia de Justino, N\'e9lson arranjou um emprego no gabinete m\'e9dico de uma grande empresa. N\'e3o ganhava muito, mas era um emprego
\par decente, e ele ao menos conseguia se manter. Com a ajuda de Ariane, alugou um apartamento de quarto e sala no sub\'farbio e conseguiu levar uma vida mais ou menos equilibrada,
\par embora
\par dependente dos filhos para n\'e3o cair na tristeza e na depress\'e3o. Ariane e Hugo passaram a ser sua \'fanica alegria, e foi a partir de
\par ent\'e3o que ele aprendeu o valor da fam\'edlia.
\par ***
\par Quanto a Dolores, o esc\'e2ndalo que provocara no casamento de Fl\'e1vio, al\'e9m de arranhar profundamente a sua reputa\'e7\'e3o, afastou-a da conviv\'eancia com o c\'edrculo de fofocas
\par em que vivia. Solit\'e1ria e sem amigos, confortava-se com a presen\'e7a do filho e da nora. N\'e3o gostava de Marcela, mas ela era a \'fanica que realmente se importava, e
\par Dolores se pegava ansiando pela sua visita, a fim de minorar sua solid\'e3o.
\par Aos poucos, pois, sem que percebesse, tornava-se dependente da compaix\'e3o de Marcela, que a tratava sempre com gentileza e aten\'e7\'e3o. Mas Dolores, presa ainda ao endurecimento
\par de seu cora\'e7\'e3o, precisaria encarnar novamente para tentar empreender uma modifica\'e7\'e3o. O que importava para o plano espiritual, contudo, \'e9 que a semente fora lan\'e7ada,
\par e seria atrav\'e9s de Marcela e dos netos que ela lhe daria que Dolores come\'e7aria a semear, embora de forma prec\'e1ria, os sentimentos que a aproximariam, mais tarde,
\par dos verdadeiros valores do esp\'edrito.
\par Ep\'edlogo
\par J\'e1 se haviam passado quase nove meses desde que Cec\'edlia havia tentado matar Luciana. Como Cec\'edlia e Gilberto eram r\'e9us prim\'e1rios, conseguiram responder o processo
\par em liberdade, ainda mais porque a v\'edtima n\'e3o havia morrido. Cec\'edlia esperou por longos dias a chegada do advogado prometido por Dolores, mas ele nunca veio. Dolores
\par jamais cumpriu a sua promessa.
\par Cec\'edlia agora estava no hospital. Luciana recebeu um telefonema, pedindo que l\'e1 comparecesse com urg\'eancia, porque Cec\'edlia estava entre a vida e a morte, e pedia
\par para lhe falar. Luciana entrou no hospital p\'fablico acompanhada de Ma\'edsa e, quando chegaram, souberam que Cec\'edlia havia acabado de morrer, ap\'f3s dar \'e0 luz um menino.
\par -Voc\'ea sabia que ela estava gr\'e1vida? - sussurrou Ma\'edsa ao ouvido de Luciana.
\par -N\'e3o. Nem imaginava.
\par As duas foram conduzidas a uma sala, onde uma senhora conversava com o m\'e9dico. Quando elas entraram, o m\'e9dico pediu licen\'e7a e as deixou sozinhas.
\par -Qual de voc\'eas \'e9 Luciana? - indagou ela, e Luciana se apresentou. - Pois bem, vou ser r\'e1pida. Cec\'edlia teve eclampsia e faleceu esta manh\'e3, mas o beb\'ea sobreviveu.
\par -Perd\'e3o - interrompeu Luciana-, mas quem \'e9 a senhora?
\par -Desculpem-me. Na pressa, esqueci de me apresentar. Sou Ant\'f4nia Macedo, advogada de Cec\'edlia.
\par -Advogada?
\par -Sim. Fui contratada para defender Cec\'edlia. Que coisa estranha, essa mo\'e7a. Parecia at\'e9 que sabia o que aconteceria e pediu que eu viesse \'e0s pressas.
\par Luciana e Ma\'edsa se entreolharam sem entender, e foi a primeira quem falou:
\par -A senhora est\'e1 querendo nos dizer que, sabendo que ia morrer, Cec\'edlia pediu a presen\'e7a de um advogado?
\par -O certo seria um padre - comentou Ma\'edsa.
\par -Mas por qu\'ea? - questionou Luciana, olhando para Ma\'edsa com ar reprovador.
\par -Cec\'edlia queria fazer um testamento.
\par -Testamento? E desde quando ela tem bens?
\par -Tem um filho. Como eu disse, parecia que ela sabia o que aconteceria e pediu-me que fizesse o testamento para ela. Ajudei-a com as formalidades legais para
\par nomear voc\'ea, Luciana da Silva e Souza, a tutora legal de seu filho.
\par -O qu\'ea?! - Luciana deu um salto para tr\'e1s e se agarrou em Ma\'edsa. - Eu?! Tutora do filho de Cec\'edlia? Da mulher que tentou me matar?
\par -Bem, o filho dela n\'e3o tentou matar ningu\'e9m.
\par -Mas por que ela fez isso? Por que logo eu?
\par -Foi a forma de demonstrar o seu arrependimento.
\par -Essa n\'e3o! Isso n\'e3o \'e9 sinal de arrependimento. \'c9 armadilha!
\par -E o pai? - interrompeu Ma\'edsa. - A crian\'e7a h\'e1 de ter um, com certeza.
\par -O pai n\'e3o a quer.
\par -E a fam\'edlia dela?-A advogada meneou a cabe\'e7a. - E a dele?
\par -Ningu\'e9m a quer. Desde que Cec\'edlia foi presa, todos lhe voltaram as costas. Por isso, ela nomeou voc\'ea como tutora.
\par -Isso \'e9 um disparate! - objetou Ma\'edsa. - Luciana n\'e3o pode ser for\'e7ada a aceitar um encargo desses. Aquela mulher tentou tirar a vida dela.
\par -Aquela mulher est\'e1 morta.
\par -N\'e3o posso fazer isso - contestou Luciana. - N\'e3o estou preparada para criar uma crian\'e7a.
\par -Se n\'e3o aceitar, o beb\'ea vai para um orfanato.
\par -E da\'ed? - continuou Ma\'edsa: - Algu\'e9m h\'e1 de querer o menino. Tem tanta gente querendo adotar uma crian\'e7a!
\par A advogada soltou um largo suspiro e finalizou com des\'e2nimo:
\par -Voc\'ea \'e9 quem sabe. De qualquer forma, tem dois dias para pensar. \'c9 o tempo m\'e1ximo que o beb\'ea ainda pode ficar aqui.
\par A advogada juntou as suas coisas e foi embora, deixando com Luciana um cart\'e3ozinho com o seu telefone.
\par -Isso \'e9 um absurdo - falou Ma\'edsa, assim que deixaram o hospital. - Voc\'ea n\'e3o vai aceitar, vai?
\par Luciana olhou para ela sem saber o que dizer.
\par -N\'e3o sei.
\par -Mas, Lu, voc\'ea n\'e3o pode!
\par -Por que n\'e3o?
\par -N\'e3o acredito no que estou ouvindo! Voc\'ea est\'e1 pensando em aceitar?
\par -Estou considerando a id\'e9ia. Afinal, eu ia aceitar ser m\'e3e, se estivesse gr\'e1vida, do filho de meu estuprador. Adotar o filho de Cec\'edlia, depois disso, n\'e3o
\par me parece assim t\'e3o terr\'edvel.
\par -N\'e3o sei se h\'e1 diferen\'e7a entre eles. A conduta dos dois foi abomin\'e1vel.
\par As palavras de Rani alcan\'e7aram a sua mente, e Luciana as ouvia como se fossem seus pr\'f3prios pensamentos, alertando-a de algo que sentira acerca da maternidade alguns
\par meses antes, quando se julgara gr\'e1vida.
\par -A crian\'e7a n\'e3o tem nada com a atitude dos pais - comentou Luciana pensativa. - Que mal ela me fez?
\par -Nenhum.
\par -Pois ent\'e3o, \'e9 algo a se pensar.
\par Luciana foi para casa naquele dia refletindo sobre aquela estranha coincid\'eancia. N\'e3o fazia muitos meses, pensara que estava gr\'e1vida, mas n\'e3o estava. E agora lhe
\par aparecia um beb\'ea, por outro caminho. O beb\'ea n\'e3o era dela, mas ser\'e1 que n\'e3o lhe caberia a tarefa de educ\'e1-lo?
\par Ao dormir, logo Rani estava a seu lado. Luciana j\'e1 se familiarizara com o esp\'edrito amigo e sorriu para ela quando a viu.
\par -Aconteceu, n\'e3o foi? - perguntou Rani. - Voc\'ea tem em suas m\'e3os a oportunidade de ser m\'e3e.
\par -Voc\'ea sabia que isso ia acontecer! - afirmou Luciana
\par perplexa. - Por que n\'e3o me disse logo? Por que me deixou pensar que estava gr\'e1vida?
\par -Fiz isso para preparar o seu esp\'edrito. Se voc\'ea conseguiu aceitar a id\'e9ia de gerar e criar o filho do homem que a estuprou, talvez fosse mais f\'e1cil aceitar
\par criar o filho de Cec\'edlia. Foi id\'e9ia dos esp\'edritos luminosos, e deu certo.
\par -Realmente...
\par -Voc\'ea s\'f3 precisou de um tempo para se preparar, deixando a id\'e9ia germinar em sua mente e no seu cora\'e7\'e3o, tal qual a crian\'e7a no ventre de Cec\'edlia.
\par -Por qu\'ea? Por que teve que ser assim?
\par -A gente devolve o que a gente tira.
\par -Nunca tirei a vida daquele beb\'ea, que eu me lembre.
\par -Tirou a vida da m\'e3e dele e deixou o pai dela feito louco. Tirou-lhe a alegria de viver porque perdeu a filha amada.
\par -Voc\'ea quer dizer...? - ela se calou, perplexa. - Quer dizer que o filho de Cec\'edlia \'e9 aquele que foi o pai dela?
\par -Exatamente como eu a havia prevenido. Cec\'edlia est\'e1 lhe dando a oportunidade de se reconciliar com ele. Por que a recusa?
\par -Eu... n\'e3o me recuso.
\par -Ent\'e3o, vai aceitar ser sua tutora? Mais do que isso: vai ser sua m\'e3e?
\par Ela n\'e3o respondeu, mas acordou com as palavras de Rani em sua mente, sentindo a necessidade de aceitar aquele encargo que n\'e3o havia ido parar em suas m\'e3os por acaso.
\par Ligou para Ma\'edsa e falou por telefone.
\par -Ma\'edsa, eu aceitei.
\par -Sabia que voc\'ea faria isso. Voc\'ea est\'e1 segura do que est\'e1 fazendo, n\'e3o est\'e1?
\par -Estou.
\par -Bom, seja o que Deus quiser.
\par -Vai comigo busc\'e1-lo?
\par -Vou.
\par Depois, Luciana telefonou para a advogada. Cec\'edlia foi sepultada naquele mesmo dia, e no dia seguinte Luciana e Ma\'edsa foram buscar a crian\'e7a.
\par -H\'e1 alguns procedimentos legais para finalizar, mas eu j\'e1 tenho
\par uma autoriza\'e7\'e3o judicial para voc\'ea - disse a doutora Antonia. - Entrarei em contato com voc\'ea assim que tudo estiver pronto.
\par Estavam paradas em frente ao ber\'e7\'e1rio, e Luciana viu quando a enfermeira apanhou um beb\'ea miudinho e sumiu com ele por uma porta lateral. Em poucos instantes, estava
\par a seu lado, com o beb\'ea no colo, estendendo-o para ela.
\par -Pegue-o - incentivou a advogada. - Ele agora \'e9 seu filho.
\par Meio sem jeito, Luciana estendeu os bra\'e7os, e a enfermeira
\par neles ajeitou, gentilmente, o beb\'ea adormecido. Ele era lindo. Era pequenino, mas rosado e quase sem cabelo.
\par -\'c9 uma gracinha! - elogiou Ma\'edsa, embevecida.
\par -Gostou do seu afilhado?
\par -Voc\'ea quer que eu seja madrinha dele?
\par -H\'e3, h\'e3.
\par As duas se despediram e voltaram para casa, onde haviam improvisado acomoda\'e7\'f5es para o beb\'ea. Haviam-lhe comprado as coisas b\'e1sicas, como roupas e fraldas, mas tinham
\par que esperar at\'e9 que entregassem o ber\'e7o comprado \'e0s pressas. Depois de acomodado o beb\'ea em sua pr\'f3pria cama, cercado de almofadas e travesseiros, Luciana correu
\par para o telefone e ligou para Marcela:
\par -Al\'f4? - era a voz de Marcela.
\par -Oi, Marcela, sou eu, Luciana - foi ela logo dizendo. - Estou ligando para lhe fazer um convite. Voc\'ea quer vir aqui em casa conhecer o meu beb\'ea?
\par -Que beb\'ea? - retrucou Marcela, sem nada entender.
\par -O meu filho.
\par -Desde quando voc\'ea tem filho?
\par -Venha aqui, e eu lhe contarei.
\par Desligaram e, menos de uma hora depois, Marcela estava em sua casa, louca para saber que hist\'f3ria era aquela de filho.
\par -Voc\'ea n\'e3o vai acreditar, Marcela - falou Ma\'edsa, levando-a at\'e9 o quarto, onde Luciana dava mamadeira \'e0 crian\'e7a.
\par -Quem \'e9 esse beb\'ea lindo? - indagou Marcela espantada.
\par -\'c9 o filho de Cec\'edlia - esclareceu Ma\'edsa.
\par -N\'e3o - objetou Luciana. - Este aqui \'e9 o meu filho.
\par As tr\'eas se olharam ao mesmo tempo, sentindo fluir entre elas uma compreens\'e3o rec\'edproca, e depois se viraram para o beb\'ea,
\par que havia acabado de mamar e dormia agora satisfeito no colo de Luciana.
\par E, vendo os dois ali reunidos, ningu\'e9m teria d\'favidas em dizer que era uma m\'e3e acalentando seu filho.
\par FIM...}{\rtlch\fcs1 \af2 \ltrch\fcs0 \insrsid14751337
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