quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014 By: Fred

{clube-do-e-livro} Mais 5 livros de Vera Lúcia M. Carvalho : A Casa do Escritor, A Casa do Penhasco, A Mansão da Pedra Torta, Escravo Bernardino, Rosana e a Terceira Vítima Fatal


A CASA DO ESCRITOR

A CASA DO ESCRITOR
O Copyright by Petit Editora e Distribuidora Ltda. 1993
1a Edição/impressão: outubro/93 - 20.000 exemplares
2a Reimpressão: setembro/94 - 10.000 exemplares
3a Reimpressão: novembro/94 - 10.000 exemplares
4a Reimpressão: fevereiro95 - 1 5.000 exemplares
5a Reimpressão: junho/95 - 15.000 exemplares
6a Reimpressão: dezembro95 - 20.000 exemplares
7a Reimpressão: agôsto/96 - 15.000 exemplares
8a Reimpressão: março/97 - 5.000 exemplares
9a Reimpressão: junho/97 - 20.000 exemplares

Capa; criação, arte final e foto
Flávio Machado

Fotolito da capa
Stap - Stúdio Gráfico

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
133.9 Patrícia (Espíríto)
P341c A Casa do Escritor/pelo Espirito Patricia;
psicografado por vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.
- São Paulo: Petit, 1993.
I S B N - 85-7253-001-0
1. Espiritísmo 2. Romance mediúnico
I.Carvalho, Vera Lúcia Marinzeck de. II.Título
CDU: 133.9
Índices para catálogo sistemático:
1. Romance mediúnico: Espiritísmo 1 33.9
Direitos autorais reservados. É proibida a reprodução total ou parcial. de qualquer
forma ou por qualquer meio, salvo com autorização da editora. Ao reproduzir
este ou qualquer livro pelo sistema de fotocopiadora ou outro mcio.
você estará
prejudicando: a editora, o autor e a você mesmo. Existem outras
alternativas,
caso você não tenha recursos para adquirír a obra. Informe-se. É melhor do que
assumir débitos.
Impresso no Brasil na Primavera de 1997
A CASA DO ESCRITOR
PSICOGRAFIA DE
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
PETIT EDITORA E DISTRIBUIDORA ITDA.
Ruo Rtuoí, 383 - V. Esperonço - Penho - fone: (O1 1 ) 684-6000
CEP 03646-000 - São Paulo - SP
Correspondência p~re:
Caixa Postal 67545 - Rg. Rlmeido limo - CEP 0310Q-970
São Paulo - SP

Outros livros psicografados pela medium
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho:
Com o Espírito Antônio Carlos:
- Reconciliação
- Cativos e Libertos
- Copos que Andam
- Muitos são os Chamados
- Filho Adotívo
- Reparando Erros
- A Mansão da Pedra Torta
- Palco das Encarnações
- Aconteceu
- O Talismã Maldito

Com o Espírito Patrícia:
- Violetas na Janela
- Vivendo no Mundo dos Espíritos
- O Vôo da Gaivota

Com Espíritos diversos:
- Valeu a Pena
- Perante a Eternidade


INDICE
PREFÁCIO
A COLÔNIA DE ESTUDO
COLÔNIA TRIÂNGULO, ROSA E CRUZ
RECORDANDO O PASSADO
A CASA DO ESCRITOR
O JORNALISTA
A REUNIÃO
APRENDENDO SEMPRE
A BIBLIOTECA
NO üMBRAL
TRABALHANDO COM A EQUIPE
EXCURSÕES
FATOS INTERESSANTES
MEU PAI
A HISTÓRIA DE LORETA
NO TÉRMINO

É sempre um prazer termos em mãos uma obra de encantos
mil. É com orgulho carinhoso que prefacio esta obra. A Casa do
Escritor é meu lar, amo o trabalho que ela promove.
Patrícia, com sua linguagem simples ejovem, descreve-a tão
bem que nos comove. É deveras A Casa do Escritor como foi
narrada. É um pólo positivo da Literatura Brasileira e, principalmente,
da Espírita, que tanto bem e tantas instruções tem
semeado.
Ajovem escritora, que por algum tempo abrilhantou com sua
presença nossa adorável Colônia, soube bem aproveitar todos os
instantes aqui presente e até nas simples conversas soube aproveitar
a oportunidade para conhecer. Com os trabalhos de equipe soube
ser útil. E em todos os eventos soube aproveitar o máximo para
depois escrever este livro.
A Casa do Escritor é uma realidade que nossa Patrícia tão
bem expõe aos seus leitores. Espero que este livro seja um incentivo
a todos que trabalham com a Literatura edificante. E também aos
que possam vir a trabalhar.
Felizes os que se instruem e fazem dos seus conhecimentos
alimentos saborosos para aqueles que anseiam por conhecer.
Caros leitores, aqui está uma obra fantástica, um bocadinho
de frutos do Saber sobre o Plano Espiritual. E que tão bem Patrícia
nos descreve.
Alegria!
Antônio Carlos
São Carlos - SP - 1993

I
A COLONIA DE ESTUDO
Como foi diferente o estado de alegria que senti quando
chegou o momento de iniciar nova etapa de estudo. Um profundo
júbilo preencheu toda minh'alma à revelia do meu controle mental.
Veio-me à memória o dito do grandioso Nazareno aos seus discípulos.
Trechos que tirei para meditar do Evangelho de João, dos
capítulos XIV e XV. "Eu vos dou a minha Paz, vos dou a alegria,
para que completa seja vossa Paz, repleta a vossa alegria."
Que paz e alegrias eram estas? Pois foram dadas por um
homem que não possuía nada, não desfrutava de bens mundanos. E,
mais, ainda foram ditas antecedendo horas de muitas dores e
tristezas, fatos e dificuldades que Ele iria enfrentar.
A paz e a alegria que Jesus distribuía não estavam ligadas ao
nosso modo de ver e viver. E, no entanto, eram vividas por um
homem de carne, osso e espírito como nós.
Quando encarnados, nossa alegria está ligada a sensações e
prazeres dos sentidos, e até à satisfação de uma conquista mental,
seja de força ou de erudição. A felicidade que buscamos no plano
fisico é sinônimo de ociosidade, prazer e ausência de dificuldades.
Não conseguimos compreender que as dificuldades, quando não
criadas por nós mesmos, são por via de regra instrumentos da
natureza que não nos deixa cair na inatividade, pois a monotonia é
a própria morte. A natureza é vida que se renova incessantemente.
Como num acender de luzes, compreendi que a alegria perene
não pode estar ligada a pessoas ou coisas. Não pode depender de

10 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

estímulo nenhum para que aconteça. É um estado de ser em ventura,
sem limites, por saber compreender. É viver a vida pela vida e não
para ganhar alguma coisa ou atingir um fim.
Conheci a felicidade real.
Dois anos se passaram, nos quais fiquei a estudar na Colônia
de Estudo: a Casa do Saber. Foi um período maravilhoso em que
muito aprendi, fiz novos amigos, amadureci espiritualmente. Recordo
que, ao chegar à Casa do Saber, me emocionei até as lágrimas
e exclamei comovida:
- Esta Colônia é linda! Que lugar de encantos e sonhos!
De fato, a Casa do Saber é um lugar que para os encarnados
só se poderia comparar a encantadores sonhos.
Antônío Carlos, meu amigo querido, acompanhou-me. Volitamos
tranqüilos.
- Patrícia, vamos agora devagar. Observe a Colônía, é ali,
naquele ponto radiante.
Vi um ponto luminoso branco e logojá distinguia os prédios
e jardíns. A Colônia não é cercada. É fantástico vê-la, volitando.
Meu amígo me esclareceu:
- A Colônia de Estudo não tem sistema de defesa. Todos que
nela habitam vibram numa mesma intensidade que a sustenta. E só
consegue vê-la quem vibra igual.
A Colônia está suspensa no ar, como que em címa de uma
grande e sólida nuvem. Para os encarnados, no lugar não existe
nada, não é perceptível à visão dos encarnados e dos desencarnados
que não sintonizam com suas vibrações.
Descemos no círculo que está em sua volta. Para que me
entendam, nesta parte sólida em que está a Colônia há um beiral de
alguns metros e logo estão seus prédios e pátios.
Sorri encantada e atendi ao convite do meu cicerone.
-Vamos entrar, Patrícia. Primeiramente iremos cumprimentar
o diretor da casa.
Caminhamos. Não há diferença do solo das outras Colônias.
A Casa do Saber é uma Colônia pequena, está dividida em ruas.

A casa do Escritor 11

Andamos tranqüilos, nada de desconfiança. As pessoas que encontramos
sorriam cumprimentando-nos. Olhava tudo curiosa. Tudo
tão lindo! O ar é perfumado, a brisa é suave. Os prédios, harmoniosos.
É uma Colônia encantadora, na qual poderia passar horas
só olhando o conjunto, a Colônia em si.
Paramos em frente de um prédio e entramos. Numa porta,
com uma placa eserita Diretoria, meu amigo bateu e logo ela foi
aberta. Antônio Carlos abraçou efusivamente um senhor de agradável
aspecto, que em seguida veio até mim.
- Esta é Patrícia de quem lhe falei.
- Sou Alfredo. Encantado por tê-la conosco. Já escutei falar
muito de você. Então, gostou da nossa Colônia?
- Oh, me parece encantadora. O prazer é meu de estar aqui,
sou grata pela acolhida. Amo aprender. Estar aqui é tudo que almejo
no momento.
Alfredo é muito agradável, olhar inteligente e sorriso amável.
Por alguns momentos, os dois amigos passaram a trocar notícias de
amigos comuns. Enquanto isso, observei a sala da diretoria. Tudo
ali é paz, ela é espaçosa, com móveis claros, bonitos quadros na
parede e vasos com flores. Bem atrás da eserivaninha estava
bordada a oração de São Francisco de Assis, tão conhecida de todos
nós. Em todos os lugares onde há equilíbrio, onde se cultiva a paz
e harmonia, há um encanto especial, tudo se torna maravilhoso. E
por toda a Colônia reina a alegria de se estar bem consigo mesmo.
- Patrícia - disse Alfredo, gentil -, vou pedir a Rosely para
acompanhá-la numa excursão pela Colônia para que a conheça.
Tocou uma suave campainha e uma moça loura, muito
bonita, sorriso franco, entrou na sala.
- Oi, sou Rosely.
- Eu, Patrícia.
Sorrimos, foi como se a conhecesse há muito tempo. Antônio
Carlos me elucidou.
- Patrícia, aqui terá sempre esta sensação de conhecer todos.
É uma união por vibração. Estou contente, pois vejo que está a
vibrar em harmonia com todos aqui.

12 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

- Venham comígo, terei um enorme prazer de mostrar
a Colônia a vocês.
Despedimo-nos de Alfredo e emocíonados acompanhamos
nossa jovem cicerone.
A Colônia não é grande. Conhecemos sua parte externa
meia hora, mínutos que passei extasiada. Acompanhava as explicações
de Rosely.
- Este prédio é o da Orientação. Aqui estão os gabinetes dos
professores e a diretoria. Este outro é o das salas de aula, da
biblioteca e das salas de vídeos. Aí estão as salas de palestras.
Devido às muitas palestras que podem ocorrer ao mesmo
tempo são várias as salas, tendo uma bem grande para maior
número de assistentes e que serve também para o teatro. Este prédio
é simples, bem decorado, tendo lindos quadros e muitas flores. As
cadeiras são giratórias, tudo muito confortável. É tudo harmonioso,
convidando à meditação e à prece.
- Este aqui é o prédio destinado aos alunos. Venham, vamos
entrar.
É um prédio de quatro andares todo dividido em gabinetes.
Tudo muito limpo e claro. Não posso mais denominar este espaço
particular a cada um de quarto. Aqui não se dorme e nem se
alimenta. É um cantinho seu, onde se estuda, medita, ora, ete.
Rosely nos levou ao que me foi destinado. É uma sala grande,
arejada, que chamarei de gabinete.
- Que lugar encantador! - exclamei comovída.
Emocionei-me e fiquei alegre por ser ali o lugar em que
passaria horas no longo periodo que permaneceria na Casa do
Saber. Ali estava uma eserivaninha toda trabalhada, linda. Uma
estante, dois sofás e uma mesinha com um lindo vaso com florzinhas
azuis. A janela dava para o pátio todo florido. Estranhei por
não haver abajures, lustres, algo que demonstrasse ter luz artificial.
Antônio Carlos, como sempre lendo meus pensamentos, sorrindo,
tratou de me esclarecer.
- Aquí não escurece. A luz do sol brilha sempre. Colônias
nesta dimensão não seguem a rotação da Terra. Estão fixas e
recebem os raios benéficos do nosso astro rei o tempo todo.

A casa do Escritor 13

- Então, não é como a Colônia São Sebastião que está
sempre no espaço da cidade de São Sebastião do Paraíso?
indaguei curiosa.
- Não, colônias de estudo, como algumas outras, não estão
vinculadas a lugares na Terra, estão no espaço da Terra, no todo.
Aqui existem algumas colônias que são para servir o povo brasileiro,
logo depois estão as de outros países; muitas são para todos os
terráqueos, que se comunicam pelo esperanto e pelo pensamento.
- Sensacional! Não verei a noite! - exclamei.
- A noite tem seu encanto - disse Antônio Carlos. - Mas a
verá sempre que visitar a Terra, familiares e as Colônias de
Socorro.
- E como saberei quando é noite lá na Terra? - indaguei
novamente.
- Para ter um controle no calendário, a Colônia segue o
horário, como dia e hora do Brasil. Temos também aqui a sala do
Relógio, neste local há o horário de todos os países da Terra.
- Antônio Carlos - quis saber curiosa -, como achou a
Colônia entre tantas? Veio tão fácil!
- Pela sintonização. Mentalizei a Casa do Saber e vim pela
vibração. Logo aprenderá a usar este processo, porque irá se
locomover muito e irá só. Já é bem grande e auto-suficiente para
sair sozinha.
Rimos com a brincadeira.
Trouxe poucos objetos que deixei em cima da eserivaninha.
Após, ao estar a sós, organizei-os. Coloquei alguns livros na
estante, cadernos de anotações na eserivaninha e as fotos de meus
familiares na parede e na minha mesa de trabalho. Não trouxe nada
de pessoal. Não trocava mais de roupa. Visto calças compridas
largas e camiseta azul-clara. Sinto-me bem assim.
Fomos conhecer o restante da Colônia.
- Aqui é a parte mais bonita - disse Rosely.
Parei deslumbrada com a encantadora paisagem. Tudo
parecia brilhar, como se o local fosse pontilhado com centenas de

14 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

estrelinhas. Sentia-me leve, como uma nuvenzinha a bailar com a
brisa suave. À minha frente estava o harmonioso e fenomenal
jardim da Casa do Saber. Muitas árvores, todas perfeitas, sadias e
floridas. As variedades são tantas que não há duas árvores da
mesma espécie. Estão sempre floridas. Suas flores de diversas cores
e perfumes dão à visão total uma combinação de cores que encanta.
As árvores parecem desfilar tranqüilas, ensinando-nos a ser equilibrados
e harmoniosos para o bem de quem nos vê. Muitos são os
canteiros entre as árvores, são formados de flores delicadas,
coloridas, que brilham. Os canteiros formam frases, figuras convidando
a reverenciar o Criador. Muitos bancos estão espalhados por
todo ojardim e são confortáveis, alguns de balanço, outros em baíxo
de caramanchões floridos.
-Aqui, também, costumamos ouvir palestras de convidados
de outras esferas, que sempre nos brindam com seus ensinamentos
- disse Rosely, chamando-me de volta à realidade, porque, diante
de tanto encanto, me pareceu por instante que fazia parte da própria
natureza, comunguei por momentos com as belezas que ali via.
Antônio Carlos sorria ao me ver embevecida.
- É tão bom estar em um lugar de Paz, heim Patrícia?
Sorri, concordando. Qualquer opinião dada era pouco para
descrever tanta harmonia.
- Neste recanto - disse Rosely, mostrando a ala direita -
estão o lago e a cascata.
Um pequeno rio brota do solo, corre uns cinqüenta metros e
forma um pequeno lago. Suas águas claras e cristalinas deixam ver
no fundo suas pedras de diversos tamanhos e cores. Não resisti e
coloquei minhas mãos n'água. Sua temperatura é como o ambiente,
agradável, é tão leve que não nos molha; levei-a aos lábios e não
posso compará-la à mais pura das águas do planeta Terra, é bem
melhor. Dei um suspiro, que fez meus companheiros sorrirem e
exclamei extasiada:
- Que beleza!
Do outro lado do lago está a cascata, a água desce entre
plantas e flores, após entra no solo desaparecendo.

A casa do Escritor 15

- Aqui é o lugar predileto para as meditações e o preferido
dos pensadores - disse Rosely. - Agora vou levá-la a sua sala de
aula, onde sua turma está tendo a primeira aula.
- Despeço-me de você, Patrícia - disse Antônio Carlos.
- Agora você já conhece sua nova morada.
- Estou encantada e agradecida, Antônio Carlos. Obrigada
por tudo.
Abraçamo-nos com carinho.
Entramos, Rosely e eu, no prédio das salas de aula, estava
emocionada. Atravessamos corredores e paramos diante de uma
porta na qual minha cicerone bateu de leve. A porta abriu e um
senhor de agradável aspecto nos cumprimentou, sorrindo.
- Boa tarde! Sou Leonel.
- Boa tarde! Sou Patrícia.
Uma nota curiosa, na Casa do Saber usa-se muito o cumprimento
"A Paz esteja convosco" ou "A Paz seja convosco!" Às
vezes, costuma-se dirigir-se ao outro com um oi ou um olá. Como
não escurece, não se usa nunca o boa-noite, mas, às vezes, costuma-se
ouvir os cumprimentos tradicionais da Terra de bons presságios
como bom-dia e boa-tarde. Realmente, se desejados de coração,
recebemos com os cumprimentos votos de harmonia.
- Entre, por favor.
Leonel dirigiu-se a mim gentilmente e virando-se para a
turma me apresentou. Esta é mais uma aluna. Seu nome é Patrícia.
Fique à vontade, logo conhecerá todos. Acomode-se.
Acomodei-me numa eserivaninha. Olhei a sala, era grande,
espaçosa, tinha quarenta alunos que me olharam sorrindo. Senti-me
à vontade.
Logo no primeiro intervalo me enturmei. Todos eram excessivamente
agradáveis. Já não se conversava mais sobre desencarnações
ou o que era ou o que foi quando encarnado. O assunto
preferido era sobre estudos. Encantei-me com todos.
Assim, os dias sempre calmos, horário todo preenchido,
o tempo passou rápido, como sempre acontece quando estamos
felizes.

16 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

A Casa do Saber foi meu lar por dois anos consecutivos. A
maior parte do tempo passei nas salas de aula, nas salas de palestras
e no Recanto da Paz, como é chamado o jardim da Colônia. Ali,
vendo as flores, a cascata, muito pensei, meditei no que aprendia.
Amadureci muito, era uma nova Patrícía, equilibrada, mais feliz
ainda, só não mudara minha sede de saber, de conhecer.
Tive, neste período, muitos mestres que foram verdadeiros
amigos e dos quais guardo as melhores recordações e sentimentos
de gratidão.
Aprendi muito dos Evangelhos e do Plano Espiritual. Passei
a falar corretamente o Esperanto e a me comunicar pelo pensamento,
no final do curso só nos comunicávamos assim. Visitamos outras
Colônias de Estudo na mesma área, eram todas um tanto parecidas,
cada qual com seu encanto. Fomos a muitas Colônias de outros
países, onde treinamos o Esperanto e a comunicação pelo pensamento.
Estas excursões nos maravilharam, é sempre agradável
conhecer e fazer novos amigos.
O estudo nesta Colônia é também uma complementação do
estudo que fiz anteriormente e que descrevi no livro "Vivendo no
Mundo dos Espíritos". Muito vi e aprendi. Mas maravilhava-me
cada vez mais com os conhecimentos que adquiria e ansiava por
continuar sempre aprendendo.
Tínhamos muitas horas de estudo por dia, completávamos
com muitos trabalhos que fazíamos em grupos. Fiz muitas amizades,
todos os habitantes da Colônia eram e são meus amigos, mas
sempre há alguns que nos completam mais, são mais afins. Entre
eles, uní-me com sincero carinho a Lúcia, Inês e Murllo.
Reuníamo-nos em grupinhos nos gabinetes, ora de um, ora de
outro, para trocar idéias. No começo, conversávamos, após o grupo
ficava em silêncio e se comunicava pelo pensamento. Éramos
alegres sem ser alvoroçados. Reuníamo-nos também no jardim,
sempre debaixo de algum caramanchão, sentados nos seus bancos
confortáveis, tendo por companhia as frondosas árvores que nunca
deixei de admirar.

A casa do escritor 17

Tínhamos momentos livres, nos quais tanto podíamos receber
visitas como sair a visitar. Aprendi logo a me locomover nesta
esfera e a achar com facilidade a Casa do Saber. Nas minhas horas
livres, ia à Colônia São Sebastião rever amigos, visitar, na Terra,
meus familiares e sempre ditava mensagens a eles.
Há sempre muitos estudantes nestas Colônias. Todos unidos
pelo objetivo de aprender, são espíritos afins. A turma dos veteranos
se une em conversação sadia com os novatos e o assunto preferido
é o que se estuda no momento. Freqüentávamos muito a biblioteca
e íamos sempre às salas de vídeos. Não eram somente meus lugares
preferidos, mas de todos. Nestas salas, acha-se de tudo, seus
assuntos são completos. Não só freqüentávamos para fazer os
trabalhos, como também íamos nas horas de lazer para ver ou rever
fitas ou livros de nosso agrado.
Nesta Colônia ou em Colônias assim, não há mais o tão
comentado bônus-hora. Bônus-hora é uma forma de pagamento de
trabalhos prestados como um incentivo para ser útil. É usado nas
Colônias de Socorro. Tudo o que se faz numa Colônia de Estudo é
por prazer, por vontade. E é sentida a imensa gratidão por ali estar.
Só quem almeja o Saber, ama o aprender, realiza-se numa Colônia
de Estudo. Para mim, foram dois anos de imensas alegrias, em que
tive o prazer de desfrutar a harmonia desta Colônia encantadora.

II
COLONIA TRIANGULO, ROSA E CRUZ

Lembrei dos ensinos que ouvi de meu pai e que só vim a
compreender agora, após tanto estudo. É um ensinamento sobre
sintonia e unidade.
A lagarta, na sua estafante peregrinação pelo solo e galhos
à caça de folhas, não se descuida um segundo sequer da sua união
com a natureza. No término do seu tempo como lagarta, procura um
local adequado, fecha-se em si mesma e entrega-se ao Criador.
Findo o tempo necessárío, renasce como borboleta com vida e ação
completamente diferentes da sua vida anterior. Que fantástico! Que
exemplo nos dá esta filha da natureza.
Com os homens, os acontecimentos se tornam complexos. A
maioria tem contornos de dor e sofrimento. Perdemos a sintonia.
Não sabemos mais confiarno Criador. Afastamo-nos, e desta forma
ficamos fragmentados, separados do centro comum, que é Deus.
Conseqüentemente nos agarramos à forma atual, impermeáveis
a modificações naturais. Só à custa da ajuda de irmãos dedicados
conseguimos pouco a pouco atingír estados que poderiam ser
atingidos quase de imediato.
Com a morte do corpo fisico, se socorridos em Postos de
Socorro, levamos conosco costumes, vícios, condicionamentos de
comida e bebida, até superstições e sectarismo religioso. O que
a lagarta faz inconscíente, temos que realizar conscíentes. Aos
poucos, vamos abandonando as necessidades de alimentação,


A casa do escritor 19

depois aprendemos a nos comunicar através da língua universal.
Ultrapassando, não necessitamos de símbolos da linguagem. Comunicamo-nos
com vibrações mentais, chegando assim bem próximos
do silêncio verbal e mental, quase prontos para neste silêncio
ouvir o que Deus tem a nos dizer.
Foram feitas várias excursões durante o curso a outras
Colônias, Postos de Socorro, no Umbral, hospitais, lugares que já
descrevi no livro "Vivendo no Mundo dos Espíritos". Encantei-me
de modo especial com as excursões a outras Colônias de Estudo e
as do Plano Superior, onde passamos horas de agradável convívio
e inebriados com tantas belezas.
Foi enorme alegria para o meu coração visitar a Colônia
e Triângulo, Rosa e Cruz. Esta Colônia é intermediária entre o
Óriente e o Brasil. É uma Colônia habitada por orientais e brasileiros,
visando um aprendizado maior entre as duas culturas, principalmente
a sabedoria que une a Deus.
Não é fácil descrevê-la para os encarnados. É algo deslumbrante,
belezas que encantam. Está no espaço ao centro do Brasil
não muito longe da Colônia Nosso Lar, um pouco mais acima para
o Norte. Esta Colônia é localizada pela vibração. Quando se quer
encontrá-la, concentra-se e se é atraído para ela.
Saímos para visitá-la, nós, os quarenta alunos, um instrutor
e um morador oriental da Triângulo que viera para nos acompanhar.
Fomos volitando um ao lado do outro. Ao aproximar-nos, volitamos
devagar para melhor apreciar o local. No espaço onde está a
Colônia, o céu é mais azul, o ar mais puro e rarefeito. De longe, a
Colônia parece um enorme castelo sobre as nuvens. Um encanto! O
castelo é branco e brilha como uma delicada estrela.
- Parece que estou vendo um castelo de contos de fadas -
disse Hércules, um colega.
Concordamos com ele. À medida que nos aproximávamos a
visão do castelo ficava mais linda. Triângulo, como é chamada, não
tem muro, as paredes são as divisas. Não tem nenhuma proteção e
nem aparelhos de defesa. É que esta Colônia só é vista, encontrada,

20 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

pelos que vibram muito bem e sabem concentrar-se para se gui
pela sua vibração.
Seu formato é de um triângulo, tendo em cada lado um
portão. Esta Colônia parece de cristal, tendo o brilho e a brancura
que dão reflexos de muitas cores suaves. Nas paredes do lado de
fora, há desenhos em relevo e inserições. São desenhos de figuras
humanas em atitudes de oração e adoração ao Pai. Esta Colônia é
cópia das antigas, porém é uma das mais atuais Colônias do Oriente.
Colônias que existem há milênios. As inserições são orientais,
algumas frases são em Português. Frases que glorificam a Deus.
- Só por ter visto isto me sinto realizada. Que maravilhaf
- exclamou Lúcia, outra companheira.
Tem sete torres arredondadas, sendo três mais altas. Seus
telhados são em tríângulo e são de tonalidades azul-clarinho,
parecem ser também de cristal. Paramos na frente do portão
principal.
- Vamos, por favor, ficar observando mais um pouquinho
- pediu extasiado Fábia.
Era a vontade de todos. Passei a mão devagarinho na parede,
senti o sólido da construção e pude observar de perto a delicadeza
e a perfeição de seus desenhos. O portão é diferente dos quejá vira
no mundo espíritual, é muito bonito. Não é feito de nenhum metal
que encarnado conhece, é dificil compará-lo. É grande e tem um
enorme emblema de formas perfeitas idealizado por um excelente
artista. O emblema é de um branco puro um pouco diferente do
branco que enxergava quando encarnada. Este emblema sobressai
de tal forma que, ao vê-lo, parece que só o vemos. Um encarnado,
ao vê-lo, pensaria que é feito de pedras preciosas.
O oriental que nos acompanhava aguardou tranqüilo que
observássemos a parte externa da Triângulo. Quando nos agrupamos
de novo, ele mentalizou por segundos e o portão foi aberto.
Certamente que sabiam que estávamos lá fora, mas só foi aberto o
portão quando o oriental mentalizou. E a nossa primeira lição sobre
a Triângulo foi dada pelo nosso acompanhante.

A casa do escritor 21

- O portão só abre ou fecha por sintonia da mente de um dos
seus moradores.
- Genial! A mente aqui é como um controle remoto -
exclamou Hyolanda.
- Um controle de alta precisão que não falha - disse nosso
instrutor sorrindo.
- Aqui não escurece? Já era para ser noite. Daqui dá para ver
a noite logo ali. Esta Colônia não está vinculada à rotação da Terra?
- indagou Miriam, outra componente do grupo.
- Sim - respondeu esclarecendo nosso instrutor. - Triângulo
está na esfera que segue a rotação da Terra. De fato, daqui de fora
podemos ver o sol e a noite com suas estrelas. Mas a claridade na
Colônia é sempre amena, parece estar sempre numa manhã de sol
de clima perfeito. Não há iluminação artificial. Seus construtores
também fizeram a iluminação, que é sustentada continuamente
pelos seus habitantes.
Fomos convidados a entrar. Atravessamos um hall ou um
espaço grande coberto, todo em tons de azul. O piso com azulejos,
ou mosaicos, algo parecido, que formavam lindos desenhos. Nas
paredes, inserições e desenhos em relevo de flores e animais.
Paramos para olhar. Peço desculpas aos leitores por não conseguir
descrever tantas belezas que o cérebro fisico desconhece e não tenho
para certos objetos nem como comparar.
- Que verdadeiras obras de artes! - exclamou lnes encantada.
- Damos muito valor ao Belo, à harmonia perfeita da arte que
vem inspirada do Criador, para que todos ao contemplar possam
reverenciar o Pai a quem tudo devemos - falou respeitoso o oriental.
Dali, passamos a um pátio ao ar livre, com lindos canteiros
redondos, com flores que eu desconhecia. O piso entre os canteiros
parece ser de estrelas pequeninas, cintilantes, a brilhar ora uma, ora
outra. Nunca vira um jardim tão lindo e nem flores de tamanho
encanto. Aproximei-me de uma flor que nos dá leve lembrança da
nossa rosa. Uma flor brilhante, azul-clara, que exala um suave
perfume.
- Que delicioso perfume! - exclamei admirada.

22 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

- Esta flor, Patrícia- disse nosso instrutor-, exala o perfume
predileto de quem a cheira. Está aqui linda deste jeito, como todas
as outras, desde a inauguração desta Colônia há muitos anos.
- Que maravilha!
Exclamei e tentei passar a mão na flor, que se afastou, seu
galho se ergueu para o outro lado.
- Oh! - disse baixinho a ela. - Não quero lhe fazer nenhum
mal. Queira me desculpar, ia atrever-me a passar meus dedos nas
suas delicadas pétalas.
A flor voltou ao seu lugar, afastara-se pelo seu instinto mais
apurado. Não me atrevi a aproximar-me mais dela. Flores são para
admirar, não para pegar. Por mim, não sairia mais daquele jardim,
encantada com suas plantas. Admirava cada flor com seus formatos
diferentes e cores harmoniosas. Mas o instrutor nos convidou a
entrar.
- Vamos visitar as salas de audiência.
Os salões são de rara beleza, simples, com lindos quadros,
nas paredes, de Jesus ensinando. Embaixo dos quadros, trechos dos
Evangelhos, principalmente de Mateus, do Sermão da Montanha.
Vasos de flores brancas estão sempre presentes, encantando o
ambiente. Os salões são amarelo claro. Em um deles, fomos
convidados a sentar nas confortàveis poltronas e um dos orientadores
da casa veio nos abrilhantar com suas explicações.
- Sejam bem-vindos à Triângulo, Rosa e Cruz, prezados
convidados.
Deu uma pausa e nos olhou sorrindo. Era oriental, fisionomia
tranquila, transmitia uma Paz que o tornava lindo. Vestia uma
túníca branca com emblema no peito, o mesmo que vimos no portão.
Muitos ali se vestem assim. Outros vestem roupas ocidentais, mas
predomina a roupa de cor branca.
- Primeiramente, quero lhes informar que esta Colônia não
está vinculada a religião nenhuma na Terra. Tem este nome porque
triângulo é o seu formato. A rosa, nome de uma flor que tiramos da
natureza numa linda manifestação de Deus. A cruz porque nós, os
orientais, queremos nos aprofundar nos ensinamentos cristãos.

A casa do escritor 23

Aqui estamos com o objetivo de trazer nossos melhores e reais
conhecimentos à raça brasileira e com ela aprender cada vez mais.
Aqui estamos para servir, trabalhar entre os encarnados e os
desencarnados. E também preparar os ocidentais brasileiros para
reencarnar no oriente, levando a países orientais ensinos cristãos.
Agora, se quiserem fazer perguntas, estejam à vontade.
- Senhor, por favor, como devo dirigir-me a sua pessoa?
- indagou Marystela. - Devo me dirigir ao senhor por mestre? Pai?
- Mestre é aquele que ensina, pai é o que orienta. Aqui
empregamos muito estas duas formas de tratamento. Minha cara
convidada, sinta-se à vontade para dirigir-se a mim como quiser.
Meu nome é Chuan.
- Mestre - disse Marystela sorridente -, está aqui há muito
tempo? Pretende reencarnar? Onde? No Brasil ou no Oriente?
- Estou há bastante tempo aqui e devo ainda permanecer por
muitos anos. Não tenho data para reencarnar e devo retornar ao
corpo fisico no Brasil.
- Os moradores permanecem muito tempo aqui? - quis saber
Laura.
- Só ficam mais tempo os orientadores. A maioria faz
rodízio, ficam aqui e em Colônias no Oriente. Muitos, após um
curso, reencarnam.
- Os construtores desta Colônia foram somente orientais?
Estão ainda aqui? - indagou Inês.
- Sim, foram os orientais que a planejaram e construíram. A
maioria veio somente para este evento e voltou ao Oriente. Alguns
ficaram e três ainda estão conosco.
- Tem dado resultado este intercâmbio? - indagou Murilo.
- Sim, tem dado. Embora nosso trabalho seja considerado
como uma grande plantação que no futuro dará doces e sábios
frutos.
Como ninguém indagou mais, Chuan concluiu.
- Aqui temos tentado nos despir de todos os preconceitos.
Devemos ser todos iguais e esforçar-nos para nossa melhoria.
Tanto que a orientadora geral desta casa nos tem dado inúmeros

24 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

exemplos de bondade e dedicação. Esta Colônia foi construida
o intercâmbio das duas raças e para tirar o melhor que há
para o Bem de todos nós. Os orientais que desejam reencarnar
no Brasil, aqui fazem cursos de língua e costumes para melhor
orientação. Também orientamos os brasileiros que querem reencarnar
no Oriente. Nosso principal objetivo é nos realizar interiormen te,
levar com nossos exemplos outros a fazê-lo. Somos todos irmãos,
devemos aprender a nos amar como tais.
- Que agradável palestra! - exclamou Lúcia. - É tão simples
e cativante, poderia ficar a ouvi-lo por muitas horas.
Concordamos com ela, mas nossa excursão tinha que seguir
o horário já organizado. Fomos ver outro salão, o de música. Uma
suave e delicada melodia se ouvia. Muitos dos moradores
estavam desfrutando de suas horas de lazer a escutar tão encantadoras
melodias. É uma sala diferente, agradável, com lindos
quadros na parede exaltando a música. Só se escutam canções do
mundo Espiritual.
Ao passarmos pelo pátio, vimos um grupo de encarnados
entrando no salão. Admíramo-nas, surpresos. Uns estavam extasiados
com tantas belezas, outros, talvez acostumados, estavam
normalmente, uma minoria parecia um pouco alheia. O oriental que
nos acompanhava esclareceu.
- São encarnados filiados a nossa Colônia. Seus corpos :
Bsíquicos estão dormindo. Sempre estamos recebendo grupos de
encarnados. Aqui são trazídos para receberem orientações e ,
incentivos.
- Todos os filiados da Triângulo conseguem êxito nas
encarnações? - indagou Murilo.
- Gostaríamos que todos fossem bem sucedidos. A luta é
igual para todos. Infelizmente há os que fracassam diante das
dificuldades do plano fisico.
O silêncio desta Colônia é divino. Não se faz barulho ao
caminhar. Pouco se fala. Quase sempre se ouvem conversas de
grupos de visitantes. Entre os moradores só se usa a telepatía, a
comunicação pelo pensamento.

A casa do escritor 25

Fomos visitar a biblioteca da Colônia. Grande, espaçosa e
silenciosa. Nada se escuta, com a nossa presença o silêncio foi
quebrado com algumas expressões de surpresa e com algumas
perguntas. Suas estantes são trabalhadas, são do mesmo material de
que é construída a Triângulo. Parece cristal. São poucos os livros
de literatura brasileira. A maior parte dos livros são religiosos e de
cultura geral. O restante dos livros são orientais. Alguns são
traduzidos. Há livros raros, uns grandes, outros em papiros. São
cópias de livros que se encontram nas Colônias Orientais. Infelizmente
não teríamos tempo para lê-los, só observamos. É a biblioteca
da Triângulo um lugar encantador.
Subimos em algumas torres. São tão lindas! Pudemos
ampliar nossa visão, vimos a Terra de longe e de perto como se
estivéssemos num avião, voando mais baixo. Para subir na torre
volita-se devagar.
Após, fomos conhecer, ao lado direito, uma ala que se chama
Lar de Repouso.
- Aqui estão os recém-desencarnados que são filiados à
Colônia do Triângulo. Onde se hospedam por determinado tempo.
- Todos os filiados são socorridos e trazidos para cá logo
após a morte do corpo? - indagou Jorge Luís.
- Não. Infelizmente só os que têm merecimento são socorridos
após a morte do corpo e recolhidos no Lar do Repouso. Há os
fracassados, estes têm por afinidades lugares a que fizeram jus. Mas
todos os filiados recebem nossa ajuda. Logo que possível estes
filiados são orientados, às vezes, por certo tempo, em outras
Colônias. Quando aptos, trazemo-los ao Lar.
Esta parte nos faz lembrar as acomodações das muitas
Colônias de Socorro. Tudo é simples e com muitas flores. Ali vimos
água. Um pequeno e encantador chafariz que, além de embelezar,
serve aos hóspedes de alimento fluídico. Nosso acompanhante
esclareceu.
- É o único alimento que temos na Colônia. E está aqui no Lar
do Repouso porque os alojados necessitam desta nutrição. O resto

26 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

dos habitantes da Colônia não faz uso d'água, nem de plantas.
Sustentam-se com o fluido vital do Criador.
A água é igual à da Colônia de Estudo. Não molha, é limpida.
O chafariz é de cristal ou algo que se pode comparar a esta pe
para os encarnados terem uma idéia. É verde claro, tem fonna
simples. Os recém-chegados gostam de sentar-se a sua volta. Um
deles nos disse:
- Só de ver o chafariz sinto-me alimentado.
Esta ala tem alojamentos onde os abrigados descansam.
Ficamos quarenta e sete horas visitando a Colônia, ouvindo
palestras e encantamo-nos com tudo. Observamos desde o teto, suas
paredes, o piso, suas flores, quadros, tudo nos maravilhava.
Só podem visitar Colônias assim espíritos que estão em
Colônias de Estudo. Indivíduos mais esclarecidos e totalmente
edificados com o mundo dos Espíritos. Fora do Lar do Repouso
ninguém se alimenta e nem faz exercícios para se nutrir, pois isso
ocorre automaticamente. Não se necessita descansar. Aprendemos
na Colônia de Estudo estes detalhes. Logo nos primeiros meses de
estudo, nem após as excursões no Umbral necessitávamos de
descanso ou de nutrição.
Chegou a hora de nos despedirmos. As saudações de Paz
foram mentais, olhamos sorríndo, fazendo reverência com a cabeça.
Ao atravessarmos o portão, volitamos perto um do outro. Olhei ;
para trás, a Triângulo realmente parece com um castelo de fadas. ..
Foi maravilhosa a excursão. Quarenta e sete horas de sublime
encantamento que ficarão guardadas para sempre na minha memória
perispiritual. Alegría!

III

Um RECORDANDO O PASSADO

Frederico, meu amigo desde os primeiros tempos de desencarnada,
vinha sempre me visitar. Conversávamos tranqüilos pelos
jardins da Colônia de Estudo. Sabia que éramos amigos de outras
encarnações. Somos espíritos afins e é sempre agradável tê-lo por
companhia. Meu passado, a vivência de outras encarnações, visso
me à mente, primeiro em pequenos lances, depois em pedaços
maiores até formar um complicadojogo de quebra-cabeças. Numa
destas conversas com ele, pedi:
- Frederico, tenho recordado momentos de minha encarnação
anterior da qual sei que você faz parte. Gostaria de recordá-la
toda. Você me ajudaria?
- Quem recorda sozinho está apto a fazê-lo. O passado a nós
pertence. Cada encarnação é uma caixinha fechada no nosso
cérebro espiritual. Basta abri-la para recordar. Muitos o fazem
sozinhos, sejam encarnados ou desencarnados, outros necessitam
de ajuda. De fato, Patrícia, faço parte do seu passado. Vou ajudar
a completar seu quebra-cabeça.
Olhou-me tranqüilo, mas profundamente. As recordações
vieram em seqüência como num filme que passava na minha própria
mente.
Vivia feliz com minha família numa pequena e singela
cidade. Tinha por mãe o mesmo espírito de Anézia que é minha
genitora nesta. Éramos pobres mas trabalhadores. Romântica,
sonhava com meu príncipe encantado. Um dia, ao visitar meu
padrinho, um senhor rico da região, dono de propriedades, conheci

28 Vera Lúcia Marinzeck de CARVALHO

Frederico, um jovem médíco, muito boníto, louro com traços
delicados, sorriso franco, que residia na cidade vizinha. Ele estava
hospedado na casa do meu padrinho, eram conhecidos, viera para
visitá-los. Eu completara na época dezesseis anos e nunca havia
namorado. Quando olhei para ele, ao sermos apresentados, meu
coração disparou, o amor antigo de outras existências ressurgiu
forte. Frederico também me amou assim que me viu. Ficamos
conversando, depois ele me acompanhou até minha casa. Combinamos
encontrar-nos no dia seguinte à tarde. Após uma semana de
encontros escondidos, Frederico foi à minha casa e pediu permissão
ao meu pai para me namorar.
- Você é linda, Roseléa! - dizia ele, enamorado. Chamava-
me Roseléa na existência anterior, Curiosamente. tinha os mesmos
traços que tive nesta encarnação e que tenho agora. Era loura, alta,
magra e com olhos azuis.
Dias depois, Frederico teve que voltar a sua cidade, mas
vinha sempre me ver. Apaixonados, resolvemos casar. Mas problemas
surgiram, eu era pobre e ele, rico e filho único. Seu pai era um
abastado fazendeiro e não aceitou o nosso namoro.
- Roseléa - disse Frederico -, meus pais não querem que eu
case com você. Desejam para mim umajovem do nosso nível social.
Mas amo você e insisti. Concordaram, só que exigiram que você se
afaste de sua familia e após nosso casamento fiquemos morando
com eles.
- Não posso, Frederico, afastar-me da minha família. Eu os
amo.
- Se quisermos ser felizes, necessitaremos fazer algum
sacrificio. Senão, nosso amor torna-se impossivel. Sou filho único,
você tem muitos irmãos, seus pais não sentirão tanta falta de você.
Diga a eles a proposta dos meus pais, sinto que entenderão. Neste
mundo, sempre temos que renunciar a alguma coisa para sermos
felizes.
- Mas esta "coisa," é minha família - falei indignada.
- Vocês poderão se corresponder, trarei você uma vez por
ano para vê-los. Só que eles não poderão nos visitar.

A casa do escritor

o fato é que amava Frederico e não queria perdê-lo. Falei
com os meus pais e eles, embora tristes, concordaram. Fui conhecer
os pais de Frederico. Eles não gostaram de mim nem eu deles, mas
tudo fiz para agradá-los. Os pais de Frederico eram instruídos,
ricos, moravam numa mansão enorme que até me assustou. Amavam
demasiadamente o filho e não sabiam negar nada a ele, por isso
concordaram com nosso casamento. Casamos na capela da casa
deles, numa cerimônia simples que não foi assistida por nenhum
dos meus familiares. Frederico e eu estávamos felizes, estávamos
juntos, era tudo o que queríamos. Estava bonita, no dia do
nosso casamento, vesti uma roupa que minha sogra mandou fazer
para mim.
Tivemos por dormitório um belíssimo quarto, era o lugar da
casa onde me sentia à vontade. Sentia-me encabulada perto dos
meus sogros, até dos empregados, era para todos uma estranha que
ali estava para educar-se. Tudo fiz para conquistá-los, eles apenas
me toleravam. Perto de Frederico eles ainda eram educados, longe
do meu marido eram irônicos e estavam sempre me criticando,
lembrando da minha condição social inferior.
Isolava-me cada vez mais em nosso quarto. Para não ficar
sozinha e sem fazer nada, passei a ajudar Frederico como enfermeira.
Aprendi rápido e tornei-me uma boa ajudante. Animei-me mais
com o tempo preenchido. Gostava de ajudá-lo. Frederico era bom
médico, estudara Medicina na França, era atencioso e carinhoso
com todos. Sempre me tratou com carinho. Às vezes, chateava-se
com a indiferença dos pais para comigo, mas acreditava que
acabariam por me aceitar, tão logo tivéssemos filhos.
Durante o tempo que estive casada só vi meus familiares duas
vezes em visitas rápidas, mas nos correspondíamos regularmente.
Dois anos após meu casamento, minha sogra desencarnou.
Pensei que minha vida fosse melhorar, porque era ela quem mais me
ofendia e tinha ciúmes de mim, mas não. Meu sogro, Sr. Nicásio,
queria netos. E começou a nos cobrar diariamente. ele queria a
continuação da família, queria herdeiros. Porque, se Frederico não
tivesse filhos, a fortuna iria para parentes indesejáveis. Frederico e

30 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

eu também queríamos filhos. A cobrança era tanta que esta
desesperada e não conseguia engravidar.
Ajudando Frederico, vi o quanto ele era bom, caridoso;.
cuidava dos pobres e ex-eseravos sem cobrar e até lhes dava
remédios e alimentos. Amava-o muito, mas não era feliz. Sentia
falta de minha família, de minha casa, não me sentia bem naquela
enorme mansão. Tinha um medo terrível de não engravidar e,
também, porque Frederico era muito ciumento não gostava que eu
conversasse com ninguém.
Após quase quatro anos que estávamos casados, ia completar
vinte e dois anos, fatos novos aconteceram. Vieram nos visitar
e conosco ficaram hospedados os padrinhos de Frederico, com um
casal de filhos. A filha mais velha, Hortência, era uma moça muito
educada, instruída e muito bonita. Logo que chegaram, o casal ficou
doente. No começo parecia uma gripe forte. Porém, Frederico
constatou apavorado que era crupe. A difteria não tinha cura
naquela época e quase sempre levava à morte. Frederico isolou-os
numa parte da casa e exigiu que eu e sua ama Maria fôssemos cuidar
deles. María era uma preta, ex-eserava que sempre cuidou dele, os
dois eram muito amigos. Eu não quis ir, Frederico insistiu, eram
os doentes nossos hóspedes e seus padrinhos. Era a pessoa indicada,
já que aprendera muito trabalhando com ele. Meu sogro intrometeu-se
na conversa e disse com íronia:
- Você não serve nem para me dar netos, vê se faz algo útil.
Fui, contrariada. Maria e eu tomamos todas as precauções
devidas para não contrair a doença. O filho, um menino de dezesseis
anos, também ficou doente. Depois de alguns dias enfermo, o casal
acabou morrendo. Hortência estava triste e Frederico dava muita
atenção a ela, fiquei com ciúmes. Estava cuidando do mocinho,
quando senti, apavorada, os sintomas da doença. Adoeci. Maria
cuidava com o carinho de sempre de mim e do menino. Frederico
vinha me ver várias vezes ao dia, sempre preocupado. Meu sogro
não me visitou. As vezes, Hortênciavinha ver o írmão. Estava triste,
chorosa e Frederico a consolava. Odiei-a. Ela sim, pensava, era a
nora desejada, a esposa que um médico merecia. Achei que

A casa do escritor

Frederico se arrependera de ter casado comigo, mandara cuidar dos
doentes para que adoecesse e ficasse livre. Estava magoada com
meu esposo, culpava-o por ter adoecido. Senti muitas dores fisicas,
mas a dor moral e a raiva eram maiores. Sentia-me desprezada e
sozinha. Desencarnei com muita agonia, com ódio de Hortência e
de Frederico.
Fui atraída para o Umbral por vibrar igual. Estava revoltada
por ter desencarnado jovem, não lembrei de Deus, nem de orar.
Durante muitos anos vaguei com rancor pelo Umbral. Até que um
dia um homem me falou:
- Você não é Roseléa, a nora do Nicásio, aquele carrasco?
- Sou.
- Por que está aqui? Gostava do seu sogro?
- Não.
- Você não quer ir a sua casa terrestre? As coisas mudaram
por lá.
- Posso ir para casa? Não sei como.
- Levo você, mas se prometer ajudar a nos vingarmos de
Nicásio.
- Prometo.
Assim, fui levada por ele a minha antiga casa. Quando
vagava perdi a noção do tempo, às vezes achava que fazia muito
tempo, outras, meses somente. É horrível vagar pelo Umbral. Tive
uma grande surpresa ao ver minha ex-família. Frederico estava
casado com Hortência e tinham três filhos, o mais velho, um menino
de nove anos chamado Nicásio, igual ao avô, e duas meninas de sete
e cinco anos. Pareciam todos muito felizes. Frederico e meu ex-sogro
adoravam o pequeno Nicásio. Odiei a todos.
- Então foi mesmo para que morresse que mandou que
cuidasse dos doentes! - queixei-me rancorosa. - Queria casar com
Hortência e ter filhos.
Os outros espíritos que ali estavam, oito, queriam vingar-se
do meu ex-sogro. Este não foi boa pessoa, fez muitas maldades que
Frederico desconhecia. Incentivada por eles, resolvi vingar-me.
Escolhi o filho de Frederico para obsediar, este era sensível, um

32 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

médium. Escolhi porque achei que, fazendo o menino sofrer, meu
ex-sogro, Frederico e Hortência sofreriam juntos. Tinha razão.
Comecei logo a executar meu plano de vingança. Colei-me a
ele. Logo o pequeno Nicásio foi prostrando, adoentou. Frederico
preocupado não achava a causa de sua fraqueza. O menino foi
piorando. Levaram-no a outros médicos, a cidades maiores, tomou
muitos remédios e piorava sempre. Por dois anos ali fiquei sem me
afastar um segundo. Trocando energias com o garoto, sentia-me
melhor e mais animada. Tinha o objetivo de me vingar e era
incentivada e aplaudida pelos outros, que tanto como eu queriam a
infelicidade dos moradores da casa, principalmente do Sr. Nicásio.
Para aumentar minha revolta, narraram com detalhes as infelicidades
que padeceram por causa do avô do menino. Ali estavam
somente alguns a quem ele havia feito terríveis maldades, muitos o
perdoaram. Eram ex-eseravos, colonos, pequenos proprietários de
terra, até uma mulher que foi seduzida e abandonada por ele. Nossa
permanência tornou-se fácil porque naquele lar não havia religião,
não se costumava orar, se orações eram feitas, eram decoradas sem
serem sentidas.
Ria, ríamos com a preocupação de Hortência, com a tristeza
de Frederíco e com o desespero do meu ex-sogro que tanto me havia
desprezado. Tudo me parecia normal, quando o pequeno Nicásio
contraiu crupe. Assustei. Tinha verdadeiro horror a esta doença. Vi
desesperada Frederico angustíado examinar o filho e dizer:
-Não, de novo! Crupe, doença ingrata que leva meus afetos.
Primeiro a esposa adorada, agora meu filho!
Saí de perto do garoto, mas não da casa. Apavorei-me pela
primeira vez, raciocinei sobre o mal que estava fazendo. Fiquei
arrependida. Pedi auxílio aos espíritos que ali estavam. Queria
curar o menino. Não queria sua morte e nem a de ninguém.
- Ajudem-me, por favor! Não podem deixar que ele morra!
Piedade! - exclamei a chorar.
- Ora, que pensa você que somos? - disse-me um deles. - Só
Deus pode fazer o que nos pede. Você pensa que o matou? Não é
nada para isto. Todos morrem porque têm que morrer.

A casa do escritor

Só Deus" - pensei. "Só Deus para ajudar Mas como achá-lo?
Como pedir a Ele?
O menino piorou e desencarnou tranqüilo. Estranhei, porque
ele não ficou ali. Vimos, os espíritos obsessores e eu, uma luz
maravilhosa levá-lo. É que foi socorrido ao desencarnar.
Sofri muito. Saí daquela casa, retornei ao Umbral. Gritava
sem parar: "Sou assassina! Sou assassina!" Como me arrependi de
ter retornado àquela casa. Fiz sofrer um inocente e ele desencarnou.
Pensava nisto o tempo inteiro. Como sofri. O remorso é como um
fogo que queima sem descanso. Andava de um lugar a outro no
Umbral sem descanso, chorando desesperada e repetindo: "Sou
assassina!
Como compreendo agora os que sofrem e vagam pelo
Umbral. Sofre-se tanto que não posso comparar com nenhum
sofrimento que se tem quando encarnado. Naquele tempo, quando
vagava, não lembrava de Deus, não queria, sentia imensa vergonha.
Achava que era indigna até de pronunciar Seu nome. Encontramos
quase sempre dois tipos de sofredores no Umbral. Um, como fiquei,
com remorsos destrutivos, achando-me indigna, merecedora de
castigo e envergonhada. Outros que se revoltam, acham que não
merecem o castigo, blasfemam e odeiam. Todos são infelizes e
carentes de auxílio. Os que sofrem, mas lembram de Deus, pedem
perdão, estes são mais fáceis de serem socorridos.
Um dia, quando andava desolada, escutei:
- Senhora, por favor!
Há muito não escutava alguém se referir a mim em termos tão
suaves e educados. Virei e observei. Vi uma suave luz, prestei mais
atenção, vi um vulto, sem distinguir quem era.
- Quero conversar com a senhora, venha aqui, por favor,
perto de mim.
Fui, sentamos numa pedra. Parei de gritar, aquieci como por
encanto. É que naquele momento sentia os fluidos de harmonia que
me doava o visitante. Conversei em tom normal e indaguei.
- Conhece-me?
- A senhora não quer falar um pouco de si? Por que está tão
triste?

34 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

- Não sei se devo... Não estou triste, estou desesperada,
Sofro tanto!
Ele pegou a minha mão. Pela primeira vez desde que
desencarnei senti um pouco de paz.
- Fale-me da senhora. Que lhe aflíge?
Comecei a falar, como o vulto parecia interessado narrei toda
minha vida. Chorava às vezes, mas meu choro desta vez era calmo
e sofrido. Por momentos, o vulto passou a mão, com imenso
carinho, na mínha cabeça. Percebi que o vulto era de pequena
estatura. Uma criança talvez. Não omiti nada, falar tudo me deu um
certo alivio. Quando acabei, ele me disse:
- Por que se atormenta assim? Sabe que não é possível um
desencarnado matar um encarnado. Você o obsediou, mas foi
porque ele aceitou. Teria o pequeno Nicàsio como lição passar por
tudo isto. Por que você não pede perdão a Deus e a ele? Tenho
certeza de que, se for síncera, ambos a perdoarão.
- Tenho vergonha. Como posso pedir perdão a Deus tão bom
e justo pelo meu crime tão feio? E Nicásio, como achá-lo? Não me
perdoaria.
- Perdoaria sím.
- Como sabe?
- Porque eu sou o Nicàsio.
Foi então que o vi. O pequeno Nicásio lindo, risonho e
tranqüílo. Olhava-me sereno. Quis fugir, mas ele segurou forte
minha mão.
- Não fuja! Fique comigo. Quero tanto continuar conversando
com a senhora.
- Tenho vergonha.
Fez-se um silêncio. Abaixei a cabeça, mas fui olhando
devagar para ele. Continuava a me olhar sorrindo.
- Não está com ódío de mim? - atreví-me a perguntar.
- Não. Não tenho ódio, prefiro cultívar o amor. É bem
melhor.
- É, deve ser - disse com voz baixa. E pensei: "Enquanto eu
odiava e sofria, ele amava e era feliz".

A casa do escritor 35

- Por que não perdoa a si mesma? Você não faria nada do que
fez de novo, não é?
- Não! Não faria! - comecei a chorar.
Nicásio esperou que me acalmasse para depois dizer:
- Você foi imprudente, mas não foi má. Nada tenho contra
você. Quero ajudá-la.
- Não mereço ajuda, sim, sofrer.
- Já sofreu e muito. Permite que eu a abrace?
Ele me abraçou com carinho. Senti
seu fluido. Ajoelhei a seus pés.
- Nicásio, pelo amor de Deus, me perdoe!
- Perdôo-a! Venha comigo.
Levantou-me com carinho. Segui-o de mãos dadas. Levou-me
a um Posto de Socorro. Como me senti bem neste local de
auxílio. Grata, era obediente, não gritei mais, só chorava de
arrependimento. Nicásio vinha me ver sempre, seu afeto sincero e
sua bondade me ajudaram muito. Logo melhorei. Quando tive alta
do Posto de Socorro, fui para uma Colônia aprender e trabalhar. Um
dia, Nicásio me levou ao meu antigo lar.
Lá nos esperava Hortência que também havia desencarnado
dois anos após o filho. Ao vê-la envergonhei-me. Como é triste ter
de enfrentar os que prejudicamos. Mas ela me abraçou com tanto
carinho que logo me senti à vontade. Sentamos na varanda para
conversar.
- Roseléa, seu ódio, seu rancor não teve razão de ser, se
tivesse procurado entender, compreender, tudo teria sido mais fácil
a você. Frederico sempre a amou. O remorso muito o tem castigado.
Não fez por mal ou com intenção de prejudicá-la. Pensava que você
com os conhecimentos de enfermeira e sendo tão forte não adoeceria.
Sofreu tanto com seu desencarne! Tempos depois casamos por
conveniência. Fomos, somos somente amigos. Sempre fui apaixonada
por outro homem. Adolescente, apaixonei-me por um moço
pobre, e nos encontrávamos escondidos. Meu pai, ao saber, mandou
matá-lo. Sofri muito. Quando meus pais e meu irmão desencarnaram
fiquei sozinha. Frederico e eu nos consolávamos mutuamente.

36 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Casamos para ter filhos. Tivemos uma vida tranqüila e falávam
sempre dos nossos amores. Mas, Roseléa, sofri muito com tudo
por todos.
Chorei baixinho. Agora não estava perturbada, mas o remorso
não me abandonou. Vi o tanto que fui imprudente. Hortência
sofreu tanto e eu agravei seu sofrimento obsediando o filho.
- Perdoe-me, Hortência.
Ela me abraçou carinhosamente.
Rever Frederico me emocíonou muito. Entendi que ele
sempre me amou. Estava viúvo por duas vezes e não pensava en
casar novamente, de fato não o fez. Amava e dedicava-se cada vez
mais à Medicina. O porão da casa era um pequeno hospital cheio
de doentes pobres. O Sr. Nicásio estava louco com a morte do neto
que adorava, e os obsessores puderam atormentá-lo. Quis ajudá-lo
Incentívada por Hortência e o menino Nicásio, me fiz visível a eles
aos obsessores, pedi, implorei que o perdoassem e viessem conosco
Falei a eles o que ocorrera comigo e o tanto que era bom estar en
paz, das belezas dos Postos de Auxílio. Deram-me atenção, senti
que se interessavam, alguns vieram, outros não. Muitas vezes fui
até eles e tentei ajudá-los como também auxiliar o meu ex-sogro.
pouco que fiz me deixou contente. Após muitas conversas, todos os
obsessores vieram conosco. Mas o Sr. Nicásio tinha uma dolorosa
colheita, plantou muitos males. Quando desencarnou, o neto pôde
socorrê-lo. Demorou para se recuperar.
- Sabe, Roseléa- disse uma vez o pequeno Nicásio. - Se você
me obsediou foi porque eu aceitei. Por erro do passado, tinha como
colheita uma lição dolorosa. Por escolha minha, iria adoecer E
desencarnar jovem. Como obsediei desencarnado, queria passar
por uma obsessão para dar valor à tranqüilidade alheia. Se não fosse
você, iria ser um dos obsessores do meu avô a me obsediar. Aprendi
muito nesta curta exístência. Agora estou feliz. Como é bom estar
quites conosco mesmo, com nossa consciência.
Frederico dedicou toda sua vida à Medicina e às duas filhas.
Desencarnou velho.
O tempo passou. Sentia vontade de reencarnar, estando apta,
pedi a reencarnação como bênção para esquecer e para ter um

A casa do escritor

recomeço. Minha mãe, reencarnada, ia engravidar. O Plano Espiritual
provocou um encontro entre nós duas. Pedi a ela que me
aceitasse por filha, falei que por aprendizagem ia desencarnar
jovem. Minha mãe aceitou, amava-me, ama-me.
Pela programação que escolhi, ia passar o que o pequeno
Nicásio passou. Reencarnaria num lar feliz, adolescente ia ficar
doente, ia passar de médico em médico, sofreria uma doença
incurável e desencarnaria. Antes mesmo de Frederico desencarnar,
reencarnei. Hortência e o pequeno Nicásio haviam reencarnado.
Mas não ia encontrá-los, íamos reencarnar em locais diferentes.
As lembranças findaram. Sequei as lágrimas do rosto,
recordações sempre nos são penosas. Porém elas me deram um
alívio. Agora sabia de tudo. Olhei para Frederico que estava quieto,
acompanhando minhas lembranças. Olhou-me sorrindo e concluiu:
- Patrícia, depois que você desencarnou, vivi de lembranças.
Casei com Hortência, porque queria dar continuação à família,
sempre fomos amigos. Minha encarnação também não foi fácil.
Cuidei de minhas filhas, elas foram felizes, casaram-se e sempre
estiveram comigo. Trabalhei muito e fui bom médico. Quando
desencarnei, fui socorrido e logo estava bem. Nunca deixei de estar
com você.
- Frederico, não ia ficar doente? Desencarnei com saúde.
- Patrícia, doenças são miasmas negativos que são queimados
pela dor ou pela bondade, pela sinceridade, pela transformação
interior para melhor. Você queimou estes miasmas pela segunda
opção. Você se transformou interiormente para melhor. E seu corpo
não adoeceu.
- Frederico, quando pequena tive difteria. Sarei, a doença
não teve conseqüências.
- Você trouxe pelo remorso os miasmas da doença no
perispírito que transmitiu ao corpo.
- Remorso por ter o pequeno Nicásio desencarnado com esta
doença. Também porque, quando a tive, não aceitei, sinto que
necessitava desencarnar daquela forma. Sofri com a doença, mas a

38 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

não aceitação não deixou que queimasse todos os miasmas que
trazia comigo.
- Você, na encarnação anterior, como Roseléa, ia desencarnar
jovem, íamo-nos separar para um aprendizado necessário pelos
erros cometidos anteriormente.
- Já estivemos juntos mais vezes?
- Sim.
Naquele momento saber desta me bastava. Meditei sobre
tudo e indaguei a Frederico, tirando a última dúvida.
-Não fiquei doente, não poderia também ter ficado encarnada
por mais tempo?
- Você não quis. Quem vai á Terra pela encarnação e volta
no tempo certo, pode se dar por feliz. O corpo lhe era uma prisão
que você abençoou e deu o devido valor. Com o tempo vencido era
justa sua absolvição.
Frederico me deixou no meu gabinete. Fensei muito em tudo
que recordei e desejei ver o pequeno Nicásío. Na primeira oportunidade,
pedi a Frederico, que me atendeu. Marcamos dia e hora para
que pudesse revê-lo.
No dia marcado, voltamos para a Terra. Descemos numa
cidade do interior muito singela e agradável. Entramos numa bonita
e confortável casa.
- Aqui está Hortência - disse Frederico. - Está casada com
seu eterno apaixonado, o rapaz que o pai mandou matar no passado.
Nossa Hortência, que atualmente tem outro nome, está feliz e tem
por irmão o pequeno Nicásio que agora se chama Nelson. Venha,
vamos vê-lo.
Para minha surpresa, entramos num simples mas agradável
Centro Espírita. Reconheci logo que o vi. É um homem, jovem
ainda, muito bonito, fisionomia tranqüila. Estava orando concentrado.
Aproximei-me dele, ajoelhei ao seu lado e beijei-lhe as mãos.
Frederico segurou minha mão e me levantou.
- Vamos assistir à sessão. Fiquemos aqui. Nelson agora irá
trabalhar. É um médico de profissão e dentro do Espiritismo um
médium ativo.

A casa do escritor

Envergonhei-me do meu rompante. Fiquei quieta no lugar
indicado. A reunião da noite foi muito bonita e proveitosa. No final,
Frederico incorporou ajudando, aconselhando os encarnados presentes.
Nelson emocionou-se. Amava aquele espírito, um médico
chamado Frederico que ia regularmente ao Centro Espírita ajudar
a todos. Não me atrevi mais a me aproximar de Nelson. Quando
terminou, Frederico foi abraçado e cumprimentado pelo pessoal
desencarnado da casa. Logo em seguida, convidou-me a partir.
- Frederico- disse -, como gostaria de ajudar Nelson. Como
queria retribuir o que ele fez por mim.
- Patrícia, Nelson não necessita desta ajuda paternalista que
você almeja lhe dar. Ele é espírito que cresce e progride. Depois,
Patrícia, quem perdoou não é carente de ajuda. Você poderia, por
sentir-se devedora, o que não tem razão de ser, querer fazer o que
compete a ele fazer. Nelson é bom. correto, luta e cresce, talvez
porque os problemas que aparecem sejam por ele mesmo solucionados.
Poderá, sim, seguir o exemplo que ele lhe deu e fazer o bem
para aos que carecem de ajuda. Nem sempre é possível retribuirmos o
bem recebido ao nosso benfeitor. Mas, como a nós foi feito,
devemos fazer a outros.
Compreendi.
Minha gratidão pelo pequeno Nicásio, por Nelson, é grande.
Aprendi a reverter minha gratidão em vibrações carinhosas que
remeto a ele todos os dias. ComNelson aprendi que sempre devemos
fazer o Bem, mesmo para aqueles que nos fizeram mal. Porque o
bem realizado a nós mesmos retorna, nos tornando auto-suficientes
e fazendo-nos úteis cada vez mais.
O passado está em nós e não podemos mudá-lo um pingo que
seja. Mas podemos, sim, tirar lições para o futuro e entender o
presente. As recordações fizeram com que eu ficasse mais grata e
entendesse os que sofrem, principalmente os que vagam pelo
Umbral, os que se consomem pelo remorso. Motivaram-me a ser
melhor no futuro. Do passado, devemos tirar só lições que nos
ajudarão a progredir sempre.

IV A CASA DO ESCRITOR

Que prazer nos proporciona fazer algum trabalho sem
estarmos esperando ou condicionados a um pagamento, ou agradecimento
de outras pessoas.
Até então, desde o meu desencarne recebera incessantemente
amor, carinho, conhecimentos e uma oportunidade atrás da outra.
Sempre que terminava um curso, meus fraternos amigos já providenciavam
outro. Sentia-me feliz e desejosa de transmitir esta
felicidade a outras pessoas, de gritar ao mundo tudo o que eu sabia
e vivia, sonhando com a hipótese de que todos iriam aceitar o que
dizia, comungando comigo toda alegria e felicidade de que era
portadora.
O curso na Colônia Casa do Saber terminou com o mesmo
clima de alegria e harmonia que houve em seu decorrer. Cada um
de nós, agora, deveria fazer uma atividade diferente, muitos iam ser
instrutores nas Colônías de Socorro. Congratulamo-nos uns com
os outros, felizes por termos realizado mais uma etapa da nossa
vivência espiritual.
Particularmente, estava radiante. A Casa do Saber estaria
sempre nas minhas recordações e voltaria sempre lá para rever os

N.A.E. - Denominamos Colônias de Estudo aquelas onde há somente escolas.
Colônias de Socorro são aquelas onde há também os hospitais e onde são
internos
os recém-socorridos, como a Colônia São Sebastíão que já descrevi em livros
anteriores e a tão conhecida Colônía Nosso Lar.

A casa do escritor

professores e a Colônia. Estávamos sempre reencontrando os
amigos. Os mais chegados trocavam informações de onde estariam
para se reencontrarem.
Numa cerimônia simples, mas agradável, nós nos despedimos.
Fui visitar a Colônia São Sebastião e fiquei na casa da vovó.
Revi meus amigos. Como é gostoso estar com os que amamos,
trocar idéias e informações. Pude estar perto das minhas violetas
que continuavam lindas e floridas. Sempre sinto muita Paz ao estar
com elas. São um pedacinho de minha mãe perto de mim. Aproveitei
os dias livres que tive para também rever amigos e familiares
encarnados.
Logo ia começar uma nova atividade, recordei uma conversa
agradável que tive anteriormente com meu amigo Antônio Carlos.
Ele estava sempre me incentivando para que me dedicasse à
Literatura.
- Patrícia, escreva aos encarnados suas experiências - dizia
entusiasmado. - Aprenderá muito com este trabalho. Com sua
narração, brindará os encarnados que gostam da leitura edificante,
contando o que é a vivência no mundo dos Espíritos para uma
pessoa que, encarnada, foi Espírita fervorosa e praticante. Dará,
com seu exemplo, incentivo aos bons Espíritos. Os encarregados na
espiritualidade da divulgação da Doutrina Espírita almejam mandar
para os encarnados relatos de um desencarnado que teve
conhecimentos do Espiritismo, quando no corpo fisico. Mostrará
nestes eseritos como é fácil a desencarnação e a adaptação dos que
retornam à Pátria Espiritual com conhecimentos verdadeiros e
isentos de erros. Os bons espíritas estão necessitados de motivação
e da confirmação do ensinamento que está no Evangelho Segundo
o Espiritismo, no capítulo XVIII - "Aos espíritas, portanto, muito
será pedido, porque muito recebem, mas também aos que souberam
aproveitar os ensinamentos, muito lhes será dado".
- Bem, se você acha realmente que devo tentar, necessito
aprender, porque sei que não basta boa vontade para fazer algo bem
feito.

42 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho I Patrícia

- Tem razão. Necessita aprender, estudar para realizar este
trabalho. Não se deve fazer sem este preparo, nem sem autorízação
dos espíritos encarregados deste setor. Treino já tem. Ao ditar
mensagens aos seus pais, neste tempo, treinou. Este treino é para o
melhor entrosamento entre o médium e o desencarnado que irá
escrever ou ditar.
- Todos que ditam livros pela psicografia fazem este estudo?
- Devería ser assim. Quando o desencarnado quer, realmente ,..
ele faz sem o visto do pessoal encarregado do bom desenvolvimento
literário.
- Os que querem se exercitar com a psicografia têm muito
trabalho?
- Patrícia, não se faz nada bem feito sem esforço, trabalho
e perseverança de ambas as partes, a encarnada e a desencarnada.
Veja o exemplo de sua tia Vera, estudou muito a Doutrina, treinou
nove anos para escrever o primeiro livro. Enquanto ela se preparava,
eu também me preparei, estudei, fiz e faço parte desta equipe
literária. Tudo que escrevo é passado pela censura desta casa, para
depois ditar à médium. Este ditado é feito no mínimo três vezes, para
que após seja editado aos encarnados. Todos os que querem fazer
um trabalho edificante, de boa vontade, espontaneamente, se submetem
à apreciação desta equipe.
- São muitas as casas, Colônias, que se dedicam a este
trabalho?
- Muito se trabalha para ter uma Colônia deste tipo no
espaço espiritual de cada país. Temos uma que coordena o trabalho
de todas que se chama "Mansão dos Intelectuais", da qual faz parte
Allan Kardec. Esta mansão lindíssima é móvel como todas as outras
que seguem sua orientação. Já tivemos oportunidade de tê-la muitas
vezes no espaço brasileiro. Muitos bons escritores brasileiros
trabalham nela. O objetivo principal é incentivar os que queiram
fazer a Literatura que educa na boa moral e motivar todos a apreciá-la.
Todos nós vibramos com as boas obras editadas. Aqui no Brasil
temos A Casa do escritor.

A casa do escritor

- A Casa do escritor?! Que bonito nome!
- Você irá gostar dela. Lá estudará por dois anos. Dedicar-se-á
ao estudo de como escrever, o que escrever e para quem
escrever.
- Esta casa é dedicada só aos escritores?
-Apesar de se chamar assim, dedica-se a toda boa literatura.
Quando foi criada, seu objetivo maior era formar bons escritores em
cursos que existem até hoje. Seus trabalhos foram aumentando.
Atualmente dá assistência aos seus pupilos, quando encarnados.
Orienta todos que querem educar, instruir, informar sobre o
cristianismo e sobre a boa moral. Dá assistência às editoras que
trabalham com bons livros e estende esta ajuda a todos que se
dedicam a divulgar e vender estes livros.
- Certamente os livros Espíritas fazem parte da assistência
desta casa?
- Com carinho primordial. Desde que o Espiritismo surgiu,
têm seus livros educado, fazendo progredir inúmeras pessoas.
Tratamos, na Casa do escritor, com toda atenção que merece a
Literatura Espírita e todos os que trabalham com ela.
Desde que tivemos esta conversa, ansiava por conhecer esta
Colônia que cuida com tanto amor da Literatura Espírita que
sempre amei. Não tomei a decisão de ditar aos encarnados sem antes
pensar e ouvir amigos. Fui incentivada por todos eles. Matriculei-me
no curso. Não foi preciso ir à Colônia para isto. Da Casa do
Saber mandei, por um aparelho, parecido com um fax dos encarnados,
meu histórico e pedido de matrícula. A resposta me aceitando
veio de imediato. Era só aguardar o início. Tudo que se marca data
chega. Antônio Carlos fez questão de me acompanhar. Convite que
aceitei prazerosa. Contente, fui conhecer a tão falada Colônia.
A Casa do escritor não tem sistema de defesa. Parece estar
flutuando no espaço. Que visão maravilhosa é vê-la cercada de
árvores e flores.
- A Casa não é atacada? - indaguei curiosa.
- Muito raramente. Quando é sentida a aproximação de
irmãos ignorantes que vêm com intenção de atacar e perturbar,

44 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

alguns moradores saem para o pátio e enviam ondas mentais que
neutralizam tanto os atacantes como as suas armas. Isto é possível
porque na casa estão somente espíritos equilibrados e harmoniosos.
- Que linda! - exclamei, ao descermos no seu pátio da frente.
Olhando-a pareceu uma imensa mansão, onde a tranqüilidade se faz
presente. Observei-a por um tempo me extasiando com tanta Paz.
Suspirei feliz.
Toda a Casa está rodeada de pátios com muitos canteiros
floridos e pequenas árvores, iguais às que vemos na Terra. Tudo me
encanta de um modo partícular. Árvores e flores são sadias, bem
cuidadas, sáo respeitadas. Na Casa do escritor predominam as
flores brancas. Como é gostoso olhar um canteiro florido, sentir
a energia das flores. Observava suas formas, sentia o seu perfume.
Quem gosta da natureza, fica deslumbrado com os jardins do
Mundo Espiritual. Quem ama o local, sente o quanto ele é belo. É
só observar e achar as belezas, o encanto das coisas simples.
A mansão é de uma beleza úníca, apesar da sua simplicidade.
A sua visão nos induz à comunhão de conhecimentos, trazendo-nos
lembranças das edificações da Grécia antiga. A construção é
beginha clara, com inúmeras colunas brancas de uns vinte centímetros
de díâmetro. As colunas estão ao redor da construção toda,
dando um encanto especial à Colônia. O telhado é um triângulo
vermelho, lembrando realmente as casas bem cuidadas e bonitas na
Terra. Do pátio, sobe-se três degraus até a área com as colunas. Esta
área tem dois metros e meio de largura, após, as paredes. Subi os
degraus e não resisti: abracei uma coluna.
- Que lugar de encantos mil! - exclamei.
-De fato é cativante-disse meu acompanhante. - Identifico-me
plenamente com esta casa.
- Que desenhos magníficos!
Corri até as paredes para observar melhor. Nelas, desenhadas
em relevo, mas da mesma cor, gravuras que mostram trechos da
literatura antíga. São quadros fascinantes que se pode passar horas

45 A casa do escritor

contemplando. Os mais interessantes para mim são os desenhos
sobre a Bíblia, em especial os de Moisés escrevendo parte do Antigo
Testamento. O piso nesta área entre as colunas e as paredes é de um
vermelho clarinho, brilhante e também contém gravuras maravilhosas
da história antiga. Como é agradável observar quadro por
quadro, analísando seus detalhes perfeitos.
- Aqui estamos - disse Antônio Carlos, sorridente. - No seu
novo lar.
- Mora aqui também?
- Sim, tenho minha sala onde escrevo. Amo a Literatura
Espírita e esforço-me para participar de sua divulgação. Gosto de
modo especial das reuniões que a Casa promove.
Olhando de frente, vemos várias portas. Algumas estavam
abertas.
- Estamos sendo aguardados nesta sala - disse meu amigo,
despertando-me do êxtase da contemplação da casa.
Caminhamos para uma das portas abertas. Entramos. Defrontei-me
com uma sala agradável, não muito grande, enfeitada
com quadros e vasos de flores. Os quadros no Mundo Espiritual são
realmente lindos, pinturas de artistas que se pode ficar horas
contemplando. Na Casa do escritor há quadros exaltando a leitura
e a eserita. Obras de arte encantadoras. As janelas são delicadas e
redondas, algumas, com vidros coloridos e claros, estão do lado
contrário ao da porta. Na sala havia algumas poltronas confortáveis.
Um grupo animado conversava em pé. Antônio Carlos conhecia
algumas pessoas presentes, porque assim que entramos foram
cumprimentá-lo e também a mim. Sentia-me à vontade e logo estava
conversando.
Com a chegada de todos, começou a palestra. Havia na sala
trinta pessoas. Fomos convidados a sentar.
- Atualmente, sou diretor desta casa. Digo atualmente
porque, após um acordo entre todos os moradores, fazemos rodízio
no cargo de orientação. Sejam bem-vindos! Aqui estamos reunidos,
professores, alguns convidados e os candidatos aos dois cursos que
logo iniciarão. O primeiro é para os que desejam ditar a encarnados,

46 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

por meio da psicografia. Como também há os que desejam inspirar,
sem serem notados, os encarnados nos seus trabalhos eseritos.
O segundo curso é para os que querem preparar-se e estudar para
encarnar e, quando encarnados, dedicarem-se à líteratura edíficante.
Espero que gostem tanto da nossa casa como dos cursos
escolhidos. E sintam aqui como se fosse o próprio lar. Aqui estão-
os professores do primeiro curso, professor Aureliano e professora
Maria Adélia.
Que símpáticos eram meus professores, gostei muito deles,
Após apresentou os professores do segundo curso. Pediu que cada
um de nós se apresentasse. Fiz com alegria. Éramos oito a fazer o
primeiro curso. Este só ínicia quando termina o outro. Assim, só
de dois em dois anos tem início. Sabemos também que nem todos
os que concluem o curso têm oportunidade de ditar a um
médium. Alguns o fazem mais para ter experiências, por gostar, ou
até mesmo se preparando para serem médiuns psicógrafos, ao
encarnarem.
Depois de o diretor ter falado sobre algumas normas da casa,
ele pediu a um dos professores que fizesse uma oração. As orações
espontâneas feitas por aqui são simples, normalmente curtas, mas
sinceras e comoventes.
Numa atitude de espontânea fraternidade, fomos convidados
a conhecer a Colônia. A Casa do escritor é considerada uma
Colônia pequena. As portas que dão acesso à mansão nos levam aos
salões, menos a do meio que leva ao interíor da casa. As salas são
todas parecidas, muito agradáveis, enfeitadas com lindos quadros
e flores brancas. Duas destas salas se destacam pelo seu tamanho.
- Estas salas são para palestras, encontros que a casa
promove com todos os seus filiados encarnados e desencarnados
disse o diretor.
- Pelo número de salas deve haver muitas reuniões
- comentou um dos alunos.
- Tem razão. Estamos sempre trocando ideias, promovendo
eventos, organizando tarefas. Reunimo-nos com grande fraternidade
em conversas edificantes.

A casa do escritor 47

Adentramos um amplo corredor que nos levaria ao interior
da Colônia, ultrapassando as salas, e defrontamos com um agradável
e delicado pátio para onde as janelas dos salões dão acesso. Os
pátios se assemelham, todos têm muitos encantos. Seguimos pela
galeria.
Para melhor memorização do leitor, diríamos que as salas
de aula, a biblioteca e a sala de vídeos estão localizadas na
segunda ala.
Após as salas, deparamos com um novo pátio, semelhante ao
segundo que vimos.
- Nesta parte, estão as salas particulares. Todos nós, moradores
da casa, professores, alunos e filiados desencarnados, temos
um lugar particular, um cantinho só para nós
- explicou bem-humorado o diretor.
Tanto a ala direita como a esquerda são providas de corredores
os quais dão acesso às portas numeradas de ambos os lados.
Após estas salinhas há outro pátio e o término da Colônia. Ela é toda
cercada com colunas brancas e suas paredes são desenhadas. De
qualquer ângulo que a observamos, vemos o telhado em triângulo.
- Agora, os alunos irão receber um caderno de orientação, no
qual está anotado o número da sala de aula e também o da sua sala
particular. Estejam à vontade para conhecer o que quiserem. As
aulas só terão início dentro de cinco horas - falou, sorrindo, o
diretor, que entregou a cada um dos alunos uma caderneta com o
nome gravado na capa.
O diretor despediu-se de todos com um sorriso cativante.
Antônio Carlos aproximou-se de mim.
- Patrícia, quero lhe mostrar minha sala.
Enquanto caminhávamos pelo corredor, perguntei ao meu
amigo:
-Antônio Carlos, aqui terei muitas horas livres. Que poderei
fazer para preenchê-las?
- Esta casa segue o horário da Terra. Aqui os moradores não
dormem nem se alimentam. Ninguém fica sem fazer nada. Aqui é

48 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

muito movimentado. A casa recebe muitas visitas, há muitas
palestras das quais poderá participar, com isto aprenderá muito.
Estão sempre organizando grupos de auxílio a encarnados filiados.
Também poderá freqüentar a biblioteca, poderá ir mais vezes à
Terra, e em outras Colônias, além da Colônia São Sebastião. Terá
muito o que fazer. Entre, por favor, aqui é minha sala.
Para este espaço particular no plano espiritual damos muitos
nomes. Quartos, nas Colônias de Socorro, porque muitos ainda
dormem, mas chamamos também de gabinetes, salas, ete.
O cantinho de Antônio Carlos é bem agradável. Umas cadeiras,
eserivaninha e uma estante repleta de livros.
- Aqui guardo exemplares que ganho!
- Mas há livros de escritores encarnados!
- Certamente. Livros bons de encarnados são plasmados
aqui. escritores bons têm acesso à casa. Conversamos muito, nós
e eles. Aqui fazemos até noite de autógrafos. Muitos destes livros
estão com dedicatória. Orgulho-me em tê-los. Aqui tenho tudo o que
preciso. Amo meu cantinho. Agora, vamos conhecer sua sala.
Passamos para outra ala, à direita, no número indicado
paramos e entramos. A minha sala era como a de Antônio Carlos,
algumas cadeiras, uma eserivaninha e a estante.
- Você pode decorá-la como quiser.
Dias depois decorei-a com quadros e vasos de flores, coloquei
na pequena estante livros, cadernos de anotações e as fotos de
meus familiares. Em destaque, as dos meus sobrinhos Rafael e da
pequena Patrícia.
- Que bonitos lustres! - exclamei.
Os lustres têm formatos delicados. A Colônia tem iluminação
artificial como nas demais Colônias que seguem o fuso horário
da Terra. À noite a Colônia é linda, parece uma estrela de longe, de
perto é muito luminosa. Dentro da casa é claro como o dia.
Depois de ter visto minha sala, Antônio Carlos me convidou
para conhecer a biblioteca. É muito bonita e grande. Diferente das
outras que conhecia. Exerce um fascínio todo especial nos seus

A casa do escritor

visitantes e freqüentadores. Nela encontramos mais livros sobre
Literatura, livros históricos e sobre variedades, livros espiritualistas
e Espíritas. Nas salas de vídeos, o assunto se assemelha. Antônio
Carlos mostrava tudo com entusiasmo. Ama de modo particular
esta casa. As horas passaram.
- Patrícia, logo mais começa sua aula. Não vamos nos
despedir, pois estou sempre por aqui e estaremos sempre nos
encontrando. Quero dizer-lhe que é bem-vinda a este Lar.
Sorri, agradecendo. Sentia-me bem ali e já amava aquela
casa. Preparei-me para a primeira aula.

O JORNALISTA
Que interessante quando as emoções nobres se repetem.
Sempre que isto acontece, temos a impressão de que não é a primeira
vez que vivemos estes fatos. Foi isto que me aconteceu quando
entrei na sala de aula para ter meu primeiro contato com este novo
curso que, pela bondade de Deus e pelos amigos, me foi proporcionado.
E não foi sem razão, pois a alegria que senti naquele
momento permanece em meu peito até hoje. Tenho a certeza de que
o contentamento achou por bem fazer morada em meu coração,
A perspectiva de poder anunciar aos encarnados pela via
mediúnica a bem-aventurança que eu vivia e de que era portadora.
me enchia de entusiasmo e ânimo para este novo estado e treino
telepático. Queria aprender para fazer bem. E, como acontece
quando estou muito feliz, sorria sem parar; foi neste estado de
satisfação que cumprimentei o professor e alguns alunos que
estavam na sala.
Nossa classe era pequena, as eserivaninhas estavam em
círculo.
- A Paz seja convosco! - respondeu o professor Aurelianoao
meu cumprimento. - Sente-se, Patrícia, escolha um lugar e fique à
vontade. Logo inicíaremos a aula.
Sentei e observei tudo. Na parede, só havia uma lousa. O que
dava um toque especial eram as bonitas janelas redondas. Na sala,
havia as eserivaninhas e uma enorme estante. Logo chegaram todos
os alunos. Conversamos animados e após alguns minutos já nos

A casa do escritor 51

conhecíamos como se fôssemos amigos de longa data. Todos
agradáveis, instruídos e com vontade de aprender. Seus nomes já
estavam gravados na minha mente e no coração. A doce Ruth, o
Carlos Alberto, o mais velho em aspecto, a ruiva Adelaide, o
intelectual Henrique, o mais extrovertido José Luiz, Maria da
Penha, a que se tornou como mãe de todos, e Osvaldo, o contador
de histórias.
O professor Aureliano deu início à aula.
- Como sabem, Maria Adélia e eu iremos dar este curso tão
útil a nossa Literatura Espírita. Não é tão simples assim intuir ou
ditar pela psicografia aos encarnados. Aqueles que fazem sem
preparo quase sempre não fazem o melhor que poderiam. O que é
mais importante: quando se intui na Literatura ou se dita pela
psicografia? A matéria, sem dúvida. É esta matéria que iremos
aprender a fazer. Certamente aqui estou como coordenador, espero
que todos aprendamos juntos. Tanto que quero ser tratado como
amigo, sem títulos, só pelo meu nome. Ficarei com as aulas de
redação. Maria Adélia dará aulas de Literatura. No seu histórico,
vamos conhecer como surgiu a idéia de grafar os acontecimemtos.
Os primeiros eseritos, as primeiras histórias imaginárias, a Literatura
contemporânea, a atual e a Espírita com todo o seu encanto e
ensinamento. Muito temos para aprender neste curso. Nas minhas
aulas aprenderemos a fazer uma redação, um artigo ou um livro.
Também aprenderão a transmitir estes eseritos, porque não se pode
ditar qualquer coisa, para isto tem que se ter alguns critérios. Estes
eseritos têm que estar dentro da Doutrina e da codificação de Allan
Kardec e trazer ensinamentos bons e cristãos, além de ter-se o
cuidado de não fazer revelações que ainda não são permitidas, ou
anunciar desgraças com datas marcadas, etc. As revelações têm que
ser feitas com conhecimento e devem ser reais e otimistas. Há tantas
coisas lindas para serem ditas. Todos os que são filiados a esta casa
têm que passar seus eseritos pela censura. E aqui aprendemos
também a censurar. Daremos especial atenção à parte do intercâmbio
ao encarnado. Não é fácil a um cérebro que desconhece captar
certos fatos. Assim, teremos que escrever para ditar ou inspirar o

52 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

que o encarnado pode receber. Este curso é longo porque teremos
muitas exccursões, nas quais faremos uma coleta de hístórias com
muita ajuda, E também porque é grande a responsabilidade de todos
aqueles que deixam grafados seus pensamentos, principalmente
que querem fazer um bem com este evento. Particularmente nós que
iremos pela psicografia, em nome de uma religião, tentar
motivar, alertar, recordar os ensinos de Jesus a tantos irmãos. Nos
últimos seis meses do curso, vocês estarão aptos a realizar esse
trabalho sozinhos, mas ainda contarão com nossa orientação.
Para começar nossa aula de redação, quem de vocês quer
contar uma história ou, se for interessante, a da própría existência
para que possamos começar o nosso trabalho?
José Luiz levantou a mão.
- Posso falar de mim.
- Sim - disse Aureliano. - Vamos ouvi-lo.
José Luiz sorriu. É magro, alto, cabelos crespos curtinhos
muito simpático. Sua voz é agradável e forte, Começou a falar.
- Nasci e cresci na grande cidade de São Paulo. Sempre
gostei de jornalismo. Quis ser jornalista. Não foi fácil, meus pais
eram separados e minha mãe dava um duro danado para sustentar
os quatro filhos. Era o terceiro. No colegial, fiz um curso técnico em
contabilidade à noite e passei a trabalhar durante o dia. Trabalhava
numa indústria. Meu sonho era conseguir emprego num jornal,
Uma colega tinha amigos em um grande e influente jornal, tanto
pedi a ela que acabou me atendendo. Levou-me lá e me apresentou
aos seus amigos que prometeram me ajudar, Cumpríram o prometido,
acabei empregado. Fiquei felicissimo, embora o jornal fosse
mais longe e ganhasse menos, Mas queria estar ali para aprender.
Sempre fui ótimo, na escola, em redação. Comecei a escrever
artigos, era muito dificil conseguir que publicassem, mas fazia
sempre na esperança de ser um bom jornalista um dia. Quando
terminei meu curso, passei a me dedicar mais ao meu trabalho e a
ter mais tempo para fazer as matérias. Um día, um dos diretores leu
o que escrevi, gostou, e acabou publicando o artigo. Aconselhou-me
a ter aulas de redação. Eram pagas e caras. Porém, este diretor

A casa do escritor 53

conseguiu que o jornal pagasse a metade do curso. Fiz o curso com
entusiasmo. Foi com perseverança que me tornei um jornalista.
Comecei a fazer críticas ao governo de maneira fútil. Estávamos
nos anos sessenta com a ditadura militar. Passei a usar um
pseudônimo para fazer estes artigos. Um grupo de idealistas que
queriam um Brasil melhor me procurou para que fosse assistir a
suas reuniões. Fui e gostei. Eram pessoas honestas e idealistas.
Estes companheiros não achavam certo os meios que outros grupos
empregavam, porém entendiam que eram necessários tanto para
chamar a atenção como para conseguir dinheiro. Ações
como
seqüestros e roubos. Nosso grupo se ocupava mais em divulgar
nossas idéias. Nestas reuniões, conheci uma moça, Márita, que
tinha uma filhinha. Seu companheiro fora morto num cerco com os
militares. Nesta época, já ganhando mais, fui morar sozinho num
pequeno apartamento perto do jornal. Tanto escrevia com meu
nome verdadeiro artigos não comprometedores, como com pseudônimo
artigos contra a ditadura. Apaixonei-me por Márita, tornamo-nos
amantes sem, porém, morarjuntos. Passei a participar mais das
reuniões, fazer palestras e panfletos. Meus artigos tornaram-se
mais violentos. Seis anos se passaram. Deram uma batida nojornal
e prenderam muitas pessoas. Umas, torturadas, deram meu nome
verdadeiro. Fui preso. Confessei no interrogatório tudo que fiz e
escrevi. Mas eles queriam mais, os nomes dos companheiros. Como
neguei, começou a tortura. Um horror! Na história da Humanidade
sempre o ser humano torturou outro ser humano. No início, as lutas
eram por alimentos e territórios. Depois, vieram as lutas por simples
conquistas, nas quais os vencedores tornavam os vencidos eseravos
e os torturavam. Após, houve as cruzadas, as lutas por religiões, a
Inquisição, os eseravos na América, as guerras modernas e os
campos de concentração. Depois, pela política, por ideal, foram
tratadas com muita desumanidade pessoas que, certas ou erradas,
queriam o que achavam o melhor para sua Pátria.
Fui torturado com outros companheiros, de forma brutal e
cruel. Nada falei. Pensava em Márita e na sua filhinha que amava
como se fosse minha. Num sofrimento maior desencarnei. Saí do

Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

corpo de forma violenta. tonto e vendo tudo confuso. Levantei
cair no canto da sala. Vi meus carrascos e meu corpo ser,
amarrado e sangrando. Escutei os comentários.
"Morreu a peste? Sujeito duro e idiota!"
"Morreu!" - disse um outro escutando meu coração.
"Coloque com os outros, iremos enterrá-los nas valas.
Vi desamarrarem meu corpo e levá-lo para outro lado.
Confuso e com muitas dores. adormeci. Acordei mais confuso ainda
"Ei companheiro você morreu, acorda!"
Tentei tanto entender o que ele me dizia como reconhecer
o sujeito que me dirigiu a palavra.
Será nova forma de tortura? - pensei.
Mas não estava amarrado e não conhecia aquele homem.
tentando ser simpático. disse:
Venha, dê a sua mão, ajudo você. Morreu! Você simplesmente
morreu como eu."
"Estranho!"
"Que nada! Logo você acostuma."
Levantei com a ajuda dele. Levou-me para uma das celas.
vi com tristeza companheiros mutilados e gemendo.
Vamos ficar aqui."
Ele me ajudou. Deu-me para beber um líquido que me tirou
as dores e me fez curativos.
Engraçado" - disse - "vocë fala que morri, mas continuo
machucado."
"É assim mesmo, você é igual a seu corpo.
Só quando fui estudar é que compreendi que me desligara
do corpo e pela falta de conhecimento continuei com todas as impl
sões da matéria, como dores. fome, frio, etc.
Passei alguns dias deitado no chão da cela. vendo meus
companheiros encarnados sofrendo. O sujeito. Emílio. cuidou
de mim como lhe foi possível. Melhorei.
"Vocêjá está bem. já é hora de passar a nos ajudar. Levantese
e venha conhecer os outros."

A casa do escritor 54

Pegou em minha mão, ajudou-me a levantar. Fomos andando
e me espantei ao atravessar com ele as grades e sair para o pátio.
Como fez isto?!" - indaguei curioso.
"Somos agora almas do outro mundo, ou melhor, desencarnados.
Temos lá algumas vantagens como atravessar pela vontade
paredes e portas. Vou ensinar você a fazer isto. É fácil, aprende-se
e pronto."
No pátio havia um grupo de desencarnados. Alguns homens
e mulheres em número menor.
"Clóvis, você aqui!"
Abracei comovido um deles. Era meu amigo, companheiro
das nossas reuniões. Ele havia desaparecido e não conseguimos
saber o que ocorreu com ele.
"Morri também!"
"Torturado?"
Não, com um tiro."
Fez-se um silêncio de minutos que foi quebrado por um deles.
"José Luiz, é o seguinte: estamos todos desencarnados e
unidos. Aqui estamos tanto para ajudar os companheiros desencarnados
doentes, perturbados ou enlouquecidos pelas maldades sofridas
e os amigos encarnados, como também para nos vingarmos de
nossos carrascos."
"Podem passar anos, mas me vingarei. Nem que eu tenha que
esperar que estes caras morram, eu me vingarei!"- disse Clóvis com
ódio.
Sinceramente, não estava com vontade de vingar, mas de
ajudar os companheiros. Mas não disse nada, naquela hora parecia
não ter outra escolha.
Preferi ajudar outros companheiros desencarnados que estavam
perturbados e achavam que estavam ainda vivos no corpo

N.A.E. - Volitar, atravessar paredes são atividades fáceis a desencarnados,
porém, necessita-se aprender. Infelizmente, não são só conhecimentos dos
espíritos bons, todos podem fazer, basta saber e ter principalmente consciência
do seu estado de desencarnado.

56 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

carnal. Para mim, eles estavam enlouquecídos de tantas dores
e humilhações. Tentava também ajudar os encarnados.
Meses passaram-se e não via resultado. Parecia que a
situação piorava. Os carrascos pareciam mais nervosos e maus.
Dos companheiros desencarnados só alguns melhoraram. Os pobres
encarnados sofriam muito. Um dia perguntei ao nosso chefe,
o Clóvis.
"Clóvis, será que estamos ajudando mesmo? Será que para
isto não é necessário saber?"
Não sei, José Luiz. Tenho pensado nisto. Mas podemos nos
contentar planejando nossa vingança."
"Você não acha que eles colherão do que plantam?"
"Pode ser. Mas vingarei! Vingarei! Nem que Jesus me
apareça, eu não perdôo! Não somos bandidos, nem marginais e
fomos miseravelmente tratados por termos um ideal político, por
não pensarmos como eles. Saberei planejar e organizar esta vingança,
que não só ficará aos que cumprem ordens, mas aos que mandam
também."
"Você disse Jesus? Ele por acasojá esteve aqui?"
"Ele não, mas alguns que trabalham para Ele sim. É só orar
que um deles aparece."
Pensei muito no que ouví. Não estava satisfeito ali, lugar
tríste, vendo sofrimento e sofrendo. Afastei-me do grupo, fui para
um canto do pátio e pus-me a orar as orações decoradas que sabia.
Mas depois, a oração saindo do coração, pedi ajuda e chorei.
"Quer ajuda? Está disposto a perdoar?"
"O senhor é Jesus?"
"Não, sou um desencarnado como você, mas que tem outra
visão e entendimento."

N.A.E. - Para ajudar, necessita-se primeiro estar bem, depois saber. Nenhum
deles tinha condíções para isto. Aos desencarnados ainda se consegue uma ajuda
precária, mas aos encarnados só se atrapalha mais. Mas vingar, obsedar, sím,
conseguem, príncipalmente se estes vibram negativamente, igual, portanto.

A casa do escritor 57

"Perdôo todo mundo. Não quero vingança. Quero melhorar!"
Pegou em minhas mãos e volitamos. Senti um frio na barriga,
mas amei voar.
Fui levado para um Posto de Socorro. Achei maravilhoso.
Logo estava curado dos meus ferimentos, mas tive que fazer um
tratamento psicológico para que pudesse entender os traumas
que ficaram em mim pela tortura que sofri, e por ter visto tantos
companheiros mutilados.
Depois, fui encaminhado a uma Colônia onde fui entender o
Plano Espiritual e passei a ser útil pelo trabalho.
Soube de minha Márita, ela conseguiu fugir com a filhinha,
estava bem, casou-se de novo e tem mais filhos.
Quando senti que era capaz de ajudar, pedi para auxiliar
meus ex-companheiros. Voltei ao lugar em que estive quando
desencarnei. Encontrei tudo mudado, ali estavam alguns espíritos
que não conhecia. Fixando minha mente neles, localizei-os. Receberam-me
com alegria. Quando comecei a falar de mim, prestaram
atenção no começo, mas logo se desinteressaram. Por mais que
pedisse, implorasse, Clóvis e o grupo, grande nesta época, não me
atenderam. Fizeram um núcleo no Umbral e faziam um cerco
cerrado aos que julgavam culpados. Infelizmente, não consegui
convencer nenhum.
José Luiz, é nosso amigo, se quiser continuar a sê-lo, não
defenda estes miseráveis" - disse Clóvis.
"Não estou defendendo-os. estou querendo o bem de vocês."
"Nosso bem é condenar os culpados."
Fui embora, mas não desisto, sempre que posso vou até eles
na tentativa de ajudá-los.
Aí está minha história. Gosto muito de Literatura, amo o
jornalismo, faço este curso para depois trabalhar com encarnados.
Vou tentar intuí-los na divulgação de artigos bons e bem feitos.
José Luiz quietou-se e foi a vez do professor Aureliano voltar
a falar.
- Sua história é deveras interessante. Que exemplo bonito
você nos deu, perdoando e não querendo vingar-se. Como também

58 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

de você tentar, mesmo passando tanto tempo, ajudar seus
companheiros. Se você tivesse lembrado de pedir de modo sina
como fez, ao desencarnar, teria sido socorrido antes.
- Será que eles não irão perdoar? - indagou Adelaide.
- Temos nosso livre-arbítrio - respondeu Aureliano. - Sofre
muito quem não perdoa. Esperamos que um dia José Luiz possa
fazê-los entender, para que possam ser felizes. Agora, vamos ao
trabalho. Escrevam sobre o que ouviram.
Todos escrevemos. Após, cada um de nós leu e Aureliano deu
opiniões.
- Não é bom realçar episódios negativos.
- O seu está muito extenso.
- Poderia ser maior.
- Este pedaço não está bem. Assim fica melhor.
Vi o tanto que ele era rigoroso e como ensinava bem. Entendi
o que vinha ser a censura da casa. Há episódios que não se pode
comentar. E que não são bons de serem relatados.
Depois de tantas observações, escrevemos de novo. Novamente
foi lído. Aureliano chamou atenção para algumas partes, mas
elogiou o trabalho.
- Agora, pensem como o médium, ou como a pessoa encarnada
que irão inspirar, que irá receber esta história.
- Acho que o médium, desconhecendo esta parte, não
conseguirá captar - disse Ruth.
- Também acho - disse Aureliano. - Assim, terá que mudar
este parágrafo.
Pensei bem no que os encarnados gostariam de ler. É uma
história real, emocionante, mas teria que o ser também para eles.
Pensei na tia Vera, ela iria captar tudo? Escrevi pela terceira vez.
Percebi que todos voltaram aos seus eserítos, reformulando-os.
Assim, foram todas as aulas de redação. Era eserita a
história, censurada por todos nós com a coordenação do mestre
e, após, eserita da forma como o médium poderia receber. Um
verdadeiro aprendizado!
O curso decorria tranqüilo, a professora Maria Adélia dava
aulas de Literatura. Começou na parte histórica e acabou na
atual. Deu atenção especial à Literatura Espírita e à Espiritualista.
Estudamos juntos as obras de Allan Kardec. Muitojá tinha visto
e lido sobre o Codificador da Doutrina Espírita, mas como foi
agradável estudá-la com um grupo inteligente e com uma orientadora
de grandes conhecimentos. Maria Adélia falava com tanto
amor que a matéria nos fascinava. Ter conhecimentos literários é
importante para quem vai ou pretende trabalhar com a Literatura.
Também nas aulas de Aureliano aprendemos todas as leis da
censura da casa e passamos nós mesmos a censurar nossos trabalhos.
Aprendi muito bem os três itens principais: escrever, o que
escrever e para quem escrever.
Nestes dois anos, vim muitas vezes à Terra. Vinha sozinha,
estive com familiares e amigos. Também conheci outras Colônias
e muito estive na minha querida Colônia São Sebastião. Conheci
todas as Colônias que se dedicam à Literatura, como a Casa do
escritor, por diversos países da Terra. De fato, são parecidas, só
que cada uma tem um toque especial da arquitetura do seu país. Em
todas se fala o Esperanto. É o idioma usado para a comunicação
com visitantes de outros países. São encantadoras estas Colônias!
Aqui no Plano Espiritual muito se tem feito para que as boas obras
progridam.
A Casa do escritor é de fato movimentada. Gostava de
passear por suas áreas e ver os detalhes de seus quadros, paredes e

60 Vera Lúcía Marinzeck de Carvalho

pisos. Mas de forma especial gostava de ficar nos seus pátios.
Admirava com muito carinho suas árvores e flores. Suas delicadas
flores são de vários formatos e tamanhos, todas clarinhas, predominando
as brancas. Passava horas admirando-as. Que perfeição nos
seus contornos! Que maciez! Que beleza!
Mas o pátio oferece outro encanto. É um lugar onde todos si
reúnem para conversar, Ali vemos encarnados, os moradores E
visitantes. Como é gostoso reunir-se em círculo e bater aquele
"papo" edificante. São pessoas instruídas e amantes da arte, da
Literatura. Conhecí tantas pessoas interessantes, muitos escritores
famosos.
Conversadeira, lá estava nas minhas horas de lazer pelos
pátios e quase sempre enturmada em alguma roda e conversa vai...
Mas havia preocupações também.
- É com muito penar que vejo a Literatura ruim ganhando
mercado! - disse um escritor conhecido dos encarnados que me
pediu para não citar seu nome e explicou o porquê.
- Quando encarnado, tinha outras idéias que os familiares
encarnados conservam. Não quero que eles se melindrem por haver
citado meu nome. Agora estou morto e acabado para eles.
Pensando nisto, cito neste livro poucos nomes, de preferência
somente o primeiro. Porque poderia esquecer o de alguém, o que me
parece injusto. Todos os que freqüentam esta casa são grandes para
mim e maravilhosos. Mas, voltando à conversa, todos infelizmente
concordaram com ele.
- Sabemos que há equipes de irmãos ignorantes, que tentam
fazer o mal, esforçam-se mesmo para acabar com a boa Literatura
e ajudam, incentivam a ruim. A leitura modifica os pensamentos,
tanto para o bem como para o mal - disse o simpático Sr. Rolando
que, encarnado, foi um lutador fiel do livro Espírita e que continua
ativamente ajudando a causa.
- A literatura edificante tem que ser cativante e interessante
para motivar os leitores a lerem cada vez mais - completou com
sabedoria e símplicidade Júlio César, um escritor de talento.

A casa do escritor 61

- Não podemos desanimar nunca. Nosso trabalho tem que
ser incessante - falou com alegria José.
- Mas estamos longe do ideal - acrescentou Rolando.
- Muito se tem que fazer e nossa ajuda é fundamental. Os encarnados
necessitam do nosso auxílio. Não devemos negligenciar em nosso
trabalho.
E a conversa ia longe. Que gostoso participar, ouvir conversas
tão interessantes.
Gostava também de meditar nos bancos confortáveis que
estão quase sempre embaixo das árvores floridas. Numa tarde em
que meditava, aflorou em minha memória uma das conversas que
tive com meu pai. "Filha" - disse-me ele -, "não deixe que somente
o entusiasmo seja o motivo de seu trabalho. Cultive o amor pelo
que faz, pois o entusiasmo é da mente e o amor é do coração, do
sentimento. O que é da mente é passageiro, o amor é eterno. Procure
envolver com amor tudo aquilo que fizer com entusiasmo.
O cultivo da harmonia e fraternidade é o antídoto dos nossos
conflitos psíquicos e até dores materiais, pois estes provêm dos
conflitos psicológicos.
E a felicidade verdadeira só existe quando estamos desapegados
de qualquer interesse particular. Nossa personalidade tem a
impressão de que, neste estado isento de egoísmo, perdemos o
interesse pela atividade; isto realmente acontece quando só temos
como fim nossa satisfação ou nossos prazeres. Se procuramos
ver, amar e sentir Deus nas suas manifestações, somos inundados
por um contentamento puro e de alegria não maculada pelo desejo
de satisfação própria. Para mim, isto é a real felicidade.
Entre a maioria encarnada, felicidade é sinônimo de poder,
sejamental ou material, satisfação, ociosidade e prazer. Todos estes
estados são cultivo de futuras dores que não tardarão a florescer.
Observando tantos encantos que o Pai criou, como que numa
compreensão simultânea, vislumbrei um pouco das dificuldades da
vida humana, até que o homem se volte para viver como parte
integrante do universo. Quando esta integração for realidade constante,
o ser humano viverá o oposto de todo este sofrimento".

62 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Graças a Deus, eu estava vivendo o oposto.
Como já disse, a Casa do escritor é móvel. Isto é, ela se
locomove de acordo com as necessidades do momento. Ela pode
estar um dia no Sul e, no dia seguinte, no Norte do Brasil. Como
também estar na Crosta, onde estão os Postos de Socorro, ou ir para
esferas superiores onde estão as Colônias. É como se ela volitasse.
Quem está dentro da Colônia nada sente. Mas se for a um dos pátios
externos, que a circundam, pode ver a viagem como se estivesse
num avião. É muito interessante observar a Colônia locomovendo-se.
Esta locomoção é feita pelas mentes dos diretores, ou da equipe
de moradores da casa.
A primeira vez que vi, deliciei-me. É muito agradável, a Casa
parece deslizar tranqüila pelo espaço. É por isto que se acha a casa !
por sua vibração. Ao ficarmos dias em excursões ou mesmo em
outros trabalhos, para saber onde a Colônia se encontra, basta
mentalizá-la e somos levados até ela.
- Vamos ter uma reunião no Norte! - exclamou um dos
moradores. - Será uma reunião com encarnados.
Alegrei-me muito por estar de folga. Assim fui ver a Casa
locomover-se e pude assístir à reunião. A Casa promove muitas
reuniões com encarnados. Seu movimento aumenta. É necessário
organizar, marcar com os convidados os locais onde a casa
deverá ir.
Esperei ansiosa pela reunião. Que agradável surpresa! A
Casa parou sobre a cidade de Manaus. Era de tardínha e a reunião
estava marcada para a noite, a uma hora da madrugada. Os
convidados seriam os encarnados da região e também alguns
desencarnados. Todos trabalhavam na divulgação do livro Espírita.
Às onze horas, um grupo da casa saiu para ir buscar os
convidados encarnados. O pátio da frente estava radioso, todo
iluminado. Uma música suave e bonita se ouvia por toda a parte da
frente. A reunião ia ser em um dos salões de porte médio,já que não
iriam muitas pessoas.
Fiquei no pátio, curiosa, tanto observando como conversando,
À meia-noite começaram a chegar os convidados. Os desencarnados
convidados normalmente chegam primeiro. Os encarnados

A casa do escritor 63

que deixaram seus corpos dormindo chegaram felizes. Uns totalmente
conscientes cumprimentavam todos alegres, outros chegavam
admirados, e alguns infelizmente um tanto alheios. Um dos
moradores que estava ao meu lado esclareceu.
- Vemos que nem todos estão amadurecidos igualmente.
Muitos estão acostumados a estes encontros, outros, é a primeira
vez que participam. Assim não podem estar igualmente conscientes
e interessados. No horário previsto, todos estavam presentes.
Fomos convidados a ir para o salão. Todos acomodados, foi feita
uma prece muito bonita e a palestra começou.
Qual não foi a surpresa quando levantou e ficou à nossa
frente o Dr. Adolfo Bezerra de Menezes, que cumprimentou a
platéia sorrindo.
- Boa noite, caros irmãos i Que Jesus esteja presente em
nossa reunião.
Falou, com sua voz sempre agradável, da necessidade de os
encarnados estarem unidos e firmes no trabalho de divulgação da
Literatura Espírita. Da necessidade que temos de ler, aprender
por meio das boas obras. Disse conhecer as dificuldades existentes,
mas que com boa vontade tudo se resolveria. Brincou com
os presentes. Demos boas risadas. Como é bom ter conversas
importantes com alegria. Foi aberto o espaço a perguntas. A platéia
no começo perguntou timidamente, depois se indagou muito e o
orador respondeu atenciosamente, magnificamente. Foi com pesar
que escutamos:
- Está terminada a reunião!
Houve abraços de despedidas. Dois dos encarnados ficaram
para uma reunião particular. Os moradores da Casa se aproximaram
dos encarnados para levá-los novamente aos corpos que
estavam adormecidos. Estes encontros particulares são atendidos
pelo diretor da casa. Se existem pedidos de ajuda. são anotados e
analisados imediatamente. O auxílio se inicia tendo em vista a
possibilidade da Casa. Se conselhos, opiniões. o diretor com
sapiência e paciência conversa com eles. Todos saem satisfeitos.
Alguns convidados desencarnados e alguns moradores ficaram
por ali. Todos queriam continuar desfrutando a presença deste

64 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

glorioso médico, escritor e espírita brasileiro. Também fiquei e foi
com contentamento que dele escutei:
- Temos que incentivar as boas coisas, os fatos importantes.
Dar ênfase a tudo que é lindo. O entusiasmo faz parte da vida!
Aos poucos todos foram voltando aos seus afazeres. A
reunião acabou. A Casa ficou dois dias ali atendendo consultas,
realizando ajudas. Depois partiu. Muitas reuniões assisti com
proveito. E que proveito!
Depois de ter assistído a muitas reuniões, fui escalada para
fazer parte da equipe que vai buscar e levar os encarnados convidados.
O trabalho começa à tarde, às vezes até pela manhã. Nas
primeiras vezes, acompanhei Otacílio, um amigo já experiente que
me explicou:
- Hoje vamos levar à reunião Suely, uma jovem que começa
a dedicar-se à tarefa de divulgar livros Espíritas.
Logo que a vi, simpatizei com ela. Acompanhamo-la no seu
trabalho material na parte da tarde.
- Suely trabalha muito - esclareceu Otacílio. - Aqui estamos
para que tudo dê certo, para que sinta nossas vibrações e fique calma,
para que possa dormir tranqüila e ser desligada com facilidade.
Ficamos perto dela. Tarefa agradável, ela é muito simpática.
Tudo deu certo. Suely dormiu tranqüila. No horário marcado,
Otacílio lhe deu um passe, ela se desprendeu fácil do corpo carnal,
nos observou e sorriu. Otacílio lhe explicou.
- Suely, viemos buscá-la para uma reunião importante,
Lembra-se? Comunicamos-lhe na semana passada.
-Lembro sim. Estou pronta. Podemos ir. Mas com que roupa
devo ir? Não posso ir em trajes de dormir.
- Certamente, troque de roupa se acha necessário - dísse
Otacílio. - Esperaremos por você.
Saímos do quarto e Suely rapidamente trocou de roupa. Este
fato é interessante, quando encarnada estava sempre a pensar com
que roupa saía do corpo. Normalmente pessoas boas, instruídas,
vestem-se diseretamente e saem com roupas que costumam usar.
Raramente temos convídados nas reuniões da Casa do Eserítorcom

A casa do escritor

roupas de dormir. Suely era inexperiente, porque quem está acostumado
a sair do corpo já plasma a roupa que quer usar, faz isto
maquinalmente. O perispírito, neste caso, veste roupa plasmada,
idealizada. Suely, ao se trocar, pegou uma cópia, criou pela vontade
dela, trocou o pijama por outra roupa que lhe convinha.
Não é agradável ver convidados com trajes de dormir. Quando o
convidado está assim, quem vai buscá-lo aconselha que se troque.
Suely estava disereta, mas quis ir bem arrumada, porque para cla
ia a um lugar importante, e tinha razão. Os quejá estão acostumados
a sair do corpo e ir às reuniões ou encontros com amigos, mudam
de traje automaticamente. Alguns preferem só um tipo de roupa,
outros, qualquer uma das que possuem. É comum ver, à noite
encarnados desligados pelo sono andando pela cidade, indo ao
Umbral, com vestes menores, seja com trajes de dormir, seja muito
enfeitados. Infelizmente se sentem bem assim, vibram assim. Mas
em lugares sérios, de estudo, todos se trajam bem e com diserição.
Demo-nos as mãos, Suely ficou no meio de nós dois,
volitamos até a Colônia. Após a reunião, levamo-la de volta e
novamente com passes deixamo-la a sono solto.
Fui com o Otacílio fazer convites para a próxima reunião.
Estes são feitos dias antes da reunião. Volitamos até a região onde
a reunião seria realizada e localizamos as pessoas a serem convidadas.
Para que o encarnado não se assuste, não tema ser encarnado.
notifica-se antes ao seu protetor, ou guia, um espírito em que o
convidado confia. Na hora do convite, este espírito amigo ficajunto
de nós e também quase sempre participa da tarefa do transporte,
além das agradáveis reuniões. Esperamos o encarnado dormir,
desligamo-lo do corpo e conversamos com ele. É gostoso fazer
convites. Os que já estão acostumados nos recebem com alegria,
como um senhor que há tempo vende, divulga e ama os livros
Espíritas. Seleciona com outros companheiros livros que são
vendidos nas bancas, clubes e feiras de sua cidade. O senhor José
Antônio nos abraçou, sorrindo.
- Que convite agradável! Já sentia saudades das reuniões. Há
tempo que não vou. Temia ser esquecido. Quem conhece a Colônia
sente falta, não é mesmo?

66 Vera Lúcia Marínzeck de Carvalho ! Patrícia

Para muitos convidados, o pessoal da Casa só faz o convite,
eles vêm com companheiros desencarnados que trabalham com
eles. Muitos encarnados que não são filiados, mas são amantes da
Literatura Espíríta, são em certas ocasiões convidados e ficam
muito contentes com o que vêem e ouvem nas reuniões.
Mas nem tudo dá certo. Há contratempo também. Como
quando ao buscar uma convidada a encontramos com uma tremenda
dor de dente que não a deixava dormir. Otacílio e eu tudo
tentamos para ajudá-la. Conseguimos que a dor amenizasse e que
dormisse, mas não foi possível retirá-la do corpo.
- Ela está agitada e cansada - disse meu companheiro. - Hoje
não poderá ir. Ficará para uma próxíma vez.
- Sentirá por não ter ido? - indaguei ao meu companheiro.
- Sim, todos amam muito estes encontros fraternos. Mas no
corpo poderá sentir somente uma leve impressão de que ia a um
lugar agradável e não foi.
Às vezes, a dificuldade é outra. Como um dos convídados
cujo pai havía desencarnado e ele estava no velório. Também
encontramos um convidado que fora a uma festa e não estava
dormindo no horário marcado. Outro, que havia bebido com os
amigos.
- Não podemos levar ninguém com emanações de bebidas
alcoólicas. Ele irá numa próxima vez.
Este trabalho de equipe consiste também em determinadas
ajudas após as reuniões. Às vezes, os convidados fazem apelos,
pedem opiniões e ajuda. São escaladas equipes que vão logo que
possível até estas pessoas. As queixas maiores quando fiz o curso
foram: falta de poder econômico e ataque dos írmãos ignorantes.

"N.A.E. - Ataques de irmãos ignorantes ou espíritos que temporariamente
seguem o caminho do mal tentamos resolver de muitas maneiras, pelo menos
tentamos suavizar estas pressões. Não posso descrever o que usamos ou o que
fazemos. Mas o principal é incentívar os encarnados a vibrarem melhor para não
entrar na onda das vibrações deles.

A casa do escritor 67

Começávamos nosso trabalho indo até as pessoas e editoras,
estudávamos a situação, tentávamos junto com os encarnados
resolver os problemas. Tínhamos pedidos também para inspirar
capas, folhetos ou como fazer o melhor livro. Como também opinar
se este ou aquele livro deveria ser editado. Livros que passam pela
Casa do escritor já são aprovados, outros, nem sempre. Quando
surgem alguns bons escritores não filiados à Casa, trata-se logo de
convidá-los para se filiarem. É gostoso este trabalho.
Indaguei ao Otacílio.
- Sabe de algum convite da Casa para filiação que foi
recusado?
- Sim, temos convites recusados. Tanto de escritores encarnados
como desencarnados. Muitos não querem seguir os regulamentos
da Casa e não se filiam. Temos recusas de médiuns
psicógrafos também pelos mesmos motivos. A causa príncipal é a
pressa. Muitos não têm paciência para um treino maior e muito
estudo. Nem todos os médiuns psicógrafos preparam-se para ser.
- Mesmo sem preparo eles escrevem? - indaguei.
- Sim, têm o livre-arbítrio. Infelizmente, seus trabalhos não
saem como deveriam sair.
Fiz parte desta equipe com muito gosto. Como Antônio
Carlos havia me dito, a Casa do escritor é muito movimentada e
fazer parte desta equipe é estar sempre alerta. A equipe fica pronta
para atender qualquer pedido de ajuda de seus filiados, atendendo
chamados de companheiros que trabalham com as bancas, com
editoras, com as feiras do livro Espírita.
Foi um trabalho prazeroso e de muito aprendizado para mim.

VII
APRENDENDO SEMPRE

Comecei, no decorrer do curso a prestar mais atenção
pessoas e estava sempre a pensar: "Que será que houve para
a pessoa ser assim? Que fato terá ocorrido para ter esta conseqüêcia?
Por que faz esta tarefa? Será que repara erros? Comecei a ficar
tal qual meu amigo Antônio Carlos. um colecionador de histórias.
Foi com ele que comentei este fato.
- Antônio Carlos, todos nós temos uma história. Ter
observado as pessoas e fico me indagando qual a causa que a leva
atal efeito. Tenho curiosidade, por exemplo de saber qual foi aa5
que levou tia Vera a ter esta reação. Ser medium psicógrafa. Tia
causa?
- São muitas as causas que levam às vezes a ter a mesi
reação. E nem todos os mediuns o são pelo mesmo motivo. Alguns
reparam erros, outros têm como uma oportunidade de trabalho para
o progresso. Médiuns psicógrafos não fogem à regra. Falando
sua tia, ela repara erros. Por volta de 1700 ela estava encarnada
dedicou-se à Literatura. O espírito, que nesta encarnação e sua tia
há muito ama escrever e ler. embora tenha abusado desse don
Voltando à encarnação de 1700, na França, vestida no corpo carnal
de um homem, ela foi um escritor ateu. (neutiu nos seus leitores
idéia de que Deus não existia e incentivou com seus eseritos
prazeres mundanos. Desencarnou assassinado por um de seus
inimigos. Sofreu muito. Teve outras encarnações. perdeu o dom e
escrever pelo abuso e pelo remorso. Muitas vezes. Patrícia,

A casa do escritor 69

termos um dom, melhor dizendo, ao sabermos fazer algo e errarmos,
sofremos e o remorso faz com que rejeitemos este saber. Isto
ocorreu. Ao pedir para reencarnar desta vez, vendo este erro
irreparado, ela se preparou para construir o que destruiu no passado
com sua eserita. Só que não faz por si mesma. É intermediária,
escreve pensamentos alheios. Se outrora exaltou o materialismo,
hoje prega o espiritualismo. Se tentou no passado negar a existência
de Deus, hoje exalta o Criador com profundo Amor. Trabalha
construindo, repara erros e faz o Bem.
- Isto é ótimo! Em vez de sofrer por um erro, trabalha
reparando!
E quase sempre trabalhamos na área onde erramos. Mas
este fato não é regra geral. Você é a primeira vez que trabalha com
a Literatura e não está reparando erros, é somente mais uma tarefa
confiada. Por isso lhe digo que não é regra geral. Muitos trabalhos
são tarefas, oportunidades de aprender e crescer espiritualmente.
Meditei muito sobre este assunto e achei genial reparar erros
trabalhando no Bem, reformando-se interiormente para melhor.
Nossas aulas sempre foram muito interessantes. Muitas
histórias foram narradas para que escrevêssemos, como a de Maria
da Penha.
- Faço este curso e depois farei outro que me preparará para,
encarnada, ser médium - disse ela com seu jeito meigo.
- Devo, encarnada, psicografar. Sim, quero e pretendo ser uma boa médium
psicógrafa.
- Você tem motivos para isto? - indagou Henrique.
- Sim. Na encarnação anterior falhei como médium, quero
voltar a ser, por isso me preparo para sentir-me mais forte e não
falhar. Narro a vocês minha história. Nasci em uma família simples
e pobre, desde pequena tinha visões e escutava vozes. Minha
avó era benzedeira e com ela aprendi a benzer logo na mocidade.
Casei jovem e tive um filho atrás do outro. Neste período, minhas
faculdades mediúnicas ficaram adormecidas. Tive dezesseis filhos.
Acho que é este motivo que leva as pessoas, logo que me conhecem,

Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

a sentirem meu carinho maternal, ou também porque sinto por todos
um amor de mãe, explicando assim por que me chamam carinhosamente
de mãe de todos. Graças a este amor não sofri tanto. Meu
caçula estava com cinco anos quando meu marido perdeu o pouco
que tinha e ficamos na mais negra miséria. Passamos fome realmente.
Tinha começado a sentir a mediunidade e fui a um Centro
Espírita e lá eles me aconselharam a trabalhar na casa. Não me
interessei, queria no momento arrumar uma forma de ganhar
dinheiro. Ajudada, aconselhada por espíritos que não querem nos
ver no trabalho edificante, aos quais dei ouvido, achei uma maneira
de ganhar dinheiro, usando de modo errado minha mediunidade.
Passei então a ler sorte, a benzer, tirar mau-olhado e quebrante.
Fazia isto na minha casa e cobrando sempre. Para olhar a sorte, o
futuro de uma pessoa, basta ter certa sensibilidade e aprender para
fazer. A maioria das pessoas que fazem isto lêem o passado,
presente e futuro de outra pessoa; usam, de alguma forma, ritual
fisico, para ler a aura do consulente. Poucas pessoas sabem fazer
isto, assim mesmo nem tudo pode ser revelado. Outros sabem um
pouco e com este pouco vão enganando, acertando muitas coisas
mas errando também. Para benzer e impressionar, fazia orações
com ramos verdes e receitava algumas simpatias que minha avó me
ensinou. Mas minha avó, embora pobre, nunca cobrou nada. Com
este dinheiro alimentei meus filhos. Os trabalhadores do Centro
Espírita em que fui algumas vezes tentaram me alertar dizendo que,
os bons espíritos me davam de comer, era necessário eu dar.
Nossa situação econômica melhorou, meu marido acertou-se novamente
e os filhos maiores passaram a trabalhar. Ganhei de um
senhor Espírita a coleção dos livros de Allan Kardec e também
preciosos conselhos. Dizia-me ele, bondosamente: "Você não deve
cobrar, procure um Centro Espírita e trabalhe para o Bem. Dá de
graça o que de graça recebeste."
Mas a vaidade de ter ajudado muitas pessoas e de ser citada
como boa benzedeira e boa vidente me deixava orgulhosa. Não quis
deixar o que fazia para ir aprender em um Centro Espírita. Mas,

A casa do Eserítor 71

apesar de cobrar, ajudei de fato muitas pessoas. Sabia tirar fluidos
nocivos dos encarnados, fluidos que uma pessoa passa a outra como
projeção de ínveja, cíúmes e ódio. Com minhas orações e rituais,
minha mente atuava resolvendo alguns problemas, era uma espécie
de magnetizadora. Certamente nem todos os problemas eu solucionava,
quando havia espíritos com os encarnados, o que fazia era
orar por eles. E, achando que dinheiro é sempre bem-vindo, cobrava
sempre. No começo me justificava dizendo que era para comprar
alimentos para meus filhos, depois, porque sempre estava necessitada
de comprar algo, mas eram sempre objetos supérftuos. O fato
era que sempre tinha algo a fazer com o dinheiro em meu próprio
beneficio, dos meus filhos e dos meus netos. Só que esqueci de fazer
a caridade. Eu, que passara pela pobreza, deixei de auxiliar outros
que passavam também pela miséria. Muitos podem fazer o que fiz
sem saber do erro enorme realizado. Mas soube, tive oportunidade
de ser advertida, não dei atenção. Li os livros de Allan Kardec, pus
a "carapuça" nos outros, ou seja, coloquei para outras pessoas as
advertências dos livros,justificando-me. O fato é que não os entendi
bem mas o suficiente para saber que não devería cobrar e que
deveria trabalhar com minha mediunídade num grupo sérío e fazer
o Bem. O que me consola é que não fiz o mal. Por muitos anos vivi
assim, até que desencarnei. Como disse, não sofri demasiado por ter
alguns fatores a meu favor, como ter pedido a oportunidade de
crescer e reparar erros do passado com a mediunidade. Porque,
recordando a existência anterior, vi que fui uma freira severa que
perseguia no convento quem tivesse alguma mediunídade. Não se
deve chorar pelo passado, só tirar lições para o futuro. Anseio por
nova oportunidade e planejo reencarnar e novamente ser médium.
Desta vez quero, pela psicografia, me educar e tentar educar
muitos. Devo ser pobre novamente e vencer a tentação de usar a
minha mediunídade para ganho material.
María da Penha silenciou e deu um longo suspíro, mas logo
sorriu e cheia de esperança. Sorrimos também. Não é porque se
errou uma vez que não se pode vencer no futuro.

72 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

- Maria da Penha, você vai saber ler a sorte de novo?
- perguntou Ruth.
- Amiga, quando sabemos algo, este conhecimento é nosso,
seja ruim ou bom. Certamente poderei lembrar ou aprender fácil.
Mas não farei por dinheiro, meu desejo é mesmo não fazer isto. Se
o futuro fosse para sabermos, cada um de nós veria o próprio. Não
vejo como fazer o bem que almejo lendo a sorte. Não, Ruth, não
quero fazer isto de novo.
- Você, Maria da Penha, na encarnação anterior preparou-se
para encarnar? - indagou Osvaldo.
- Sim, preparei-me, mas não muito, como estou me preparando
para a próxima. Tento num esforço maior fixar estes
ensinamentos na minha mente. Tenho muito medo de errar, mas
tenho também muita confiança. Há um amigo que permanecerá
desencarnado e me acompanhará, será meu guia, protetor, pessoa
severa e boa que me ajudará na psicografia. Preparamo-nos para
escrever obras lindas no futuro. Estas aulas de redação estão sendo
muito importantes para mim, aprendo a narrar histórias para no
futuro ser mais fácil escrevê-las.
Com curiosidade sadia, indaguei ao mestre Aureliano:
- Maria da Penha aprende a escrever histórias. Não seria
importante também que ela aprendesse a füar datas e nomes para
que quando encarnada, médium psicógrafa, tivesse facilidade de
escrever estes itens?
- Sua pergunta, Patrícia, é bem interessante. Será que Maria
da Penha, que faliu anteriormente, na próxima encarnação tende
facilidade de receber, psicografar datas e nomes não teria sua
vaidade tentada? Não seria um peso demasiado para seus ombros
fracos? Poucos estão preparados para este evento. Que bom seria
que todos os desencarnados pudessem, por intermédio de encarnados,
provar sua identidade com nomes e datas que o médiun
desconhecesse. Mas para estes médiuns não seria uma porta aberta
a sua perdição? Não ficariam orgulhosos e vaidosos deste fato? De
fato, se todos pudessem, como Chico Xavier, escrever nas mensagens
datas e nomes que comprovam quem realmente é o evocado que

A casa do escritor 73

- escreve, seria ótimo à credibilidade de muitos. Mas, como disse, é
um pesado fardo que só ombros fortes agüentam sem se perder.
Chico Xavier conseguiu isto com muitos anos de trabalho e estudo
só quando conseguiu vencer sua vaidade. Escrever fatos é o
bastante para começar, depois outros fatores vêm com o tempo. E,
para quem quer crer, um pingo é letra.
- E você, Aureliano. não terá também uma história interessante?
- perguntou Henrique, sorrindo.
Aureliano sorriu e, com seu jeito simples, falou de si.
- Sou um espírito milenar. Hà muito descobri o gosto pela
leitura, pela eserita. Na minha memória, lembro das primeiras
encarnações na Terra, grafando desenhos na pedra. Também
sempre gostei de ensinar o que sabia. Sou mestre de longa data. Nas
minhas andanças pela Terra, sempre nas minhas encarnações,
aprendi a ler, escrever e fui apurando meu gosto pela Literatura.
Certamente tenho muitas histórias de amores. desafetos e vitórias
a relatar sobre mim. Nas últimas encarnações tentei procurar Deus
nas diversas religiões. Encontrei-O dentro de mim mesmo. Estou há
trezentos anos desencarnado e neste período todo dedico-me a
ensinar. Quando esta Casa foi criada, foi com grande alegria que
vim para cá. Leciono dezesseis horas por dia, aqui e na Colônia de
Estudo. O restante, oito horas, dedico à Literatura que tanto amo.
Ou seja, ajudando ex-alunos encarnados, lendo obras novas e
procurando aprender para melhor ensinar.
- Não irá reencarnar, Aureliano? - quis saber Adelaide.
- Não tenho planos. Devo continuar ensinando no Plano
Espiritual ainda por muito tempo. Preparar espíritos que tem
necessidade de encarnar é o meu objetivo.
- Esta sua tranqüilidade tem causa? - indaguei.
- Certamente, a da consciência tranqüila. Atualmente ao
recordar meu passado nada tenho para reparar. Se reencarnasse
seria para progredir, mas faço este progresso aqui mesmo. Aprendo
muito ensinando.
- Quando reencarnar, fará falta aqui - disse Ruth.

Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

- Não! Ninguém é insubstituível. Digamos somente que
estou bem encaixado no meu trabalho. E me alegro com sua
carinhosa observação. Creio que, quanto mais forem os desencarnados
a preparar-se para a encarnação, mais chance terão de
progredir, de realizar boas tarefas. A Terra está necessitada de
muita aprendizagem.
Minha admiração por Aureliano cresceu ainda mais. Como
é agradável encontrar pessoas dispostas a passar aos outros tudo o
que sabem. É fantástico ensinar!

VIII
A BIBLIOTECA

Um lugar que gostava e gosto muito de ir é a biblioteca. A
biblioteca da Casa do Escritor é realmente fantástica. Espaçosa,
tudo bem clarinho, com lindos lustres e janelas redondas, grandes,
com alguns vidros coloridos formando delicados desenhos em tom
claro. Tem muitas estantes, tudo catalogado e muitas escrivaninhas
para pesquisas e sofás confortáveis. Para achar o que se quer ler,
temos o auxílío de um avançado aparelho parecido com o computador
que se tem na Terra. Mas há também um bibliotecárío à
disposição para atender os leitores.
A coleção de livros antigos é encantadora. Em destaque
estão a Bíblia e os Evangelhos, com traduções diferentes, grandes,
pequenos, ilustrados, com desenhos dos apóstolos que são maravilhosas
obras de artes. Em todas as bibliotecas do Plano Espiritual
em destaque estão os Evangelhos e alguns livros importantes sobre
os mesmos. Logo à entrada há uma estante com os livros de Allan
Kardec, em francês e em português. A Colônia dá muito valor a
estas obras. Junto também encontramos a bibliografia do mestre
francês e também de seus principais companheiros e médiuns que
o ajudaram. Há um livro que o próprío Kardec escreveu quando
desencarnado, para as Colônias de Literatura em especial, falando
de si e de sua obra. O livro é pequeno e simples, fala das dificuldades
que encontrou durante seu trabalho, de suas dúvidas, dos esclarecimentos
e de suas amizades.
- Que livro bonito! Poderia ser com mais detalhes, não acha?
- indaguei à bibliotecária. - Ele mesmo escreveu tão pouco de si.

76 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

- Mostra a simplicidade do nosso codificador. Temos aqui
bibliografias suas bem mais estensas, escritas por outros companheiros.
Acredito que Kardec ao fazer este livro quis exemplificar
que ele também lutou com seus vicios e defeitos, que se esforçou
para fazer seu trabalho e que foram horas, dias e anos de luta para
consegui-lo. Não foi um trabalho fácil e nem o recebeu sem esforço.
Mostra-nos que, se ele conseguiu, todos nós podemos também fazer
algo de ütil.
- Será que os encarnados poderão ler este livro um dia?
- indaguei novamente.
- Não está nos planos divulgá-lo entre os encarnados. Este
livro só se encontra nas bibliotecas de Colônias de Literatura.
Certamente o emprestamos e muito. Todas as Colônias que se
dedicam, como a Casa do Escritor, à líteratura edificante, têm pelas
obras de Kardec um carinho especial e um lugar de destaque.
Já vira por outras Colônias, bibliotecas e salas de vídeos bem
maiores e mais bem equipadas que na Casa do escritor, mas nem
por isto deixava de ser encantadora. Quando necessitávamos ou
queríamos ler uma obra que lá não havia, emprestávamos de outras.
O empréstimo é facílimo. Pedimos por um aparelho, que dá uma
leve lembrança do fax, e em mínutos recebemos a obra.
À direita da biblioteca estão os livros espíritas, todos os bons
já editados para os encarnados. Também há obras escritas por
desencarnados que os encarnados desconhecem. Algumas muito
importantes sobre o tema da Doutrína Espírita. Que gostoso ler! Na
Colônia todos amam aprender, se afinam pelo gosto literário e têm
o objetivo comum: divulgar e fazer boas obras.
A matéria dada por Maria Adélia exigia-nos muitas pesquisas
e fazíamos muitos trabalhos. Nestas ocasiões, íamos os oito à
biblioteca. Que gostoso! Passávamos horas lendo e nos informando.
Fizemos lindos trabalhos.
Também ia muito à sala de videos. Revi muitas vezes as fitas
da formação da Terra e dos principais acontecimentos do nosso
planeta. O que gosto especialmente de ver é tudo que se tem sobre

A casa do escritor

Jesus. Foram gravados quando Ele estava encarnado. Podemos
ver os principais fatos acontecidos com Ele, todos seus ensinos e
parábolas. São encantadoras, seus dizeres são maravilhosos. A
primeira vez que O vi, chorei o tempo todo. Ainda agora, que já
perdi a conta das vezes que vi, me emociono, em certos pedaços,
choro. Também gosto de ver os vídeos que temos sobre Allan
Kardec. Ele trabalhando com sua equipe, tanto a encarnada quanto
a desencarnada. Organizando o Livro dos Espíritos e o Evangelho
Segundo o Espiritismo. Para aqueles que gostam de aprender,
lugares assim são deveras atraentes.
Ia muito às reuniões da Casa. A Colônia recebe visitas de
moradores de outras Casas e de diversos países. Trocam-se muitas
idéias. Recebem-se também muitas pessoas importantes na Literatura,
tanto os que estão encarnados, como desencarnados.
Quase todos filiados à Casa. De modo especial, encantei-me
com os escritores Espíritas: Emmanuel, André Luiz e Joanna de
Ângelis. André Luiz sempre que possível brindava a Casa com suas
palestras instrutivas e cativantes. Foi uma alegria imensa ouvir
Emmanuel num encontro com todos os filiados do Centro-Leste.
É um prazer ver encarnados escritores e médiuns em reuniões
de incentivos e esclarecimentos. Para muitos, a Casa é como uma
fonte de energia e força, onde se beneficiam, restauram e mais:
recebem o apoio espiritual que necessitam. Porque, às vezes,
encarnados passam por períodos difíceis e precisam do carinho dos
amigos para não desanimarem.
Gosto muito de indagar, de saber, assim procurava sempre
companhia dos que poderiam me ensinar. Conversava muito com o
simpático e instruído diretor da Casa. Assim soube tudo o que
queria.
- Sr. Diretor, fale-me um pouco da Casa, do seu trabalho,
dos filiados.
- Patrícia-disse ele sempre gentil -, amo este lar e temos nos
esforçado bastante para que o nosso trabalho dê frutos. Seus
objetivos. seus trabalhos são maravilhosos. Temos prestado muita

78 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

atenção em todos que trabalham com a Literatura Espírita. Nossa
lista de filiados é grande. Todos que divulgam, vendem, editam e
escrevem a Literatura Edificante têm nossa assistência. Se por dois
anos contínuos fazem este trabalho, filiamo-los à Casa.
- Se uma pessoa trabalhar um determinado tempo e abandonar,
continua filiado?
- Tudo faremos para incentivar a não abandonar ou a voltar.
Mas ela sendo livre, certamente pode abandonar a tarefa começada.
Se depois de uma insistência de nossa parte ela abandonar realmente,
é estudada a causa que a levou a este abandono. Porque, às vezes,
têm justificativas, como doenças, algumas dificuldades sérias.
Neste caso, continua filiado. Mas, se não houver motivo, pode ser
desligado, mas levará sempre em seu favor o trabalho já realizado.
- Ao desencarnarem os filiados recebem alguma ajuda
especial? - indaguei novamente.
- Aqueles que ajudam a boa Literatura costumam ler também
e aprendem muito. A maioria, com algumas raras exceçôes
aproveita o que lê para o bem de si mesmo. Faz por merecer ser
socorrido após o desencarne. Fazendo-se merecedor, recebe ajuda,
sim. Quando prevemos a desencarnação de um filiado, nossa equipe
vai ajudá-lo nos últimos dias, no seu desligamento e leva-o para uma
Colônia de Socorro de sua preferência ou do espaço espiritual de
sua cidade material. Pode ser levado também para Postos de
Socorro. Depois desta ajuda, cabe a eles continuarem no local para
o qual foram transportados ou não. Todos temos o livre-arbítrio de
querer ou não o socorro. É dificíl um caso em que o filiado não aceite
nossa ajuda. Como disse, para si faz ao ler, divulgar, vender, ou até
escrever boas obras.
- Já aconteceu de um filiado não merecer esta ajuda?
- perguntei curiosa.
- Infelizmente sim. Mas, graças à bondade do Pai, é raríssimo
o fato. Mesmo assim, ele é vigiado por nós e, quando possível,
é socorrido.
- Já ocorreu de espíritos ignorantes tentarem vingar-se de
espíritos filiados, quando estão desencarnados recentemente? Este

A casa do escritor 79

vingar que digo - expliquei - sei que não tem razão de ser. Porém,
já ouvi muito por aqui estes irmãos vingarem, blasfemarem,
jogarem pragas; o que quero saber é se aconteceu de eles quererem
se vingar dos que fazem o Bem.
- Sua pergunta, Patrícia, é muito interessante. Estes irmãos,
têm ciúmes do esforço que fazem muitos irmãos que
caminham para o progresso e fazem o Bem. Eles falam, mas fazer
é outra história. Não conseguem. Só poderão conseguir se esta
pessoa descuidar e vibrar como eles, assim mesmo terão oportunidades
de receber sempre ajuda e conselhos dos bons. Realmente,
escutamos muito estes irmãos falarem assim. porque, às vezes, o
bem que se faz pode atrapalhar uma maldade deles. Como no nosso
trabalho, um bom livro são muitas sementes boas que têm frutificado
em muitos corações. E pode incomodar. Mas, respondendo
diretamente sua pergunta, não podem. Primeiro, porquejá disse que
nossos filiados recebem assistência e, quando desencarnam, os
vingativos nem podem chegar perto. É justo que o trabalhador do
Bem receba seu salário na hora da desencarnação. Quem fez bons
amigos trabalhando para o Bem, estes lhe são fiéis, ajudam quando
necessário. Quanto às maldições, pragas deles sobre os bons, a eles
retornam por não encontrar ressonância.
- Aqui não há recém-desencarnado. Não se pode trazê-lo
para cá?
- Não, aqui é lugar para os que estão totalmente adaptados
ao Plano Espiritual. Mesmo a desencarnação para os justos traz
até necessidade de uma recuperação e descanso. Mesmo que seja breve
sua adaptação na vida Espiritual, deve ser feita em local próprio.
Por isto são levados à Colônia de Socorro. Muitos, após um
período, podem escolher o que irão fazer depois. Temos muitos que
foram filiados encarnados e que depois preferem outras formas de
atividades.
- Pode-se filiar depois de desencarnado?
Indaguei e ri. Não havia acontecido este fato comigo? Mas,
Este já que indaguei, este amável senhor respondeu, gentil.

Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

-Certamente. Você, Patricia, se filiou agora. (quando encarnada,
embora gostasse da boa Literatura e dos livros espíritas, não
chegou a trabalhar com eles para merecer um filiamento. Isto
acontece bastante. Muitos mio tiveram a oportunidade de filiar-se
quando encarnado e o fazem após. Aproveito, Patricia, para lhe
dizer que é um prazer tê-la conosco. mesmo sabendo que será por
pouco tempo. Conheço seus planos e incentivo-a. Devemos sempre
lutar e nos esforçar para conseguir o que queremos.
- Tenho visto aqui encarnados não filiados em reuniões. Por
que?
- São todos amantes da boa leitura. .Aqui vem porque se
afinam com a Casa e com seus moradores. Vêm receber incentivos.
Este fato acontece raramente. Nossa preocupação é com os filiados.
- Pode acontecer de en certas ocasiões os filimios receberem
remuneração material
- Sim. Temos ciência: elue saio o anh;r-p;ïo de famílias.
n?os empregados de bancaa. livr;irias. duc rccchcm seu salário
para sobreviver. Infelizmente. ca que faze,n só pelo salario. fazem
co:ro se fosse apenas um trabalho como outro qualquer. estes
não são filiados. Os que trabalham com amor. embora tenham a
remuricração que na,itam. filiam-se

--a Casa do Escritor stio filiados s~ os n~cclmns p;icv~~ra-
os outros.
O diretor viu coa; raça a nonha perunia.
- Todos os que tezem v F3cn~ s~ tíliam au EW m. l odos qut
tazem o Bem tem posnbrluiadm de W rn,iren-se bons. Uc fato. 4
Coisa trata da parte literária. cios mediuns psicereraf~s. tas o:
vutos mediuns tem também sua proteção. f'ara evme~ar. quem faa
o E3cm. para si faz. Quem far ¡sc:~r mercccr. eonquista scu bon~ lugar
O~ outros médíuns ativos~ os que traball~am para o I3em. dele;
u~mos c de outros. tW scEo,~r; ami~os bens a 11~~s prcstar a ajuda
rd:~~,saria. Tcm tambcm o carinho de tcxlo o Ç~entro Eapírita que
tr~ïlücntam. Está cIn projeto a fòrnriç~ìo de um,r C'~lemia dc apoic
todos os médiuns. Seri r.ona casa móvel conw estár. duc volitar

A casa do escritor 81

sobre o Brasil, incentivando todos os médiuns a estudarem e serem
úteis ao Bem.
Não me dei por satisfeita, havia muitas perguntas para fazer.
Temi ser importuna. Mas amável como sempre ele me incentivou a
indagar.
- Pergunte o que quiser, Patrícia, responderei como me for
possível.
Não me fiz de rogada e continuei.
- Que acontece com os que vendem bons livros, mas vendem
os ruins também?
- Procuramos incentivá-los a ficar só com os bons. Embora
o que se diz ruim possa ser classificado de várias formas. Devemos
analisar de que tipo é a literatura ruim que se vende. Podem ser ruins
os livros de péssimo gosto e que não dizem nada de bom nem de mau.
Agora, se forem obras que incentivam o crime, os vícios, as drogas,
o sexo, estas são nocivas. Se esta pessoa não atender nosso pedido
de ficar só com a boa, não pode ser filiada.
- pode um encarnado pedir a um escritor desencarnado para
trabalhar com ele?
- Pedir pode, mas para atendê-lo tem que ser analisado seu
pedido. Este encarnado tem condições de ser um instrumento? É
médium psicógrafo? Se for, é estudioso? Paciente e perseverante
para treinar e afiar seu instrumento? Se as respostas forem positivas,
ainda temos que levar em conta se o espíríto que pede está
disponível e quer. Agora, se seu pedido é para qualquer escritor
desencarnado, é mais fácil atendê-lo. São poucos os bons escritores
conhecidos dos homens, mas muitos os conhecidos de Deus.
Agradeci a este amigo por tanta delicadeza em responder a
tantas perguntas. Sempre fui grata às pessoas que bondosamente
respondiam as minhas indagações, em minha ânsia de aprender
cada vez mais. E era sempre um enorme prazer participar de tão
agradáveis conversas.
Naquela tarde estava eufórica, íamos receber uma visita
importante para mim, embora todas as visitas que a Casa recebe
sejam importantes e não se faça distinção entre seus convidados.

82 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Mas sempre admirei o visitante daquela tarde, Francisco Cândido
Xavier, pela sua dedicação à Literatura Espírita. Foram horas e
horas de trabalho, renúncia, de esforço para conseguir escrever
tantos livros. Lembrei de um dos comentários que Antônio Carlos
faz sempre: "O médium é parceiro do escritor. Podemos dizer que
escrevem em dupla."
Fiquei a esperá-lo no pátio da frente. Veio com Emmanuel.
Fiquei maravilhada.
- Não está tão velho! Parece tão saudável!
Antônio Carlos, que estava ao meu lado, sorriu das minhas
esclamações.
- Patrícia, nosso perispírito demonstra o que somos na
realidade. Às vezes, uma pessoa má tem o fisico lindo, mas seu
perispírito é feio. E pode ocorrer o contrário. Não que seja o
perispírito totalmente diferente do corpo carnal, mas a harmonia e
a bondade dão a perfeição. O desequilíbrio e a maldade desarmonizam,
deformando. Você olha o Chico e o reconhece, sente que é
ele. Sabe que seu corpo está desgastado pelo tempo e pelas doenças,
mas seu perispírito não. Ele é bonito pela harmonia e simplicidade
de que é portador. Realmente ele parece mais jovem. Seu espírito
com entendimento irradía ao perispírito saúde e alegria de missão
cumprida. Você já viu muitos desencarnados que têm nos perispíritos
fortes reflexos de doenças, velhice e necessidades. Outros,
logo que desencarnam, pelo entendimento e merecimento,já têm seu
perispírito harmonizado. E, outros aínda, mesmo encarnados, já
são desprendidos destas necessidades. Têm a saúde espiritual
porque cultivam o verdadeiro, o eterno, a vivêncía do bem, do
Espírito.
Logo que ele chegou foram muitos a cumprimentá-lo. Tentei
aproximar-me. Acanhada, fiquei observando-o de perto. Ele andava,
eu andava atrás. Para todos tinha uma palavra carinhosa e uma
memória incrível, indagava sobre fatos e sobre amigos comuns.
Num momento que ficou sozinho, criei coragem e aproximei-me.
Deu-me a mão para um cumprimento e me olhou com muito
carinho. Disse-lhe:

A casa do escritor 83

- Obrigada, Chico, por você não ter desistido de sua tarefa
e ter, junto com tantos escritores, nos legado livros maravilhosos.
Particularmente, estes livros muito me ajudaram e ajudam a tantas
pessoas.
Ele sorriu e indagou:
- Faz algum curso na Casa?
- Sim, estou me preparando para ditar aos encarnados.
- Você, então, acha que fiz algo de bom? Que faço?
- Acho sim.
- Faça então como fiz!
Passou a mão delicadamente pelos meus cabelos e, sorrindo,
concluiu:
- Que os bons exemplos sejam seus objetivos. Que o Pai a
abençoe!
Emocionei-me tanto que senti meus olhos lagrimarem. Outros
companheiros se aproximaram e ele sempre atencioso voltou
para lhes dar atenção.
Todos fomos convidados a ouvir uma palestra. Humberto
foi o orador. Como sempre o assunto foi a Literatura. Falou das
dificuldades em se fazer bons livros. Que atualmente muitos bons
escritores estavam desencarnados. E que nem todos podiam usar da
psicografia por falta de bons médiuns, de instrumentos que fossem
dedicados e corretos. Para fazer bons livros é necessário coragem.
Materialmente está dificil e infelizmente se vende pouco. Mas
terminou incentivando todos ao bom ânimo e ao trabalho incessante.
Não discursou muito. Após convidou Chico para falar. Sorrindo
sempre, este conhecido Espírita e médium levantou-se e diante de
todos disse poucas palavras.
- Irmãos, que Jesus esteja em nossos corações! O que
umberto disse veio muito a calhar nos acontecimentos atuais.
Necessitamos de bons escritores encarnados e de médiuns que
aceitem a tarefa fiel de intermediários. Médiuns sem vaidade, que
trabalhem com boa vontade e que não tenham pressa de editar, logo
que comecem a psicografia. Há necessidade de se fazer um treino,

84 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

e de estudos da Doutrina e das obras de Kardec. Que não fiquem
com medo de fazer, nem com desânimo. E nem que pensem que não
vale a pena. Este trabalho não dará frutos materiais, sim espirituais.
Reunidos aqui, pensemos na necessidade de trabalhar sempre.
Se encarnados, qüe se voltem ao estudo com seriedade e dedicação.
Nada se faz de um dia para o outro. Aos desencarnados,
incentivo-os a encarnarem e a dedicarem-se no plano físico à
Literatura Espírita edificante. E que também se preparem para ser
médiuns psicógrafos.
Deu uma pausa e um dos ouvintes indagou:
- Chico, acabei um curso que me preparou para quando for
encarnado ser médium psicógrafo. Tenho medo de me perder, acho
que não serei capaz de dedicar-me tanto, de renunciar aos prazeres
da matéria para dedicar-me ao treino, ao trabalho, aos livros. Que
me diz? Sei que sua existência encarnada não tem sido fácil.
- Também não é dificil. Não me sacrífiquei. Quando se faz
o que se ama, tudo é mais fácil, é nosso prazer. Fui e sou muito feliz.
Ganhei mais que imaginava. A tranqüilidade e a Paz que sinto são
altíssíma recompensa. A amizade de que sou portador não tem
preço. Ame, tente amar mais, e irá fazer o que planeja. Ame e tudo
lhe ficará mais fácil.
A reunião acabou com uma linda prece.
Foi uma noite memorável.

IX NO UMBRAL

Foram inúmeras as excursões que fizemos ao Umbral, em
grupo ou sozinhos, com a finalidade de auxiliar, e também
colecionar histórias que iríamos escrever nas aulas de redação.
Depois de tanto tempo desencarnada, acostumei-me com o
Umbral, não tinha mais medo e nem me parecia um lugar horrível
como achei nas primeiras vezes que o vi. O medo não tem razão de
ser quando entendemos que lá estão nossos irmãos. É um lugar feio,
é uma conseqüência da vivência errada do ser humano. E, pelas
minhas recordações,já tinha sido meu lar provisório em existências
anteriores.
Conversas com grupos são dificeis. Ou eles atacam ou
querem que você faça parte da equipe deles. Assim, nós nos
dirigíamos aos isolados ou agrupados pelo sofrimento. Chegávamos
com educação e oferecíamos ajuda de modo sutil. Por exemplo:
- Você deseja que o ajude a sentar aqui? Quer água? Dê sua
mão para sair daí.
Porque, senão, querem logo coisas impossíveis: que os ajudemos
a se vingar, a ir perto dos encarnados, a se tornarem fortes para
serem maiores, etc. Mas encontramos sempre os carentes de
ajuda e dificilmente, nestas excursões, não voltávamos com muitos
socorridos que levávamos ao Posto de Socorro mais próximo.
Quando sozinha, sempre dei preferência aos que me pareciam
sofredores e mais humildes. Deles aproximava-me e começava
a conversar, facilmente lia seus pensamentos e ficava sabendo
da vida deles. Isto não era feito só pela história, mas também para

86 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

ajudar. Como uma vez em que encontrei uma mocinha presa numa
caverna. Tirei-a de lá e fomos sentar em uma pedra a uma pequena
distância do lugar em que estava presa.
- Por que estava presa? Não quer me falar de você? - disse,
mostrando-lhe amizade e dando da água fluidificada que trazia
comigo. Tomou a água com a ânsia dos sedentos, me olhou
demoradamente e indagou:
- Quem é você? Tirou-me da caverna, não teme meu
carrasco?
Falava bem, mostrando ser instruída. Estava com os cabelos
desalinhados, armados, que lhe vinham até o ombro. Magra e com
as roupas em farrapos. Tinha alguns machucados.
- Não tenho medo. Deixe-me passar esta água em seus
ferimentos.
Ela deixou, submissa. Passei e, com a força da minha mente,
fui curando-a.
- Puxa! Você é espetacular! Está me curando!
Quase todos seus ferimentos fecharam.
- Você não quer conversar comígo?
- Desencarnei há doze anos, aos trínta e sete anos. Logo que
deixei o corpo morto, este carrasco me pegou e tem me prendido. É
horrível!
- Que fez a ele para mantê-la assim? - indaguei.
-Nada de mais. Quando encarnados fomos amantes, mas ele
era casado. Resolvi deixá-lo, ele não se conformou, deu para beber.
Culpa-me por muitas coisas ruins que lhe aconteceram. Ama-me e
odeia-me, prendeu-me por ciúmes e por não amá-lo.
Bem, se eu não tivesse lido seus pensamentos e soubesse
só uma parte da história, a que ela me contou, pensaria ser este
fato algo tremendamente injusto. Mas, por aqui, não há injustiça.
Socorristas estão sempre pelo Umbral, socorrendo os que estão
prontos a víbrar diferente.
A históría que lí nos pensamentos dela foi outra. Ela era
volúvel e má, acabou conquistando um homem casado, bom esposo

A casa do escritor 87

e ótimo pai. Acabou com tudo que ele tinha financeiramente e queria
que ele abandonasse a família. Ele não quis e largou dela. Ela
planejou se vingar. Até que um dia conseguiu envenenar a água da
família dele. A caçulinha de três anos desencarnou envenenada.
Outra filha de cinco anos ficou com a laringe e a língua danificadas,
quase não conseguiu falar mais. Ele, a esposa e outro filho sofreram
pequenas intoxicações. Desconfiaram dela, mas não tiveram como
provar. Sua esposa o acusou por isto e foi embora com os dois filhos
para a casa de seus pais. Ele pôs-se a beber e virou um farrapo
humano. Quis voltar para ela, que não o quis, ele não tinha mais
dinheiro. Para ter dinheiro, foi roubar e acabou preso, desencarnou
na prisão. Ela ainda cometeu muitos outros erros. Ele, o carrasco,
como o chamava, esperou que ela desencarnasse para vingar-se.
- Você não contou toda sua história - disse-lhe. - Não lhe
pesa na consciência a morte de um inocente? Por que envenenou a
água da família dele?
- Como sabe disto? É bruxa? Lê o pensamento? Está aqui
para me acusar?
Levantou-se e respondeu enérgica, deixou cair a máscara de
humildade. Respondi com calma:
- Não, só tento ajudá-la. Mas, para que possa auxiliá-la,
deve arrepender-se dos seus erros e repará-los.
- Está louca? Nunca reparei nada. Fiz e está feito! Mereceram!
Não quero conselhos. Você me é desagradável. Odeio você!
Odeio todos!
Saiu correndo. Não fui atrás. O Umbral por enquanto era o
melhor lar para ela. Talvez seu carrasco não mais a encontrasse. Ele
também necessitaria reconhecer sua parte na culpa, traiu a esposa,
uniu-se a quem não prestava. Também deveria perdoar e tentar
reparar sua falta com os membros de sua família. Ela era fingida,
queria piedade sem mudar sua forma de pensar. Espíritos assim
num local de socorro só aprontam confusões. Por isso os socorristas
do Umbral têm que saber a quem socorrer.
Uma outra vez, vi um senhor não muito velho, mas com os
cabelos quase todos grisalhos. Estava sujo e com as roupas em

88 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

farrapas. Usava uma bengala e arrastava a perna esquerda,
estava inchadíssima e cheia de feridas.
- Bom dia! Como vai o senhor? - indaguei gentilmente.
Ele parou, sentou-se numa pedra e me convidou com a cabeça
a fazer o mesmo e respondeu:
- Bom dia! Estou bem mal. A perna me dói horrivelmente.
Tinha a ferida quando encarnado e agora, mesmo com meu corpo
morto, ainda sofro com ela.
- Por que a tem assim, ferida e inchada? - indaguei.
- Porque Deus assim quer.
Enquanto falava, li seus pensamentos. Vi que ele desde
jovem, sadío, esmolava. Fingía-se de doente, enfaixava a pernapara
dar pena às pessoas. Muitas vezes, chegou a cortar ele mesmoa
perna para que os ferimentos fossem autênticos. Desencarnou
devido a estes ferimentos que infeccionaram. Quando viu que eu o
observava, deixou de ser educado.
- Quem é você, minha jovem? Alguma boboca que vem me !
dar sermões? Dizer que devo perdoar, pedir perdão? Não faço nada
disto! Nada tenho a pedir perdão.
- Nem por pedir esmolas fingindo-se doente?
- Ora, ora! As pessoas me deram esmolas porque quiseram,
A perna é minha e uso-a como quero. Pedia esmolas em nome de
Deus. E cadê Ele?
Levantou-se e com dificuldade foi andando e arrastando a
perna. Levantei-me também para tentar dialogar com ele.
- Vê se não me amola!
Cuspiu-me. Foi andando blasfemando, dizendo que nada
fizera de errado. Achando que no momento era inútíl tentar ajudá-lo,
voltei, deixando-o ir não sei para onde. Devo explicar que a
cuspida que ele me deu não me atingiu. Depois que aprendemos,
estudamos como viver no Plano Espiritual, objetos de irmãos com
vibrações inferiores não nos atingem.
- Ai... Ai...
Escutei um día em uma das minhas visitas pelo Umbral. Parei
para ver de onde vinham tão doloridos ais. Achei. Vinham de uma

A casa do escritor 89

lama. Deitado no barro um espírito gemia tristemente. Peguei-o
pela mão e retirei-o da lama. Vi que se tratava de uma mulher, estava
nua, toda suja, cheirando mal.
- Não me olhe, estou sem roupa - disse ela com dificuldade.
Tirei da minha mochila um lençol e enrolei-a. Todas as vezes
que íamos ao Umbral, levávamos nossa mochila nas costas. Nela,
alguns apetrechos que sempre utilizamos, como lençóis, água,
alimentos, lanternas, cordas, etc.
- Tão limpo! Sujou-o todo.
- Não faz mal. Quer água?
- Limpa? Quero sim.
Peguei a água e joguei um pouco sobre seu rosto e mãos
limpando-os um pouco, depois dei para que bebesse. Bebeu com
avidez, após me entregou o cantil e tentou sorrir, mas acabou
fazendo uma careta.
- Obrigada!
- Por que você está aqui? Você não lembra de Deus? De orar?
- Não senhora. Não posso orar, sou pecadora. Meu lugar é
na lama. Acho que devo voltar.
- Espere um pouco. Converse primeiro comigo.
- A senhora não se importa? Sou pecadora!
- Não me importo. Está com fome? Coma este pão.
Ofereci-lhe um pão que pegou depressa e pôs-se a comê-lo.
Coloquei minha mão nas suas costas e ajudei-a, sem que percebesse,
a andar até uma pedra para que pudéssemos sentar. Enquanto
comia, li seus pensamentos. Quando acabou de comer, agradeceu
novamente.
- Não quer me contar o que houve com você? - indaguei.
Olhou-me tristemente, agora mais refeita, e falou.
- Era adolescente quando comecei a namorar e fui para cama
com ele. Mas ele não queria nada sério comigo. Foi embora, arrumei
outro, mais outro. Meu pai descobriu e me expulsou de casa
dizendo: "Vai embora maldita! Vai para a lama que é seu lugar."
Temi sua ira e pedi: "Pai, pelo Amor de Deus, não me expulse!"

90 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

"Não pronuncie o nome de Deus. você não pode, não deve, é ímpura
demais." Fui para a prostituição. Meu pai logo veio a falecer de
desgosto. Então, nunca mais rezei ou falei o nome deste aí que me
perguntou.
- Deus?
- Sim, não sou digna e, como meu pai falou, vim para a lama.
Penso que aqui é o meu lugar.
- Não se arrependeu do que fez?
- Arrepender como?
- Se tivesse que voltar atrás, agiria diferente?
-Não sei... Não sei... Que fiz de errado? Cada um não nasce
com seu destino marcado?
Estava sendo sincera, acreditava que tinha nascido para ser
uma prostituta. O que não é verdade. Ninguém reencarna para errar.
Apiedei-me.
- Venha comigo. Você irá aprender muitas coisas. Por
exemplo, que Deus é Amor, quer bem a todos seus filhos. Você é
filha Dele. Não se envergonhe em pronunciar Seu nome. Orar fará
bem a você. Não, minha irmã, a lama não é lugar para ninguém.
Vem comigo!
- Será que devo mesmo? Meu pai ficará zangado.
- Não, seu pai não ficará. Você necessita de auxílio.
Levei-a para um Posto de Socorro perto, eu mesma a limpei.
cortei seu cabelo, suas unhas, alimentei-a e a deixei dormindo. Fui
muitas vezes visitá-la. Era obediente, mas no começo, mesmo
gostando demais de ficar no Posto, queria voltar para a lama que
dizia ser seu lugar. Foi com dificuldade que pronunciou o nome de
Deus e reaprendeu a orar. Muito tem que aprender. Foi com alegria
que um dia, ao visítá-la, encontrei-a ajudando na límpeza.
Muitos fatos vemos no Umbral que nos comovem, mas nem
sempre a aparência de mártir é real. Muitos presos soltamos e em
vez de nos agradecer eles nos odiaram e disseram blasfêmias.
Quando vemos escravos, a vontade que dá é de soltá-los, mas são
escravos por afinidades com seus algozes. Soltos, mostram a

A casa do escritor 91

revolta e querem que os ajudemos a vingarem-se. Sabemos que
estes, infelizmente, são os mais necessitados, mas pouco podemos
fazer. Levar espíritos revoltados para um socorro é imprudente. Só
se pode dar auxílio aos que querem ser auxiliados. Mas, mesmo se
não podemos socorrê-los, ao conversarmos, e darmos conselhos,
lançamos uma semente e quem sabe esta semente um dia florescerá
como arrependimento e vontade de mudar.
O umbral nos leva a meditar na imensa bondade do Pai que
nos deu um local provisório para morar. Aprendi a amar o Umbral
e tudo que há nele, especialmente meus irmãos.

TRABALHANDO COM A EQUIPE
A Casa amanheceu em festa. Muito mais flores e convidados
deram-lhe um brilho todo especial. Um dos moradores ia reencarnar.
Isto mesmo! Fausto, um ativo trabalhador da Casa, ia vestir um
corpo carnal. Estava no pátio recebendo abraços, incentivos e votos
de êxito. Participei da festa, embora o conhecendo há pouco tempo.
Ele é simpático, inteligente e muito sorridente. Estava contente com
a demonstração de carinho, embora às vezes leve preocupação
brilhasse em seus olhos.
Ficou o dia todo rodeado de amigos, passei a fazer parte da
roda, escutávamo-lo com prazer.
- Meus futuros pais são filiados da Casa. Donos de uma
pequena Editora Espírita, lutam para mantê-la e ampliá-la. Terei
uma irmã e um irmão, ambos lindos e amigos. Vou reencarnar
esperançoso!
- Conseguirá vencer amigo! - disse-lhe um dos companheiros.
- Conseguirá fazer o que planeja!
- Preparei-me muito. Fiz cursos, trabalhei aproveitando todo
o meu tempo. Sinto deixar a Casa, amo-a tanto. Mas será por tempo
determinado. A ela voltarei, se Deus quiser. Vou confiando na ajuda
de tantos amigos. Continuo filiado à Casa. Espero fazer tudo que
planejei e contribuir encarnado em prol da boa Literatura.
Antônio Carlos estava conosco, afastei-me com ele alguns
passos do grupo, para perguntar:
- Ele continuará filiado à Casa?
- Sim.

A casa do escritor 93

- Se ele vier a falhar na carne, o que acontecerá? Ele
preparou-se para se dedicar à Literatura Espírita, se as dificuldades
o levarem a outras atividades, continuará filiado?
- Criança e adolescente receberá nossa atenção como filiado
que é. Na fase adulta, os cuidados serão redobrados. Terá apoio e
incentivos para fazer o que lhe cabe por escolha. Mas ele tem seu
livre-arbítrio, poderá se envolver em outras atividades, e não fazer
o que se propôs. Depois de muitas tentativas de nossa parte para
chamá-lo à realidade e ele recusar, a Casa retirará sua ajuda. Mas
ficará sempre como amigo. Porque ele os fez. Quanto à filiação, no
caso dele, que muito trabalhou pela Casa, ficará cancelada, mas
podendo voltar quando quiser.
- Isto já ocorreu? Alguma filiação foi cancelada?
- Infelizmente sim.
- Acho que é porque nem todos se preparam para reencarnar,
não é?
- Sim. Infelizmente não acontece com mais freqüência do
que deveria ser. A preparação se dá com uma pequena parte. Vemos
milhares de reencarnações ocorrerem todos os dias e uma pequena
fração somente recebe preparo. Lembro-lhe que o livre-arbítrio é
respeitado. O desencarnado também tem a sua vontade. A reencarnação
é oportunidade para todos. Quem gosta de aprender, o faz
encarnado ou desencarnado. Este preparo inclui estudos, dedicação
e nem todos estão dispostos a isto. Patrícia, mesmo espíritos com
dom literário não aceitam o ensino da Casa. Tanto que vemos
muitos escritores com talento escrevendo tantas barbaridades.
- Antônio Carlos, outro dia conversei com um visitante
desencarnado que está em outra Colônia estudando e trabalhando.
Veio aqui conhecer e inscrever-se em cursos da Casa. Disse-me que
cometeu muitos erros no campo literário. Que se via num terreno só
de plantações ruins. Plantou muitas coisas más. A colheita o
incomodou. Pensou: se me dedicar só à colheita, não terei tempo
para mais nada. Mas os ensinos que recebeu no Plano Espiritual o
incentivaram. Não precisaria necessariamente colher da plantação
ruim, pelo trabalho no Bem, ele poderia limpar seu terreno e plantar
boa semente. E evitar a colheita ruim. Que acha disto?

94 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

- Que pensa que sua tia Vera e eu fazemos? Pelo trabalho
estamos "roçando" a plantação ruim. Mas, pelo trabalho, realmente.
E, mesmo assim, ferimo-nos tantas vezes com os espinhos. Se
fizermos o trabalho todo, evitaremos a má colheita. Nos pedaços
limpos, já plantamos a boa semente que germína. A boa planta
nasce com amor e nos sustentará na luta com sua colheita bendita.
Patrícia, se todos trocassem a colheita ruim pelo trabalho no Bem,
pela transformação interior para melhor, a colheita de dores e
sofrimentos sumiria da Terra.
Voltamos nossa atenção ao Fausto que recebeu amigos o dia
todo numa demonstração de confraternização e carinho. À noite, ele
partiu, ia para o Departamento de Reencarnação, numa Colônia de
Socorro. Partiu feliz e confiante. Desejei ardentemente que tivesse
êxito nos seus propósitos.
Durante o tempo que estive na Casa do escritor vi algumas
reencarnações. Todos com muitos íncentivos e esperando realmente
que cumprissem o que planejaram.
A equipe fora chamada para assistir a uma desencarnação de
um dos seus filiados. Fui, feliz.
Nosso amigo prestes a desencarnar estava doente, hospitalizado.
Já há alguns dias um companheiro da Casa o acompanhava,
também estava com ele o companheiro desencarnado de muitos
anos de trabalho. Chegamos ao local e fomos cumprimentados
pelos amigos desencarnados. Agora éramos cinco. Nosso companheiro
que há días estava com ele nos informou:
-Nosso amigo piora. Sente a desencarnação e está tranqüilo.
Nestes dias eu o intuí para que deixasse seus assuntos em ordem.
Atendeu-me, organizou papéis, tudo que um encarnado tem que
deixar certo para facilitar a vida dos familíares.
- Tem dores? - indaguei.
- Sim, tem tido. Mas não reclama.
- Ele não poderia ficar mais tempo? - indaguei novamente.
- Faz um trabalho tão bonito e não está velho.
- Ele mesmo, antes de reencarnar, marcou o tempo de sua
desencarnação. Está indo na data certa. De fato, fez um trabalho
lindo, isto justifica nossa presença ao seu lado.

A casa do escritor 95

Não tardou a ter outra crise. Familiares encarnados e o
médico atenderam-no solícitos. Nosso trabalho de desligamento
começou tão logo seu coração parou. Ele adormeceu, nada sentiu
ou viu. Horas depois, levamo-lo para a uma Colônia de Socorro e
deixamo-lo bem instalado num quarto. Ali, a equipe da Colônia, do
Hospital, cuidaria dele. Seu companheiro iria ficar com ele e
acompanhá-lo nos primeiros passos como desencarnado.
- Quando estiver bem irá para a Casa do escritor?
- indaguei.
- Dependerá de sua vontade, mas este amigo é amante da
Literatura, creio que continuará a trabalhar com ela.
- Que bonita a desencarnação de pessoas vitoriosas em suas
tarefas! De pessoas boas! - exclamei.
Mas tivemos uma desencarnação de um filiado que não
queria a desencarnação. Estava revoltado com os familiares e com
os assuntos financeiros. Cumpriu pela metade o que se propusera.
Sua desencarnação foi mais dolorosa, porque se esforçou para não
desligar. Mas o corpo morre, o espírito tem que abandoná-lo.
Adormecemo-lo com passes, desligamos e foi levado para um Posto
de Socorro. Cabia a ele aceitar ou não o socorro oferecido.
- Se ele não aceitar? - indaguei a um dos meus companheiros
de equipe.
- Poderá voltar para o lado da família ou vagar. Mas como
fez muitos amigos, tanto encarnados como desencarnados, não
ficará desprotegido. Os amigos encarnados pedirão por ele e os
desencarnados irão até ele oferecer ajuda. Ele é uma boa pessoa,
inteligente, saberá definir o que lhe é bom.
Curiosa, indaguei ao meu companheiro.
- Flávio, muitos dos filiados são ativos em outras áreas
também. Muitos, além de se dedicarem com carinho ao livro

" N.A.E. - Guia, protetor, o desencarnado que trabalhou com ele no trabalho do
bem.

96 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

Espírita, são médiuns trabalhadores em Centros Espíritas. Outros
trabalham em áreas sociais. Quando desencarnarem, quem virá
ajudá-los?
- Como é bom fazer e ter amigos. E ter quem nos ajude neste
momento importante que é a desencarnação. Isto ocorre realmente.
Há filiados que trabalham ativos em outras áreas. Bem, quanto a
quem irá ajudá-los na desencarnação dependerá dele e do seu
companheiro desencarnado. O importante é ter perto bons amigos
na hora do desligamento. Depois ele escolherá a atividade que írá
cultivar.
Fomos chamados para auxiliar na desencarnação de uma
filiada diferente. Não era Espírita. Por muitos anos dedicou-se à boa
Literatura, a infantil, e com muito carinho. Sempre se esforçou para
passar nos seus livros a boa moral. Como teve uma religião que não
explica o que seja a morte do corpo, temia a desencarnação e isto
dificultou nosso trabalho. Por dias acalmamo-la com passes.
Desencarnou tranqüila e foi levada para uma Colônia. Certamente
iria estranhar, mas como era inteligente e boa acreditávamos que
logo estaria bem. Quanto à sua ida à Casa do escritor, se quisesse
ir, iria demorar, antes necessitaría aprender muito e adaptar-se à
nova mao.
A equipe da Casa estava sempre alerta aos pedidos de ajuda
de quem lida com livros Espíritas. Com carinho especial auxiliam
Feiras, Baneas e as Editoras.
Ia acontecer uma Feira do Livro Espírita importante. Era a
primeira que o grupo realizava. Fomos convidados a participar para
incentívar e para protegê-los, porque a equípe do Umbral da região
estava furiosa com o evento e prometia tumultuar o local. Mas tudo
deu certo. Durante a feira, uma equipe da Casa ficou o tempo todo
nas barracas e foi um sucesso. Os irmãos do Umbral bem que
observaram de longe. Foram convidados a aproximar-se para ver
melhor. Uns vieram, a maioria foi embora ou ficou olhando de
longe. Os que vieram, olharam os livros e conversaram, muitos
pediram socorro. No final, os organizadores da feira ficaram felizes
e nós também. A Feira do Livro Espirita é sempre uma distribuição


A casa do escritor

de bens, de ajudas e de instruções, que leva muitos a procurar
caminhar rumo ao progresso.
Ia também muito ao Centro Espírita que minha família
freqüenta. Que grande aprendizado é para o desencarnado trabalhar
num Centro Espírita. Com os problemas diários surgidos, a ajuda
é constante tanto a encarnados como a desencarnados necessitados.
Artur, companheiro desencarnado de trabalho de meu pai, é
meu grande amigo. Está sempre sorrindo, é muito instruído e
inteligente. Gosto de vê-lo em atividades no Centro. É para mim um
exemplo a ser seguido. É querido por todos. Há tempo observava-o
e pensava: "Será que Artur tem uma história interessante? Que
acontecimentos o teriam levado a ser tão dedicado?"
Numa tarde em que o Centro estava com pouco trabalho, e
isto acontece raramente, os trabalhadores conversavam no pátio.
Entrei no salão onde se realizavam os encontros de encarnados e
desencarnados. Entrei devagarinho e vi Artur diante de um quadro
que retrata o Mestre Jesus. Estava distraído, encantado, seu rosto
sereno irradiava harmonia e amor.
- Oi, Artur, atrapalho?
- Não, menina Patrícia. Deseja algo?
Respondeu sorrindo e olhando para mim.
- Lindo quadro! Ama muito Jesus, não é?
- Sim.
- Teria ocorrido com você um fato especial pára amá-lo
assim?
- Só por ter nos deixado estes ensinamentos maravilhosos
seria o bastante para que todos nós o amássemos. Mas você tem
razão, existe algo particular entre Jesus e mim.
- Posso saber que fato é este? - disse.
Sentei numa cadeira. convidando-o com a mão a sentar-se ao
meu lado. Ele o fez.
- Você está me saindo uma caçadora de histórias...
Rimos.
- Há muito tempo, Patrícia, fui um espírito rebelde, zombava
de tudo e de todos, só pensava em prazeres e em mim da forma mais

97 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

egoísta possível. Era terrível, encarnado, e horroroso, quando
desencarnado. Desencarnado, uma vez me uni a um grupo de
amigos afins, formamos uma legião para obsediar uma pessoa.
Tudo estava bem para nós, judiávamos do pobre encarnado numa
farra. Devo dizer que, para ser obsediado, o encarnado vibrava
igual e tudo que sofria tinha como conseqüência uma má colheita.
Tudo corria bem para nós, quando nos vimos numa enrascada.
Senti-me preso, sem poder me mover, como todos os outros
companheiros. Só ouvíamos e víamos o que acontecia. Uma força
maior, muito grande, nos prendera. Vimo-nos cercados por várias
pessoas, umas encarnadas e outras desencarnadas. Mas esta força
que nos prendia nos fazia tremer, e ao mesmo tempo nos maravilhava,
vinha de um encarnado. Este homem fenomenal colocou a mão
sobre a pessoa que obsediávamos e disse: "Tua fé o salvou!" Olhei
para este encarnado, vi uma imagem humana de rara beleza e
tranqüilidade. Nunca vira pessoa assim. "É Jesus!" - disse um dos
encarnados que o acompanhava. "É Ele, Jesus Nazareno, que curou
este homem!" Jesus me olhou com profundo amor, não me condenou,
me amou. Seu olhar meigo e bondoso me olhando é um fato não
esquecido. Fomos retirados de perto daquele obsediado por uma
equipe desencarnada e levados para um Posto de Socorro. Lá
fomos orientados para o Bem. Mas éramos livres para ficar ou não.
Se voltássemos, estávamos proibidos de nos aproximar do ex-obsediado.
A maioria ficou, eu fiquei e fiz um voto de me modificar.
Nunca esqueci que por momentos vi Jesus. Este encontro ficou forte
em mim. Depois de um preparo, reencarnei. Não foi fácil minha
luta. Tinha muitos vícios e maus costumes como uma colheita bem
amarga. Encarnei muitas, muitas vezes nestes quase dois mil anos.
Sempre procurando melhorar. A imagem do meu encontro com
Jesus vinha de modo vago, quando estava encarnado. Sempre, na
carne, gostei de olhar imagens. quadros do Mestre Nazareno, tinha
sempre uma saudade sem entender o porquê. Quando desencarnado,
lembrava do ocorrido, este fato sempre me deu forças para
melhorar e progredir. Nosso encontro me marcou muito, tanto que

A casa do escritor

memorizo e a cena com todos os detalhes me vem à memória. Posso
ainda sentir seu olhar de amor. Nestas minhas romagens pela Terra,
fui sacerdote católico, pastor protestante, sempre tentando seguir
Jesus. Tantas vezes me enganei. Mas, nas últimas encarnações,
melhorei realmente e foi na última que encontrei a Doutrina Espírita
e entendi melhor os ensinamentos do Mestre Jesus. Tento só,
Patrícia, seguir seu exemplo. Amo meu trabalho junto aos nossos
irmãos que estão nas trevas da ignorância, que temporariamente
estão entrelaçados no erro, com o mesmo Amor com que Jesus me
olhou por segundos.
Abracei-o. Não conseguimos falar mais nada. Entendi.
Todos nós temos nossa história e, quem sabe, um fato particular que
nos leva ao Amor.

XI EXCURSÕES

Fizemos muitas excursões a muitas Colônias e uma que me
encantou de modo especial, por parecer com a Casa do escritor, foi
a Colônia que se dedica à Música e à Pintura. É lindíssima,
móvel, temtambém muitos filiados por todo o Brasil. Seu trabalho
assemelha-se com o nosso. Tentam auxiliar sempre os que se
dedicam à arte musical e à pintura. É rodeada por lindíssimas
árvores e flores. Por toda a Colônia vemos quadros famosos, cópias
ou originais. Há muitos salões dedicados à música. Sua biblioteca
e salas de vídeos são sobre os assuntos com que se trabalha na
Colônia. Fomos brindados com lindas músicas num dos seus salões
e foi emocionante ter visto lindos quadros.
Em todas estas Colônias, como também nas de estudo, fala-se
muito o Esperanto. É muito agradável, o som das palavras é
suave e harmonioso. Aqui se incentiva muito a aprendizagem desta
fabulosa língua.
Partimos para ver na Terra o trabalho de encarnados com a
Literatura. Ou seja, tudo que se escreve. Assombramo-nos com o
número de revistas de fofocas e eróticas, com sua quantidade e
preços altos. Fomos visitar suas editoras. São lugares de trabalho
como outro qualquer. São sempre visitados por uma equipe da Casa
do escritor, como a nossa, com os oito alunos e Maria Adélia.
Depois de vermos tudo, fomos observar as pessoas que lá trabalham.
Pessoas normais, umas inteligentes, que ali estavam pelo
salário. Algumas estavam sendo influenciadas por espíritos bons ou

A casa do escritor 101

maus. Muitos espíritos bons ali trabalham, como ia tentar fazer
nosso companheiro José Luiz, tentam instruir as pessoas para que
escrevam artigos bons. Outros espíritos, maus, ali estavam para
guardar o território, que de fato era mais deles que nosso. Costumam
instruí-los a escrever mais fofocas e maledicências. Nenhum
deles obsedia por este motivo, só tentam instruí-los. Tudo estava
calmo. Nestas revistas que têm como objetivo assuntos banais,
nosso trabalho é dificil, às vezes, impossível. Tanto que a maioria
das visitas são apenas de reconhecimento, para aprender. Para que
pudéssemos observar mais, Maria Adélia se fez visível à equipe de
espíritos trevosos que ali estava. Eram espíritos maus, porém
instruídos. Logo um deles veio conversar com ela.
- Olá, boneca! Que quer? Deseja ficar conosco? Você é uma
beleza!
Mais três cercaram-na, todos se puseram a examiná-la,
rindo.
- Estou só observando o local - respondeu nossa instrutora.
- Que fazem aqui?
- Podemos dizer que trabalhamos aqui. Veja esta matéria, foi
inspirada por mim - disse um deles com orgulho, mostrando uma
reportagem. Era uma matéria muito erótica. Maria Adélia deu uma
olhada.
- Mas consta só o nome do encarnado na reportagem - disse
ela.
- Isto que incomoda! Mas não faz mal. O prazer é o mesmo.
- Tem chefe? Obedecem alguém? - indagou Maria Adélia.
- Você é intrometida! Pergunta demais. Temos, sim, uma
organização. Se você quiser fazer parte, podemos dar umjeito, uma
ajuda a você. Sabe escrever? Digo, fazer reportagens? Você tem
cara de inteligente. Só que está muito mal vestida. Parece beata
- Sei escrever sim. O trabalho é dificil
- Aqui é bem fácil. A parte dificil é quando somos mandados
a atrapalhar pessoas que fazem outro tipo de escrita. A Literatura
Espírita, por exemplo.

102 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

- Vejo tão pouco. Coisas que dizem ser boas no mercado, por
que se preocupam com isto?
Quem respondia era um deles, o mais orgulhoso e arrogante.
- Vejo que a menina entende disto. É verdade, mas há os
teimosos que escrevem tentando ensinar a boa moral.
- Venha cá, me dá um abraço - disse um outro tentando
agarrar Maria Adélia.
Minha mestra se fez invisível a eles.
- Sumiu a garota! Que pena! - disse o que ia abraçá-la.
- Ou ela não gostou de você, ou deve ser uma abelhuda do
Cordeiro. Não sei o que veio fazer aqui - resmungou um outro.
Assim, de forma parecida, fomos a muitas editoras, encontramos
sempre um espírito bom que lá trabalha. Se eles acham
difícil atrapalhar os bons, nós achamos dificil ajudar estes encarnados.
Alguns até querem mudar, mas os objetivos destes escritos são
outros, é o que dá vendagem, infelizmente. E vivem do comércio.
- Estas pessoas estão comprometendo-se com este trabalho?
- indagou Osvaldo a Maria Adélia.
- Tudo que fazemos destruindo nos cabe a reconstrução.
Mas depende de cada caso. Algumas pessoas aqui estão pelo
salário, outros gostam do que fazem. Aquele que grafa seus
pensamentos em escritos ruins que venham prejudicar a outros é
responsável por eles. Mas a maioria são escritos de péssimo gosto
somente, não faz mal nem bem. Lembro a vocês que esta Literatura
existe porque tem quem a consome. Fazem e vendem.
Vimos uma pessoa, um escritor, escrevendo fatos ruins. Ele
estava obsedíado por uma entidade horrível. Vimos que esta
entidade o influenciava de forma bem acentuada, fazendo-o escrever
besteiras, melhor dizendo, de forma ruim. Novamente Maria
Adélia fez-se visível ao obsessor para conversar, para que pudéssemos
entender alguns fatos.
- Oi - disse Maria Adélia.
- Olá.
- Você está trabalhando com ele?
- Estou, que você tem com isto?

A casa do escritor 103

- Nada. Só que acho que ele escreve tão mal!
Diante desta observação, ele sorriu satisfeito. Ficou mais
amável.
- Você acha? Que bom!
- Pensei que ia zangar-se, vejo-os trabalhando juntos.
- É para isto que estou aqui. Para fazer ele trabalhar mal,
escrever besteira que ninguém editará.
- Vinga-se, por acaso?
- Sim. Quem é você? Pergunta demais.
- Sou só uma pessoa que gosta de ler. Estava passando e li
a bobeira que ele escreveu. Só isto. Adoro histórias. Fiquei curiosa.
Como pode você um cara tão inteligente, vê-se logo que é um
intelectual, ficar perto deste boboca.
Riu contente e respondeu.
- Você tem razão. Sou ínteligente e instruído. Escrevo muito
bem. Quero que ele se afunde. Merece!
- Não quer me dizer o que houve? Você fala tão bem!
Maria Adélia, lendo os pensamentos dele, viu que ele era
vaidoso, incentívou-o para que falasse, para que pudéssemos ouvi-lo
e para tentar ajudá-lo.
- Está bem. Vou falar só porque você soube reconhecer que
sou inteligente. Sou filho único, minha mãe viúva deu um duro
danado para que fosse estudar. Meu sonho era serjornalista ou um
escritor famoso. Tinha um amigo com os mesmos desejos. Um dia,
apareceu uma oportunidade, um jornal fez um concurso e o
vencedor iría ter um emprego dejornalísta. Entusiasmado, fiz uma
matéria genial. Este cara também. No dia de entregar, minha mãe
ficou doente e pedi a ele para entregar a minha matéria. Confiei.
Mamãe melhorou e esperamos aflitos o resultado. Ele ganhou.
Alegrei-me por ele. Mas, ao ver a matéria que ele apresentou,
estremeci. Era a que eu havia escrito. Só com algumas pequenas
modificações. Fui até o jornal e constatei que minha matéria, a do
meu nome, não foi entregue. Ele me enganou. Pegou a minha
matéria e entregou como se fosse dele. Odiei-o. Fui atrás dele tirar
satisfações. Fui recebido com ironias. Disse-me que foram suas

104 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

modificações que o fizeram ganhar o concurso. Riu de mim por
confiar nele. Não tinha como provar sua culpa. Louco de raiva,
avancei sobre ele e brigamos de murros e socos. Fomos separados,
ele foi embora rindo. Entrei num bar e bebi. Não estava acostumado
a beber e embriaguei-me fácíl, saí para a rua, fui atropelado e
desencarnei. Minha mãe sofreu muito e eu vaguei sem rumo por
anos, culpei-o por todos os sofrimentos. Minha mãe desencarnou,
mas os bons a levaram, não pude nem falar com ela. Um dia soube
que no Umbral havia uma escola para aprender a vingar-se. Fui até
lá, contei minha história e fui aceito. Aprendi fácil. Agora vingo-me
deste safado. Ele não terá mais glória, faço-o escrever só porcaria.
Alegro-me com seu desespero ao ver rejeitados seus trabalhos.
Então, garota, vê como tenho razões?
- Você não sofre aqui? Não gosta dele e fica perto dia e noite.
Não é melhor ir para um bom lugar, talvez junto de sua mãezinha?
- disse Maria Adélia risonha e gentil,
- Qual é "meu"? Por não gostar dele que estou aqui, para
vingar. Quanto à minha mãe, ela que venha para perto de mim.
- Por que você não analisa os acontecimentos de outra
forma? Pela lei das reencarnações, você teria que desencarnar
jovem. Por má colheita, teria que sofrer uma traição.
- Você começa a me enfurecer. Sei bem que já vivi outras
existências, meus erros do passado pouco me importam e acho que
não têm nada a ver com o que faço. O que importa para mim é o que
faço no momento. Vingo-me dele porque ele merece. Pensa que ele
é bom? Nada faz de bom e só pensa nele. Por que você está me
falando isto? Veio aqui defendê-lo? É melhor sair daqui. Fora! Saia
depressa!
Falou aos gritos, ameaçando-a com a mão. Maria Adélia
saiu, saímos. Nossa ínstrutora explicou.
- Como vê, fazemos mal a nós mesmos quando prejudicamos
alguém. Este obsessor foi ao Umbral, em lugares denominados
escolas, aprender a vampirizar e a obsediar. Muitos são os núcleos
de ódío.

A casa do escritor 105

- Será que a mãe dele não vela por ele? - indagou Carlos
Alberto.
- Acredito que sim. Mas, enquanto ele estiver tão endurecido,
ela não pode ajudá-lo. Nós não viemos aqui para socorrê-lo.
Viemos ver como se processa uma obsessão com um literato. Este
fato que vimos é uma minoria e também um acontecimento de
vingança particular. Muitas obsessões neste ramo são para escrever
exaltando erros. Aqui, ninguém pediu ajuda, não nos cabe intrometer.
O encarnado é frio, calculista e egoísta.
- Leva-nos a crer que esta obsessão não é de todo ruim para
ele - disse Adelaide.
- Obsessão não é bom a ninguém. O obsessor perde tempo
e o mal que faz a ele mesmo se reverte. O obsediado pode odiar cada
vez mais. O encarnado com estes defeitos vibra como o desencarnado,
por isso torna-se alvo mais fácil à obsessão. Ele, não
conseguindo escrever mais nada de bom, no sentido literário, terá
um castigo ao seu orgulho. Vamos desejar que ele aprenda a lição.
- Se ele fosse uma pessoa religiosa, que orasse e fosse bom,
o desencarnado poderia obsediá-lo? - indagou Carlos Alberto.
- Ele errou com o desencarnado. Traiu o amigo, roubando-lhe
a matéria. Mas para todos os erros há perdão, quando o errado
pede com sinceridade. Ele tem que sentir que, se voltasse o tempo,
ele não faria o que fez novamente. Só pedir perdão é fácil demais.
Há ainda a necessidade de reparar. Neste caso, ele, o encarnado,
arrependido, pediria perdão ao ex-amigo. Mas, respondendo a sua
pergunta. Se ele tivesse se tornado bom, orasse com fé e sinceridade,
dificultaria esta perseguição. Se orasse com fé e sinceridade,
orações de coração, ficaria bem dificil obsediá-lo. Neste caso, já
teria sido socorrido por alguma equipe de socorro.
Fomos ver algumas pessoas que escrevem inspiradas por
espíritos trevosos. O encarnado imprudente quase sempre está à
procura de glória e fama, e estes desencarnados querem propagar
seus objetivos que são levar a Terra mais ainda ao caos, e mais
pessoas à perdição. Mas quero deixar claro que a culpa é de ambos.
Todos temos nosso livre-arbítrio que é respeitado. Estes desencarnados
quase sempre cuidam do encarnado, fazendo-lhes favores e

106 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

desfrutandojuntos de prazeres. Digo prazeres, porque das dores o
desencarnado não quer nem saber, o encarnado que se vire.
Não há um núcleo no Umbral que cuida especialmente da
Literatura, emtodas as cidades Umbralinas há bibliotecas, algumas
bem organizadas. Revistas e livros obscenos são manchetes lá.
Fomos a uma cidade do Umbral, numa festa, promovida para
homenagear um escritor encarnado. Disfarçamo-nos e lá fomos
os dez, nós, os oito alunos, e os dois instrutores. O salão da festa
estava enfeitado com bandeirinhas e por toda parede havia quadros
obscenos. Tudo muito colorido. O encarnado homenageado, que
fora desligado enquanto seu corpo dormia, ora parecia um tanto
alheio, ora mais consciente.
- Estes livros que vemos aqui são cópias dos seus livros e
artigos que são editados na matéria. São cópias plasmadas
- explicou Aureliano.
Uma música alta se ouvia, músicas quase todas eróticas,
algumas conhecidas dos encarnados, outras não. Não fomos percebidos
no meio dá multidão, e pudemos observar tudo. Muitos
encarnados estavam presentes como convidados. Conversavam e
gargalhavam muito. Depois de termos andado por lá e visto tudo
que desejávamos para nosso conhecimento, fomos embora.
- Este encarnado sabe que está sendo usado? - indagou
Henrique.
- Acredito que não. é muito orgulhoso e vaidoso para
desconfiar. Deixo bem claro que nem todos os escritores escrevem
inspirados, sejam obras boas ou ruins. Muitos têm talento e fazem
sozinhos. Os que são inspirados têm que ter também dom para
escrever, se não fosse assim, o desencarnado não conseguiria fazer
o trabalho sozinho.
- Quanto a este escritor que vimos no Umbral, que acontecerá
com ele quando desencarnar? - indagou Maria da Penha.

"N.A.E.- O desencarnado que ajudava a escrever estava perto do escritor todo
orgulhoso, dando também autógrafos.

A casa do escritor 107

- Isto dependerá de como estiver sua vibração no momento.
Se desencarnasse agora, iria para o Umbral, pois está vibrando com
ele. Mas estamos sempre mudando e esperamos que ele mude para
melhor. É uma pessoa de talento. Já estivemos incentivando-o a
escrever boas obras. No momento, prefere continuar escrevendo o
que vimos.
Aureliano fez uma pausa e completou emocionado:
- Vigiai e orai, disse-nos sabiamente Jesus, prudentes são
aqueles que assim procedem.

XII FATOS INTERESSANTES

Aprendi muito tomando parte nas conversas pelos pátios.
Eram conversações sadias e cheias de conhecimentos. Grupos
afins, estudiosos e amantes da boa Literatura. Quase todos ali
estavam por amar os livros, mas havia algumas exceções. Nzo que
estas etceções não amassem a literatura. mas ali estavam também
por outra finalidade ou por motivos diferentes da maioria.
- Patrícia - disse Marcelo - sou uma destas exceções.
Gostava e gosto muito de ler. Tentei aprender a escrever, mas não
deu, estou desistindo.
- Por quê? - indaguei.
- Queria aprender por amor. Não por amor à Literatura, mas
a uma pessoa. Amo muito uma mulher. estamos juntos ha muitas
encarnações. Faz cinco anos que desanelrllci e ela ainda está
encarnada, fomos casados por trinta e dois anos. Vivenmos felizes e
unidos. Tenho saudades dela aqui e ela lá de mim. Quando ela
desencarnar estaremos juntos, demorará ainda alguns anos, enquanto
a espero. tento estudar e ser útil. Vim aqui estudar. porque
ela gosta muito de poesias e reclamava por não conseguir escrever
nenhuma a ela. Pensando em agradá-la, quis vir aprender aqui. para
Clle, qllalldo estivesse llOS ClealrilldOS, CLI pudeSSE flr belas
poesias. Mas vi logo que este estudo não é para banalidades
romántícas. Não devo ocupar lugar de outro e nen o meu. tenlpo.
-- Marcelo, como sabe que estarão juntos você e c, na
próxima encarnação?

A casa do escritor 109

- Não temos porque nos separar. Não erramos, não temos
carma negativo a quitar. Temos um pelo outro um amor sincero,
somos companheiros de progresso. Depois, somos realmente almas
gêmeas.
Conversamos mais um pouco e ele se despediu.
- Até breve, amiga! Desejo-lhe êxito nos seus planos. Devo
partir logo.
Marcelo saiu, fiquei pensando no que me disse e querendo
saber de mais detalhes. Foi uma felicidade encontrar o diretor e, após
os cumprimentos, demonstrei vontade de fazer algumas perguntas.
- Patrícia, pergunte o que quiser, responderei como puder
- disse rindo.
- Conversava com Marcelo, que se despediu. Abandona o
curso? - indaguei, sorrindo, e contente por achar alguém para me
esclarecer.
- Abandonar não é o termo certo. Não irá concluí-lo por não
ter vocação, dom para escrever, ou mesmo interesse sincero.
- A Casa do escritor não sabia deste detalhe ao inscrevê-lo?
- Sim, sabíamos. Tanto que o colocamos como excedente no
seu curso. Aceitamos porque estava entusiasmado dizendo querer
muito. Costumamos aceitar casos assim, como este de Marcelo.
Alguns, ao nos procurar, dizem desejar concluí-lo e que estão
realizando seus sonhos. Sabendo-se da possibilidade de não concluirem
o curso, colocamo-los como candidatos a mais na sala de
aula, para não ocuparem o lugar de outro. Mas, no decorrer do
curso, alguns podem concluir com êxito e outros, logo que o curso
começa, vêem por si mesmos que estão deslocados, que não são
capazes de cursá-lo e pedem para sair. Patrícia, se não aceitarmos
suas inserições, podemos estar recusando a um destes que acabam
por concluí-lo e que podem vir a ser ótimos escritores e trabalhadores
da Casa. Como também podemos estar impedindo alguém de
estudar e ser útil neste campo. Marcelo queria aprender para fins
particulares, como agradar o espírito que ama. Este nosso estudo,
que envolve trabalhos de tantos, só pode dar certo para fins úteis a
muitas pessoas.

110 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

- Ele me disse que na próxima encarnação encontrará e
ficarájunto com a sua amada. Isto é mesmo possível?
- Sím, os dois estão unidos e caminhando para o progresso.
São dois espíritos abnegados que cuidaram com amor por muitos
anos de um asilo de idosos, com muita honestidade, caridade e
paciência. Não tem por que, se é da vontade deles, separá-los.
Certamente quando forem reencarnar combinarão para se encontrarem
e ficarjuntos.
- Existem muitos casos como o dele? De pessoas que
combinam ficar juntas?
- Existem, sim, mas não são a maioria. Nem todas as pessoas
estão juntas por afinidades de sentimentos sinceros. Tenho visto
muitos casais que encarnados são exemplos de carinho e de ajuda
mútua. São casais como Marcelo e sua amada. Não precisam ser
exatamente bondosos como eles foram. Se não for por aprendizado
ter de separá-los, ficam juntos como é da vontade deles.
- Ele me disse que são almas gêmeas.
- Patrícia, almas gêmeas é uma expressão, um modo romântíco
para designar pessoas afins. Mesmo irmãos gêmeos na
carne podem ser bem diferentes, costumamos dizer que espíritos
afins são aqueles que combinam, têm os mesmos gostos e ideais e
que às vezes estão juntos há muitas encarnações. Tanto podem ser
bons ou maus. Devemos amar cada vez mais a todos, tentando nos
educar moralmente, progredir e ajudar o maior número de pessoas
a progredir também para o Bem. Amar todos como i rmãos é evoluir.
E não se deve ter este amor a número limitado de pessoas.
- O que você me diz do que estão fazendo algumas pessoas
casadas encarnadas que se separam, dizendo que encontraram sua
cara-metade e querem ficar juntos?
- Na carne, deveriam levar a instituição do matrimônio mais
a sério, não casar sem pensar e nem separar sem pensar duas vezes.
Principalmente tendo filhos. Os casais deveriam se conhecer
melhor, casar conscíentes do que seja viverjunto. Uma vez casados,
tudo deve ser feito para que a união dure. A desculpa dada de ter
encontrado sua outra metade não é válida. Mesmo que tenha

A casa do escritor 111

acontecido este fato, não se deve construir nossa felicidade sobre a
infelicidade de outras pessoas, principalmente de filhos, que são
sempre os que mais sofrem com os erros dos pais.
Agradeci a este meu simpático amigo, diretor da casa, estava
sempre a indagar e ele sempre gentilmente me atendendo.
Numa tarde, estudava no pátio embaixo de uma árvore
frondosa, cheia de flores perfumadas e brancas.
- Bom dia! - cumprimentou-me um senhor em Esperanto.
- Posso me sentar aqui?
- Bom dia! Fique à vontade.
- Tenho que ler este livro e resumi-lo.
Sorri ao meu companheiro dando-lhe as boas-vindas, respondi
também em Esperanto, gostamos de conversar neste idioma.
O livro que trazia consigo era Renúncia, de Emmanuel, psicografado
por Francisco Cândido Xavier. Leu algumas páginas em
silêncio, depois voltou a conversar comigo.
- Chamo-me Norberto. E você?
- Patrícia.
Conversamos sobre cursos, falei o que fazia e por quê.
- Eu - disse ele - preparo-me para escrever aos encarnados.
Logo que o curso termine e iniciar outro, irei cursá-lo. Por enquanto,
estou lendo a Literatura Brasileira, principalmente a Espírita e
aprendo a Língua Portuguesa. Venho de um país da Europa. Vivi
lá na última encarnação, onde fui escritor. Escrevi sob a orientação
de um espírito muito querido. Ele desencarnado me intuía a
escrever. Agora, eu estou desencarnado e ele encarnado no Brasil,
por isso vim estudar aqui.
- Gosta daqui? - indaguei.
- Sim, muito. O Brasil é muito bonito. Mas o que mais
encanta é a Literatura Espírita, ela é farta e rica. Não só quero intuir
meu amigo como também trabalhar junto ao meu país de origem,
motivando-os a traduzirem obras Espíritas para instruir meu povo.
- Você disse meu país, meu povo. Você ainda separa. Não
sente a Terra por moradia?

112 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

- Estou chegando lá, riu. Foi uma forma de dizer. Corrijo-me:
quero levar a Literatura Espírita para todos os outros países da
Terra. Como este livro que estou lendo. Para melhor aprender a
Língua Portuguesa, estou fazendo trabalhos assim, leio livros e
resumo em Português. Aprendo duas vezes, porque as lições que
estes livros nos dão são encantadoras.
- Que tal falarmos em Português? - disse-lhe. - Leia e o
corrigirei.
Assim fizemos, ele leu e eu ia ensinando-lhe a pronúncia. A
Língua Portuguesa é de fato muito dificil. Mas nosso amigo estava
com vontade e aprendeu.
Uma vez ao sair do teatro encontrei Laura, já á a conhecia, mas
foi a primeira vez que trocamos confidências.
- Sabe, Patrícia, matriculei-me no curso que prepara para
ditar aos encarnados. Enquanto espero, estou tendo aulas de
Português e Literatura. Gosto muito desta Colônia, amo-a mesmo.
Mas encontro dificuldades, não gosto de ler nem de escrever.
- Por que quer fazer este curso, então? - indaguei curiosa.
Laura é moça, desencarnou aos vinte e cinco anos, é muito
bonita. É morena clara, cabelos negros longos, olhos azuis sombreados
por longos cílios.
- Quando encarnada namorei um escritor, vivemos juntos
alguns anos. Fui a musa inspiradora dele. Ele só escreveu e escreve
bobeira. Quero aprender a tentar intuí-lo.
- É melhor fazer o que gosta, Laura; só quando amamos
fazemos bem feito.
Despedimo-nos. Dois meses depois, ela me procurou para
despedir-se.
- Vou embora, Patrícia. Não consigo render nos meus
estudos. Gosto mesmo é de lidar com crianças. Volto muito feliz
para minha tarefa de cuidar dos nenês no Educandário da Colônia
Amor Divino, de onde vim.
- Irá deixar seu escritor?
- Bem, a equipe da Casa irá visitá-lo e oferecer ajuda, se ele
aceitar. Um espírito competente e com talento irá fazer o que eu

A casa do escritor 113

almejava. Se ele não quiser, pelo menos se tentou. Acho que eu não
conseguiria ajudá-lo.
- Boa sorte, Laura!
- Obrigada!
Uma tarde estava no pátio da frente e vi o diretor conversando
com um senhor. Meu amigo me chamou e me apresentou.
- Este é José e esteve conosco uns meses, agora volta à sua
Colônia de origem.
Após os cumprimentos, o diretor convidou José a falar de seu
problema.
- Desencarnei por um acidente. Tinha alguns conhecimentos
Espíritas, mas não o suficiente para me ter libertado do fascínio
material. Mas, tudo bem, não posso me queixar, logo estava bem.
Fui estudar e trabalhar. Desejando ditar aos encarnados, vim para
tentar fazer o curso, mas desisto.
- E por quê? - indaguei.
- Não gosto nem de ler nem de escrever. Desisto por achar
tudo muito dificil.
- Por que desejou fazê-lo? - perguntei novamente.
- Minha esposa é médium psicógrafa, embora não se interesse
em trabalhar com seu dom. Queria estudar para tentar fazer
com que ela trabalhasse com sua mediunidade e fosse útil. Fico
pensando o que será dela quando desencarnar e vier com o seu
talento enterrado. Não produziu, não multiplicou. Mas, como o
diretor me dizia, todos temos o livre-arbítrio.
- Mas ela não tem um orientador desencarnado? - indaguei
curiosa.
- Já teve. Um espírito bondoso e instruído tentou por muitas
vezes ajudá-la no seu trabalho, mas ela desiste sempre arrumando
desculpas. Como este espírito é laborioso, afastou-se e foi trabalhar
com outra pessoa. Mas, se ela quiser voltar ao trabalho, poderá
atrair um outro espírito capaz e instruído para ajudá-la. Isto
também vai depender de sua intenção, porque nem estudar nem ler
ela quer.
José se despediu e se afastou. O diretor me disse ainda:

114 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

- Nenhum dos dois têm vontade firme. Tanto que se ele
quisesse e se esforçasse conseguiria estudar. Ler é um hábito
adquirido. Aprenderia a escrever o suficiente, se quisesse, para
treiná-la. Quanto à esposa, é pena deixar de fazer.
Outra que conheci quando se despedia foi Florinda. É moça
ainda. Este moça ou idosa a que me refiro é o aspecto, quase sempre
é como desencarnou. É bonita e simples. Depois das apresentações,
me disse:
- Não quero escrever, não tenho dom, não sei. Também não
gosto de estudar. Queria só fazer parte da equipe da Casa.
- Por que seu desejo de trabalhar na equipe? - indaguei.
- Acho lindo os livros, admiro quem gosta de ler. Queria
incentivar as pessoas a lerem bons livros. Só assim poderia salvar
muitas pessoas com a boa leitura. Mas não deu certo. Os professores
são gentis, mas não me interesso. Acho que vou estudar na
Colônia de Socorro e trabalhar com equipes de socorro.
Desejando votos carinhosos de êsito, despedimo-nos.
Mas indaguei o professor Aureliano que estava a par de seus
problemas.
- Por que, Aureliano, Florinda não pôde ficar conosco?
- Para fazer parte da equipe da Casa do escritor é preciso ter
preparo e conhecimentos. Infelizmente nosso trabalho é com intelectuais.
Como ajudar sem o ser? Como incentivar a boa leitura, se
não lê?
Pensei muito neste fato. Só damos o que temos, só ensinamos
o que sabemos, só podemos incentivar outros a fazer, se fazemos.
Mas, num ponto, Florinda tem razão, a boa leitura ajuda muitos, ah,
como ajuda!
No final de uma palestra, Ana declamou uma linda poesia de
sua autoria. Encantou a todos. Quando terminou a reunião, ficamos
conversando e Ana estava presente. Ela já estudou em nossa
Colônia, atualmente faz parte do grupo de organizadores da casa.
Encarnada, foi uma excelente poetisa. Escreveu com muito talento
obras belíssimas.
- Ana - indagou uma companheira -, você teve dificuldades
para escrever quando encarnada?

A casa do Escrítor 115

- Para escrever, não. Sempre amei a poesia. Mas para editar,
sim. Anos atrás o preconceito contra a mulher era grande. Usei até
um pseudônimo. Mas valeu lutar pelo que amo.
- Que você faz atualmente? - indagou outro companheiro.
- Estudo poesias e as escrevo. Trabalho junto com a equipe
da Casa. Logo, no ano vindouro, também lecionarei em cursos aqui.
- Você irá reencarnar logo? - perguntou um senhor.
- Certamente, daqui a alguns anos voltarei à carne e pretendo
ser escritora e poetisa. Espero exaltar as belezas do Criador nos
meus escritos.
Um companheiro me disse baixinho:
- Ana é muito culta e instruída. Fez os cursos da Casa todos
de uma só vez, mas só para tê-los concluídos, porque sabia tudo que
os cursos oferecem. Será uma sábia instrutora.
Na Casa do escritor só vemos adultos, uns mais jovens
outros mais idosos. Raramente vemos crianças freqüentando cursos
da Casa. Estas, sim, enfeitam a Casa, quando vêm em excursões
que são verdadeiro aprendizado.
A primeira vez que vi uma criança ali estranhei. O diretor me
apresentou.
- Esta é Rosângela, nossa companheira de aprendizado.
Nosso diretor afastou-se e ficamos conversando.
- Patrícia, desencarnei há um bom tempo. Estava com oito
anos de idade. Fui levada para um Educandário. Amo lidar com
crianças, sentir-me criança. Logo estava ótima. Por estudos de
outras existências, tenho uma inteligência desenvolvida. Encarnada,
era excepcional de QI elevado. Nesta época em que me achava
recolhida no Educandário, um grupo de três garotos estava com
problemas de adaptação. Comecei a conversar com eles e os ajudei.
E meu trabalho por anos ficou sendo este. Muitas vezes, uma
criança ajuda mais outra criança que um adulto. Estudei, trabalhei
e não mudei meu perispírito. Porque, se quisesse, poderia crescer,
tornar-me jovem ou adulta. Prefiro ficar assim. Sempre gostei de
escrever, interessei-me em aprender e aqui estou pronta a começar
logo a estudar. Pretendo escrever histórias para crianças. Histórias

116 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

com enredo interessante que distraia e eduque. E nada como uma
criança escrever para outra criança. Assim, sinto que às vezes sou
adulta e, às vezes, criança. É com esta minha parte infantil que
quero escrever a muitas crianças.
- Pretende escrever desencarnada ou encarnada?
- Quero fazer os dois. Quero, se possível, ditar pela psicografia.
Depois reencarnar e ser uma escritora.
- Você se sente bem? É feliz?
- Muito! Sou realmente muito feliz!
Aqui nosso livre-arbítrio é respeitado. Rosângela tem realmente
muito talento.
Osvaldo, nosso companheiro de curso, narrando sua história
à classe, disse que veio para a Casa por amor a sua noiva.
- Estava noivo com casamento marcado, quando desencarnei
por um acidente. Era católico, mas a família de minha noiva era
Espírita. E foram eles que me ajudaram. Fui socorrido e aceitei a
desencarnação, logo estava bem. Minha ex-noiva tinha um parente
que psicografava. Fui evocado, gostei demais de escrever. Assim,
sempre estava dando notícias a minha noiva e minha família, que
após virou Espírita. Fui convidado a estudar para aprender como é
a vida no Mundo Espiritual. E o tempo passou e eu a escrever. Para
melhor escrever e impressionar minha amada me inscrevi no curso
e concluo. Só que muita coisa mudou. Passei a amar a Literatura e
a querer dedicar-me a ela com carinho. Atualmente, mensagens
particulares escrevo só para a família e isto raramente. Minha
ex-noiva casou-se e está muito bem. Aprendo aqui e o médium lá,
treinamos e quem sabe editaremos mais tarde. Como vê, vim à Casa
por um fato particular e aqui aprendi a pensar em fazer o bem a mais
pessoas com a facilidade que tenho para exprimir.
- Você, quando reencarnar, vai querer se dedicar à
Literatura?
- Isto são planos para um futuro mais remoto. Quero, sim,
ser um escritor encarnado. Afinal, trabalhar com a Literatura é tão
agradável e ser útil através dela é prazeroso!

XIII
MEU PAI

Nos últimos seis meses de curso, comecei a escrever os
rascunhos que iria logo mais ditar a minha tia Vera e que mais tarde
iam transformar-se em lívros. Sentí em certas partes algumas
dificuldades e dúvidas. Como sempre, nestas ocasiões, quando
encarnada, buscava ajuda de amigos, mas de forma especial ia até
meu pai para receber suas opiniões sábias e ensinamentos profundos
e valiosos.
Um dia conversando sobre este assunto com Antônio Carlos,
este disse:
- Patrícia, muitos se enganam ao achar que só os desencarnados
podem orientar e ensinar. Saber é do espírito ativo que
trabalha e estuda. Que pode tanto estar encarnado como desencarnado.
Aquele que sabe é porque aprendeu. E para aprender não
poupou esforços. Para que há tantos cursos que preparam para a
reencarnação? É verdade que o encarnado não se lembra de tudo que
aprendeu, mas fica em sua memória mais do que imagina. Logo, nas
primeiras leituras e estudos, a recordação vem como aprendizado
rápido e fácil. Depois, exístem tantos cursos para encarnados e
tantos livros fantásticos que só não aprendem os que não querem.
Assim, encontramos muitos encarnados com tantos conhecimentos
que superam os de muitos desencarnados, até, às vezes, os que
trabalham com ele.
Antônio Carlos tem razão, meu pai é um estudioso há muitas
encarnações. Tem muitos conhecimentos e é a ele que recorro quase
sempre para resolver uma questão mais dificil.

118 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patricia

José Carlos Braghini, meu pai nesta existência, é umapessoa ,
que respeito e amo. Não é médium. Mas nem por isso torna
impossível nosso intercâmbio. Todos nós temos nossa sensibilidade
que pode ser apurada com o exercício da mente, estudos e até mesmo
trabalhos que envolvem a mediunidade.
Meu pai medita muito. Nestas meditações, em que quase
sempre está com a mente voltada a um dos ensinamentos do Mestre
Jesus, sempre que posso fico perto. E seus pensamentos vêm até
mím. Escuto elevada suas conclusões, tal como fazia quando
encarnada.
- Pai, papai, como o senhor escreveria sobre este assunto?
Digo-lhe de mente a mente. Raramente não pode me atender.
Nem ele mesmo sabendo o porquê muda seus pensamentos e começa
a pensar no assunto sugerido. Eu, rapidinho, tomo notas. Quantas
sugestões precíosas!
Este fato é bem possível. Não pensem os encarnados que só
os que têm mediunidade podem se comunicar com seus entes
queridos desencarnados. O amor é um laço forte. Põe forte nisto. Às
vezes é atado com nó. Mas este pode prejudícar os que amamos. O
amor que une tem que ter o entendimento, tem que ser sem egoísmo.
Temos que desejar sempre aos que amamos felicídades e que eles
estejam bem, melhores que nós. Senão, pode acontecer de o nó ser
tão forte que torna prisioneiros os que amamos. Como fazem muitos
encarnados aos seus ternos desencarnados. Em vez de ajudá-los a
enfrentar a nova existência, choram, reclamam, desesperam-se,
chamando-os para perto de si, fazendo mal aos que amam.
Nós, os desencarnados, sentimos muito os pensamentos dos
que nos amam. Muito se fala na obsessão de desencarnados a
encarnados, mas temos que falar também que muitas vezes é o
encarnado que não deixa o desencarnado seguir seu caminho.
Ata-o com nó e não quer abrir mão de sua presença, embora nem
sinta direito esta presença pelo estado que difere o encarnado do
desencarnado.
Como é bom quando nossos entes queridos entendem e nos
ajudam. Como é triste sofrer com o sofrimento deles. Presenciei

A casa do escritor 119

muitos companheiros desencarnados desesperarem-se com a agonia
dos seus entes queridos encarnados. Chegando às vezes a se
perturbarem com os chamamentos dos encarnados. Como é bom ter
conhecimentos Espíritas! Como é confortador desencarnar com
estes conhecimentos!
Nós, os desencarnados, podemos nos comunicar com os que
amamos, sejam estes médiuns ou não. Se for médium é mais fácil.
Se não, pode ser pelo desligamento durante o sono, ou pelas
conversas através do pensamento. Infelizmente, quase sempre o
encarnado não percebe. Mas, se aprendem a sentir pelo Amor,
confiando, sentem nossa presença sim. Mas, para que este intercâmbio
seja bom, tem que ser uma conversa edificante e agradável.
O desencarnado precisa estar bem, consciente do seu estado de
desencarnado. E o encarnado, consciente do que seja a desencarnação,
compreender para ajudar sempre. Se uma das partes estiver
perturbada, seja pela dor, desespero, inconformação, não é bom
para nenhuma delas. Pode ser até prejudicial ao desencarnado,
principalmente se o encarnado estiver revoltado. Se ambos estão
bem, é maravilhoso.
Assim, sempre estou com meus entes queridos, com a
mamãe, meus irmãos, amigos e com meu pai.
Fui ensinada a ver meu pai como ele é, não como queríamos
que fosse. A nossa mente só se interessa pelo que toca, pela sensação
e prazer dos sentidos. Por esta razão, não chegamos a compreender
e a viver os ditos do magistral Nazareno ou de outros grandes
homens que passaram pela Terra. Tudo que se repete se torna para
nós enfadonho e sem motivação. Neste sentido, a atuação é a
sustentação da vida. A Onipresença de Deus é algo sutil e não
relacionado aos sentidos. Por isto nos passa despercebida, perdemos
assim a oportunidade de participar com Deus do seu concerto
universal.
Como é comum na vivência da carne, em muitas ocasiões,
éramos envolvidos por vibrações negativas, e, como é natural,
sentíamos. Mas sabíamos que, com uma simples mentalização de
meu pai, aquelas vibrações poderiam ser dissolvidas. Mas também,

120 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

de antemão, sabíamos da sua resposta: "Já os ensinei, façam vocês,
não quero que continuem a ser mendigos espirituais. Façam por si
mesmos." Aparentemente nos deixava sozinhos, mas, na sua aparente
ausência de socorro, não deixava de estar vigilante e em pouco
tempo estávamos livres da atuação negatíva.
Assim é sempre meu pai, bondoso e sábio, tentando sempre
educar todos que o rodeiam. Muitos espíritos do astral inferior o
chamam de Feiticeiro pelo seu passado em outras existências e
depreciando-o por ser um estudioso das verdades eternas.
Meu pai não é espírito de pedir por qualquer coisa. Ensinou-nos
que precisamos agir sempre com perseverança e convicção por
aquilo que queremos. Atuar sempre com total ausência de ódio ou
revolta, mesmo quando estamos sendo acuados. Que precisamos
transformar e não destruir.
Um dia, quando estava ao seu lado, ele perguntou:
- Patrícia, minha filha, gosta da Casa do escritor? Lá é
lindo?
- Já vi Colônias mais bonitas.
Respondí, pensando que realmente já vira Colônias muito
mais encantadoras. Meu pai me respondeu:
- Quando no mundo fisico, a maioría de nós não tem
condições de avaliar o quanto está condicionada a resultados. A
beleza, por exemplo. Quando é que achamos algo belo? Quando este
algo está ligado ao extraordinário e nos leva a sentir que o possuindo
passamos a ser mais importantes ou poderosos. Quando você
visitou a Colônia Triângulo, Rosa e Cruz, sentiu uma emoção
indescritível, pois é extraordínário o visual, algo incomum. Para os
desavisados, esta sensação de poder e beleza é tão incomum e
poderosa que poderá levá-los a se perder no orgulho e na vaidade.
Quando você deparou com a visão da Casa do escritor,
estranhou pela diferença entre uma e outra. Mas, filha, veja a
manifestação de Deus tanto no extraordinário como também no
simples e necessário. Esta Casa que é seu lar no momento é
absolutamente necessária, pois se encontram ali espíritos que se
dedicam ao aperfeiçoamento psicológico dos homens. Neste míster,

A casa do escritor 121

a simplicidade não é só necessária mas realmente imprescindível,
pois no seu interior o homem precisa se assemelhar a Deus que é
realmente profundamente simples.
A beleza que encanta os olhos em muitas ocasiões é passageira.
A beleza do simples, mas necessário para a sustentação da
maioria, é sempre pura e eterna.
A beleza da manifestação de Deus está justamente no
contraste dos opostos. A beleza que encanta os olhos e a mente não
está dissociada da simplicidade daqueles que, por estarem integrados
e serem melhores, são agentes atuantes do movimento de
evolução de seus irmãos em humanidade. Sentem alegria em ser o
que são, não necessitam de ostentação. Não quero dizer que os
integrantes da Colônia Triângulo, Rosa e Cruz fazem ostentação,
mas, sim, que nos mostram com simplicidade as possibilidades de
criatividade do ser humano na sua vida externa.
Nesta casa estão os que trabalham no burilamento do ser
interno do homem.
- E, agora, Patrícia, que me responde? A Casa do escritor é
linda?
- Sim, é realmente encantadora! - respondi, beijando-lhe a
testa.
Como vê, ajuda-se sempre quando queremos, estejamos
encarnados ou desencarnados. E a ajuda dos que amamos nos é
muito valiosa. Principalmente nós que pela desencarnação nos
defrontamos com um mundo diferente que desconhecemos. A ajuda
dos encarnados que amamos é sempre de muita importância.

XIV
A HISTORIA DE LORETA

Tinha que fazer uma redação, uma história para que pudesse
apresentar à classe. Já tinha feito três e não saíram do meu gosto,
Um colega pediu que fosse a uma Colônia para ele. Fui lhe fazer o
favor com alegria, Esta Colônia é muito bonita. Passando por uma
praça, não pude deixar de parar para olhar um enorme chafariz de
pedras azuis. Encantador! Sentei num dos bancos confortáveis da
praça e fiquei a admirá-la. De repente, percebo perto de mim uma
moça também embebida com os encantos do chafariz. Observo-a.
Linda, lindíssíma. Loura, olhos azuis esverdeados, sombreados de
longos cílíos, traços perfeitos e harmoniosos, pele morena clara,
delicada e tímida.
Sentindo-se observada, olhou-me e me cumprimentou.
- Oi, sou Loreta.
- Oi, eu sou Patrícía. Como está? Desculpe-me por observá-la.
Achei-a tão linda!
- Está preocupada com alguma coisa? - indagou delicadamente.
- Tenho que fazer uma redação para apresentar amanhã a
minha classe. Não fiz nada de bom. Procuro uma boa história. Você
sabe alguma que seja interessante para me narrar?
Loreta sorriu, seu sorriso é encantador.
- Se tiver tempo, falarei a você de minha vida.
- Se você pudesse me fazer este favor, agradeceria - falei
animada.
Sentei mais perto dela e esperei ansiosa pelo seu relato.

A casa do escritor 123

- Sou filha de pais separados. Quando criança, raramente via
meu pai, depois não o vi mais. Tinha só um irmão, mais velho que
eu e que aos treze anos saiu de casa e não se soube mais dele. Minha
mãe casou-se novamente, meu padrasto, até então, era razoável e
trabalhador.
Logo que comecei a entender, percebi que minha beleza física
muito me atrapalhava. Tive poucas amigas, as meninas tinham
ciúmes de mim, porque os coleguinhas da escola queriam me
namorar. Não gostava dos garotos, porque eles sempre me diziam
gracinhas. Quando estava com onze para doze anos, os problemas
se agravaram. Estava tornando-me uma bela mocinha. Meu padrasto
começou a me cobiçar. Foi horrível, tinha medo dele e ficava
sempre trancada no meu quarto. Evitava ficar a sós com ele. Mas
ele me olhava muito, minha mãe desconfiou do esposo e achou que
eu atrapalhava.
Nesta época não tinha nenhuma amiga, acabara os quatro
primeiros anos da escola e não estudava mais, só ajudava minha
mãe nos trabalhos de casa. Tinha cada vez mais medo do meu
padrasto. Minha mãe achou uma solução, arrumou para mim um
internato, onde estudaria e trabalharia no colégio.
Gostei do colégio, lá era calmo e me entusiasmei em estudar.
Tinha um quarto bem pequeno, mas fiquei contente por ser só meu.
Os anos se passaram, não saía do colégio para nada, nem nas férias.
Minha mãe raramente me visitava. Sentia-me muito só e trabalhava
muito, tive poucas amigas, a maioria não queria amizade com uma
moça tão bela e por trabalhar para se manter. Tudo corria bem, até
que veio transferida de outro colégio uma freira e meu sossego
acabou. Começou a assediar-me. No começo não entendi bem o que
ela queria, era inocente. Clarinha, uma das poucas amigas que tive,
colega de internato, me alertou. Comecei a fugir desta freira e tive
depois de ser clara e dizer que não queria o que me propunha. Ela
começou a me perseguir me sobrecarregando de trabalho. Fiquei
desesperada, não tinha a quem recorrer, estava com dezesseis anos.
Clarinha me ajudou, arrumou-me um emprego de balconista
numa loja de sua tia, onde poderia morar nos fundos do estabelecimento.

124 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

Fiquei triste por parar de estudar, mas era uma solução.
Minha mãe não me queria em casa e não tinha para onde ir, não
podia ficar mais no Colégio.
Saí do Colégio, fui trabalhar com D. Mara, a tia de Clarinha.
Ela era uma solteirona muito boa que me empregou, deixando que
morasse no quarto dos fundos. Gostei do lugar e do emprego, deu
certo. Passei um tempo tranqüila.
Mas minha beleza era um atrativo tanto para a loja como
para muitos homens que me diziam galanteios, uns grosseiros,
outros mais por brincadeira. Ao saberem que era só e uma simples
empregada, fui alvo de muita cobiça.
Conheci Geraldo quando entrou na loja para comprar um
presente para sua irmã. Era tímido, educado e respeitador. Voltou
outras vezes para conversarmos. Não se referiu a minha beleza,
parecia até que não me achava bonita. Convidou-me para sair, foi
um passeio agradável. Ao seu lado sentia-me segura. Achava-o
diferente dos outros, não me fez nenhuma proposta. Começamos a
namorar e logo após noivamos. Não tinha certeza de amá-lo, mas,
pensando estar segura com ele, aceitei casar. Tinha dezoito anos.
Casamos e fomos morar numa casinha nos fundos da casa de
sua irmã. Geraldo só tinha esta irmã como parente. Chamava-se
Dulce, era boa e amável. Tornamo-nos amigas.
Sentia-me tão feliz em ter meu cantinho! Nossa casinha era
linda e acolhedora. Mas, para minha surpresa, Geraldo modificou,
não me deixou trabalhar mais e tinha por mim um ciúme incontrolável.
Prendeu-me dentro de casa. Raramente saía e, quando o fazia,
era com ele e quase sempre na volta havia brigas. Muitas vezes
me surrou, sem que nada houvesse feito de errado. Depois ele
sempre se arrependia, pedia perdão, eu o perdoava. Sofri muito,
ninguém podia me olhar. Mesmo vestindo-me simplesmente, sem
nenhum enfeite, era alvo dos olhares masculinos, isto o deixava
louco de ciúmes. Para evitar brigas, preferia mesmo não sair de
casa.
Estava com vinte e três anos. Tivemos dois filhos, um casal,
e estava grávida de três meses. Um dia meu menino, o mais velho,

A casa do escritor 125

estava febril. Geraldo sempre chegava em casa às dezoito e trinta,
às vezes se atrasava. Estes atrasos eram porque ele fazia as compras
da casa. Minha cunhada estava viajando e o menino piorava.
Resolvi ir à farmácia, que era perto de casa, buscar um remédio.
A farmácia já estava fechada, o proprietário, pessoa boa,
morava nos fundos. Era um viúvo de meia-idade. Recebeu-me
gentil, pediu para entrar que ia pegar o remédio. Tive medo, se
Geraldo soubesse que entrei na casa dele ia me surrar. Mas, pensei,
ele não vai saber, não tem nada demais comprar um remédio para
o filho doente.
Mas Geraldo chegou e na frente da casa foi surpreendido por
uma vizinha fofoqueira, invejosa e maliciosa, que só para atiçar
ciúmes nele comentou:
"Geraldo, Loreta não está, foi à farmácia. Vi-a entrar na casa
do proprietário. Você sabe, é viúvo e bem bonito. A esta hora, a
farmácia está fechada, não sei o que ela está fazendo lá."
Meu marido nem respondeu e foi verificar. Estava muito
nervoso, foi entrando sem bater. Quando entrou na sala, o farmacêutico
estava me entregando o remédio. Não existiu nenhuma má
intenção de nossa parte. Geraldo só andava armado. Costume que
recriminava, mas ele dizia que era para evitar assaltos. Ao nos ver
perto um do outro, sem indagar, sem ao menos confirmar qualquer
suspeita, tirou o revólver e descarregou em nós dois. Os ferimentos
que recebemos nos fizeram desencarnar na hora.
Senti o impacto, uma dor forte no peito, uma sensação tão
horrível, que pensei ter desmaiado de dor, porque não vi mais nada.
Acordei numa enfermaria e julguei estar num hospital de
encarnados. Mas estava num Posto de Auxílio no Plano Espiritual.
Estava magoada com a atitude do meu esposo, não quis conversar
com ninguém, nem com os gentis enfermeiros quis manter um
diálogo. Mas estranhei logo, não achei meus ferimentos. Tinha
certeza de que fora ferida, preocupei-me com a criança que esperava.
Indaguei à enfermeira.
"Que aconteceu com meu nenê?"
"A senhora o perdeu por causa dos ferimentos."

126 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

"Onde estão meus ferimentos?"
"Curamo-los, mas não pense neles, senão podem voltar."
Achei tudo bem estranho. Naquele dia, à tarde, uma das
enfermeiras fez uma linda oração que me comoveu até as lágrimas,
mas que me levou a pensar muito. Achei que algo diferente
acontecera comigo. Novamente perguntei à enfermeira.
" Que aconteceu comigo? Mom com os ferimentos?"
"Seu corpo morreu, vive em espírito."
Bondosamente ela me explicou que desencarnei, estava
socorrida, etc...
Chorei muito e reclamei:
"Tudo que me aconteceu foi por ser bonita. Se fosse feia,
Geraldo não ia ter ciúmes de mim. Não me mataria só pelo fato de
ter ido comprar remédios."
Ao recordar dos remédios, lembrei do meu filho doente, quis
vê-lo, quis ir para casa. Fui aconselhada pela enfermeira a não
desejar ir. Ela, carinhosamente, disse que ele havia sarado, que eles
estavam bem com a minha cunhada. Não acreditei e desejei ir
ardentemente para casa e fui impulsionada pela minha vontade.
Quando vi estava na minha ex-casa. Mas tudo era diferente, outro
casal morava ali. Fui à casa de Dulce e vi meus filhos. Minha
cunhada e o marido eram pessoas boas, tinham três filhos moços
ficaram cuidando dos meus dois filhos. Foi com alegria que os vi
bem e amados por estes dois amigos bondosos.
Ali soube que Geraldo fora preso em flagrante, estava numa
prisão e, como todos diziam, não sairia de lá tão cedo.
Sabia que estava desencarnada, mas resolvi ficar ali e não
sair para nada. Estava acostumada, era muito caseira e ali fiquei
como escondida. Evitava todos os encarnados, temendo que eles me
vissem ou me sentissem. Os ferimentos apareceram, eram quatro.

N.A.E. - Quando um espírito socorrido em Postos quer ir ardentemente
para
junto dos seus encarnados queridos, sua vontade forte o impulsiona, isto é,
volta sem saber como ocorreu.

A casa do escritor 127

dois no peito, um no braço e outro no ombro esquerdo. Doíam muito
e às vezes sangravam. Isto muito me incomodava.
Mas meus fluidos não estavam fazendo bem a Dulce e à
família. Via-os inquietos, queixando-se. Não julguei ser eu a causa.
Dulce tinha alguns conhecimentos Espíritas e resolveu ir ao Centro
Espírita. Achei certo e fiquei a cuidar da casa. Estava quieta num
canto, quando vi dois desencarnados me pegarem pelo braço e me
levarem. Assustei-me, mas a viagem foi rápida, em segundos
estávamos no Centro Espírita onde Dulce fora.
Colocaram-me perto de uma senhora e de um homem, ambos
encarnados. Este senhor foi conversar comigo. Explicou-me bem
minha condição, fazendo-me ver que fazia mal aos que estavam em
casa. Estranhei, não queria fazer mal a ninguém, ainda mais aos que
amava. O encarnado que conversava comigo disse que isto é
comum. O desencarnado volta sem preparo para perto dos que ama
e faz mal a eles. Disse com bondade da necessidade que tinha de
ir para o Plano Espiritual. Revoltei-me e recusei ir para o hospital,
para o Mundo Espiritual. Mas prometi não voltar para a casa de
Dulce.
Com meu livre-arbítrio respeitado, saí do Centro Espírita e
pus-me a vagar pelo bairro. Fui parar numa praça onde descansei
num canto. Senti fome, só então percebi que o orientador do Centro
Espírita tinha razão, alimentava-me junto com os familiares.
De repente, um menino derrubou um sorvete e corri para
pegá-lo.

N.A.E. - O espírito saindo sem permissão e sem entendimento pode sentir os
reflexos das suas doenças ou ferimentos como aconteceu com nossa amiga.
N.A.E. - Como Dulce foi pedir ajuda, dois trabalhadores do Centro Espírita
foram à casa dela verificar o que estava acontecendo. Ao encontrar Loreta, eles
levaram-na ao Centro para que recebesse orientação.
N.A.E. - Recebeu doutrinação pela incorporação.
N.A.E. - Fluidos de espíritos sem compreensão prejudicam os familiares.
N.A.E. - Só está livre das necessidades de encarnado o desencarnado que
compreende e aprende a viver como tal. No caso de Loreta, ela alimentava-se dos
fluidos vitais dos alimentos.

128 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

"É meu!"
Uma desencarnada, senhora idosa e feia, me bateu com força
na mão. Voltei para onde estava e chorei.
A senhora me observou curiosa e se aproximou.
"Você está sofrendo?"
"Estou, a senhora não está?"
"Ora, ora, há anos sofro e nem ligo mais. Pode tomar o
sorvete, dou a você. Fale o que se passa que talvez possa ajudá-la.
Chamo-me Lalá. E você?"
"Loreta" - respondi.
Tomei o sorvete, Lalá sentou-se perto de mim, contei toda
minha vida para ela.
"Sua beleza foi sua perdição - comentou. "Você se vingou
deste Geraldo?"
"Vingar?"
"Ora, não seja burra, o cara mata seu corpo jovem e belo,
você é inocente e vai deixar por isto mesmo? Se quiser, ajudo você
a se vingar."
Nem sei se quero, ou o que quero, ou faço."
"Se quiser ficar comigo, cuido de você."
"Quero."
Dois desencarnados mal-encarados, espíritos ociosos passaram
por ali e mexeram comigo, tentaram me agarrar. Lalá, para
meu alívio, os enfrentou e os pôs para correr.
"Tenho medo, minha beleza me atrapalha até desencarnada.
Obrigada, você foi corajosa. Não pensei que desencarnados fossem
mexer comigo."
"Depende dos desencarnados. Os bons não fazem isto, nem
encarnados nem desencarnados. Os maus fazem mesmo. Mas como
é engraçada a vida. Uns querendo ser bonitos e a outros a beleza
incomoda. Você é bonita realmente. Conheço estes dois, são ruins
mesmo, se não estivesse aqui... Você quer ficar feia?"

N.A.E. - Um desencarnado pode bater e acariciar outro desencarnado. São da
mesma matéria. Sentem-se mutuamente.

A casa do escritor 129

"Quero."
"Vou maquiá-la. Venha comigo até minha casa, lá tenho os
apetrechos."
Lalá foi comigo até a sua ex-casa terrena, seu marido agora
casara com outra e ela odiava a segunda esposa dele. Após
conhecer a casa, Lalá começou a me maquiar. Ela me enfeiou,
sujou, descabelou, tingiu a pele de preto azulado. Maquiou-me a
boca, tornando-a torta e grande e fez uma horrível cicatriz na face
esquerda.
Ela plasmou o material que usou na maquiagem.
Ao olhar no espelho, levei um susto, estava bem feia, mas
sentia-me tranqüila, nenhum desencarnado vadio me olharia mais
com cobiça.
"Então, está contente agora?" - indagou.
"Estou horrível! Você é uma artista!"
Fiquei a vagar com Lalá, íamos passear, pois ela sabia onde
podíamos ir, alimentávamo-nos na ex-casa dela, vampirizando a
sua rival. Lalá sabia que fazia mal a ela e estava ali por este motivo.
Não fui mais à casa de Dulce, via meus filhos só de longe.
Saber que estavam bem me deixava tranqüila.
Um dia, Lalá insistiu tanto que fomos ver Geraldo na prisão.
Um espírito que guardava a porta nos barrou. Lalá lhe explicou que
queríamos fazer uma visita a Geraldo de...
"São parentes?"
"Sim" - respondeu Lalá.
"Este moço é bem comportado, recebe sempre a visita da mãe
desencarnada. Venham, levo vocês para vê-lo."

N.A.E. - Em prisões, delegacias, penitenciárias, existem equipes de trabalhadores
do Bem, que dão assistência tanto a encarnados como aos desencarnados
que ticam ali. Porém, espíritos maus ali vão também, uns para se vingar, outros,
como este guarda, tomam conta da portaria, por não terem algo mais interessante
a fazer, ou mesmo por gosto, até podendo ser a mando de alguma organização
do Umbral.

13 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

Não gostei do que vi, tanto encarnados como desencarnados
vibravam negativo, o ambiente era horrível. Logo estávamos na
cela de Geraldo, este lia um livro.
Lalá, ao contrário, estava gostando, passeava à vontade.
Logo que o viu, avançou sobre ele xingando-o.
"Assassino! Covarde!"
Geraldo parou de ler, sentiu-se mal, ficou nervoso. Um
companheiro lhe perguntou o que tinha.
"Não sei" - Geraldo respondeu triste. "Acho que vou enlouquecer,
sou um ordinário, matei minha esposa inocente e um homem
honrado."
"Já sei sua história, esquece!" - disse-lhe o companheiro.
"Não posso, o remorso me mata, sofro muito. Se pudesse
pedir perdão a ela, ajoelharia aos seus pés."
Tive dó dele, fora sempre infeliz, agora sofria mais do que eu.
Então, falei à minha amiga:
"Acho, Lalá, que não preciso me vingar. Geraldo já sofre
muito. Vamos embora, aqui é horrível!"
Ao sair da prísão, dois espíritos horríveis nos pegaram.
Esperneamos, lutamos, mas eles eram mais fortes e não conseguimos
nos soltar. Fomos levadas para uma caverna no Umbral, o
local era horrível, sujo e fétido, fomos colocadas num canto. Não
estávamos sozinhas, espíritos horríveis agrupavam-se. Apavorei-me,
a cena que vi era pior que um filme de horror.
Lalá me disse baixinho:
Loreta, procure não conversar, só fale quando for indagada
e use a ínteligência para se sair bem. Vamos nos separar, fuja logo
que puder que vou tratar também de sair daqui."
"Onde estamos?"
"Na Zona Inferior, no Umbral, somos prisioneiras".
Zona Inferior, que é isto? Somos prisioneiras de quem?"
"Zona Inferior é o mesmo que inferno. Somos prisioneiras
deles, dos que moram aqui. Não sei ao certo e nem por que nos
prenderam. Acho que é para nos tornar escravas. Quando eles

A casa do escritor 131

necessitam de que faça o trabalho para eles, aprisionam os que
vagam para servi-los."
"Vai me deixar sozinha?" - falei com medo. "Foi você que
me colocou nesta situação."
"Ingrata! Ajudo-a e você me trata assim."
Lalá sumiu.
Fiquei sentada num canto sem coragem de sair do lugar.
Senti um medo horrível e me arrependi por não ter seguido os
conselhos que me deram no Centro Espírita e por não ter ficado no
Posto de Socorro. Não consegui saber quanto tempo fiquei ali, o
local estava napenumbra, clareava-o só uma pequena tocha fincada
na parede. Meus ferimentos doíam muito e sentia fome e sede. Acho
que depois de dois ou três dias vieram me buscar. Um sujeito
horroroso me pegou pelo braço e me levou a uma outra caverna tão
horrível quanto a primeira, só que estava mais clara e enfeitada por
inúmeras caveiras. Num trono estava sentado um homem que me
olhou observando, gelei. Mas, seguindo o conselho de Lalá, tentei
ficar calma e pensei: "Se este cara está no trono é porque pensa ser
rei ou algo parecido, devo me dirigir a ele como quer." Ajoelhei aos
pés do trono e abaixei a cabeça. O sujeito que me trouxe disse alto:
"Chefe, pegamos esta quando saía da penitenciária, foi
visitar um detento.
"Que estava fazendo lá, ó infeliz?"
Sua voz parecia um trovão, grossa e forte, respondi com voz
trêmula.
"Senhor, fui dar uma lição no maldito que me matou."
"Vingança então? Adoro os que se vingam. Não me meto em
vinganças particulares. Vingue-se como quiser, é seu direito.
Deixe-a ir, é tão feia que enoja vê-la!" - falou, fazendo uma careta
de nojo.
Levantei, o sujeito foi andando na frente, eu atrás, atravessamos
outras cavernas e saímos.
"Vai, infeliz!" - meu acompanhante disse.
Ele voltou. Fiquei sozinha. O local estava escuro, uma
pesada névoa me impedia de ver onde estava. Sentia-me perdida,
mas, mesmo assim, andei, queria afastar-me dali com medo de ser

132 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

presa novamente. Estava cansada, com dores, fome, frio e sede. Às
vezes, via outros desencarnados a gemer, eram tão horríveis que me
davam medo. Apavorada, continuei a andar.
"Vem por aqui, filha."
Senti alguém pegar meu braço e andamos por minutos. Logo
vi uma claridade, mais alguns passos e estava na cidade. Soltei-me
num puxão e corri.
Era noite, andei até a praça, tomei da água do chafariz.
Após me deitar na grama, procurei descansar. Dormi, acordei com
a luz do sol. Fitei-me nas águas do chafariz, estava horrível. Aquela
sujeira e a maquiagem me incomodavam, mas sabía que era
preferível. Se não estivesse assim, não teria saído do Umbral.
Bonita, seria cobiçada por algum deles. Sentia-me muito sozinha,
minha única amiga era Lalá, estranha amiga, mas era minha
companheira. Fui procurá-la no seu ex-lar e achei-a.
"Como saiu?" - ela quis saber.
"Acharam-me feia. E você?"
"Sou esperta, conheço tudo por lá. Venha alimentar-se.
Depois levo-a para ver seus filhos."
Como prometeu, Lalá me levou para ver meus filhos. Chegando
lá, Dulce conversava na calçada com uma vizinha.
"Dona Ivone, desde que fui ao Centro Espírita, tudo melhorou
aqui em casa, meus sobrinhos estão bem, com saúde, não
choram mais. Meu marído e eu os amamos como se fossem nossos.
Eu me sinto bem e com saúde. Acho que Loreta entendeu que estava
nos prejudícando e foi embora. Que Deus a ajude!"
Emocionei-me, vi meus filhos de longe, eles estavam brincando.
Peguei na mão de Lalá e fomos embora.
"Meus filhos, Lalá, já sofreram demais. Não posso prejudicá-los
e nem a Dulce, ela e o marido cuidam bem deles."

N.A.E. - Um socorrista a ajudou, certamente. Se ela não corresse,
este poderia tê-la auxilíado melhor.
N.A.E. - Certamente da parte fluídica da água.

A casa do escritor 133

"Por causa do Geraldo é que estão maos!"
"Não quero me vingar, que me importa ele? Sofre mais que
eu! Não quero nem visitá-lo, é perigoso. Fomos presas lá."
Você diz que ele sofre, e você não? Só que ele é culpado e
você inocente! Afinal que você quer? Você é muito bonita e só me
atrapalha. Não a quero mais perto de mim. Estou com muitos planos
e você não faz parte deles. Adeus!"
Lalá foi embora, voltei à praça e pus-me a chorar, chorei
tanto que as lágrimas me lavaram o rosto.
"Que estranho! Você parece fantasiada de feia! Venha cá,
boneca, vou levá-la" - disse um desencarnado, que fora mau
quando encarnado, pegando-me pelo braço.
Tive que lutar com ele. Quando me largou, saí correndo e me
escondi, ele ficou xingando. Quando vi que ele foi embora, voltei e
me fitei nas águas do chafariz, estava com a maquiagem danificada,
aparecia uma parte bonita do meu rosto. Pensei e resmunguei:
"Meu Deus! Se fico bonita de novo não sei o que acontecerá
comigo. Odeio ser bonita! Na Terra entre os encarnados não há
lugar para mortos do corpo. Acho que tenho que ir para um lugar
próprio. Necessito de ajuda, mas ajuda mesmo. Acho que vou
naquele Centro Espírita, lá me trataram tão bem, talvez eles possam
me ajudar."
Senti vergonha de pedir ajuda, depois de tê-la recusado e ter
sido mal-educada. Mas o medo e a vontade de ser socorrida foram
maiores e fui. Temi encontrar com desencarnados arruaceiros. Era
dia e o Centro Espírita estava fechado. Bati na porta e aguardei.
Uma pessoa desencarnada de aspecto agradável me atendeu.
"Por favor, pelo amor de Deus me socorre, necessito de
ajuda" - disse a chorar.

N.A.E. - Em quase todos os Centros Espíritas, juntamente com a construção
material, há uma construção da mesma matéria de que são feitas as Colônias,
cidades Espirituais. Esta trabalhadora abriu a porta desta construção e Loreta
com ajuda dela atravessou a porta material.

134 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

"Entre, sente aqui e tome isto. Você sofreu muito para
entender e pedir ajuda. Vamos ajudá-la. Logo a levaremos para um
hospital."
Senti-me melhor, ali sentia proteção. De fato, logo me
levaram para um hospital em um Posto de Socorro. Desta vez, foi
diferente, fui obediente e logo me recuperei. Quando fiquei boa,
passei a aprender e a trabalhar.
Loreta calou-se. Suspiramos juntas e sorrimos. Perguntei:
- E Geraldo e seus filhos?
- Meus filhos estão bem, já estão mocinhos. Geraldo ainda
está na prisão. Tenho ido vê-los quando tenho permissão.
- E o farmacêutico?
- Ele foi socorrido. Pessoa boa, aceitou o socorro e está
muito bem, está tentando ajudar o Geraldo.
- E Lalá?
- A esposa de seu ex-marido foi a um Centro Espírita
buscando ajuda, assim ela foi orientada e socorrida, está bem em
outra Colônia. Patrícia, há muitas encarnações tenho sido vaidosa.
Já fui casada com o espírito que é Geraldo nesta e traí-o muitas
vezes, fazendo-o sofrer muito por ciúmes.
Calamos e meditamos. Mas logo lembrei que tinha de
escrever a redação. Despedi-me de minha amiga.
- Loreta, tenho que ir. Obrigada!
Loreta sorriu, de fato é belíssima, uma das mais perfeitas
belezas humanas que já vi.

N.A.E. - Deu-lhe água fluidificada.

XV

NO TÉRMINO
No final deste curso, em meio à emoção e à euforia pelo
objetivo alcançado, um novo sentimento começou a tomar conta de
mim. Não estava este sentimento ligado à vitória e à conquista. Era
um sentimento de plenitude, um prazer imenso de "viver", sentir em
plenos poros da alma o amor que Deus tem pelo homem e por tudo
que é seu. Como sempre, não pude deixar de me lembrar das
recomendações de meu pai, que muitas vezes não cheguei a
compreender. Em certa ocasião, já desencarnada, e com imensas
oportunidades de conhecer e estudar o que almejo fazer, ele me
disse: "Patrícia, devemos buscar o conhecimento sem cessar e com
todo empenho, mas ele não deve ser tido como fim e sim como meio.
Pois arquivos mentais são coisas do passado e Deus não está no
passado e nem no futuro, Deus é atemporal. No seu tempo, o
importante é viver a vida pela vida, o amar, o viver pela própria
beleza do viver este imenso, infinito e amoroso Deus."
Naquele momento estava sendo agraciada sentia-me parte
una com o Pai. Feliz de ser o que era, ansiava profundamente
atualizar todos os meus talentos para que nesta ação pudesse
demonstrar todo o meu amor e carinho por aquele que é o Criador
e Pai de todos nós.
Como o tempo corre depressa quando estamos felizes! O
curso já acabava e fazíamos planos para o futuro. Cada um de nós,
com muito entusiasmo, planejava o que faria depois. Todos animados
com as novas tarefas e contentes com o trabalho pela frente. Eu
também fazia meus planos com muito carinho. Já tinha escrito meus

136 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patricì

livros que iria ditar à médium. Livros estes feitos com cuidado
e muito amor, trabalho que os orientadores da Casa aprovaram
Logo minha tia e eu trabalharíamos juntas. Tudo que começa tem
continuidade, e término. Iria por tempo determinado trabalhar com
a Literatura, ditando minha vivência aos encarnados. Planejei
também o que iria fazer após este trabalho. Vou continuar a estudar
em Colônias de Estudo. Mas meus conhecimentos não vão ficar sem
dar frutos. Irei também ser instrutora, ensinar em cursos. Isto é que
desejo e sonho. E querer desencarnada é quase sempre poder,
principalmente para o espírito que quer progredir e ser útil. Eu
quero e muito.
Meu trabalho em ditar os livros faço em horas diárias. Digo
trabalhar, sim, porque todos que exercem uma atividade intelectual,
mental ou material estão trabalhando. E foi um trabalho que fiz,
fizemos com muito gosto. Não só trabalhava quando ditava e a
médium escrevia. Ficava com ela mais horas, enquanto ela trabalhava
materialmente na sua casa, nas tarefas diárias de dona-de-casa;
conversávamos mentalmente, falando de fatos, trechos que
íamos escrever à tarde. E não foi um ditado somente. No mínimo,
foi escrito três vezes cada capítulo, alguns pedaços muitas vezes
mais. Tudo isto tentando fazer o melhor possível. Neste tempo tive
também o encargo de cuidar dela, da médium, de sua casa e família.
Mas tive muito tempo livre e não ficava ociosa. Ia muito ao
meu lar terreno, ao Centro Espírita, às Colônias onde tenho amigos.
Fiz parte da equipe de ajuda a filiados na Casa do escritor. Meu
cantinho continuou lá. Freqüentava as reuniões tão agradáveis que
a Casa promove. Conversava nos seus pátios, onde o entusiasmo é
constante.
íamos muito visitar as bancas do Livro Espírita por todo o
Brasil, como também ajudar, sempre que solicítada, as Editoras, os
revendedores e também alguns leitores. Muitas pessoas ao ler
pedem ajuda ao escritor, ao médium, se o livro é psicografado. Estas
ajudas são particulares e quase sempre os pedidos nos chegam por
meio de orações. Dificilmente o médium ou o escritor encarnado
pode ajudar e nem sempre o escrítor desencarnado pode ir no

A casa do escritor 137

momento ao seu auxílio. Mas a equipe vai, estuda, analisa o
problema e, na medida do possível, a ajuda é realizada. Claro que
não se pode fazer tudo que nos pedem. Na maioria das vezes, cabe
ao encarnado resolver o problema. Mas só o fato de a equipe visitá-lo,
o pedinte recebe fluidos salutares, bons, de entusiasmo e ânimo.
Nesse tempo, participei de muitas reencarnações de filiados.
Muitos moradores que se preparavam há tempo decidiram encarnar
e continuar a tarefa na carne. Houve também desencarnações
esperadas que mereceram nossa ajuda. Muitos voltaram vitoriosos,
outros cumpriram pela metade o que se propuseram.
Muitas e muitas vezes, fomos aos filiados encarnados dar
forças e entusiasmo nos trabalhos desenvolvidos. Se espíritos maus
os desanimam, cabe a nós animá-los. Porém, o encarnado tem seu
livre-arbítrio e escuta quem quer.
Foi um trabalho proveitoso, no qual aprendi muito.
Certamente, quando partir, meu cantinho será ocupado,
tratei de deixá-lo como antes de ocupá-lo.
Mas, voltando ao término do curso, fizemos planos e pela
bondade do Pai tudo deu certo, a euforia era grande. Não terminamos
o curso como começamos. Nossos conhecimentos aumentaram,
tornamo-nos mais capazes e amadurecidos. Não houve festa,
mas uma reunião em que amigos e moradores da Casa estavam
presentes. Convidei muitos amigos e - que surpresa agradável!
- quase todos eles compareceram. Frederico me presenteou com um
lindo ramalhete de rosas azuis. Antônio Carlos, meu maior incentivador,
não escondia seu contentamento. Vovó e amigos da Colônia
São Sebastião foram também me cumprimentar. Amigos da
Casa do Saber, do Centro Espírita, enfim, muitos ali estavam para
me desejar êxito no trabalho que eu iniciara. Não achava fácil ditar
aos encarnados, mas dois anos de estudo me davam um pouquinho
de confiança. Nós oito, os formandos, estávamos felizes e emocionados,
neste tempo juntos tornamo-nos realmente amigos.
- A tarde parece diferente! - exclamou Ruth. - Talvez, se
fosse outro dia, não notaríamos a diferença. Mas como é hoje o

138 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Patrícia

término do nosso curso, sinto-a diferente. Acho que é porque estou
muito feliz!
Ruth iria tentar, tanto como eu, ditar aos encarnados.
- Estou pronta a escrever. Mas a parte encarnada estará?
- disse com um sorriso.
- Confie e trabalhe! - respondi.
Ruth estava pronta, era ótima em redação, fez o curso com
louvor. Mas preocupava-se com a médium que iria servir de
intermediária, esta estava desanimada e não perseverava nos treinos
necessários. Todos nós tínhamos consciência das dificuldades
que encontraríamos. Nada se realiza facilmente. Mas o entusiasmo
em construir, em realizar, era forte em nós.
Todos reunidos no salão principal que estava enfeitado com
muitas flores, a reunião começou com uma prece agradecendo a
oportunidade que o Criador nos dera.
O diretor da Casa, que estava na direção há dois meses,
porque, comojá foi dito, a direção faz rodízio, agradeceu a presença
de todos e incentivou os presentes ao estudo para que pudéssemos
cada vez mais ajudar com sabedoria.
Também ouvimos Aureliano e Maria Adélia, estes dois
mestres competentes e estudiosos que nos cumprimentaram, motivando-nos
a seguir sempre em frente e não parar diante das
dificuldades.
André Luiz veio nos apadrinhar. Abraçou um por um dos
que concluíram o curso, dizendo palavras de carinho e incentivo.
Brindou-nos com suas palavras.
- Caros convidados e caros companheiros! Uma nova tarefa
os espera, não pensem que não terão dificuldades a vencer. Dificuldades
solucionadas são degraus que subimos no progresso. Façam
seus trabalhos com entusiasmo e carinho. Insistam e realizem! Que
seria de nós, se Jesus não tivesse encarnado? Se ele, achando que
seria inútil e que não valeria o esforço, não tivesse se revestido do
corpo de carne para nos ensinar? Como estaríamos sem seus ensinos
fabulosos? Não nos igualemos ao Mestre, mas exemplifiquemos a
sua conduta. Vamos fazer o que nos compete, mesmo que seja uma

A casa do escritor 139

obra considerada pequena, porque, é fazendo, que um dia poderemos
dizer: Está feito!
Sintamos sempre na tarefa realizada a oportunidade que
recebemos para progredir através do fazendo, realizar! Que todos
consigam!
Palmas se ouviram pelo salão. Fomos abraçados e abraçamos.
A alegria era única. Grata, guardei os acontecimentos em
minha memória e no meu coração. Sentia-me sempre e cada vez
mais feliz!

FIM

Se você gostou deste livro, o que acha de fazer com que outras
pessoas venham a conhecê-lo também? Poderia comentá-lo com as
pessoas do seu relacionamento, dar de presente a alguém que você
sinta estar precisando ou até mesmo emprestar àquele que não tenha
condições de comprar. O importante é a divulgação da boa leitura,
principalmente a literatura Espírita. Entre nessa corrente!

A Casa do escritor é um relato simples
e encantador com que a jovem Patrícia nos
presenteia. Fala da Colônia que se dedica a
instruir pela Literatura, principalmente a que
educa, ensina com sabedoria: a Literatura
Espírita.
A Casa do escritor é uma Colõnia
móvel. Como é gostoso deslizar com ela pelo
Espaço, através dos relatos de Patrícia víajamos
juntos.
Ajovem autora nos desvenda muito do
Plano Espiritual Superior, fala de modo encantador
de suas Colônias maravilhosas e de
seus estudos fantásticos.
Patrícia também nos narra seu passado
a bonita história de final romântico.
Vale a pena lé-lo, todos ficarão encantados
com todas as maravilhas aqui escrítas!

ISBN 85-7253-001-0
9 788572 530019

FimVera Lúcia Marinzeck de
Carvalho
II

Romance do Espírito Antônio Carlos
Psicografado pela médium
A Vanessa, minha filha, com todo meu amorde mãe.
Vera.
Primavera de 2000.
sumário
1 A Mudança 9
2 Osvaldo 22
3 Apavorando Henrique 32
4 Acontecimentos Desagradáveis 44
5 A História Real 56
6 Orientando 68
7 A História de Angélica 81
8 A Brincadeira do Copo 92
9 Carmelo 108
10 Uma História Interessante 117
11 Com os Filhos 130
Angélica olhou as caixas, malas e roupas que estavam em cima da cama e suspirou.
"Como mudança dá trabalho!"
Teve vontade de cobrir o enorme espelho da penteadeira,
mas não o fez.
"Posso não me ver no espelho, mas as pessoas me vêem"
- pensou.
Preferia lembrar de sua imagem antes, com os cabelos
louros avermelhados, lisos, macios e compridos. Balançou
a cabeça.
"Eles crescerão de novo!" - Falou baixinho.
Escutava muito isso e ansiava por tê-los novamente. Mas o que importava, o que doía, era
que naquele momento ela não os tinha. A peruca a incomodava, por isso usava lenço na
cabeça, tinha-os de diversas cores, sua mãe os comprara. Mas, mesmo muito vaidosa, estar
sem cabelos não era o pior. Não podia nem lembrar dos enjôos, vômitos, da fraqueza ter
terrível que sentia após o medicamento.
"Ficarei curada! Será?" - Balbuciou, estranhando a própria
voz.
"Rá, rá, rá, moça careca! Que feio!"
Disse rindo alguém que era invisível à mocinha, mas ela
sentiu a vibração, passou a mão pela cabeça e sussurrou:
"Se alguém me vir assim irá rir."
A
Mudança
9
Colocou o lenço. Teve a impressão de que tinha alguém
atrás dela e virou-se, não viu ninguém. Uma gaveta que
acabara de fechar estava aberta.
"Que coisa! Fechei-a, tenho certeza!" - E a fechou
com força.
"Rá, rá, rá..."
Teve a impressão de que alguém rira.
- Angélica! - Gritou seu irmão, Henrique, entrando no quarto.
- Você me assustou! Isso são modos de entrar no quarto? - Resmungou a mocinha.
- Desculpe-me, não queria assustá-la. Vim ver se precisa de ajuda. Gostou da casa? Dos
móveis novos? Seu quarto
está bonito!
- Gostei de tudo! Sempre quis ter um quarto só para mim - expressou Angélica.
- Esta casa tem muitos quartos, todos grandes. A suíte para papai e mamãe, o quarto da
Fabiana, o seu, ainda outro para hóspede e o meu, que também é grande e bonito. Foi um
achado esta casa, você não acha?
- E ainda não é longe da cidade - falou Angélica.
- São quinze quilômetros. Na outra cidade em que morávamos a escola ficava a trinta
quilômetros. Você vai gostar daqui, maninha, O ar é tão puro! Mas você resmungava
quando
entrei. O que foi?
- Tinha a certeza de que fechei a gaveta, virei e ela estava aberta.
- Xi, não sei não, não queria falar, mas... - Henrique fez uma cara de suspense.
-Agora fale!
- Fantasmas, creio que nesta casa tem fantasmas.
- Ora, Henrique! Não venha com besteira. Você acredita nisso?
- Não sei! Não acreditava, mas agora já não sei. Angélica, vamos analisar. Papai alugou
esta bela casa, neste lindo lugar, perto da cidade e do mar, é só descer o morro e temos
praias lindas dos dois lados, por um preço baixo. A imobiliária
alegou que o dono queria uma família para morar e não para temporada, como se
alugam muitas casas por aqui. Não dá para desconfiar de que tem algo estranho? Desde que
viemos para cá tenho visto e ouvido coisas inexplicáveis, barulhos esquisitos, parece
ronco, não sei explicar o que seja. Bem, deixemos isso para lá, estou contente porque você
veio e gostou daqui, eu também estou gostando. A escola é boa e já fiz amigos. E olhe a
minha cor, é de ir à praia.
Angélica olhou para o irmão enquanto ele falava. Henrique era bonito, tinha quatorze anos,
era forte e alto para sua idade, mas ainda o sentia como criança, seus cabelos eram como os
dela, avermelhados, olhos grandes e olhar esperto. Ele viera antes com o pai, Roberto; a
mãe, Dinéia, tinha ficado com ela no hospital. Quando teve alta ficou na casa da avó e a
mãe veio. Só quando sentiu-se bem que veio, isso na tarde anterior. Estava arrumando seus
pertences no enorme quarto.
- De fato a casa é bonita! A Casa do Penhasco! - Exclamou Angélica.
- Como sabe o nome dela? - Indagou Henrique.
- Li a placa da entrada - disse rindo a mocinha.
- Vamos descer, Angélica, deixe para arrumar isso depois, quero lhe mostrar os dois
cachorros que papai comprou
para mim.
- Então ganhou cachorros? Realizou seu sonho - falou rindo a irmã.
- Aqui é perfeito, ou quase, espero que o fantasma não
atrapalhe.
Henrique pegou na mão da irmã e saíram rindo. Alguém
que os observava resmungou:
"Não quero ninguém nesta casa, se tenho de ficar aqui,
que seja sozinho!"
E a porta do quarto bateu com força.
- É o vento! - Exclamou Angélica.
- Mas não está ventando... - Falou Henrique.
- Vamos ver seus cachorros!
Angélica arrepiou-se, tentou continuar sorrindo, não quis dar atenção ao fato de a porta ter
batido nem aos arrepios,
queria participar do entusiasmo do irmão e foi com ele ver
os cãezinhos.
Henrique havia feito um cercado do lado direito da casa,
fez um canil para os dois filhotes. Angélica os achou lindos,
pegou-os.
- Que bonito, Henrique! Que animais lindos!
Levantou a cabeça e olhou, a casa era tão majestosa, no meio das pedras e da vegetação.
Era um sobrado pintado recentemente de branco e azul, com várias janelas pequenas sem
beirais, algumas com vitrais coloridos, não tinha nenhuma sacada, era uma construção
antiga, bem feita, dessas de resistir ao tempo.
"Deve guardar muitas histórias..." - Pensou a mocinha,
continuando a observar a casa.
Os quartos e banheiros ficavam no andar superior, em baixo as salas e cozinha, a entrada
dava para um hall onde ficavam as diversas portas para as salas e a escada. A casa era bem
repartida, os cômodos grandes e arejados. Sentiu que alguém a observava e teve a
impressão de ver um vulto
numa das janelas. Quando olhou de novo, não viu mais nada. Angélica manteve um
cachorrinho nos braços e Henrique
pegou o outro, eram animaizinhos fofos, brancos com pintas
pretas. Foram para a cozinha.
- Bom dia, Nena! - Exclamou a mocinha.
- Bom dia, estou fazendo o doce que gosta, vou alimentá-la bem e você logo estará como
antes.
- Não exagere, quero voltar ao meu peso, mas não engordar. E aí, dona Filomena, gostou
daqui?
- Menina, não me chame assim, senão adeus doce - riu a empregada.
Filomena, que todos chamavam de Nena, estava com eles
havia muito tempo, era uma mulata bondosa, trabalhadeira,
era como se fosse da família. Quando mudaram ela foi junto.
- E então, gostou daqui, Nena? - Insistiu Angélica.
- Gostei! O clima é muito bom: mar, montanha e sol. Venha ver meu quarto!
Da cozinha saíram por um corredor e lá estava o apartamento de Nena, grande e arejado.
12
- Que bonito! - Exclamou Angélica. - Está bem insta lada. Nena, o serviço deve ter
aumentado muito, você tem
dado conta? Mamãe tem ajudado?
- Dona Dinéia recebeu muitas encomendas. Está trabalhando bastante. Senhor Roberto
contratou uma faxineira
da cidade, ela vem todas as segundas-feiras.
- Será que ela virá de novo? - Intrometeu-se Henrique. - Ela está com medo das
coisas estranhas que acontecem por aqui. Ouvi-a resmungar, quis que eu ficasse na sala da
frente com ela enquanto limpava. Deu graças a Deus quando terminou o trabalho e mamãe
a pagou.
- Henrique, pare com isso! Não se deve ter medo de alma penada - falou Nena.
"Não sou alma penada!" - Falou o vulto.
- Não é alma penada - repetiu Henrique -, e sim
fantasma.
- Por quê? - Indagou Nena.
- Sei lá, penada é quem tem pena. E esse fantasma não
é pássaro.
- Penada, porque devemos ter dó, pena, porque o morto não encontrou seu lugar -
insistiu Nena.
- Que complicado! - Exclamou Angélica. - Deixem essa história para lá. Vou ver
mamãe.
Henrique foi guardar os cãezinhos e Angélica foi ao estúdio da mãe. Numa das salas,
Dinéia fez seu local de trabalho.
- Angélica! - Exclamou a mãe, contente. Veja como ficou bonita minha sala. Nem
acredito que tenho agora um lugar
só para eu trabalhar, sem ser incomodada ou incomodar.
- Nena me falou que você tem muitos pedidos.
- Como nunca tive! Três lojas da cidade interessaram-se pelas minhas bijuterias e meus
antigos clientes fizeram pedidos
grandes. Veja, estas pedras são aqui da região.
"Minha mãe é uma artista - pensou Angélica. - Seu trabalho é delicado, perfeito, faz
bem feito porque ama fazê-lo.
- São lindas, mamãe! Estas peças novas são maravilhosas. Este lugar deve ter lhe dado
mais inspiração. Estão perfeitas! Parabéns!
13
Uma caixa que estava em cima de um móvel caiu. Dinéia
pegou as peças que se espalharam.
- Que estranho! Como caíu? - Indagou Angélica.
- Ora, devo ter colocado em falso.
"Que coisa! - Exclamou o vulto, aborrecido. - Não consigo assustar esta mulher. Para
tudo ela tem explicação. Tive de ir rápido até o menino, pegar não sei o quê* dele para
derrubar a caixa, foi um trabalhão, e ela diz que a colocou em lugar errado. Nunca vi
ninguém mais distraída".
Angélica deixou a mãe trabalhando e saiu à procura do
irmão. Encontrou-o brincando com os cães.
- Henrique, por que não foi à escola?
- Ia ter uma reunião dos professores. Venha, Angélica,
vou lhe mostrar o terreno em volta da casa. Deste lado,
à direita, tem um declive com árvores, creio que não são
nativas, que foram plantadas, pois há muitas plantas da
mesma espécie; no fundo um pequeno pomar, na frente
o jardim que mamãe está cultivando, deverá ficar lindo, e
à esquerda a mata.
- Daqui não se avista o mar? - Indagou a garota.
- Só se subir nesta árvore alta. A casa fica no morro, a estrada passa logo ali; indo em
frente por este caminho vamos chegar nela, e seguindo uma trilha pela mata, depois das
pedras, o mar lindo e maravilhoso, onde as águas batem nas pedras, e andando um pouco
mais temos uma bela praia. Descendo pela estrada à esquerda temos a cidade.
- Vou para o quarto, acho que cansei - falou Angélica, despedindo-se do irmão.
Entrou e, curiosa, se pôs a olhar tudo, aquela casa despertou seu interesse. Tinha três salas
grandes, uma pequena e única varanda à frente da porta principal. Havia numa das salas
uma lareira de pedras muito bonita.
* Pegar não sei o quê: Quando o espírito deseja movimentar um objeto usa uma
combinação de seus próprios fluidos com os de um médium, com ou sem seu
conhecimento, e por um determinado tempo impregna o objeto, podendo então, pela
vontade, dar-lhe movimento. Os espíritos podem chegar a conhecer, inde pendentemente de
sua evolução
moral, a maneira de manipular essa energia. Veja O Livro dos Médiuns,
capítulos 1 e 4 da segunda parte (Nota do Editor).
14
"Ficamos todos bem acomodados" - pensou.
Entrou no seu quarto, sentou-se numa poltrona, olhou as
roupas para pôr no lugar, resolveu deixar para depois e descansar. Estava cansada, um
simples passeio a deixou prostrada.
O vulto a olhou e riu, achou-a muito engraçada careca. Ela se pôs a pensar e ele se sentou
perto e ficou escutando.
"Já se passaram meses, quase dois anos, tudo era tão
diferente... Isso sim foi uma grande mudança!
Eu tinha acabado de completar dezessete anos, estávamos no começo do ano letivo, cursava
o terceiro ano do segundo grau, queria continuar os estudos, estava em dúvida entre
psicologia e farmácia. Namorava César, achava que está vamos apaixonados. Tinha muitas
amigas, ia a festas, boates, gostava de passear.
Minha menstruação desregulou, comecei a ter muito sangramento. Fui ao médico, que
colheu material para exame e, quando pronto, o médico chamou pelos meus pais. Fui junto,
se tinha problema era melhor saber logo. E teve. Doutor Lúcio rodeou, explicou muito,
dizendo que eu tinha que procurar um especialista, talvez tivesse de fazer uma cirurgia, etc.
'Por favor, doutor, fale logo o que minha filha tem' - pediu mamãe.
Num impulso peguei o papel, o resultado do exame
da escrivaninha e li. Os três silenciaram, olharam para mim.
Balbuciei:
'Células cancerosas. Estou com câncer...'
Demorou uns segundos para o médico voltar a falar.
'Atualmente temos tido bons resultados com esta doença. Por isso recomendo irem logo a
um especialista. Você
irá se curar!'
'Como pode ter tanta certeza?' - Indagou mamãe.
'Bem, creio que descobrimos logo e
'Irei morrer?' - Interrompi.
'Desta doença, com certeza, não! Você é jovem, lutará e vencerá. Como já disse, muitos
saram e você também sarará.'
Só chorei em casa, sozinha no quarto. Não queria morrer. Tinha tantos sonhos, tantas
coisas que queria fazer. Era
15
jovem, bonita e feliz. Não queria ficar doente. Sabia pouca coisa dessa doença, só que ela
fazia sofrer muito. Não queria ter dor. Chorei até adormecer.
No outro dia, ninguém em casa comentou nada, papai e mamãe pareciam normais, como se
nada tivesse acontecido. Resolvi agir como eles. Em vez de ir à escola, fui a uma biblioteca
pesquisar sobre a doença; o que li me deixou desanimada, não contive as lágrimas; só que
chorei baixinho para não atrapalhar outros leitores. Achando que isso me fez mal, fui
embora para casa, não li mais nada e procurei não conversar sobre essa doença. Tentei me
animar e pensar nos dizeres do médico amigo, na possibilidade de me curar. Tinha de ter
esperanças. Orei muito pedindo a Deus minha cura. Compreendi que não era só eu que
sofria, meus pais também estavam sofrendo muito, por eles me esforcei e acei tei fazer o
que decidiram.
Novas consultas, diagnóstico confirmado e foi feita a cirurgia, na qual foram extraídos um
ovário e o útero. Foi tudo tão rápido, fui tão mimada e tudo transcorreu bem. César me
visitou no hospital, levou-me rosas, me fez companhia. As amigas revezavam. Tive dores,
mas os dias passaram rápidos e aí veio o pior: o tratamento. Tinha de me internar, ficava no
hospital sem os familiares, num quarto com outras pessoas, pois o tratamento era caro e
tinha de ser feito pelo plano de saúde de papai. Passava muito mal ao tomar os remédios,
vomitava muito, ficava deprimida e de mau humor, os cabelos caíram, as amigas
começaram a se ausentar e César começou a diminuir as visitas.
'Angélica, viram César numa festa e ele ficou com uma
garota.'
Chorei quando Fabiana me contou.
'Ingrato! Idiota!' - Xinguei-o com raiva.
Mamãe me consolou e entendi que César era jovem, vinte anos, estudava, era bonito, estava
sendo difícil para ele ter de ficar em casa, ter uma namorada doente. E quando ele foi me
visitar, terminei o namoro.
'César, estive pensando, não é certo você se prender a
mim. Acho que não quero namorar você e...'
16
'É aquele médico, não é? Você gosta dele!'
Não tinha nada com o médico, um jovem recém-formado que ia sempre me visitar quando
estava no hospital. Não desmenti, seria mais fácil. Resolvemos ser amigos e César foi
embora, eu fiquei chorando, não só por ele, por tudo, estava cansada de remédios, médicos
e hospitais.
Uma amiga da escola foi me visitar, falou dos preparativos da festa de formatura. Eu não ia
mais à escola, parara de estudar. Não tinha ânimo para nada, às vezes nem conseguia ler
um livro, algo de que sempre gostei. Fiquei pensando, se não fosse a doença, também
estaria contente pensando na festa de formatura. Passei uns dias muito triste, mas
compreendi que meus pais e avós sofriam comigo e me esforcei para melhorar, para não
ficar triste. Entendi que pior que a doença é ter dó de si mesma. Esforcei-me para expulsar
a autopiedade.
Foi muito ruim estar doente. Como aprendi a dar valor à saúde do corpo! Muitas vezes
queria chorar e não conseguia fazê-lo. No hospital havia outros doentes que choravam
juntos ou os incomodava porque queria dormir, ler ou conversar, não era certo piorar o
ambiente com minhas lástimas. Como desejei chorar no colo de mamãe, como fazia quando
era criança! Mas ao vê-la sofrida, até emagrecera, tentando me animar, esforçando-se para
sorrir, não queria entristecê-la mais ainda. Papai dava uma de forte, mas muitas vezes, ao
sair do quarto, o fazia chorando. Como entristecê-lo mais? Em casa não me deixavam
sozinha, repartia o quarto com Fabiana. Uma vez ela saiu, fora a uma festa, ia dormir na
casa de uma amiga. Chorei até adormecer, me fez bem, as lágrimas pareciam me lavar, me
limpar. Um dia, achando que minha irmã estava dormindo, chorei baixinho.
'Está chorando, Angélica?' - Indagou Fabiana.
'Não, claro que não!' - Respondi.
'Por que esconde seu choro? O que há de mau em chorar quando se está com vontade?
Você tem motivos para isso.'
'Motivos? Acha que tenho motivos?'
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'Claro! Está doente, tem dores, passa por esse tratamento
que lhe dá muitos incômodos. Quer que eu lhe abrace? Quer
chorar junto a mim?'
'Quero!'
Desde aquele dia, não chorei mais escondido, refugiava-me nos braços de vovó, papai,
mamãe e de Fabiana. Só que choro repartido é mais confortante, chorava menos recebendo
o carinho de afetos. Deixei consolar e fui consolada.
Via no hospital muitos doentes. Fiz amizade com Eunice,
uma mulher doente que tinha três filhos pequenos.
'Ainda bem que não tenho filhos, seria bem pior morrer e
deixar órfãos' - falei alto e estranhei minha voz ressoar pelo
quarto.
Voltei aos meus pensamentos, às minhas lembranças. Eunice era muito boa, otimista, tinha
dores, não reclamava, só chorava quando os filhos iam embora nas rápidas visitas. O
esposo era jovem, parecia cansado, trabalhava muito, cuidava dos filhos e estava
endividado. Eunice foi piorando, ficou muito feia, magra e mesmo assim continuava
sorrindo e animando a todos.
'Animo, Angélica, seu câncer não é do mesmo tipo do
meu. Será impossível eu sarar, mas você sim, irá se curar!'
'Eunice, que religião você segue?' - Indaguei; curiosa.
'Sou espírita! Sabe, Angélica, o Espiritismo nos dá muita compreensão da vida, faz
entender e aceitar os acontecimentos ruins, levando a compreender a bondade e justiça de
Deus. Não é uma religião de sofrimento, mas nos leva a entendê-lo. Aproveito essa lição,
sim, encaro minha doença como uma grande lição, me tornei mais humana, compreensiva,
tenho meditado e sinto Deus em mim.'
'E seus filhos?' - Perguntei.
'Precisam de mim, sei disso. Quem não necessita de mãe?
Mas meu marido é muito bom e eles têm duas avós maravilhosas, estarão protegidos.'
Fiquei com tanto dó de Eunice e de seus filhos que orei muito pedindo a Deus que ela
sarasse, se quisesse que me levasse em vez dela, não me importaria de morrer no seu lugar.
Ela com os filhos seria mais útil do que eu.
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Eunice ajudava a todos, dava consolo, orientava. Eu gostava dela, admirava-a. Saí do
hospital deíxando-a mal. Quando retornei, uma enfermeira me contou que ela havia
falecido, serena como viveu. Chorei, senti falta dela.
Márcia ficara daquela vez no leito ao meu lado, tinha dezesseis anos e também estava com
câncer. Recebeu só uma visita, a da assistente social do seu internato. Ela era órfá, estava
numa instituição para menores. Ficava mais tempo no hospital para receber os cuidados que
não teria onde morava. Ouvi-a chorar baixinho, indaguei o porquê, ela respondeu:
'Estou com medo!'
'Quer que eu aproxime minha cama da sua e segure sua
mão?' - Perguntei.
'Quero!'
'Não chore, Márcia, você irá sarar' - consolei-a, segurando sua mão.
'Talvez sare, mas quem se alegrará com a minha recuperação? Não tenho ninguém.'
'Você se alegrando não é o suficiente? Terá ainda sua
família.'
'Logo terei de sair da instituição, preocupo-me com o que fazer, com quem ficar. E se não
tiver sarado? Mas a assistente social me afirmou que a instituição me abrigará até que eu
sare. O hospital faz todo o tratamento' - falou ela.
'Não tem amigos? Não conhece ninguém fora de lá?' - Perguntei.
'Só você, as enfermeiras e os médicos. Tenho amigas lá, mas elas não têm como vir aqui.
São sozinhas como eu. Não importo em sarar, talvez seja melhor morrer. Você tem medo
da morte?'
'Não sei, mas não quero morrer' - respondi.
'Sabe, Angélica, às vezes a solidão dói mais do que o
tratamento.'
Márcia dormiu e eu fiquei pensando no que ela disse: 'a
solidão dói mais...' dei graças por ter afetos.
Morte, é estranho você pensar nela, pensar que esse
corpo que cuidamos, higienizamos, irá ser pó. Não havia
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pensado nessa possibilidade até me ver em perigo, ter uma doença que poderia ser fatal. E
pensar que irá acontecer é confuso, nisso invejava os espíritas, eles pareciam ter esse
entendimento. Resolvi não pensar nela, como se não pensar afastasse essa possibilidade.
Mas tudo é vida e comecei a fazer planos, projetos, coisas que iria fazer logo que sarasse.
Lucinha estava com leucemia, tinha só oito anos, chorava, chamava pelos pais, não queria
tomar injeção. Ao escutá-la tinha vontade de chorar, também não queria tomar a injeção.
Mas era adulta ou grande para fazer não valer minha vontade, chorava baixinho cobrindo o
rosto com o lençol. Lucinha também morreu. E eu estava no hospital quando isso
aconteceu. O choro dolorido de sua mãe me fez calar, era um choro tão sofrido que fez
silenciar a todos. Tinha muito que meditar ali, creio que todos os que estão internados têm
motivos para pensar na vida e na morte.
Uma vez, encontrei no hospital, na enfermaria ao lado, a masculina, um senhor que estava
revoltado, dizia blasfêmias, xingava, era mal-educado. Tinha cinqüenta e quatro anos.
Soube porque dizia:
'Só tenho cinqüenta e quatro anos, como morrer? Maldita doença!'
Não aceitava conselhos e evitava a todos. Irmã Beatriz, uma freira, pedia para que se
calasse, ele só fazia quando ela ordenava. Quando ele quietava todos suspiravam aliviados.
Irmã Beatriz entrou na nossa enfermaria para uma visita, logo após ter ordenado que se
calasse; nos vendo assustadas, falou, animando-nos:
'Vamos orar, por favor não entrem na vibração de revolta desse senhor. Deus sabe o que
faz! Depois temos tido muitas curas, mais da metade de nossos doentes têm se curado.
Nada de desânimo! Pai nosso...,
Fiquei pensando no que Irmã Beatriz dissera, sabia que
não era verdade, alguns saravam, mas a maioria morria.
Vendo-me preocupada, ela carinhosamente veio até a mim.
'A revolta contagia! Não se deixe abater, minha filha. Seu
tratamento tem dado resultado.'
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Ninguém gostava de cuidar do senhor revoltado, faziam
porque eram obrigados. Concluí: ele sofre mais.
Orava muito, enquanto estive no leito no hospital e em
casa, a prece me confortava, esforcei-me para ser otimista e
me queixar menos.
Não encontrei mais com aquele senhor, a enfermeira disse que ele voltara mais uma vez,
queixou-se do atendimento
e foi para outro hospital.
Cada pessoa doente que via no hospital parecia ser eu, identificava-me, sentia o que eles
sofriam, uns mais que eu. Chorava junto, fiz amizades, tínhamos muito em comum para
conversar, éramos esperançosos. E o tratamento não foi fácil. Lembrava de tudo, mas
recordações ruins não devem ser cultuadas, tinha de esquecer, porque o tratamento acabara,
e segundo os médicos, com êxito. E eu não vou pensar mais sobre isso, minha doença ficou
no passado e ele passou...
Estava internada quando papai com meus irmãos mudaram para cá. Papai estava tão
contente, tão entusiasmado!
'O lugar é lindo! Teremos o mar, as montanhas e sossego.
Comprei móveis novos, a casa é grande. E você, minha filha,
terá um quarto só para você.'
Gostei de ter mudado, não sentiria falta de nada, amigas estavam afastadas, César estava
namorando outra, as colegas de escola haviam se formado no ano anterior, muitas passaram
em cursos superiores, outras faziam cursinho e eu ainda teria de acabar o segundo grau.
Depois, era sempre desagradável encontrar conhecidos, que me olhavam com dó, vendo-me
como futura defunta ou, piedosos, tentavam me animar. A maioria queria saber do
tratamento, de resultados. Não entendiam que eu não queria falar sobre a doença. Pelo
menos ali, ninguém me conhecia e nem sabia o que acontecera comigo.
Que mudança! Espero que esta, desta casa, seja a
última!"
Suspirou e se pôs a arrumar seu quarto.
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Osvaldo
O vulto que sentara junto de Angélica e escutava seus pensamentos, suas lembranças, era
Osvaldo, um desencarnado que vivia ali. Quando a mocinha levantou da poltrona, ele
enxugou as lágrimas que corriam pelo rosto.
"Que coisa! Que tristeza! A Carequinha é assim por doença ou pelo tratamento dessa
doença horrível! Coitadinha! Olhando bem até que não é feia! E eu ri dela! Está magra, mas
é bem feita de corpo, tem os lábios bem desenhados, o nariz pequeno e os olhos são lindos,
são como duas jabutia bas, pretinhos. Essa eu não atormento! Não assombro! Não mesmo!
Está doentinha! Pensa que sarou, mas dessa doença ninguém sara. Ficará mais doente até
morrer. Aí será como eu! é tão estranho, morre-se tão fácil!"
Saiu do quarto, sentou-se num canto de uma das salas e
se pôs a pensar, a recordar:
"Fique aqui! Fique para sempre!'
Malditas palavras que me prendem, estou aqui há muitos anos, nem sei dizer quanto tempo,
e não consigo sair. Gosto da solidão, as pessoas me incomodam, reclamam demais, me
perturbam. Se tenho de ficar aqui, que eu fique sozinho. Tenho de expulsar essa família
daqui como fiz com as outras.
Recebi os impactos, dois tiros certeiros, depois o pesadelo, demorei para sair daquela
maldita madorna e me vi sozinho nessa casa, que parecia abandonada. Grande parte dos
móveis sumiu, a decoração da casa era muito bonita,
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tapetes vermelhos, estofados vistosos, muitos vasos com flores, cortinas de veludo, a casa
sempre estava linda; Leda tinha bom gosto.
O mato em volta da casa estava alto, o jardim desapare ceu, não tinha mais os canteiros
floridos. Estava muito triste, abandonado daquele modo. Foi um período muito confuso,
não sabia o que fazia ali sozinho, dormira muito, mas tinha horror em fazê-lo, pois sonhava,
ou melhor, tinha pesadelos com aquelas cenas trágicas que queria esquecer e não conseguia
Andava pela casa e em sua volta com dificuldade e fui melhorando. Um dia, estava
dormindo quando acordei com um barulho, eram uns trabalhadores carpindo o jardim.
'Até que enfim alguém para limpar. Vou ajudá-los!' - Ex clamei, animando-me.
Mas quando comecei a ajudar, os ingratos saíram cor rendo, largaram até as ferramentas.
'Bando de preguiçosos!'
Isso ocorreu mais duas vezes, parecia que não queriam
minha ajuda.
'Já sei - concluí -, eles devem pensar que eu também
matei a menina, a Fatinha, mas eu só assassinei a Leda, que
mereceu. Todos sabiam que ela não prestava'.
Tentei falar com eles, com os trabalhadores, explicar que não queria fazer mal a eles; mas
foi pior. Fiquei com raiva, deveria ser como bicho ou monstro para eles terem medo assim
de mim. Eles não acreditavam em mim, achavam e até hoje todos pensam que matei a
garotinha. Mas não iria fazer isso, não fiz, era tão bonita a filha de Leda.
Quando os trabalhadores foram embora correndo, fiz
um juramento:
'Ingratos! São uns ingratos! Não os ajudo mais! Não
mesmo.'
E cumpri a palavra. Mas não era preguiçoso, sempre trabalhei, desde pequeno, e gostava,
queria fazer alguma coisa e não conseguia. E o jardim estava um mato só. Por mais que
tentasse, não conseguia carpir e nem fazer qualquer trabalho. Tantas vezes tentei varrer a
casa, limpá-la, e ela
23
continuava suja. Deveria ser praga do senhor Irineu, o dono da casa, que me ordenou ficar
ali, e foi embora e nunca mais voltou.
Fiquei tempo sem ver ninguém, nenhuma pessoa veio aqui, aprendi a gostar da solidão, só
que pensava muito. Como mudei os acontecimentos, sempre achava um final feliz para
mim, senhor Irineu morria, Leda dizia que me amava, ficava comigo e éramos felizes. Mas
a realidade sempre me despertava de modo cruel, tudo aquilo aconteceu e eu estava ali, só e
infeliz. Não gostava de recordar, mas o fazia como um castigo, um terrível e interminável
castigo.
E os anos foram se passando, não sabia determinar quantos. Resolvi vigiar o local e estava
sempre atento, até os garotos que vinham xeretar ou em busca de frutas do pomar eu
enxotava, e era uma correria. Como ria e me divertia, queria que viessem mais vezes, mas
eles se assustavam, tinham medo do assassino. Isso me irritava, não tinha matado a garota,
só Leda, meu grande amor.
Fiquei muito sozinho, os dias eram intermináveis. Quando não se faz nada, o tempo demora
a passar. Enquanto ficava recordando, pensando, sofria, sofro... Mas me acostumei e não
queria compartilhar a casa com ninguém.
Lembro bem do dia em que dois homens vieram de
carro, entraram no jardim e comentaram:
'Essa história de assombração é invenção! Com o as pecto desta casa, qualquer um se
assusta.'
'Herdei do meu tio essa propriedade, vou arrumá-la para
alugar. Amanhã mesmo virão os homens que contratei, limparão o jardim, o pomar, e o
melhor, aterrarão o buraco.'
'Isso é bom, do lado direito o penhasco é perigoso!' - Comentou o primeiro que falara.
'Modificando o local em que houve o crime da menina
mudará o aspecto e o falatório acabará. Comprei caminhões
de terra para aterrá-lo - falou o que herdara, o novo dono.
'Ficará caro.'
'Dá pena ver isso abandonado.'
Fiquei só ouvindo, curioso. Achei interessante aterrar aquele lugar perigoso, cheio de
pedras, e havia só uma trilha
24
A Casa do Penhasco
para passar. Aquele lugar me dava arrepios, quase não ia lá, não gostava, mas às vezes era
impulsionado a ir, de cima olhava o buraco, e foram muitas as vezes que chorei, parecia
ainda ver Fatinha caída com seu pijama cor-de-rosa, lá esti cada, morta. Achava aquele
lugar horrível e aprovei a idéia de aterrá-lo. Sem o buraco não iria mais ver aquela cena
macabra. Resolvi só ficar observando, sem fazer nada.
Mas foi aí que percebi que as pessoas não me viam, elas passavam por mim ignorando-me,
cheguei pertinho de umas e nada, realmente elas não me enxergavam e eu era a
assombração tão falada. Por algum motivo que eu desconhecia estava invisível e,
dependendo da pessoa que estava ali na propriedade, eu conseguia fazer barulho, assustar.
Fiquei muito triste, talvez tivesse morrido e nem percebido. Nunca soube direito o que
acontecia quando a pessoa morria, não acreditava no inferno e achava muito boba a idéia de
no céu não ter de fazer nada, mas nunca pensei em morrer e ficar assim como fiquei, sem
fazer nada e não estar no céu, ser um assassino e não ir para o fogo do inferno. De qualquer
modo estava sendo castigado, fiquei ali preso no local do crime e muito infeliz.
Os trabalhadores vieram, eram muitos, começaram a descarregar caminhões de terra,
roçaram o mato, tiraram a hera, a folhagem das paredes da casa; pintaram, consertaram, e
eu quieto, só olhando.
Achando muito chato todo aquele movimento, resolvi ir embora, mas não conseguia sair da
propriedade. Embora nada me prendesse, sentia-me preso, não conseguia passar além do
jardim; com esforço dava uns passos pela estradinha, era atraído de novo para a casa. Todas
as vezes que tentava, escutava a voz irada do senhor Irineu: 'Fique aqui para sempre!'
Naquele dia tentei, como tentei! Queria ir mesmo, embora não soubesse para onde.
Esforcei-me tanto que caí e me arrastei pelo chão. 'Fique! Fique!' Tive de voltar,
aborrecido, chorei, mas nada adiantou. Tive de ficar.
Escutei um dia a conversa de dois trabalhadores que
pintavam a casa.
25
'Aqui aconteceu um crime bárbaro, um empregado matou o casal, donos da propriedade, e
depois se suicidou.'
'é mentira! é mentira!' - Gritei irado.
'Você ouviu? Parece que alguém disse que é mentira' - disse um deles.
'Ouvi, deve ser alguém lá fora. Vamos parar de falar
nesse assunto. Isso atrai espíritos. Vamos trabalhar!' - Falou
o outro.
'é melhor mesmo! Trabalhem, bando de mentirosos' - resmunguei.
Pensei em assustar todos e pôr para correr aqueles homens insensíveis, mas resolvi não
fazer, queria o lado direito do penhasco aterrado. Aquele declive me causava terror. O
trabalho terminou, ficou lindo, os banheiros modernos, tudo pintado, acabou o perigo,
plantaram árvores no aterro, fiquei satisfeito, fiquei de novo sozinho, todos foram embora.
A casa estava mais clara pela pintura, mais arejada.
Fiquei pensando e concluí que morri realmente e estava ali por castigo, que era bem
merecido, embora achasse que a culpa era também dos outros envolvidos. A única inocente
era Fatinha.
Andava de um lado para outro, vigiava tudo, sabia até das teias de áranhas. Uma vida de
ociosidade, mas castigo era castigo e este parecia interminável, para sempre, como disse
aquele maldito.
Veio uma família olhar a casa.
'Se essa casa foi assombrada não é mais. O proprietário disse que o falatório é porque
estava abandonada; na reforma muitos homens trabalharam aqui e não viram nada' -
disse o homem.
'Tomara que não seja mesmo, não gosto dessas coisas.
Para mim, morreu, deve ficar bem morto' falou a mulher.
'O aluguel está bom, a casa é grande e bonita' - comentou ele.
'Grande demais, tenho de arrumar uma empregada' - resmungou ela.
Examinei-os, O homem era gordo, a mulher miúda e
magra, achei graça e ri. 'Casal ci ou dez'.
26
Ela virou para ele e falou, brava:
'Não ri!'
'Não estou rindo!'
Mudaram. Tinha o casal dois filhos pequenos. Não gostei deles, o homem era metido,
orgulhoso, achando que resolvia tudo. E o mais interessante é que quando eu me
aproximava dele, recebia força e fazia os objetos se mexerem, fazer barulho, e me divertia
assustando-os.
Agüentei os homens trabalhando. A noite paravam e iam embora, mas aqueles moravam
aqui, isso não, nessa casa quem morava era eu, só eu e não queria companhia. Então fiz um
plano para expulsá-los daqui e comecei a atormentá-los. Preferia a noite, que é mais
assustadora, para fazer barulho. Só não mexia com as crianças, não sou covarde, elas eram
pequenas. Depois tinha medo de que, assustadas, fizessem como a outra, a Fatinha. Mas
tudo que acontecia naquela casa, a chata da mulher punha a culpa em mim. Se o menino
chorava, se tinha dor, era eu. Um dia consegui puxar o cabelo dela; ri bastante, achando
bem merecido.
Era à tardinha, estavam sentados na sala. Ela comentou:
'Não estou gostando dessa casa e quero me mudar. O aluguel é barato, muita esmola, o
santo desconfia. Por esse aluguel irrisório, só podia ter algo atrapalhando. Ela é real mente
mal-assombrada. Não há explicação para os barulhos, objetos caírem e as risadas que são
um horror. Deve ser o espírito do assassino.'
'Também não estou sentindo-me bem, nessa casa fico muito fatigado e triste. Eu, que
sempre fui alegre. Tenho pensado se não é mediunidade que falam que eu tenho. Não
quero mexer com isso, não sei por que essa faculdade não é dada a quem quer. Dizem que
eu sou sensitivo, que posso ajudar outras pessoas, mas não quero - falou ele.
'Se é sensitivo, ou se essa sua mediunidade é forte, por
que não manda nesse espírito? Deve ser um demônio esse
assassino!' - Expressou ela.
'Sou mais sensitivo mas não sei fazer isso! Não aprendi
nem quero aprender. Que esse assassino pare de encher e vá
para o inferno, que é o lugar dele' - falou autoritário.
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Que desaforo! Resolvi dar uma lição naquele gordo inso lente. Olhei, concentrei-me no
relógio que estava em cima de um móvel e ele foi mexendo, até que caiu. Ri, dei minhas
gostosas gargalhadas. Os dois se assustaram e minha risada ecoou pela casa. O garotinho
pediu:
'Faz mais isso, papai, estou gostando.'
'Eu não fico aqui nem mais um minuto. Não durmo mais
nessa casa. Maldita mil vezes essa assombração!' - Falou a
mulher.
Pegou as crianças e o gordo foi atrás dela. Entraram no carro e foram embora apavorados.
Achei graça e ri até cansar. Mas sem o gordo minha risada não era ouvida pelos que
tinham o corpo de carne. Fiquei satisfeito, meu plano deu certo, expulsei os intrusos.
Depois de dois dias o caminhão de mudança veio buscar os objetos deles. Fiquei quieto
num canto, afinal o casal fez o que eu queria, foi embora, e eu não quis atrapalhar o pessoal
da mudança. Um dos carregadores comentou:
'Nunca vi uma mudança assim. Parece que saíram correndo, largaram até comida na
mesa.'
'Dizem por aí que foram assustados por um fantasma, saíram de tarde, foram para um hotel
com a roupa do corpo. Ninguém aqui na cidade quis fazer a mudança, aí nos contrataram
de longe. Espero que o senhor fantasma, isto é, se realmente ele existe, permita que
façamos a mudança em paz. Afinal estamos trabalhando!'
Assim era mais fácil, gostava de respeito, e fiquei obser vando. E me livrara do casal*'oi' e
era isso que importava.
Novamente a casa ficou abandonada, o mato cresceu
e eu fiquei anos sozinho.
Um dia, um senhor bateu palmas. Fui ver e me defrontei
com um homem que olhou para todos os lados e disse alto:
'Senhor... não sei como chamá-lo, fantasma, assombração... Desculpe eu vir assim. Vou
explicar: me chamo Olegário, tenho família, mulher e três filhos, estou desempregado e
estamos passando necessidade. O único emprego que arrumei foi na imobiliária para carpir
e arrumar esta casa.
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Por isso peço permissão para fazer meu serviço sem ser assombrado, pois tenho medo. Se
não precisasse tanto, não viria, mas tenha dó de mim, deixe-me trabalhar em paz.'
O homem, o Olegário, falou com sinceridade. Escutei, pensei e, já que pediu, resolvi deixá-
lo em paz e o fiz por dois motivos: porque fiquei com dó dele e queria que o terreno fosse
limpo. E assim Olegário passou a trabalhar, limpou tudo, até plantou umas flores e depois
passou a vir duas vezes por semana e até limpava a casa.
Como lastimei por não ver o mar, ficava tão perto... Só o via de cima da árvore, a que o
rapazinho, Henrique, descobrira. Quando estava com muita saudade, subia na árvore e o
via de longe. Talvez de cima da casa também pudesse ver, mas nunca subi.
Mar, como amava o mar! Desde pequeno gostei de sentar na areia e contemplá-lo,
observava as ondas desde sua formação até quando quebravam na areia. Depois, sempre
que estava triste, ia para perto, tomava banho nas suas águas salgadas e me acalmava. Mas
agora que sou morto, será que conseguirei me banhar? Acho que não. Mas só o contemplar
me bastaria. Como me divertia com os coleguinhas na praia, jogando bola, nadando!
Amigos, tinha saudades deles; quan do pequenos, os meninos me aborreciam, bastava eu
me de sentender com eles que escutava: 'Sua mãe o abandonou! Seu pai é um bêbado!' Isso
me doía. Ah, se eu pudesse sair daqui! Agora que sei que posso assustar as pessoas, ia dar
bons sustos neles. Como será que está o Tampinha? E o Sonrisal? Gostava de dar apelidos.
Eram bons garotos, estimava-os. Pensando bem, eu também os ofendia. Não devo levar em
conta brincadeiras de criança. Crescemos juntos e continuamos amigos. Sonrisal até que me
aconselhou a sair do emprego, não ficar mais perto dela, eu que não o atendi. Será que eles
pensam em mim? Certamente não falam sobre mim, não é interessante dizer que foram
amigos do assassino da casa do penhasco.
Novamente vieram me aborrecer, acabar com meu sossego. Mudou-se outra familia para
minha casa: uma senhora
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viúva e cinco filhos. Que pessoal esquisito, não gostei deles! Falavam e comiam demais,
resmungavam e brigavam, mas não havia ninguém para me dar 'aquela força' para que
fizesse mover objetos ou me escutar. Mas percebi que podia prejudicá-los de outra maneira:
se ficasse perto de um deles, a pessoa se queixava. Incrível, ela sentia o que eu estava
sentindo! Podia deixar nervoso qualquer um, e agi assim para fazê-los se mudar.
'Que dor no peito! Desde que nos mudamos para cá estou tendo essa dor. Aqui não tem
assombração, se tinha, deve ter ido embora. Assustou-se conosco!' - Falou um dos moços.
'Não gosto daqui, tenho tido sonhos estranhos, que
alguém me dá tiros no peito e fico com dor' - queixou-se
a moça.
'Vocês ainda saem, eu fico mais em casa e sinto muita tristeza. Também acho que não foi
bom termos mudado para cá. Que tal apressar a reforma de nossa casa? Quero voltar para
lá, sinto falta das minhas amigas e vizinhos, que não querem vir aqui me visitar, com medo
da alma penada' - falou a senhora.
Intensifiquei minha perseguição e os intrusos se mudaram, fiquei aliviado e eles também.
Fiquei sozinho de novo, só Olegário vinha duas vezes por semana. Era bom, tudo limpo e a
casa em ordem.
Agora, essa familia veio me incomodar! Primeiro veio o homem, Roberto, olhou tudo e dias
depois voltou com a mudança. Percebi logo que o menino, Henrique, tem 'aquela for ça'
de que eu preciso e planejo expulsá-los. Só que agora fiquei com dó da Carequinha, tão
jovem e tão sofrida. Nem teve raiva do namorado que não a quis pela doença. Ajudou
outros, quis morrer no lugar daquela mãe para que não deixasse filhos pequenos. Fazia
tempo que não via ninguém tão bom assim, ou nunca tinha visto. Boa... Será que minha
mãe foi boa? Queria pensar que sim, mas certamente não o era. Ela me abandonou, não me
quis, pelo menos era isso que papai falava: 'Sua mãe é uma vadia, nos abandonou, foi
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embora com outro, aquela safada!' Ela nunca mais deu notícias. Quando garoto, sonhava
com seu retorno, ela voltaria rica, de carro, me levaria com ela... Mas mesmo pobre a queria
ansiava por seus afagos, me chamando de filho. Mas ela nunca voltou...
Morávamos com vovó, mãe de meu pai. Ele bebia muito, trabalhava pouco, a vida era
difícil. Vovó só resmungava. Meu pai morreu num acidente, caiu na linha do trem; uns
dizem que se suicidou, outros que caiu por estar bêbado. Fiquei só com vovó, que me tirou
da escola e me pôs para trabalhar. Era mocinho quando ela morreu, fiquei sozinho no
mundo, trabalhei em muitos lugares, até que vim ser caseiro aqui e fiquei para sempre".
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Apavorando
Henrique
"Cansei de pensar, não tenho feito outra coisa nesta vida
a não ser recordar."
Osvaldo levantou-se e foi até a cozinha. Observou Nena,
a empregada, fazendo o almoço. Era esperta e trabalhadeira.
"Vou dar um susto nela!"
Esforçou-se para fazer cair a tampa das panelas que estavam em cima da pia. Nada. Foi até
Henrique, que brincava
com os cãezinhos, voltou rápido e pronto, derrubou as tampas.
Nena olhou de um lado para outro. Osvaldo riu, divertin do-se. Ela pegou as tampas e, sem
que ele esperasse, falou
autoritária:
- Sai de retro, satanás! Por Deus, não me tente! Creio em Deus Pai...
Fez o sinal da cruz e orou o Credo, uma oração católica.
"Eu, hein! Credo, cruz! Que mulher! Não precisa me enxotar assim... - Osvaldo saiu da
cozinha resmungando. - Não devo mexer com serviçal. Se ela for embora, arrumarão
outra e a família ficará. é uma empregada como eu fui. Pre ciso pensar num bom plano,
colocarei essa família para correr. é só ter paciência e me organizar direito. Se eu
conseguir apavorar um deles, unidos como são, se mudarão".
Ouviu-se barulho de carro, era Roberto que vinha almoçar e com ele estava Fabiana, que
voltava da escola. Angélica e Henrique vieram correndo. Todos se sentaram à mesa.
Osvaldo se pôs a espiá-los de um canto da sala.
32
- Estou muito feliz em tê-la conosco, Angélica. Aqui irá recuperar-se melhor. Gostou do
lugar? - Perguntou o pai.
- Sim, creio que sim, é bonito. Mas não é isolado?
- é perto da cidade, passa ônibus a cada meia hora na estrada. Logo fará amigos e poderá
convidá-los para vir
aqui - respondeu Roberto.
- Eu estou achando ótimo, trabalho sossegada, tenho espaço - expressou-se Dinéia.
- Pois eu não sei, estou achando a casa esquisita - falou
Henrique.
- Não venha você de novo com a história de barulhos e risadas - disse Fabiana. - Para
mim aqui está ótimo, está me fazendo bem. Sabe, Angélica, não tenho tido mais aqueles
sonhos ou pesadelos. E, desde que mudamos, parei com a terapia, com as sessões com a
psicóloga. Vocês sabem como eu sofria com aqueles sonhos, tinha pavor de dormir e tê-los.
E eles se repetem desde que eu era pequena. Sabem o que é mais estranho? A casa com que
sonho parece com esta. Verdade! Com algumas modificações, poderia dizer que o lugar é
este.
- Modificações? Como? - Perguntou Angélica.
- Não sei bem, meus sonhos são confusos, me dão medo, pavor mesmo, não gosto deles.
Sonho com uma casa grande, às vezes desço uma escada como aqui, mas com tapetes
vermelhos. Vejo uma porta entreaberta, não sei o que vejo lá dentro, mas é algo que me
apavora e aí corro. Alguém malvado corre atrás de mim, passo por um caminho estreito,
peri goso, à beira de um precipício. Olho para trás e vejo uma pessoa que eu sei que é má
quase me pegando, tento correr mais, tenho dor no pé, caio no buraco e acordo aflita. As
vezes desperto com meu próprio grito, outras coberta de suor. Em outros sonhos, chamo
por minha mãe, só que a mamãe é outra pessoa, ela não pode me acudir, estou sozinha com
o malvado, tenho de fugir, corro e estou de novo à beira do precipício, do buraco que tanto
medo me dá, e caio. Só que a casa tem heras na parede e o buraco muitas pedras, e eu sou
uma menina pequena e lourinha. Sinto, ao correr, o movimento dos meus cabelos
cacheados. Que Deus me dê a graça de não sonhar mais com isso, de não ter mais esses
pesadelos.
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- Escutamos muitas explicações: que Fabiana viu essas cenas num filme, que escutou uma
história que a impressionou. O fato é que muitas vezes acordou gritando e chorando -
falou a mãe.
- Virgíliio me disse que poderia ser lembrança de outra vida. Ele é espírita e acredita em
reencarnação - comentou
Roberto.
Osvaldo se encolheu todo num canto e balbuciou:
"Lembranças de outra vida! Pode ser! Só pode ser! Se morremos mas continuamos vivos, é
bem provável que nosso espírito nasça de novo em outro corpo. Por isso que essa Fabiana
me impressionou, sinto que a conheço, embora seja diferente fisicamente de Fatinha, parece
com ela ou pode ser ela! Se não for isso, como se explica esta aí sonhar com algo que
aconteceu bem antes de ela nascer? Meu Deus! Que coisa! Com essa mocinha também não
irei mexer, assombrar. E se ela for Fatinha? é melhor eu ficar longe dessa garota!"
Naquele dia, Osvaldo não teve ânimo para mais nada. Achava mais fácil assustar mulheres.
Estas, para ele, eram mais escandalosas, mas com as daquela família parecia mais
complicado. Tinha dó da Carequinha, a serviçal apelava, a dona da casa era distraída
demais, para tudo tinha uma explicação: se conseguia, após muito esforço, acender uma
luz, ela nem notava e até achava que tinha sido ela; se apagava, estava a lâmpada com
defeito; se fazia barulho, dava expli cação; quando notava ou ouvia movimento de madeira
ou animais correndo, as risadas, era alguém da família ou bichos fora de casa, da mata.
Com a Fabiana era impossível; agora, ao olhá-la, parecia que via Fatinha e isso lhe causava
mal-estar. Restaram o dono da casa e o moleque. Ficou uns três dias quieto, planejando, e
concluiu que teria de atormentar, assustar os dois homens da família se quisesse ficar livre
dela. Achando que dera "folga demais", resolveu agir e foi até eles, que estavam
almoçando.
Roberto pediu a Angélica:
- Filha, você não faria um favor para mim? Tenho de levar uns papéis na imobiliária e não
tenho tempo. Venha
34
comigo para a cidade e aproveite para conhecê-la, depois volte de ônibus, que ele pára na
estrada em frente ao caminho de nossa casa.
Angélica entendeu que o pai queria que ela saísse, que
passeasse e resolveu ir. Arrumou-se.
"Com peruca fica melhor, coitada da Carequinha!" - Comentou Osvaldo.
- Não sei por que, papai, parece que alguém tem dó de mim e me chama de Carequinha -
comentou Angélica.
- Quem faria isso? Filha, não se impressione. Você não é careca, está sem cabelos
temporariamente. Logo eles
crescerão lindos como sempre foram.
Angélica entrou no carro com o pai, observou que havia próxima da casa uma estrada que
atravessava o morro, um caminho de cascalho de uns duzentos metros. Esse caminho fora
aterrado porque havia declives dos dois lados.
"Antes - pensou a mocinha - deveria ser uma rocha
extensa como um ponto isolado apontando para o céu. Incrível como alguém teve a idéia
de construir uma casa aqui".
Ela olhou para trás, observou a casa, parecia uma pintura.
"Se não fosse a parte direita ter tantas árvores, essa casa
pareceria construída num pico de pedra, e não é por acaso
que se chama Casa do Penhasco!"
Entrando na estrada não avistava mais a casa, seu pai seguiu para a cidade. A estrada era
uma via vicinal, cheia de curvas, com muitas árvores e pedras, somente em poucos lugares
se via o mar, lindo e majestoso.
Angélica gostou da cidade, era pequena, com muitas
lojas, arborizada e com pessoas bronzeadas.
- Na época de temporada isso aqui fica movimentado - comentou o pai. - Vou deixá-la
aqui. Vá à imobiliária
e resolva essa questão para mim. Procure pelo Fábio.
A garota desceu, andou pelas ruas olhando as vitrines e
foi logo à imobiliária.
- Por favor, o senhor Fábio!
E logo veio atendê-la um moço que a olhou interessado.
Angélica não pôde deixar de observá-lo, era moreno, olhos
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esverdeados, cabelos bem curtos e um sorriso franco e cativante. Por minutos trataram de
documentos.
- Estão gostando da casa? - Perguntou ele.
- Sim, estamos. Ela é confortável e o lugar muito bonito - respondeu Angélica.
- Ainda bem - falou sorrindo Fábio.
- Por quê? - Perguntou ela.
- Por nada. Está calor, aceita tomar um sorvete?
A mocinha não soube o que responder, não o conhecia, mas não conhecia ninguém ali.
Achando que não tinha nada
demais, respondeu:
-Aceito!
Saíram da imobiliária, andaram poucos metros e entraram na sorveteria. Logo vieram
atendê-los.
- Muito bem! Aqui se é bem atendido - falou ela.
- Claro, sou o dono! - Exclamou ele sorrindo.
Conversaram saboreando devagar o sorvete e logo já sabiam o que interessava: eram
solteiros, não tinham com promisso.
- Como vai voltar para casa? - Perguntou Fábio.
- De ônibus - respondeu Angélica.
- Permita que lhe dê uma carona? Tenho de ir à praia do outro lado do morro.
Angélica aceitou, e quando chegaram, Henrique foi cumprimentá-lo e ficaram conversando
sobre o lugar, as belezas
da região.
- Vocês conhecem a gruta do morro? Não! Pois precisam ir lá! Vamos combinar um
passeio, levo vocês até a
gruta - falou Fábio, entusiasmado.
"Xi, esse aí está interessado na Carequinha. Mas se ele estiver mal-intencionado, que não se
aproxime dela. Resolvi defendê-la! - Osvaldo observou bem Fábio. - O cara parece ser
boa pessoa. Bem, ele que não se meta a engraçadinho".
O moço foi embora e os irmãos entraram. Osvaldo pensou, satisfeito, que seu plano estava
dando certo. Que a presença do menino, do Henrique, com a força que tirava dele,
conseguia fazer barulho e mexer objetos. E dias passaram e
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Osvaldo conseguia assombrar os dois, Roberto e Henrique. Assustava o mocinho e causava
arrepios no pai, divertin do-se com isso. Henrique começou a ficar impressionado.
- Pai, aqui é lindo, gosto da escola, já fiz amigos, mas não estou gostando da casa. Não
poderíamos mudar? - Queixou-se o garoto.
- Filho, você está impressionado pelos boatos de que esta casa é assombrada. Todos
gostam daqui, o aluguel está bom, você pode ter até cachorros, estamos acomodados.
Depois, se nos mudarmos, a multa é alta.
- Pai, não é impressão, aqui não me sinto bem, tenho uma sensação de solidão que dói.
Depois escuto risadas e fico apavorado. Se o senhor não quer se mudar, deixe então que eu
vá para a casa da vovó. Não acredita em mim? Tenho ouvido coisas estranhas...
- Acredito em você, sei que não mente. Vamos ter um pouco mais de paciência, isso deve
ter explicação.
Roberto não quis dizer ao filho que também estava impressionado com aquela casa, que
ouvia as risadas que o apavoravam. Tentava achar explicação para os barulhos que
escutava. Já achava que alugar aquela casa não tinha sido um bom negócio.
Passados uns dias, Henrique foi abrir a janela da sala. Ela estava difícil, dura. Quando
puxou-a com força, Osvaldo a empurrou e a janela abriu, batendo nos lábios do mocinho,
cortando-os. No vidro da janela, Henrique viu por segundos o rosto de Osvaldo. Apavorou-
se tanto que não conseguiu nem falar, ficou parado. Depois tentou ver mexendo na ja nela,
se era reflexo de algum quadro a imagem que vira, mas nada, não havia explicação.
Tremendo ainda, foi atrás de Nena para que ela fizesse um curativo.
- Henrique, precisa ter cuidado! Machucou, poderia ter quebrado os dentes.
- Nena, você já teve a sensação de ver uma pessoa onde não tem ninguém?
- Nunca tinha sentido, mas aqui já. Por vezes sinto como se alguém estivesse espionando.
é uma sensação ruim.
Henrique ficou horas pensativo.

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Fábio queria ver Angélica, ficou interessado, atraído por ela. Tirou uma cópia de um
documento já entregue e foi lá levá-lo. Conversou com os jovens e os convidou para levá-los
no domingo à gruta. Henrique aceitou, contente.
No domingo à tarde foram ao passeio. O lugar era muito
bonito, de uma rocha mais alta se avistava o mar batendo
nas pedras.
- Como aqui é bonito! - Exclamou Fabiana.
Ela e Henrique foram para o outro lado, e Fábio sentou-se perto de Angélica. Ela arrumou
o lenço na cabeça. Como ele estava caindo, tirou-o; seus cabelos estavam nas cendo,
estavam bem curtinhos.
- Angélica, você é muito bonita! - Disse Fábio, sincero.
- Mesmo com os cabelos curtos assim?
- Sim - ele sorriu e pegou na mão dela.
- Fábio, meus cabelos estão assim pelo tratamento de quimioterapia, estou sarando de um
câncer - falou a mocinha retirando a mão da dele.
Ela olhou para ele, que pareceu indiferente, como se não
tivesse escutado. Nisso os dois irmãos chegaram e o passeio
decorreu agradável.
Em casa, Fabiana comentou:
- Fábio está interessado em você. Vai namorá-lo?
- Não quero namorado! - Exclamou Angélica.
- Só porque César agiu daquele modo, você pensa que outros irão fazer igual? - Falou
Fabiana.
- Não penso mais em César, nem acho que agiu errado, é muito novo para ficar
namorando alguém doente. Só vou
namorar de novo quando tiver a certeza de que estou curada.
- Mas você está! - Afirmou Fabiana.
- Ai, ai, não agüento mais! - Gritou Henrique.
O irmão subiu correndo a escada. As duas irmãs, que estavam no quarto de Angélica, foram
ao encontro dele.
- O que aconteceu, Henrique? - Indagaram a duas ao mesmo tempo.
- Estava quieto na sala quando recebi um tapa com força nas costas.
- Quem bateu em você? - Perguntou Angélica.
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- Não sei! Só que bateram...
Ele levantou a camisa e as duas se espantaram, havia
nas costas dele uma marca avermelhada de uma mão grande.
- Henrique, pare com isso! - Exclamou Fabiana. - Não invente! Você quer mudar e
está usando os boatos para isso.
- Que boatos? - Perguntou Angélica.
- Que esta casa é assombrada - respondeu Fabiana.
- Mas por que quer mudar, Henrique? - Indagou a irmã mais velha.
- Gostava daqui. Não queria que nos mudássemos da cidade, gosto dela, da escola, dos
amigos, só que é verdade. Angélica, acredite em mim, tenho sido atormentado por uma
coisa que não sei o que é. Estou com medo!
Roberto e Dinéia, que estavam no quarto deles, vieram
ver o que acontecia.
- Papai, não durmo no meu quarto! - Falou o mocinho determinado e apavorado.
- Vou colocar um colchão no nosso quarto, você dormirá
conosco.
Eo pai foi no quarto do filho, pegou o colchão e colocou
ao lado da cama do casal.
- Pronto, filho, dormirá aqui até que não tenha mais
medo.
As três acharam estranha a atitude de Roberto, ele que sempre ensinara a não ter medo, a
não alimentar esse sentimento e enfrentá-lo para vencer, agora não falava nada, concordava
com o filho. Mas elas nada comentaram.
"Logo estarão mudando!" - Osvaldo vangloriou-se e riu.
Henrique acomodou-se e se pôs a pensar:
"Meu Deus, será que estou louco? Devo estar doente. Deve ser grave. Será que imagino
isso tudo? O que será que
eu tenho?"
Ao ver que os pais ressonavam, chorou. Seu choro foi
sentido, lágrimas escorreram abundantes pelo seu rosto.
"Prefiro achar que existe mesmo esse fantasma e que ele, por algum motivo, esteja fazendo
objetos se mexerem e que eu ouça suas risadas macabras. E se for assombração, por que
eu? Por que ele implicou comigo? Não tenho nada com ele.
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Não posso continuar assim. Já sou grande para ter medo a ponto de não dormir sozinho. Eu,
o homem da casa! As meninas estão lá dormindo cada uma no seu quarto e eu aqui, com
meus pais. Tenho vergonha, mas meu medo é maior. No meu quarto a luz acende, apaga,
portas do armário se fecham e se abrem. Já senti puxar meu lençol. Não durmo mais sozinho
Queria mudar dessa casa, ir embora daqui. Mas se mudarmos e não adiantar? Se estou
doente, o problema é comigo! Ele irá para onde eu for. Preciso pensar. Além do mais,
todos estão acomodados, gostando, não é justo que se mudem por minha causa, porque eu
quero. Fabianajá acha que eu invento tudo isso. Ainda bem que papai acredita em mim. Depois
existe a multa, eles não têm dinheiro para pagá-la. Estou sendo um problema para
todos. Tenho de dar um jeito!"
Acabou adormecendo. Acordou cedo para ir à escola e no intervalo foi à biblioteca e se pôs
a pesquisar sobre doenças mentais; identificou em seu caso semelhanças com
esquizofrenia*.
"Isso é grave! Será que tenho essa enfermidade? Não quero ter isso. Será que imagino tudo,
objetos não mexem nada, luz não apaga nem acende e eu acho que vejo? Que doença
estranha e como faz o doente sofrer!"
Teve vontade de chorar, mas se esforçou para parecer
natural e voltou para a classe.
Pensou muito e resolveu evitar de falar, de pensar sobre
doenças e achar mesmo que era um fantasma e se queixar o
menos possível, não queria ser internado como louco.
Henrique já estava se afastando das pessoas, os amigos se reuniam, conversavam e ele
preferia escutar, só dava alguns palpites. Também não conseguia prestar atenção nas aulas.
Estava tenso e nervoso.
No outro dia, Roberto conversou cedo com Olegário, que
continuava a vir duas vezes por semana cuidar do jardim.
* Esquizofrenia: termo que engloba várias formas clínicas de psicopatia e distúrbios
mentais. Sua característica fundamental é a dissociação das funções psíquicas, disso
decorrendo a fragmentação da personalidade e perda de contato com a realidade (N.E.).
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- Senhor Olegário, trabalha há muito tempo nessa casa?
- Sim, senhor, trabalho há anos.
- Nunca ouviu ou viu nada de estranho? - Indagou Roberto.
O senhor quer dizer assombração? Não, senhor, nunca vi ou ouvi nada de estranho -
respondeu o jardineiro.
- Você sabe o que ocorreu aqui? Lá no banco o pessoal já me avisou que esta casa é
assombrada e que ninguém
morava aqui há muito tempo.
- Se é assombrada eu não sei - respondeu Olegário -, mas desde que ocorreu o crime,
isso há muito tempo, ninguénl mora aqui por muito tempo.
- O crime? O que sabe sobre isso? - Perguntou Roberto.
- Não sei bem o que aconteceu, mas sei quem sabe.
A Rita, que foi empregada da casa na época do crime. Ela
era mocinha quando tudo aconteceu, agora já é uma se nhora, ela mora lá do outro lado. Se
o senhor quiser, lhe dou
o endereço.
Roberto anotou o nome da empregada, onde morava e
decidiu ir até lá, queria saber o que ocorrera na casa.
Henrique, à tarde, conversou com Nena.
- Você acredita em mim? Vejo a assombração. Bem, não sei o que é realmente.
- Menino, não sei se acredito em alma penada - falou a empregada.
- Seria engraçado se o fantasma tivesse pena como as galinhas - expressou o garoto,
rindo.
Osvaldo não achou graça.
"Quem tem pena é sua avó!"
- Quem tem pena é a avó!
Henrique falou, parou e olhou para Nena, que também largou o que fazia e olhou assustada
para ele.
- Por que disse isso, Henrique?
- Não sei, falei sem perceber. Que estranho!
"Rá, rá, rá! O moleque repete o que eu digo. Maravilha! Agora estou no caminho certo,
esse garoto irá fazer a família
se mudar, ah, se vai!"
41
Henrique foi brincar com os cachorros e Nena continuou
seu trabalho, pensativa.
"Esse menino não está normal. O que será que ele tem?
Está estranho!"
O mocinho estava triste, pegou os cãezinhos, acariciou-os, depois os colocou no cercado.
Um deles correu para um lado, então Henrique escutou um barulho e um ruído esquisito.
Quis correr, mas resolveu investigar.
"Preciso ter coragem, parar com isso, de ter tanto medo,
e ver o porquê do barulho."
Percebeu então que um dos cães chorava, uma tábua
caíra em cima dele. O garoto suspirou aliviado, tirou a tábua
e agradou o filhote.
"Quando estamos com medo, gato vira onça."
Ficou tempo arrumando o canil, brincando com os cachorros, distraiu-se, mais aliviado,
pensou:
"Creio que devo enfrentar o medo e verificar a procedência dos barulhos que escuto, talvez
ache explicação para
tudo isso. Bem, pelo menos nem tudo é inexplicável."
Roberto estava inquieto, em casa parecia que estava sempre vendo vultos, parecia ouvir
risadas, como também tinha visto objetos se mexerem. Aquela casa deveria ter algo e resolveu procurar a dona Rita, que Olegário recomendara para saber o que de
fato acontecera ali.
Foi à tarde, achou fácil a casa e foi recebido por uma
senhora que o olhou fixamente. Por momentos ele não soube
o que dizer, tossiu e por fim falou:
- Senhora, desculpe-me se a incomodo, é que moro na Casa do Penhasco e estou tendo
algumas dificuldades lá. Sei que a casa tem uma história e que a senhora talvez possa me
ajudar me contando.
Dona Rita o olhou novamente, ficou quieta por segundos
e após falou:
- Quem não tem história? Não sei se posso ajudá-lo, mas posso falar o que sei. Era moça e
trabalhava para o casal, o senhor Irineu e a dona Leda, eles moravam naquela casa.
Trabalhava lá também Osvaldo, que era caseiro e jardineiro. Quanto ao crime, ninguém
sabe o que ocorreu realmente
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naqueles dois dias trágicos, me desculpe, mas nem eu sei, só posso falar o que ouvi.
Trabalhei no sábado pela manhã e quando voltei na segunda-feira, encontrei-os mortos.
Fátima, a garotinha de cinco anos, caiu do penhasco, no buraco do lado direito da casa,
onde agora tem as árvores, é que lá foi aterrado. Ela estava lá caída, morta, a pobrezinha.
Na sala da frente os três mortos, o casal e o empregado. Foi muito triste! Gostava muito
deles, dona Leda era muito boa comigo. Os comentários foram diversos, cogitou-se que
alguém estranho entrou lá e assassinou todos, mas a polícia afirmou que dona Leda e a
menina morreram no sábado, e os dois homens no domingo, e tudo indicava que o senhor
Irineu se matou. O pai do meu patrão veio enterrar os três juntos. Os valdo foi sepultado
como indigente. Tiraram todos os móveis da casa e a trancaram. Ouvi dizer que a casa ficou
para o irmão do senhor Irineu. Ele até tentou alugar, reformou, mas todos têm medo. E isso
aconteceu há tanto tempo!
- Dona Rita, existia na casa trepadeira, uma planta que cobre as paredes de fora da casa?
- Perguntou Roberto.
- Sim, senhor, a casa tinha nas paredes heras verdes e estavam sempre podadas e bonitas
- respondeu dona Rita,
saudosa.
- A senhora acha que a casa ficou assombrada?
- Que tem assombrações? Bem, não sei, nunca mais fui lá, só escutei comentários, mas
em cidade pequena fala-se muito. Mas lá aconteceu esse fato tão triste, talvez um dos
mortos não tenha encontrado paz e esteja lá perturbando - respondeu dona Rita.
- Encontrar paz? Como se faz para ajudá-los a ter paz?
- Indagou Roberto.
- Quem sabe? Talvez aquela religião que conversa com eles, os espíritas.
- Sim. Obrigado, senhora.
- Espero que resolva esse problema. Se ele ou alguns deles estiverem vagando na casa, já
é tempo de terem so sego - disse dona Rita.
Roberto foi embora e então se lembrou do seu amigo
Virgilio.
43
Acontecimentos
De&
Quando Roberto chegou em casa à tarde, encontrou
Fábio conversando com a famliia. Após os cumprimentos,
ele explicou ao dono da casa.
- Senhor Roberto, vim aqui para ver se quer colocar telefone em sua casa. A linha passará
na frente, se quiser é
só puxar os fios e poderá ter telefone.
- Aceite, papai, será tão bom! - Pediu Fabiana.
- Não sei, vou pensar.
Roberto não queria assumir compromisso, talvez tivessem que se mudar. Era hora do jantar
e a visita foi convidada e aceitou. Fábio olhava muito para Angélica, que se sentia
incomodada. Após foram para a sala, conversaram. Ao se despedir, Fábio pediu:
- Angélica, você me acompanha?
Ela foi, estava inquieta. Ele falou:
- Angélica, não sei mais que desculpa dar para vir aqui e lhe ver. Deve ter percebido que
estou interessado em você.
Tenho chance?
- é que... - Angélica encabulou.
- Já entendi, desculpe-me.
- Fábio, não é isso, é que estive doente, talvez nem tenha sarado e...
- Já disse, esteve doente, não está mais - falou ele.
- Como pode ter certeza? - Balbuciou ela.
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- Eu sinto que está curada e a doença não é desculpa para mim.
- Tive câncer no útero, que foi extraído - falou Angélica, baixinho.
- Por que diz isso para mim? - Indagou o moço. Angélica entendeu, ele só estava
pedindo para namorá-la, e não para se casarem. - Sorriu. Ele pegou na mão
dela e a beijou.
- Estamos namorando?
- Estamos!
Quando entrou na sala, todos a olharam por causa da demora e por ela estar tão contente.
- O que aconteceu, Angélica? - Perguntou Fabiana.
- é que Fábio e eu estamos namorando.
- Legal, gosto dele! - Exclamou Fabiana.
- Eu também, e ele parece apaixonado por você. é só observar a cara dele de bobo
enamorado - comentou
Henrique rindo.
Todos riram, até Osvaldo ficou satisfeito ao ver a mocinha contente.
- Falei a ele de minha doença - falou Angélica.
- De sua ex-doença - corrigiu a mãe. - Mas, filha, por que fez isso?
Haviam combinado que lá não iam comentar com ninguém sobre a doença, para evitar
comentários que já a fizeram sofrer: "Será que irá sarar?" "E tão nova!" "Não poderá ter
filhos!" "O cabelo crescerá!", etc.
- Senti vontade de contar tudo ao Fábio - disse a mocinha, suspirando.
- Espero que ele não conte a ninguém - expressou Dinéia. Foram dormir e Osvaldo ficou
na sala, murmurou:
"Hoje não assusto ninguém, estou emocionado com a alegria da Carequinha."
No outro dia, Henrique ia subir a escada quando colocou
a mão no corrimão e sentiu como se tivesse colocado a mão
em outra muito gelada, grande e peluda; arrepiou-se, tirou
a mão, teve vontade de gritar, mas só gemeu. Assustou-se,
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ficou parado por segundos e após subiu a escada correndo, sem colocar a mão novamente
no corrimão. Fabiana estava no seu quarto. Henrique, não querendo ficar sozinho, foi para o
quarto dela.
- Oi, Fabiana, o que está fazendo?
- Arrumando o quarto - respondeu, sem prestar aten ção nele.
- Fabiana, como você está na escola? Já se acostumou mesmo?
- No começo senti falta de minhas amigas, mas agora me acostumei, as meninas são bem
legais. E tem o Leco, que
é o máximo.
Henrique teve de ouvir a irmã falar do Leonardo, o Leco, por quem estava interessada, tudo
era preferível a ficar sozinho. Só de pensar naquela mão, arrepiava-se. Ficou lá com a irmã
até serem chamados para o jantar.
Todos foram dormir, Roberto pegou o jornal para ler. Ficou pensando: "Tenho de tomar
uma atitude, não gostaria de mudar dessa casa e ter de falar a todos que ficamos com medo
dos fenômenos estranhos que aqui ocorrem. Estou com dó do meu filho, o coitado está
apavorado. Ser pai não é fácil, ter de tomar decisões da famliia parece às vezes complicado.
O fato é que eu também tenho me sentido mal nesta casa. As vezes me sinto exausto, como
se alguém absorvesse minha energia. Outras, sinto tristeza, como se estivesse sozinho,
engraçado isso, eu, sozinho! A sensação de não ser amado é tão forte que dói; outras vezes
sinto dor no peito, como a que Henrique diz sentir. As risadas são aterrorizadoras. Já
pensei muito e concluo que não é impressão. Li há tempos que existe a possibilidade de ler
na energia que envol ve objetos ou lugares os acontecimentos marcantes ocorridos com ou
neles. Parece que se chama psicomefria*... isso mes mo. Mas se aqui aconteceu um crime,
não é isso que vemos
*psicometria: mediunidade segundo a qual o médium, posto em contato com objetos,
pessoas ou lugares relacionados com acontecimentos passados, sintoniza se de tal maneira
com o clima psicológico em que esses acontecimentos ocorreram que se torna capaz de
descrevê-los (N.E.).
46
ou ouvimos. Então não deve ser isso. Henrique tem medo de estar doente, não creio, vejo e
ouço também. Mas se falar isso, vou apavorar todos. Acho que pelo bem da família
devemos nos mudar, tentar negociar a multa do contrato, afinal não aluguei casa com
fantasmas. Se meus amigos souberem disso, irão rir pareço um menino com medo. Se pelo
menos tivesse certeza de que esse fenômeno não nos prejudica. Prejudicando? Claro que
está! Meu filho está apavorado e isso começa a me preocupar. Pensei que aqui iríamos ter
o sossego tão almejado. Sofremos tanto com a doença de Angélica, gastei muito, fiz
dívidas, comprei os móveis à prestação e estou pagando o empréstimo. E aqui Dinéia está
ganhando bem. O que fazer?"
De repente pareceu ver a caixa de charutos se mover. Ele
não fumava, havia ganhado de um cliente aquela caixa e a
deixou em cima da mesinha.
"Fume! Fume! Quero desfrutar do fumo, faz tempo que
não trago!" - Insistiu Osvaldo.
Roberto pegou a caixa, teve vontade de acender um
charuto, mas se conteve.
"Não fumo e não é agora que o farei. Que vontade
estranha!"
Apreensivo, foi dormir sem acabar de ler o jornal.
Na escola os amigos de Henrique insistiram com ele para
serem convidados a visitar sua casa.
- Gostaríamos de ir lá, nunca fomos.
- Prometemos não bagunçar. Fala-se tanto dessa casa que estamos curiosos. Então,
podemos ir? -
- Henrique, ela é assombrada ou não? E verdade que a alma penada do criminoso está lá?
Ele matou uma menina
bem pequena.
- Não tem nada, é uma casa como outra qualquer - respondeu Henrique.
- Se não tem nada a esconder, nos convide.
- Está bem, espero vocês hoje à tarde. Podem ir de ônibus, ele pára na estrada -
concordou Henrique.
Os meninos se entusiasmaram e Henrique ficou preocupado. Voltou para casa pensativo.
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"E se o fantasma assustar meus amigos? Como expli car? Bem, posso dar algumas
explicações. Se uvirem risadas, digo que é uma gravação que fiz para assustá-los, se virem objetos se mexerem, falo que amarrei com linha e puxei. Posso falar que
fiz para
animar. é isso mesmo!"
Mas ficou apreensivo. No almoço falou a todos que os
amigos vinham. Dinéia pediu à empregada:
- Nena, faça um lanche para eles. Que sejam bem-vin dos, gosto da casa cheia, podem
passear por aí com eles.
Vieram doze, estavam curiosos, observaram tudo com atenção, foram ao pomar, comeram
frutas, brincaram com os cachorros, riram e conversaram, animados. Henrique fi cou tenso
o tempo todo, tentando parecer normal. Nena ser viu um lanche saboroso, os garotos
gostaram.
- Puxa, Henrique, que casa gostosa! Lugar bonito! Vocês estão bem acomodados aqui.
Que sorte!
- Parece tudo tão normal! A história da assombração é falatório de cidade pequena.
- Queria morar aqui!
Henrique sorriu ao escutar os amigos, suspirou aliviado.
Quando foram embora, pensou: "Ainda bem que o fantasma
não os assombrou."
Osvaldo ficou olhando tudo aborrecido e quieto. "Não me importo com essa molecada, eles
não moram aqui. Não sou palhaço para dar espetáculo. Quero assombrar os da casa. Ainda
bem que esses pestinhas foram embora. Como são alegres!"
Naquela semana, como todo primeiro domingo do mês, era o da visita que Nena fazia ao
irmão, que estava preso. Osvaldo ficou na cozinha observando-a, e quando ela se pôs a
pensar ele ficou escutando.
"Antonio logo será solto. Já sofremos tanto separados, é justo que fiquemos juntos. Como
iremos fazer? Será que terei de ir embora daqui? Já não sou tão nova para arrumar outro
emprego, depois de todos esses anos, tenho-os como minha família, faz onze anos que
trabalho para eles. Como me aven turar por aí sem emprego? Sei que para ele será mais
difícil,
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ninguém quer dar emprego para ex-presidiário. E eu quero tanto ficar com o Antonio.
Como dizer aos meus pafrões que menti esse tempo todo? No começo achei, quando vim
tra balhar para eles, que seria mais um emprego, e para que me aceitassem menti, dizendo
que Antonio era meu irmão, como também inventei o motivo de ele estar preso. Se não
fizesse isso, naquela época, ninguém me daria emprego. Eles acre ditaram e não checaram
se era verdade, e o tempo foi passando, eu fui gostando deles cada vez mais, eram, são
minha família, porque a minha mesmo nem conheci, meus pais me abandonaram. Fui bem
pequena para uma instituição, quan do saí, me arrumaram emprego de doméstica, mas lá
um dos moços, filho dos meus patrões, tentou estuprar-me, tive de sair e foi nesse momento
difícil que conheci Antonio e nos apaixonamos, aí aconteceu aquela desgraça, fugi com ele,
até que foi preso e já está há treze anos na prisão. Ainda bem que ele logo irá ser
beneficiado com a liberdade condicional. Já estivemos muito tempo separados, agora quero
ficar com ele. Mas como? Quero tanto continuar aqui, com essa família. Como farei para
me desmentir? Será que vão conti nuar confiando em mim? Meu Deus! O que faço? E tão
difícil contar a verdade!"
"Mas que empregada mentirosa! - Exclamou Osval do. - Enganou a todos, diz que é o
irmão que visita mas é
o amante! Isso não fica assim!"
No domingo, cedinho, Roberto levou Nena até a rodoviá ia. Ela foi cheia de sacolas com
roupas, doces, bolo, etc. Osvaldo ficou olhando, quis ir junto para ver o que a empre gada ia
fazer, mas não conseguiu sair, o máximo que ia era até o caminho.
"Que maldição! Queria tanto ir com ela. Nena vai visitar
um preso, queria ver como é uma prisão. Antonio está preso
como eu, só que ele recebe visita e eu não!"
Dias se passaram e Osvaldo estava impaciente, não era sempre que conseguia fazer
barulho, assustar os dois. Tentava e, quando dava certo, se divertia. Queria que eles se
mudassem para ficar só naquela casa, sua prisão, embora às vezes achasse que não era tão
ruim assim ter companhia.
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Estavam todos almoçando, Nena tomava as refeições com eles, era tratada como um
membro da família. Roberto tirou do bolso uma carta. Como a correspondência demorava
para ser entregue, ali o correio passava uma vez por semana, ia então para o endereço do
banco.
- Chegou uma carta para você, Nena, é do seu irmão.
"E agora que desmascaro esta mentirosa!" - Afirmou Os valdo. Se aproximou de
Henrique, que falou o que ele queria.
- Deixe-me ver! Engraçado, Nena, seu irmão não tem o mesmo sobrenome seu! Por que
isso? Você pode nos expli car? Será que não é seu namorado? Pelo seu jeito, é! Você
mentiu! Este Antonio é seu namorado!
Nena viu sua mentira descoberta, levantou-se e pegou
tremendo a carta.
- E verdade isso, Nena? - Perguntou Dinéia.
Fez silêncio por segundos. Nena começou a chorar.
- E verdade! Antonio é como se fosse meu marido. - Fa lou Nena, saindo da sala.
- Eu sinto muito... - Balbuciou Henrique, começando a chorar, e saiu também.
O pai foi atrás, a mãe o acompanhou, o almoço termi nou. O garoto sentou-se no sofá e
chorou sentido, Roberto o
abraçou.
- Papai, não agüento mais isso! Nunca ia ofender Nena, gosto dela. Fui indelicado, grosso,
a fiz chorar. Estou sendo sincero, não sei por que falei. Não sabia nada daquilo. E isso está
ocorrendo, falo coisas que não quero, vem forte, parece que estou impulsionado e falo.
Fez silêncio, até que Dinéia falou:
- Que coisa! Primeiro foi com Fabiana, os pesadelos, o tratamento; depois a doença de
Angélica, agora você. Devemos levá-lo a um psicólogo ou psiquiatra!
- Leve-me aonde quiser, eu topo! Faço qualquer coisa para ficar livre disso. Por Deus,
papai, vamos mudar! E vergo nhoso eu dormir no quarto de vocês, estou cansado, nervoso,
é só chegar em casa sinto como se tivesse dois buracos no peito, escuto barulho, vejo
objetos mexer. Eu estou sofrendo!
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- Meu filho, entendo você. Vamos ajudá-lo - consolou
Roberto.
Henrique saiu, foi para seu quarto triste e aborrecido. Osvaldo resmungou:
"Será que exagerei? Estou com dó do garoto; depois, a
empregada está se desmanchando em lágrimas."
- Roberto, Henrique está me preocupando. Será que é adolescência? - Indagou Dinéia.
- Não creio, Henrique sempre foi um bom menino. Dinéia, eu também tenho visto e
ouvido coisas estranhas nesta casa
e, como ele, não tenho me sentido bem aqui.
- Por que não me disse? - Perguntou a esposa, preocupada
- Para não a assustar. Que você acha de pedir ajuda ao Virgílio? Ele é espírita, nos ajudou
com a doença de
Angélica.
- Ele orou por ela, nos visitava sempre nos animando, mas agora é diferente. Vou falar
com o padre da cidade, es pere, Roberto, deixe primeiro eu pedir ajuda ao pároco. Vou hoje
mesmo.
Roberto concordou. Dinéia foi trocar de roupa para ir à cidade junto com o marido. Ele
ficou pensando no amigo. Conhecia Virgiio desde criança, cresceram juntos, moravam
perto, gostavam um do outro, freqüentaram a mesma escola, ele era leal e bondoso. Quando
moço passou a freqüentar o Centro Espírita, tornou-se religioso.Roberto não gostava de
falar sobre o assunto e o amigo não insistia, mas sabia que ele via pessoas que morreram,
conversava com elas e, segun do ele, o Espiritismo o ajudou muito. Virgiio era tranqüilo,
confiava nele.
Dinéia foi à igreja, observou tudo, era simples, pequena e muito bonita. Lugares de oração
sempre lhe davam calma; ajoelhou-se e orou, sentiu-se melhor. Viu uma senhora
arrumando o altar, foi até ela e pediu para falar com o padre. Esperou meia hora. A mesma
senhora a convidou.
- Por aqui, o padre irá recebê-la.
Após os cumprimentos, Dinéia foi logo ao assunto.
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- Senhor, sou católica, moro na Casa do Penhasco, lá no morro, e estamos passando por
dificuldades. Meu filho e meu esposo têm visto e ouvido coisas estranhas por lá, o menino
está apavorado. Gostaria que o senhor fosse lá benzer, sei lá, exorcizar a casa. O senhor irá,
não é? Porque, se não for, meu esposo vai chamar um amigo dele que é espírita.
- Na Casa do Penhasco... Mas a senhora já mudou há um bom tempo e não veio à missa.
- é que tenho estado muito ocupada - justificou-se Dinéia.
- Senhora - falou o padre -, não sei se posso ajudá-la. Já estive lá a pedido de uma
outra família. Não há nada de errado com a mansão, é impressão, talvez pelo tipo, pelo
lugar em que está a casa ou pela tragédia que ocorreu lá.
- Então o senhor não vai me ajudar? - Indagou Dinéia, indignada.
- Acho que é melhor seu esposo chamar o amigo espírita, afinal o Espiritismo mexe com
o demônio. Desculpe-me, se nhora, estou muito ocupado, espero vê-los domingo na missa.
Dinéia deu um sorrisinho forçado, despediu-se e pensou:
"Não quer nos ajudar e convida para a missa."
Outras pessoas aproximaram-se e ela se afastou, sen tida. Voltou de ônibus para casa.
Nena não sabia como agir, fez seu serviço normalmente após ter chorado por tempo. Queria
tanto contar a verdade! Imaginou muitas maneiras de fazê-lo e sentiu ter sido daquele jeito.
Não entendia Henrique, era tão educado, amava os três como se fossem filhos dela, cuidava
deles, Dinéia sempre trabalhou e as crianças ficavam por conta dela. Agora o me nino
Henrique estava mudado, desde que mudaram para aquela casa estava estranho, calado,
quase nem brincava com os cachorros. Algo estava errado, pensou ela.
Ninguém tocou no assunto. Foi como se não tivessem
descoberto, cada um estava envolvido em seus problemas,
que eram muitos.
Angélica só pensava em Fábio. Estava muito entusias mada com ele, o namorado tão
atencioso, carinhoso. Quanto mais o conhecia mais o achava inteligente, simples e, o mais
importante, ele parecia também enamorado. As vezes tinha
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a impressão de conhecê-lo há muito tempo, riam quando des cobriam interesses em
comum, gostavam das mesmas coi sas. Só que já não era indiferente à morte como alguns
meses atrás, queria sarar para estar sempre perto dele. Estava preo cupada. "Será que sarei
ou não?" - Indagava a si mesma. Mesmo não querendo pensar na sua doença o fazia.
Queria muito estar curada. Também a mocinha estava preocupada com o irmão, queria
todos bem e Nena estava incluída nesse desejo, gostava dela.
Fabiana não queria dar palpite, achava que se o problema era aquela casa, deveriam se
mudar. Achava-a estranha; de pois não gostava de pensar que ali houve um crime bárbaro.
Quanto a Nena, entendia-a por ter mentido, o fizera por medo de ser mandada embora. Não
queria separar-se dela, que considerava uma segunda mãe.
Diriéia estava com uma encomenda grande, tinha que trabalhar e estava preocupada com o
filho. Não sabia o que fazer, se o levava ou não para a casa de sua mãe. Mas se o fizesse ele
perderia o ano letivo. Será que ele estava doente? Seria sério? Sofrera tanto com a doença
de Angélica, ainda tinha medo de que o câncer surgisse em outro órgão, nem bem passara a
preocupação com um, vinha o outro.
Esperava resolver esse problema com Nena, não sabia por que ela mentira. Algo muito
sério deveria ter ocorrido para ela esconder a verdade esses anos todos. Não queria perdê-
la, gostava dela, estava com eles havia tantos anos, sempre leal, trabalhadeira. Se ela fosse
embora, teria mais um problema, ainda mais que a faxineira avisara que não vinha mais, era
a terceira que desistia.
Mesmo preocupada, Dinéia concentrou-se no trabalho.
Roberto não pensou mais no assunto, achou que Nena
poderia explicar, tinha muito o que fazer e estava muito preo cupado com Henrique.
Quando Roberto chegou para jantar, encontrou Henrique
parado, de pé ao lado de uma janela, no sofá livros abertos.
- Papai, amanhã tenho prova e não consigo estudar, acho que estou doente.
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- Não, filho, você não está doente, para tudo isso que está acontecendo deve ter
explicação. Reaja, não se deixe
abater. Vamos confiar, tudo voltará ao normal.
O jantar foi servido e Nena não se sentou a mesa. Roberto
indagou:
- Nena, por que não se senta conosco? Não quer jantar?
- é que... Não sei se devo - respondeu Nena, encabulada.
- Sente-se, por favor - insistiu Roberto.
Ela se sentou e Henrique falou:
- Desculpe-me, Nena, não quis ofendê-la. Não quis mesmo.
-Estamos com muitos problemas, que fique tudo como antes, depois resolveremos o seu,
está bem, Nena? - Disse
Dinéia.
Jantaram em silêncio. Logo após vieram Fábio e os ami gos de Fabiana, conversaram
animados na sala. Henrique ficou quieto, estava triste. Quando as visitas foram embora, as
duas os levaram até os carros. Fábio indagou à namorada:
- Está acontecendo alguma coisa com vocês? Henrique está tão quieto.
- Acho que é esta casa, Henrique insiste em dizer que vê e ouve coisas.
- E você, vê ou escuta? - Indagou o moço.
- Não, mas às vezes tenho sensações estranhas, como se alguém me chamasse de
Carequinha e risse de mim.
- Angélica, se seus pais quiserem mudar eu tiro a multa e arrumo outra casa boa para
Vocês.
Quando ela entrou em casa, os quatro estavam ainda
na sala, e Angélica comentou o que Fábio dissera. Henrique
falou, triste:
- Tudo por minha causa! Vou superar isso! Se todos gos tam daqui e se estão bem, vou
me adaptar. Tudo pode ser
impressão ou estou doente. Hoje vou dormir no meu quarto.
- Não, filho, eu acredito em você, não quero que sofra com medo. Dormirá conoscO, se
insistir eu irei para seu quar to, vou junto - disse o pai.
- Roberto - falou Dinéia -, telefone, por favor, para seu amigo Virgílio, peça ajuda a
ele, convide-o para vir aqui. Creio
que ele pode nos auxiliar.
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- Boa idéia - expressou Angélica. - Ele me ajudou tanto quando eu estava doente, me
animava, eu me sentia bem
quando ele me dava passe.
- Também aprovo, gosto dele, acho a Doutrina Espírita muito fraterna e verdadeira a
teoria sobre reencarnação. é muito triste e injusto pensar que se vive uma vez só aqui na
Terra - opinou Fabiana.
- Vou fazer isso. Amanhã mesmo telefonarei do banco
para ele.
Foram dormir mais esperançosos.
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Pela manhã, Roberto tentou falar com seu amigo Virgílio e não conseguiu, porque este não
se encontrava em casa; estava aflito para fazê-lo. Achava que ele, com seu conheci mento e
bondade, os ajudaria. Só o fez à tarde. Contou sem entrar em detalhes o que ocorria e pediu:
- Por favor, nos ajude novamente, venha nos fazer uma visita com a Silze. Aproveitará
para conhecer o local, descansar um pouco. Aqui é pacato e tem um clima muito bom, verá
como é bonito e como estamos com problemas.
- Daqui a vinte dias teremos um feriado que poderei emendar. Vou conversar com Silze,
telefono avisando se der para ir. Roberto, ore mais e peça para todos em casa orarem. Eu
vou fazer minhas preces daqui e pedir aos bons espíritos para ajudá-los.
E Virgílio o fez, na reunião daquela noite, da qual partici pava com outros companheiros no
Centro Espírita que fre qüentava; orou e pediu auxílio para os amigos.
Carmelo era um desencarnado trabalhador do bem e amigo de Virgílio, estava no plano
espiritual já havia algum tempo. Tinha ajudado Angélica quando ela estava doente,
aprendera a amá-la e queria bem a todos da família. Ao sa ber do problema, pediu ao
mentor espiritual da casa para ver o que ocorria e tentar ajudá-los. Foi dada a permissão e
Carmelo foi para lá visitá-los.
Logo que chegou, Carmelo entendeu o que estava acon tecendo. Viu Osvaldo, mas este não
o viu. Osvaldo tinha
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poucos conhecimentos do plano espiritual, via e agia como se estivesse encarnado, só veria
um outro desencarnado se fosse como ele ou se um bom abaixasse sua vibração. Carmelo
preferiu não ser visto por ele, isso facilitaria, por enquanto, seu trabalho.
Analisou o que estava acontecendo e traçou um plano de ajuda, se organizou e tomou
algumas providências. Orou e incentivou os moradores da Casa do Penhasco a fazê-lo.
Conseguiu, todos passaram a orar. E no domingo, quando reunidos, à noite, Roberto os
convidou:
- Virgílio nos recomendou que orássemos mais. Vamos fazer uma prece juntos?
Isso melhorou os fluidos do lugar. Enquanto oravam, Car melo deu passe em todos,
acalmando-os, concentrou sua ajuda em Henrique, não deixando mais que Osvaldo sugasse
as energias; com isso ele não pôde mais mexer objetos nem fazer barulho. Vigiava Osvaldo
de perto, também lhe dando energias benéficas que o faziam dormir. Ele passou a adormecer
muito. Com sono ia para um canto da sala e dormia. Resmungava sem entender o que
acontecia:
"Que preguiça, até parece que estou encarnado. Estou com muito sono, se estivesse no
corpo físico diria que estava doente. Que moleza! Pior que não consigo fazer nenhum
assombro. Desse jeito eles irão desistir de se mudar. Vou dor mirde novo!"
nena estava quieta, conversava só o essencial e começou, a pedido de Roberto, a orar
mais. Estava mais calma, porém muito preocupada, sabia que logo iria ter que contar a
verdade e temia a reação de seus patrões.
As garotas também passaram a fazer mais preces. Henri que sentiu-se melhor, mais
disposto e se pôs a estudar, estava atrasado na escola e queria se recuperar. O casal
aguardava esperançoso a chegada do casal amigo.
Para melhor ajudar, Carmelo soube de tudo, quem eram os envolvidos nos acontecimentos
ocorridos ali no penhasco, onde estavam e o porquê de Osvaldo estar ali. Assim ficou
conhecendo a história real dos ex-moradores da Casa do Penhasco.
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Irineu, o antigo proprietário, era jovem quando conhe ceu Leda e apaixonou-se por ela. Ele
era de uma família rica, seus pais tinham uma fábrica de produtos agrícolas e ele viajava
para vendê-los. Sentia-se feliz. Conheceu Leda quan do foi a trabalho àquela cidade e
começaram a namorar. A família dele não queria o namoro, acharam-na vulgar e também
falavam muito mal dela na cidade. Mas ele teimou e, quando ela ficou grávida, eles se
casaram. Alugaram uma casa na cidade, onde passaram a residir. Irineu preferiu morar
longe de sua família, já que eles não gostavam de sua esposa, e continuou com seu trabalho
de viajante.
Ele comprou as terras do penhasco no morro, amou o lugar assim que o viu. Leda não
gostou, achou que ali ficaria isolada, mas acabou concordando e a casa foi construída,
demorou para ficar pronta, foram três anos e meio de cons trução, mas ficou como eles
planejaram, uma casa grande e muito bonita.
Quando se mudaram, a filha, Mana de Fátima, a Fatinha,
já era grandinha. Irineu queria mais filhos; Leda não, achava
que davam trabalho e que deformaria seu corpo.
"Tenho medo desse penhasco, é perigoso o lado direito
da casa, vou ter de vigiar bem a menina" - dizia Leda.
"Realmente é perigoso, vamos proibi-la de ir lá" - falou
Irineu.
De fato, do lado direito da casa havia um declive com muitas pedras. Irineu mandou fazer
uma trilha, um estreito caminho que o contornava. Achava perigoso, mas muito lindo.
Quando construiu a casa, quis preservar o penhasco. Andava muito por ali admirando a
paisagem. Conversou com a filhinha pedindo que não fosse lá e a garotinha, obe diente,
realmente não ia. Irineu continuava apaixonado pela esposa, fazia tudo para agradá-la,
gostava de ficar em casa, era carinhoso, às vezes ficava aborrecido por ela gastar mui to,
mas tentava justificar pensando que ela era jovem, que fora pobre e tinha vontade de
possuir objetos. Para atendê-la trabalhava muito.
Leda foi uma jovem rebelde e independente, deu muitos
aborrecimentos aos seus pais. Muito volúvel, ficou grávida
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por três vezes e abortou. Quando Irineu se interessou por ela, ambiciosa, tudo fez para
conquistá-lo. Pensou:
"é a oportunidade de acertar minha vida. Ele é rico e
poderá me tirar dessa pobreza.
Ficou grávida e contou a ele, chorando.
"Irineu, me entreguei a você por amor e estou grávida. Case-se comigo! Não abortarei,
nunca faria isso com um filho seu, já o amo como amo você. Vai me deixar ser mãe
solteira?"
"Casaremos. Amo você e o nosso filho!" - Decidiu Irineu.
No começo foi novidade, ela curtiu o casamento, a gravi dez e a filhinha, depois começou a
ficar entediada; frívola,
logo teve amantes.
Osvaldo foi uma criança que sofreu muito. Quando era pequeno, a mãe foi embora, não
agüentou o marido bêbado a surrá-la e ele nunca mais soube dela. Osvaldo passou a morar
com a avó, mãe de seu pai, que não lhe tinha amor nem paciência, estava sempre o
xingando e dizendo que a mãe o abandonara; isso o fazia chorar, sentido. O pai lhe tratava
com indiferença, mas mesmo assim ele o temia e o evitava. Um dia seu pai, bêbado, caiu na
linha do trem e desencarnou num triste acidente. A avó tornou-se mais amar gurada, tirou-
o da escola e o pôs para trabalhar. Passou por muitos empregos. Quando foi trabalhar para
Irineu, a casa ainda estava em construção. Fez de tudo por lá, ajudante de pedreiro,
carpinteiro e por fim cuidou do pomar e do jardim.
"Osvaldo - disse Irineu -, venha morar no penhasco, va mos arrumar este cômodo de
madeira e dormirá aqui, assim
impedirá que me roubem material de construção".
Achou bom, ali não pagaria aluguel nem água e luz, teria seu ordenado livre. Arrumou o
cômodo da melhor maneira e ficou satisfeito, estava bem acomodado. E para defender o
local ou para assustar os ladrões, Irineu comprou um revólver e o deixou com ele.
"Use só se for necessário, para assustar.
Osvaldo se sentiu mais tranqüilo, guardou a arma e
passou a fazer seu serviço, contente. Ambos, patrão e em pregado, estavam satisfeitos.
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mas ela nem iando a casa eu quartinho.
- Cõntinuará na cozinha, hor e sobrará sado da casa,
spondeu Os-
qui terei mais ver na gaveta
eda dava-lhe empregado a embora não valdo, encan sada por ele e
amava muito
iito da patroa,
seguir Leda e
n deles era um
ntes de ela se
mais velho e
mo o marido
onar a família mplorou para
e. Mas não se
o. Tinha ciúme
, apaixonado, udo, que tudo
Vera Lúcia Marinzeck de Carv
Via pouco Leda, sua patroa. Achou-a linc o olhava, mal respondia ao cumprimento. ficou
pronta, eles mudaram e ele continuou nc
"Fique conosco, Osvaldo - falou Irineu no quartinho mas poderá tomar as refeiçõ
facilitando sua vida. Assim se alimentará m mais do seu ordenado. Fará o serviço mais p
cuidará do pomar e do jardim"
"Aceito sim, senhor, e lhe agradeçd' - valdo, contente.
"Você sabe que viajo muito e ficando poi sossego, a casa é isolada. Vou guardar o rev
desse móvel, pegue-o se necessário."
Irineu gostava do empregado e este dele ordens, sorria alegre e quando percebeu que olhava
admirado, ela começou a provocá-? querendo nada com ele, nem para amante. tado,
começou a achar que ela estava inter logo estava apaixonado.
Fatinha era uma graça, obediente, meig o pai, que lhe dava muita atenção e carinho
Rita era a empregada da casa, gostava r que lhe dava muitos presentes.
Osvaldo, muito apaixonado, começou logo descobriu que ela tinha dois amantes. 1 jovem
da cidade que fora seu namorado casar. E o outro, de uma cidade próxima, € casado, os
dois eram apaixonados por ela e Osvaldo.
O amante, que era casado, quis abar por ela, o pai dele interferiu, foi visitá-la que
abandonasse o filho.
"Do seu filho eu não largo até que eu ei preocupe, não vou abandonar meu lar por E
Osvaldo, que estava escondido, ouviu t dela e estava vivendo um tormento.
Mas Leda logo enjoou desse amante. 1 queria que ela fosse embora com ele. Os
60
A Casa do Penhasco
sabia, apavorava-se, não queria que sua amada fosse embora. Leda terminou tudo com ele,
mas este homem, apaixona do, tentou se matar, ficou doente, largou a família e ela voltou a
ser sua amante.
Osvaldo sabia tudo que acontecia com Leda, pois a vigiava e sofria com ciúme. Resolveu
conquistá-la sendo agradável, dando-lhe flores, presentes. Ela recebia indiferente, ora
sendo gentil, ora rindo dele. Essa situação estava ficando insuportável para o jardineiro, que
só pensava nela e não sabia como agir, se declarava ou não seu amor, temia a resposta dela.
Sonhava que ao se declarar ela largaria o marido para ir embora com ele. Mas para onde? O
que fazer para sustentá-la? Leda ia continuar a ter amantes? Pensava muito e não chegava a
nenhuma conclusão.
Irineu às vezes desconfiava da esposa, mas se iludia,
estava muito apaixonado e ela o envolvia, levando-o a
pensar que era amado e que não deveria sentir ciúme.
Irineu viajou, ia retornar no domingo. No sábado, após
a empregada ter ido embora, Osvaldo viu que Leda estava
na sala sozinha. Procurando ter coragem, foi falar com ela.
"Leda, preciso lhe falar."
"Que intimidades são essas? Como entra na casa assim
sem pedir permissão? Senhora, para você sou dona Leda" - respondeu ela autoritária, mas
rindo, zombando dele.
Osvaldo ficou parado sem saber o que fazer. Ela estava muito bonita, toda arrumada, talvez,
pensou ele, fosse en contrar com um dos amantes. Ficou nervoso e com ciúme. Ela saía
muito para esses encontros, muitas vezes deixando a filhinha sozinha, e quando o marido
viajava, recebia-os ali. E certamente, concluiu ele, estava se preparando para receber um
deles. Vendo que o empregado não falava nada, Leda falou, debochando:
"Vamos lá, já que está aqui, diga logo o que quer."
"E que eu amo você, a senhora. Amo-a muito!" - Mur murou o jardineiro.
"E daí? O problema é seu, não fiz nada para conquistá-lo."
"Você tem outros amantes e eu..." - Falou Osvaldo,
gaguejando.
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"Papai não quer que vamos lá, mas eu sou grande, gosto e posso ir. Você não deve dizer
nada para ele."
E a garotinha não dizia, não comentava com ninguém. Mas naquele dia, como se passaram
horas, cansou de ficar brincando no quarto sozinha e achou que a mãe já deveria ter
voltado. Desceu as escadas, chamar
Osvaldo estremeceu com a vozinha da garotinha, mas não saiu do lugar. A menina viu-o e
teve medo. Ela o co nhecia, ele trabalhava em casa, mas espantou por vê-lo de cabelos
espetados, olhos avermelhados e roupas desarru madas. Assustou-se e falou:
"Mamãe! Vou com você no penhasco!"
Correu. Osvaldo ficou ainda por instantes parado, de pois repetiu o que a menina disse e
exclamou:
"Meu Deus! Fatinha foi para o buraco!"
Saiu da casa correndo e foi para a trilha que rodeava o
buraco. Quando ela o viu, correu mais. Osvaldo apavorou-se:
"Preciso alcançá-la, é perigoso' - pensou aflito.
"Pare, Fatinha! Pare! Cuidado!" - Gritou com voz rouca, assustando mais ainda a menina.
A garota chegou na trilha, estava ofegante, com medo,
queria gritar pela mãe e não conseguia.
Aí torceu o pé, mas não parou de correr, desequili brou-se e caiu no buraco, desencarnou na
queda. Osvaldo se desesperou, desceu e verificou: ela estava morta. Subiu e voltou a casa,
onde ficou na sala com o cadáver de Leda.
Estava atônito, pensou em fugir, mas não tinha coragem de deixá-la ali, amava-a, agora ela
era dele. Passou a noite confuso, desequilibrado, acabou dormindo e acordou com Irineu
chegando.
O dono da casa assustou-se vendo a casa aberta, pois era muito cedo. Entrou chamando
pela esposa e pela filha. Não tendo resposta, foi de cômodo em cômodo e quando viu
Osvaldo sentado numa poltrona, assustou-se:
"O que faz aqui?"
Aí viu a esposa morta. Estava gelada, com os olhos
abertos.
63
"Leda! Leda! O que aconteceu? Está morta! Osvaldo, o
que aconteceu aqui? Fale! Foi você?"
"Sim!" - Respondeu Osvaldo, baixinho.
"Miserável! Por quê? Onde está minha filha? Cadê Fati nha?" - Perguntou Irineu,
desesperado.
"Morta no buraco!"
"Assassino!" - Gritou o dono da casa.
Então viu a arma em cima do sofá, pegou e apontou para Osvaldo, que nem se mexeu.
"Morra! Você merece morrer! Fique aqui, fique nesta casa
para sempre! Assassino miserável!"
Deu dois tiros no peito dele.
"Como viver sem elas? Como? Quero morrer também!" - Falou desesperado e chorando.
Apontou para sua própria cabeça e atirou.
Na segunda-feira cedo, Rita, a empregada, encontrou os
cadáveres, saiu gritando e chamou a polícia.
Fatinha, ao ter seu corpo morto, foi desligada, levada para um socorro num educandário da
colônia do espaço espiri tual do lugar. Ficou apreensiva, sentia o pai chamar por ela em
desespero, não conseguia se tranqüilizar e nem esquecer sua fuga e queda. Embora
gostando do lugar, quis reencarnar para esquecer. A direção do educandário resolveu que o
melhor para ela seria a reencarnação, e ela voltou ao corpo físico, agora era Fabiana.
Leda desencarnou confusa e com espanto, nunca pensou que aquele empregado bobo e
apaixonado tivesse coragem para tanto. Foi horas depois que desencarnara que foi desli
gada do corpo físico por um grupo de arruaceiros e levada ao Umbral, onde se afinou e
passou a viver como moradora, como membro do grupo. Quando conseguiu entender o que
de fato lhe ocorrera, um deles lhe deu notícias.
"Sua filha desencarnou ao cair do buraco, onde foi pro curá-la. Seu esposo matou o
assassino e depois se suicidou."
"Onde está minha filha?" - Indagou Leda.
"Os bons a pegaram, foi levada para um lugar onde
não podemos ir porque não merecemos" - respondeu o
companheiro.
64
"Ela está bem?"
"Só pode estar, os bons, como o adjetivo diz, são bons
mesmo, adoram crianças e quando estas desencarnam eles
as socorrem."
Leda não quis saber de mais nada, não queria pensar na vida que teve encarnada, estava
bem para procurar encrenca. A filha era um anjo e anjos vão para o céu. Depois, foi ela
quem mentiu para a menina dizendo que ia na trilha para poder sair e encontrar com os
amantes, e Fatinha fora lá para procurá-la. Entendeu que teve culpa, mas não quis se
amargurar com remorso, resolveu esquecer tudo e aproveitar a companhia daqueles novos
amigos e as farras que faziam. O esposo, aquele bobo, que se danasse, e Osvaldo que ficasse
longe dela.
O tempo passou e Leda continuou com o grupo fazendo algazarra no Umbral e entre os
encarnados. Mas começara a se cansar e ultimamente pensava muito na filhinha e em um de
seus amantes, o mais velho, que orava muito por ela.
Irineu, como desencarnou por seu ato impensado, seu espírito continuou ligado ao corpo
físico. Viu de forma confu sa os policiais achá-lo. Ficou indignado com o desrespeito com
que era tratado. Com dores terríveis e achando que seu corpo não tinha morrido, queria ir
para um hospital ou morrer. Pensava, agoniado:
"Por que não morro?" Não quis acreditar no que os policiais diziam, que estava morto.
"Não é hora de brincar! Estou vivo, me socorram ou eu acabo de fazer o que fiz mal feito.
Matem-me!"
Só começou a duvidar que seu corpo físico estava vivo quando seus familiares chegaram,
trocaram sua roupa e o colocaram num caixão. Escutou choros e lamentações. Seu
desespero foi terrível quando o fecharam e ele ficou no escuro. Percebeu que colocaram o
caixão em outro local e escutou o barulho de ferramentas fechando o túmulo, depois o
silêncio. Que desespero! Que horror! Irineu, seu espírito, seu verdadeiro eu, ficou no corpo
e foi enterrado sem ser desligado. Só al gum tempo depois que uma equipe de socorristas o
desligou
65
da matéria morta e por afinidade foi atraído para o Vale dos Suicidas, uma região do
Umbral para onde vão os que mataram seu corpo físico. Sofre-se muito nesse local. Lá sen
tia dores, fome, frio e muita solidão, embora houvesse muitos por ali; mas todos estavam
confusos tanto quanto ele, por anos ficou perturbado, revoltado e desesperado. Mas o remorso
começou a despertá-lo para a realidade, maldizia-se por ter comprado a arma e por ter,
naquela manhã de domingo, agido precipitadamente e acreditado no empregado. Se sua
filha estivesse viva, teria ficado, com seu ato, sem pai e mãe. Mesmo se ela tivesse morrido,
agora ele sabia que ninguém acaba com a morte do corpo físico. Fatinha, como ele, estaria
vivendo de um outro modo. Pensava amargurado:
"Se não tivesse arma em casa, Osvaldo não teria matado Leda, nem eu a ele e a mim.
Talvez ficasse tudo numa discussão. Se não tivesse pegado aquele maldito revólver,
poderia ter amarrado o assassino, chamado a polícia e ele teria sido preso. Sofreria, mas
continuaria vivendo e quem sabe estaria feliz, o tempo passa e a gente esquece, só não
passa aqui nesse inferno. Tudo é preferível a isso que sofro agora."
E Carmelo, após o visitar, achou que ele poderia ser
orientado e socorrido.
Osvaldo, ao receber o impacto das balas do revólver, foi desligado violentamente do corpo
morto e ali ficou perturbado, tendo pesadelos. Quando melhorou, sentiu-se preso, ficou na
casa, já que seu quartinho fora destruído. Também ele maldizia ter pegado a arma. Pensava,
agoniado:
"Se não tivesse revólver na casa, teria só discutido com Leda, no máximo teria dado uns
tapas nela. Ela me man daria embora, eu teria ido, esquecido, e tudo estaria bem. Maldito
revólver!"
Após saber tudo, Carmelo traçou planos para socorrer
todos os envolvidos. Quando Virgílio e Silze dormiram, ele
1- O revólver não é culpado, é apenas um objeto. Mas tanto Irineu quanto Osvaldo têm
razão; se não houvesse arma na casa, tudo teria sido diferente. Haveria discussão, briga que
no máximo resultaria em agressão física. Mas por imprudência a arma estava lá e foi
indevidamente usada (Nota do Autor Espiritualj.
66
conversou com seus espíritos, informando-os de tudo. Como
também falou com o orientador espiritual da Casa Espírita
à qual eram vinculados e obteve permissão para que fizesse
o necessário para o socorro deles.
Carmelo continuou dando passes em Osvaldo, fazen do-o dormir, e em Henrique,
impedindo que lhe tirassem
energias.
Na casa não houve mais manifestações, não se ouviram mais barulhos nem objetos se
mexeram. Henrique conti nuava dormindo com os pais, e pai e filho estavam muito
assustados.
Virgílio confirmou sua ida e todos aguardaram ansiosos
a visita. Roberto tinha a certeza de que o amigo resolveria o
problema deles.
67
Orientando
Foi uma alegria a chegada de Virgílio e Silze na Casa do Penhasco. Os dois acharam o
lugar maravilhoso, mas logo perceberam que ali estava um desencarnado necessi tado de
orientação. Conversaram, trocando notícias, e Henrique disse:
- Virgílio, tenho estado perturbado, não estou nada bem. Queria saber de você se estou
louco.
- Claro que não, Henrique, você não está doente. Você é médium isto é, um paranormal
que tem sensibilidade para ver e ouvir pessoas que mudaram de plano, que tiveram o corpo
físico morto e que continuam vivos. Mas há algumas pessoas que fazem essa passagem e
por algum motivo perma necem em certos lugares, e pessoas sensíveis conseguem per
ceber. Isso não é um fato incomum, há médiuns por toda parte que passam pelo que você
está passando.
- Se não é raro, por que não sei de mais ninguém? - Perguntou o garoto.
- Você mesmo não escondeu isso? Comentou com al guém? As outras pessoas também
evitam falar, com receio de
serem chamadas de mentirosas ou doentes. Mas dentro do
* Médium: é a pessoa que pode serrvir de intermediária entre os espíritos e os homens.
Costumam-se chamar de médiuns apenas as pessoas que têm sensibilida de mais acentuada
para esse intercâmbio, mas, na verdade, todos somos médiuns, pois a influência dos
espíritos se exerce em nós de alguma forma, ainda que nâo a percebamos (N. E.).
68
meio espírita fala-se muito sobre isto, dando compreensão e entendimento sobre o assunto.
Pela ajuda dada a esses sensi tivos, que chamamos de médiuns, essas pessoas convivem
com esse fenômeno com naturalidade.
- é mesmo? Que alívio! Será que um grupo espírita me aceitaria? Quero que você me
arrume por aqui um lugar a que eu possa ir para conversar e aprender a lidar com tudo isso,
senão vou enlouquecer - falou Henrique.
- Certamente, Henrique - respondeu Virgílio. - Vou dei xar aqui alguns livros que eu
trouxe que falam sobre o assunto; leia para que você entenda, porque, quando conhecemos,
dominamos e acaba-se o medo.
Você também passou por isso? - Quis saber Angélica.
- Fui um garoto diferente desde pequeno, recebia recados de familiares mortos, que
chamamos de desencarnados. Ouvia-os e às vezes via-os, tinha medo, mas minha mãe acreditava
em mim. Embora tivéssemos outra religião, levava-me para tomar passes. Curioso,
fui me informando sobre o as sunto. Quando tinha dezenove anos passei a estudar todas as
religiões e gostei. Compreendi que como o nome já fala, religião significa religar, unir o
homem a Deus. Todas têm bons princípios, ensinam a fazer o bem e a evitar o mal. Mas ao
estudar o Espiritismo, maravilhei-me com as leis da reencarnação e a da causa e efeito.
Entendemos a justiça divina quando entendemos que temos muitas oportunidades de voltar
a nas cer na Terra para evoluirmos, e a de causa e efeito, que tudo que fizermos de bem ou
de mal teremos o retorno. E foi a Doutrina Espírita que explicou o que se passava comigo;
tornei-me espírita e sou muito feliz por isso. Foi num Centro Espírita que conheci Silze e
nos apaixonamos; ela é médium, trabalhamos juntos e temos educado nossos filhos no
Espiritismo.
A noite, após o jantar, Virgílio convidou a todos para
sentarem nas confortáveis poltronas da sala para fazer o
Evangelho no Lar*
* Evangelho no Lar: reunião feita para oração e estudo de O Evangelho Segundo
o Espiritismo. E realizada sempre no mesmo dia da semana e no mesmo horário
para facilitar a presença de amigos espirituais (N.E.).
69
- Nos Evangelhos estão contidos os ensinamentos de Jesus, nosso Mestre Divino, que
veio encarnar entre nós para nos ensinar. Vocês devem ter por hábito ler, estudar e uma vez
por semana reunirem-se para fazê-lo juntos. Um lê, co menta-se e após oram.
Silze abriu o Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, e se pôs a ler a página
aberta. Do capítulo quatro:
"Ninguém pode ver o reino de Deus se não nascer de novo", e no item vinte e cinco:
"Necessidade da encarnação".
Todos prestaram muita atenção. Fabiana comentou:
- Interessante! Tem lógica!
- Parece que sempre pensei assim. Ao escutar, senti conhecer o assunto - expressou
Angélica.
- Muito boa a comparação que se fez sobre o estudante. De fato, se cada encarnação é um
ano de estudo que se deve fazer, ativo é quem aproveita e não repete a lição. Vou gostar de
ler este livro! - Falou Henrique, entusiasmado.
Osvaldo estava na sala, viu pessoas diferentes, mas
sentiu tanto sono que nem pôde ver quem eram. Ficou sono lento, ouviu o Evangelho e
voltou a dormir.
Após alguns comentários, oraram. Todos gostaram e
prometeram que num dia da semana iriam reunir-se para
orar juntos e estudar o Evangelho.
Foram dormir. No outro dia, cedo, passearam pelas redon dezas, foram à cidade e à tarde,
como Virgílio havia combi nado com Roberto, reuniram-se numa pequena sessão de
desobsessão para conversar com os desencarnados envolvidos com aquela casa*
- Não costumo fazer isso, nos é recomendado que essas sessões sejam feitas nos Centros
Espíritas, que é o lugar apro priado. Mas pedi permissão aos mentores do meu centro e eles
recomendaram fazê-lo aqui e virão para nos ajudar.
Dinéia também quis participar. Reuniram-se na sala, em
volta da mesa. Virgílio orou, pedindo proteção:
* É recomendável que a desobsessão seja sempre realizada em um Centro Espírita por
causa da proteção e do campo vibratório que há nesse local. Excepcional mente, com
preparo e cuidados antecipados, a desobsessáo pode ser feita em outro lugar. Veja O Livro
dos Médiuns, capítulo 23 (N.E.).
70
- Estamos reunidos aqui em nome de Jesus e a Ele pe dimos proteção e amparo no
trabalho que iremos fazer. Permita, Senhor, que os bons espíritos estejam presentes e nos
orientem. Dá-nos a inspiração para melhor ajudar esses nossos irmãos que sofrem, auxilia-
nos para que possamos ser veículos desse socorro. Pai Nosso...
Carmelo e outros companheiros já haviam organizado
tudo. Buscaram Irineu no Vale dos Suicidas, no Umbral
Irineu sentiu-se aliviado ao sair do vale, começava
arrepender-se do seu ato impensado. Reconheceu a casa
chorou, depois ficou quieto como lhe foi pedido.
Leda estava vagando no Umbral; foi convidada para ir
à Casa do Penhasco por um trabalhador do grupo.
- Que vou fazer lá? Nunca mais voltei.
- Você precisa de orientação, faz tempo que desencarnou. Não quer mudar de vida?
- Tenho estado cansada, às vezes penso que o melhor seria esquecer tudo. Sinto-me
culpada! Está bem, vou com você.
Chegou a casa, olhou tudo, saudosa. Estava modificada; ao ver Irineu, apiedou-se. Seu
esposo estava mudado. Tinha um ferimento no ouvido que sangrava, estava sujo, fétido,
olharam-se por um instante e ambos choraram.
Osvaldo foi despertado e levado à outra sala, a que esta vam reunidos; ficou num canto.
Assustou-se ao ver os dois lá,
quis sair, foi impedido, então ficou quieto, observando tudo.
Aproximaram Irineu de Silze, que ficou ao lado dela, pró ximo a uns vinte centímetros. Os
trabalhadores do bem que
estavam ali para auxiliar ajudaram esse intercâmbio, para
a e
2 - Umbral é um local no Plano Espiritual onde ficam desencarnados que não merecem ou
não querem viver em planos elevados. Vale dos Suicidas é um local no Umbral para onde
vão os que mataram seus corpos físicos. Ao cometer esse ato, a primeira decepção é de que
continuam vivos, pois não conseguem matar o espírito, o verdadeiro eu. Há muitos vales
espalhados pela Terra. Lá a permanên cia não é eterna, mas temporária, e esse tempo
depende de muitos fatores; cada um fica o tempo que lhe é necessário. E um local de
sofrimento: quem transgride as leis divinas, desarmoniza-se e necessita harmonizar-se, e a
dor é uma grande lição. Mas em todos lugares há o socorro, irmãos ajudando a outros. E no
Vale dos Suicidas também há essa bênção, e os suicidas têm novas oportunidades de
auxílio e de reencarnação (N.A.E.).
71
que, por meio da mediunidade de Silze, ele pudesse sentir a energia de um corpo físico e
ouvir a orientação. Ele começou a falar emocionado e a médium repetiu:
- Quanto tempo se passou? Muitos anos? Século?
- Foram dois decênios e meio, meu irmão - respondeu Virgílio, que conversaria com
eles.
- Aqui tudo está modificado. Mas por que foram me buscar?
- Meu amigo, você não se arrependeu do que fez? Já sofreu muito, por que não pedir
perdão e socorro a Deus,
nosso Pai? - Falou Virgílio.
- Fui imprudente, errei muito, acreditei na pessoa amada que me traía, matei seu
assassino, não verifiquei o que ocorrera com minha filhinha e me suicidei. Quanta
desgraça! Não deveria ter feito isso, nem matá-lo e nem a mim - falou Irineu, e os
encarnados ouviam por Silze, que repetia palavra por palavra o que ele dizia.
- Você os perdoou? - Indagou Virgílio.
- Sim, porque eu também preciso de perdão.
- Amigo, pense em Jesus o abençoando e vamos ajudá-lo.
Irineu recebeu fluidos bons e um dos desencarnados que estava ali para ajudar fechou seu
ferimento*, acabando com a dor. Irineu suspirou aliviado e chorou; dessa vez seu choro foi
de agradecimento. Tranqüilo e agradecido, foi retirado de junto da médium.
Leda chorou ao escutar o relato de seu ex-esposo. Apro ximaram-na de Silze e pelo mesmo
processo conversou com
Virgílio.
- Você aqui, Carmelo! - Exclamou Leda, e Silze repetiu.
Após uns segundos ela continuou a falar
- Sinto-me culpada, não mereço ajuda! Desencarnei de forma brutal, nunca pensei que
isso fosse acontecer comigo, não pensava na morte, era jovem, sadia, alegre. Tudo que
aconteceu me pareceu, por muito tempo, um pesadelo, um sonho ruim do qual não
acordava. Me perguntava: por que
* O espírito fechou o ferimento aplicando energia fluídica, pois atua sobre o perispírito e
não em um corpo carnal (NE.).
72
eu? Isso aconteceu mesmo? Por questão de segundos tudo acabou. Depois concluí que é
assim mesmo, a gente é, e por um instante não é mais. Isso ocorre com tantas pessoas! A
ilusão é falsa, parece que está tudo bem, acontece algo e desmorona, acaba tudo. Não
pensei que aquele empregado, um simples jardineiro, tivesse a ousadia de atirar em mim,
mas teve e tudo se modificou. Mas o tempo passou e me acos tumei ao Umbral, tive
companheiros e tentei tirar proveito do que me foi oferecido. Estava bem lá e vocês foram
cruéis em me trazer aqui e ver ele, meu esposo, naquele estado.
- Por que nunca foi vê-lo? - Perguntou Virgílio.
- Achei que ele me odiava. Depois, só pensei em minha filha - respondeu Leda.
- Você soube dela? - Indagou o orientador encarnado.
- Me falaram que ela foi socorrida pelos espíritos bons que amparam crianças e me
despreocupei. Quis esquecer
tudo e fiquei por lá, no Umbral.
- Minha irmã, aqui estamos para que se reconciliem. Me diga, o que você tem feito de sua
vida? Está feliz? - Pergun tou Virgílio.
- Não estou fazendo nada de digno. Quando encarnada aprontei muito; desencarnada,
continuei a viver entre farras e orgias, mas isso já não me traz satisfação. Agora que vi meu
esposo é que percebi quanto lhe fiz mal, ele matou e morreu por mim e nem juntos ficamos.
- Falou Leda com sincerida de. Suspirou e indagou: - Para onde ele vai ser levado?
- Para um hospital onde ex-suicidas são auxiliados.
- Poderei ajudá-lo pelo menos?
- Poderá visitá-lo, quanto a ajudar, você sabe? Não! Mas poderá aprender para auxiliar a
ele e a outros. Peça
perdão e perdoe - pediu Virgiio.
- Peço perdão e nada tenho a perdoar. Esse coitado que me matou morreu também e já
sofreu muito. Além disso, brin quei com seus sentimentos - falou Leda.
- Você também será levada para um socorro.
- Agradeço!
Saiu de perto da médium e ficou ao lado de um socorrista, com lágrimas escorrendo pelo
rosto. Foi a vez de Osvaldo,
73
que estava emocionado, nunca pensou em encontrar com seus ex-patrões. Penalizou-se ao
ver o estado de Irineu e com os dizeres de Leda. Arrependeu-se profundamente e se
esforçou para não chorar. Como não falava nada, Virgílio o indagou:
- Você, meu amigo, é que estava aqui assombrando?
- Sou eu sim, senhor - respondeu Osvaldo e Silze repetiu.
- Por quê?
- Fui impedido de sair. Tenho de ficar aqui para sempre e não quero companhia, ninguém
na casa.
- Por que tem de ficar aqui? - Perguntou Virgílio.
- Sou um assassino! Matei aquela dali. Mas não matei a menina. Não mesmo! Ela desceu
a escada, me viu na sala, correu para o lado perigoso do penhasco, corri atrás para pegá la,
para impedir de cair, e foi isso que ocorreu, ela caiu e mor reu. Mas seus pais não devem
preocupar-se com ela, Fatinha está bem, nasceu de novo, é bonita e amada - falou
Osvaldo.
- Você se arrependeu?
- Sim, senhor, arrependi-me e sofro por isso. Se tivesse oportunidade de voltar atrás, tudo
ia ser diferente, não mataria ninguém. Mas nada volta, não é mesmo? Se voltasse não faria
mais essa besteira. Isso dói! E estou sempre pensando:
Se tivesse feito assim, não aconteceria isso... Sempre o se. Mas foi só um instante, fiz e está
feito e não tem reparo. Que coisa! O senhor já pensou nisso? E um erro, um descuido e está
feito o irreparável, acontece um acidente, se mata, leva-se um tombo...
- Meu amigo, você não precisa mais ficar aqui. Peça per dão e venha conosco, irá
aprender a viver como desencarnado
e pensar na sua vida futura.
- Eles disseram que me perdoaram, agradeço. Peço per dão de joelhos, mas é difícil eu me
perdoar. Mas será que
consigo sair daqui? Já tentei e não consegui - falou Osvaldo.
- Agora, com nossa ajuda, conseguirá - afirmou Virgílio.
- Obrigado! Quero ir com vocês, quem sabe nascer como Fatinha, num outro corpo, e
esquecer tudo. Mas por que vocês
vieram aqui? Tantos desencarnados bondosos.
74
- Viemos ajudar essa familia - respondeu Virgílio.
- Prejudiquei-os também, não é? Coitado do garoto! Peço desculpa a eles. Se eu não
conseguir sair daqui, não vou
assombrá-los mais - falou Osvaldo.
- Você irá sair! Quem lhe prendia era você mesmo. Sen tindo-se culpado, se puniu
ficando preso aqui. Mas agora acabou, pediu perdão e foi perdoado, todos iniciarão uma
vida nova.
Foi afastado da médium e Carmelo aproveitou para falar
por Silze, dando algumas informações:
- Meus amigos, vocês estão agora livres dos fenômenos estranhos que ocorriam nessa
casa. Viram que tudo tem expli cação, tudo que ocorria era porque um desencarnado estava
aqui, sem orientação, achando-se pela culpa preso, não queria ninguém morando aqui, fazia
isso para que fossem embora. Podem ficar tranqüilos e não precisam mais se mudar.
Orientado, ele foi embora e não volta mais. E apro veitem que esse casal amigo está aqui e
procurem adquirir informações que os ajudarão a compreender o que se passou e que
evitarão muitas dificuldades futuras, porque tanto Roberto quanto Henrique são médiuns.
Desejo a todos muita paz e tranqüilidade, em nome de Jesus.
Despediu-se, Virgílio orou, agradecendo, e deu por encerrada essa pequena sessão, mas de
grande ajuda.
Quando terminou, Dinéia suspirou aliviada.
- Virgiio, pelo que entendi, o jardineiro que assassinou a dona da casa estava aqui e fazia
tudo aquilo porque queria que nos mudássemos. E que, agora, orientado, foi embora para o
lugar devido e ficamos livres desse tormento.
- E isso mesmo, Dinéia - esclareceu Virgiio. - Ele se sentia preso aqui e queria ficar
sozinho. Aproveitando os fluidos de Henrique e de Roberto, ele conseguia fazer os
barulhos, mexer objetos. Agora, socorrido, viverá digna mente, aprendendo para progredir.
- Quem o prendeu aqui? O dono da casa? - Dinéia quis saber.
- Quando o ex-proprietário o matou, disse para ficar aqui para sempre. O jardineiro,
sentindo-se culpado, ficou. Achou
75
que deveria estar, pelo seu crime, numa prisão, e fez daqui a sua, como o outro lhe
ordenara. Esteve preso por sua cons ciência. Se autopuniu - respondeu Virgiio.
- Vamos dormir, estou cansada - pediu Silze.
Foram para seus quartos. Os visitantes dormiram logo,
Roberto e Dinéia ainda conversaram um pouco.
- Roberto, nunca pensei que fosse possível conversar com os mortos.
- Dinéia, é desencarnado que se fala, porque ninguém morre realmente, o corpo físico
pára as funções vitais, mas a
gente continua vivo e vai morar em outro lugar.
- Você parece interessado. Gostou? - Indagou Dinéia.
- Gostei! Senti tudo muito verdadeiro, parece que já sabia disso. Vou ser espírita! Há
muito sinto falta de me ligar a uma religião e o Espiritismo me parece racional. Para tudo
que você quer saber, eles têm explicações lógicas.
- Se Henrique melhorar, não estiver doente mesmo, eu irei com você e, se entender, me
tornarei espírita também - decidiu Dinéia.
Os dois oraram agradecendo a Deus e pedindo paz a
todos, e após foram dormir.
Quando Virgílio deu por encerrada a sessão, Carmelo e seus amigos desencarnados levaram
os três para a colônia, e antes de eles serem encaminhados ao lugar que lhes cabia, puderam
conversar, ficar juntos por uma hora. Leda ficou perto de Irineu e disse baixinho.
- Você me perdoou mesmo? Traí você, não fui digna de seu nome, do seu amor.
- é melhor esquecer, já sofri muito. Amei você com pai xão, agora quero tê-la como irmã.
O que importa para mim
é que Fatinha está bem.
Osvaldo intrometeu-se na conversa deles.
- Tudo por minha culpa! Comecei tudo!
- Você foi culpado sim, mas não foi o pior - disse Iri neu. - Leda me traía, tinha dois
amantes, e quando desco brisse certamente iria matá-la e, achando que não viveria sem ela,
acabaria me suicidando. De qualquer forma faria uma besteira. Não aceitaria ser traído e
nem viver sem ela.
76
- Acho que eu fui a pior - disse Leda tristemente. - Agi errado, fui leviana, provocava
Osvaldo e o desprezava, fui eu
que comecei, quem primeiro errou.
- Irineu tem razão, já sofremos muito e é melhor esquecer. O que importa é que nos
perdoamos e teremos a oportunidade de recomeçar, como nos disse aquele senhor
encarnado - expressou Osvaldo.
- Vamos recomeçar sem mágoas e eu quero aprender a amar de forma certa - falou
Irineu, determinado.
Osvaldo foi para a escola de uma colônia estudar e
trabalhar, se preparar para reencarnar para ter a bênção do
esquecimento.
Irineu foi para uma colônia, das muitas que existem de recuperação de ex-suicidas, onde
aprenderia a dar valor à oportunidade de viver por um período num corpo físico. Também
ia estudar e trabalhar.
Leda pediu para ficar perto de Irineu, foi para uma colônia próxima à da dele, estudar,
trabalhar, e visitava-o sempre.
O casal ficou sabendo que Fatinha reencarnou e que agora era Fabiana. Não tiveram
permissão para visitá-la, mas
saber que ela estava bem os tranqüilizou.
Naquela noite Henrique dormiu gostoso, tranqüilo como
há muito não fazia. Carmelo aproveitou para falar com ele,
quando adormecido, para lhe dar confiança.
"Tente, Henrique, saber o que ocorreu. Quando conhecemos o assunto, dominamos nosso
medo. Compreendendo,
tudo fica mais fácil."
No outro dia, após o café da manhã, Henrique aproximou-se de Virgílio.
- Virgílio, por que eu via e ouvia o fantasma?
- Porque você tem mediunidade, sensibilidade para isso.
- Como vocês? - Indagou Henrique.
- Sim, como nós - respondeu Virgílio.
- Por que isso aconteceu aqui? - Perguntou Fabiana.
- Trouxe comigo alguns livros e, se vocês quiserem, deixá los-ei para que leiam. Esse aqui
é um livro do codificador da
Doutrina Espírita, isto é, ele estudou esses fenômenos que
77
sempre existiram e os explicou de forma fácil, para que pudéssemos entendê-los. E O
Livro dos Médiuns, de Allan Kardec; temos no capítulo nono "Locais assombrados".
- Leia para nós, por favor - pediu Angélica.
Virgiio leu o tão interessante capítulo, na questão nona A. Henrique entendeu que aquele
desencarnado que estava ali na casa ficou preso lá porque cometeu um crime e sentia- se
punido. Deveria ser horrível não poder esquecer as cenas ruins e ter sempre a lembrança do
seu erro a atormentar. Como também se interessou pelas questões doze e treze. Até inter
interrompeu Virgílio.
- Então, para expulsar os maus espíritos, é preciso atrair os bons? E para ter os bons por
companhia é necessário
melhorar. Parece fácil! Gostei!
Virgílio sorriu e continuou a leitura, pois todos estavam
muito interessados.
- Por favor, leia os últimos parágrafos de novo, achei muito interessante - pediu
Angélica.
Virgílio leu:
- Resultadas explicações acima que há espíritos que se apegam a certos locais e neles
permanecem de preferência, mas não têm necessidade de manifestar a sua presença por
efeitos sensíveis. Qualquer local pode ser a morada obrigatória ou de preferência de um
espírito, mesmo que seja mau, sem que jamais haja produzido alguma manifestação.
Os espíritos que se ligam a locais ou coisas materiais nunca são superiores, mas por não
serem superiores não têm de ser maus ou de alimentar más intenções. São mesmo, al gumas
vezes, companheiros mais úteis do que prejudiciais, pois caso se interessem pelas pessoas,
podem protegê-las.
E finalizou:
- Vocês podem ler esses livros, aprenderão muito.
- Eu vou começar já - afirmou Henrique. - Se tenho como entender tudo o que se passa
comigo e se é possível conviver
bem com isso, farei com gosto. é um alívio não estar doente!
- Mediunidade não é doença, Henrique - falou sorrin do Silze. - Sou médium, estou
ótima, sinto-me bem e feliz
78
ajudando o próximo com ela. Mas você agora é muito jovem para fazer o que eu faço.
Facilitará sua vida se agora entender, freqüentar um Centro Espírita; tudo irá acontecer
naturalmente.
- Vou pegar isto! - Exclamou Henrique, contente.
Fizeram, curiosos, algumas perguntas. Virgiio e Silze res ponderam esclarecendo, ficando a
manhã toda conversando.
- Como somos egoístas! Virgílio e Silze também vieram descansar, passear e nós os
prendemos em casa a manhã
toda - falou Dinéia.
- Viemos aqui com o objetivo de ajudar e esclarecer e estamos contentes com o interesse
de vocês - falou Virgílio,
gentil.
- Bem, vamos almoçar, depois levaremos vocês para conhecer o penhasco e à tardinha
vamos dar um mergulho - falou Dinéia.
Todos aprovaram e foram almoçar.
Na praia, Virgiio afastou-se um pouco do grupo e encontrou-se com um senhor e se
puseram a conversar. Quando
novamente se reuniu com os amigos, Roberto falou, rindo:
- Você já fez amizade aqui. Aquele senhor é muito simpático, é cliente do banco.
- Ele é espírita - respondeu Virgílio. - Já sei de um bom Centro Espírita para vocês
irem se quiserem mesmo freqüentar. Hoje à noite tem uma reunião e o convido para ir
comigo, pois irei.
- que vou - respondeu Roberto.
As oito em ponto estavam no Centro. Roberto olhou tudo, aprovando. Foram só os dois, as
mulheres ficaram conver sando em casa. A reunião consistia de uma palestra e após passes.
Os visitantes gostaram e após ficaram conversando com o orientador da casa, que veio
cumprimentá-los. Assim ficaram sabendo das atividades do Centro. Ao sair, Roberto
comentou com o amigo:
- Puxa, como fomos bem recebidos! Virei a essas palestras e quero participar do grupo de
estudo, certamente
para os iniciantes. Senti-me tão bem ao receber o passe.
79
- Que bom, Roberto, vê-lo entusiasmado! Tenho a certeza de que você gostará e
aprenderá muito.
Roberto contou em casa tudo que viu e ouviu. A família
toda decidiu ir ao Centro Espírita.
A permanência de Silze e Virgiio foi um prazer aos mora dores da casa. Conversaram
muito, mas chegou a hora de ir embora; despediram-se. Virgílio prometeu atendê-los
sempre que precisassem, e a Henrique, que lhe tiraria dúvidas pelo telefone. O casal partiu
contente tanto por ter ajudado os amigos quanto pelos dias tranqüilos que passaram ali.
E a casa parecia diferente, o ambiente estava agradável.
Angélica exclamou:
- Até parece que esta casa está mais bonita e alegre!
E ela tinha razão.
80
Dias depois Angélica teve de ir ao médico e fazer exames. Os pais a acompanharam.
Ficaram hospedados na casa
da avó materna.
Após fazer todos os exames, Roberto retornou, tinha de
trabalhar. Dinéia ficou com a filha, aproveitou para fazer al gumas visitas a amigos e
parentes, como também a clientes.
Angélica não teve ânimo para sair, estava com medo e ansiosa. Aflita, esperou os
resultados. Reviu algumas amigas e recebeu visitas. Estava calada e esforçava-se para não
ficar triste ou que a notassem preocupada. Carmelo os acompanhou, gostava de Angélica, e
quando ela orava ele lhe dava fluidos, transmitindo-lhe boas energias.
Por dias esperaram o resultado. Carmelo a observava, tão jovem e já passara por uma
experiência difícil. Pediu aos seus orientadores na colônia para saber o porquê da doença e
teve permissão e soube da história de Angélica.
Na encarnação anterior dela, certamente com outro nome, mas que vamos continuar a
chamá-la de Angélica, porque nome não importa, é designação para ser reconhecido numa
existência. Morava numa cidade pequena do interior, filha de pais pobres, mas muito
honestos, tinha muitos irmãos, estudou só três anos na escola, mas gostava de ler, era
romântica e esperava encontrar seu príncipe encantado, um jovem bonito, inteligente, que a
amasse muito. Sonhava, idealizando-o.
81
Mas seu pai a prometeu em casamento para um filho de seu amigo. Não a obrigou a casar,
mas tudo fez para que se encontrassem, saíssem juntos. Marcílio não era nada parecido
com o que ela idealizava. Não era feio, mas também ela não o achava bonito. Mais velho
que ela treze anos, era responsável, simples e nada romântico. Foi envolvida e quando deu
por si, estava noiva de casamento marcado.
- Mãe - queixou-se ela -, não sei se o amo e se quero
me casar.
- Ora, filha, você já tem dezesseis anos, está namorando há oito meses e ele é bom, tem
ótimo emprego e gosta de você. O que quer mais? Largue de ser bobinha, o amor não
existe, só se quer bem. Com os anos você aprenderá a gostar dele.
Angélica chorou muito, não sabia o que fazer; deixou-se
levar e tudo que marca data chega; o dia de seu casamento
chegou e casaram-se numa cerimônia simples.
Ela tentou adaptar-se, cuidava do lar da melhor maneira possível; um ano depois nasceu seu
filhinho, e quando este fez dois anos nasceu o segundo. Eram dois meninos lindos, fortes e
sadios.
Marcílio era maquinista, trabalhava dirigindo trem de
ferro, viajava muito, e Angélica ficava muito sozinha, dedicando-se muito aos filhinhos.
Pelo trabalho do esposo, tiveram de mudar para uma
cidade um pouco maior, mas não longe da que moravam
seus pais.
Acostumou-se logo nessa cidade. Embora o marido se
ausentasse muito, fez amizade com os vizinhos, moravam em
casa da companhia, todos ali trabalhavam na via férrea.
Um dia ela, deixando os filhos com uma vizinha, foi fazer compras. Costumavam muito
trocar favores assim. Ao passar por uma rua calçada de paralelepípedos, tropeçou, não
caiu, mas sim uma das sacolas, esparramando frutas pelo chão. Um homem foi solícito
ajudá-la. Seguraram a mesma laranja e se olharam. Por segundos ficaram parados, encantados
um com o outro. Com tudo novamente na sacola, o homem, que era jovem como ela,
se apresentou:
82
- Bom dia, sou Fábio, moro há pouco tempo na cidade. Muito prazer! Machucou-se?
- Bom dia! Não me machuquei. Obrigada por me ajudar. Me chamo Angélica.
Ficaram parados se olhando, sem coragem de se afastar.
Mas foi ela que, dando um sorriso, se afastou.
Bastaram esses poucos minutos para se apaixonarem,
ou melhor, achar que estavam enamorados, um só pensava
no outro.
Angélica, envergonhada, não conseguia esquecê-lo, era o príncipe que sempre sonhou.
Tentava prestar atenção nos filhos, nos serviços de casa, mas não adiantava, ficava pen
sando nele o tempo todo. Começou a sair mais na esperança de revê-lo. Eo viu perto do
armazém em que fazia compras. Ela estava com os filhos e só se olharam. Perguntou ao
dono do armazém quem era ele.
- é um forasteiro. Trabalha no correio, no escritório, é casado e tem filhos. E meu cliente
também, parece ser direito,
me paga direitinho.
Ela quis ir no correio, mas tinha vergonha, mas justificou-se, lá era um lugar público e
tinha cartas para levar. Começou a escrever para as antigas amigas e parentes, passou a ir
muito ao correio. As vezes o via, se olhavam.
Meses depois desse encontro, do tropeção, Angélica recebeu um bilhete. Um garoto bateu
à sua porta.
- Senhora, vim lhe entregar isso!
Colocou na sua mão um papel dobrado e saiu correndo.
Angélica fechou a porta, abriu o bilhete com o coração disparado. Leu e releu inúmeras
vezes.
Angélica, venha encontrar comigo. Necessito conversar
com você. Hoje à tarde, às quinze horas, na casa abandonada
do morro. Por favor, venha.
Fábio.
O papel parecia queimar suas mãos.
"Não devo ir! Não posso! Mas o que será que ele tem a me dizer? Não temos nada para nos
falar. Mas o que tem
demais conversar? E só um encontro. Acho que vou..."
83
Decidiu ir, o esposo estava fora, só voltaria no outro dia,
a noite. Pediu à vizinha para ficar com os filhos, se arrumou,
sem, entretanto, chamar a atenção, e foi ao encontro.
Teve de andar por quase meia hora. O local escolhido para o encontro era afastado da
cidade, ia pela estrada e depois por um atalho, e lá estava a casa abandonada que ficava a
alguns metros de um grande lago. Por ali não havia movimento, o lago era mais
freqüentado do outro lado, onde se faziam piqueniques e pescadores tentavam pescar.
Com o coração batendo forte ela chegou perto da casa.
- Angélica! Por aqui! Que bom que veio!
Fábio pegou na mão dela, a conduziu para dentro da casa, convidou-a a sentar num banco
limpo de madeira e, ao
lado, no chão, numa garrafa havia flores muito bonitas.
- Trouxe flores para você... - disse Fábio.
- Como entrou aqui? A casa não fica trancada? - Perguntou Angélica.
- Fica, fiz uma chave. Antes de ter o emprego no correio, fui chaveiro. Vou esconder a
chave no canto direito do telhado, se você precisar vir aqui, é só pegá-la. Também limpei a
casa na esperança de que viesse.
Ficaram quietos se olhando.
- Angélica, amo você, não consigo esquecê-la.
Bastou isso para ela se deixar ser abraçada e beijada. Entregaram-se à paixão. Depois
Angélica viu que ele preparara tudo, em um dos quartos da casa havia um colchão no chão.
Envergonhou-se, mas se sentiu feliz.
- Por favor, venha mais vezes, amo-a! - Pediu ele.
Combinaram de se encontrar sempre que possível. Teriam de ter cuidado, eram casados.
Ela não iria mais tanto ao correio para evitar comentários. Encontrariam-se naquela casa
durante a semana, em que o lago não era muito visitado e quando Marcílio estivesse fora.
Angélica tinha consciência de que o que fazia não estava certo. Tentou ser como sempre,
mas depois de ter conhecido Fábio era quase insuportável a presença do esposo. Amava
Fábio como em seus sonhos imaginava amar, como seu prín cipe encantado. Não conseguia
ficar sem vê-lo e tudo fazia
84
para se encontrar com ele. Deixava muito os filhos com as vizinhas, mas também os
deixava trancados em casa. Encontravam-se, às vezes, à noite, deixando os meninos
dormindo. Saía escondida de casa, andava no escuro, às vezes tinha medo, mas a ânsia de
ver seu amado era maior. Fábio mentia à esposa, dizendo que tinha de trabalhar à noite.
Temendo que os vizinhos desconfiassem, por vezes levava os filhos e os deixava brincando
fora da casa, enquanto ficava com Fábio dentro. Sabia que era perigoso, mas mesmo assim
os deixava.
Reconhecia que estava agindo errado, por vezes quis ter minar, mas não tinha coragem.
Amava realmente Fábio.
E foi num desses encontros em que levou os filhos, deixan do-os fora da casa, que, ao sair,
não os encontrou. Procurou-os. Fábio até ajudou, mas logo parou, desculpou-se, tinha de ir
embora. Angélica ficou sozinha, gritou por eles, com medo foi à beira do lago, viu uma
sandalinha na margem e marca na terra de pezinhos, como se estivessem entrando na água.
Desesperada, sem saber o que fazer, começou a chorar.
"Vou para casa, talvez eles tenham ido para lá. Sabiam o
caminho, vieram muitas vezes. é isso, eles foram embora."
Esperançosa, começou a correr, mas a casa estava vazia, nada dos filhos. Com o seu choro,
as vizinhas correram.
Ela falou às amigas que, prestativas, foram ajudar.
- Levei-os para passear no lago, distraí-me e eles sumiram.
- Distraiu-se com ele, não é? Com seu amante! Disse uma das vizinhas, e Angélica
entendeu que muitos sabiam.
Mas elas a ajudaram, saíram procurando-os. Como não os encontraram, concluíram que
eles foram para o lago e se afogaram. Escureceu e as buscas pararam, telegrafaram para
Marcílio, informando-o. Angélica foi sedada para ficar na cama, dormiu e acordou quando
começara a clarear, estava desesperada. O marido havia retornado, só a olhou, ela entendeu
que ele já sabia de tudo, não falou nada. Saiu com os outros; iriam mergulhar no lago para
ver se achavam os garotos. Ela ficou em casa sozinha, não sabia o que fazer, as vizinhas a
olhavam, reprovando. Uma delas até falou:
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- Mãe desnaturada! Não merece ser mãe! Se queria se prostituir, que não arriscasse a vida
dos filhos! Se eles estiverem mortos, você que os matou!
Todas a olharam, concordando. Ela entrou em casa e
ficou sozinha. Era de tarde, quando escutou:
- Acharam os dois mortos no lago, afogados.
Sentiu uma dor tão forte que desmaiou. Acordou com o
esposo lhe dando tapas no rosto.
- Acorde! Venha ver nossos filhos mortos! Morreram por sua imprudência! Nem sinto a
dor de um marido traído. Culpo-a! Você deveria ter ido embora com ele, mas não arris cado
a vida de dois inocentes. Desprezo-a! Eu poderia matar você, todos entenderiam, nem seria
preso. Mas prefiro que você viva e morra aos poucos de remorso, esta dor dói mais. Nem
vontade de bater em você tenho. Vamos, vista-se! Vamos ver nossos filhos mortos, vou
enterrá-los, não dá para esperar mais. Logo escurecerá!
Marcílio estava cansado, abatido, sofria muito. Angélica trocou de roupa, parecia alheia,
não chorou, acompanhou o marido, caminhou ao seu lado e foram ao cemitério. Os filhos
estavam lado a lado em caixões brancos. Um de quatro anos e o outro de dois, logo ia fazer
três anos. Lágrimas escorreram pelo rosto dela, ficou quieta ao lado dos caixões. Havia
muita gente, curiosos e parentes que vieram, ninguém a cumprimentou, só o esposo foi
acalentado. Angélica não soube dizer quanto tempo ficou ali, fecharam os caixões e os
enterraram. Quando terminou, uma de suas irmãs chegou perto dela.
- Vamos para sua casa!
Caminhou, parecia que não era ela, estava atordoada.
Sentaram-se na sala. Marcílio falou:
- Vou embora, mudarei para outra cidade. Desocuparei a casa e levarei todos os móveis.
Certamente irei sozinho.
Estou sofrendo muito.
Angélica ouviu palavras de consolo dirigidas ao marido.
Não levantou nem os olhos, ficou quieta. Marciio voltou
a dizer:
- Quero dizer, com vocês aqui presentes, parentes meus e dela, que não quero mais
Angélica, que a enxoto! Vá
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embora, Angélica! Fora dessa casa honrada que não soube
dar valor, que desonrou!
- Entendo você, Marcílio, e peço-lhe desculpas! Você está certo! Angélica deve sair daqui
e esquecer que teve família, porque não a tem mais. Se tive uma filha que se chamava
Angélica, esta morreu e a enterramos com meus netos.
Escutou seu pai, e uma irmã, que estava ao seu lado,
puxou-a pelo braço.
- Anda! Vá embora!
Angélica levantou-se, olhou para a mãe, trocaram um olhar por segundos, a mãe baixou os
olhos, ela saiu. Fora da casa estavam algumas vizinhas que a olharam, aprovando a atitude
do marido. De cabeça baixa afastou-se da casa, e como se fosse atraída dirigiu-se à casa
abandonada. Entrou, sentou-se no colchão no chão e ali ficou até que, cansada, dormiu.
Acordou com a claridade. Lembrou de tudo e chorou muito. Estava fraca, não se
alimentava havia muitas horas, levantou-se foi ao lago e tomou água, voltou para a casa e
ficou quieta. Olhou o lugar, ali fora tão feliz, lugar de seus encontros, de seu erro que
resultou a morte de seus filhos. Ela pedia sempre a eles para não se afastarem, para não se
aproximarem da água, eles eram obedientes, não entendia o porquê de eles terem ido.
Talvez quisessem brincar, entrar na água. Mas agora não tinha mais importância, estavam
mortos.
Lá estava o vão da porta, o esconderijo onde ela e Fábio
haviam combinado deixar bilhetes. Enfiou a mão no vão e lá
estava um papel.
Angélica, sinto muito o que aconteceu. Sofro por você. Despeço-me. Vou embora com
minha família para longe. Refaça sua vida. Não vou esquecê-la, sua lembrança estará
sempre comigo. Abraço-a.
Fábio.
Rasgou o bilhete e, vendo um fósforo, colocou fogo
no papel.
Entendeu-o, não lhe guardaria mágoas. Ela o amaria para sempre. Achou certo ele ir
embora, tinha filhos e estes deveriam ter o pai por perto para os proteger. Ela não teria
mais os seus para amar, não soubera cuidar deles. Foram culpados, mas ela foi mais.
Sentiu-se muito só, queria os filhos e chorou.
87
- Angélica!
Era uma de suas vizinhas, que colocou as mãos em sua
cabeça.
- Trouxe o que comer, calculei que estaria aqui. Coma!
- Não tem nojo de mim?
- Por que teria? Vim escondido, não quero que saibam. Se meu marido souber é capaz de
me surrar. Até que entendo você, casou com um homem bem mais velho, que não lhe deu
atenção, estava longe da família. Aí encontrou um homem jovem como você e foi uma
tentação. Só não entendo por que você deixou os filhos aqui soltos, se era perigoso. O que
você vai fazer agora?
- Não sei! Quero morrer!
- Não faça isso, por pior que seja seu sofrimento, não será um terço se você se suicidar.
Além do que, seus filhos, os dois anjinhos, foram para o céu e você irá para o inferno. Seu
marido está mudando, falou que vai deixar suas roupas, vou pegá-las para você, amanhã as
trarei. Angélica, perto daqui tem um convento que abriga mulheres perdidas que querem se
recuperar. As freiras são boas, abrigarão você até que ar rume para onde ir. Vou para casa,
mas amanhã eu volto, espere-me aqui. Não faça nenhuma bobagem, me prometa!
- Prometo! - Respondeu Angélica, suspirando.
O alimento lhe deu mais força. Ficou na casa, mas estava apática e muito triste.
"Não sou digna de ser mãe. Matei meus filhos! Sou
culpada!"
De tardezinha foi ao lago, tomou água, encheu uma
garrafa; olhou para as águas, o lago estava calmo, tranqüilo.
"Nem parece que foi aqui que meus filhos morreram. Nessas águas paradas, parecendo um
enorme espelho. São traiçoeiras, assassinas. Não! Não posso colocar a culpa no lago, só eu
sou culpada. Poderia entrar e me afogar, mas sei nadar. Será que o desespero do
afogamento não me faria sair nadando? Desespero da morte! Será que meus filhos sofre
ram muito para morrer? Não quero imaginar seus rostinhos
88
lindos tentando respirar. Não sou digna de morrer. Como meu marido disse, devo ficar viva
e sofrer, mereço. A morte seria um alívio que não mereço."
Voltou para a casa; a noite trouxe a escuridão, então sentiu-se ainda mais sozinha.
"Vou ser sempre só! Essa dor será minha companheira..."
Dormiu, sonhou com os filhos, acordou sorrindo, chamando por eles, mas logo recordou
tudo e chorou muito. Não saiu da casa, teve medo que alguém a visse. A tardinha a vizinha
voltou.
- Angélica, seu marido foi embora, peguei suas roupas e as trouxe. Coma este alimento e
parta já daqui.
-Porquê?
- Quando peguei suas roupas, as pessoas desconfiaram, ficaram observando-me. Creio
que sabem que eu as trouxe para você. Eles estão revoltados e é melhor sair já daqui. A
noite, quando estiver sozinha, eles podem maltratar você!
- Não mereço?
- Acho que não. Você sofre muito. Mas elas também não merecem fazer impensado, algo
de mau. Você entende? Elas são pessoas boas, comuns, só que podem querer fazer justiça,
estão revoltadas. Por favor, vá embora!
- Vou para o convento!
- Vamos juntas até o atalho, de lá você vai para a outra cidade. Ande à noite e esconda-se
de dia.
Foram caladas. Ao se separarem, Angélica lhe falou:
- Só Deus para lhe pagar! Obrigada! Espero que eles não fiquem com raiva de você por
isso!
- Tudo passa, Angélica! Lembre-se disso!
Angélica caminhou a noite toda, queria distanciar-se da cidade; pela manhã descansou
escondida, sua água acabou. Dormiu um pouco embaixo de uma árvore; à tarde recomeçou
a andar. Seguiu descansando e andando, de madrugada encontrou água, tomou-a,
armazenou na garrafa e continuou andando. Chegou no convento quando já havia amanhecido
Uma irmã a viu, ajudou-a, ela pediu abrigo. A madre superiora veio conversar com
ela.
89
- Você então é a jovem mãe que descuidou dos filhos para encontrar-se com o amante, e
eles se afogaram no lago.
Pode ficar conosco, vamos ajudar você.
Descansou aquele dia, no outro foi trabalhar na horta, o serviço pesado a fazia se cansar e o
cansaço parecia ameni zar sua dor. Quase não conversava. Era convidada a orar, mas se
achava indigna de fazê-lo. Ficava escutando as bonitas orações que as freiras faziam.
O tempo se passou, quase três anos; ninguém a visitou nem ela soube de seus familiares.
Compreendeu que havia morrido para eles. Era uma pessoa triste, não conversava, só
respondia quando era indagada, sentia muita saudade e grande era o seu remorso. Uma
irmã, já velhinha, chamou-a para uma conversa:
- Angélica, aqui você está sendo excluída, não tem amigos, não fala com ninguém,
precisa esquecer o que ocorreu,
recomeçar sua vida.
- Minha vida acabou, estou viva porque não sou digna de morrer - respondeu ela.
- Não fale bobagem! A morte chega para cada um na hora certa. Filha, temos longe daqui
mais dois conventos, um é orfanato, outro, asilo. Vá ser útil, cuidar de outras pessoas, verá
muito sofrimento, amenizará dores e terá a sua suavizada.
- Asilo, prefiro cuidar de idosos!
Assim Angélica foi, viajou dias de trem e chegou ao asilo. Não se tornou freira, ficou como
se fosse uma empregada sem remuneração. E realmente aquela sábia irmã tinha razão. Viu
muita tristeza, afeiçoou-se aos idosos, trabalhou muito e os dias passaram rápidos. De fato
ela suavizou sua dor ao ajudar o próximo. Deixou de ser triste e a saudade já não doía tanto.
Lembrava-se de Fábio, seu grande amor, às vezes até culpava-o, mas entendia, ele tinha
filhos, talvez não quisesse ser responsável pela infelicidade deles, não podia largá-los para
ficar com ela. O marido até que foi generoso e sua família teve motivos para desprezá-la.
Pensava muito nos filhos, como estariam se não tivesse acontecido o acidente?
90
O remorso é dor forte e ela sofreu muito. De uma coisa teve certeza: nunca mais teria
filhos, não era merecedora.
Passou mais de vinte anos trabalhando no asilo, era bondosa, atenciosa e os velhinhos a
amavam. Com quarenta e oito anos ficou doente, passou vários meses no leito, as irmãs
cuidaram dela, sofreu sem reclamar e desencarnou tranqüi lamente numa manhã de
domingo.
Fez muitos amigos; muitos idosos do asilo que haviam
desencarnado vieram socorrê-la e foram muitas as orações
de gratidão por ela.
Socorrida, logo estava sadia e trabalhando, sendo útil. Soube de todos, os filhos
reencarnaram, estavam bem, o marido teve outra companheira e outros filhos. Fábio conti
nuou com a esposa, foi bom pai. Sua família estava bem, os pais haviam desencarnado, ela
os visitou, eles se reconciliaram. Ficou anos desencarnada e foi convidada a reencarnar.
- Angélica, você voltará ao plano físico, mas não deve continuar pensando que não é
digna de ser mãe, poderá com
isso danificar, pelo remorso, seu órgão reprodutor.
- Não consigo, não quero ter filhos. Tenho medo de errar, de não cuidar deles.
Por mais que lhe falassem, Angélica não conseguiu superar e reencarnou.
Carmelo ficou pensativo e saudoso ao saber da história
dela e concluiu:
"E, Angélica, você não terá filhos nessa reencarnação,
mas confio que será uma grande mãe!"
Teve a certeza de que são muitas as causas que levam a
uma mesma reação. São muitos os motivos que deixam as
pessoas sem poder ser pais.
Os exames ficaram prontos, deram negativo, o médico
sorriu, contente.
-Angélica, o perigo maior já passou, você está curada! Ficou feliz, orou agradecendo a
Deus. Voltaram contentes à Casa do Penhasco, estavam saudosas e Angélica ansiava por
rever o namorado. Sentiu-se sadia e todos se alegraram.
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a brincadeira
do Copo

Durante a viagem dos pais com Angélica, Henrique voltou a dormir no seu quarto. Ficaram
só os três, Nena, Fabiana e ele na casa. Não tiveram medo e o garoto não viu e nem ouviu
mais nada de anormal. Estava feliz e ficou mais ainda com a notícia do resultado dos
exames da irmã.
Dois dias depois que retornaram, Dinéia achou que era
o momento de Nena se explicar, reuniram-se após o jantar na sala de estar e convidaram
Nena a falar. Dinéia pediu:
- Nena, acho que nos deve uma explicação. Não quer nos dizer o que ocorreu?
A empregada suspirou, acomodou-se no sofá, olhou para
todos, acenou com a cabeça e começou a narrar.
- Quando vim trabalhar com vocês ninguém me indagou sobre isso, não que esse fato
justifique o que fiz, arrependo me e lhes peço perdão. Dona Dinéia me perguntou se eu era
solteira, respondi que sim, e sou, não me casei. Foi após quatro anos que falei das visitas
que fazia, o porquê de sair só às tardes de domingo. Contei que ia à penitenciária, foi aí que
menti, falei que Antonio era meu irmão e não que era meu companheiro.
Nena calou-se e Roberto motivou-a.
- é melhor nos contar tudo, Nena.
- é o que vou fazer, e agora sem mentir. "Fui criada num orfanato, fui para lá recém-
nascida, nunca soube quem eram
meus pais. Quando fiz dezoito anos, me arrumaram para ser
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empregada doméstica numa casa de família, dormia no em prego. Fui e tratei de fazer tudo
direito, mas o filho de minha patroa começou a me importunar, tinha medo dele, foi um
período difícil, sofri muito. Foi então que conheci Antonio, que trabalhava na padaria em
que eu comprava pão. Começamos a namorar e contei a ele o que se passava no meu
emprego, ele preocupou-se. Por ali, pela vizinhança, todos conheciam esse moço, o filho de
minha patroa, era briguento, farrista e mulherengo, mas os pais o achavam um filho exemplar
não acreditavam em nada que lhes diziam dele.
Um dia, quando meus patrões saíram, ele quase me
pegou. Saí correndo e fui à padaria. Antonio me fez uma
proposta.
'Não volte para lá, Nena, venha comigo. Venha morar comigo. Minha casa é simples, um
barraco, mas lá você será respeitada. Gosto muito de você e quando puder, nos casaremos.'
Fui, Antonio me respeitava, era carinhoso. Dias depois fui buscar minhas roupas e
passamos a morar juntos como se fôssemos casados. Antonio ganhava pouco e eu passei a
ajudá-lo, trabalhava fazendo faxina duas vezes por semana na padaria e ajudava uma
vizinha a fazer doces, mas era difícil, vivíamos com dificuldades, porém, amávamo-nos
cada vez mais. Até que..."
Nena parou de falar, todos continuaram quietos, até que
Roberto pediu:
- Continue, Nena. O que Antonio fez para ir para a prisão? A história que nos contou não
é a verdadeira, não é?
- Falei a vocês que Antonio tinha dado um desfalque na fábrica em que trabalhava, que
nossos pais tinham morrido e que vivíamos nós dois sozinhos, que ele fora envolvido e
tirou dinheiro da firma, foi descoberto e preso. Isso é mentira! Antonio contipuava
trabalhando na padaria e começou a conversar com alguns vizinhos que não procediam
bem. Implo rei-lhe para não os ter como amigos.
"Nena - falou ele-, converso com todos por aqui. Eles
não são tão maus como se fala. Mas os deixemos para lá,
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não se aborreça por isso. Você está cansada? Não queria que trabalhasse tanto, queria lhe
dar mais conforto. Estou pensando em fazer um negócio. Se der certo iremos mudar de
cidade e moraremos numa casa e lhe darei roupas bonitas.'
'Antonio, não sonhe, estou bem aqui, sou feliz!'
Achei que ele sonhava e que isso não fazia mal algum. Mas Antonio se envolveu com os
vizinhos e fizeram um assalto, que resultou em um assassinato, na morte de um vigia.
Numa sexta-feira à noite, eu pensei que ele fosse trabalhar. Antonio com mais três foram
assaltar uma fábrica, o vigia conseguiu chamar a polícia, enfrentou-os e foi morto. Eles
foram presos. Acusaram Antonio, que no começo negou ter atirado, mas os outros
afirmaram que era ele o assassino, e ele depois concordou e ficou preso. Sofri muito. O
dono da padaria não me quis mais como faxineira. Fiquei só e sem dinheiro. Antonio foi
julgado e condenado. Por falta de pagamento fui despejada e aluguei em outra favela um
quartinho, em outro barraco. Foi então que uma senhora que morava perto do meu quarto
me arrumou emprego com vocês. Nunca deixei de visitar Antonio. Ele sempre me
afirmava:
'Nena, só participei do assalto, não atirei em ninguém,
se tivesse dado certo, nós iríamos embora, melhoraríamos
de vida.
'Antonio, eu lhe falei muitas vezes que estava bem. Não
ia viver com dinheiro roubado; se o assalto tivesse dado
certo, eu largaria você. E agora? Estamos separados.'
E foi uma antiga vizinha que me contou o que aconteceu de fato. Que foi um deles quem
atirou no vigia, mas chantagearam Antonio, se ele não mentisse dizendo que tinha atirado,
o grupo me pegaria e torturaria até a morte. Como ele sabia que o grupo era grande e que
realmente seriam capazes de fazer isso e que eu não teria ninguém para me defen der,
ajudar, ele confessou. Antonio arrependeu-se, mas pagou caro por seu erro. O tempo
passou, não tinha como desmentir, não tínhamos dinheiro para contratar um bom advogado
e temíamos a vingança deles. Ele continuou preso e eu com vocês. Me sentia mal com a
situação, não queria ter mentido.
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Gosto de vocês e sou grata. Lembro-me do dia em que dona
Dinéia me convidou:
'Nena, temos esse quartinho, é pequeno, mas se quiser
morar aqui será bem-vinda.'
Vim e foi muito bom para mim, não gostava do quartinho do barraco, pagava caro e era
desconfortável. Com vocês, sentia-me em casa, o quarto era limpo, a cama boa, estava
ótimo. Passei a amá-los como minha família, como a família que não tive."
Nena fez outra pausa, ninguém falou nada e ela continuou, finalizando:
- Agora, Antonio está para conseguir a liberdade condicional e queremos ficar juntos.
Gostaria tanto que ele viesse para cá, ficaria no meu quarto, é tão grande. Poderá trabalhar
de jardineiro, já que o senhor Olegário nos avisou que logo não trabalhará mais porque irá
aposentar-se.
- Nena, o que nos contou é sério. Temos de pensar no assunto para resolvermos. Vamos
conversar e lhe daremos
uma resposta logo - disse Roberto.
Nena demonstrou que concordava balançando a cabeça, despediu-se e foi para seu quarto.
- Que história triste! - Exclamou Angélica.
- Que irá fazer, papai? - Indagou Fabiana.
- Amanhã mesmo vou checar se é verdade isso tudo. Tenho os dados de Antonio, vou ver
se consigo falar com o diretor da penitenciária e pedir informações sobre ele. Depois
voltaremos a conversar e juntos decidiremos - respondeu Roberto.
- Não é fácil ter um ex-presidiário trabalhando com a gente. Também não podemos
esquecer que morará conosco - falou Dinéia.
- é por falta de oportunidade que muitos não vencem na vida, retornam à prisão. São
libertados e não acham trabalho, algo honesto para fazer - falou Henrique. - Poderemos
tentar, observá-lo, e se ele não corresponder à confiança, mandá-lo embora.
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- Tenho medo de pessoas que foram presas. Mas se Nena o ama e esses anos todos ficou a
sua espera, deve ter seus motivos, ela é tão boa! - Expressou Fabiana.
- Assim que falar com o diretor da casa de detenção voltaremos a conversar sobre o
assunto.
A noite do dia seguinte a família reuniu-se novamente e
Roberto falou:
- Telefonei para a penitenciária e o diretor foi muito gentil comigo; confirmou o que
Nena disse. Antonio é uma pessoa boa, se diz inocente do crime, que só participou do
assalto, e o diretor acredita nisso. Trabalha na cozinha, está sempre ajudando os
companheiros, é querido por todos e nunca deu problema. O diretor também gosta dele.
- Isso é bom! Sendo assim, podemos tê-lo conosco - falou Angélica.
- Não sei, ainda tenho medo, moramos afastados e temos as meninas. Creio que ficarei
preocupada - opinou Dinéia.
- Eu acho que temos de dar uma oportunidade, depois Nena merece. Vamos fazer uma
votação. Qual a sua opinião,
Angélica? - Perguntou Roberto.
- Eu voto a favor. Por Nena devemos aceitar Antonio, se não der certo veremos depois o
que fazer - respondeu a
interpelada.
- Eu penso como Angélica - disse Fabiana. - Gosto muito de Nena e por ela devemos
aceitar Antonio como empregado
Henrique levantou-se e falou:
- Eu gosto de Nena! Quero-a por perto! Voto a favor e ganhamos: Antonio poderá vir, e
eu vou dar esta notícia
a ela, que está ansiosa. Posso? Nena!
Como a mãe concordou, Henrique saiu da sala gritando,
e logo voltou puxando Nena pela mão e falou, entusiasmado:
- Nena, a família concordou, você pode trazer Antonio para cá, trabalhará conosco e,
melhor, ele ficará juntinho de
você. Não é ótimo?
- Esperamos que dê certo, que ele seja uma pessoa boa e que não venhamos a nos
arrepender - disse Dinéia.
96
- Se eu notar que Antonio possa fazer ou pensar em agir errado, serei a primeira a querê-
lo longe daqui. Gosto de vocês. Obrigada e, novamente, me desculpem. Nunca mais minto!
Vou escrever hoje mesmo a ele lhe dando a boa notícia.
Dois meses e meio depois, Nena estava eufórica: Anto nio sairia da prisão.
- Nena - disse Roberto -, ganhei cinco dias da diária
desse hotel, não é longe daqui, mas muito agradável. É para
um casal e como não podemos ir, queremos, Dinéia e eu, dar
a você e ao Antonio. Vá buscá-lo na penitenciária e vão para
o hotel, vocês merecem passear, ficar juntinhos, conversar
e namorar.
- Tire de folga quantos dias quiser, Nena - disse Dinéia. Nena chorou emocionada, com
suas economias com prou roupas para Antonio e resolveu que ficariam sete dias
passeando.
E assim fez. Quando retornaram, todos gostaram de Antonio. Era simples, quieto, educado,
evitava todos, só respondia quando indagado e passou a trabalhar bastante. Nena passou a
fazer as refeições com ele na cozinha. Roberto o chamou para uma conversa:
- Antonio, gostamos muito de Nena, sentimo-nos até responsáveis por ela, espero que
você não lhe dê desgosto e que seja digno da confiança que estamos depositando em você.
Não posso lhe pagar muito, mas vou registrá-lo para que tenha emprego fixo. Terão onde
ficar e o que comer.
- Senhor Roberto, agradeço por tudo. Sou duas vezes grato por quererem bem a minha
Nena e por me dar esta
oportunidade. O senhor não terá queixas de mim.
E realmente não tiveram. Nena estava muito feliz e os dois se entendiam, se amavam.
Antonio passou a fazer o serviço do senhor Olegário, que se aposentou, como também todo
serviço pesado da casa, não precisando mais de faxineira.
Antonio era um mulato forte, trabalhador e logo fez amizade com Henrique.
- Antonio - disse o menino -, embora você sorria muito, tem uma tristeza no olhar.
97
- Henrique, esses anos passados na prisão foram muito difíceis, nunca vou esquecer, foi
muito triste, muito sofrido. Você não pode imaginar o que é ficar preso, confinado num
espaço pequeno e tendo que conviver com pessoas diferentes.
- Tudo isso passou, Antonio - respondeu Henrique, ani mando-o. - Agora você e Nena
poderão ser felizes.
- Mas perdemos muitos anos de nossa vida separados! Como me arrependo por ter-me
envolvido com más compa nhias. O erro não compensa! E pagamos por ele bem caro -
falou Antonio.
- Esqueça, Antonio, reinicie vida nova. Você gosta daqui?
- Gosto muito, espero nunca ter de sair daqui! - Respondeu Antonio.
De fato, o companheiro de Nena gostou do lugar, pelo que ela já lhe falara, amava aquela
família e aproveitou a oportunidade que eles lhe deram. Roberto não se arrependeu de ter
dado emprego a ele, que logo se tornou amigo de todos da casa.
Iniciou o ano letivo e Angélica voltou a estudar. Ia cursar o terceiro ano do ensino médio.
Ela e Fábio namoravam firme e o moço tinha planos de se casar logo.
Fabiana namorava Leco e Henrique tinha muitos amigos.
Dinéia trabalhava muito, todos estavam bem e contentes.
O entusiasmo que tiveram a respeito do Espiritismo foi passando, Dinéia dava desculpas
para não ir ao Centro Espírita, Roberto, sem ela, começou a escassear suas idas, Fabiana
quase não ia e Henrique, sentindo-se bem, também foi faltando. E desculpas sempre se têm:
ora era porque chovia, estava frio, muito calor, tinha de estudar, trabalhava muito, estava
com tosse, etc. Mesmo o Evangelho no Lar era Angélica que forçava e fazia, às vezes não
conseguia reunir todos.
Quem se tornou assídua estudiosa foi Angélica, e Fábio
gostou muito da Doutrina. Até comentava:
- Parece que sempre fui espírita e não sabia, os ensina mentos da Doutrina parece que
estavam dentro de mim, que
os conhecia. Gosto muito porque os entendo e acho justos.
- Eu também gosto, Fábio, pois tudo que quero saber tem explicação lógica - disse
Angélica.
98
Foi então que, na escola de Henrique, durante um trabalho em que seu grupo de estudo se
reuniu no período da tarde, resolveram fazer a brincadeira do copo. Marcelo explicou
como se entendesse bem do assunto.
- Isso existe há muito tempo. Usa-se pêndulo, setas, agulhas, tabuleiro, etc. Mas como
não temos o material, vamos improvisar, podemos fazer com o copo. Vamos usar esta
cartela e colocar as letras e os números, depois evocaremos um espírito, uma alma do outro
mundo para responder para nós e pronto, podemos saber o que dona Eny irá perguntar na
prova de português.
- Será que isso funciona? Tenho medo de alma do outro mundo - disse Neuzinha. - O
padre falou que elas não
respondem e quando o fazem é o demônio.
- Que demônio nada! Ele está no inferno, é alma mesmo
- falou Marcelo, garantindo. - Se tem medo é melhor não participar, meninas são
medrosas mesmo.
- Eu acho perigoso, essas almas, espíritos, podem não ter o que fazer e ficar conosco -
opinou Henrique.
- Xi, você temendo como as meninas! Está com medo? Tudo bem, fique com a Neuzinha,
ela lhe fará companhia.
- Não é isso - defendeu-se Henrique. - Não tenho medo, só que os espíritas que
entendem do assunto não recomendam que se faça isso. Para eles isso é brincadeira e essas
evocações são assunto sério.
- Os espfritas falam com os mortos sempre que querem, por que não podemos fazer o
mesmo? - Indagou Ricardo.
- Porque eles estudam para isso e nós não sabemos - falou Henrique.
- Não queira atrapalhar, Henrique. Vamos fazer, vai ser legal! - Exclamou Soraya.
Henrique ficou com receio de sair da sala e os amigos o
chamarem de medroso, ficou olhando a preparação. Com
tudo pronto, Marcelo disse em voz alta:
- Se tiver uma alma por aqui, um morto que possa nos responder, que venha, por favor,
fazê-lo!
99
Cinco que participavam da brincadeira colocaram um
dedo no copo, que começou a mexer com dificuldade, até
que por meio das letras escreveu:
"Que Henrique venha nos ajudar."
- Vem! O copo quer você!
Marcelo puxou-o e Henrique colocou o dedo no copo, que andou rápido, respondendo a
todas as perguntas e dando o número das questões que iam cair na prova. No horário de
irem embora, Marcelo agradeceu e acabaram a brincadeira.
- Puxa, Henrique, você é bom nisso! - Disse Ricardo, elogiando.
Henrique não ficou tranqüilo, teve aquela sensação de que estava sendo observado,
resolveu esquecer e pensar noutra coisa, sabia que fora uma imprudência participar daquele
fenômeno, mas estudou mais as questões que o espírito, pelo copo, escrevera.
No outro dia, na prova de português, quatro das seis
questões caíram e os garotos se entusiasmaram. Marcelo
convidou-os:
- Vamos fazer hoje de novo. As quatro horas na minha casa. V todos e você, Henrique,
não pode faltar. Você irá, não é? Não está com medo como as meninas, se não for
pensaremos que está. Esperamos você.
E Henrique foi, só que dessa vez o espírito, por meio do
copo, começou a responder algumas inconveniências, como:
- Marcelo, Soninha não gosta de você, mas sim de Ricardo.
(Soninha era namorada de Marcelo).
- Ricardo, seus pais vão morrer logo de acidente.
- Luíza, seu pai tem uma amante e pensa em abandoná-los.
- Um de vocês vai morrer logo.
Acabaram a brincadeira tristes.
- Marcelo, eu não tenho nada com a Soninha - disse Ricardo.
- Bem, ele falou que é ela que gosta de você - respondeu Marcelo.
- E que meus pais vão morrer - murmurou Ricardo, lamentando.
100
- Um de nós também - falou Luíza.
- Eu disse a vocês que isso é perigoso, espíritos bons não respondem isso. O que ele disse,
nos respondeu, não tem lógica, isso é impossível saber. Lembro a vocês que ele só acertou
quatro das questões da prova - falou Henrique.
- Ele disse que dona Eny mudou as questões depois. Pode ser - disse Serginho.
- é melhor irmos para casa - expressou Ricardo.
E foram, mas Henrique não estava se sentindo bem, teve um mal-estar, parecia que com ele
estavam mais pessoas. Foi para casa e só piorou. Não falou nada do ocorrido em casa, sabia
que seus pais iriam reprovar e com razão.
A noite ele piorou muito. Henrique teve medo, foi para seu quarto e de novo teve a
sensação de estar sendo observado. Não apagou a luz, tentou rezar, mas não conseguiu. A
luz do quarto apagou e uma porta bateu com força. Henrique sentiu puxarem seu lençol,
então gritou.
Todos da casa correram para seu quarto. O pai chegou
primeiro, acendeu a luz.
- Que foi, Henrique? O que aconteceu?
O garoto estava branco de medo.
- é que vi de novo! Aconteceu de novo! Deixei a luz acesa, apagaram e puxaram meu
lençol, a porta bateu e
eu gritei.
- Que porta que bateu? Também ouvi - falou Fabiana.
- Acho que foi por causa do copo - falou Henrique, encolhendo-se todo na cama.
- Que copo? Não fale bobagem, garoto - disse Fabiana.
- Brincadeira do copo que evoca espíritos? - Perguntou Angélica.
- é - respondeu o menino.
- Henrique - falou Angélica, repreendendo-o -, você não sabe que isso é perigoso? Que
espíritos bons não se prestam a brincadeiras? Aposto que só responderam asneiras. E você,
que tem mediunidade, não deveria ter participado. Creio que esses espíritos devem ter
gostado de você e vieram para casa junto.
101
- Ai, meu Deus! Não quero começar tudo de novo -, falou Dinéia, apavorada. - Você,
menino, merecia levar uma surra. Isso é brincadeira que se faça? Vocês não têm nada mais
interessante para fazer?
- Vou pegar o Evangelho, vamos fazer uma leitura e orar. Amanhã você, Henrique, deve
procurar ajuda - expressou
Angélica.
- Vou telefonar para o Virgílio - disse Henrique. - Agora!
- Não, de jeito nenhum - falou Angélica, determinada.
- Virgílio e Silze devem estar dormindo. Não é certo. Eles nos ajudaram numa situação de
emergência e nos orientaram para que não ficássemos em situação de pedintes novamente.
E o que aconteceu? A não ser eu, ninguém mais se interessou pelo Espiritismo. Passou o
aperto e não quiseram mais nem ir ao Centro Espírita. E você, Henrique, que diz ter sofrido
ao pensar que estava doente, esqueceu logo da ajuda que teve, do propósito de seguir a
Doutrina Espírita. Sabe que é médium, que tem energia necessária para que os espíritos
possam usá-la para se manifestarem. E mesmo sabendo disso participou da brincadeira,
dessa imprudência.
- é que fiquei com receio de eles pensarem que eu sou medroso como as meninas -
respondeu Henrique.
- E não é? Não está com medo? - Perguntou Fabiana.
- Estou! O que faço agora? - Indagou o garoto.
- Que fique com esses espíritos só para você - respondeu Fabiana. - Eu não chamei
ninguém para responder nada
para mim. Quero dormir que amanhã tenho prova.
- Eu durmo com você - disse Angélica. - Mas, Henrique, você tem de me prometer que
amanhã irá ao Centro Espírita e que voltará a freqüentá-lo, como também a estudar a Dou
trina, e que nunca mais irá brincar com algo tão sério.
- Prometo e obrigado, Angélica. Deite aqui! Vamos dei xar a luz acesa.
Henrique teve medo à noite toda, dormiu muito pouco e
no outro dia, na escola, no recreio, Luíza os chamou.
- Meu avô é espírita e me deu uma bronca. Disse que só podia ser um espírito brincalhão
para responder a tantas
102
asneiras. Eu não vou fazer mais isso! Fiquei com medo e tive
de dormir com mamãe.
- Eu discuti com Soninha - falou Marcelo. - Ela me garantiu que gosta de mim. Acho
que aquele morto falou mentiras. Preocupei-me com a história que um de nós irá morrer
logo. E pena! Podia ter dado certo. Mas eu vou fazer de novo. Quem quiser participar que
vá à minha casa às quatro horas. Você vem, Henrique?
- Não! - Respondeu o interpelado, rápido.
- Está com medo? - Perguntou Ricardo.
- O avô de Luíza tem razão, eu também sou espírita e sei bem que tudo isso é brincadeira,
só que perigosa. Não se devem evocar espíritos só por curiosidade, os que se prestam a isso
normalmente não sabem nada e respondem o que der na cabeça. Não vou nem hoje e nem
nunca mais!
Marcelo e Ricardo riram, mas não falaram mais nada. Henrique concluiu que Angélica
tinha razão. Se a gente não tiver personalidade, coragem de dizer não, acabamos por fazer
coisas que não queremos e que não nos convêm. Tantas pessoas, por não ter coragem de
reagir, acabam fumando) bebendo, usando drogas, participando de rachas, etc. E corajoso
quem tem medo de dizer não a respeito de algo que sabe que não irá dar certo.
Henrique, sendo jovem, soube decidir o que era bom para ele. Somos sempre tentados por
outros a agir errado. Cabe a nós decidir pelo que nos convém e às vezes necessitamos ter
coragem para nos afastar de amigos e dizer não.
A tarde Angélica foi com ele ao Centro Espírita, onde
recebeu passe, e o dirigente o aconselhou:
- Henrique, desencarnados mal-intencionados estão por toda parte, sempre dispostos a
brincar, a sugar energias, às vezes não se aproximam por orarmos, por não estarmos na
sintonia deles. Mas quando são chamados, se acham donos da situação. Você foi
imprudente, é médium, agora deve estudar para quando for adulto trabalhar com sua
mediunidade para o bem, para ajudar e não para brincar.
- Eles falaram mentiras, não é? - Indagou Henrique.
103
- Sim, responderam divertindo-se, achando mais graça quando acreditaram.
Uma senhora que trabalhava como médium no Centro
Espírita e os escutava reclamou, suspirando:
- Vocês brincam e nos dão trabalho! Depois, quem recebe por incorporação esses
espíritos somos nós. Estou cansada! Tenho trabalhado muito e o trabalho de ajuda aos
doentes é cansativo!
O dirigente a olhou e respondeu.
- Não pensei que o trabalho fosse tão desgastante e ruim para você. De fato o médium doa
energias para ajudar os outros, mas deve pensar que recebe muito mais do que dispõe. Não
é bom reclamar! A reclamação é quem gasta energias e contamina a quem se doa. Você,
minha amiga, deve pensar e chegar a uma conclusão e fazer o que é melhor para você. Não
participar? Ou se participar, não reclamar. Porque não é bom para ninguém ter no grupo
alguém insatisfeito, que acha que faz muito e que não está sentindo-se bem. Se está
desgastando você muito, algo está errado e é certamente com você. Não queremos
sacrifícios e sim doação com amor. Aprenda a trabalhar sem se queixar.
A senhora abaixou a cabeça e ficou quieta. Henrique entendeu que o dirigente falou tudo
aquilo porque ela reclamou perto deles e também porque ele necessitava da lição, porque
estava com vontade de reclamar. Guardaria o que ouviu, um dia iria participar de um grupo
e para o trabalho ter um resultado positivo, cada um deveria fazer sua parte com boa vonta
de, com carinho, com disposição e nada de reclamação
- Três desencarnados acompanhavam Henrique e quando ele foi tomar passe, ficaram no
posto de socorro no plano
3 - Na história o dirigente agiu assim. Creio que seria melhor ele conversar com a senhora
em particular, porém acho que os dizeres seriam mais ou menos como foi. Reclamar é ruim
para quem faz e para quem ouve, e pode contaminar, levar outros a pensar assim. Um
trabalho, seja ele material, seja espiritual, não sai a contento com reclamações. E queixar-se
pode se tornar um mau hábito. Mas acho que ele, o dirigente, assim procedeu porque
também sentira que Henrique precisava também da lição, e, se não dissesse nada, o jovem
iria ficar com má impressão do trabalho mediúnico, como se fosse algo aborrecido e
cansativo. E não é nada disso, mas sim prazeroso, edificante, instrutivo, e como se sente
bem ao ajudar o próximo! (N.A.E.)
104
espiritual do Centro Espírita para serem orientados na sessão
de desobsessão* naquele dia mesmo, à noite.
Vamos agora saber o que ocorreu com os desencarnados nesse fato. Carmelo estava na casa
quando Henrique chegou da escola acompanhado pelos três desencarnados. Aproximou-se
deles sem se deixar ver e os escutou. Comentavam:
- Gostei desse garoto, ele tem a energia de que precisamos. Ele é médium e pelo visto
não é merecedor de ter um protetor para nos aborrecer e impedir que o atentemos e
suguemos suas energias.
- Sugar - disse o outro, rindo -, vampirizar, prefiro dizer que somos vampiros,
aterroriza mais.
- E ainda fomos chamados, não se pode dizer que somos intrusos. Estávamos quietos, só
observando, e os meni nos nos chamaram para responder àquelas perguntas idiotas.
- Eu até que fui olhar a prova que a professora elaborou, só não deu para observar mais
porque aquela senhora desencarnada que tenta tomar conta da escola não deixou. Mas
respondemos besteiras, não foi? Queria mesmo fazer todos brigarem. Adoro uma briga!
- Essa casa é bonita! Vamos ficar aqui! - Exclamou um deles, rindo.
Carmelo deixou, achou mesmo que Henrique agiu errado e que tinha de aprender a lição.
Sabia o garoto o caminho para o socorro, como também não lhe cabia fazer a lição de
outro, e a do Henrique era que aprendesse a não brincar com algo sério. Os três não
gostaram das orações nem da leitura do Evangelho, saíram do quarto e foram para a sala.
- Parece que aqui não é tão agradável como pensávamos - comentou um deles.
- Se ficarem orando vamos ter de ir embora.
- Que famiia chata! Aquela mocinha é desagradável, não gostei nem de olhá-la. Pelo visto
freqüenta um centro
* Desobsessão: reunião realizada para esclarecer o espírito obsessor e os que vagam, pois
estes geralmente têm pouco conhecimento evangélico ou o aplicaram de forma indevida. O
objetivo é que eles desistam dos seus propósitos de vingança e que sejam encaminhados
para um socorro (N.E.).
105
espírita, se ela for dormir com o garoto não podemos mais ir
lá - falou um deles.
- As vezes sonho imaginando que não há Espiritismo, se não existisse, ia ser bom mesmo.
Essa Doutrina só atrapalha!
- Falou, queixando-se o outro.
Mas foi no outro dia que Henrique e Angélica foram ao
Centro Espírita que Carmelo levou os três para lá. Foram sem
saber como; é que Carmelo volitou com eles*.
Receberam no Centro Espírita orientação, dois deles aceitaram a ajuda oferecida e foram
viver dignamente numa escola no plano espiritual; o terceiro continuou com Marcelo e
convidou outros; sempre há desencarnados para prestar esse tipo de fenômeno mediúnico.
Mas com medo, não se aproximou mais de Henrique.
Poderia ter ocorrido uma obsessão se Henrique não tivesse ido buscar ajuda. E dessa vez
aprendeu a lição, passou a
ir ao Centro Espírita e a estudar.
Marcelo, dias depois, convidou Henrique.
- Venha conosco fazer o copo andar. O morto que nos responde disse que você pode
ajudar a ser mais rápido.
- Você não parou com isso, Marcelo? Pois deveria. O que ele tem respondido de certo?
Nada! Quase nada. Que eu
responderia. Larga disso!
- Você tem é medo! - Falou Marcelo, sorrindo.
Henrique também sorriu, olhou nos olhos do amigo e respondeu, tranqüilo:
- Sou espírita e não quero brincar com isso. Uma comunicação com o plano espiritual é
coisa séria, que só deve acontecer por uma boa finalidade. Pessoas que trabalham não têm
tempo para isso, e desencarnados bons, ativos no bem, não se dispõem a responder
perguntas tolas. Eu não vou, e
* Os espíritos que têm conhecimento ou mérito para isso podem volitar porque manipulam
o fluido universal, que lhes permite percorrer longas distâncias em milésimos de segundo
com a rapidez do pensamento. Se necessário eles podem levar consigo outros espíritos que
ainda náo têm condições de volitar. Foi o que Carmelo fez, mas como os três espíritos
levados por ele não sabiam o que era volitar, ficaram confusos, não entendendo como
estavam na casa e, no minuto seguinte, em outro local (N.E.).
106
pode pressionar, dizer o que quiser, tenho personalidade
para lhe dizer não.
- Pressionar, personalidade, que conversa chata. Parece adulto. Está bem, mas está
convidado, vá quando quiser.
Ricardo ficou doente, sua mãe o levou ao médico, e, a conselho de uma vizinha, recebeu
passes. Ele não participou mais. Marcelo enjoou, ele sozinho não fazia o copo andar, parou
e a brincadeira foi esquecida.
Henrique, querendo aprender, indagou o orientador
do Centro Espírita:
- Por que uns sentem mais os espíritos nessas brinca deiras do que outros?
- Os sensitivos, os que têm a mediunidade mais acentuada, sentem mais, porque os
desencarnados gostam de assustar, de se fazer notar, e também porque essas pessoas são
mais fáceis de serem vampirizadas. Mas mesmo os que não sentem acabam influenciados
por eles.
E Henrique não teve mais vergonha de explicar a quem o convidasse para esse tipo de
fenômeno para que não fizessem, para que evitassem, pois poderiam sofrer conse qüências
desagradáveis.
Novamente Carmelo os ajudou. Como Angélica tornara-
se espírita, ele pediu na colônia para ser protetor dela, foi-lhe
dada permissão. Contente, ficou com a família.
107
Carmelo
E Carmelo, quem era ele? Por que Leda, ao ser doutrinada, havia dito: "Você aqui,
Carmelo?"
Um espírito tão dedicado, empenhado em trabalhar para
o bem, em ajudar, o que fazia ali? Estaria ele envolvido na história da Casa do Penhasco?
Curiosos, indagamo-lo e Carmelo nos contou sua história.
- Exerci, quando encarnado, a profissão de comerciante, tive uma loja e com esse trabalho
sustentei minha família. Fui casado, minha companheira foi uma pessoa honesta e bon
dosa, tivemos cinco filhos e um casamento feliz.
"Tinha um tio espírita que era uma pessoa boa, sempre disposta a ajudar a todos, e eu
gostava muito dele, estava sempre me convidando para ouvir uma palestra, ler um livro
edificante, e se às vezes eu lia ou ia ao Centro Espírita, era para agradá-lo. Achava
interessante, coerente, mas não sentia necessidade de ser religioso, tudo corria tão bem
para mim, estava tranqüilo. Até que meu filho mais velho, Oscar, começou a me dar
problemas. Ele era casado com uma moça muito boa e tinha duas filhas pequenas, quando
conheceu Leda e tornou-se amante dela.
Ele tinha um bom emprego, ganhava bem, mas, apaixo nado de modo doentio, não pensava
noutra coisa a não ser nela. Começou a faltar no trabalho e a fazer seu serviço distraído.
Pensei que estivesse doente, conversei com ele, que me garantiu estar bem. Mas acabei por
descobrir que ele estava
108
encontrando-se com uma mulher casada, com Leda. Voltei então a ter uma conversa séria
com ele, que não negou e afir mou que estava apaixonado e que não conseguia deixá-la.
Vendo-o gastar muito, começar a fazer dívidas, porque dava muitos presentes a Leda, tentei
novamente chamá-lo à razão. Ele foi bruto comigo. Então resolvi falar com ela, fui
envergonhado até a Casa do Penhasco. Leda me recebeu curiosa. Quando me identifiquei,
ficou séria e resmungou:
'O papai veio verificar o que o filhinho está fazendo? Não acha que Oscar é adulto? Ou o
senhor veio ver se o que ele está fazendo vale a pena? Gostou? Só que eu não sou para
você, é velho demais para meu gosto.
Creio que fiquei vermelho, minha vontade era dizer alguns desaforos a ela. Por segundos
comparei Leda com minha nora, a esposa de Oscar. Leda era vistosa, arrogante, cínica,
bonita, mas muito enfeitada, enquanto minha nora era simples, sorriso cativante, era
honesta e também bonita. Não conseguia entender meu filho por querer Leda e não a
esposa. Esforcei-me para me controlar, queria livrar meu filho dela e tentei ser gentil.
'Não, mocinha, não estou interessado em você, embora reconheça que é muito linda. Sou
pai, amo meu filho, minha família, é por esse amor que venho aqui. Oscar é casado, tem
duas filhas e está sendo inconseqüente, agíndo errado, e eu estou preocupado e vim lhe
pedir que o deixe.
'Não tenho nada com as coisas erradas que ele está fazendo, nem quero que ele largue a
família, porque eu não vou separar-me do meu marido. Estamos, Oscar e eu, só nos
divertindo juntos.' - Falou Leda, sorrindo cinicamente.
'Por favor, eu lhe peço, abandone meu filho, você também é mãe, deve querer a felicidade
de sua filha como eu
quero a do meu filho' - implorei.
'Acha então que sou eu que estou fazendo seu filho
infeliz? Pois está errado, eu que o faço feliz!'
'Não quis dizer isso, é que acho que ele está fazendo algo
errado e será infeliz!' - Falei encabulado.
'Então sou algo errado?' - Perguntou Leda, rindo,
debochando.
109
'São as atitudes dele que estão erradas!' - Falei, esforçan do-me para manter a calma
diante daquela mulher insolente.
'Não! Minha resposta é não! Não vou largar seu filho,
só o farei quando cansar. Agora saia de minha casa senão
chamo o jardineiro para colocá-lo para fora.
Saí sem mais nada dizer, foi frustrada a minha tentativa de levar Leda a compreender.
Minha esposa e eu sofremos com a situação, então lembramos do Espiritismo e começa
mos a ler livros espíritas e a freqüentar o Centro Espírita, onde recebemos apoio e
orientação.
Minha nora descobriu, ficou sabendo de tudo, discutiram e meu filho foi sincero com ela:
'Amo Leda e não você, não vou largar dela. Você que
tome a decisão que quiser.
Ela foi chorando para nossa casa, ele foi atrás. Ao me
ver gritou comigo:
'Então o senhor contou tudo a ela! Velho fofoqueiro!'
'Ah, o senhor sabia e não me contou nada! Não tomou
nenhuma atitude! Deixou seu filho agir assim!' - Falou minha
nora, chorando.
'Não tente me enganar, foi ele quem lhe contou. Foi até
falar com Leda como se eu fosse um jovenzinho, um débil
mental. Larga do meu filho, larga!'- Disse Oscar, ironizando.
'Eu não falei...
Comecei a falar e Oscar me deu um murro no queixo que me jogou no chão. Minha nora
gritou, foi me acudir e levou um também. Levantei, tentei impedir que ele batesse nela e
levei uns socos. Irado, ele saiu de casa. Minha nora, chorando, disse:
'Vou embora para a casa de meus pais e não volto mais!'
E foi, ela e as filhas foram embora, seus pais moravam
em outra cidade. Eu fiquei machucado, com o rosto inchado.
Oscar ficou zangado em sua casa, não veio mais na nossa, estávamos sempre preocupados,
vigiando-o sem que notasse. Então Leda, como dissera, cansou dele e não o quis mais.
Oscar ficou deprimido, bebendo. Não foi mais trabalhar e foi despedido.
110
Estávamos passando por todas essas dificuldades quando sofremos mais um golpe. Meu
filho caçula, com quase vinte e um anos, sofreu um acidente e desencarnou. Era noivo,
pensava em se casar logo. Tínhamos uma casa que demos a ele para que morasse quando se
casasse. Ele foi reformá-la, subiu no telhado da cozinha, que não tinha forro, uma viga de
madeira quebrou e ele caiu, fraturando a vértebra do pescoço, e desencarnou. Sofremos
muito, minha esposa e eu, mas nos esforçamos para colocar em prática o que sabíamos da
Doutrina Espírita para não entrar em desespero. Tentamos nos conformar e ajudar nosso
filho no plano espiritual. Vimos Oscar no velório, ele não se aproximou de nós, chorou
muito, depois não o vimos rnaís.
Dois meses depois que meu filho desencarnou, numa reunião de estudo no Centro Espírita,
no final, uma médium recebeu a comunicação de um benfeitor espiritual da casa, que, após
dar algumas orientações, me disse:
'Carmelo, como acha que está seu filho no plano espi ritual?'
'Creio que bem - respondi. - Uma pessoa boa, simples,
trabalhadora como ele, só pode estar bem'.
'Falou certo! Ele está realmente bem, já adaptado no plano espiritual. Veio no tempo certo,
sem abuso, sem apego. Com ele não precisa se preocupar, esse será o filho que não lhe dará
preocupações. Mas háos outros. Carmelo, você não tem esquecido do outro? Na sua dor,
não esqueceu de quem precisa de você?'
'O senhor está se referindo a Oscar? Sim, acho que me
esqueci dele. Obrigado pela notícia e pelo conselho' - agradeci, sincero.
Preocupei-me tanto com ele que, após a reunião, fui à
sua casa. Oscar me recebeu surpreso, não me esperava.
'Filho, posso lhe dar um abraço?' - Perguntei.
'Quer mesmo me abraçar? Eu lhe bati!'
'Quero-o bem, vamos conversar?'
'Pai, sofro muito! Não quero viver mais! Deus foi injusto, deveria ter me levado em vez do
meu irmão. Não presto para
nada!' - Disse Oscar tristemente.
111
'Não fale assim! Deus sabe o que faz!' - Falei, con
fortando-o.
Animei-o, conversamos por meia hora, mas estava tar de, temi que minha esposa se
preocupasse e me despedi. Andei dois quarteirões, senti uma vontade enorme de voltar e o
fiz. Empurrei forçando a porta, entrei na casa afobado, meu coração estava disparado e
encontrei Oscar colocando uma corda na estrutura do teto da lavanderia. Entendi que meu
filho queria se suicidar. Segurei-o.
'Deixe-me, pai! Quero morrer!'
Apertei-o com mais força e, com medo de não conseguir
detê-lo, gritei por socorro. Pessoas que passavam na rua e vizinhos correram em meu
auxilio e me ajudaram a segurá-lo.
Tivemos de amarrá-lo, o médico chamado veio e aplicou uma injeção que o fez dormir.
Levamo-lo para nossa casa, minha esposa e eu cuidamos dele com todo carinho, vendemos
seus móveis, pagamos suas dívidas e alugamos o -imóvel para que ele pudesse ter alguma
renda, como também mandávamos dinheiro para minha nora, que passou a morar com seus
pais e arrumou um emprego.
Oscar pareceu melhorar da depressão e foi procurar em prego. Acabou se encontrando com
Leda e voltaram a ser amantes. Meu filho mudou, voltou a ser alegre, deixou de tomar
remédios, arrumou um emprego, embora esse fosse bem mais modesto. Minha esposa e eu
não falamos nada, temíamos sua reação, que tentasse se suicidar de novo.
Meses depois, soubemos do ocorrido, da desencarnação de Leda. Oscar chorou muito,
voltou a ficar infeliz e novamente o levamos ao médico. Passou a tomar remédios e
voltamos a vigiá-lo.
'Agora morta, não será de ninguém, nem minha, nem do
esposo, nem do outro. Amei uma devassa' - reclamava.
Com nosso carinho reagiu, foi voltando à vida normal e meses depois procurou a esposa
para se reconciliarem, mas ela não o quis, estava com outra pessoa. Oscar interessou-se
pelas filhas, passou a vê-las com freqüência. Três anos depois arrumou outra companheira,
pessoa boa, espírita, e acabou se tornando espírita também, tiveram três filhos.
112
Com tudo isso, tornamo-nos realmente espíritas, passei a estudar a Doutrina e anos depois
fui o presidente do Centro Espírita que freqüentávamos. Fiz muita caridade, ajudei as
pessoas, tive uma desencarnação tranqüila após uns dias enfermo. E continuei ativo no
Plano Espiritual; após estudar, fui trabalhar em outro Centro Espírita, onde Virgílio e Silze
trabalhavam, e depois vim ser protetor de Angélica.
Vou muito visitar meus familiares. Minha esposa, que também está desencarnada, trabalha
num hospital no plano espiritual. Não quis trabalhar no Centro Espírita que freqüentei
quando encarnado, queria aprender com pessoas diferentes e também porque meus filhos
freqüentam lá e eu não quis ficar direto com eles, temendo fazer a lição que lhes cabe.
Porque não me acho preparado para orientá-los sem ser pater nalista e isso poderia até
prejudicá-los, pois quando fazemos a lição do outro o privamos de aprender. E o
aprendizado é um grande tesouro, patrimônio do espírito que nos acompanha por onde
formos chamados a viver.
Se tenho ligação com Angélica? Tenho. Fui em outra
encarnação Marcílio, o esposo dela.
Naquela época, quando a conheci, já estava passando da idade de me casar. Meus pais,
preocupados, trataram de me arrumar uma noiva. No começo me revoltei, mas quando vi
Angélica, mudei de opinião e passei a cortejá-la. Nada demonstrava que ela não queria,
namoramos, noivamos e casamos.
Amava muito meus filhos, eram lindos, sadios e pensava que tudo estava bem. Confiava
nela e foi terrível o que ocorreu. Estava trabalhando quando me avisaram para que voltasse
imediatamente porque meus filhos estavam desaparecidos.
Quando cheguei à estação da cidade em que moravámos, meu chefe estava me esperando,
tentou me dar a notícia, suavizando:
'Marcílio, seus dois filhos estão desaparecidos, estavam
perto do lago, procuramo-los e não os achamos.'
'Mortos?' - Indaguei com medo.
'Eu disse desaparecidos, não sabemos o que aconteceu' - respondeu ele.
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'E Angélica? O que meus filhos estavam fazendo lá?' - Perguntei.
'Tudo indica que estavam com a mãe, que ela estava
na casa abandonada, deixou-os do lado de fora e não os
viu mais.
'Ela estava na casa e os deixou fora? Não entendo!
O que Angélica fazia lá dentro? Me fale, por favor! A ver dade!' - Pedi.
'Você tem o direito de saber - falou meu chefe. - Angélica se encontrava com um
amante!'
'Meu Deus!'
Senti que ia desmaiar, fui amparado por amigos. Com preendi que meus filhos deveriam
estar mortos. Participei da busca no lago. Ao vê-los mortos senti tanta dor que não sei como
não morri. Nem tive raiva de Angélica, achei que ela já tivera seu castigo, mas não queria
vê-la mais. Fui embora daquela cidade. Mais tarde soube dela, que fora para o convento.
Sofri muito, foi um período difícil para mim, mas fui me recuperando pela fé que tinha.
Dois anos depois, arrumei outra companheira, uma mulher quase da minha idade, viúva,
com dois filhos, ajudei-a a criá-los e tivemos um filho. Nunca esqueci desse acontecimento
doloroso, mas tive o resto da existência tranqüila e desencarnei por um infarto. Fui
socorrido, aceitei o socorro e logo me adaptei ao plano espiritual. Visitei Angélica no
convento e no asilo, compreendi que ela também sofreu muito, então a perdoei de fato.
Estive desencarnado por uns anos e reencarnei novamente.
Compreendi que não fui para ela, naquela época, um marido carinhoso, poderia ter sido um
pouco mais romântico, percebido que ela era jovem, que queria ser amada e amar. Achei
que, lhe dando um certo conforto e que ela sen do mãe, tudo estaria bem. porém, não se
justifica o que ela fez, erros não têm justificativa, erra-se. Porém, há a intenção e os
motivos são levados em conta, e por isso a reação não é igual para o mesmo erro. E ela
sofreu muito e trouxe, pelo arrependimento, as conseqüências nessa encarnação. Julgou-se,
sim, porque ninguém a culpava, só ela, indigna de ser mãe. Seu
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remorso fez adoecer seu órgão reprodutor, pois se sentia me recedora de sofrer e agora
sentia-se quite com as leis divinas.
Isso pode acontecer; porém, cada pessoa reage de um
modo, mas as reações, se não forem anuladas com muito
amor, elas vêm nos reajustando, nos harmonizando.
Poderia tê-la ajudado mais. Achei-me, naquela época, muito nobre por não a ter matado.
Porém a castiguei, expulsando-a de casa, deixando-a ao relento, certo de que não nos
amávamos e de que ela deveria ter resistido à tentação ao encontrar com Fábio. Porque os
dois são espíritos que há várias encarnações se encontram e se amam. Na anterior,
combinaram no plano espiritual de voltar ao plano físico e ficarem separados. Pois
deveriam se reconciliar com seus desafetos. Fábio com a esposa e Angélica comigo. Mas
não resistiram e por imprudência ocorreu a tragédia.
Fábio, numa encarnação anterior, havia sido marido da que foi esposa dele na existência em
que ocorreu a tragédia; para casar com Angélica, assassinou-a. Necessitavam voltar juntos
para ele ser um bom esposo, acabar com a mágoa dela.
Eu, no passado, agi com maldade com ela, a fiz odiar. No século 12, eu era um monsenhor
e aconselhei o pai de Angélica a colocá-la no convento, porque este não queria que ela se
casasse com Fábio, que na época era um simples empregado. Angélica foi forçada para o
convento e eu me encantei com ela, passei a assediá-la, atormentando-a. Estuprei-a e ela
engravidou, teve o filho e eu mandei doá-lo, sem deixar sequer ela vê-lo. Angélica me
odiava. Um dia em que ela fingia aceitar meus carinhos, me golpeou na cabeça, me roubou
e conseguiu fugir do convento. Foi atrás de seu amor e fugiram. Fiquei acamado por dias,
com febre. Quando melhorei percebi o que ela fez, odiei-a e prometi vingar-me. Quando
fiquei bom, passei a persegui-los, coloquei uns homens para descobrir onde estavam e
paguei-os com o dinheiro da igreja. Não demorou para que eles me informassem que os
dois viviam felizes numa pequena aldeia, como se fossem casados. Mandei que os
matassem e eles o fizeram; Angélica estava grávida.
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Continuei minha vida de falso religioso, fiquei doente e desencarnei. Por esse abuso e por
outros erros sofri muito. Angélica e Fábio me perseguiram por anos, depois foram
socorridos e não os vi mais. Soube, porém, que ficaram uns anos numa colônia espiritual e
após reencarnaram. A vida nos separou, mas a reconciliação se fazia necessária. Reen
contramo-nos, Angélica e eu, antes de eu reencarnar como Marcílio, e prometemos ficar
juntos, acabar com o rancor. Prometi ajudá-la, ser companheiro e amigo. Essa encarnação
para mim foi importante, venci a tendência de me julgar ofen dido e querer matar ou
mandar, não quis mal a ela, não a prejudiquei, embora também não a tenha ajudado. E por
não ter ajudado é que sinto a necessidade de fazê-lo agora, foi por isso que pedi aos
orientadores do plano espiritual e tive permissão de auxiliar Angélica e Fábio, tentando
orientá-los para que procedam bem e que possam juntos progredir sem egoísmo, que
aprendam a amar de modo verdadeiro. E certamente, para ensiná-los, eu terei de aprender e
isso será muito bom para mim.
Aí está, amigo, minha história de erros e acertos, de alguém que quer se melhorar, sentir o
Criador em si e em todos".
E Carmelo tem razão, amar de modo puro, sem egoísmo, com desapego, é difícil, mas
quando queremos, podemos aprender. Deveria ser objetivo de todos nós aproveitar as opor
tunidades para aprender a amar. E Carmelo, não como devedor, mas como aprendiz, ali
estava num trabalho edificante com ex-desafetos, aprendendo a amar.
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Uma história interessante

E Fábio? O que aconteceu com ele? Como ficou após a
separação de Angélica na encarnação anterior?
Fábio também teve uma história interessante. E para que
entendam todos os acontecimentos, vamos narrá-los, como
também nos fará entender a justa lei da reencarnação.
Os pais de Fábio, Joaquim e Esmeralda, viveram numa cidade movimentada e grande.
Quando Joaquim a conheceu a amou, e este amor foi aumentando com o namoro.
Esmeralda era muito bonita e ele tinha muito ciúme, medo de perdê-la, de repartir com
outras pessoas seu carinho, seu amor. De modo possessivo a queria só para si. Casaram-se
e, a pretexto de morar num lugar mais sossegado, ele comprou uma casa num local longe
dos familiares dela e foi escas seando as visitas a eles, e também dava a entender que não
eram bem-vindos. Tinha ciúme dela com os irmãos, com o pai e até com a mãe. Mas não
falava abertamente, manipulava-a para fazer o que queria. Tentava compensá-la com
agrados, mimos, com passeios e viagens. Esmeralda sentia falta dos familiares, de amigos,
mas acabou por se acostumar e, mesmo morando na mesma cidade, via-os raramente.
Um dia, sua irmã lhe falou:
- Esmeralda, não acha seu marido estranho? Que tem ciúme de você? Não se sente presa?
Moram nessa casa isolada, tem muros altos e poucos vizinhos. Tem amizades por aqui?
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- De fato a casa é isolada, temos poucos vizinhos e só os conheço de vista. Mas tenho um
lindo jardim, sempre gostei de flores e passo o tempo cultivando-as. Joaquim não é
estranho e não tem tanto ciúme de mim. Eo modo de ele ser que parece diferente, mas é
muito bom marido, me agrada muito.
Mas essa conversa fez Esmeralda pensar, analisar, e achou
que o marido estava separando-a das pessoas. Tentou conversar com ele, mas o esposo
justificava:
- Esmeralda, vivemos muito bem assim. Por que ser diferente? Pessoas gostam de dar
palpites só para desarmonizar. Está lhe faltando alguma coisa? Seus familiares não vêm
aqui porque não querem e não fazem questão de nos receber. Esqueça-os. Amo-a tanto!
Esmeralda também o amava e tentava compreendê-lo e, para não brigar, para não
entristecê-lo, aceitava. Porque também ele era assim com os familiares dele e foram se afas
tando, um vivendo para o outro.
Joaquim às vezes sentia que não era certo seu proceder, mas não tinha como vencer o
ciúme. Se ele pudesse ficaria ao lado dela o dia todo. Mas trabalhava e no trabalho também
não tinha amigos. Vivia só para ela, como se fossem só os dois no mundo. Organizou tudo
de tal forma que ela só saía com ele. Mas não a atormentava, nunca brigavam, era muito
gentil e romântico.
Ele tinha um bom emprego, a casa em que moravam era dele, como também tinha outros
imóveis que lhe rendiam bom lucro. Saíam muito, mas não eram assíduos a lugar nenhum
para que não fizessem amizades.
Esmeralda sonhava com filhos, ele não queria, mas, para não magoá-la, não falava
abertamente, dizia que não era para se preocupar, que eles viriam na hora certa. Mas fazia
algo para evitar que Esmeralda tivesse filhos, pois não queria dividir seu amor com mais
ninguém. Não gostava nem de pensar que a esposa pudesse cuidar de um nenê, que não lhe
desse atenção.
Joaquim conhecera quando era moço um índio que vendia ervas, fazia estranhos remédios,
ele e seus amigos
118
compravam, às vezes, alguns preparados dele, e Joaquim, curioso, o indagava e soube de
uma droga que tornava as pessoas inférteis. Nossos índios tinham e ainda têm muitos
conhecimentos sobre plantas, e as que são anticoncepcionais são conhecidas deles há muito
tempo. O remédio que interessou a Joaquim era uma garrafada, ervas numa garrafa. Ele
deveria tomar uma dose todos os dias em jejum. Desde que ouviu isso do "erveiro", como
chamavam o índio, planejou tomá-la quando se casasse e que ninguém deveria saber.
E assim fez. Esmeralda acreditava que era para bronquite e que tomando não teria as
crises, só que ele nunca teve essa doença. Joaquim, satisfeito, viu que deu resultado, em
bora tivesse alguns efeitos colaterais, mas não se quei xava. Apaixonado cada vez mais pela
esposa, temia ter filhos para dividir o amor dela.
Esmeralda sempre sonhou em ter filhos. Esperançosa,
esperava engravidar. Já estavam casados havia sete anos e
ele não a deixava triste.
- Meu amor, somos felizes você e eu. Se Deus não quer nos dar filhos, vamos nos
conformar. Eu não me importo,
tendo você já me basta.
Ela achava que ele também queria filhos, que só falava
assim para agradá-la. Achava o marido gentil e amoroso.
Numas férias dele, foram viajar para longe, ele levou a garrafa com seu precioso remédio.
Mas, ao tomá-lo pela primeira vez, deixou-a cair e a garrafa quebrou. Ele se aborreceu e
preocupou-se.
- Joaquim, você já toma esse remédio há anos, não lhe fará falta ficar sem tomá-lo por uns
dias. Depois o clima aqui
é bom, o ar da montanha lhe fará bem.
Ele pensou e concluiu que talvez ela tivesse razão, tomava-o havia tanto tempo que seu
efeito deveria continuar por alguns dias mesmo sem tomá-lo. As férias transcorreram
normalmente e dias depois voltaram. Um mês depois ela descobriu que estava grávida.
- Como estou feliz! Deus escutou minhas preces. Um filho!
Joaquim disfarçou sua decepção, sorria e a agradava.
Mas o ciúme o atormentava. Pensava, aflito:
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"Não posso permitir que outro ser venha interferir entre nós. Será amamentado, terá mimos,
Esmeralda me deixará
para segundo plano. Não posso permitir. Mas o que farei?"
Aos poucos planejou tudo. Convenceu Esmeralda a ter o filho em casa, isso foi fácil, pois
naquela época era comum.
O índio lhe deu o endereço de uma mulher que era boa parteira e que por dinheiro fazia
qualquer coisa que lhe pedissem. Ele foi procurá-la e combinaram todos os detalhes.
- A senhora fará o parto, tirará a criança do quarto e me dará. Falará a ela que a criança
nasceu morta. Devo sair e voltar logo, aí poderá ir embora e nunca mais voltar. E já sabe,
segredo absoluto.
- Valho o que me pagam - respondeu a índia. - Não comentarei com ninguém. Trato é
trato. Farei direitinho o que me pede. Mas o que ela fez para merecer isso? O filho não é
seu?
Joaquim não respondeu e a mulher nada mais falou.
Recebeu o dinheiro, metade no trato e a outra receberia
após o trabalho.
Ele chegou em casa contente.
- Esmeralda, contratei a melhor parteira para fazer seu parto. é uma índia treinada.
- Queria ir ao hospital, minhas irmãs tiveram filhos com
médicos.
- Não será preciso! Tudo dará certo. Essa parteira é melhor que médico - falou ele,
decidido.
Esmeralda ainda argumentou, mas não o convenceu. Resolveu que seria como ele queria e
tratou de pensar nas roupinhas; só falava no bebê, e Joaquim, com ciúme, ouvia calado
achando que estava certo, teria que se desfazer da criança.
Mas tinha outro problema: o que fazer com a criança? Um dia, uma pessoa que trabalhava
com ele comentou que tinha uma prima que ficara viúva com três filhos pequenos, que
passava por necessidade e que estava difícil arrumar emprego. Joaquim, sorrindo, falou a
ela:
- Me dê o endereço da sua prima, talvez eu possa lhe arrumar trabalho.
120
A mulher, que se chamava Eugênia, morava numa cidade
próxima. Com o endereço na mão, ele teve uma idéia, e logo
no outro dia foi procurá-la.
- Vim aqui porque preciso de auxílio e a senhora também precisa de ajuda. Não vou falar
quem eu sou e nem quero que investigue. Minha irmã é solteira, está comigo e com minha
esposa atualmente, porque está grávida. Mas meu pai não pode saber, ele é intransigente,
conservador e nunca aceitaria uma filha mãe solteira. Certamente, se souber, irá enxotá-la
ou mandá-la para um convento. Gosto muito dela e resolvi ajudá-la. Estamos escondendo o
fato, ela terá o filho e precisamos de alguém para cuidar dele até que ela possa ficar com a
criança. A senhora precisa trabalhar e, se aceitar, será bem remunerada, poderá cuidar dos
seus e de mais um. Se sua resposta for sim, já começo a lhe pagar.
A mulher aceitou, achando que era uma proposta mara vilhosa. Eugênia sabia cuidar bem
de crianças e depois poderia ficar em casa cuidando dos seus filhos, e com o dinheiro que
receberia todo mês, daria para viver relativamente bem.
Joaquim combinou com ela que, na época em que a criança estivesse para nascer, ela viria
para a cidade e ficaria aguardando numa pensão. Ela aceitou, sua mãe ficaria com seus
filhos.
Ele planejou tudo, até roupas comprou e entregou à senhora. Trouxe a índia parteira para
Esmeralda conhecer. Chegou o momento de a criança nascer, ele buscou a parteira e o
parto foi fácil. Embora sempre resulte em dor e alguns transtornos para a mãe, a índia pôde
fazer sem dificuldades o combinado. Levou o nenê rápido para a sala e entregou-o a
Joaquim, que o enrolou. Por segundos olhou para a criança, era um menino perfeito e
bonito. Levou-o rápido para a pensão e pediu que Eugênia fosse embora logo.
- Vou limpá-lo e vesti-lo, dentro de duas horas estarei no trem rumo a minha casa. E pode
ficar sossegado, senhor,
cuidarei bem dele.
Joaquim voltou rápido para casa. Esmeralda descansava, a índia recebeu seu pagamento e
foi embora. Ele entrou
no quarto.
121
- Joaquim, o que aconteceu com nosso filho? Ele nasceu morto mesmo?
- Eu o levei correndo ao médico, mas a criança estava morta. Sinto muito!
Ele a agradou, consolou, mas Esmeralda estava inconsolável e isso lhe deu mais raiva,
porém se controlou.
- Vamos ter outro, não é? Quero um filho! - Disse Esmeralda, chorando.
- Claro! Mas agora trate de descansar.
- Quero ver nosso filhinho! Traga-o aqui para que eu possa beijá-lo.
- Esmeralda, ele está morto. Já desmanchava, as freiras organizaram o sepultamento.
Ela se conformou e era grata ao esposo pelos cuidados que tinha com ela, porque pensava
que ele sofria, mas que fazia de tudo para ajudá-la. As famílias souberam, houve visitas, a
mãe de Esmeralda criticou:
- Talvez fosse o caso de tê-la levado para um hospital.
- Teria acontecido do mesmo modo. A criança estava morta-respondeu ele secamente.
Foi voltando tudo ao normal. Joaquim conseguiu, em troca de pagamento extra, registrar a
criança, o filho, como pais desconhecidos, lhe deu nome de Fábio, um sobrenome
inventado e o mandou para Eugênia. Fez isso como mandava também todo mês o dinheiro
combinado por um portador, um moço que fazia esse tipo de serviço. Colocava as cédulas
num envelope vedado e às vezes pedia para Eugênia escrever algumas linhas lhe dando
notícias.
Esmeralda quis conhecer o túmulo do filho. Joaquim então comprou um, fez uma lápide
bonita com o nome que a esposa havia escolhido se a criança fosse menino: Gabriel.
Foram, ela levou flores, chorou e ele a consolou. Não tinha nada enterrado, mas ela pensava
que ali estava seu filhinho amado. E ia muito ao cemitério. Joaquim não descuidou do
remédio, continuou a ser o marido amoroso que fazia tudo para distraí-la e ela tentava
disfarçar a tristeza quando estava com ele.
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Três anos se passaram quando Eugênia escreveu para ele. Mandou a carta pelo portador,
que necessitava muito
lhe falar. Joaquim foi a casa dela, conversaram na sala.
- Não quer ver seu sobrinho? - Indagou Eugênia.
- Não, prefiro não o ver. Ele está bem?
- Sim, está. E um menino bonito e inteligente. Chamei-o aqui porque vou casar
novamente e me mudar para longe. E tenho que ter sua autorização para levar o menino -
falou Eugênia.
- Minha irmã também casou e o marido não pode saber desse fato, do filho. Você quer o
menino?
- Amo-o como se fosse meu. Fábio me deu sorte, com o dinheiro que o senhor nos manda
não passamos necessidade. Ele é feliz conosco, queremos continuar com ele - disse
Eugênia.
- Claro! - Respondeu Joaquim. - Para mim está bem, ele se acostumou com vocês,
pode levá-lo. A senhora dará ao portador o endereço, darei um jeito de mandar dinheiro
duas vezes ao ano para ele, até que fique adulto. Mas a senhora não poderá lhe dizer nada.
Está bem?
- Nem se quisesse dizer não poderia, não sei nem
seu nome.
Eugênia casou-se, mudaram e Fábio foi com eles. Ela era uma mulher simples, mas
bondosa, gostava do menino como se fosse seu. Fábio cresceu, era esperto, estudou, dava-
se bem com os filhos de sua mãe adotiva, eram como irmãos. As vezes ele queria saber de
seus pais e ela contava o que supunha saber:
- Você é filho de mãe solteira, foi seu tio que o trouxe para eu criá-lo e nos tem mandado
dinheiro. Sua mãe casou-se depois e o marido não sabe que ela teve um filho. Certamente
ela o ama, mas não pode ficar com você.
- Sabe, mãe Eugênia, sinto que minha mãe me ama e que às vezes chora por mim - falou
Fábio.
- Não pense nisso, você é meu filho, todos aqui gostam de você.
As vezes ele ficava mais curioso, mas Eugênia realmente
só sabia o que lhe contara e aconselhava-o a não pensar
ou aborrecer.
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- Isto foi há tempo. Não deve tentar descobrir nada, você está bem conosco, é o que
importa.
Na adolescência Fábio teve vontade de investigar, mas
não o fez. Afinal, nada lhe faltava, ele tinha família.
Joaquim, de tanto tomar as ervas, ficou impotente e com
mais ciúme da esposa. Esmeralda nada fazia para contra riá-lo, entendia-o e pensava:
"Ele sofreu com a morte de nosso filho, não demonstrou
para não me deixar pior. Queria outros filhos mas nada
falou, temendo me ofender, pois sou eu a culpada."
Joaquim às vezes olhava para a esposa e sentia remorso.
Ela era tão boa! E ele sempre foi contra adoção.
- Esmeralda, se Deus não nos deu mais filhos deve ter suas razões. Depois, você já ficou
grávida uma vez, poderá
ficar de novo.
Quando mais velho, dava desculpa da idade.
- Já somos velhos e filhos não nos fazem falta, temos um ao outro.
Joaquim ficou doente, acamado e a esposa cuidou '
com muito carinho. Ele parou de mandar dinheiro, mas
Fábio já estava moço e já trabalhava.
Joaquim sofreu muito e desencarnou. Esmeralda se viu sozinha, estavam separados de
todos. Compreendeu que também fora culpada, porque aceitou o que o esposo fizera. Antes
de o esposo adoecer, escondida dele, Esmeralda ia muito num orfanato que ficava perto de
sua casa e, viúva, passou a trabalhar lá como voluntária, dedicando todo seu tempo a cuidar
dos nenês. Fez um testamento deixando tudo o que tinha para a instituição. Desencarnou
tranqüilamente enquanto fazia mamadeiras no orfanato. Foi socorrida por desencarnados
bons que trabalhavam ajudando as crianças ali abrigadas, levaram-na para uma colônia e
logo estava bem.
"Queria ver meu Joaquim, desencarnou primeiro que eu
e não o vi."
Esmeralda pedia sempre. Após um tempo em que estava trabalhando, sendo útil, o
orientador a chamou para
uma conversa.
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- Esmeralda, Joaquim não está aqui na colônia. Está vagando no Umbral, para onde foi
desde que desencarnou.
- Meu Joaquim? Mas por quê? Ele foi tão bom... - Inda gou, surpresa.
- Você poderá visitá-lo daqui a três dias, eu a acompanharei. Iremos até onde ele está,
mas prepare-se para saber
algo desagradável e para perdoar.
Esmeralda ficou pensando e concluiu que talvez desconhecesse algo que o esposo tivesse
feito para ter ido e já estar a tempo no Umbral. Talvez uma traição, mas isso não teria tanta
importância. Aguardou ansiosa a visita. Embora já tivesse estudado como era o Umbral, lá
teve um impacto e achou um lugar feio e sujo. Ao ver o esposo no canto de uma gruta
escura, Esmeralda se apoiou no orientador e este lhe deu forças. Aproximaram-se:
- Joaquim!
Esmeralda! Você aqui? - Exclamou ele, surpreso.
- Desencarnei também e vim vê-lo. Por que está aqui, meu marido? - Indagou
Esmeralda.
- O remorso...
Ia parar de falar, mas o orientador queria ajudá-lo, queria que ele falasse a Esmeralda o que
fez, que lhe pedisse
perdão, e ele falou pausadamente.
- Esmeralda, nosso filho não morreu...
Ele contou tudo, ela escutou, tremendo e chorando.
Quando ele acabou, fez-se um silêncio profundo, até que ela
conseguiu falar:
- Meu Deus! Por que fez isso, Joaquim? Não entende que nosso amor não ia ser
diminuído? Que quando repartido ele aumenta? Como pôde? Quero ir embora! Por favor,
me leve daqui!
O orientador a levou, e Joaquim voltou ao seu canto. Voltaram à colônia; Esmeralda chorou
muito. Após desabafar, o orientador consolou-a:
- Você precisava saber o que aconteceu, achamos que teria forças, que não se desesperaria
e que o perdoaria.
- Não vou me desesperar, choro porque o que ele fez foi algo que me chocou, nunca
poderia imaginar, é inacreditavel
125
aterrorizante. Vou perdoá-lo, quero fazer de tudo para não ter mágoa dele. O mais
difícil será ele se perdoar. Se meu filho está encarnado, quero vê-lo. Por favor, leve-me
para conhecê-lo.
E Esmeralda foi conhecer Fábio, que já morava em outra
cidade, e havia ocorrido o acidente com os filhos de Angélica.
Pôde sempre o visitar e o amou muito.
Esmeralda também perdoou Joaquim, foi muitas vezes
visitá-lo, orientá-lo, e foi após muitos anos que ele pôde ser
socorrido. Não ficaram juntos, porém ela muito o ajudou.
Esmeralda quis saber se havia algum motivo para
Joaquim ter agido daquela forma.
"Será que Joaquim e Fábio foram inimigos? Por que o
esposo teve tanto ciúme? Como ele pôde fazer isso com seu
próprio filho?"
Foram indagações que ela fez ao seu orientador, que,
para responder, foi com ela ao Departamento das Reencarnações, na colônia, e Esmeralda
pôde então saber.
Na sua encarnação anterior se encontrou com Joaquim, que a amou, mas ela era casada. Seu
esposo não fora bom, bebia e a espancava, Joaquim queria que ela se separasse do marido
para ficar com ele, mas ela não quis, alegou que não podia fazer isso por causa dos filhos.
Ele ficou solteiro, sozinho, amando-a a distância. Fábio, nessa encarnação, não tinha nada a
ver com ele, não se conheciam, não foram inimigos, nem amigos. Seriam pai e filho.
- Muitas vezes, Esmeralda - explicou o orientador -, achamos que desentendimentos
são só por encarnações passadas. Acontece que aquele que não está harmonizado no amor
faz sempre desafetos.
Joaquim, abrigado, passou a fazer tarefas, estudar e a
fazer um tratamento que o ajudou a se reequilibrar.
Fábio cresceu tendo Eugênia por mãe, os filhos dela como seus irmãos e nunca procurou
investigar ou saber mais sobre o mistério do seu nascimento. Foi um moço cativante,
bonito, falante, muitas jovens ficaram interessadas nele, inclusive Rosinha. Passaram a
namorar e ele sentia que necessitava
126
protegê-la. Às vezes esse sentimento era tão forte que não conseguia entender. Rosinha não
precisava de proteção, seu pai era muito bom, tinha uma famiia estruturada e feliz. Mas o
pai dela não queria o namoro. Rosinha insistiu, então o pai arrumou um bom emprego para
Fábio no correio. Eles se casaram, viveram bem e tiveram três filhos, dois meninos e uma
menina. Ele foi promovido e transferido para uma outra cidade, que ficava longe da que
eles moravam.
Gostaram da cidade. Logo que se mudaram, Fábio viu Angélica e não conseguiu pensar
noutra coisa. Gostava da esposa, mas se apaixonou por Angélica, pareceu que ao vê-la
encontrara o grande amor de sua vida. Mas eram casados e tentou resistir à tentação de vê-la
de marcar um encontro. Mas acabou fazendo. Sentiu que a amava muito quando a teve
nos seus braços e tudo fazia para ir ao seu encontro. A esposa desconfiou, ele não queria
magoá-la, era muito boa, mas não conseguia ficar sem ver Angélica.
Quando aconteceu o acidente, todos ficaram sabendo. Rosinha chorou muito e Fábio sentiu-
se péssimo. A esposa mandou chamar o pai. Este veio, soube de tudo, não falou nada e
voltou para sua casa, mas conseguiu transferir Fábio para longe daquela cidade.
- Fábio - disse Rosinha -, você quer ir atrás dela ou quer cuidar de seus filhos? Talvez
eles morram também sem você.
Isso doeu muito nele, lembrou que fora filho adotivo e
que nunca soube quem eram seus pais. Sofreu com isso
e não tinha o direito de fazer seus filhos sofrerem. Já bastava
o que tinha ocorrido com os filhos de Angélica.
- Fico com você e com nossos filhos, me perdoe, Rosinha, foi uma loucura.
- Uma loucura que fez a infelicidade de muitas pessoas. Perdôo porque temos filhos e eles
merecem ter pai e mãe para
não serem como você, um órfão na vida.
Embora se sentindo covarde, ele não procurou Angélica. Enquanto o pessoal da cidade
procurava os filhos dela, ele foi a casa abandonada e escreveu o bilhete. Só saía para ir
trabalhar, e todos ao vê-lo comentavam, e ele não sabia
127
como agir. Soube que o marido de Angélica a expulsou de casa e que fora para o convento,
sentiu alívio, ali ela estaria protegida. Mudou com a família para longe. Nunca mais foi
feliz. Amava mesmo Angélica e tinha remorso por não a ter ajudado, por ter agido errado,
por não ter resistido à tentação de tê-la. Achava-se culpado por tanta infelicidade. E tentou
ser bom esposo, Rosinha o perdoou realmente, reconciliaram-se, iniciaram vida nova, onde
ninguém sabia do ocorrido, e tiveram mais dois filhos. Ele conseguiu ser bom pai e esposo.
Rosinha desencarnou, ele ficou viúvo, aposen tou-se e foi ajudar em trabalho voluntário em
um asilo, achan do que assim ficaria de alguma forma unido ao seu grande amor, pois
soube que Angélica trabalhava também num asilo. Gostou do seu trabalho, passou a
dedicar-lhe todo seu tempo e foi lá que um dos abrigados lhe falou de certos ensinamentos,
que embora não tivesse para eles o nome de Doutrina Espírita, era o conhecimento da
verdade de uma forma simples e justa, uma outra forma de entender os ensinamentos de
Jesus. Fábio se interessou muito e passou a vivenciá-los.
Ele desencarnou, foi socorrido pelos espíritos que ajudou
no asilo, logo se adaptou. Ativo, passou a trabalhar e a
estudar. Encontrou-se com Angélica, conversaram muito e
ele lhe pediu perdão.
- Perdoe-me, Angélica, fui covarde abandonando-a daquela forma. Erramos juntos e você
sofreu muito mais.
- Eu o compreendo, Fábio, e acho que agiu certo. Não podia abandonar seus filhos. Tudo
já passou e não há como mudar os acontecimentos. Fomos imprudentes, não resis timos,
havíamos combinado ficar separados. Eu o perdôo, mas é difícil me perdoar. Devíamos ter
resistido e não ter descuidado de meus filhos.
- Fomos imprudentes, mas não fizemos por mal.
- Não devíamos ter feito, não tem justificativa - falou
Angélica:
Resolveram estudar, aproveitar a oportunidade para
aprender no plano espiritual e planejaram reencarnar.
Foi uma alegria para Fábio encontrar com sua mãe,
Esmeralda, mas chocou-se ao saber de tudo.
128
- Não entendo! Por quê? - Indagou Fábio surpreso.
- Meu filho, Joaquim estava desequilibrado - explicou Esmeralda. - Seria tão bom
você visitá-lo, ele receber
seu perdão.
Fábio pediu um tempo para isso, achou incrível toda sua história. Meses depois, sentindo-se
preparado, foi visitar o pai com sua mãe. Abraçaram-se. Joaquim lhe pediu per dão,
chorando.
- Não podia ter lhe feito isso, privei-o do amor de mãe, perdoe-me, meu filho.
- Perdôo! Por que não esquecemos tudo isso? A vida continua e sempre temos
oportunidade de aprender. Quem
não errou? Sejamos amigos.
Angélica queria reencarnar, queria esquecer, e Fábio
decidiu fazê-lo também; pediram e seus pedidos foram atendidos. Ele rogou aos
orientadores:
- Para melhor aproveitar essa reencarnação, queria, se possível, ter por empréstimo bens
materiais e após perdê-los.
- Seu pedido será aceito; você não será muito rico, mas terá bens para administrar, e se for
trabalhador, após perder, não será um necessitado. Mas como quer passar por isso? -
Indagou um dos orientadores.
- Quero reencarnar entre uma família de posses financeira, ser rico e ficar pobre - falou
Fábio, decidido.
- Não prefere o contrário? Talvez você possa se revoltar.
- é isso que quero. Provar a mim mesmo que passarei por isso e não me revoltarei.
- Está bem, assim será - disse o orientador.
Fábio e Angélica não fizeram planos de se reencontrar.
Ela disse:
- Que aconteça o melhor para nós.
- Não estaremos longe, mas também prefiro pensar como você, que esse encontro seja
para o nosso bem. Quero
aproveitar bem essa oportunidade da reencarnação.
- Eu também - falou Angélica.
E se reencontraram.
129
Com os filhos,
Todos estavam bem na Casa do Penhasco. Depois do acontecimento do copo, iam com
freqüência ao Centro Espírita, e faziam toda semana o Evangelho no Lar, liam livros
espíritas e Henrique participava da Mocidade Espírita e nada sentia de diferente. Fábio e
Angélica tornaram-se realmente espíritas e se amavam cada vez mais.
Angélica terminou o colegial e resolveram casar. Em bora ela estivesse feliz, preocupou-se,
pensou muito. Como
privá-lo de ser pai? Resolveu conversar com ele.
- Fábio, amo você, mas sabe que não poderei ter filhos.
- Soube disso logo após a ter conhecido. Lembra? Você me disse, achei até engraçado,
naquela época só estava interessado em você. Mas por que você está preocupada com isso
agora? Depois, filhos não são só os biológicos. Sempre quis adotar uma criança, até fiz uma
promessa. E verdade! Vou lhe contar como foi que a fiz. Sempre gostei dessas serras, desde
pequeno passeio por elas: em excursões, com guias, com meu pai. "Uma vez, eu estava
com dezenove anos, organizei um passeio com uma turma de crianças que tinham de dez a
quinze anos. Fomos ao topo de uma das serras, fomos de caminhão até a trilha e após
subimos todos contentes. Lá em cima é uma beleza, a vista é encantadora, fizemos o nosso
piquenique e após resolvemos ir mais adiante, seguin do uma outra trilha. Organizamos a
fila e vi, preocupado,
Fi1ho
130
que faltava um dos garotos. Tentei não ficar nervoso, inda guei à turma, ninguém o vira.
Onde estaria João Alfredo? Era assim que chamava o garoto. Teria voltado? Descido?
Ficado para trás? Onde estaria? Após uma hora de procura, comecei a me desesperar.
Organizei três grupos para procurá-lo, falei com a primeira turma: "Vão por esta trilha, mas
não longe, caminhem por trinta minutos e depois voltem, mesmo se não encontrarem. Dois
de vocês fiquem aqui, talvez ele tenha se afastado e volte. E vocês, do terceiro grupo,
desçam e peçam ajuda antes que escureça. Eu vou procurá-lo pela mata." Andei em volta,
tentando não me perder, me machuquei todo, me arranhei e nada de achá-lo. Fui onde
estava o segundo grupo, que ficou onde fizemos a merenda, o primeiro voltou e nada de
encontrá-lo. Desesperei-me, a responsabilidade era minha, fui eu que organizei o passeio,
afastei-me deles, ajoelhei no chão e orei com fé:
"Deus, nos ajude! Que João Alfredo seja encontrado!
Eu prometo, se o acharmos, que adoto uma criança!" Chorava e orava, quando escutei:
"Fábio! 1-lei, vocês, onde estão?"
Corri e lá estava João Alfredo. Lágrimas correram abun dantes, chorei de alívio ao vê-lo
bem. O que aconteceu foi que João Alfredo se afastou sem falar nada para fazer suas
necessidades biológicas, achou um lugar convidativo e resolveu deitar, descansar uns
minutos e dormiu. Incrível que ele não tenha escutado nossos gritos, chamando-o. Sentimo-
nos aliviados e descemos em seguida. Encontramos junto ao caminhão uma equipe que ia
subir para nos ajudar a procurá-lo. Nunca mais organizei excursões. Contei a minha mãe a
promessa que fiz.
"Fábio - disse ela -' você estava desesperado quando a fez. Depois, isso não se resolve
sozinho, você, para adotar uma criança, terá que obter o consentimento de sua esposa.
Vamos pedir ao padre para mudar essa promessa".
Mas eu não quis e o tempo foi passando. Agora que
sou espírita, entendo que não se devem fazer promessas, não
se deve dar nada em troca por algo recebido, mas foi feito.
131
E seria para mim importante que você, Angélica, concor dasse em adotar uma criança.
Realmente não me importo em não os ter biologicamente, mas quero tê-los por amor, pelo
coração.
Fábio quietou-se e Angélica o abraçou.
- Não só um, mas dois, três. Seremos bons pais, Fábio, cuidaremos, protegeremos nossos
filhos. Filhos que Deus
nos dará.
O casamento deles foi uma festa muito bonita. Realizou-se no jardim da Casa do Penhasco,
casaram só no civil. Ela vestiu-se com o traje tradicional de noiva, estava linda e, como
Fábio, muito feliz.
- Fábio, sinto-me muito bem, tranqüila. E tão bom estar com você e sentir que por isso
não fizemos a infelicidade de
ninguém! Não é engraçado ter essa sensação?
- Não. Porque eu também sinto isso, tranqüilidade. E ver todos felizes com a nossa
felicidade é bom demais - falou
Fábio, rindo.
Foram morar num apartamento na cidade.
Fabiana passou na universidade, foi estudar fisioterapia em outra cidade. Namorava Leco,
que também foi estudar fora. Henrique fazia planos de continuar os estudos. Roberto foi
transferido, iriam mudar-se.
Fábio comprou a Casa do Penhasco e, assim que os sogros se mudaram, transferiram-se
para lá. A casa seria ideal para recebê-los, pois planejaram adotar crianças, os filhos do
coração.
Nena e Antonio ficaram com eles.
- Menina Angélica, gostamos muito daqui e agradecemos por nos deixar ficar. Ajudarei
você com as crianças - falou a empregada.
- Fábio e eu é que agradecemos. Será bom tê-los conosco, já que meus pais se mudaram.
Não me sentirei tão sozinha
tendo vocês por perto.
O casal entrou na fila para a adoção na capital do estado, tiveram a promessa de que logo
teriam um nenê. Angélica
se pôs a preparar o enxoval.
- Angélica - disse Fábio -, estou impressionado com um sonho que tive esta noite.
Sonhei com uma senhora muito
132
bonita, tranqüila, que me chamou de filho e, interessante, senti que era minha mãe, e ela me
disse: "Logo, filho querido, estarei ao seu lado, como sua filha". Acordei com uma
saudade imensa desse espírito.
- Fábio, pode ter sido esse espírito sua mãe em outra existência e que se prepara para vir
até nós. Que bom, fico
contente, teremos uma filha.
Mas foi no hospital da cidade que teve um órfão que a mãe abandonou. Fora uma moça que
deixou um nome falso e num descuido fugiu do hospital, deixando o menino. O diretor
chamou Fábio.
- A criança está aqui, podemos dar a vocês, será um órfão a menos.
Fábio foi imediatamente falar com Angélica.
- O que faremos? Não deve demorar para recebermos a criança que esperamos. Ficar com
este? Mas é menino e
esperamos uma menina.
- Fábio, por que não ficamos com este menino e continuamos na fila? Talvez demore a
que esperamos, mas se não
demorar, podemos muito bem ficar com os dois.
- Sinto, quero ficar esperando esta menina. Se você acha que podemos ficar com os dois e
que não terá importância
serem pequenos, tudo bem.
- Nena me ajudará. Depois, é nossa intenção adotar mais de um. Vamos buscá-lo.
Deram-lhe o nome de Marcelo. A criança encantou a todos, necessitava de cuidados
especiais, era magrinho e fraco. Angélica e Nena, com carinho e mimos, trataram dele e
logo estava bem. Três meses depois, receberam o aviso para buscar uma menina. Fábio
alegrou-se.
- E a minha menina, Angélica. Vamos buscá-la, Nena ficará com Marcelo.
Foram no mesmo dia para a capital do estado buscar a
criança.
- E a nossa Melina! Amo você, filhinha! - Exclamou Fábio ao vê-la.
Felizes, trouxeram-na para casa.
133
Carmelo, que continuava com eles, ficou muito contente. Marcelo era Joaquim, o pai que
abandonou Fábio e que agora vinha para uma reconciliação, como também o casal se
incumbira de ensiná-lo a amar de forma verdadeira. Melina fora Esmeralda, não precisava
esse espírito ser abandonado, mas confiou em Carmelo, que tudo fez para encaminhá-la
para junto de Fábio, seu filho amado, já que Angélica não poderia conceber. Depois, como
Esmeralda disse: "Pais são os que criam e o amor não é só pelos que geram." E ela tinha,
tem razão. Assim, Fábio teve em seu lar espíritos reencar nados que foram seus pais e
agora, como filhos, reatariam laços de carinho.
Reformaram a casa, fizeram do local uma diversão para
os filhos.
As crianças estavam com dois anos quando um empregado de Fábio desencarnou,
deixando a esposa grávida. Este casal chegou na cidade precisando muito de ajuda, vieram
de longe à procura de emprego. Fábio arrumou para ele limpar terrenos, um lugar para
morar e colocou os filhos na creche que Angélica cuidava. Com alimentos e remédios, logo
as crianças ficaram sadias. Ele desencarnou de repente, tinha doença de Chagas. A mulher
foi falar com ele.
- Senhor Fábio, o senhor é muito bom, tem nos ajudado muito, tenho três filhos e este será
o quarto. Quero ir embora para meu estado, para a cidade onde moram meus pais, assim
que meu filho nascer. Queria que o senhor me ajudasse a ir e que ficasse com este que estou
esperando.
- Vou ajudá-la!
E nasceu mais um menino, Milton. Fábio e Angélica receberam mais um filho, um
negrinho lindo e sadio, e a mulher
com os outros foram embora e nunca mais voltaram.
o ç os s de ci ha'.n.a ima "tenina ç
adoção, pois eles continuavam na lista. Foram buscar Mônica, uma criança linda e sadia.
- Bem, agora a família está completa! - Exclamou Angé lica. - Quatro filhos!
- Parece que falta um - falou Nena, rindo -, o do nome que começa com Mu.
134
As crianças cresciam fortes, sem problemas e muito amadas. Melina tinha adoração pelo
pai. Podia estar fazendo o
que fosse que, ao vê-lo chegar em casa, corria para abraçá-lo.
- Meu papai querido! Meu filhinho!
Todos riam, achando graça.
Nena e Antonio ajudavam Angélica a cuidar dos filhos. As crianças gostavam muito deles e
os chamavam de avós.
Fábio estava bem financeiramente. Tinha uma rede de sorveteria pelo litoral e imobiliárias.
Era bom patrão, dava emprego a muitas pessoas, fazia de tudo para que seus em pregados
estudassem e por meio da imobiliária arrumava emprego para muitos.
Tentou pedir a políticos que fizessem uma creche no povoado. Não conseguindo, ele
mesmo a fez e Angélica tomava conta. Ali ficavam crianças para que as mães pudessem tra
balhar. Vendo que necessitavam de um pronto-socorro, ele o fez, dando emprego a muitas
pessoas. Sustentava sozinho aquele benefício. Angélica gostava de trabalhar lá, cuidava
daquela gente, orientando, ensinando-os até a ter higiene.
Os dois também ajudavam muito na assistência social
do Centro Espírita que freqüentavam.
Roberto e Dinéia os visitavam sempre e Henrique passava as férias com eles, eram avós e
tios corujas. Como também a família de Fábio, que morava na cidade, amava as crianças e
estavam sempre juntos.
Foi então que Fábio teve uma oferta tentadora: comprar
uma chácara grande para lotear.
- Parece, Angélica, que é um ótimo negócio, mas para ter dinheiro para comprá-la, terei
de me desfazer, vender
muitos bens que possuímos, e talvez até fazer um empréstimo.
- Pense então Fábio. Faça o que lhe parecer melhor, não entendo de negócios. Mas sinto
vender as sorveterias, você faz um trabalho tão bonito com os garotos que emprega,
pagando-os todos os meses e exigindo que estudem. Se recebessem só quando
trabalhassem não iriam estudar, pois vendem sorvete só nas férias, feriados e finais de
semana. Dá a eles assistência médica e está sempre orientando-os
135
e aconselhando-os. Será que quem comprar as sorveterias
fará isso?
- Tenho que ponderar isso também. Mas essa chácara me parece um bom negócio.
E Fábio resolveu pensar mais um pouco.
Carmelo estava ansioso, esperava uma resposta e que o
acontecimento planejado se realizasse a contento.
Lembrou que, uns dias atrás, ele tinha ido à colônia e pedira uma audiência com
orientadores para falar sobre Fábio.
- Sei que Fábio planejou ter por empréstimo, nessa encar nação, bens materiais e perdê-
los após. Mas esse acontecimento envolverá muitas famílias, pessoas. Ele administra
imobiliárias, uma rede de sorveteria, emprega muitos indiví duos. E ativo na assistência
social do Centro Espírita que freqüentam, tem boas idéias, financia empreendimentos e,
com o seu dinheiro, são sustentadas muitas famílias. Também tem o trabalho que ele faz
com garotos que estariam na rua se não fosse o que lhes oferece. E há a creche no povoado,
O sustento do pronto-socorro e o abrigo para as crianças fica caro e, se ele perder, tudo irá
ser fechado. E ali o único lugar que as mães pobres têm para deixar com segurança os filhos
para trabalhar, e os doentes têm médico e remédios de graça.
Os orientadores ficaram de estudar e dar a resposta a ele. Também Carmelo aguardava
esperançoso o desenrolar de outro acontecimento. Lembrava da conversa que ele teve
meses atrás com Osvaldo, sim, aquele que por tempo estivera assombrando a Casa do
Penhasco.
- Quero, Carmelo, reencarnar, preciso esquecer os erros que tanto me incomodam, quero
recomeçar para aprender. Desejo tanto ser filho de Fábio e Angélica, a minha Carequi nha,
que agora tem lindos cabelos longos. Que bom seria se eles me aceitassem como filho, estar
nessa casa não mais como intruso, mas como parte da família.
- Não posso prometer por eles, mas posso por mim. Vamos planejar, tenho certeza de que
eles não o recusarão.
Um circo pobre passou pela cidade, uma jovem solteira
sentiu-se mal, foi para o hospital e o médico constatou uma
136
gravidez de alto risco. Teve de ficar internada e quando teve alta foi para o abrigo do
Centro Espírita, um albergue que não só dava pouso como também hospedava temporaria
mente pessoas que não tinham onde ficar. Essa moça estava aflita, longe dos seus
familiares, porque o pessoal do circo seguiu viagem, e também não sabia como fazer para
criar seu filho.
O médico que a atendeu preocupou-se com ela, estava a moça correndo risco de vida.
Carmelo e outros amigos tentaram ajudá-la; pouco puderam fazer; Aquela gravidez
atrapalhava sua vida, queria estar no circo, fazer suas acrobacias e interpretar seus papéis
de teatro, aquele tempo parada a tiraria do ritmo e de forma. Ficava calada remoendo sua
revolta. Esta é a mãe de Osvaldo, esse espírito que, tendo outra oportunidade de reencarnar
para um recomeço, para uma aprendizagem, ia, por meio dessa maravilha que é a en
carnação, ter outro corpo para viver um tempo no plano físico.
Na noite de sábado, no horário marcado, Carmelo foi à
colônia, onde um orientador o recebeu.
- Temos a resposta, Carmelo. Pensando no bem-estar de muitos que vivem das atividades
de Fábio, ele continuará rico!
Carmelo sorriu aliviado e o orientador completou:
- Sendo para o bem, podem-se mudar os planos feitos antes de reencarnar. Pelo livre-
arbítrio muda-se tanto para o bem, o melhor, como para o mal. São muitos os fracassados
que planejam isso e aquilo e a ilusão da matéria os faz esquecer e deixam de fazer. Como
também se podem anular reações desagradáveis pelo amor, pelo bem feito a companheiros
de jornada. Fábio queria, por isso planejou ficar pobre e não se revoltar, mas ele já provou a
si mesmo que não o fará, a revolta não faz parte do seu caráter. E ele fez com o empréstimo
que recebeu de posses financeiras, usou de tal modo que não será ele só o envolvido; se ele
ficasse pobre seriam muitos a ficar muito mais. E também são muitas as orações de gratidão
que nos chegam, pedindo proteção a ele e a sua família. Muitas pessoas não sabem como
seria a vida sem a ajuda de Fábio. Gratidão é uma
137
força imensa e a bênção desse sentimento fortalece, inspirando para o melhor. Para Fábio,
que está provado que é desprendido, ficar pobre seria um período de trabalho a mais;
realmente os mais prejudicados seriam os que ele ajuda. Por isso, Carmelo, Fábio
continuará com esses empréstimos, por que cuida bem deles, é fiel depositário e merece
receber mais*.
No domingo de manhã, quando Fábio levantou-se,
Angélica já estava na sala com os quatro filhos.
- Angélica - disse ele -, hoje levantei me sentindo ótimo. Decidi não comprar aquela
chácara. Não sei como pude pensar em tal investimento. Eles estão me pressionando; vou
agora dar minha resposta: será, definitivamente, não. E como me sinto aliviado!
- Que bom, Fábio! Não estava gostando de vê-lo preo cupado. Acho que tomou a melhor
solução, não queria que vendesse as sorveterias e deixasse o projeto com aqueles garotos
que estudam e trabalham.
Fábio foi ao telefone e falou com a pessoa que lhe queria
vender as terras, ele ainda insistiu, mas o esposo de Angélica
foi taxativo e descartou de vez o negócio.
O telefone tocou, Fábio atendeu e após foi até a esposa:
- Angélica, sabe aquela moça do circo que estava grávida? Ela desencarnou na sexta-feira
no parto, deixou órfão um garotinho. Telefonaram do hospital me dando a notícia, como
também que avisaram a familia no circo e que veio só a mãe dela para o enterro e que esta
não quis levar a criança, deixou-a para ser adotada. Disseram que ele é pequenino, mas
sadio.
Olharam-se, entenderam, Angélica levantou e falou:
- Vamos?
- Sim! - Respondeu Fábio.
Angélica gritou para Nena, que estava na cozinha.
- Nena, olha as crianças para mim que vou ali e já volto.
- Ali onde? - Perguntou Nena, indo para a sala.
* É interessante notar que Fábio tinha seu livre-arbítrio e poderia não ter atendi do ao
conselho dos mentores. A decisão final foi de Fábio (N.E.).
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- Buscar... Voltamos logo! - Respondeu Angélica.
E de fato, uns quarenta e cinco minutos após voltaram e foram para a sala onde Nena estava
com as crianças. Angélica sentou-se. A garotada, curiosa, aproximou-se e olhou o que ela
tinha nos braços.
- Venham ver, este é o mais novo membro de nossa família, o irmãozinho de vocês.
- Como ele chama? - Perguntou Mônica.
- Murilo! - Respondeu Fábio.
- Ele não tem dente - falou Milton.
- E muito pequeno - disse Melina, observando-o.
- Você também foi pequenina, ele crescerá logo - explicou Fábio.
Murilo bocejou e sorriu. Todos riram. Angélica os olhou, amava-os e em pensamento
agradeceu a Deus pelos filhos, pela oportunidade de ser mãe. Aconchegou o nenê junto ao
coração. Fábio, emocionado, não quis chorar, mas duas lágrimas escorreram pelo rosto e
exclamou em voz alta:
- Obrigado, Papai do Céu, pela família que temos!

Ao terminar a leitura deste livro, provavelmente você tenha ficado com algumas dúvidas e
perguntas a fazer, o que é um bom sinal. Sinal de que está em busca de explicações para a
vida. Todas as respostas de que você precisa estão nas Obras Básicas de Allan Kardec.
Se você gostou deste livro, o que acha de fazer com que outras pessoas venham a conhecê-
lo também? Poderia comentá-lo com aquelas do seu relacionamento, dar de presente a
alguém que talvez esteja precisando ou até mesmo emprestar àquele que não tem condições
de comprá-lo. O importante é a divulgação da boa leitura, principalmente a literatura
espírita. Entre nessa corrente!
139
Livros de Antônio Carlos
Psicografados pela médium
O que há por trás da união de seres que se encon tram inesperadamente?
Nesta emocionante narrativa, o leitor irá acompanhar a trajetória de duas almas afins que
decidem compartilhar seus sonhos, alegrias e desventuras, apesar de todos os obstáculos
que terão de enfrentar no caminho. Um romance que fala de encontros, desencontros e do
afeto ressurgido entre duas criaturas que se reen contram para viver sua história de amor,
agora ainda mais bela e intensa.
Ana, jovem professora de línguas, procura uma nova vida. Atende a um anúncio de jornal
que 'coincidentemente' pe de os requisitos que ela possui. Sem saber, parte para um
reencontro e devido a sua mediunidade depara-se com situa ções e visões muito es tranhas,
que no decorrer do romance vão se encaixando, trazendo para ajovem um modo diferente
de entender o por quê de muitas coisas.
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Novamente Juntos
t
RECONCILIAÇÃO COPOS QUE ANDAM A MANSÃO DA PEDRA TORTA
Fascinante, comovente Um livro que, em fun e esclarecedora nar- ção do próprio tema,
rativa, um livro que todos deveriam ler e agradará a todos. Sua divulgar, pois aborda trama
envolvente co meça com um duplo os perigos de invocar
espíritos por meio
assassinato: o pai ma tando a golpes de faca de objetos, tais como
suaesposaeseufilho. copos e pêndulos. Mas, após todo este Muitas são as histó drama, o
leitor viverá rias que entremeiam uma profunda lição de a narrativa, destacan amor,
solidariedade, do a da garota Nely, abnegação e ternura, que é induzida pelos num relato
maravilho- espíritos inferiores a samente comovente.
matar o próprio pai e
Você irá se apaixonar a suicidar-se.
por ele!
ALENDADE PEQ1JENÁL
No meio de campos verdejantes, ouvindo a música dos ventos e a poesia dos rios, Pe quena
Flor e Aguia Veloz vivem sua história dc amor, enquanto os brancos exterminam a nação
indígena. De um lado, crueldade e violência; de outro, ternura e amor. Um livro que mescla
a aventura de sangrentas bata lhas com momentos de grande paixão, mos trando-nos que os
laços criados entre os espíritos ultrapassam as barreiras do tempo e sobrevivem à morte.
HERDEIROS DO DESTINO
Heleno, instrutor de uma colônia espiritual, para exemplificar o que é Lei de Ação e
Reação, narra a vida de Henriette, jovem que vivia numa região da França invadida pelos
alemães e que, apesar de ser filha do líder da resistência francesa, apaixonou-se pelo
comandante do exército alemão. Pai xão. traição e ressentimento, misturados a importantes
ensinamentos espíritas, são os ingredientes que fazem deste livro agradá vel e proveitosa
leitura.
LIVROS Ei
LUIZ SERGIO
OS ANDARILHOS
Ao buscar a cura para um mal físico apa rentemente sem solução, Otávio é sub metido a
uma terapia de regressão a vidas passadas. Por meio de uma narrativa envolvente, o autor
nos traz importantes reflexões acerca do papel do sofrimento na evolução do homem e a
importância da reencarnação. Uma leitura agradável que nos permitirá encarar cada dia
como mais uma oportunidade de crescimento.
por
Lada M &
ABOR MÃO. SOU ADOL
UQ. Contestadores, alegres e extrovertidos, os personagens deste
livro representam o intrigante universo adolescente. Assuntos
como vïcios, dificuldades de relacionamento com os pais, vio
lência e namoro são tratados com profundidade. Como na
r fazem respeitar e afirmam com segurança: Aborrecente,
f j realidade, neste livro os jovens defendem seus valores, se
não. Sou adolescente!
ades
\' - para os iovens
Ltwo &
Clássico
do Espiritismo ganha a modernidade
Um clássico do Espiritismo, lançamento da Petit Editora. Edição moderna, traduzida em
linguagem atualizada, fácil de ler. As notas e hipertextos ilustrados facilitam o estudo e o
entendimento.Você poderá com prar e ler, separadamente, cada um dos três volumes.
Léon Denis, um clássico que vai enriquecer, ainda
mais, seus conhecimentos relativos à espiritualidade.
dos novos
tempos
C9LEÇÃO
LEON DENIS
À venda em todas as livraria
BIBLIOTECA BÁSIC ESPÍRITA POR
ALLAN KARDEC
O Livro dos Espfrii
Por que tanto sofrimento, tanta desigu de; por que há pessoas saudáveis e o doentes; bebês
que nascem e morrem mas horas depois? Essa é uma pequena amostra dos n temas tratados
neste livro, que fala so vida e a morte, o sofrimento e a aleg amor e o ódio, nos dando uma
idéia e principalmente lógica da sabedc justiça de Deus.
1
O
Evangelho Segund4
Espirkis
1
Às portas do terceiro milênio, a Pet ça sua edição de O Evangelho S
do o Espiritismo. Com uma lingu fácil, para que um maior núm pessoas possa entendê-lo,
ele fl(
-- parará com segurança para co tilharmos uma sociedade ren
Em quatro versões: brochura, espiral, capa dura e de bolso.
a mansão da pedra torta


Livro I.

O emprego

Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho


Sempre-Lendo, o melhor grupo de troca de livros da Internet!



- O Emprego


Ana Elizabeth andava apressada, naquela hora não havia muito movimento nas ruas. Uma garoa fina e fria molhava suas roupas. Pensou aborrecida por que tinha
esquecido de trazer a capa impermeável ou o guarda-chuva.
"Acho que foi a briga de mamãe com papai" - resmungou baixinho.
Entrou num bar resolvida a esperar até as duas horas e trinta minutos para subir ao escritório da Dra. Janice para ver se conseguia o emprego. Acomodou-se num
canto em uma mesa; no bar estavam somente algumas pessoas. Pediu um chocolate quente, abriu o jornal e leu pela décima vez o anúncio.
"Precisa-se de moça que saiba Inglês e Francês para lecionar para uma criança."
Embaixo os documentos necessários e o local, uma fazenda do interior do estado, e o ordenado.
"Não é muito, mas é a solução."
O garçom a olhou sem entender, chegou mais perto e percebeu que ela falava sozinha. Ana sorriu, não conseguia tirar essa mania. Desde pequena falava sozinha,
quando estava preocupada falava mais ainda, não se importando com o espanto ou o riso das pessoas.
O emprego seria a solução, mas nada era perfeito, continuou a pensar. Gostava da cidade em que morava, a capital do seu estado e sentia ter que se ausentar.
Mas procurava emprego há tanto tempo, sem nada ter de concreto. Não queria viver à custa de seus pais, que lhe diziam sempre que estavam juntos por sua causa. Moravam
num bairro tranquilo e gostoso, atualmente tinha poucas amigas morando perto, porque quase todas casaram e foram residir longe do bair
ro. Desde quando era pequena seus pais brigavam muito. Por isso, Gilson, seu único irmão, mais novo do que ela, entrou para o exército e foi residir em outra cidade.
A separação de seus pais parecia inevitável e ela estava conformada. Seria bom que saisse de casa e deixasse os dois resolverem o que seria melhor para eles.
Nem Felipe lhe interessava mais. Recordou-se de Felipe, seu antigo namorado. Fazia um mês que eles tinham brigado e ele já fora visto com outra. Ana não se
importava, não o amava. Nunca amara ninguém, mas certamente amaria alguém um dia.
Olhou o relógio, eram duas horas e dez minutos, suspirou. Pagou a conta e leu mais uma vez o anúncio, saiu do bar e foi para o endereço marcado.
O escritório estava aberto e uma moça, a secretária, a atendeu. Quando Ana disse que viera pelo anúncio, ela pediu para ver os documentos solicitados. Ana Elizabeth
tinha se formado há alguns meses. Mostrou o diploma com orgulho, sempre fora ótima aluna. O anúncio pedia também que a candidata fosse solteira, certamente porque
exigia que fosse morar no local e não poderia levar o cônjuge.
- Já são muitas as candidatas?
- Não, as que vieram não estavam com os documentos. O anúncio pede pessoa jovem, solteira, formada em Francês e Inglês. Mas os seus documentos estão
corretos. Assim que a Dra. Janice chegar, ela a atenderá.
Dra. Janice era uma advogada, seu escritório era bem montado e bonito. Com a precisão de um relógio suíço, às duas horas e trinta minutos, Dra. Janice entrou
no escritório e após cinco minutos recebeu Ana.
- Muito bem, você atende aos requisitos exigidos. Não se importa de ausentar-se daqui e ir para o interior? A mansão de D. Eleonora fica numa fazenda
a quinze quilômetros de uma cidadezinha.
- Não, senhora, não me incomodo.
- Sabe, também, que o contrato é de seis meses, se
voltar antes não recebe ordenado e não serão pagas as despesas de viagem?
- Li o anúncio.
- Muito bem - continuou Dra. Janice. - A criança para quem dará aula é um menino de quatorze anos e doente. Terá que ter com ele muita paciência.
- E deficiente mental?
- Um deficiente mental não iria aprender línguas, não acha, senhorita?
- Certamente, - Ana respondeu, encabulada.
- Se concorda com tudo, poderá assinar o contrato. Amanhã voltará aqui para pegar a passagem de trem e saber de mais detalhes. Boa tarde.
- Boa tarde.
Ana Elizabeth assinou o contrato com a secretária e foi embora, o tempo havia melhorado. Não falou nada para seus pais do emprego que arrumara. No outro dia,
lá estava no horário certo. Dra. Janice lhe entregou a passagem e um papel com as instruções e esperou que Ana lesse e tirasse as dúvidas.
- Chegarei à cidade e um empregado da fazenda estará me esperando?
- Sim, é só aguardar. E uma estação tranqúila e não haverá enganos.
- Mansão da Pedra Torta! - exclamou Ana.- Que nome estranho, pedras têm formatos, normalmente são tortas.
Dra. Janice pela primeira vez sorriu.
- Logo verá o porquê deste nome. Há no jardim, na frente da mansão, uma bonita pedra que é toda torta ou curva, formando quase um "S", por isso o nome
da mansão. Boa tarde e boa viagem. Gostará de lá e do trabalho.
Dra. Janice levantou-se da cadeira e estendeu a mão a Ana, despedindo-se. A jovem professora levantou-se rápido e saiu.
Enquanto caminhava pelas ruas, foi pensando: "Outono de 1955, eu, Ana Elizabeth, empregada, saio de casa e vou
para longe."
Ao chegar em casa não havia ninguém. Aproveitou para escrever ao irmão dando-lhe a boa noticia e seu novo e temporário endereço. Despediu-se das amigas com
bilhetes, que colocaria no correio no dia seguinte logo cedo. Começou a arrumar suas malas, não levaria muita coisa, mas não poderia esquecer seus livros didáticos.
Sua mãe chegou e ela de forma simples contou a novidade.
- Que é isto? - falou a mãe de Ana indignada. - Ir para longe? Nem sabe ao certo o que irá fazer? Isto nunca! Você não vai!
- Vou e vou! - retrucou Ana, alterada. - A senhora e o papai não estão sempre dizendo que se aturam por minha causa? Já se aturaram demais e sou eu quem não
aguenta mais estas brigas. Já sou maior, formei-me e é justo trabalhar e me sustentar não atrapalhando mais os senhores.
O pai chegou no meio da discussão e como sempre seus pais esqueceram dela e começaram a brigar. Ana gritou e bateu os pés no chão com força, os dois pararam
e ela falou convicta:
- Está decidido, eu vou, já assinei o contrato. Saio de casa e os senhores façam o que quiserem. Não atrapalho mais. Parto amanhã às dez horas. Nem os quero
na estação.
Entrou no seu quarto, deixando-os brigar. No dia seguinte cedinho, ao sair do quarto encontrou a mãe, que lhe preparava o café. Tomou seu desjejum em silêncio.
- Mamãe,, não se preocupe comigo. Estou feliz em ir, estarei bem lá. E um emprego como outro qualquer. O que ganhar será livre, não terei despesas. Darei aulas
a uma pessoa somente, uma criança.
A mãe de Ana chorou, mas enxugou as lágrimas logo que viu o marido entrar na cozinha. Ana abraçou os dois, pegou suas malas e saiu apressada, embora ainda faltasse
muito para o horário de embarque. Ao fechar o portão do pequeno jardim, escutou a discussão dos pais e andou de-
pressa. Quis chorar, mas animou-se, longe das brigas viveria melhor.
Passou pelo correio, que era perto de sua casa, e colocou as cartas. Depois pegou uma charrete de aluguel e foi para a estação. Chegou bem antes do horário,
perguntou três vezes pelo trem, até que este chegou e tomou seu lugar. O tempo estava frio, chovendo, e tudo indicava que o inverno seria rigoroso aquele ano. Foi
prestando atenção à paisagem, sempre gostou de olhar a natureza. A viagem foi tranqúila, viajou por seis horas e chegou ao seu destino.
Desceu do trem e não viu ninguém que a poderia estar esperando. Colocou suas malas, duas grandes e uma pequena, num banco, e foi até o outro lado, na frente
da estação, ver se alguém a procurava. Só avistou duas charretes de aluguel. O tempo estava frio, não chovia, mas estava nublado. Um menino de uns treze anos aproximou-se
de Ana e indagou:
- A senhora quer que a leve a algum lugar?
- Não, por enquanto não, espero alguém que me levará à Mansão da Pedra Torta.
- A senhora vai à Mansão da Pedra Torta? Que coragem! Vai a passeio?
- Não, vou trabalhar - Ana respondeu toda orgulhosa.
- Contaram para a senhora que a mansão é assombrada Zezé... Não incomode a senhora com conversa boba.
Venha cá! - gritou um homem de forma enérgica.
O garoto saiu correndo. Ana ainda quis indagar o menino sobre o fato de ele ter falado que a mansão era assombrada, deu até uns passos para ir atrás dele, mas
não houve mais tempo. Escutou alguém falar atrás dela:
- Senhorita Ana Elizabeth?
- Sim.
- Por aqui, por favor, D. Eleonora a espera.
Pegaram as malas, ela, a pequena, e ele, as duas gran
des. Seguiu o homem, que, abrigado numa capa preta com capuz, mal deixava ver o rosto, que parecia tentar esconder. Mancava de uma perna e andou à sua frente. Começou
a cair uma garoa fina e o vento estava forte e frio. Andaram poucos metros e o homem parou perto de um automóvel novo e moderno. Ele abriu o porta-malas e colocou
a bagagem, após, abriu a porta de trás e Ana se acomodou e ficou quieta.
- Dentro de vinte minutos chegaremos, senhorita. Sou empregado da mansão.
Ana suspirou e tranquilizou-se, o pobre homem só se abrigava da chuva e do vento em sua capa. A paisagem parecia bonita, pelo menos foi o que ela deduziu, já
que não dava para ver muito, pois a chuva engrossara.
O percurso lhe pareceu pequeno. O carro entrou pelo jardim e Ana pôde notar que este era bem cuidado e com muitos canteiros. No centro ela viu uma pedra de
uns dois metros de altura, muito bonita, parecia realmente um "S". O carro parou em frente à varanda. O empregado desceu e abriu a porta do carro para ela, depois
pegou as malas e subiu os poucos degraus. Nada falou e Ana o seguiu. Não precisaram bater na porta, esta se abriu e uma moça toda risonha e simpática lhe deu as
boas-vindas.
- Boa tarde, senhorita Ana Elizabeth, sou Sônia, a arrumadeira. Seu quarto está preparado. D. Eleonora não pôde vir recebê-la, pede desculpas, está indisposta,
o tempo talvez... Mas, siga-me.
Sônia pegou suas malas. Quando Ana foi se despedir do seu condutor, este já havia saído. Ela, então, examinou rapidamente a sala e viu que o haíl de entrada
tinha duas portas que davam para duas salas, uma para visitas e outra para a qual Sônia a levou, mais simples. Mas Ana achou-a muito bonita. Num lugar de destaque,
viu uma escultura dourada de um metro, cópia exata da pedra do jardim.
- Que bela escultura!
- E a pedra torta, igual à do jardim. A pedra foi achada no terreno quando a mansão foi construída há muito tempo.
Colocaram-na no jardim e depois fizeram esta escultura que está na sala.
Ana seguiu Sônia pelos corredores, subiram as escadas e entraram no aposento que lhe fora reservado. Era composto de sala de vestir, banheiro, uma pequena saleta
e um espaçoso quarto, com uma enorme cama de casal.
- Espero que a senhorita goste - disse a arrumadeira.
- Por favor, me chame de Ana. Mas é encantador, este quarto é quase do tamanho de minha casa.
Sônia sorriu e aconselhou:
- Aproveite para colocar seus pertences no lugar, pode tomar banho, fique à vontade; trarei o jantar às dezenove horas, mas nos outros dias deverá tomar as
refeições na copa com a criadagem. Amanhã, se o tempo melhorar, poderá sair e conhecer a fazenda. As oito horas amanhã virei buscá-la para o café, D. Eleonora quer
entrevistá-la às nove horas. Se precisar de mim, puxe este cordão.
Sorriram...
- Bem - finalizou Sônia após uma pausa -' até à noite, certamente quer descansar.
Sônia saiu. Ana estava com fome, mas envergonhada não pediu um lanche. Tomou um banho e guardou suas roupas. Após olhou pela janela, já não enxergava nada,
só pequenas luzes lá fora. Sentou-se numa grande cadeira forrada de veludo vermelho e ficou a pensar. Era romântica, vivia sonhando. Talvez, pensou, o seu amor estivesse
por ali. Quem sabe se casaria e não voltaria mais para sua casa, também achava que para lá não daria mais, seus pais certamente se separariam e a casa seria desfeita.
Quando voltasse teria que procurar um lugar para morar. Mas não queria pensar nisto agora, estava empregada por seis meses e isto deveria bastar no momento. E durante
este tempo teria onde morar. E que lugar! A mansão era maravilhosa, talvez um tanto misteriosa, ou, como o menino na estação falou, assombrada. Riu, não acreditava
nisto. Levantou e foi arrumar seus livros e cadernos na escrivaninha. Tudo ali estava muito limpo e o quarto
16 ANTÔNIO CARLOS
era moderno, nem parecia fazer parte da construção antiga como diziam ser a mansão. Deveria ter sido tudo reformado, mas também era bem conservada. As sete horas
e três minutos, Sônia lhe trouxe o jantar numa bandeja.
- Você deve estar cansada, amanhã pego a bandeja. Boa noite! - Despediu-se e retirou-se, discreta.
Ana comeu com apetite. Teve vontade de sair e andar pela mansão, mas temeu ser indiscreta. Recolheu-se para dormir, cansada, adormeceu logo na imensa cama,
para acordar às sete horas e trinta minutos pelo relógio despertador.
Sorriu e disse para si mesma: "Bom dia, senhora professora! Bom dia, Ana Elizabeth"
Levantou-se num salto e preparou-se para a entrevista com D. Eleonora,

A mansão da pedra torta

Livro II.

-A Mansão da Pedra
Torta


Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho


Sempre-Lendo, o melhor grupo de troca de livros da Internet!



Ana vestiu uma de suas melhores roupas, um conjunto de saia e blusa azul-claro e branco. Gostou do resultado, estava elegante, ansiosa esperou Sônia vir buscá-la.
Olhou pela janela, seu quarto ficava na ala direita do piso superior, dava vista para os fundos da mansão. Avistou um pequeno bosque e um riacho quase escondido
pelas árvores e, mais adiante, uma enorme área de plantio.
O tempo estava nublado, ventava muito e estava frio lá fora. Embaixo de sua janela, ficavam umas casinhas e a estrebaria. Olhou tudo curiosa, achou muito bonito.
De repente, viu um vulto que reconheceu ser o homem que fora buscá-la na estação. Estava com a mesma capa e andava rápido apesar de mancar muito. Ele puxava um bonito
cavalo alazão com uma enorme malha branca no pescoço.
"Que criatura esquisita! Gostaria de ver seu rosto. Bem, se ele trabalha aqui, não faltará oportunidade", Ana falou baixinho.
Levou um susto quando Sônia abriu a porta.
- Desculpe-me, Ana, não quis assustá-la, mas bati na porta.
- Tudo bem, é que estava distraída e nem ouvi. Estou pronta, podemos ir.
Ana seguiu Sônia, desceram as escadas, passaram pela sala e foram à copa, onde Ana tomou rápido seu desjejum. Quando acabou, chamou por Sônia.
- D. Eleonora - disse a arrumadeira - a espera no pequeno escritório ao lado do quarto dela.
Na sala havia duas escadas, uma que levava à ala direita onde estava o quarto de Ana, e a outra, à ala esquerda. As
escadas ficavam uma ao lado da outra, só eram separadas por uma parede. E, para passar de uma ala para outra, era preciso descer uma escada e subir a outra. Os quartos
ficavam na parte de cima. Uma grande parte da casa era sobrado. Subiram a escada que levava à ala esquerda. Ana entendeu que naquela ala ficavam os melhores quartos
da mansão, ocupados por D. Eleonora e seus parentes. A decoração era bem mais luxuosa nesta parte. Os quartos de ambas as alas davam para a frente, ou seja, para
o jardim, e outros para os fundos.
Como que adivinhasse seus pensamentos, Sônia lhe explicou:
- Onde está alojada é para visitas menos ilustres ou para empregados categorizados como você. Nós, os empregados, moramos nas casinhas dos fundos, que são boas
e confortáveis. Atualmente, na mansão dormem você, D. Eleonora e Cirilo, o garoto a quem dará aulas. As vezes, Dr. Bernardo dorme aqui, mas ocupa esta ala no quarto
ao lado do garoto. Chegamos, é aqui!
Bateu na porta de um dos quartos que dava frente para o jardim e uma voz seca e firme mandou entrar.
Sônia abriu a porta e falou:
- Com licença! Esta é a senhorita Ana Elizabeth.
- Bom dia, D. Eleonora! - cumprimentou Ana, encabulada.
- Bom dia! Sinta-se à vontade. Espero que goste daqui. Como você já assinou o contrato com a Dra. Janice, deve estar a par de seu trabalho. Tem o domingo livre,
mas espero que não se ausente para longe. As aulas deverão ser dadas ao meu sobrinho Cinto, das nove às onze horas, de francês, e das quatorze às dezesseis horas
as de inglês. Cirilo está com um pequeno problema de saúde e, por enquanto, só estudará estas duas matérias. No verão ele deverá viajar e quero que aprenda estas
línguas. Quero que ensine princi palmente palavras usadas na medicina e como pedir alimen tos, como conversar com médicos, enfermeiras e movimen
tar-se em hospitais. Cirilo é muito educado, mas quero recomendar que tenha paciência com ele e, na medida do possível, faça-lhe todos os gostos. Hoje à tarde o
conhecerá e você deve fazer um teste para ver como está o conhecimento dele nestas línguas. As aulas deverão ser onde ele quiser, na saleta do seu quarto, na biblioteca
ou no jardim de inverno. Agora pode ir, Sônia ficará encarregada de mostrar a você as dependências da casa e levá-la para conhecer meu sobrinho. Até logo.
Sônia aguardou na saleta, ficou séria e parada como uma estátua. Ana também permaneceu assim, respondeu o cumprimento com a cabeça. As duas moças saíram. Ana
pensou: "D. Eleonora gosta mesmo é de um monólogo". Ficou apreensiva e desejou ardentemente que Cirilo não fosse como a tia.
- Não estranhe a senhora Eleonora - disse Sônia. -Certamente não a importunará e pouco a verá, a não ser que aconteça algo que lhe desagrade. Ela é boa pessoa,
todos os empregados gostam dela. Bem, você tem algumas horas livres, mas eu não. Nada impede que conheça a mansão, salvo esta parte, é claro. Aqui deverá vir só
quando for convidada. Pode visitar todos os cômodos da casa, alguns estão fechados e com os móveis cobertos, porque são pouco usados. Pode olhar à vontade, mas não
mexa muito.
Desceram as escadas, Sônia acenou com a mão e foi para outra parte da casa. Ana ficou curiosa para conhecer a mansão, era a primeira vez que estava numa casa
tão grande. Subiu a escada que dava para a ala onde ficava seu quarto. A escada dava para um corredor muito grande, somente no fundo havia uma grande janela com
vitrais coloridos. Foi até a janela e abriu, um vento forte e frio entrou. Dali viu o telhado da parte da mansão que não era sobrado, onde ficavam a cozinha e as
salas de refeições. Viu a estrada que ia à cidadezinha. Fechou a janela e examinou o corredor que era largo e atapetado de vermelho. Contou as portas, sete. Seu
quarto era o terceiro depois da escada. Abriu uma por uma as portas
dos quartos que eram todos iguais, com o mesmo tipo de móveis e enfeites. Cinco deles estavam com os móveis cobertos com tecidos marrons. Só o primeiro estava arrumado
e ela achou na cabeceira da cama um livro sobre leis tendo o nome da Dra. Janice.
"Ela também se hospeda nesta sala", murmurou baixo. Desceu as escadas e foi para a parte que não era sobrado. A sala que tinha a escultura dourada dava para
uma saleta pequena, só com portas, não tendo móveis ou enfeites. Ana a conhecia, pela manhã viera ali tomar o desjejum, mas como estava ansiosa não reparou bem.
Entrou na copa onde os empregados como ela tomavam as refeições. D. Eleonora usava o salão de refeições. Examinou a copa, era enorme, uma mesa grande com vários
lugares estava no centro. Os móveis eram escuros e um quadro enorme da Santa Ceia ornava a parede central. A copa tinha três portas. Ana abriu a primeira, dava para
uma enorme varanda coberta e um pomar com muitas árvores. Voltou à copa e abriu a segunda porta, viu a imensa cozinha que podia ser do tamanho de sua casa. Não havia
ninguém, fechou e abriu a outra porta. Era uma sala de estar, grande e com poucos móveis, cadeiras antigas e nas paredes bonitos quadros com paisagens. Esta sala
também dava saída para a varanda que Ana já vira. Teve vontade de ir até o pomar, mas ventava muito e estava frio. Voltou à saleta das muitas portas. Abriu outra
porta e viu uma escada que descia ao subsolo. Estava escuro, acendeu a luz, desceu e viu um corredor com algumas portas, abriu uma delas e viu que eram quartos simples.
"Que casa cheia de quartos!" Exclamou e sua voz pareceu-lhe assustadora naquele local silencioso. Entrou num deles, os quartos davam só para a parte dos fundos
da mansão. Abriu ajanela e viu que realmente aquela parte ficava no porão da casa, dava direto para a estrebaria. O quarto estava muito sujo, ali não se fazia limpeza
há muitos anos. Tinha muitas teias de aranha e os móveis eram poucos, uma cama de solteiro, um armário e uma cômoda. Fechou a janela e
assustou-se, abafou um grito.
-Ai!
Era um rato que passara correndo na sua frente. Saiu rápido dali. O cheiro forte de mofo a enjoou. Ana voltou àsaleta e abriu as demais portas, uma dava para
a cozinha, outra para o salão de refeições. Preferiu voltar à sala da escultura. Foi para a frente da casa, entrou e pôde examinar tudo; a parte da frente tinha
varanda, vasos com plantas a enfeitavam, e havia alguns bancos. Admirou o jardim, tudo muito bem cuidado e com muitas plantas. E lá estava a pedra cinzenta e bonita,
bem no meio do jardim. Foi então que viu a torre. Uma enorme construção, alta, redonda, de pedra, imitando as torres dos castelos europeus. Olhou tão fascinada para
a torre que nem sentiu frio. A torre estava no canto do jardim à esquerda da casa.
"Que lugar interessante!"
Voltou à sala, tomou o corredor da esquerda e deu com uma grande porta. Aquela parte da casa era mobiliada com muito bom gosto e luxuosamente. Abriu a porta,
era a biblioteca. Ana olhou tudo rapidamente, poltronas confortáveis, sofás estofados ricamente de cor bege e grandes tapetes verdes. Nas paredes, estantes fechadas
com vidro e uma grande coleção de livros. A claridade vinha dos vitrais das janelas. Lustres lindíssimos enfeitavam o teto.
Fechou aquela porta e abriu a segunda do corredor, era um salão de jogos. Mesas de diversos tamanhos e tipos, decoradas de verde e bege, estavam espalhadas
pela sala. Quadros de esportes enfeitavam as paredes. Ana sentiu que, se olhasse para a esquerda, ia ver um quadro retratando a caça de uma raposa.
Olhou devagar e sentiu um frio na barriga. Ali estava o quadro. Uma amazona e três cavaleiros com cães a perseguir uma raposa assustada.
"Não gosto de caças, mas este quadro é muito bonito! Como será que adivinhei? Nunca vim aqui e parece que conheço bem esta sala."
Tinha certeza de nunca ter estado naquela mansão, mas parecia conhecer tudo, até em detalhes.
Ficou ali olhando o quadro por minutos, sentiu-se atraida pela tela. Outros quadros também eram bonitos. Teve vontade de ficar ali contemplando o quadro a manhã
toda, esforçou-se para sair dali.
"Estranho, não gosto de jogos, mas gosto desta sala. Parece que já passei boas horas aqui", falou Ana baixinho escutando sua própria voz. "Preciso parar com
este costume, se me escutam, pensarão, com razão, que não estou bem mentalmente".
Voltou ao corredor, abriu a terceira porta, era um escritório grande, com três escrivaninhas. Os móveis todos escuros, tapetes caríssimos, num canto um pequeno
bar e uma estante com livros. Só dois bonitos quadros enfeitavam as paredes de cor bege claro. Notou que a pintura era recente como em muitas partes da mansão, principalmente
o lado externo. Chegou perto de uma escrivaninha que tinha dois porta-retratos. Num estava a foto de uma mulher loura de cabelos curtos. Leu a dedicatória:
"Ao Raimundo com amor, Nancy."
No outro, estava o retrato de um garoto sorrindo.
"Ao papai Rai, beijos Cirilo."
"Aqui deve ser a mesa de trabalho do sobrinho de D. Eleonora, estes devem ser os retratos da falecida esposa e do filho", pensou Ana.
D. Eleonora era tia-avó de Cirilo, ou seja, tia do seu pai, o senhor Raimundo, que era viúvo. Olhou bem a fisionomia de seu aluno e gostou.
Saiu, fechou a porta e sentiu uma forte vontade de voltar à biblioteca. Entrou e trancou a porta, olhou as estantes como se conhecesse bem todos os seus livros.
Abriu a porta de vidro de uma estante à esquerda das janelas, olhou fascinada para um livro grosso de capa bege, leu o título em voz alta: "Latim para estudiosos
Este livro estava na segunda prateleira começando a
contar de baixo para cima e era o primeiro do canto. Pegou, não queria sair, puxou e o livro veio para sua mão, deu uma olhada, não se interessou por ele.
"Não, não é o livro que me atrai."
Colocou-o no lugar, encaixou-o para a esquerda, depois duas vezes para a direita, após, empurrou para trás. Ficou olhando a estante como que hipnotizada. As
duas partes dela se moveram como uma espécie de porta, afastaram-se da parede e abriram. Assustadíssima, olhou para o vão na parede, viu um pequeno espaço com uma
escada de alguns degraus levando ao subsolo e depois a um corredor. Com muito medo, pegou o livro novamente e fez o mesmo processo só que desta vez o puxou para
frente e a estante devagar voltou ao seu lugar.
Colocou as mãos na cabeça, tremia. Teve vontade de chorar, mas se controlou, respirou fundo, tentando se acalmar. Saiu rápido da biblioteca, foi para seu quarto
não querendo nem conhecer o lado direito da sala da escultura que ainda não vira. No quarto, começou a resmungar como sempre, toda aflita.
"Meu Deus, como pude saber? Como consegui abrir a estante? Pegar um livro antigo e logo de Latim! Será tudo coincidência? Parece que eu sabia, mas como? Acho
que este ar misterioso da mansão está mexendo com meus nervos."
Não teve disposição para sair mais do quarto, estava tão nervosa e distraída que esqueceu a hora do almoço. Sônia veio chamá-la.
- Desculpe-me, Sônia, esqueci do almoço. Prestarei mais atenção no horário.
Sônia sorriu gentil e Ana a acompanhou até a copa. Alimentou-se pouco, estava sem apetite. Quando acabou, a arrumadeira veio da cozinha e lhe disse:
- Ana, se quiser ficar na sala de estar, ela está arrumada. E gostoso descansar nela.
- Obrigada, mas prefiro ir para meu quarto, logo devo ir conhecer Cirilo. Sônia, estive andando pela mansão. Vi mui-
tos quartos no porão. Alguém os usa?
- Parece que foi por todos os cantos da casa - riu a moça. - Ninguém vai lá. Esta fazenda pertencia ao pai de D. Eleonora, quando ele morreu ela e o irmão herdaram.
Sr. Eurico, o irmão de nossa patroa, também faleceu e sua parte ficou para o senhor Raimundo, pai de Cirilo. Antigamente se davam grandes festas nesta mansão, aqueles
quartos eram para os empregados extras, para os criados das visitas e para alguns escravos. D. Eleonora não gosta de festas e recebe raramente poucos amigos. O porão
foi fechado e nem é aberto para limpeza.
- Sônia - indagou Ana curiosa -, as ruínas que vi do meu quarto eram a senzala?
- Sim, esta fazenda teve muitos escravos. A senzala não foi conservada e acabou caindo. Aqui nada tem, a não ser as ruínas que lembram o tempo da escravidão.
Se vai para seu quarto, me espere que logo irei buscá-la para que conheça Cirilo.
Sônia, com muitos afazeres, despediu-se e Ana voltou para seu quarto. Aguardou ansiosa para conhecer seu aluno, não se sentia bem, estava inquieta e nervosa.
No horário marcado, a arrumadeira bateu à porta. Ana estava pronta esperando, tentou se acalmar, a cena da biblioteca não lhe saía da cabeça. Seguiu Sônia,
desceram as escadas, contornaram a parede e subiram a outra escada. Na quarta porta Sônia bateu e em seguida ouviram uma voz infantil.
- Entre! Entre!
As duas entraram e diante de uma mesa de estudo, na saleta de seu aposento, estava sentado Cirilo. Aparentava ter uns onze anos, estava vestido com um roupão
azul escuro. Ana rapidamente observou tudo. A saleta era parecida com a do quarto de D. Eleonora, mas nas paredes havia muitos quadros modernos, que deveriam ser
do gosto do garoto, eram sobre esportes, cavalos, e havia um enorme, retratando um trem, todos coloridos.
Cirilo também a olhou, examinando. Era um garoto de
feições normais, só os olhos se sobressaiam, eram bonitos, grandes e sonhadores. Quando Ana ficou à sua frente, estendeu a mão cumprimentando-a.
- Boa tarde, senhorita Ana Elizabeth! - prazer em conhecê-la.
- Boa tarde, Cirilo. Obrigada.
Sônia saiu e Ana sentou-se ao lado do menino.
- Prefiro que me chame de Ciro, mas só faça isto quando estivermos a sós. Titia não gosta. Como devo chamá-la?
- Ana. Agora vamos ver o que conhece do francês e do inglês para começarmos as aulas.
Fez algumas perguntas e logo percebeu que Cirilo tinha poucos conhecimentos; passou-lhe exercícios escritos para melhor avaliar.
- Sei que estou atrasado. É porque tenho faltado muito às aulas. Quando sarar, voltarei a estudar e cursarei alguma universidade.
- Que pretende estudar?
- Não sei, mas todos, ou quase todos da nossa família, estudam, não sei por quê. Mas estudar, faz parte da nossa educação.
Eram quase dezesseis horas quando acabaram os exercícios.
- Ana - disse Cirilo -, que quer dizer...
A professora sorriu (era uma expressão em inglês) e traduziu para ele: Castelo assombrado.
- Então é isto! Sabe, sonho sempre com um velho, vestido à moda antiga que me diz isto. Quando esta casa foi construída, seu construtor queria que fosse
um castelo. Aqui é esquisito, este casarão velho tem seus mistérios. Quando minha mãe era viva não vinha aqui, depois quando ela morreu eu vinha pouco. Mas fiquei
doente e papai, precisando viajar, me deixou aqui com a titia. Estou me recuperando de um resfriado, mas assim que sarar quero vasculhar todos os cantos desta casa.
Ana, você não quer tomar chá comigo? Acho tão desagradável lanchar sozinho.
- Claro, é um prazer.
Cirilo tocou uma sineta e logo Sônia veio atender.
- Sônia - disse o menino -, por favor traga meu lanche juntamente com o de Ana, lancharemos juntos.
Sônia saiu e Ana indagou cunosa.
- Como Sônia ouviu a sineta?
O garoto riu.
- Bem, é que era hora do meu lanche e ela deveria estar pelo corredor aguardando chamá-la. Se ela estivesse em outra parte da casa não escutaria. A noite
se me sinto mal é titia quem escuta do quarto ao lado e vem me ver. Sei que ela deve ter falado a você que, se precisar de alguma coisa, deve puxar o cordão ou tocar
a sineta, mas é só por delicadeza. Se precisar mesmo é melhor gritar ou correr.
Cirilo fez uma pausa, suspirou e voltou a falar.
- Sinto-me só, estou sempre só. Mamãe morreu há seis anos. Papai leva uma vida de solteiro como diz titia. Governantas, só governantas, mas estas são
empregadas e nunca me fazem companhia. Aqui, nem tenho amigos, titia éazeda como limão. Aqui também estou só.
- Gosta muito do seu pai? - Ana indagou com dó de Cirilo.
- Não, não gosto - respondeu o garoto calmamente.
Sônia trouxe o lanche numa grande bandeja e os dois comeram bem. Cirilo tinha razão, lanchar com companhia era muito mais agradável. Acabando, os dois já eram
grandes amigos.
- Ciro, quando for vasculhar a mansão me deixa acompanhá-lo?
- Claro, acho bom ter companhia. Vamos nos divertir. Ana não concordou, a mansão lhe dava medo, mas sorriu. Embora tivesse receio, a vontade de vasculhar
tudo era enorme. Tudo ali a fascinava. Quando Sônia veio buscar a bandeja, Ana foi para seu quarto onde aguardou o jantar, não queria mais se atrasar. Enquanto esperava,
preparou a aula para o dia seguinte. Lembrava da biblioteca e se arrepi
ava, não conseguia esquecer, parecia que ali fora só para isto. Teve até vontade de contar a Cirilo, mas temeu passar por abelhuda. Descobrir uma passagem secreta,
logo após chegar na mansão ia parecer estranho, aliás era muito estranho.
Desceu para o jantar e uma senhora veio lhe servir.
- Boa noite, sou Elizete, a cozinheira.
- Boa noite, respondeu Ana sorrindo.
Elizete era robusta, de meia-idade, parecia ser bem simples. Colocava o jantar na mesa de modo perfeito. Depois de uns segundos em silêncio Ana perguntou:
- E Sônia?
- Sônia trabalha cedo e à tarde, dificilmente fica aqui ànoite. Ela é solteira, gosta de ter as noites livres.
Elizete, embora educada, respondeu secamente demonstrando que não era de muita conversa. Saiu e Ana comeu. O jantar estava muito gostoso e, quando acabou, Elizete
apareceu como se soubesse que ela havia terminado.
- Sua comida é deliciosa - disse Ana, tentando ser agradável. - Cozinha como fada.
A cozinheira sorriu gostando do elogio e indagou:
- Você gostou daqui? Gostou do pequeno Cirilo?
- Gostei sim, só estou estranhando a solidão. Tudo tão grande para poucas pessoas. Cirilo é um amor, nem parece doente. O que ele tem que o priva de frequentar
a escola com outros meninos de sua idade?
Elizete, que retirava os talheres da mesa e os colocava numa bandeja, ficou novamente séria.
- Se você não sabe, não serei eu que vou contar. Nossa patroa não gosta de pessoas indiscretas. Se quer saber, pergunte a ela. Boa Noite!
Ana respondeu ao cumprimento muito sem graça, voltou ao seu quarto. Pela casa não se ouvia nenhum barulho, só dos seus próprios passos.
"Que será que Cirilo tem? Parece franzino para sua idade. Pensei que ele teria alguma deficiência, mas é perfeito. De diferente só as manchas avermelhadas,
mas podem ser do res
28 ANTÔNIO CARLOS
friado. Não entendo o porquê de privar o menino da escola e isolá-lo neste lugar. Pessoas ricas têm cada uma! Cirilo queixa-se que é sozinho, mas nesta casa qualquer
um tem solidão."
Para ver se conseguia distrair-se, pegou um dos três livros que trouxera para ler.
"Vou ler muito aqui!" Suspirou e lembrou-se novamente da biblioteca. "Sim, tenho muito que ler."
A Mansão da Pedra Torta era um mistério, mas iria desvendá-lo e com a ajuda de Cirilo.
"Cirilo, Ciro, que terá você, meu amigo? Que mistério também envolve sua saúde?"

Livro III O Sonho

Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho


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Ana leu um pouco, era cedo ainda, mas deitou e logo dormiu.
Sonhou... seu sonho foi tão nítido, que teve dificuldade, ao acordar, de saber se fora sonho ou se realmente havia acontecido. Seu coração batia rápido, levou
alguns minutos para se acalmar e só então olhou o relógio, eram duas horas e cinquenta minutos da madrugada. Ficou acordada relembrando o sonho com os olhos abertos,
com o quarto sob a claridade tênue do abajur.
Sonhou que estava vestida à moda antiga, vestido longo, armado, azul e verde. Estava bem arrumada, com os cabelos presos no alto da cabeça e caiam cachos nos
ombros. Estava com lindos brincos de pedra azul com brilhantes que vinham até o pescoço. Tinha uma aliança de casada que olhou com desprezo.
Estava no seu quarto, mas não aquele onde se encontrava agora, era um outro situado na ala principal. Depois de verificar que estava bem, bonita, ela saiu do
quarto em passos rápidos e foi para a biblioteca. Lá, abriu a estante, pegou o livro de Latim e abriu a passagem secreta. Pegou uma lamparina a óleo e acendeu. Entrou
no vão da parede, do lado de dentro, utilizou-se de um mecanismo existente do lado direito, era uma pequena alavanca, forçou para baixo e a estante fechou. Não teve
medo, parecia que fazia sempre este caminho. Desceu a escada e chegou a um pequeno cômodo que tinha duas portas. Olhou com indiferença a que dava para outro corredor,
andou por minutos, acabava o corredor com outra escada, só que esta era de poucos degraus e subia. Da escada ela empurrou uma laje e logo apare-
ceu um vão por onde passou depressa. Fechou, apagou a lamparina e a deixou ali. Estava numa gruta bem cuidada e olhou para o vão que havia passado, atrás de um pequeno
altar. Certificando-se de não ter ninguém ali, deu um assobio e escutou em seguida outro parecido. Logo viu um vulto se aproximando, era de um homem, ela correu
e atirou-se nos braços dele. Depois voltou, abriu o vão atrás do pequeno altar, acendeu a lamparina, fechou a passagem e rapidamente voltou fazendo o mesmo caminho.
Abriu só um pouquinho a passagem da biblioteca e se certificou de não haver ninguém, abriu, passou rápido, fechou a passagem e apagou a lamparina. Foi depressa para
seu quarto, ao entrar, suspirou.
"Ele não chegou!"
Ao acordar, Ana examinou-se no espelho e ficou impressionada ao lembrar-se da fisionomia da mulher do sonho. Era bem parecida com ela, só que mais delgada,
pescoço mais comprido, lábios finos, os olhos verdes cínicos e sorriso amargo. Sabia que era ela, tinha certeza de que era ela.
Ana era bonita, clara, cabelos castanhos curtos e olhos castanhos esverdeados. Estatura média e magra.
"Tudo isto porque fiquei impressionada com a passagem secreta na biblioteca. Sonho é bobagem, não devo ficar abalada", falou aborrecida.
Ficou a pensar: "Como descobri a passagem? Por que este sonho tão nítido em que parecia que recordava algo que fiz? Por que, embora um pouco diferente, senti
que era eu a mulher vestida à moda antiga a passar pela passagem secreta? Que sonho!"
Ficou agitada, nervosa e demorou para dormir novamente. O relógio despertou, Ana acordou, levantou e preparou-se para a aula. Desceu para o desjejum. Sônia
a acompanhou ao quarto de Cirilo. Ao passar pela porta do quarto com que sonhou, não se conteve e perguntou:
- Estes quartos ficam vazios? Este aqui alguém o ocupa?
aí, chamado o quarto da esquerda, ninguém fica. D. Eleonora, quando mocinha, ocupou-o por uns dias, depois disto nunca mais foi ocupado. Dizem que era assombrado,
mas agora nada se vê de estranho nele, também ninguém o ocupa. Quando tem visitas, dão preferência aos outros.
Pararam no corredor, em frente ao quarto citado. Sônia falava baixinho, fez uma pausa e verificou se não eram observadas e continuou:
- D. Eleonora, quando ocupou o quarto, ouviu gemidos e viu uma mulher, jovem e bela, que lhe pediu socorro porque estava sofrendo. Ela reconheceu ter sido um
dos membros de sua família. Apavorada não voltou mais ao quarto.
- Quem é esta jovem mulher que assombrou D. Eleonora?
- Foi uma moça pobre que se casou com um antepassado dela, morreu sem deixar filhos.
Ana estava assustada, mas sentiu uma vontade irresistível de saber mais sobre o assunto e indagou novamente.
- Sônia, você acredita em fantasmas?
- Eu acredito, e você?
- Em outro tempo e lugar responderia que não, mas agora, aqui...
Sônia bateu na porta do quarto de Cirilo e este mandou entrar. O garoto estava esperando. Ana, ao olhar para ele, viu que não estava bem, tossia e estava ofegante,
piorara do resfriado. Deu sua aula, mas, antes do final do horário, Cirilo reclamou:
- Chega, Ana, hoje não estou bem, estou com muita dor de cabeça. Dr. Bernardo vem me visitar logo mais. A tarde, se eu não estiver disposto, não teremos aula.
Você parece abatida. Não está bem?
- Tive um sonho esquisito. Sonhei com este quarto assombrado e com uma mulher jovem e bela vestida à moda antiga.
32 ANTÔNIO CARLOS
Vitória?
- Quem é esta Vitória?
A jovem professora estremeceu, Vitória lhe pareceu um nome familiar. Tão seu, como Ana.
- Pelo que sei, foi esposa de um membro de minha família. Tia Eleonora a viu quando era moça, por isto prefere que ninguém ocupe este quarto. Dizem que
esta Vitória tinha a mania de falar sozinha e foi por isto que o marido descobriu que ela o traía. Já vi seu retrato no salão da galeria, só que nem prestei atenção.
Lá tem muitos retratos. Você já foi lá?
- Não.
- Nem poderia, está trancado. Fica na parte direita da mansão no primeiro pavimento. Quando eu ficar bom, levo você lá. Sei onde está a chave.
- Quero ir!
- Acho - comentou Cirilo alegre - que arrumei companhia para andar por toda esta casona.
- Ciro - disse Ana -, aqui perto tem uma gruta com um pequeno altar?
-Como sabe? Fica atrás da mansão. Do seu quarto dá:
para ver as árvores que a circundam. E um altar de Nossa Sra. do Rosário. Já fui lá quando menino, faz tempo, mas lembro bem.
A professora sorriu e brincou, para disfarçar o medo que sentiu.
- Quando menino, Ciro?
- Sim, agora já sou um rapaz - falou estufando o peito. - Mas, me responda, como soube da gruta? Ninguém por aqui parece apreciar aquele lugar.
- Ouvi falar - respondeu Ana, simplesmente.
Ciro não insistiu, sentia cansaço e foi se deitar. Elizete lhe trouxe o chá com remédio. Ana foi para seu quarto. Abriu a janela e olhou bem para fora, viu
as árvores. Desejou ver a gruta, agasalhou-se e saiu do quarto. Mas, como não sabia como ir aos fundos da casa, usou a entrada da frente e logo
descobriu a garagem que era coberta, comprida e dava a saída para os fundos. Passou por ela e deu com o pátio. Logo após o pátio, ficava a estrebaria do lado direito,
à esquerda viu um portão que levava às casas dos empregados. Atrás das casas, uma horta e, do outro lado, a criação de animais. Com aves e suínos. Caminhou para
a estrebaria, do portão viu um homem cuidando de uns cavalos. Observou curiosa, eram animais bonitos e fortes.
- Bom dia!
Um homem voltou-se devagar, virando do lado direito, não a encarou. Continuou de lado, deu uns passos e ela percebeu que era o homem que a trouxera da estação.
Curiosa tentou ver seu rosto, mas o homem virou novamente de costas e respondeu secamente.
- Bom dia!
- Sou Ana Elizabeth, a professora de Cirilo. Gostaria de ver os animais. Posso entrar? Posso abrir o portão? Como você chama?
O homem continuou seu trabalho de costas para o portão e para ela, respondendo sem muita vontade.
- Me chamo Rodolfo. Desculpe, moça, mas aqui só se entra com permissão dos donos da casa.
Levantou-se e foi para os fundos, deixando-a ali, olhando. A moça suspirou e saiu para o pátio, foi andando rumo ao portão que levava às casinhas, quando escutou:
- Moça! Bom dia!
Viu um garoto sair de uma das casas, atravessou o portão e veio até ela, sorrindo feliz.
- Sou Michel, o filho do jardineiro João. A senhora éD. Ana, a professora?
Ana sorriu, até que enfim uma pessoa simpática. Michel era bonito, olhos grandes e vivos, cabelos avermelhados e sorriso encantador. Respondeu sorrindo também.
- Sou a professora, sim, muito prazer em conhecê-lo. Chame-me só de Ana, por favor. Você gosta daqui?
- Sim - respondeu o garoto. - Sempre morei aqui.
Minha mãe morreu quando eu era nenê, moramos logo ali, meu pai e minha irmã que tem dezoito anos. Eu tenho dez anos. E você, está gostando daqui?
Ana afirmou com a cabeça. Sua afirmação foi sem convicção. Instintivamente abraçou o menino que se deixou abraçar, como se fossem velhos conhecidos. Sentiu
amar aquele garoto.
- Michel! Onde você está?
Eles se separaram. Uma moça saiu na porta da segunda casa e gritou pelo menino. Era uma moça bonita, cabelos negros, compridos, e sorriso simpático igual ao
do irmão.
- Aqui! - gritou Michel. A moça veio ao encontro dos dois. - Esta é Ana, a professora do Cirilo - disse mostrando a nova amiga. Esta é minha irmã Eliane.
- Encantada - falou Ana estendendo a mão, respondendo ao cumprimento de Eliane.
- Agora vamos ter que sair - explicou Eliane. - Teremos muito tempo para conversar. Ana, venha nos visitar. Até logo!
Os dois saíram e Ana foi para seu quarto, mas sentiu uma vontade enorme de voltar à estrebaria.
"Voltarei outra hora, pedirei permissão ao Ciro."
Resmungou e sentiu um calafrio, ao lembrar o que Ciro lhe contou: "Vitória, o fantasma, tinha mania de falar sozinha". Só quando chegou ao seu quarto, Ana se
lembrou que não fora à gruta.
"Meu passeio à gruta ficará para outro dia", pensou. "Pedirei ao Michel para me levar lá. Que garoto lindo! Sinto que eu o amo. Mas como, se o conheci hoje?"
Sentia que o conhecia e bem, conhecimento de muito tempo. O sonho ainda lhe incomodava. Pareceu tão real! Logo era hora do almoço, desceu e se alimentou.
Depois subiu ao seu quarto e preparou a aula. No horário foi para o quarto de Cirilo. Encontrou-o no leito e Sônia lhe fazendo companhia.
- Ana - falou o menino -, não teremos aula hoje. Es-
tou com febre, tire o dia para passear. Amanhã, se eu estiver melhor, continuaremos nosso estudo.
- Obrigada, Cirilo, estimo que sare logo. Quero lhe pedir permissão para conhecer a estrebaria. Rodolfo disse que não se pode entrar lá sem permissão.
Sônia e Cirilo riram e o garoto respondeu:
- E cautela de Rodolfo, a ordem é para não entrar estranhos, mas você é minha mestra. Vá quando quiser e diga-lhe que eu autorizei.
Cirilo estava ofegante. Ana despediu-se, saiu e foi conhecer a estrebaria. Passou pela garagem e logo chegou ao pátio. Na frente da estrebaria, bateu palmas,
e, não vendo ninguém abriu o portão, deu uns passos com cautela e, de repente, se viu de frente com Rodolfo. Gritou assustada.
Rodolfo tinha do lado esquerdo do rosto, na altura da sobrancelha, uma feia e enorme cicatriz, não tinha o olho esquerdo e a pálpebra era grudada, formando
um buraco. A cicatriz avermelhada descia até os lábios. Naquele dia seu aspecto estava pior ainda, a barba estava por fazer, vestia uma camisa preta com gola alta
e estava com os cabelos despenteados. Rodolfo também se assustou com os gritos de Ana e no momento não soube o que fazer. Michel veio correndo, segurou as mãos de
Ana e explicou:
- Ana, este é Rodolfo, meu amigo.
A jovem envergonhou-se e tratou de se desculpar ao ver o moço aborrecido.
- Desculpe-me, assustei-me à toa. Queria ver os cavalos, bati palmas, ninguém atendeu, entrei e me assustei como uma boba.
- Não precisa se desculpar - respondeu Rodolfo -, dou medo a todos.
- Não a mim - corrigiu Michel. - Não se chateie, Rodolfo.
- Claro que não dá medo - falou Ana -, que bobajem Eu que pensei não ter ninguém aqui.
Rodolfo a olhou rancoroso e Michel puxou Ana pela
mão, para fora. No pátio, ela explicou ao seu novo amigo.
- Michel, não queria gritar, só levei um susto. Não imaginei...
- Rodolfo é feio, mas é meu melhor amigo - acrescentou Michel com carinho. - Gosto dele como um irmão. Certamente ele ficou chateado, mas passa logo.
- Levaria susto de qualquer um que lá aparecesse -afirmou Ana. - Mas o que aconteceu com ele para que ficasse assim?
- Bem, faz tempo. Rodolfo me contou. Vamos sentar aqui, neste banco.
Sentaram num banco de pedra, na varanda que dava de frente ao pomar. Estava frio, mas Ana, curiosa para saber o que aconteceu, nem sentia. Michel com seu modo
simples narrou a história de Rodolfo.
- Rodolfo teve uma doença infantil quando era bebê, demorou para andar e, quando o fez, passou a mancar. Seus pais morreram quando ele ainda era pequeno, foi
então morar com uma tia que faleceu no ano passado. Sempre morou aqui e gosta muito dos animais, principalmente dos cavalos de quem cuida com muita dedicação. Mas
foi num acidente com eles que Rodolfo ganhou esta cicatriz no rosto. Isto aconteceu quando ele tinha quatorze anos. A estrebaria naquela época era velha. D. Eleonora
tinha um irmão, Sr. Eurico, que bebia muito. Naquela noite, ele estava bêbado e veio para a estrebaria e, por descuido (isto concluíram, porque ninguém sabe ao certo
o que aconteceu), deixou cair a lamparina na palha e o fogo alastrou-se rápido. Rodolfo morava com a tia na primeira casa, depois do portão, e mora lá até hoje,
só que agora sozinho. Acordou e veio correndo para a estrebaria, gritou e todos correram. Rodolfo querendo salvar os animais entrou e abriu os portões salvando os
cavalos. Mas uma ripa caiu do telhado bem no seu rosto. Joaquim, um velho empregado, foi quem tirou ele lá de dentro. Seus ferimentos sararam, mas ficou a cicatriz.
D. Eleonora levou-o ao médico na cidade grande, disseram que ele pode-
ria fazer uma operação para melhorar seu rosto. D. Eleonora disse que ia levá-lo, mas o tempo passou e ninguém falou mais nisto. Acho que é porque esta cirurgia
fica muito cara. No incêndio, o irmão da D. Eleonora morreu. Acharam o corpo dele todo queimado.
Michel suspirou ao terminar seu relato. Depois de um instante em silêncio, ouviu a moça falar:
- Estou envergonhada por ter-me assustado. Mas alguém poderia ter me avisado. Coitado do moço!
- Você não podia imaginar - consolou-a Michel.
- Rodolfo mora sozinho, ele é solteiro?
- E. Rodolfo é quieto e muitos o acham estranho. Eu não acho, gosto muito dele. Ele gosta de minha irmã Eliane, mas ela não gosta dele e namora Pedro, um moço
que mora lá na cidade.
Ana fez uma careta, sentiu raiva por Rodolfo gostar de Eliane, aquela sem graça, que até minutos antes achava bonita. Estranhou. Por que achava ruim? Acabou
de conhecêlos. Mas sentia que Rodolfo não podia amar Eliane.
- Vou embora, Ana - disse Michel. - Aqui está frio e preciso estudar.
- Também vou entrar, vou para meu quarto ler. Tchau.
- Tchau.
Ana levantou, mas não saiu do lugar, ficou olhando Michel que foi para casa.
"Devo entrar também", pensou Ana.
Caminhou rumo à garagem. Descobriu que a garagem tinha uma passagem que levava à saleta das muitas portas, encurtando o caminho. Poderia também passar pela
cozinha, mas Sônia lhe disse que Elizete não gostava que passassem por ali, então passou a fazer este trajeto, pela garagem. Mas, no pátio, mudou de rumo, sentiu
uma vontade forte de voltar à estrebaria e ver Rodolfo.
- Rodolfo - chamou baixinho.
Como ninguém respondeu, abriu o portão e entrou vagarosamente. Não tinha dado muitos passos quando come-
çou a sentir-se mal, tudo começou a rodar, viu o fogo e sentiu o cheiro da fumaça. Sem conseguir sair do lugar, Ana apavorada viu o fogo se alastrar nas palhas e
dois homens discutindo, um mais velho que levava desvantagem e outro mais moço que gritava impropérios. Viu bem o rosto do mais moço que tirou um punhal e enfiou
friamente no peito do outro. Gritos de "fogo, fogo" fizeram com que o assassino corresse para os fundos e sumisse.
- Senhorita! Senhorita! Que aconteceu?
- Hum... - respondeu Ana.
Com os olhos arregalados, sentia que o ar lhe faltava. Rodolfo a segurava pelos braços impedindo-a de cair. Olhou tudo, confusa, aos pouco foi melhorando, viu
que estava na estrebaria e que não havia fogo. Rodolfo a olhava curioso e com rancor. Quando notou que ela estava melhor, largou-a e disse:
- Não precisa se assustar, sou feio mas não mordo. Não acha que dois sustos já é exagero?
- Desculpe-me, mas não levei susto do senhor.
- Sou Rodolfo, ninguém me chama de senhor. Por que chamar de senhor um empregado que cuida dos animais? Mas o que aconteceu? Parecia que ia perder os sentidos.
- Entrei aqui para lhe dizer que sentia muito ter levado um susto e para conhecê-lo melhor, já que somos colegas, trabalhamos no mesmo lugar.
- Com uma diferença, você é uma professora, uma pessoa instruída e eu um pobre coitado, um peão, você é bonita...
- Acha mesmo? Obrigada - falou Ana, rápido, interrompendo Rodolfo.
- Mas o que você sentiu?
- Estava entrando, quando vi fogo, cheguei a ficar asfixiada com a fumaça. Vi fogo, juro!
Rodolfo começou a rir, depois ficou sério e olhando para ela indagou:
- Fogo onde? Aqui não tem fogo.
- Não, não tem. Mas eu vi! Também vi dois homens discutindo, a lamparina caiu e o fogo começou. O homem mais novo pegou uma faca ou punhal e enfiou no outro
que era mais velho. Com os gritos de fogo, o assassino correu por ali, pelos fundos e nem tentou ajudar o outro que se contorcia de dor. Não entendo o que aconteceu.
Aí você me chamou e vi que nada tinha acontecido.
Rodolfo a olhou bem e a jovem estremeceu com o olhar dele. Estavam perto e ela desejou que ele a beijasse. Mas Rodolfo virou as costas e comentou:
- Estranho, muito estranho! Como é este moço, o assassino? Você o reconheceria?
- Sim, gravei bem sua fisionomia. E moreno, de costeletas largas, lábios grossos e tem uma pinta do lado direito dos lábios.
- Inacreditável!
Virou-se para ela, olhando-a bem e balançou a cabeça.
- Rodolfo, eu não sou louca! E a primeira vez que isto me acontece. Acho que a culpa é desta mansão. Estas velhas construções mexem com a cabeça da gente. Não
precisa acreditar. Tive uma tontura, é isto, foi uma tontura.
- Acredito em você. Acho bem interessante a visão que teve. Não entendo disto e nem sei o que lhe aconteceu, o que a levou a ver o passado ou as cenas do incêndio
que houve aqui. Sim, porque aqui houve um incêndio horrível. Fui o primeiro a entrar aqui, quando pegou fogo. Soltei os cavalos, ia sair quando vi Sr. Eurico caído,
ia puxá-lo quando caiu um pedaço do telhado em cima de mim e desmaiei. Fui salvo por um outro empregado. Quando o fogo acabou, acharam o cadáver do Sr. Eurico. Minha
tia e o velho Joaquim, que me salvou, viram que o cadáver tinha uma faca no peito. D. Eleonora pediu para os dois nada falarem. Para todos, o Sr. Eurico, bêbado,
tinha derrubado a lamparina. Minha tia tempos depois me contou este detalhe, e eu não falei a ninguém. E a porta do fundo que você viu existia na antiga estrebaria.
- Será que vi o que aconteceu no incêndio? Se vi, exis
te um assassino!
Rodolfo sorriu, quando sorria ficava mais feio ainda, seu rosto repuxava e os lábios entortavam.
- Ana, não conte a mais ninguém o que viu aqui. Passaria por louca ou poderia ser perigoso. E poderá vir a conhecer o assassino um dia, se é quem estou pensando.
- Virgem Maria! Você sabe me dizer o que foi que eu tive?
- Uma visão, suponho. Mas, boa tarde, tenho muito o que fazer.
Virou e saiu da estrebaria. Ana teve vontade de lhe responder com grosseria, mas balbuciou um boa tarde e saiu também. O ar frio da tarde lhe fez bem, mas preferiu
voltar para seu quarto, porque sentia uma leve tonteira.
Chegando ao seu quarto, olhou pela janela e se lembrou que tinha saido também para ver a gruta.
"Não faz mal, irei outro dia. Pedirei a Michel para me levar."
O sonho que tivera com a passagem secreta e a visão da estrebaria a intrigavam, deixando-a nervosa. Lembrou do assassino.
"Nunca mais esquecerei seu rosto frio e cínico. Que coisa! Será que estou ficando doente? Ou será que é esta mansão a causadora destes distúrbios?"
Resolveu tomar banho e descansar.


IV- O salão de Baile


Ao descer para a copa, Ana ouviu conversas na sala ao lado. A jovem professora, curiosa, com toda cautela olhou pelo vão da porta que estava um pouco aberta.
A outra sala de refeições era luxuosa, mas não prestou muita atenção, olhou quem conversava. Era D. Eleonora e um senhor alto, que se trajava elegantemente, de maneira
sóbria, um pouco àantiga. Era louro e aparentava ter sessenta anos. Ana simpatizou-se com ele. Temendo ser descoberta voltou logo para seu lugar na mesa. Logo foi
servida, teve vontade de fazer algumas perguntas a Elizete, mas não teve coragem, lembrava bem da resposta que ela lhe dera na outra vez. Ao lhe servir um doce de
sobremesa, ouviram uma risada na sala das escadas e foi Elizete quem comentou:
- A D. Eleonora está subindo com o Dr. Bernardo, certamente irão ver o pequeno Cirilo, depois jogar cartas até tarde na sala de jogos. Os dois têm uma
amizade muito antiga. Ele vem muito aqui, para visitar nossa patroa e para ver o menino doente. Dr. Bernardo é muito simpático, está sempre elogiando minha comida.
Agora vou jantar. Boa noite, Ana.
- Boa noite!
Ana comeu seu doce rapidamente, ia subir, mas não estava com vontade de ficar no seu quarto sozinha. D. Eleonora havia subido, Elizete estava jantando e ela
aproveitou para ver com detalhes a sala ou salão de refeições ao lado. Entrou cautelosamente na sala que estava encantadoramente iluminada. Candelabros riquíssimos
de cristal enfeitavam o teto, quadros belíssimos ornavam as paredes, grossas cortinas bege e amarelo-claro com acabamento em marrom cobriam as janelas. Vasos de
flores e plantas exóticas

enfeitavam a imensa sala. No centro, uma mesa comprida de ébano, cadeiras de madeira com assento de veludo bege. Numa ponta da mesa ainda estavam os talheres do
jantar recém-servido. Encantada, chegou perto, os talheres eram de prata, copos de cristais, pratos lindíssimos de porcelana e havia uma garrafa de vinho francês
sobre a mesa que estava revestida de uma toalha branca de linho bordado.
"Tudo tão lindo! Esta sala ficaria melhor com as cortinas verde musgo. Que idéia! Parece que conheço esta sala!"
Curiosa, Ana abriu a porta à direita. Estava escuro. Entrou e acendeu a luz ao lado da porta e defrontou-se com uma bela sala de estar onde eram servidos café
ou licor após as refeições. Dois lindos quadros enfeitavam as paredes, poltronas confortáveis e dois sofás de cor bege serviam para o descanso de hóspedes. Viu três
mesas com grandes e luxuosos cinzeiros e, nos vasos, flores artificiais. Havia outra porta e Ana a abriu; dava para um pequeno jardim com bancos e balanços. O jardim
era murado, alto. Ana lembrou de ter visto o muro do pátio. Fechou logo a porta, porque o frio era intenso. A noite escura demonstrava que ia chover novamente. Algumas
revistas de moda e fofocas estavam num antigo porta-revista. Sentiu-se atraida por aquela peça. Abaixou e não se interessou pelas revistas, mas sim pela obra de
arte.
"Meu Deus, que beleza! Do outro lado deve estar a figura da deusa de Vênus."
Virou a peça e lá estava, encantadoramente, a deusa de Vênus, a lhe sorrir misteriosa, desenhada em relevo no cobre da peça, como a lhe dizer:
"Até que enfim você novamente para me dar valor."
Passou a mão admirando a peça e a virou dando realce à deusa.
"Parece até que esta peça já foi minha, e que gostava muito dela. Lembro-me que ganhei de presente de alguém muito querido. Bobagem! Só a achei bonita."
Colocou as revistas novamente no lugar e resmungou:
"Seria interessante se pudesse levar estas revistas para

meu quarto. Mas não posso levá-las sem autorização e agora não tenho a quem pedir."
Apagou a luz e saiu. Voltando ao salão das refeições, escutou um barulho e se escondeu atrás de uma cortina. Elizete tirava os talheres resmungando. Quando
ela saiu rumo à cozinha, Ana suspirou aliviada, deixou seu esconderijo pensando em ir para seu quarto. Mas estava curiosa para conhecer o resto da mansão e abriu
a porta do lado contrário àquele pelo qual entrara. Chegou numa sala pequena em comparação com as outras, mobiliada com móveis antigos e escuros e decorada com grandes
quadros de paisagens. Não havia poltronas ou cadeiras, o que demonstrava que a sala era de passagem. Todas as cortinas eram iguais, no mesmo tecido, somente com
acabamento mais requintado: as pontas das cortinas apresentavam bordados em dourado com pingentes da mesma cor.
"Quantos metros de tecidos foram gastos nestas cortinas! Vestiriam dezenas de pessoas", murmurou.
Desta sala, passou para outra, de luxo exagerado. Dava para a porta principal da entrada da mansão. Grande, com as cortinas iguais às da outra sala. Quadros
encantadores e lustres de cristal maravilhosos, tapetes combinando com as cortinas. Estava dividida por móveis em três ambientes. Tinha muitos enfeites. O ambiente
da frente era o mais antigo, com muitas mesinhas, sofás e poltronas verde e bege. No fundo, o ambiente mais moderno destacava um barzinho com copos e bebidas. Parecia
ser a parte para visitas jovens.
Na frente da sala, do lado esquerdo, havia uma porta grande. Ana abriu e nada viu. Com a escuridão não conseguiu achar o interruptor.
"Onde será que se acendem as luzes desta sala?", pensou. "Mas se acende alguém lá fora irá ver e perceberá que estive aqui."
Entretanto a curiosidade a atiçava. Procurou no escuro e acabou achando onde acender. A eletricidade havia sido instalada na mansão fazia pouco tempo. Os candelabros
à vela

ali estavam e, também, lâmpadas elétricas colocadas nos cantos, em paredes e abajures.
Era um salão de festas enorme. Algumas janelas davam para a frente da casa, outras, para o lado direito. Neste salão não havia móveis. Ana chegou perto de uma
janela, afastou a cortina com cuidado e viu que dava para o jardim. Examinou o salão. No fundo, um piano de cauda sobre um tablado de madeira e, do lado direito,
mesinhas e cadeiras. O assoalho era de madeira trabalhada em quadrados, uns escuros e outros claros.
Ana examinava tudo com atenção, sem conseguir sair do lugar. Sentiu-se mal. Parecia rodar em ritmo de valsa. Viu-se toda enfeitada, com um vestido vermelho,
armado, todo bordado e com um grande decote. Usava muitas jóias. Ria contente, admirada e invejada por todos os convidados. Sabia que era um sucesso. O som da música,
de uma valsa, era alto e ela achava a canção muito bonita. Ria feliz e esnobava os admiradores. Festa luxuosa. O salão lotado. Sentiu-se cair no chão.
Foi voltando ao normal, levantou-se confusa, o salão agora estava vazio e silencioso.
"Meu Deus! Que coisa estranha! Estarei doente? Como posso imaginar isto tudo? Este ar de velharia está me fazendo mal. Parecia que estava numa festa do passado.
Virgem Maria!"
Deveria ter tido festas incríveis neste salão de baile. Ana apagou as luzes, fechou a porta, atravessou a sala principal e entrou em outra. Olhou mais uma vez
para os quadros, e como sempre falou em voz baixa.
"Quantos quadros! Quantos candelabros de cristal! Que nqueza nestas peças antigas!"
Viu uma porta do lado direito. Forçou para abri-la. Estava trancada. Sentiu-se atraida por aquela porta. Concluiu que era a sala trancada, que Cirilo lhe falou,
a dos retratos. Estava com forte dor de cabeça e resolveu voltar para seu quarto. Apagou todas as luzes, olhou o relógio na sala das

escadas, era bem mais tarde do que pensava.
"Devo ter ficado caída por muito tempo. Será que desmaiei?"
A mansão permanecia silenciosa. Sem fazer barulho voltou para seu quarto e logo adormeceu.
Sonhou. No seu sonho ela descia as escadas e ia direto à sala trancada. Abria a porta e olhava para uns objetos, diante de um quadro, assustava-se e levava
a mão à boca para não gritar. Acordou com a mão na boca, aflita. Levantou e tomou um remédio para a cabeça que doía terrivelmente. Procurou acalmar-se, ajeitando-se
na cama.
"Que será que vi no quadro que me assustou? Não lembro! Que sonho estranho! Sonho é sonho e não se deve dar atenção. Devo dormir!"
Mas nada de adormecer novamente. Então, começou a ouvir vozes. No começo pareciam estar longe, foram aos poucos se aproximando. Ana tremia, puxou os cobertores,
colocou a cabeça embaixo do travesseiro. Nada, continuou a escutar as vozes. Não conseguia entender direito o que falavam. Orou aflita. Novamente o silêncio. Ajeitou-se
no leito.
"Estou apavorada. Vozes são de pessoas. Alguém deve ter acordado, levantado e conversado. Nesta mansão tão grande deve dar até eco. Neste silêncio qualquer
voz parece fazer um barulhão. Devo acalmar-me e dormir. Mas tenho vontade de ir à sala trancada. Não sei por quê. Ainda irei lá."
Ana estranhou, nunca foi tão curiosa. Por que será que estaria com tanta vontade de ir à sala trancada? Também começava a preocupar-se com sua saúde. Estavam
acontecendo fatos estranhos com ela.
Cansada, acabou dormindo.

Livro V - A Bandeira branca

Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Sempre-Lendo, o melhor grupo de troca de livros da Internet!



A bandeira branca

No outro dia cedo, Sônia veio limpar o quarto.
- Bom dia, Ana. Vim cedo limpar esta parte da man
- Só você limpa tudo? - indagou Ana, querendo conversar.
- Não, Eliane ajuda sempre. Faço assim, cada dia da semana limpo uma parte. Somente os quartos da D. Eleonora e do Cirilo é que limpo todos os dias.
Os quartos fechados são limpos uma vez por mês e Eliane vem limpá-los.
- Esta noite ouvi vozes, pessoas conversando. Está hospedada mais alguma pessoa nesta ala?
Sônia riu. Bonita, morena clara, cabelos longos que trazia sempre presos; quando ria duas graciosas covinhas apareciam na sua face. Tinha vinte anos, era esperta
e agradável.
- Não, nesta parte só tem você.
- Estranho! - exclamou Ana encabulada.
- Estas vozes são escutadas sempre pela mansão. Você entendeu o que disseram?
- Não entendi direito.
- E sempre assim, ninguém entende o que eles dizem ou o que ela diz. Porque parece que sobressai a voz de uma mulher.
- Eles quem? E esta mulher, sabem quem é ela?
- Ora - disse Sônia balançando os ombros -, são fantasmas.
Ana riu, mas sentiu um arrepio. Até poucos dias gargalharia destes fatos, mas agora...
- Será que esta mulher é a Vitória?
- Como sabe este nome? - Sônia não esperou pela resposta e continuou a falar animada, demonstrando gostar
destas histórias. - Acho que não é ela, esta nunca ninguém viu por aqui, só mesmo D. Eleonora quando mocinha. Ver fantasmas mesmo, ninguém os vê, pelo menos não
falam, mas as vozes todos os moradores da fazenda já escutaram. Não são todas as noites, uma vez ou outra, elas se fazem escutar por toda a mansão, no pátio, na
estrebaria e na gruta. Queria muito escutar, até já dormi num destes quartos várias noites para escutá-los. Isto, escondido de D. Eleonora.
- Escutou? - indagou Ana curiosa.
- Depois de doze dias, escutei. Levantei e andei pelos corredores e não pude distinguir de onde elas vinham. Também não entendi muita coisa, todos por
aqui já se acostumaram, nem ligam mais. Ontem à noite viram luzes acendendo e apagando na ala nobre, nas salas e salões.
Ana teve vontade de rir, mas se conteve. As luzes havia sido ela, mas as vozes atribuidas aos fantasmas deveriam ter explicações também. Sentiu-se aliviada.
- E você que limpa aquelas salas?
- Eliane e eu as limpamos uma vez por semana. Aqui trabalham Elizete na cozinha e Jovina que lava e passa roupas e que tem lavado as suas. Quando temos
mais hóspedes contratamos moças na cidade. Antes, no tempo do pai de D. Eleonora, davam-se grandes festas. Mas agora nossa patroa vive mais retirada, não há mais
festas aqui. A fazenda tem muitos empregados, meu pai e meus irmãos trabalham na lavoura.
- D. Eleonora tem filhos? - indagou Ana, querendo saber mais sobre a pessoa que a empregara.
- D. Eleonora é viúva há muito tempo. Tem duas filhas, uma freira e a outra casada, que mora longe daqui e que tem cinco filhos. Ela vem aqui raramente
e só com os filhos, porque D. Eleonora está brigada com o genro. Esta fazenda era do pai dela, que ao morrer deixou para ela e o irmão, o Sr. Eurico, que morreu
no incêndio. O senhor Eurico era o pai do senhor Raimundo, e, como ele é filho único, isto tudo agora é dos dois. Mas quem cuida da administração da fazen
da é D. Eleonora, porque o Sr. Raimundo vem pouco aqui.
- O Sr. Raimundo só tem Cirilo de filho?
- Só. A esposa dele morreu quando Cirilo era pequeno. Dizem que o Sr. Raimundo tem muitas namoradas. D. Eleonora quer vê-lo casado novamente, mas ele só quer
aproveitar a vida. Quando D. Eleonora morrer talvez vendam a propriedade, porque não terá quem cuide disto tudo.
- E a outra filha, a freira?
- Está no convento, e dizem que é meio louca. Não a conheço. Mas minha mãe, sim, porque era arrumadeira na época que D. Paula ainda morava aqui. Mamãe me contou
que quando D. Paula era mocinha ficou doente e depois disto nunca mais melhorou. Minha mãe afirma que ela fez um aborto, mas foi escondido; ela soube juntamente
com os outros empregados, porém evitaram comentar com medo de D. Eleonora. Ela era solteira e muito nova. Foi o Dr. Bernardo quem cuidou dela. Quando sarou, passou
a ter muito medo, D. Paula não ficava sozinha, dormia no quarto da mãe. Uma vez D. Eleonora teve que viajar e minha mãe foi dormir no quarto dela. Mamãe conta e
se arrepia até hoje. Dormiam, quando, de madrugada, minha mãe acordou com D. Paula falando como se visse alguém à sua frente. Ela dizia: "Deixe-me em paz! Nada disto
é verdade! Saia daqui!" Minha mãe levantou e correu para perto de D. Paula, esta a abraçou e chorou: "O que se passa com a menina?" - perguntou minha mãe curiosa.
D. Paula falou confusa. - "E esta Alice que não me deixa em paz! Vem sempre me dizer que não a deixei nascer e que me odeia por isto." - "Quem é essa Alice?" -indagou
minha mãe. - "Uma antepassada da família." - Minha mãe a acalmou e ela voltou a dormir. Achou que a jovem Paula estava louca mesmo. Onde já se viu não deixar nascer
alguém que já morreu há tempo? Mas D. Paula pouco se alimentava, andava triste e chorosa. Um dia resolveu ir para o convento.
Sônia não parava de trabalhar, falava arrumando tudo, Ana interessada a escutava com atenção. Teve pena de Paula.
Não era fácil ser perseguida por um fantasma. Ficaram em silêncio por uns minutos. Ana voltou a indagar.
- Você gosta daqui?
- Mais ou menos. Aqui tenho casa, comida e um pequeno ordenado. Fico porque estou economizando para casar. Meu noivo, Gilberto, mora na cidade. Ele está
proibido de vir aqui e por isto tenho que ir vê-lo na cidade.
- Proibido? Por quê?
- Todos na região sabem das assombrações desta casa. Gilberto é muito curioso, veio pedir permissão a D. Eleonora para ficar aqui e ver os fantasmas.
Ela não gostou, e o expulsou daqui, proibindo-o de entrar na propriedade. Gilberto acabou intrigado com estas almas penadas e se juntou a um grupo Espírita. Foi
ótimo, agora ele entende tudo isto, e encara de forma mais natural, me diz que para tudo isto tem explicação. Eu não vou às reuniões, mas, quando casar e morar na
cidade, quero ir, e entender estes fenômenos também. Quando for embora, sentirei falta dos fantasmas. - Sônia riu e continuou. - Ana, esta noite, joão, o jardineiro,
viu na torre a bandeira branca. Queria tanto ter visto. Dizem por ai que, quando a criminosa voltasse à mansão, na torre apareceria a bandeira branca.
- Criminosa? - indagou Ana preocupada.
- Esta história é passada de boca em boca. Foi uma antepassada da família que era uma empregada e que matou uma mulher, a esposa, para casar com o proprietário
da mansão.
- Não, não é verdade! Ela não a matou!
Ana quase gritou, levantou-se da cadeira e, diante do susto de Sônia, entendeu que se excedera. Falou após alguns minutos encabulada.
- Desculpe-me se eu a assustei. Não sei se é criminosa, eu...
- Não precisa se desculpar. Acho que você se assustou foi com as vozes que ouviu esta noite. Deixemos para lá, se matou, não é problema nosso. Mas todos
aqui dizem que ela
foi criminosa. Falam também que ela voltará à mansão e, quando isto acontecer, aparecerá na torre a bandeira branca. E João viu esta noite a bandeira lá, esticada,
balançando ao vento.
Ana ficou quieta, não sabia o porquê de ter defendido esta antepassada da família, mas sentia que ela não fora cnminosa ou tão má quanto falavam. Estava nervosa,
mas perguntou novamente:
- Como se chega à torre?
- E João, o jardineiro, quem cuida da torre. Bem, ele a limpa umas duas vezes por ano. Eu já fui lá e nada achei de interessante. Acho que ninguém acha, não
é visitada por ninguém, nem pelos fantasmas. Nunca foi visto nada por lá, somente ontem João viu a bandeira. Mas se quiser conhecê-la ésó pedir a ele. A porta da
torre dá para o jardim e fica trancada. João tem a chave. Dizem que tem uma entrada para ir lá de dentro da mansão, mas ninguém sabe onde fica ou se realmente existe.
Ana ficou inquieta, a bandeira branca a intrigava. Parecia que agora entendia o que diziam as vozes ou melhor uma das vozes. Era mais ou menos assim: "Voltou,
criminosa? Voltou? Traidora! Conserta o que estragou!" Achando que ouvira histórias demais e isto a estava perturbando, despediu-se de Sônia, foi ao quarto de Cirilo
sem tomar seu desjejum.
Dois dias se passaram sem novidades, uma chuva fria caía, o frio era intenso e Ana não se aventurou a sair.
No terceiro dia, o tempo melhorou e o sol pareceu dar vida a tudo. Cirilo estava melhor. Na aula da tarde, Ana curiosa para ver a sala trancada comentou sobre
ela para recordar o aluno que prometera levá-la até lá.
- Esta sala onde estão os retratos da família fica ao lado da sala principal?
- Fica sim. Minha tia a tranca e não gosta que alguém vá lá. Mas eu já fui, lá só tem retratos. Assim que der certo, levo-a lá, prometi e cumprirei.
- Por que trancam esta sala?
- E uma história estranha. Os empregados, Sônia, João e outros por aí, dizem que uma mulher que foi casada com um membro da família aprontou muitas coisas indignas
e que ela voltará. Lá na sala tem seu retrato, e ninguém pode ver como ela era para não reconhecê-la. Titia me disse que a tranca porque lá tem fantasmas, ela mesmo
viu uma fisionomia de um quadro chorar. Titia é muito impressionada, detesta fantasmas, fica brava quando alguém pede para vê-los. Expulsou até o noivo da Sônia
daqui. Esta sala está trancada e não é aberta para nada, nem para limpar. Lá é tudo sujo e empoeirado.
- Que diz seu pai disto tudo? Dos fantasmas?
- Ele ri, não acredita em nada. Não está nem aí com a fazenda ou com a casa, é titia quem cuida de tudo. Papai acha que tudo isto e estas vozes que escutam
não passa de brincadeira de alguém. Ele não gosta daqui.
- Ele também tem retrato lá?
- Não, tem só até meu avô. Meu pai acha tudo isto uma bobagem.
- Ciro, você conhece suas primas, as filhas de D. Eleonora?
- Uma vez estava aqui e a filha casada veio com os filhos passar uma temporada, eles são muito engraçados. Foi ótimo. A Paula, que está no convento,
vi uma vez, quando titia me levou para visitá-la. Ela é triste, me agradou e eu gostei dela. Dizem que ela reza muito e que cuida de muitas crianças órfãs. Meu pai
me disse que a namorou escondido e que ninguém ficou sabendo. Quando ele resolveu casar com minha mãe, ela foi para o convento. Dizem muitas coisas sobre ela, mas
eu não acredito, ela me pareceu muito lúcida.
Terminando a aula, Ana foi para seu quarto e logo após chegou Sônia.
- Ana, Michel, o filho do jardineiro, pediu para chamála. Está esperando-a lá na garagem. Ele disse que a conheceu e quer falar com você.
- Claro, vou lá agora.
Desceu com Sônia, que foi para a cozinha, e Ana para a garagem. Michel, quando viu Ana, correu em sua direção e lhe deu um abraço.
- Ana, minha amiga, por que não veio mais me ver?
- Com o tempo chuvoso não saí. Mas como você está?
- Bem. Também não sai muito.
- Michel, você me leva à gruta aqui perto? Quero conhecê-la.
- Levo-a sim, quando quiser ir me avise. Mas lá não éum lugar bonito. Fica no meio de um pequeno bosque e tem morcegos. Tem só um minúsculo altar de
pedra e está mal cuidado. Ninguém gosta de ir lá, dizem que foi cometido lá um crime e um suicídio.
- Conte-me esta história! Que mais sabe sobre a gruta? - perguntou Ana, curiosa.
- Foi um fato que aconteceu com uma mulher chamada Vitória. Uns dizem que ela se suicidou na gruta de remorso por ter matado a esposa do Sr. André. Outros
dizem que ela foi morta pelo esposo, o Sr. André, por ter-lhe sido infiel.
- Lá aparecem fantasmas?
- Nunca fiquei sabendo se aparecem. É só um lugar sem graça. Ninguém, depois de conhecer, volta lá.
- Você gosta das histórias que contam sobre a mansão?
- Não, só me interessei por esta - respondeu Michel sério.
- Existem muitas histórias sobre esta Vitória - comentou Ana.
- E mesmo, até da bandeira branca. Meu pai viu outra noite a bandeira na torre. Dizem que quando esta Vitória voltasse aqui a bandeira apareceria nas
noites de lua cheia. No dia em que meu pai viu, estava nublado, mas era noite de lua cheia.
Os dois se calaram e suspiraram.
- Michel, você queria falar comigo?
- Bem, Ana, é que eu estou atrasado na escola, se você puder me ensinar...
- Será um prazer ensiná-lo, só que tem que ser à noite, após o jantar.
- Terá que ir à minha casa - falou Michel. - Me encontro com você aqui e a trago de volta. D. Eleonora não gosta que os moradores da fazenda entrem na mansão.
- Combinado, espero-o aqui.
- Obrigado, Ana.
Despediram-se e após o jantar Ana desceu para a garagem e lá estava seu pequeno amigo. A jovem olhou-o bem e sentiu que gostava muito dele. De mãos dadas foram
para a casa do jardineiro que a recebeu bem. Ana logo foi dar uma olhada nos cadernos de Michel, viu que ele estava fraco em matemática e começou a lhe explicar
a materia.
Logo após Rodolfo entrou na casa, na sala onde eles estavam, e o coração de Ana bateu descompassadamente.
- Rodolfo veio atrás de Eliane, mas ela foi com o namorado na cidade - Michel cochichou baixinho.
Rodolfo sentou-se numa cadeira ao lado de João e começaram a conversar. Ana irritou-se, como podia Rodolfo ficar assim atrás da sem-graça da Eliane. Ouvindo
o moço perguntar por ela, respondeu atrevida:
- Eliane tem namorado, é feio incomodar uma moça comprometida.
Rodolfo não respondeu, mas ficou vermelho, despediu-se logo e saiu. Ana se chateou, terminou a explicação e despediu-se prometendo voltar todas as noites que
fosse possível. Michel a acompanhou até a garagem. Ana viu a luz acesa na casa de Rodolfo e suspirou aborrecida.
"Deve estar esperando por ela".
No seu quarto, pensou no que fizera e achou tudo muito estranho, não deveria ter provocado Rodolfo daquela maneira, parecia que tinha ciúmes dele. Adormeceu,
aborrecida.


Livro VI - Excursionando com
Cirilo


Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Sempre-Lendo, o melhor grupo de troca de livros da Internet!



excursionando com cirilo

No outro dia, Ana acordou ainda de mau humor. Pensou em Rodolfo. Ele era feio, sem graça e sem instrução, mas sentia-se atraida por ele. Com raiva teve certeza
de que estava com ciúmes dele com Eliane. Levantou-se e se arrumou para a aula. Logo que cumprimentou Cirilo, este lhe disse:
- Ana, titia foi à cidade e Sônia foi junto. Se quiser, podemos visitar a sala trancada.
- Agora? E a aula?
- Ora, quem vai saber se ficamos ou não estudando. Temos que aproveitar esta oportunidade. Titia pode demorar a sair novamente.
- Está bem, vamos.
Ana, curiosa para ver os retratos, também achou que era uma ótima oportunidade. Desceram cautelosos, ela, um pouco cismada, o menino, contente, para ele era
uma aventura. Ciro levava uma lanterna muito bonita e moderna.
- Tenho duas destas - explicou ele a Ana -, ganhei de presente.
Logo chegaram diante da sala. Cirilo pegou um vaso grande com pinturas exóticas, um objeto muito bonito que estava numa mesinha ao lado da porta. Ana o ajudou,
o vaso era pesado. O garoto virou o fundo do vaso duas vezes para a esquerda e uma para a direita, a parte inferior abriu e uma chave apareceu na mão do garoto que
sorriu feliz.
- Que idéia genial! Quando alguém iria procurar algo aqui. Se papai não me contasse... - falou Cirilo rindo.
Abriram a porta. Estava escuro e Cirilo acendeu a lanterna. Entraram e ele fechou a porta.
- Não podemos abrir nenhuma janela. Alguém pode ver e saberão que entrou gente aqui.
Na sala havia poucos móveis, cobertos com tecidos que deveriam ter sido brancos, mas pareciam beges de tanto pó. Os quadros estavam em seqúência nas paredes.
- Venha, é por aqui que começa - falou Cirilo, puxando-a pela mão.
Havia teias de aranha nos quadros, mas eles estavam bem visíveis. As fisionomias retratadas eram quase todas sé-rias e com trajes de época, homens quase todos
com barbas e as mulheres com muitas jóias.
- Este aqui - disse Cirilo servindo de cicerone - foi o iniciador da fortuna da família. Veio da Europa para o Brasil, aqui casou e comprou parte destas
terras. Este, dizem ter sido louco, um tarado. Sua mãe o manteve prisioneiro na prisão da mansão. Mas ninguém sabe onde é esta prisão, ou dizem que não sabem.
- Eu sei! - exclamou Ana quase sem querer.
- Como sabe? Cirilo parou de andar e iluminou o rosto de Ana que fechou os olhos tentando cobrir com a mão.
- Bem... Não foi por xeretice que descobri. Achei-a por acaso. Estava na biblioteca, ao mexer num livro, uma porta abriu. Não entrei lá dentro, mas deu
para perceber que era uma passagem secreta e tudo indica que talvez por lá tenha uma prisão. Mas continue. Que foi feito dele?
- Morreu! Dizem que matava moças e que, quando matou uma prima dele, sua mãe o colocou na prisão de onde nunca mais saiu. Quero ir lá à tarde. Você vai
comigo?
- Não, eu... Ana ficou indecisa.
- Você é minha empregada e eu resolvi que iremos. Desculpe-me, Ana, por favor me mostre como se abre a passagem secreta e vem comigo excursionar por
ela. Titia só volta à noite. Eu estou lhe mostrando esta sala!
- Está bem. Mas posso ser despedida se...
- Ninguém saberá - interrompeu Cirilo e voltou a iluminar os quadros. - Veja, Ana, este é meu herói. Chamava-se
Artur, aumentou a fortuna da família e construiu esta mansão, dizem que foi muito ambicioso, eu o admiro. Repare como me pareço com ele, se eu tivesse barba ia parecer
mais ainda. Observe os olhos. Você não acha?
- E verdade - respondeu Ana, achando realmente semelhança entre eles.
- Gostaria de ter sido ele, que vida feliz este Artur teve, jogos e espertezas.
- Como sabe?
- Calculo - respondeu Cirilo simplesmente.
E assim passaram por muitos retratos até que...
- Esta é a traidora, a assombração de que titia tem medo, a que viu quando moça.
Ana olhou o retrato. Lá estava ela, ou sentiu ser ela, com traje à moda antiga, muitas jóias e a flertar descarada-mente com o pintor.
- Ana, você está se sentindo mal? Puxa, como você se parece com ela! Impressionante!
Ajovem percebeu que ia perder os sentidos, mas a voz de Cirilo a chamou à realidade, tentou sorrir.
- E, pode ser. Quem era o marido dela que a matou?
- Este! Chamava-se André! Foi casado três vezes. Esta é a primeira esposa, a que dizem ter sido assassinada por Vitória. E esta é a terceira esposa,
a Venina.
- Vitória não matou ninguém - Ana falou de mau humor. - André teve filhos?
- Sim, um com a primeira esposa, Luiz, que morreu jovem e de maneira misteriosa. Com a terceira teve dois sendo que um deles é o pai de tia Eleonora,
meu bisavô. E este aqui, simpático não é?
- Vitória não teve filhos?
- Não, falam que ela amava Luiz como se fosse filho dela. Luiz é este aqui.
Ana olhou bem e teve a impressão que ele parecia com alguém. Ou melhor, sentia que o conhecia e que ele estaria agora perto dela, não como alma que vagava,
mas como ela
e que era amígo.
Quase todas as pessoas da família eram retratadas duas vezes, uma quando jovem e, se vivesse muito, a outra em idade avançada. Luiz e as três esposas de André
foram retratados somente quando jovens.
- Este André é o casamenteiro da família. Comenta-se que se apaixonou por Vitória quando estava casado, que sua esposa era doente e que, quando ela morreu,
se casou com Vitória. Dizem que esta o traiu e ele a matou, ou que foi o amante dela quem a assassinou ou que ela se suicidou. Não se tem certeza do que ocorreu
realmente. Então ele se casou novamente, mas dizem que se tornou triste e ranzínza.
Ana escutava o que Cirilo falava com atenção. Mas estava fascinada pelo retrato de André, que achou parecidíssimo com Rodolfo, mas não comentou nada. "Talvez",
pensou, "seja só impressão. André não tinha cicatriz, era orgulhoso, prepotente tanto no retrato jovem como no idoso."
A jovem professora novamente olhou para o retrato de Vitória, parecia-se mesmo com ela, era aquela imagem que vira no sonho, refletida no espelho.
- Vamos - chamou Cirilo.
Puseram tudo no lugar, fecharam a porta e guardaram a chave. Ana acompanhou-o até o seu quarto.
- Não quero ter aula hoje, estou cansado, quero descansar para a excursão de hoje à tarde.
Ana foi para seu quarto e ficou pensando nos retratos. Escutando o barulho de cavalos, abriu a janela e olhou para baixo. Viu Rodolfo puxando um belo animal,
olhou para ele fixamente.
"E parecidissimo com André!"
Rodolfo, sentindo-se observado, olhou para cima. Ao vê-la acenou a mão, cumprimentando-a e entrou na estrebaria.
"Ele não se interessa por mim!"
Fechou a janela, irritada. Também, por que iria querer Rodolfo, um cocheiro, um motorista sem instrução?
"Acho que não estou gostando mais desta casa!"
Resolveu descansar até a hora do almoço, porque, depois, iria com seu aluno visitar a passagem da mansão.
Almoçou sem vontade e, logo após, foi com o coração batendo rápido ao quarto de Cirilo. Este já a esperava todo eufórico. Estava com uma corda nos ombros, uma
faca na cintura e com as duas lanternas. Ana, ao vê-lo, sorriu.
- E necessário estarmos preparados - explicou o garoto.
Desceram a escada devagar, não se ouvia barulho nenhum na casa. Entraram na biblioteca e Cirilo trancou a porta por dentro.
- Assim, evitaremos que alguém entre aqui. Agora, Ana, me mostre como se abre a passagem.
Ela foi até a estante.
- E este livro aqui, mostrou. Olhe como se faz, vire para a esquerda, depois duas para a direita e após empurre-o para trás.
- E complicado! Espere que vou tomar nota - falou Cirilo tirando um caderninho do bolso. - Preciso anotar tudo, talvez encontremos mais passagens secretas pela
casa. E incrível você ter descoberto isto, ainda mais num livro de Latim. O que você queria num livro de Latim?
Ana não respondeu. Os dois pararam maravilhados quando viram a estante se abrir.
- Vamos nos dar as mãos e não as largaremos para nada, assim não nos perderemos um do outro. Pegue você uma lanterna e eu a outra - disse Cirilo todo excitado
com a excursão que fariam.
A passagem dava para um pequeno quadrado e depois para uma escada. Desceram vinte degraus. O local estava úmido e frio e à medida que desciam sentiam o ar carregado.
Ali não estava muito sujo e havia poucas teias de aranha. A escada era estreita, mas cabia os dois que seguravam as mãos fortemente.
Chegaram a um outro quadrado, ou um pequeno cô
modo, onde havia duas passagens que davam para dois corredores.
- Vamos por este aqui - disse Ana -, lembrando do sonho que a levou à gruta.
- Não, vamos por este! - exclamou Cirilo resoluto.
As paredes daquele subsolo eram de pedras e nada havia nelas. Entraram num corredor estreito e baixo. Não precisavam se abaixar, mas alguém de estatura maior,
certamente, necessitaria. Após uns passos, viram portas de madeiras de ambos os lados.
Cirilo, eufórico, como se descobrisse uma nova brincadeira, forçou a primeira porta e ela abriu. Ana arrepiou-se. Iluminaram lá dentro. Era um cômodo quadrado
com resto de palhas num canto e um banco de madeira no outro. Não tendo nada de interessante, Cirilo fechou a porta que fez um barulho que pareceu enorme diante
do silêncio que reinava. Só se ouvia a respiração dos dois excursionistas aventureiros.
Cirilo forçou a porta do outro lado, abriram sem dificuldades, era igual a outra e nada havia dentro do cômodo. Eram quatro portas, aproximaram-se de outra,
mas esta não abriu, o menino a iluminou e viu um ferrolho.
- Vamos, Ana, abra! Força! - disse Cirilo pegando a lanterna de sua mão.
Ana fez força e o ferrolho cedeu, empurrou a porta. Iluminaram o ambiente e ajovem segurou para não gritar. No meio do compartimento havia um esqueleto. Poucas
roupas o cobriam, mas demonstrava ter sido um homem. Cirilo entrou e ia mexer, ela não deixou.
- Não, Ciro, não mexa! Vamos embora daqui!
- Ora, Ana, é só um esqueleto! Devem ser os ossos do tarado que a mãe prendeu.
- Ave Maria! Também preso aqui só pode ter morrido! Ninguém viveria muito aqui. Que horror! Quero voltar!
- Não! Agora que estamos aqui, olharemos tudo.
Tentou abrir a outra porta.
- Vamos, Ana, abra!
Ela tentou e não conseguiu.
- Está trancada - disse ofegante.
- Tem alguém ai dentro! Cirilo bateu na porta.
- Que idéia, Ciro. Como pode ter alguém aí?
- Que pena que esteja trancada. Talvez tenha outros esqueletos, ou fantasmas.
- Estou com medo - balbuciou Ana, toda trêmula.
- Ora - falou o menino, autoritário -, não banque a garota medrosa. Não sabe que fantasmas não ficam presos? Agora, vamos por ali.
Seguiram por um corredor que terminava em triângulo sendo que cada lado tinha uma passagem.
- Vamos ver o que existe na primeira - propôs Cirilo.
- Puxa, aqui é maior que pensava.
Entraram na primeira à esquerda onde havia outro corredor; logo viram uma porta aberta, olharam, era um cômodo pequeno e estava vazio. Seguiram pelo corredor
e acharam uma porta no final do lado direito, abriram com facilidade e defrontaram-se com um cômodo retangular, com uma mesa e algumas cadeiras velhas. Cirilo colocou
o pé numa delas e ela caiu desmoronando.
- Aqui deveria ser um local de reuniões secretas - comentou o menino, um pouco cansado.
A falta de ar puro estava prejudicando o garoto. Ana preocupou-se, estava com medo, pensou ao ver a sala: "A mansão é tão grande! Necessitaria de uma sala para
reuniões aqui embaixo"?
- Vamos por aqui!
Voltaram para as entradas do triângulo e entraram em outra passagem.
- Ciro, por favor, vamos voltar.
Mas o garoto não lhe deu atenção e seguiram em frente. Deram com outro corredor, só que este era bem estreito. Depois de ter dado alguns passos, pararam, o
ar estava ficando irrespirável.
- Você tem razão, Ana. E melhor voltar. Um outro dia voltaremos mais preparados.
Ana mais que depressa virou, segurava a mão de Cirilo com força, andaram um pouco e de repente viram duas portas que antes não haviam percebido ou então não
estariam seguindo pelo caminho já percorrido.
- E agora? - perguntou o menino com medo.
Pela primeira vez o garoto se assustou e Ana estremeceu. O que fariam se se perdessem? Ninguém iria procurálos ali. E se a porta da biblioteca fechasse? Morreriam
em poucas horas. Cirilo era um garoto, mas ela era adulta e deveria ter sido mais responsável. Não deveriam ter entrado ali, embora tivesse pensado que deveria ser
pequeno, estava muito assustada.
- Mamãe mandou seguir por esta daqui!
Cirilo apontava uma porta e outra conforme dizia a frase costumeira entre brincadeiras de criança. Apontou a da esquerda, abriram fácil e passaram por ela.
-,Graças a Deus! - exclamou ajovem professora aliviada. - E a do corredor das prisões!
Percebeu então que ali era uma espécie de labirinto, que um corredor se comunicava com o outro.
- Portas parecidas, corredores iguais! Bem interessante! - comentou Cirilo também aliviado.
Andaram rápido para a saida. O menino ofegava cada vez mais e Ana teve que ampará-lo. Chegaram à escada. Ana ainda olhou para o outro corredor, lembrou-se do
seu sonho e teve a certeza de que ele ia dar na gruta. Não disse nada e teve de ajudar Cirilo a subir as escadas. Rogou a Deus aflita para que a porta continuasse
aberta. Suspirou aliviada quando viu a claridade.
- Obrigada, meu Deus! - exclamaram os dois juntos.
Sairam da passagem secreta e respiraram contentes quando puseram os pés na biblioteca. Cirilo ia sentar-se.
- Não, Ciro. Você está sujo, se sentar sujará a poltrona. Estamos empoeirados. Vou fechar a passagem e levá-lo
para seu quarto.
O menino ficou em pé esperando. Ana fechou a passagem e limpou as marcas que seus calçados empoeirados deixaram no tapete. Saíram, Ana sempre ajudando Cirilo.
Foram para o quarto dele.
- Tome um banho, Ciro. Ajudo você.
Ajudou o menino a tirar as roupas, ele ficou só com as peças intimas e foi para o banheiro. Ana sacudiu as roupas do garoto na janela, limpou-as um pouco e
as colocou no cesto de roupas sujas. Também limpou o sapato dele.
Cirilo saiu do banho e ela o ajudou a vestir-se. Ao vê-lo só de roupas íntimas, reparou que ele tinha manchas vermelhas nos braços, costas e pescoço. Prestando
mais atenção, notou que suas orelhas estavam levemente inchadas como também o nariz. Instintivamente Ana passou a unha nas costas dele e Cirilo pareceu não notar,
não sentir. O garoto pôs um roupão.
- Sinto-me cansado, Ana, vou descansar. Vá para seu quarto e tome um banho também, antes que alguém a veja e tenha que dar explicações. Você está branca. Ficou
com medo. Eu achei a excursão legal. Sabia que não íamos nos perder. Parece que ao entrar lá tudo me era familiar, como se fosse eu quem tivesse planejado e construído
aquele labirinto. E que tenho o sangue da família nas veias. E você, Ana, gostou do passeio?
- Sim! Não! Não sei! Até amanhã!
Saiu rápido e foi para seu quarto. A mansão estava silenciosa. Fez a mesma limpeza com suas roupas e tomou um banho. Sentia sua cabeça arder, eram muitas coisas
a lhe perturbar, a passagem, o quadro e a doença de Cirilo. Só lhe disseram que o garoto era doente, mas não falaram que doença ele tinha.
"Será hanseníase? Só pode ser", pensou aflita, recordando que uma vez estudara sobre o Mal de Hansen na esco
la.
(1) N.A.E. Até nos dias de hoje, a hanseníase, conhecida mais como lepra, dá temor às pessoas. Porém, nos dias atuais ela tem cura. Mas, quando se passaram
os acontecimentos que narro, ainda trazia muitas preocupaç&s e medos.
novamente..." - falou baixinho.
Mas foi, desceu e entrou na biblioteca. Ao olhar para a estante que dava para a passagem do labirinto do porão, arrepiou-se. Procurou nas estantes na parte
de Ciências. Achou um livro novo, pegou e folheou-o, notou uma página marcada por um pedaço de papel branco. Estava marcada bem no capítulo sobre a doença que viera
pesquisar.
"Alguém deve ter pesquisado recentemente sobre a mesma doença. Talvez D. Eleonora."
Leu o capítulo com atenção. Os sinais da doença, o começo, o tratamento, os perigos do contágio. Não teve mais dúvidas, Cirilo era um hanseniano.(1)
Voltou ao seu quarto muito triste e ficou a pensar em tudo.

Livro VII -ATorre

- Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho


Sempre-Lendo, o melhor grupo de troca de livros da Internet!



A torre
Ana estava distraída. Quando ouviu Michel chamá-la, correu e abriu a janela.
- 01, Michel!
- Oi, Ana! Rodolfo veio da cidade e trouxe cartas para você. Como Sônia não está, não quer vir buscá-las?
- Claro, desço já..
Michel a esperava na garagem e foram alegres para a casa de Rodolfo. No caminho, Ana perguntou:
- Amanhã você me leva à gruta?
- Tem que ser durante o dia, lá existem morcegos.
- Amanhã é domingo e meu dia de folga. Espero-o aqui, logo após o almoço, mas não conte a ninguém, é nosso segredo.
- Rodolfo! - gritou Michel, em frente à casa dele -Ana veio buscar as cartas.
Rodolfo abriu a porta e Ana entrou sem ser convidada. Queria ver como era a casa dele. Era simples como a de Michel, uma sala, dois quartos pequenos e da sala
onde estava se via a cozinha. A sala estava mobiliada com uma mesa e quatro cadeiras. Rodolfo, vendo-a examinando tudo, insinuou:
- Gostou da casa? Não está achando pequena?
- Minha casa também é pequena. Moro agora na mansão, mas sou uma empregada. Você cozinha aqui?
- Não, tomo minhas refeições na mansão, na cozinha, é claro. Não quer sentar? Aqui estão suas cartas.
A moça pegou e as olhou, uma era de seu irmão e a outra de sua mãe. Com vontade de lê-las, agradeceu e despediu-se. Voltou rápido para seu quarto.
Abriu a carta do irmão com muita saudade, era uma missiva simples e carinhosa. Dizia que ia seguir a carreira militar, ficaria no exército e que estava namorando
uma moça por quem estava apaixonado.
"Meu irmão está tão longe! Não voltará mais para casa",
- pensou Ana com vontade de chorar.
Ao pegar a carta de sua mãe, leu no verso que o endereço não era de sua casa. Apreensiva abriu a carta. Era bem longa, sua mãe explicava que se separara de
seu pai, que a casa fora desfeita, e o pai estava morando na pensão do tio Pedro. Esta pensão localizava-se no bairro em que moravam, era perto de sua antiga casa.
E que ela, sua mãe, foi morar num pequeno apartamento com uma amiga.
Ana chorou sentida. Sentia-se agora sem lar, com sua casa desfeita. Seu irmão longe, o pai morando numa pensão, a mãe com uma amiga, não tinha lugar para ela
com nenhum dos dois. Sentiu-se muito sozinha. Queria ir embora. A mansão com seus mistérios a assustava, tinha medo e não queria mais ficar ali. Gostava dos dois
garotos Michel e Cirilo. Sentia-se atraida por Rodolfo, um homem estranho. D. Eleonora a tratava como empregada. As visões que teve desde que chegou a estavam perturbando
e temia ficar louca. A semelhança dela com Vitória que morreu há tanto tempo, a sua descoberta da passagem secreta, o esqueleto na cela. Tudo isto era motivo, o
bastante, para querer ir embora. Ainda mais agora que descobrira que a doença do seu aluno era uma doença contagiosa. Certamente Cirilo ignorava sua doença e seus
parentes o escondiam naquela mansão isolada, para não ter que ir a um hospital próprio. Ana sentiu pena do garoto, mas temia o contágio. E se ficasse doente? Não
tinha um lugar para se isolar e iria com certeza para um hospital. Mas, pensou também, o contágio não se dava assim tão fácil.
Chorou até se tranqúilizar, mas continuou a pensar. Queria ir embora e não tinha para onde ir e nem dinheiro. O contrato que assinara tinha uma cláusula que
estava bem clara, se desistisse não receberia nada. E ainda faltavam alguns
dias para vencer o primeiro mês, quando receberia um pequeno vale. Seu ordenado seria integral só no final do sexto mes.
Escreveu para Gilson, procurando contar as coisas boas, não queria preocupar o irmão. Escreveu também para o pai, sabia o endereço da pensão. Preferiu fazer
mais perguntas do que falar de si mesma. Porém, queria saber mesmo como ele estava e como ia no trabalho. Para a mãe, perguntou para onde ela iria ou moraria quando
voltasse a sua cidade. Disse que estava estranhando e que se sentia sozinha.
Ia deitar, quando Elizete veio chamá-la. Cirilo não estava bem e D. Eleonora não havia chegado. Ela tinha que cuidar da cozinha e não podia fazer companhia
a ele. Ana, sentindo-se culpada por ter ido com ele às excursões durante o dia, correu para o quarto do garoto. Encontrou-o ofegante.
- Não tenho nada grave, Ana. É só uma pequena falta de ar. Não se preocupe.
Tomou a temperatura dele, suspirou aliviada, estava normal.
- Que posso fazer para ajudá-lo? Você já tomou seu remédio?
- Sim, já tomei.
- Ficarei aqui, fazendo-lhe companhia.
Cirilo ficou quieto e Ana sentou-se perto de seu leito. Depois de uns trinta minutos, D. Eleonora entrou no quarto com Dr. Bernardo.
- Cirilo, o que aconteceu? - indagou D. Eleonora. Ao ver a jovem professora perguntou dirigindo-se a ela: - Que faz aqui?
- Estou fazendo companhia...
Ana falou encabulada, mas sua patroa não deixou que terminasse a explicação e a interrompeu.
- Obrigada! E virando para o senhor que a acompanhava disse: - Esta jovem é Ana Elizabeth, a professora do Cirilo. E este é Dr. Bernardo.
(1) N.A.E. Ana, ao ter o corpo adormecido, saiu em espírito e excursionou pela torre. (2) N.A.E. Rodolfo estava ali em perispírito, seu corpo adormecido estava no
seu leito. Em alguns casos, a pessoa que sai do corpo assim pode lembrar sua existência passada, como aconteceu com Rodolfo.
- Prazer! - disse Ana com simplicidade.
- Prazer! - falou Dr. Bernardo sorrindo.
- Agora me diga, Cirilo, - indagou D. Eleonora - que fez para ter outra crise?
- Nada, titia, nada. Ana pode confirmar, estudamos o dia todo e foi à noite que comecei a me sentir mal. Tomei os remédios direitinho.
- Vou examiná-lo - disse Dr. Bernardo, olhando para Ana que se sentiu analisada.
- Pode ir agora, Ana Elizabeth, obrigada e boa noite -disse a dona da mansão abrindo a porta do quarto. - Agora, cuidarei do meu sobrinho.
- Boa noite! - respondeu a moça.
Ana voltou rápido para seu quarto, sentiu medo e solidão, chorou novamente até dormir. Sonhou... Ao acordar lembrou nitidamente do sonho como se tivesse acontecido
realmente.
Sonhou que levantou de sua cama, pôs um roupão, saiu do quarto e entrou na torre.(1) Passou pelas portas fechadas com facilidade. Viu bem a entrada, a escada
e por ela subiu. No primeiro andar havia, como em todos, uma abertura dando visão para o lado de fora, não tinha móvel nenhum na torre. Subiu mais e viu um facho
de ferro, que servia antigamente para iluminar, mas, forçando-o para baixo, a parede de pedra abria e por uma escada levava a uma porta do outro lado da torre. Uma
passagem para fuga. Continuou a subir as escadas. De um andar para outro havia sempre uma sala, mas Ana não prestou atenção, subiu rápido. No topo olhou para a abertura,
tudo escuro. Lembrou que dali se via grande parte da propriedade. Voltou, começou a descer, de repente levou um susto. Encostado na parede estava um homem olhando-a.
- Voltou finalmente! Voltou Vitória!
Ana sentiu medo, ali estava Rodolfo, mas sabia que era o outro, André, que falou novamente com tom raivoso. (2)
- Vim ver se a bandeira branca está aí. Veio ver a mesma coisa? Matei você uma vez e não me faça matá-la outra vez.
- Sou inocente! - conseguiu a moça dizer com dificuldade.
- Há-há-há - gargalhou ele. - Inocente? Aqui mesmo você me jurou que era inocente e não era. Você me traiu! Lembra-se, ingrata? Aquele dia segui você e a encontrei
sozinha. Você me jurou que era inocente. Mas esqueci da passagem secreta. Ele bem que poderia ter saído por ela quando viu que eu me aproximava. Com seu esconderijo
descoberto, você escolheu a gruta para encontrar-se com ele. Quem era ele? Quem? Nunca soube. Na gruta naquele dia, eu o vi correr. Como pôde me trair de forma tão
vil? Eu que tirei você da lama.
- Nunca estive na lama - disse ela se defendendo. - Eu era simples empregada, eu...
- Cuidava de minha esposa e eu me enamorei de voce. Apaixonei-me de tal forma que, quando ela morreu, casei com voce.
- E todos pensaram e pensam até hoje que fui eu que matei sua primeira esposa. Mas não matei ninguém.
- Oh, como não? Você nos desgraçou. Prejudicou Luiz que sofreu por você, que a amava como sua segunda mãe. Você me fez matar minha esposa, mãe do meu
filho Luiz.
- Então, ela morreu mesmo assassinada? - Ana indagou assustada.
- Estava doente, ia morrer mesmo. Dei-lhe remédio a mais, isto para casar com você.
- Assassino!
- Sim, fui um assassino! Nunca fui feliz! Nem antes nem agora. Meu crime não me trouxe felicidade, mas sim me tirou a paz. E vê como estou agora, sou
feio, aleijado, empregado onde fui senhor. Você é a culpada! Diga-me com quem me traiu. Diga! Vasculhei tudo, suspeitei dos empregados, até dos escravos, dos vizinhos.
Porém, não descobri
nada. Diga agora com quem me traiu! Diga!
Rodolfo ficou mais feio com a cicatriz no rosto e com a expressão de ódio, veio para o lado dela, pegou-a pelos braços e a sacudiu.
Ana acordou com medo e com Luiz no pensamento.
- Meu Deus, Vitória traiu o marido com seu enteado. Era o Luiz o amante dela! Virgem Maria! Mas o que eu tenho a ver com esta história? Será que sonhei com
os fatos que aconteceram nesta mansão? Por que sentia que era Vitória, e Rodolfo, este André?
No seu desjejum, Ana encontrou-se com Sônia, que lhe sugeriu:
- Por que você não vai à vila? Nossa cidadezinha ébonita. Peça a Rodolfo para levá-la.
Não tinha vontade de ir à vila, mas, se Rodolfo a levasse, até que iria, pensou.
Tomou seu café e saiu para o jardim, procurou pelo jardineiro e o encontrou remexendo num canteiro.
- Bom dia, João. Até aos domingos você cuida do jardim?
- Vim só plantar estas mudinhas. Gosto muito deste jardim, é um prazer ficar aqui.
- Ele é muito bonito, você está de parabéns. Demonstra que é um ótimo jardineiro.
- Obrigado - respondeu João sorrindo contente com o elogio.
- João, gostaria de conhecer a torre.
- Vou buscar a chave, já volto.
Ana olhou para a torre e pareceu ver a bandeira branca. Fixou o olhar, porém nada mais viu. Chegou perto da torre, andando devagar, deu uma volta em seu redor.
Viu outra porta pequena do outro lado, quase que escondida. Forçou para abri-la, mas estava trancada. Foi ali que João a encontrou.
- Que faz aqui do lado de trás?
- Estava olhando. E por aqui que se entra?
- Não - respondeu o jardineiro. - Esta é a outra entrada para a torre ou uma saída. É a única passagem secreta que se conhece da casa. Esta entrada dá para
uma escada e a porta é de pedra; na parede, abre por um controle. Venha, abro a torre para a senhora.
- João, e a bandeira branca, você a viu? Como é esta história? Conte para mim.
- Olhe ali, disse mostrando uma armação de ferro para bandeiras e no momento sem nenhuma, é lá que aparece e desaparece. Esta história é bem antiga.
Um dos proprietários desta casa, chamado André, matou a sua segunda esposa que o traia. Dizem que esta mulher, Vitória, a segunda esposa, matou a primeira mulher
deste André. Acho que estes espíritos não tiveram sossego. Uma tia de André mexia com bruxaria e disse que todos desta trama voltariam a esta casa para se entender.
E que, quando os três se reunissem, aqui apareceria a bandeira branca e estes espíritos teriam paz.
- Três? - indagou Ana. - Que três?
- Sr. André, D. Vitória e o seu amante. Se o terceiro não for o amante, deve ser a primeira esposa, a que foi assassinada. Pronto, a porta está aberta.
Quer que eu suba com a senhora?
- Não, obrigada. Vou sozinha.
Ana estremeceu ao ver as escadas, era tal como vira no seu sonho. Tentando tranqúilizar-se, pensou:
"Tudo bobagem, todas as torres são iguais. Já vi muitas gravuras de torres."
Chegou ao primeiro andar, olhou para a abertura, avistou o jardim. João olhou para cima e sorriu, a moça correspondeu, afastou-se e tomou a subir. Deparou com
o local do seu sonho, só que tudo lhe pareceu mais velho, gasto, mas era igual.
Continuou até chegar ao topo, olhou para a abertura, avistou o bosque, as plantações, a estrada, a vista dali era muito bonita.
"Ninguém sabe quem foi o amante da Vitória, eu sei...
Era o seu enteado Luiz. Como esta Vitória pôde trair o mando com o filho dele? Ele era garoto ainda, saindo da adolescência." Suspirou triste. "Por que eu tenho
todas essas visões? Estes sonhos estranhos e sinto-me atraida por um sim-pies empregado braçal? Não sou preconceituosa, mas Rodolfo é feio, aleijado, sem instrução
e, além disto, não me dá atenção, parece que sente repulsa por mim. Por que eu estou passando por tudo isto?" - falou baixinho consigo mesma.
Desceu, triste. Ao chegar ao andar em que no sonho conversava com Rodolfo, ou André, parou e teve vontade de ver se realmente era ali a passagem secreta; puxou
com força o archote preso na parede. A porta de pedra abriu e surgiu uma escada à sua frente.
"Aqui está ela, sei também que tanto se pode ir e sair pela porta que vi do outro lado, como também há no meio da escada outra abertura que leva ao labirinto,
podendo sair na gruta ou na biblioteca. A outra abertura se obtém também por um archote na parede. E por que sei disto?'
Puxou o archote novamente, a abertura fechou e ela desceu apressada. Fechou a porta da torre e levou a chave para João.
- Obrigada, João.
- Gostou da torre? - indagou o jardineiro gentil.
- Hum, sim - respondeu indecisa e saiu apressada.
Estava ainda no jardim quando encontrou Michel.
- Ana, ontem fiquei esperando-a para a aula. Por que você não veio? Rodolfo também estava lá em casa.
Rodolfo lá na casa dele, pensou, era só por causa da Eliane.
- Ontem não estava bem, resolvi responder as cartas que recebi, depois tive de fazer companhia a Cirilo que está doente. Mas amanhã irei.
- Vocé está abatida. Está doente?
- Não estou doente, estava só com um pouco de dor de cabeça.
nito para passear por lá - convidou Michel carinhosamente. Ana pensou com tristeza, antes queria muito conhecer
a gruta, mas agora não estava muito entusiasmada, deveria ser como no seu sonho, como foi na torre. Mas ficar no quarto, ou ler, não a estava entusiasmando. Passear
poderia ser agradável. Depois, gostava muito daquele garoto.
- Combinado, às quatorze horas desço. Certo?
-Certo.
Ana voltou para seu quarto. Estava com muita vontade de ir embora. Mas para onde? Para a pensão onde seu pai estava? Com sua mãe? Nenhum dos dois tinha como
recebêla. Não tinha para onde ir e nem dinheiro. A culpa de estar nesta dificuldade, pensou a moça, era dos seus pais. Se eles se preocupassem com ela, não teriam
deixado que aceitasse um emprego tão longe e entre pessoas desconhecidas. Segurou as lágrimas e pegou um livro para ler. Procurou prestar atenção na leitura, mas
ficou pensando nos acontecimentos desde que chegcu à Mansão da Pedra Torta.
Suspirou aliviada. Quando viu que era hora do almoço, desceu, mas alimentou-se pouco. Escutou vozes na outra sala, era D. Eleonora e o médico que conversavam.
Não estava com vontade de subir ao seu quarto, desceu para o pátio e quase que instintivamente foi para a estrebaria.
Entrou sem bater e viu Rodolfo escovando um cavalo.
- Bom dia! - disse a moça.
- Boa tarde! - respondeu ele corrigindo-a.
Ana ficou vermelha e encabulada. Rodolfo virou e olhou para ela.
- Que faz aqui?
- Estou passeando.
- O garoto Cirilo está doente?
- Está sim. Não é estranho um garoto ficar tão doente? - falou ela, tentando saber se ele tinha conhecimento da doença dele.
- Não é só pobre que fica doente.
- Você sabe que doença ele tem?
- Não - respondeu o rapaz secamente.
- Muito bonito este cavalo. Qual o nome dele?
- Você vai ficar aqui me olhando? Tenho muito o que fazer.
- Mal educado!
Ana corou novamente, ia sair, mas Rodolfo largou a escova, virou-se para ela e disse baixinho.
- Desculpe-me, Ana, não costumo ser assim. E que você me dá uma sensação estranha, de traição. Algo me adverte que você é uma traidora. Que você me fará sofrer
muito. Não sei explicar tudo isso, desculpe-me. Você é tão linda!
Rodolfo chegou perto dela, Ana ficou olhando-o parada. Ele a enlaçou com seus braços fortes e a beijou na boca. Ela estremeceu, porém o rapaz a largou e pegou
novamente a escova.
- Perdoe-me, sou um grosseirão.
Ana não conseguiu dizer nada, seus lábios queimavam, saiu apressada da estrebaria.
"Amo-o! Meu Deus, eu o amo!" - pensou aflita.
- Ana! - exclamou Michel. - Desceu mais cedo! Que bom! Se quiser podemos ir.
O garoto pegou na mão da moça e foi falando alegre sem parar. Atravessaram o pátio. Michel abriu um enorme portão e entraram no bosque.
- Aqui é bonito, na primavera tem muitas flores. Este lugar se chama se Bosque do Sossego. Aqui vem só o pessoal da mansão, quer dizer, ninguém.
Ana gostou de andar por entre as árvores, o lugar era lindo e tranquilo; não haviam andado muito quando o garoto exclamou:
- A gruta é aqui, Ana. Veja!
Ela olhou e sentiu um arrepio. Era um buraco aberto na rocha. Entraram e deram com um salão, não era grande e não tinha, como Michel já lhe dissera, nada de
especial. Num canto um altar de pedra com a imagem de uma santa. Ana,
porém, recordou de tudo.
- E a imagem de Nossa Sra. do Rosário - observou distraída.
Examinou o altar e viu a pedra que, se levantada, iria para a passagem secreta, mas não disse nada.
- Ana, aqui tem uma ramificação, mas é pequena e só tem morcegos.
E ele mostrou um buraco à esquerda onde mal cabia uma pessoa deitada.
- Só tem esta?
- Só. Não lhe disse que nada tinha de especial?
-E...
Ana começou a chorar, aquele lugar era triste, deprimente e lhe causava arrepios.
- Por que está chorando? - perguntou o menino carinhosamente.
- E que estou com saudades da minha família - respondeu encabulada.
- Ah, pensei que era pela gruta! Não gosto daqui. Aqui parece um local de encontros secretos, de crimes e maldades. Uma vez, estava passeando pelo bosque é
fui surpreendido por uma tempestade e me abriguei aqui. Foi me dando uma sensação esquisita. Parecia que eu já estivera aqui com uma mulher bonita, mas não era assim
menino, mas moço. Estávamos nos beijando quando um barulho me fez correr para um buraco, mas parece que não era este, era outro, só que não me lembro onde era. Esta
impressão me fez mal, meu coração batia forte, estava com tanto medo que nem esperei a chuva parar, fui embora. Depois de um tempo, voltei aqui com uma corda que
amarrei na cintura e a outra ponta nesta pedra e, com uma lanterna, entrei no buraco da parede, mas nada vi de interessante, é um simples buraco sem outra saída.
Rodolfo também não gosta daqui.
- Por quê? - perguntou Ana que parou de chorar e prestava atenção no garoto.
- Ele veio aqui uma vez só. Sentiu-se mal e desmaiou.
Ele me disse que aqui está impregnado de maus fluidos. E aqui ele sentiu remorso e raiva e não soube dizer de quem ou por quê. Ninguém gosta deste lugar desde que
Vitória se suicidou aqui.
- Ou que a mataram - disse Ana.
- E... Vamos embora, Ana?
- Vamos!
Ana sentiu-se pesada e com leve mal-estar. Não aceitou o convite do garoto para passear mais, sentia-se cansada.
- Agradeço-lhe por ter me levado à gruta. A noite vou a sua casa para lhe ensinar.
O amigo de Ana entrou em casa e ela tomou o rumo da garagem, mas olhou por todos os lados para ver se via Rodolfo; não o vendo, foi para seu quarto e ficou
a pensar.
Por que será que Rodolfo temia que ela o traisse? Será por que já fora traído? Seus sonhos seriam reais? Teria ela sido Vitória, e Rodolfo, André? Mas como?
Rodolfo havia se sentido mal na gruta e ela chorou com a sensação de que ali perdera algo muito precioso. O quê? A vida?
Ana sentou-se confortavelmente numa cadeira, não sabia se dormira ou tivera outra visão. Estava na gruta, toda enfeitada com um bonito vestido verde e com muitas
jóias, abraçava e beijava um rapaz louro, muito bonito e faziam juras de amor. Quando ouviram um barulho, o homem correu, abriu a passagem secreta e ela se apavorou
ao escutar chamá-la.
"Vitória! Vitória!"
"Estou aqui!"
"Onde está seu amante? Onde?" - disse André furioso, entrando na gruta olhando toda a parte. "Com quem me trai? Diga!"
Vitória riu desesperando-o mais ainda.
"Como vê, aqui não tem ninguém."
"Mas você está me traindo, eu sei!"
"Você é um bobo! Trata-me como uma empregada. Tem
(1) N.A.E. Ana recordou a sua desencarnação quando viveu como Vitória. Desligada pela morte violenta, foi separada do seu corpo morto, em perispírito levantou e
seguiu André.
vergonha do meu passado. E ainda pôs na cabeça que traio! Aqui não tem ninguém. Vim passear sozinha. Traio você só no seu pensamento."
André abaixou e viu um salto partido de um sapato masculino.
"De quem é isto? Fale Vitória!"
Ela ficou branca, tremia e nada respondeu. André, louco de raiva, tirou o revólver da cintura e atirou no peito dela. Ela caiu e do seu peito jorrou sangue
e com esforço conseguiu dizer com voz fraca:
"Perdoe-me...!"
"Nunca!"
Respondeu ele friamente, colocou a arma perto do corpo dela e saiu, deixando-a agonizando. A moça sentiu uma dor forte no peito, levantou e acompanhou André,
(1) que voltou à mansão, reuniu os familiares e disse que Vitória se suicidara na gruta. Todos se espantaram e Luiz embranqueceu. As providências foram tomadas.
Todos sofreram muito. André, porque amava Vitória e por querer saber quem era seu rival, ela, pelo remorso e por ter desencarnado quando queria viver encarnada por
muito tempo. Luiz sentia-se culpado por tê-la deixado sozinha na gruta e por ter traido o pai.
Ana deu um pulo da cadeira, voltou a si assustada, ainda doía o peito. Levantou e tomou água.
"Foi André que matou Vitória. Que história trágica!"
Olhou no espelho, estava branca, ajeitou-se.
"Tenho que sair, ficar neste quarto sozinha me apavora. Visitarei Ciro."

Livro VIII - Reencarnações


Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

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reencarnações

Bateu de leve na porta do quarto de Cirilo e foi Dr. Bernardo quem abriu.
- Entre, garota. Como está você, Ana Elizabeth?
- Bem. Vim visitar Ciro, o Cirilo.
- São amigos, hem? Ele não está muito bem. Estou lhe trocando a roupa. Quer me ajudar?
Ana fez que sim com a cabeça e foram para perto do garoto, que estava mais vermelho que o normal, por causa da febre, e ofegante. Dr. Bernardo molhava uma toalha
na água de uma bacia e passava no menino. Ana o ajudou, depois trQcaram a roupa dele, ajeitaram-no no leito.
- Pronto, agora vamos deixá-lo dormir - disse o médico. - Vamos para a saleta. Ana, você está doente, filha?
indagou, carinhosamente. - Está pálida e com olheiras.
A jovem não conseguiu segurar as lágrimas, há tanto tempo ninguém se preocupava com ela.
- Não sinto nada fisico, só solidão e tristeza. Não estou me acostumando nesta casa grande, com poucas pessoas, e nem com os fantasmas, as vozes, eu...
- Não ligue para as vozes, o barulho desta casa grande não lhe fará mal algum - aconselhou o médico sorrindo.
- Acredita que se possa ouvi-las? Não me acha louca em dizer que as ouvi?
- Filha, as vozes todos por aqui já escutaram e muitas vezes. Eu também já as ouvi. Que pode haver de mal nisto? Somos eternos, não somos? E, quando deixamos
nosso corpo pela desencarnação, ou seja, pela morte dele, a alma, o espírito sai para nova forma de vida. Se os donos destas vozes aqui viveram, amaram, odiaram,
aqui podem voltar em
busca da solução dos seus problemas. Neste ambiente fechado e enorme impregnado dos seus fluidos, nós os encarnados mais sensíveis podemos escutá-los.
- Não entendia direito o que falavam - esclareceu Ana, gostando da conversa.
- São coisas deles e não devemos nos intrometer. Deixemos os desencarnados. É só isto que tem?
- Saudades, deixei a família.
- Não me parece muito chegada a eles para sentir-se saudosa assim. Não quer me dizer o que se passa com você, menina?
- Não sei, acho que não estou me adaptando a esta mansão. Já tive namorados, porém não me interessei por nenhum. Agora só penso no encarregado que cuida dos
cavalos, e
Dr. Bernardo riu, sentou-se no sofá e pegando na mão de Ana fez com que sentasse junto a ele.
- Filha, Rodolfo não é assim desprezível, ele é honesto, trabalhador e sensível. Sua aparência não é das mais bonitas, mas você não me parece volúvel a ponto
de se apaixonar só pela aparência fisica. Depois, pode ser só uma ilusão, talvez seja porque é o único rapaz agora a lhe cortejar.
- Aí que está o problema, Rodolfo foge de mim.
Dr. Bernardo ia responder, quando Cirilo começou a falar em voz alta e ofegante. Os dois correram para perto do garoto.
- Façam isto! Obedeçam as minhas ordens! Não esqueçam que comigo, Artur, o proprietário deste lugar, não se brinca. Tirem-me as botas! Sou Artur, sou importante
e todos devem me temer e obedecer. Façam rápido!
Calmamente Dr. Bernardo ajeitou Cirilo no leito, deulhe água, o acariciou e disse:
- Cirilo, querido, acalme-se!
O garoto ficou quieto. Ana não pôde deixar de arregalar os olhos. Lembrou do Artur, aquele parente que ele admirava. Dr. Bernardo voltou à saleta e Ana o seguiu
assusta-
- Cirilo está delirando. Isto acontece sempre! - esclamou o médico.
- Ele fala sempre neste Artur?
- Sempre.
- Virgem mãe! Pensei que ele só o admirava.
- Ele? Como sabe disto? Artur é um antepassado da família...
- Oh! Não sei! - exclamou Ana, encabulada.
- Sabe mais coisas e está me escondendo. Não deveria, Ana. Verá que poderei ajudá-la muito. Cirilo lhe disse algo sobre Artur?
- Oh, sim! Agora estou me lembrando. Ele comentou que admirava este Artur, porque foi ele que fez a fortuna da família e construiu esta casa.
- Sim, o que mais?
Foram interrompidos com batidas na porta, Dr. Bernardo abriu e D. Eleonora entrou e cumprimentou-a. Ana tratou de se explicar.
- Vim ver o menino Cirilo e já estava de saída.
- Venha vê-lo quando quiser, distrairá Cirilo, ele gosta de você - respondeu D. Eleonora educadamente.
Ana saiu, voltou ao seu quarto e começou a ler um livro. Na hora certa, desceu para o jantar. Quando acabou e ia sair, ouviu D. Eleonora e o médico conversando.
Ficou escutando.
- Eleonora, dormirei no quarto de Cirilo, ficarei com ele com prazer.
- Obrigada, Bernardo, hoje estou com uma tremenda dor de cabeça. Vou me recolher agora. Sabe, as preocupações, o irresponsável do meu sobrinho deixa tudo por
minha conta, até o filho. Telegrafei a ele contando o estado do garoto e sabe a resposta que recebi dele? "Titia, distraio-me bastante nas neves da Suíça, voltarei
dentro de trinta e cinco dias." Que faço, meu amigo, se o garoto piorar?
- Tudo que nos é possível está sendo feito. Estamos
cuidando com carinho do nosso Cirilo. Raimundo, seu sobrinho, um dia acordará para a responsabilidade.
- E se o menino morrer? - indagou D. Eleonora preocupada.
- O pai sabe da gravidade de sua doença. Diversos especialistas foram consultados. Você não tem culpa de nada, minha querida.
- Você é tão bom! Que seria de mim sem seus sábios conselhos.
Subiram para seus aposentos. Ana foi para seu quarto e andou nervosa, de um lado para outro.
"Será que me contrataram para ensinar um moribundo? Cirilo estaria para morrer? Não posso dormir sem respostas. Vou até o Dr. Bernardo e lhe pedirei explicações",
falou Ana em voz baixa como era de seu costume.
Sabendo que D. Eleonora se retirara para seus aposentos e que Dr. Bernardo se achava no quarto de Cirilo, Ana devagar desceu as escadas da ala onde estava acomodada
para após subir as que davam acesso à outra ala. Abriu a porta sem bater, entrou no quarto do menino, atravessou a saleta e viu o médico sentado numa poltrona olhando
o menino que estava dormindo.
- Boa noite!
Ana saudou-o baixo. Dr. Bernardo assustou-se, levantou, veio sentar no sofá da saleta e com um gesto convidou a moça a sentar ao seu lado.
- Estava preocupada com Cirilo e não quis dormir sem saber se ele melhorou.
- A febre baixou e ele está dormindo. O que a trouxe aqui? Vejo nos seus olhos preocupações. Deduzo quais sejam. Teme o contágio? Não se preocupe, ninguém adoece,
se não tiver predisposição. Posso lhe garantir que o contato que você tem com ele não oferece perigo nenhum.
- Não é com isto que me preocupo.
- Não?
- Sinto pelo garoto, gosto dele. Descobri sua doença
sozinha. Dr. Bernardo, ele vai sarar?
- Não é do meu feitio mentir. Se fosse somente esta doença, poderíamos controlá-la. Mas nosso amigo tem uma deficiência cardíaca e os brônquios doentes. Entretanto
temos esperanças de melhoras.
- Ele irá mesmo para um hospital no estrangeiro? D. Eleonora disse que ele irá dentro de alguns meses. Estou lhe dando aulas para este fim.
- Esperemos que sim -- disse Dr. Bernardo tranqúilamente. - Gostaria de lhe pedir para ser paciente e carinhosa com ele e também que não lhe falasse nada sobre
suas doen ças.
- O senhor lhe devota grande estima, não é?
- Certamente. Sou médico, moro sozinho na cidadezinha aqui perto, sou viúvo e com os filhos casados Atualmente atendo pacientes vinculadas pela amizade Cuido
da saúde da família de Eleonora desde que me formei. Estou controlando as medicações de especialistas que tratam do garotc. agora que falei de mim, não quer falar
um pouco de você?
Ana contou sua vda e no final teve uma grande pena de si mesma, finalizando queixosa:
- Sou como Cirilo, desprezada e só...
- Não - falou o médico -, não é. E pior! Ele não reclama, está doente, tem dores, febre que queima, não tem irmão como você e luta para viver. Você é sadia,
estudou, tendo irmão poderá ter sobrinhos e está aí reclamando com imensa dó de si mesma. Erramos muito quando nos desprezamos e quando nos tachamos de fracassados.
Dó de nós mesmos e pessimismo não levam a lugar nenhum. Quem tem dó de si mesmo, merece que outras pessoas tenham pena deles. Você é de fato uma infeliz, coitadinha!
Ana endireitou o corpo ficando ereta, estava séria, sentiu a ironia do doutor e respondeu ativa.
- Não sou infeliz! Sou uma moça apresentável e sei me virar. Não quero que tenha dó de mim!
- Ave! Ainda bem! Vamos analisar o que lhe aconteceu. Seus pais têm o direito de escolher o que melhor lhes convenha, Você não acha? Você é adulta, sabe
o que quer e pode trabalhar para se sustentar. Não se amargure por tão pouco.
- Dr. Bernardo, vim aqui lhe perguntar sobre os fantasmas. Tenho me visto, ou melhor, sinto que sou eu, não sei explicar. Sou eu em outra época e tinha outro
corpo. O senhor me entende?
- Filha, Deus nos criou para sermos felizes. Porém, muitas vezes nós usamos mal o nosso livre-arbítrio, errando e abusando do dom da vida. Você já pepsou, Ana,
o que e a eternidade? Na imensa bondade do Criador? Deus, nosso Pai, não nos condenaria a um Castigo eterno por uma existência normal de sessenta anos. Nosso corpo
morre, passamos a outro estado, a outro modo de vida evoltamos a viver num corpo carnal novamente.
- Todos os fantasmas são. maus?
- Não devemos chamá-los de fantasmas, são pessoas como nós, que vivem por um período desencarnados. Pessoas boas desencarnam e continuam boas, esforçando-se
sempre para se tornar melhores. Pessoas más permanecem mas até que entendam a necessidade de se melhorar. Almas penadas, fantasmas são desencarnados que vagam normalmente
por lugares que viveram quando encarnados, quase sempre atormentados pelo remorso ou pelo ódio.
- E como voltamos? - perguntou Ana curiosa. - Como podemos viver em outro corpo?
- O corpo carnal que nosso espírito usa para estar encarnado é perecível. Quando o corpo morre, o espírito sai e fica então desencarnado por um período não
determinado. Querendo progredir, acertar erros, volta para animar outro corpo ainda no ventre materno e reencarna. Volta com a bênção do esquecimento para melhor
aproveitar os ensinamentos com a nova roupagem. Mas podemos ter alguns relances que nos trazem lembranças vagas de algum fato, lugares ou pes
soas. Do que você se lembra, filha?
- Que fui, ou sou, a Vitória.
- A traidora? - indagou o médico franzindo a testa e olhando bem para Ana.
- Somos até parecidas.
- Como sabe?
- Cirilo e eu fomos até o salão de retratos e vimos.
- Ah! Então andou fazendo extravagâncias com o garoto?
- Desculpe-me, ele insistiu, não pensei que pudesse lhe fazer mal, desconhecia sua doença. Depois D. Eleonora mandou que fizesse todas as suas vontades.
- Não precisa se desculpar. Tudo faz mal a Cirilo, menos o Amor. Aquela sala está trancada há tanto tempo, nem eu a conheço.
- Cirilo sabia onde estava a chave, seu pai lhe contou. Fiquei curiosa e fui com ele. Vi o retrato desta Vitória. Vendo-a senti que era eu. Ao reencarnarmos
somos sempre parecidos fisicamente?
- Não, é raro sermos parecidos fisicamente. O fisico éhereditário, herdamos semelhanças dos nossos pais biológicos. Tanto que podemos ser brancos em uma e negros
em outra. As vezes, podemos nos assemelhar ao corpo que tivemos em uma outra existência, mas na maior parte das vezes nada temos fisicamente em comum. Este sentir
que você diz, às vezes nos leva a ver semelhanças que muitas vezes não temos. Acho que você está nervosa pelos muitos acontecimentos. Tome este comprimido e vá descansar.
Prometo conversar com você novamente sobre este assunto.
Despediram-se. Ana então lembrou que ficou de ir àcasa de Michel e, embora atrasada, foi para lá. Como Cirilo não ia ter aulas até recuperar-se poderia dar
aulas a Michel àtarde, assim não teria de sair à noite. Rapidamente dirigiu-se para a garagem, ganhou o pátio. E foi aí...
-Ufa!...
Ana sentiu um sopro no seu pescoço, percebeu que ti-
nha alguém atrás dela. O ar quente fez com que se arrepiasse. Olhou e viu um vulto de capa e chapéu. Com o susto ficou paralisada, quis gritar, mas o som não saiu.
Depois, olhando bem, viu que era Rodolfo quem passou por ela sem nada dizer e devagar entrou em sua casa. Ana foi se recuperando aos poucos sem sair do lugar, porque
sentia as pernas bambas. Seu coração disparou, batia com tanta força que ela ouvia suas batidas no silêncio da noite. Pensou em voltar àmansão, mas já tinha descido
para ver Michel e para a casa dele se dirigiu. Bateu na porta e Eliane veio atender.
- Boa noite, Michel está? - perguntou Ana confusa.
- Ana, que aconteceu? - indagou Michel vindo atrás da irmã. - Esperei-a por tempos. Entre...
Eliane lhe deu passagem, fechou a porta e ficou em pé olhando-a. Ana entrou, abraçou seu amigo e falou rápido:
- Michel, desculpe-me o atraso, não queria deixá-lo esperando. E que Cirilo não está bem, fui vê-lo e fiquei conversando com o Dr. Bernardo. Como não estou
dando aulas para Cirilo, tenho o dia livre e poderei dar aulas para você àtarde, já que você estuda de manhã.
- A tarde ajudo meu pai trabalhando na horta, não posso estudar.
- Pode sim, meu filho - falou João do quarto, demonstrando já estar deitado. - Quero que estude! Não fará diferença uma hora por dia.
- Então, está certo! - falou Michel entusiasmado. -Farei mais rápido o serviço. Poderá vir às treze horas, Ana.
- Sim, combinado.
- Mas o que lhe aconteceu? Você chegou tão assustada - perguntou Eliane.
Ana tinha esquecido dela, que continuava em pé ao lado da porta olhando-a de modo estranho, parecia que debochava dela. Ana então soltou os braços de Michel
que continuavam em volta de sua cintura. Havia permanecido pertinho de Michel, aquele garoto lhe dava segurança, queria-o bem e sabia que ele lhe devotava afeição.
Era uma amizade cari
nhosa.
- E que... - gaguejou Ana-, ao vir para cá, vi Rodolfo e levei um susto, ele estava a andar como se não me visse.
- Ele dá susto em todos e nem precisa ser de noite -falou Eliane.
- Ora, Eliane - reprovou Michel. - Não é nada disso, explico o que acontece ao Rodolfo para que entenda.
- Boa noite - interrompeu Eliane. - Não tenho regalias de alunos doentes, tenho que levantar cedo amanhã e muito trabalho:
- Boa noite - respondeu a jovem professora.
Ana achava Eliane desagradável e sentia que a moça também a achava antipática. Ela saiu da sala e Michel continuou a falar.
- E que Rodolfo é sonâmbulo, anda dormindo e às vezes vem aqui chamar Eliane. Quando você bateu na porta, pensamos que era ele.
"Vem aqui atrás dela" - pensou Ana. Sentia raiva por ele a preferir. - "Não devo amá-lo, acho que estou confundindo, o que sinto por ele é medo ou atração.
Não é possível ser amor."
- Michel, já vou indo.
- Levo você até a garagem.
Ana concordou. Ao sair observou tudo e não viu nenhum vulto por ali, suspirou aliviada. Na garagem despediu-se de Michel e foi rápido para seu quarto.
Preparou-se para dormir e tomou o remédio que Dr. Bernardo lhe dera. Já ia deitar quando ouviu um sussurro, rapidamente deitou-se e ouviu a voz de uma mulher,
sem entretanto ver nada. A luz do quarto ainda estava acesa. Desta vez, entendeu bem o que a voz fantasmagórica lhe dizia:
- Você é culpada! Fez do meu filho um assassino. Em vez de senhor é um simples empregado. Você pagará, maldita!
Ana nada mais ouviu. Desmaiou de susto e medo. Dormiu até tarde no outro dia. Sônia veio despertá-la. Então,
lembrou de tudo, do remédio que tomou, da voz que escutou, as palavras ouvidas ficaram a lhe martelar. Teve vontade de conversar com Dr. Bernardo e contar a ele
o que acontecera. Levantou com dor de cabeça e indisposta. Arrumou-se e foi ao quarto de Cirilo, queria encontrar o médico para ser elucidada.
Mas o médico não estava no quarto do menino e sim D. Eleonora. Cirilo estava bem melhor, não estava febril e nem tão ofegante. Sorriu para ela.
- Bom dia, Ana - respondeu o garoto ao seu cumprimento. - Que bom que você tenha vindo me ver. Não vamos ter aula hoje, ainda estou cansado.
- E nem amanhã ou depois - falou D. Eleonora sendo mais simpática. - Só quando Cirilo quiser que as terá novamente.
Ana ficou ali mais um pouco, depois despediu-se. Foi para os aposentos do velho médico, bateu de leve na porta do quarto dele. Necessitou bater três vezes para
ser atendida.
- Bom dia! - saudou o médico. - O que a traz aqui tão cedo, Ana?
- Bom dia. - Rapidamente entrou no quarto sem ser convidada e fechou a porta. - Doutor, necessito de seus cuidados. Ontem tomei o remédio e entendi a voz.
- Como é? - indagou o facultativo sem entender o que a moça dissera.
Ana então explicou tudo. Estava nervosa e torcia as mãos. Quando terminou, Dr. Bernardo lhe ofereceu água. O olhar bondoso do médico a acalmou.
- Ana, lhe dei somente um suave calmante que não podia causar danos. Mas, para que eu a ajude, conte-me tudo sem esconder nada.
Ana sentiu vergonha, mas entendeu que, se queria ser ajudada, teria que ser sincera. E, sem esconder nada, contou tudo ao velho médico, a passagem secreta,
a descida às prisões com Cirilo e a causa da recaída dele, as recordações da
gruta, seu carinho por Michel, a atração e o medo por Rodolfo, e a antipatia por Eliane. Quando acabou, sentiu-se mais leve. Após uns instantes em silêncio, finalizou:
- Nunca tive isto doutor, juro. Não há ninguém louco na minha família.
- Ora, não estou achando você louca. Entendo o que lhe acontece e posso explicar.
- Entende?! - suspirou a jovem aliviada.
- Minha filha, temos na religião Espírita a explicação para estes fenômenos. Podemos entender, sem tachar pessoas como você de loucas. Acalme-se menina. Tudo
tem explicações. Somos eternos, não este corpo que nasce e morre, mas sim nossa alma, nosso espírito. Saimos do corpo como entramos, sem levar nada de material.
Desencarnados continuamos com nossos vícios e defeitos ou com qualidades e virtudes. Sendo que ao termos o corpo morto, ou seja, desencarnado, ainda usamos outro
envoltório que se chama perispírito, que é ainda uma matéria, só que mais sutil, idêntico ao corpo fisico que se teve. Por isso muitas pessoas que desencarnam e
não têm conhecimento podem achar que ainda estão encarnadas. Pessoas boas que desencarnam são levadas para lugares bons e agradáveis. Ficam desencarnados por um
período necessário e depois voltam a nascer, reencarnar, em outro corpo. Pessoas más e aqueles considerados mortos, que não fizeram mal mas também não fizeram bem,
vagam também por determinado período, seja em lugares feios e tristes, ou em seus antigos lares. Todos reencarnam, e pela bondade de Deus temos sempre a oportunidade
de progredir. Aqui encarnados temos que lutar para vencer nossos vícios e tudo fazer para aprender no Bem. Muitos espíritos, neste período de desencarne, podem ficar
vagando e assombrar encarnados, se estes tiverem a sensibilidade para vê-los. No Espiritismo, chamamos pessoas assim de médiuns. Voltando a reencarnar, podem algumas
pessoas ter lembranças de suas existências passadas.
- E bem complicado - disse Ana, que prestava muita
atenção às explicações do médico. - O Sr. acha que sou uma reencarnante?
- Somos todos - corrigiu Dr. Bernardo rindo. - Muitas existências já tivemos. Assim, Ana, você pode ter tido uma existência em que viveu aqui, na mansão. Ou
pode ser que algum desencarnado esteja agindo sobre você para fazêla desvendar alguns mistérios, como o da passagem secreta e do crime do André. Você pode não ter
sentido nada disto antes, mas aqui, onde o passado está marcado nestas construções antigas, é possível que tudo isto possa ter influenciado a sua sensibilidade.
Pensativo, o médico calou. Ana pensou que o estava incomodando, tinha ele de cuidar do garoto enfermo.
- Obrigada, doutor, acho que já vou.
- Não fique nervosa, estarei aqui na mansão por uns tempos para cuidar de Cirilo. Teremos tempo para conversar e irei explicando tudo devagar. Gostaria de ser
seu amigo. Mas, por favor, não vá mais a nenhum lugar secreto, pode ser perigoso. Não volte ao labirinto. E tudo que se passar com você me conte. Como é mesmo que
se abre a passagem?
Repetiu e o médico memorizou.
- Não vá lá sozinho, Dr. Bernardo, se a passagem fechar é morte na certa.
- Não pensou nisto, quando foi lá com o garoto.
Ana ficou vermelha e ele falou rindo.
- Não, não irei, não gosto de prisões, mas os restos mortais que lá estão necessitam de um túmulo.
- Se o senhor contar a D. Eleonora, ela me despedirá.
- Vou contar a ela, mas não agora. Não se preocupe, ela não a despedirá. Se o esqueleto está lá há tempo, não fará diferença um pouco mais.
Depois de ter agradecido e se despedido, Ana desceu para o jardim, não lhe agradava a idéia de ficar no seu quarto. Olhou os canteiros floridos, gostava de
flores, elas lhe davam uma sensação de tranqúilidade e simplicidade. Olhou
a torre. Será que a bandeira branca havia aparecido mesmo? Segundo diziam, ela apareceria quando os envolvidos no drama antigo de ódio, traição e crime, estivessem
ali novamente. Poderiam estar todos ali reencarnados. Seria ela a Vitória? Rodolfo, o André? Michel, o Luiz? Michel não parecia em nada com Luiz, mas ela sentia
ao ver o retrato de Luiz que ele seria agora outra pessoa, seria Michel? E Eliane, estaria ela também ligada ao passado? Seria ela a esposa traida e assassinada?
Rodolfo gostava de Eliane, ela o desprezava e ele também não gostava dela. Dr. Bernardo estaria certo nas suas teorias? A Lei da Reencarnacão existia mesmo? O que
ouviu do velho médico tinha coerência. Era algo que, se raciocinasse, entenderia tantas coisas ditas como incompreendidas e injustas. E Deus é justo. E a voz que
escutou, seria de Alice, a mãe de André? Ela a acusava de ter tornado infeliz a vida do filho e por ter agora reencarnado feio, deformado e como simples empregado.
Achava que a culpa era dela e queria vingar-se, amedrontando-a.
Enquanto pensava foi andando. Quando viu estava na passagem da garagem, atravessou o pátio e parou em frente à estrebaria. Sentiu vontade de ver Rodolfo, entrou
e o viu preparando comida para os animais.
- Bom dia, Rodolfo - Ana sorriu tentando ser agradável. - Como está você?
- Bom dia. Estou bem, obrigado. Você sabe como está passando Cirilo? Preocupo-me com ele, é um menino triste e educado, gostaria de ajudá-lo. Ele é uma criança
só e está sempre doente.
Ana pensou, Rodolfo gosta de Cirilo e não sabe explicar o porquê. Não seria porque Cirilo fora Artur? E outrora como André ele admirava este seu antepassado?
Estariam todos ligados a um passado? Ou talvez simplesmente Rodolfo estivesse preocupado com Cirilo, que realmente era educado, e seu jeito franzino e doente despertava
piedade. Acabou falando.
- Visitá-lo?
- Por que não pede a Sônia para perguntar ao garoto se ele não quer vê-lo? Poderá lhe falar sobre os cavalos que ele gosta tanto.
- Vou fazer isto. Mas o que faz aqui?
- Estava andando à toa e passei para vê-lo.
- Você está errada, Ana, você não me interessa.
- Não precisa ser tão grosseiro. Você ama Eliane?
- Não. Não amo Eliane, gosto dela como de todos aqui. Ela é jovem, bela e sinto necessidade de protegê-la, de fazê-la feliz. Quero que ela case com este
seu namorado e que ninguém atrapalhe sua felicidade. Gosto muito também de Michel, ele é como se fosse meu filho. Daria minha vida por ele. Você me assusta, Ana,
é da cidade grande e deve estar brincando comigo. Tenho espelho sabia?
Rodolfo falou calmo e resignado, olhou-a bem e continuou:
- Você é linda, dá impressão que prejudica todos os homens à sua volta. Olho para você e sinto atração e raiva. Algo me diz que me trairá e que não devo confiar
em você. Desculpe-me, mas peço-lhe para não me procurar mais. Aqui estava resignado e contente com meu trabalho, vem você a me perturbar, não é justo. Logo parte
e...
- Se você me quiser, fico, eu...
- Não fale besteira. Como ficaria? Morando na minha casinha? Dando aulas na vila? Seremos a bela e a fera. Por favor, Ana, não brinque comigo.
- Você me beijou, eu gosto de você. Não me importaria, não me importo de você ser assim, eu...
Novamente Rodolfo a interrompeu.
- Eu não quero! Eu não a quero! Entendeu? Sinto às vezes raiva de você, como se você fosse a culpada de tudo.
- E se fosse, você me perdoaria?
- Culpada? De quê? Tudo o que aconteceu, você nem aqui estava - falou Rodolfo com calma.
- Não acha que tudo isto deve ser consequência do
passado? Dos nossos erros?
- Esteve conversando com Dr. Bernardo? Bobagem, já conversamos sobre isto. Ele me deu até livros para ler. Não acredito. Mas não tenho nada contra se for verdade.
E, se for, devo ter grandes débitos a resgatar. Ana, sempre fui sozinho, enjeitado, defeituoso e feio. Fico pensando, se D. Eleonora vender isto aqui, não terei
nem para onde ir. Quem me dará emprego? Só se for num circo.
- Num circo? - indagou Ana triste.
- Sim, como palhaço. Será interessante passar susto nas pessoas e muitas gostam de ver monstros.
- Não fale assim - pediu a moça.
Ana compreendeu que Rodolfo sofria muito e não queria fazê-lo sofrer mais ainda. Passou a mão na sua cicatriz, não o achava mais feio. Michel tinha razão, Rodolfo
era bonito.
- Beije-me - pediu Ana baixinho.
Rodolfo a beijou, mas logo em seguida a empurrou.
- Não! Você é uma traidora. Sinto que é e será sempre uma traidora. Deixe-me, por favor!
Ana saiu da estrebaria muito amargurada, com as mãos enxugou as lágrimas que teimosamente escorriam pelo rosto. Como se fosse atraida, olhou para cima. No vidro
da janela de um dos quartos da ala simples, a que estava hospedada, um vulto de mulher com um vestido verde a olhava com rancor. Firmou a vista e não viu mais. Saiu
correndo pela garagem com a intenção de ir para seu quarto.
Mas, em vez de entrar no seu aposento, foi para o quarto onde tinha visto o vulto na janela. Sentiu o coração bater forte, estava sob um forte abalo emocional,
sentia calor e tremia. Forçou a porta para abri-la, estava trancada, olhou para a parede e dependurada num prego estava a chave; pegou-a e abriu a porta. Entrou,
era um quarto simples que servia de despejo. D. Eleonora devia guardar ali pertences antigos. Num canto do quarto, estava um baú aberto e um vestido verde por cima.
Reconheceu com muito medo que era a roupa que
vestia a mulher que havia visto momentos antes. No chão, ao lado do baú, um leque aberto com cabo de madrepérola, preto, uma bonita peça de arte. No quarto também
havia um móvel com muitas gavetas. Várias delas estavam abertas e parecia que tinham seus pertences revirados.
Ana olhava tudo apavorada, estava com medo até de se mexer, e se arrependeu de ter entrado ali. Foi então que sentiu que alguém se aproximava dela e falou.
Não escutou com o sentido fisico, parecia que lhe falava de mente para mente.(1)
- Ana Elizabeth, outrora Vitória, eu a odeio! Se os outros a perdoarem, eu não. Aqui estive aguardando-a. Teriam de reunir-se todos aqui! Artur, o sanguinário,
aproveitador, enriqueceu através de sangue inocente, hoje é herdeiro. Ah, ah, ah! Herdeiro corroido pela lepra. Eliane, a primeira esposa do meu André, aquela que
você traiu no leito de morte, despreza hoje meu filho por sua causa. Meu neto Luiz, pobre garoto! Você o seduziu, fez trair o pai que adorava, tudo culpa sua. Hoje
ele é filho do jardineiro, e por quê? Por sua culpa! Rodolfo, meu Rodolfo, meu filho querido André, bom e nobre, que fez dele? Traiu, foi infiel, obrigando-o a matála.
Era a única coisa que ele poderia ter feito, um marido traido. Tirou você da pobreza, era uma empregadinha. Agora, quem é André? Herdeiro disto tudo lá na cocheira
e ainda deformado. Você voltou para receber seu castigo. Dr. Bernardo, a antiga feiticeira, não poderá ajudá-la. Foi ela mesma quem disse que se reuniriam todos
aqui para serem castigados. Ele não irá auxiliá-la, não poderá ajudá-la. Porque eu estou aqui, esperei anos e não deixarei você se aproximar do meu André, hoje Rodolfo.
Não e não! Traidora! Vitória traidora!
Ana não se mexia, o medo era tanto que não teve forças para nada, nem para se defender das acusações. Quando viu o vulto se afastando, pôde então se mover,
saiu correndo daquele quarto e foi para o seu.

Fim.





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