domingo, 20 de abril de 2014 By: Fred

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JESUS CRISTO - HISTÓRIA E MISTÉRIO
Joaquim Carreira das Neves, Fr. OFM

FICHA TÉCNICA
TÍTULO: JESUS CRISTO - HISTÓRIA E MISTÉRIO
AUTOR: FREI JOAQUIM CARREIRA DAS NEVES, OFM
EDITORA: Editorial Franciscana, Apartado 1217
R. Areal de Cima 4711-856 BRAGA
CAPA: Ilustração da capa, Ecce Homo, Escola Portuguesa, século XV,
Museu Nacional de Arte Antiga Arranjo gráfico, impressão e
acabamentos: Oficinas Gráficas da Editorial Franciscana
O copyright Editorial Franciscana, Novembro de 2000
ISBN: 972-784-143-0 Depósito legal: 157728/00
Reservados todos os direitos legais.
Joaquim Carreira das Neves - ofm
JESUS CRISTO
HISTÓRIA E MISTÉRIO
Editorial Franciscana


(Atenção - As páginas referidas meste Índice reportam-se ao
ficheiro informático de que o livro foi extraído e não ao próprio
livro)

ÍNDICE
Introdução ...4
1. O JUDAÍSMO DOS TEMPOS DO PÓS-EXÍLIO ...4
1.1. O judaísmo no período persa ...4
1.1.1. Do tempo bíblico ao tempo das Escrituras Sagradas...5
1.1.2. Do tempo de Israel ao tempo de Judá ...5
1.1.3. Do tempo dos profetas ao tempo dos sacerdotes ...6
1.1.4. Do tempo do hebraico ao tempo do aramaico ...7
1.1.5. Do messianismo davídico ao novo messianismo ...7
1.2. Do tempo da profecia ao tempo da apocalíptica ...11
2. OS JUDEUS E O IMPÉRIO GREGO...15
3. OS JUDEUS E O IMPÉRIO ROMANO ...18
4. A GEOGRAFIA DE ISRAEL NO TEMPO DE JESUS ... 19
5. OS GRUPOS RELIGIOSOS DE ISRAEL ... 23
5.1. Os fariseus...23
5.2. Os saduceus ...26
5.3. Os escribas ...28
6. INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS DE ISRAEL ...30
6.1. Sábado ...30
6.2. Templo ...33
6.3. Lei ...37
7. A QUESTÃO SINÓPTICA ...41
7.1. Pai Nosso...43
7.2. Bem-aventuranças ...44
7.3. última Ceia ...46
7.4. Ascensão do Senhor ...48
7.5. Pregação de João Baptista ...51
8. O JESUS DA HISTÓRIA ...52
9. O JESUS DA TRADIÇÃO ...54
10. O JESUS DA REDACÇÃO ...57
11. AS DUAS FONTES ...59
12. A FONTE QUELLE (Q) ...61
13. A DOUTRINA DOS TEXTOS EVANGÉLICOS DA FONTE QUELLE ... 64
14. DO JESUS DA HISTÓRIA AO CRISTO DA FÉ ...66
15. JESUS E OS JUDEUS ...72
16. EVANGELHOS DA INFÂNCIA ...76
17. JESUS E JOÃO BAPTISTA ...81
18. BAPTISMO DE JESUS ...83
19. TENTAÇÕES DE JESUS ...85
20. REINO DE DEUS ...87
21. MILAGRES DE JESUS E REINO DE DEUS ...96
22. PARÁBOLAS E REINO DE DEUS ...96
23. DISCÍPULOS E REINO DE DEUS ...101
24. JESUS E A IGREJA ...105
25. ENTRADA EM JERUSALÉM E PURIFICAÇÃO DO TEMPLO ...109
26. CEIA PASCAL ...113
27. PROCESSO DA PAIXÃO E CRUCIFICAÇÃO ...115
28. A RESSURREIÇÃO DE JESUS ...117
29. PARUSIA OU SEGUNDA VINDA DE JESUS CRISTO ...121
BIBLIOGRAFIA ...134


4
INTRODUÇÃO
A pessoa de Jesus Cristo divide a história em duas partes: antes
de Cristo e depois de Cristo. Continua a ser a personagem mais
importante da humanidade, mesmo para aqueles que não acreditam
nele à maneira dos cristãos.
Quem foi Jesus? O verdadeiro e único Filho de Deus, igual a Deus e
ele próprio Deus? Foi apenas um simples homem, o mais santo de
todos? Foi apenas um grande revolucionário religioso, que, por
isso mesmo, determinou uma nova maneira de ver Deus e o homem, uma
nova civilização humana? A finalidade deste livro é, precisamente,
responder a todas estas questões, tendo em conta os estudos mais
recentes dos exegetas, isto é, dos especialistas na Bíblia.
Procuramos evitar, com raras excepções, as notas de rodapé, para
não sobrecarregar o texto e, sobretudo, os leitores. No fim do
livro, os leitores encontrarão Bibliografia mais actualizada sobre
cada um dos capítulos.
Não temos a intenção de debater a pessoa de Jesus apenas através
das variadíssimas posições de historiadores e exegetas, mas sim de
a apresentar à luz da história e cultura do seu tempo, segundo os
dados mais recentes dos estudos históricos e bíblicos, e à luz da
fé das comunidades cristãs primitivas de acordo com o estudo dos
evangelhos, mormente dos evangelhos sinópticos. Seguimos, em
grande parte, o modelo que apresentámos no programa televisivo da
Igreja Católica Ecclesia ao longo do ano dois mil. Mas retocámos e
alongámos alguns desses programas, sobretudo o primeiro sobre o
mundo da geografia humana, política e religiosa do tempo de Jesus,
e o último sobre a Segunda Vinda de Cristo. Não começámos pelo
tempo histórico de Jesus mas pelo tempo do pós-exílio para
compreendermos melhor as linhas culturais e religiosas dos judeus
que desembocaram no tempo de Jesus. Sem este estudo histórico e
cultural dificilmente poderemos perceber a grandeza e a história
de Jesus, o que o torna um judeu igual aos outros e diferente dos
outros.

1. O JUDAÍSMO DOS TEMPOS DO PóS-EXíLIO
Devemos começar por compreender que o Judaísmo sofreu, ao longo
dos tempos, muitas evoluções e modificações, o que é absolutamente
normal porque se trata duma religião histórica. Por isso, a fé
israelita dos tempos dos patriarcas é bem diferente da dos tempos
de Moisés e dos profetas, e esta da dos tempos do pós-exilio. A
última fase da religião bíblica também é chamada a fase do Segundo
Templo ou do "período intertestamentário", que vai desde a
reconstrução do Templo de Salomão por volta de 515 a. C., uns
setenta anos depois da sua destruição pelos babilónicos, até à sua
destruição final no ano 70 da nossa era. Neste período histórico
há que distinguir entre o tempo do império persa, o tempo do
império helénico e o tempo do império romano.
Desde o exílio da Babilónia, no século VI A. C., até aos nossos
dias (1948), nunca mais os judeus tiveram uma nacionalidade
própria. Por isso mesmo, há que compreender as ideias gerais e
fundamentais do judaísmo nestes três tempos históricos para
compreendermos também a pessoa de Jesus.

1.1. O JUDAíSMO NO PERíODO PERSA.
Durante este "período intertestamentário", que começa sob o
domínio do império persa (559-333 a. C.) dão-se muitas
modificações políticas e religiosas internas ao judaísmo em
comparação com os tempos antes do exilio da Babilónia. Teríamos,
assim, um "antigo judaísmo" e um "novo judaísmo", que tem como
pontos fundamentais a questão de Israel como nação dependente dos
três impérios, a questão das Escrituras Sagradas, do Messianismo,
da Apocalíptica e dos diversos grupos sociais e religiosos que vão
surgindo dentro do povo de Israel, sobretudo depois da reconquista
dos Macabeus.

5
1.1.1. Do tempo bíblico ao tempo das escrituras sagradas.
O tempo do judaísmo de Jesus é fruto deste "novo judaísmo". É o
tempo em que as Escrituras Hebraicas começam a fazer parte
integrante da fé judaica, incluindo, por enquanto, apenas as duas
secções mais importantes das mesmas Escrituras: a Torá (a Lei ou o
Pentateuco) e os Nebiim (os Profetas). A terceira parte, os
chamados Ketubim (os Escritos) só aparecem um pouco mais tarde,
isto é, a partir do "novo judaísmo". Quando o Novo Testamento se
refere às Escrituras que contêm o plano de Deus sobre a
humanidade, a começar pela própria pessoa de Jesus e pelos seus
discípulos só tem em vista as duas primeiras secções, a Lei e os
Profetas, juntando-lhes também os Salmos. Mas, no tempo de Jesus,
estas sagradas Escrituras também já tinham sido objecto de
interpretações de rabinos e de escolas interpretativas, de grupos
religiosos e até de traduções gregas. Tanto Jesus como as igrejas
primitivas não dependiam exclusivamente do Livro, mas também das
suas interpretações. Basta considerarmos a interpretação
apocalíptica, a interpretação dos essénios ou qumranitas, a
tradição de Hilel, a tradução grega dos Setenta, a escola
interpretativa de fariseus e saduceus, etc. Tudo isto tem o máximo
interesse porque nos leva a concluir que os hagiógrafos ou autores
finais das sagradas Escrituras Hebraicas tinham em vista a
apresentação da Palavra de Deus de acordo com o desenvolvimento da
história. Os hagiógrafos são homens sujeitos às leis da história.
O que eles escrevem são as suas tradições de fé judaica, ao longo
dos séculos, como catequeses fundamentais para a sua vida de fé no
presente e no futuro. A partir de agora aquelas Escrituras eram
cânon de vida. Como escrevia um rabino judeu do século segundo da
nossa era, o Rabbi lshmael, "as Escrituras falam através da
linguagem humana". Neste falar de Deus "através da linguagem
humana" junta-se Deus e a história, a causa primeira e as causas
segundas. A Palavra não cai do céu à terra de qualquer maneira,
mas incarnada na história. A teologia e a história são como que
duas irmãs siamesas, que não podem ser separadas de qualquer
maneira e feitio, e é por isso que as Escrituras já incluem dentro
de si mesmas a sua própria interpretação histórica. Também é por
causa disto mesmo que os judeus consideram como importante, para
não dizer sagrada, a tradição judaica que desemboca na Mishna (ca.
200 p.C.) e nos Talmudes (400-500 p.C.). Nas suas sinagogas, tanto
hoje como antigamente, os judeus referem, por vezes, mais a
doutrina da Mishna e dos Talmudes do que as suas sagradas
Escrituras, uma vez que tanto a Mishna como os Talmudes não são
mais do que interpretações das mesmas Escrituras aplicadas ao
tempo histórico. É o que acontece também com a doutrina dos
chamados Padres da Igreja em relação aos cristãos. Em conclusão,
as Escrituras hebraicas e cristãs são fruto dum dinamismo de fé em
que o autor principal, Deus, e Jesus Cristo, respectivamente, nos
falam pela história e seus mediadores.
O Novo Testamento cristão contém a pregação de Jesus de mistura
com a pregação dos responsáveis das igrejas cristãs primitivas.
Como essas igrejas sofriam a pressão contrária dos judeus daquele
tempo, as mesmas Escrituras cristãs apresentam os judeus por vezes
com cores muito negativas, o que levou a uma tomada de posição,
negativa e anti-semita, da parte dos cristãos, ao longo dos
séculos. Já que os judeus não aderiram a Jesus, o mesmo Deus os
teria abandonado e rejeitado para os substituir pelo novo povo de
Deus. Ora Deus não abandona nem os judeus nem qualquer outro povo,
pois todos os povos são de Deus. Foi a história que levou os
chefes judeus daquele tempo a rejeitarem Jesus, mas esta rejeição
é histórica e não divina. Ao longo do nosso estudo, veremos como
esta relação de confronto entre judeus e cristãos se estabeleceu a
partir do próprio Jesus e se radicalizou a partir das comunidades
cristãs primitivas. E é a partir de todo este conjunto de factores
que se constituem as novas Escrituras cristãs do Novo Testamento.

1.1.2. Do tempo de Israel ao tempo de Judá
Para compreendermos melhor este "novo tempo judaico", a partir dos
tempos pós-exilicos, há que ter em conta o novo paradígma
histórico e geográfico e o novo paradigma religioso motivado pelo
desaparecimento dos profetas e da monarquia.


6
Quanto ao novo paradigma histórico e geográfico, os israelitas
deixam de se chamar israelitas (os B'nai Yisrael - filhos de
Israel) para se chamarem apenas Judeus, precisamente porque
ficaram reduzidos ao pequeno território de Judá com a sua capital
em Jerusalém e à sua vida cultural centrada no seu Templo (cf. Ne
5, 14:
"Desde o dia em que o rei me estabeleceu como Governador da região
de Judá..."). Os samaritanos bem quiseram juntar-se aos Judeus na
reconstrução do Templo, mas os responsáveis judeus, Esdras e
Neemias, não aceitaram semelhante ajuda por causa da religião meio
judaica e meio pagã dos samaritanos. E foi assim que surgiram as
inimizades entre judeus e samaritanos que vamos encontrar no tempo
de Jesus. Os próprios samaritanos construíram o seu Templo no
monte Garizim para rivalizar com o de Jerusalém. O mesmo acontece
com os antigos israelitas da Galileia misturados com os colonos da
antiga Babilónia e da Assíria e com os novos colonos do império
persa (cf. Esdras e Neemias). Para os persas, comandados pelo seu
rei Ciro, que libertaram os judeus do jugo da Babilónia, os
israelitas, quer vivessem fora de Israel, espalhados pelas 127
províncias do império, ou dentro de Israel, passaram a ser
chamados de Judeus, isto é, pessoas da terra de Judá. A palavra
Israel passa, desde agora, a significar o Israel histórico do
passado e o Israel de um futuro ideal e messiânico.

1.1.3. Do tempo dos profetas ao tempo dos sacerdotes.
Outro aspecto importante relaciona-se com os profetas. Antes do
exilio, os profetas eram a alma espiritual e crítica da teocracia.
Mas uma vez que deixou de haver teocracia real devido ao
desaparecimento dos reis também desapareceram os profetas. Depois
do exilio temos apenas os três profetas Ageu, Zacarias e Malaquias
ligados à reconstrução do Templo e ao restabelecimento do
sacerdócio e do novo estado de Judá, defendendo uma certa linha
fundamentalista das tradições sobre a santidade cultual, seguindo
de perto as reformas de "Esdras - o - Escriba" e Sacerdote sobre
as leis do casamento apenas com judeus e sobre as leis do sábado e
do Templo.
Enquanto que nos profetas, antes do exílio, encontramos críticas
duras dos mesmos profetas por causa das tendências dos israelitas
para os cultos pagãos da fecundidade, isto é, para os ídolos,
agora tais críticas não aparecem nos três profetas pós-exilicos.
Criticam, sim, o cinismo dos sacerdotes que passaram a representar
o centro vital da própria religião judaica, uma vez que não há
mais profetas nem rei. Mesmo assim, os judeus, neste "novo
judaísmo" têm a máxima consideração pelo Sumo Sacerdote e também,
pelo menos em certa medida, pelos próprios sacerdotes, como
mediadores entre Deus e o povo.
Uma vez que os velhos profetas desapareceram e que apenas três -
Ageu, Zacarias e Malaquias - são referidos, e todos eles do tempo
de Esdras e Neemias, o povo interroga-se, pouco a pouco, porque é
que isto acontece. Ao relembrarem o passado e, sobretudo, o
castigo do exilio, atribuem tal castigo ao facto dos antepassados
não terem ouvido a voz atenta dos seus profetas. Mas o facto
histórico é que Deus não enviou ao seu povo mais algum profeta à
maneira dos tempos bíblicos. E é desta maneira que surge o desejo
e a nostalgia pelos tempos passados em que Deus se fazia ouvir
directamente pelos profetas, e que vai influenciar a natureza da
pessoa de Jesus com o seu messianismo profético.
Mas o aparecimento das Escrituras Hebraicas implica, de certo
modo, o desaparecimento dos profetas porque a Palavra de Deus está
ali representada naquela Torá e naqueles profetas. Tudo o que
viesse a mais seria como que aumentar as Escrituras já
consignadas, lidas em hebraico, traduzidas em aramaico e
explicadas pelos sacerdotes e pelos escribas. O novo povo de Judá
tem as suas Escrituras, o seu novo Templo e os seus sacerdotes. O
ciclo cultural e religioso ficou fechado. Os profetas são
substituídos pelos sacerdotes e pelos escribas ou sábios, Deus
que, outrora, falou pelos profetas, agora fala pelos sacerdotes e
pelos escribas/sábios.
Um ponto alto na actividade de Esdras consistiu no facto de ele
ler ao povo o Livro da Lei que trouxera da Babilónia. Mas, segundo
o capítulo oitavo de Neemias, a leitura da Lei feita por Esdras
confunde-se com a leitura da mesma Lei feita por outros
responsáveis, que não


7
se limitavam apenas a ler o livro da Lei, mas também "explicavam o
seu sentido, de modo que se pudesse compreender a leitura" (Ne 8,
8). Este capítulo oitavo de Neemias compendia numa única acção e
num único dia a prática sabática e sinagogal dos Judeus que liam e
interpretavam a Torá. Semelhante leitura e interpretação significa
- o que é de suma importância - que as velhas tradições hebraicas
sobre a Torá e, depois, sobre os profetas, se tornam Escritura,
Credo e Cânon. Os tempos bíblicos não foram tempos de Escritura.
Os Patriarcas, Moisés, Josué, David, Salomão e os Profetas não
tinham uma Bíblia. Apenas viveram a história da sua fé monoteísta,
com altos e baixos, e foi esta história de fé que agora se faz
Bíblia escrita e sagrada,(1) lida, traduzida e interpretada, como
vimos, pelos sacerdotes e pelos escribas/sábios.
(1) CL Stephen M. Wylen, The Jews in the Time of Jesus. An
Introduction. Paulist Press, New York 1996, p. 22: "When Ezra read
the Torah in public and the people accepted it, the Torah became
scripture to the Jews. This was the final event in biblical times.
Jews in biblical times did not have a Bible - they were living
what became the Bible! Once Jews had a Bible, they were no longer
living in biblical times.(1) Tradução de Marta Baptista, detentora
do grau Proficiency em inglês, pela Cambridge University - Quando
Ezra leu a Torah em público e o povo o aceitou, a Torah tornou-se
escritura para os Judeus. Este foi o evento final dos tempos
bíblicos. Os Judeus dos tempos bíblicos não tinham Bíblia -
estavam a viver o que se viria a tornar a Bíblia! Quando os Judeus
tiveram a Bíblia, já não estavam a viver nos tempos bíblicos.

1.1.4. Do tempo do hebraico ao tempo do aramaico.
Como vimos, nesta interpretação da Lei intervém um novo facto, o
da própria língua, uma vez que se passa do hebraico para o
aramaico.
O hebraico passa a ser a língua sagrada dos antepassados e das
Escrituras enquanto que o aramaico se torna a língua falada,
importada da Babilónia, e língua comum daqueles povos do Próximo
Médio Oriente durante vários séculos. O aramaico foi, portanto, a
lingua comum do povo judaico durante o período do pós-exilio até
ao tempo dos romanos. Foi, também, a língua de Jesus e dos Doze
Apóstolos. Isto significa que os judeus liam as suas Escrituras em
hebraico e traduziam-nas para aramaico. Mas também sabemos que as
traduções implicavam a própria interpretação, o que vem a dar nos
célebres Targumes bíblicos, dos quais conhecemos alguns de tempos
mais tardios. Trata-se de obras em que se mistura o texto bíblico
com a sua tradução e respectiva interpretação, onde não faltam
lendas ou contos para melhor explicitar essa interpretação.

1.1.5. Do messianismo davídico ao novo messianismo.
Neste "novo judaísmo" aparece também uma nova maneira de
compreender o messianismo. As antigas ideias messiânicas baseavam-
se na promessa de Natan feita a David sobre o presente e o futuro
da sua dinastia como aparece em 2Sm 7, 12-16:
"Quando chegar o fim dos teus dias e repousares com teus pais,
manterei depois de ti a descendência que nascerá de ti e
consolidarei o seu reino. Ele construirá um templo ao meu nome, e
eu firmarei para sempre o seu trono régio. ... A tua casa e o teu
reino permanecerão para sempre diante de mim, e o teu trono estará
firme para sempre".
Aquilo que o profeta promete a David e à sua dinastia é que Deus
nunca mais abandonará essa linha real. Por isso mesmo, esta
promessa foi transformada, pouco a pouco, diante de crises e
dificuldades da "casa de David", em messianismo davídico.
A palavra messias significa ungido, que em grego se diz christos
ou Cristo. Tudo começou pelos reis, os ungidos do Senhor. Eram os
"alter ego" do próprio Deus, que deviam reger o seu povo segundo a
vontade do mesmo Deus, com justiça e com verdade, defendendo
sobretudo os mais pobres: peregrinos, órfãos e viúvas. Diante das
crises políticas e sociais, os profetas e os salmistas vão
repetindo que Deus manterá a sua palavra sobre este messias/ungido
real da dinastia de David. Basta ler com atenção Is 7, 14; 11, 10-
16; Ez 29, 21; SI 18,
51;89, 28-38; 132, 11-12; Hb 3, 13.
Nós, cristãos, estamos habituados a falar do Messias e do
messianismo como se se tratasse duma única realidade ou
personalidade por causa da pessoa de Jesus, o Messias de Deus. Mas
no judaísmo da Torá e dos Profetas, como, também, mais tarde, no
judaísmo do pós-exilio, não existe qualquer "Credo" normativo
sobre a figura do Messias. Tanto Jesus como a posterior
cristologia é que interpretaram os velhos textos

8
bíblicos referindo-os à pessoa de Jesus-Messias e à cristologia
messiânica. Os velhos textos bíblicos nunca se referem, de maneira
clara, à vinda de um Messias. Referem, sim, a protecção de Deus,
primeiramente, através dos reis davídicos e, mais tarde, também
através de profetas e sacerdotes. Sobre a figura do profeta
futuro, que Deus há-de mandar, lê-se em Dt 18, 15: "O Senhor, teu
Deus, suscitará no meio de vós, dentre os teus irmãos, um profeta
como eu [Moisés]; a ele deves escutar."
Como vimos, a palavra mashiah significa ungido, e era aplicada
sobretudo aos reis davídicos, mas também se diz que o rei pagão
Ciro era um "ungido de Deus" (Is 45, 1). Por isso, este "velho"
messianismo tinha a ver, como afirmámos, com a protecção de Deus
através dos seus intermediários, especialmente os reis. E quando a
monarquia acaba com a conquista de Jerusalém por Nabucodonor em
583 a.C., vai surgir uma nova ideia messiânica à volta de várias
figuras.
Assim se explica que os três profetas do pós-exilio, Ageu,
Zacarias e Malaquias, não se encontrem muito à vontade com este
assunto uma vez que a dinastia de David tinha soçobrado. Faltou,
então, Deus à sua palavra sobre a protecção prometida para sempre
para com a dinastia davídica? A verdade é que Zacarias mantém-se
na corda bamba entre o messianismo do rei Zorobabel e o do Sumo
Sacerdote Josué.
Josué recebe a tiara limpa (3, 5), é chamado o Gérmen messiânico
(3, 8; 6, 9-15). Mas também se lê sobre Zorobabel: "Eis a palavra
do Senhor a respeito de Zorobabel: 'Não é pelo poder nem pela
força, mas pelo meu espírito - diz o Senhor do universo" (4, 6b).
A frase está incompleta, mas a sua significação, embora sincopada,
é clara: "Não é pelo poder e pela força, mas pelo meu espírito que
Zorobabel há-de governar...". Um pouco mais adiante lê-se ainda em
Zacarias 4, 10: "Todos hão-de rejubilar, ao verem a pedra
escolhida na mão de Zorobabel."
Esta sobreposição messiânica entre o Sumo sacerdote e o rei faz
com que Zacarias classifique Josué e Zorobabel de "dois ramos de
oliveira" como "os dois ungidos que assistem o Senhor de toda a
terra" (4
14). Na realidade histórica, estes textos, um tanto ou quanto
confusos apenas nos dizem que estas duas figuras foram importantes
e que, neste tempo, ainda subsistia a ideia messiânica ligada à
casa real de David através de Zorobabel. Mas a verdade é que o
império persa deixa cair Zorobabel por razões que nós
desconhecemos e são os Sumos Sacerdotes que, daqui para o futuro,
vão representar o próprio Deus. A teocracia passa do rei para o
Sumo sacerdote. E é assim que, daqui para o futuro, surgem as
figuras "messiânicas" do Rei e do Sumo Sacerdote como resposta aos
fracassos dos tempos passados da monarquia davídica. O célebre
exegeta R. E. Brown afirma - e com razão - que "na his tória do
judaísmo antes de 130 p. C. não temos qualquer prova de que um
judeu vivo seja referido como o Messias, excepto Jesus de Nazaré.
Também nenhum judeu, neste período, aparece identificado coma
figura do Filho do Homem de Daniel, excepto Jesus. Mais ainda,
Flávio Josefo só emprega a palavra Christos - e apenas duas vezes
-, à pessoa de Jesus.
Mas o livro de Zacarias não apresenta apenas as duas figuras his
tóricas de Josué e Zorobabel como prefigurações messiânicas. Ele
vai mais longe e fala dos tempos messiânicos que se hão-de
realizar na utopia dum novo povo dirigido directamente por Deus
(Zc 8) ou dirigi do por um rei futuro diferente dos reis do
passado:
"Exulta de alegria, filha de Sião!


Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem
a ti; ele é justo e vitorioso; vem, humilde, montando num
jumentinho, filho de uma jumenta. Ele exterminará os carros de
guerra da terra de Efraim e os cavalos de Jerusalém; o arco de
guerra será quebrado. Proclamará a paz para as nações.
O seu império irá de um mar ao outro E do rio às extremidades da
terra" (Zc 9, 9-10).
Todos sabemos que estes textos vão ter a máxima importância para
os cristãos primitivos, quando os aplicarem ao próprio Jesus como
o verdadeiro Messias de Deus. E os judeus ficarão sempre com um
"sabor amargo" na boca pela não realização das promessas
messiânicas, sempre em sentido amplo de libertação política, razão
porque não entenderam o messianismo de Jesus e a sua pregação
sobre o "Reino de Deus", como veremos ao longo do nosso estudo. Os
chamados Salmos de Salomão, de feição farisaica e do tempo de
Jesus, suspiram pelo ungido davídico, rei e soberano, que acabaria
com todos os inimigos de Israel e implantaria um reino de paz e
justiça, a partir de Israel e se estenderia a todos os povos (SI.
18, 5).
Com a descoberta dos textos de Qumran, a questão messiânica recebe
novas dimensões. Vamos apresentar os textos principais, seguindo
de perto a obra recente de J.A. Fitzmyer sobre este assunto.
1. No chamado Manual de Disciplina (lQS) lê-se em 9, 11: ... mas
eles serão governados pelos primeiros regulamentos, pelos quais os
homens da comunidade começaram a ser instruídos, até que venha um
profeta e o Messias de Aarão e IsraeL ". O contexto tem a ver com
os responsáveis qumranitas dos "conselhos da Lei". Estes
"conselhos" têm validade até à chegada do tal profeta e dos
Messias de Aarão e de Israel. Aparecem, pois, três figuras
"messiânicas". O profeta só pode referir-se à passagem do Dt 18-,
15.18, o Messias de Aarão ou Sacerdotal à passagem de Zc 6, 12-13,
e o Messias de Israel às passagens já apresentadas sobre o rei
davídico.
2. IQSa 2, 11-12: "[Esta é a assembleia dos homens famosos
[convocados] para a reunião do concelho da comunidade, quando
[Deus] criar o Messias entre eles. Ele ficará à cabeça de toda a
congregação de Israel e de todos os [seus] irmãos, os filhos] de
Aarão, os sacerdotes." Neste texto só aparece um Messias ou o
Messias (com o artigo definido).
3. 1QSa 2, 14-15: "Em seguida, o [Messias de Ysrael tomará [o seu
lugar] ". O Messias de Israel, como já sabemos, é o Messias
davídico que, neste caso, se juntará à assembleia da comunidade
"no fim dos tempos". Este Messias davídico vem a seguir ao Messias
Sacerdotal, que preside à assembleia da comunidade no fim dos
tempos. O Messias Sacerdotal tem sempre a primazia.
4. 1QSa 2, 20-21: "Em seguida, o Messias de Israel porá a sua mão
sobre o pão.". Como no texto anterior, o Messias de Israel é
precedido pelo "Sacerdotal" (2, 19), o primeiro a abençoar o pão e
o vinho, até que chegue "o fim dos dias."
5. 4QpGen (4Q252) 1, 3-4: " ... e os milhares de Israel são os
"estandartes" até que venha o Messias de justiça, o rebento de
David" Estamos diante de um pesher ou comentário profético sobre o
livro do Génesis 49, 10, onde se lê: "O ceptro não escapará a
Judá, nem o bastão de comando à sua descendência, até que venha
aquele a quem pertence o comando." O comentador junta o Messias de
justiça ao rebento (tse. mah) de David e - o que é importante -
fala explicitamente do Messias e não apenas "daquele a quem
pertence o comando." O método exegético que explicita o que no
texto original é apenas implícito também ( um método recorrente em
todo o Novo Testamento. A figura do rebento davídico com sentido
salvífico e de messianismo abrangente aparece em Is 11, lss; Jr
23, 5; Zc 3, 8 e 6, 12.

10
6. Documento de Damasco (CD) 12, 23-13, 1: "São os que caminham de
acordo com estes (estatutos) nos tempos finais, que são maus, até
que surja o Messias de Aarão e de Israel; e eles formarão grupos
de dez homens...". Uma vez mais, aparecem os dois Messias, o
Sacerdotal e o davídico, agora relacionados com o final dos
tempos. O mesmo se afirma em CD 14, 18-19; 19, 10 e 19, 35-20, 1.
7. 4Q2521 2 col.II + 4: 1 "porque os céus e a terra hão-de ouvir o
seu Messias, 2 [e tudo aquilo que] existe neles não se afastará
dos preceitos dos santos. 3 Sede fortes no seu serviço, vós os que
procurais o Senhor! 4 Porventura não encontrareis o Senhor nisto,
vós os que esperais nos vossos corações? 5 Porque o Senhor
observará os piedosos e chamará os justos pelo nome. 6 Colocará o
seu espírito nos humildes, e com a sua força renovará os fiéis. 7
Ele honrará os piedosos num trono de realeza eterna, 8 libertando
os prisioneiros, dando a vista aos cegos, endireitando os coxos. 9
Inclinar-me-ei para sempre sobre os que esperam, e na sua
misericórdia, ele os recompensará; 10 o fruto duma boa obra não
será retardado a ninguém. 11 O Senhor fará acções gloriosas como
nunca se viram, como disse, 12 porque curará os feridos e fará
reviver os mortos e proclamará a boa nova aos aflitos; 13 saciará
os pobres, guiará os desviados e enriquecerá os esfomeados; 14 e
os instruídos [... 1 e todos serão como santos." Neste texto, a
pessoa do Messias mistura-se com a pessoa de Deus. Assim se
explica o sufixo "seu": o seu Messias, isto é, o Messias de Deus -
os céus e a terra hão-de ouvir o Messias de Deus. O importante
consiste nesta esperança do céu e da terra sobre a vinda futura do
Messias de Deus. O sujeito operativo de todas as benfeitorias é
Deus: "o Senhor observará os piedosos ... colocará o seu espírito
nos humildes ... libertará os prisioneiros... dará a vista aos
cegos ... enriquecerá os esfomeados... O texto é um pequeno
"florilégio" do Si 146; Is 34, 1; 35, 5 e 61, 1. O Messias que os
céus e a terra esperam é um Messias profeta e não um rei. Jesus,
na sinagoga de Nazaré refere a sua pessoa como sendo este profeta
(Lar, 4, 21: "Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura,
que acabais de ouvir").
Em conclusão, a importância destes textos da comunidade de Qumran
reside no facto deste Messias ser alguém - uma pessoa - que os
qumranitas esperavam que havia de chegar um dia para libertar a
comunidade e Israel. E não se trata de um Messias apenas davídico,
mas também sacerdotal e profético. Este Messias, como acabámos de
ver no último texto, virá realizar o profetizado nas Escrituras
Sagradas. o mesmo acontecerá com a pessoa de Jesus. A tese dos
estudiosos judeus que falam da ideia messiânica judaica apenas em
tempos do império romano e apenas com características político -
religiosas, cai por terra. Os textos de Qumran são do séc. II e I
a.C. e apresentam-nos a pessoa do Messias não duma maneira vaga e
indefinida, mas com toda a precisão de Alguém que um dia virá, da
parte de Deus, trazer a paz, a liberdade e a salvação.
Deixando a literatura de Qumran e passando para a formalmente
apocalíptíca destes tempos intertestamentários, vamos encontrar a
figura do Messias nos livros de Enoc, quatro de Esdras e nos
Testamentos dos Doze Patriarcas. Vejamos alguns textos.
No lEnoc 48, 10 lê-se: "então Israel será resgatado das nações do
mundo e aparecer-lhes-á o Messias, que os fará subir a Jerusalém
com grande alegria." Ainda no lEnoc 52, 4, Enoc pergunta ao anjo:
"O que é que são todas estas coisas que eu vi em segredo?", e o
anjo responde-lhe: "Todas estas coisas que viste serão para o
poder do Messias, para que seja forte e reconquiste a terra."
No quarto livro de Esdras, a figura do Messias aparece juntamente
com outras figuras, inclusivamente com a de Jesus, o que significa
que a obra sofreu várias camadas redaccionais. Seguindo de perto a
5ª edição de A. Diez Macho , apresentaremos os principais
conteúdos mesiânicos da obra de 4Esdras.

11
Em 4Esdras 7, 26ss, o anjo "Uriel volta a recordar os signos
finais, as atribulações da época messiânica (ou "as dores de parto
do Messias", hablé masiah), entre as quais "revelabitur filius
meus Jesus" ("o meu filho Jesus será revelado") (7, 28). Jesus é
uma interpolação cristã evidente; mas filius meus ("o meu filho")
pode pertencer ao texto judaico, uma vez que o Messias era
considerado "filho de Deus" segundo o SI 2,
7. O reino messiânico durará quatrocentos anos, depois dos quais o
Cristo e todos os homens morrerão e toda a terra voltará ao
silêncio primordial durante sete dias, depois dos quais terá lugar
o juízo final e o Altíssimo julgará segundo as obras de cada um
(7, 28-35), e serão poucos os que se salvam (7, 47.60.61), pois os
melhores serão sempre menos em quantidade que os piores (7, 51-58)
,6 . No 4Esdras 11, 1-12,
51, volta a aparecer a mesma ideia sobre "um resto de Israel para
gozar o tempo messiânico até que chegue o dia do juízo final,7. "O
ensino primordial da visão é a promessa de vitória que obterá o
Messias sobre a águia romana e a promessa de que um resto de
ísraelitas será salvo para participar no reino messiânico até que
venha o juízo final".
Os textos intertestamentários e, em parte, apocalípticos, de
Qumran, Enoc, Testamentos dos Doze Patriarcas e 4 de Esdras, sobre
a figura do Messias, só demonstram o mal-estar político, religioso
e social destes tempos e a resposta messiânica para a situação. O
povo esperava que Deus interviesse, através do seu Ungido - que
tanto é apelidado de Messias davídico e sacerdotal como de Eleito,
Justo e Filho do Homem -, para acabar com os maus e salvar o resto
de Israel, isto é, os seus eleitos, que passariam a governar este
mundo na paz e na justiça. A variedade de figuras e de modos
messiânicos tem a ver com este estado social. Como vimos - e é bom
repeti-lo , no lEnoc 48, 10, a pessoa do Ungido aparece juntamente
com a do "Senhor dos espíritos" ('Eles negaram o Senhor dos
espíritos e o seu Ungido"), mas em lQSam 2, 12 fala-se de Deus e
do Messias gerado por Deus, e em 40246, os fiéis qumranitas apelam
ao "Filho de Deus" e ao "Filho do Altíssimo.
Nos evangelhos sinópticos, a figura do "Filho do Homem" é a mais
usada - e apenas por Jesus - para simbolizar o Messias dojuízo e
da salvação. Mas esta personagem também aparece com sentido
messiânico no 1Enoc 48, 10 e 52, 4.
Concluindo, este ambiente de esperanças messiânicas, que, aqui e
além, se confundem com as escatológicas e apocalípticas, desaguam
na pessoa de Jesus e das comunidades cristãs primitivas e
concentram as várias manifestações messiânicas antigas e recentes
na única pessoa de Jesus e na comunidade messiânica e escatológica
dos cristãos. Tanto Jesus, como, sobretudo, os cristãos,
acreditavam que aqueles tempos seriam os finais - os escatológicos
e, para muitos, os apocalípticos. E diante desta variedade e
ambiguidade de doutrinas messiânicas, não admira que Jesus as
tratasse de maneira aberta e franca, através de vários registos
pessoais, e que os responsáveis judeus bem como os seus discípulos
e o público em geral o interpretassem também de diferentes modos e
maneiras (1).
(1) Como escreve Ben Witherington, Ibid. p.23: "It is also worth
bearing in mind lhat the Gospels, especially Mark, suggest that
Jesus'meaning was difficult to understand, that he was to some
extent an enigmatic, though not a completely incomprehensible,
figure."
(1) Tradução da anotação em inglês,por Marta Baptista: Também vale
a pena atentar em que os Evangelhos, especialmente Marcus, sugerem
que o significado de Jesus era difícil de compreender, que ele era
até certo ponto uma figura enigmática, mas não completamente
incompreensível.

1.2. DO TEMPO DA PROFECIA AO TEMPO DA APOCALíPTICA.
Na literatura e cultura actuais, a palavra apocalipse simboliza
tempos de caos, de destruição e de fim de mundo. Fala-se das
profecias apocalípticas de Nostradamus sempre associadas a
qualquer coisa de trágico como se apresentam filmes intitulados de
apocalipse para representarem as guerras do Vietname ou a
hecatombe final desta nossa humanidade.


12
Mas o apocalipse bíblico, com toda a sua literatura apocalíptica,
é outra coisa. A palavra apocalipse significa revelação e
revelação significa tirar o véu que encobre uma realidade ou uma
verdade. No nosso caso bíblico, a literatura apocalíptica do tempo
do império persa, helénico e romano, significa o abandono da
profecia clássica para um novo tipo de profecia. A literatura
apocalíptica continua a literatura profética, mas o ângulo de
visão religiosa e histórica é bem diferente.
Fundamentalmente, os apocalípticos judeus estabelecem um corte na
historicidade de Israel. Chegam a um ponto de desencanto total
perante a realidade histórica (cultural, social, política e
religiosa) em que vivem. Trata-se de homens crentes em Deus mas
descrentes dos homens que governam o mundo e Israel. Concluem que
Israel entrou num beco sem saída política diante do império persa,
grego e romano. A única saída será, então, a de Deus. Só Deus
poderá salvar Israel e restabelecer o novo Israel. Mas este novo
Israel, como o novo mundo histórico, nada tem a ver com o velho
mundo. O novo mundo será comandado directamente por Deus e não por
reis e sacerdotes. Para tanto, os apocalípticos esperam com
ansiedade o fim de um mundo e o começo de outro mundo. O velho
homem dará lugar ao homem novo completamente renovado na sua
natureza. Como é que tudo isso vai acontecer, os apocalípticos não
sabem; apenas sabem, pela fé, que isso vai acontecer e está para
muito breve. O tempo dos reis e dos profetas pertence ao passado e
o novo tempo dos Sumos Sacerdotes que governam o pequeno estado de
Judá, uma das muitas províncias do império persa, grego e romano,
também já não tem qualquer sentido. O novo messianismo não será o
da mediação davídica ou sacerdotal, mas o messianismo que se
confunde com a intervenção divina directa, sem qualquer mediação
histórica. Deus vai intervir e desvelar com essa intervenção o
sentido final da história, que passa, necessariamente, pelo
sentido final do novo Israel. O mundo de Deus, constituído pelo
próprio Deus e seus Anjos, vai entrar na liça final duma guerra
cósmico-divina que tudo transformará. Só os "santos de Deus" ou os
santos judeus é que se salvam. Todos os demais, desde os pagãos
aos maus judeus serão arrasados e, então, Deus governará o novo
mundo com os seus eleitos judeus. A literatura apocalíptica, neste
sentido, é uma literatura de militância e de emoção. O passado
histórico de Israel como o passado histórico de todas as nações
levam os apocalípticos a concluir que, muito brevemente, vai
terniinar um ciclo histórico e nascer outro completamente
diferente.
No AT é o livro de Daniel que melhor representa este estado de
coisas:
"No tempo destes reis, o Deus dos céus fará aparecer um reino que
jamais será destruído e cuja soberania nunca passará para outro
povo. Esmagará e aniquilará todos os outros, enquanto ele
subsistirá para sempre" (Dn 2, 44).
No capítulo sete de Daniel, o vidente - e no género literário
apocalíptico só temos videntes - vê quatro grandes animais a
saírem do grande mar, que é o símbolo de toda a maldade. São eles
o leão, que representa o império babilónico, o urso, que
representa o império dos medos, a pantera, que representa a
monarquia persa, e um quarto animal, "horroroso, aterrador, e de
uma força excepcional, com enormes dentes de ferro com os quais
devorava, depois fazia em pedaços e o resto calcava-o aos pés. Era
diferente dos animais anteriores, pois tinha dez chifres" (7, 7).
Este último animal só pode representar o império grego, e, muito
especialmente, o rei Antíoco IV Epifânio, que procurou acabar com
a religião judaica, classificado, logo a seguir, desta maneira:
"Quando eu contemplava os chifres, eis que surgiu do meio deles um
outro chifre mais pequeno. Para dar lugar a este chifre, três dos
primeiros foram arrancados. Este chifre tinha olhos como um homem
e uma boca que proferia palavras arrogantes" (7, 8). Este mesmo
chifre (Antíoco IV Epifânio) é descrito, mais adiante, de maneira
historicisante com estas palavras: "Proferirá insultos contra o
Altissimo, perseguirá os santos do Altíssimo. Pensará em mudar os
tempos sagrados e a religião. Os santos viverão sob a sua alçada,
apenas durante um determinado espaço de tempo. Mas o julgamento
continuará e tirar-lhe-ão o domínio, para o suprimir e aniquilar
definitivamente. A realeza, o império e a grandeza de todos os
reinos, situados sob os céus, serão então devolvidos ao povo dos
santos do Altíssimo. O seu reino é eterno e todas as soberanias
lhe prestarão preito de obediência" (7, 25-27). Estes quatro


13
animais são explicados pelo vidente (mas só depois de ter
apresentado a figura do Ancião, que simboliza o próprio Deus, e a
do Filho do Homem juntamente com os santos do Altissimo", que
representam os detentores da nova humanidade e soberania) desta
maneira: "Estes portentosos animais, que são em número de quatro,
são quatro reis que se levantarão da terra. Os santos do Altíssimo
são os que hão-de receber a realéza e guardá-la por toda a
eternidade" (7, 17-18). A velha humanidade e a velha história em
que se sucedem reis e impérios vai acabar para dar lugar à
soberania do Ancião e do Filho do Homem, confundindo-se este
último com os "santos do Altíssimo".
Como vemos, a literatura apocalíptica, a julgar por estes textos
de Daniel, é muito diferente da literatura dos profetas. O que
agora predomina são os símbolos. É uma literatura críptica,
comandada pelos visionários que tudo vêem a partir do Alto. A
literatura históríca onde se mistura o drama humano do bem e do
mal, a acção de Deus a premiar e a castigar, desaparece, para dar
lugar ao golpe final do drama humano: agora é Deus que, com os
seus anjos e os seus santos, determina as regras do jogo. Não há
mais lugar para a liberdade humana nem para a fé a dialogar com a
cultura e a política. Na nova religião dos apocalípticos não há
lugar para o pecado e desobediência a Deus. Estabelece-se um
dualismo radical entre o bem e o mal, que acaba pelo triunfo total
do bem com o esmagamento também total dos maus judeus e de todos
os pagãos.
No entanto, os apocalípticos também reconhecem que a sua doutrina
não é aceite pela maioria da comunidade judaica. Eles são uma
minoria, uma espécie de "seita" metidos no seu "gueto"
fundamentalista. Por isso, nunca dão a cara de maneira clara,
baptizando as suas obras através da pseudonímia, servindo-se, para
tal, do nome de figuras heróicas do passado, como é o caso
presente de Daniel e das figuras de Enoc, Esdras e Baruc. Estes
heróis dialogam com os anjos de Deus, geralmente com Miguel,
Gabriel e Satan, que os conduzem a viajar pelos céus, mostrando-
lhes as maravilhas de Deus como prenúncios da vitória final do
mesmo Deus sobre os maus da terra. A literatura clássica dos
profetas não necessita destes Anjos como intermediários, mas eles
aparecem sempre na literatura apocalíptica. Por isso é que os
videntes têm sempre visões ou sonhos esquisitos e estranhos,
depois explicados pelos anjOs, mas cuja explicação aparece muitas
vezes em forma de "segredo", isto é, apenas para um pequeno grupo
de eleitos e iniciados, e não para toda a humanidade ou para todo
o Israel, como era o caso dos profetas. Como é fácil de perceber,
nesta literatura apocalíptica não há lugar nem para a história nem
para a fé. O Deus dos apocalípticos não é o Emmanuel, o Deus-
connosco. Deus abandona a história e o mundo para se refugiar no
seu mundo celestial com os seus anjos e os seus eleitos.
Este fundamentalismo anti-histórico desencadeia ondas de oposição
no seio dos judeus que anseiam pelos velhos tempos dos profetas. É
o que se lê na afirmação do Rabbi Jonathan (séc. II d. C.) que
aparece no Talmud : "...desde a destruição do Templo, a profecia
foi arrancada aos profetas e dada aos loucos e às crianças" (T.
Baba Batra 12b). O autor refere-se com toda a certeza aos grupos
apocalípticos que surgiram depois do exilio da Babilónia. E, no
primeiro livro dos Macabeus, relata-se que os judeus, aquando da
purificação do Templo, depois da profanação de Antíoco IV
Epifânio, resolveram transportar as pedras do altar profanado
"para um lugar conveniente sobre a montanha do Templo, até que
víesse algum profeta verdadeiro e decidisse o que se lhes devia
fazer" (lMac 4, 46). Para estes judeus, a autoridade do profeta
era necessária para repor a vontade de Deus, pois era com os
profetas que Deus falava e não com os apocalípticos. Muitos judeus
viviam tristes pela falta de profetas no seio da sua comunidade e
pelo novo judaísmo dirigido pelos sacerdotes e baseado apenas na
Lei e nos ritualismos derivados da Lei e da Tradição.
Ainda dentro do judaísmo deste tempo pós-exilico, e também com o
fim de aclarar, mais e melhor, esta ambivalencia entre profetismo
clássico e apocalíptica, há que considerar o último dos profetas
bíblicos, Malaquias, que deve ser também do tempo de Esdras e
Necmlas, conjuntamente com Ageu e Zacarias. O mais importante
deste pequeno livro reside no seu terceiro e último capítulo, que
apresenta um


14
autêntico adeus ao profetismo clássico. Quem comanda na nova
dimensão da vontade de Deus não são os profetas mas os intérpretes
das Escrituras:
"Eis que eu vou enviar o meu mensageiro, a fim de que ele prepare
o caminho à minha frente. E imediatamente entrará no seu santuário
o Senhor que vós procurais e o mensageiro da aliança que vós
desejais. Ei-lo que chega! - diz o Senhor do universo. Quem
suportará o dia da sua chegada? Quem poderá resistir, quando ele
aparecer? ... E assim eles serão para o Senhor os que apresentam a
oferta legítima. Então, a oferta de Judá e de Jerusalém será
agradável ao Senhor como nos dias antigos, como nos anos de
outrora... Desde os dias dos vossos pais, afastastes-vos dos meus
preceitos e não os observastes....Foi no pagamento dos dízimos e
nas ofertas [que vos afastastes de mim]. ... E agora temos de
chamar ditosos aos arrogantes, pois eles fazem o mal e prosperam;
põem Deus à prova e ficam impunes.
Assim falavam uns com os outros, aqueles que temem o Senhor. Mas o
Senhor ouviu atento. Na sua presença foi escrito um livro de
memórias: 'Dos que temem o Senhor e prezam o seu nome.' Eles serão
meus, no dia em que agir - diz o Senhor do universo.... Então
vereis de novo a diferença entre o justo e o ímpio, entre quem
serve a Deus e quem não O serve... pois, eis que vem um dia
abrasador como uma fornalha. Todos os soberbos e todos os que
cometem a iniquidade serão como a palha; este dia que vai chegar
queimá-los-á - diz o Senhor do universo - e nada ficará deles: nem
raiz, nem ramos... Calcareis os pecadores, que serão como cinza
debaixo da planta de vossos pés, no dia que eu preparo - diz o
Senhor do universo... Eis que vou enviar-vos o profeta Elias,
antes que chegue o dia do Senhor, dia grande e terrível..."(3, 1-
23).
O centro teológico deste texto consiste no tema do dia do Senhor,
que aparece cinco vezes. Os judeus que só se interessam com os
seus negócios e vida fácil, não acreditam na verdade desse dia
abrasador e terrível. Por isso, não cumprem com as leis e
preceitos da religião estabelecida pela Torá mosaica e pelos
sacerdotes, seja em relação ao Templo, seja em relação ao amor ao
próximo. Mas tanto os temas do dia do Senhor como o dos preceitos
eram temas recorrentes nos profetas pré-exílicos. Os judeus que
quiserem receber a retribuição divina desse dia grande e terrível"
devem obedecer aos preceitos sacerdotais: pagar os dízimos, não
oprimir o operário, a viúva e o órfão, nem violar o direito do
estrangeiro (v. 5 c 10). Trata-se da moral religiosa tipicamente
judaica de todos os tempos, mas reforçada com os preceitos
sacerdotais dos tempos do pós-exilio.
Embora Malaquias seja o último profeta dos judeus, nada há de
apocalíptico no seu livro, a não ser o envio de Elias "antes que
chegue o dia do Senhor para converter o coração dos pais ao dos
filhos e o dos filhos ao dos pais" (v.24). Isto significa que os
escritos apocalípticos não apareceram logo a seguir aos primeiros
tempos depois do exílio, mas muito depois, quando as esperanças de
muitos judeus começaram a enfraquecer diante da política dos
impérios pagãos que se seguiram e dominavam os judeus.
A nova linha bíblica dos apocalípticos também aparece no Novo
Testamento. Basta ter em conta os apocalipses dos evangelhos
sinópticos (Mc 13, 5-37; Mt 24, 4-36; Lc 21, 8-36) e o Apocalipse
de João. Há muitos exegetas, hoje em dia, que se perguntam se
Jesus não teria uma consciência apocalíptica quando pregava a sua
doutrina fundamental sobre o Reino de Deus ou quando se
apresentava como o verdadeiro Filho do Homem, tanto mais que
semelhante título só se apresenta na boca do próprio Jesus. O
assunto é deveras importante e será objecto do nosso estudo.


15
2. OS JUDEUS E O IMPÉRIO GREGO
Tudo começou em 333 com o império de Alexandre Magno. O grande
homem imperou apenas dez anos. Quando morreu em 323, na Babilónia,
o império foi dividido em duas partes pelos seus generais, uma
parte no Egipto e outra na Síria. No Egipto governou a dinastia
dos LAGIDAS com a capital em Alexandria, e, na Síria, a dinastia
dos SELÊUCIDAS com a capital em Antioquia.
No Egipto governaram os Ptolomeus e na Síria os Antíocos. Como
existia uma díáspora muito grande de judeus em Alexandria e como o
grego e a civilização grega imperavam em Alexandria, os judeus,
nos sécs. III e II a.C., decidiram traduzir a Bíblia hebraica para
grego, chamada a tradução dos Setenta. Esta tradução teve a maior
importância porque os evangelistas e os responsáveis cristãos das
comunidades primitivas, a começar por S. Paulo, servem-se dela
para provar a tese messiânica de Jesus.
Nunca devemos esquecer que o Novo Testamento foi todo escrito em
grego. A cultura grega, que partia da língua e se centrava na
polis (cidade) tinha como infra-estruturas da mesma cultura o
Concelho (a boule) da cidade, o seu Gymnasium, onde os jovens eram
iniciados na mesma cultura, a Academia, onde ensinavam os
filósofos e eram educados os políticos, o Stadium, onde se
desenrolavam os desportos masculinos, e, finalmente, o Teatro,
onde tinham lugar as representações épicas e trágicas dos grandes
autores gregos. Necessariamente, esta cultura grega chocava com a
cultura judaica baseada na religião de um único Deus e não na
lógica e na filosofia gregas, de mãos dadas com os mitos
politeístas tipicamente gregos e com toda a espécie de sincretismo
religioso.

16
Foi este sincretismo da religião grega que levou os judeus a
contínuas tensões e algumas guerras. Uma vez que os judeus viviam
numa terra cheia de ídolos temiam que o seu Deus os amaldiçoasse.
Mas neste assunto, como em tudo o mais, havia judeus que pactuavam
com a cultura grega e que viviam a sua religião sem qualquer
fricção ou atrito e havia outros que defendiam fanaticamente a
condenação de qualquer cultura pagã no meio da sua terra "santa".
Para os gregos não havia qualquer problema em cultuarem os seus
deuses juntamente com os deuses egípcios, mesopotâmicos, persas,
etc. Por isso, olhavam para a religião judaica com o seu único
Deus como se esse único Deus fosse uma espécie de Zeus
omnipotente, pai de todos os deuses, sempre pronto a abençoar o
seu povo. Só não entendiam como é que uma tal religião não tinha
qualquer imagem do seu Deus. Foi esta a razão de Pompeu, ao entrar
em Jerusalém e no seu Templo, julgar a religião judaica como uma
religião menor e sem sentido porque não encontrou qualquer imagem
no Templo. Se não havia imagem a quem é que os sacerdotes
ofereciam incenso e sacrificios? E foi por causa desta atitude de
Pompeu que os judeus se puseram do lado de Júlio César na sua luta
política contra Pompeu. Mesmo assim, os judeus que viviam nas
cidades helénicas não abdicavam dos seus direitos de cidadãos
helénicos, mas rejeitavam os ritos civis que se confundiam com os
ritos religiosos, uma vez que direitos civis e ritos civis faziam
uma só coisa, pois tudo o que era desporto, arte, festas, etc.
tinha a ver com o culto aos deuses. Foi por esta razão que na
guerra religiosa de 115-117 P. C., no tempo do imperador Trajano,
milhares de judeus do Egipto, África do Norte, Creta e Chipre
foram mortos. O mesmo se diga da guerra dos zelotas entre 66-70 p.
C.
Mas a camada intelectual dos judeus, mormente no Egipto e na
grande cidade de Alexandria, convivia em harmonia com os gregos.
Basta olhar o exemplo do grande filósofo e crente judeu, Filão de
Alexandria, que viveu entre 20 e 50 p. C. e tentou helenizar as
Sagradas Escrituras, através do método alegórico para conquistar
as boas vontades dos intelectuais gregos. Interpretava a verdade
bíblica do homem como "imagem de Deus" (Gn 1, 27) explícando que a
palavra imagem significava mente / entendimento / espírito, ou que
as leis de Moisés se deviam entender como virtudes para o bem da
polis e da sociedade (cf. Acerca da criação do mundo 69; Sobre as
virtudes 119-120).
o livro do Ben Sirac ou Eclesiástico é bem sintomático deste
ambiente e cultura. Foi escrito por volta de 200 a. C. e o seu
autor era um sacerdote de Jerusalém. Viveu, portanto, nos
principios do reinado dos Selêucidas sobre Israel. A maneira como
apresenta a vida de piedade religiosa dos judeus do seu tempo, que
obedeciam @às leis rituais e cultuais dos sacerdotes, das ofertas
e orações no Templo, da figura do sumo Sacerdote Simão o Justo,
leva-nos a concluir que os judeus estavam habituados a esta vida
de mãos dadas com o helenismo, mas sem qualquer atrito e
dificuldade. Havia respeito de parte a parte.
A Palestina pertencia ao princípio aos Ptolomeus, mas, em 223-200
a.C., Antíoco III venceu os Ptolomeus e a Palestina ficou a
pertencer aos Selêucidas da Síria, que tentaram helenizar pouco a
pouco o povo judeu e servirem-se, de tempos a tempos, do tesouro
do Templo de Jerusalém. Ficou célebre na história a tentativa do
general Heliodoro, filho de Seleuco IV, tentar saquear o tesouro
do Templo de Jerusalém. Contudo, na generalidade, como acabámos de
ver, existia uma certa pacificação entre judeus e helénicos.
As dificuldades começaram a aparecer no reinado de Antíoco IV
Epifânio, que reinou entre 175-164 a.C. A si mesmo se intitulou de
Epifânio ou Epífanes, que significa, só por si, a manifestação de
Deus na terra. Numa palavra, ele divinizou-se a si mesmo e queria
ser tratado como uma incarnação divina. E como os judeus não
podiam com semelhante megalomania, pois ia contra o monoteísmo
judaico, o rei determinou que a língua aramaica fosse abolida e a
grega fosse obrigatória, determinou a abolição da circuncisão e a
abolição da religião judaica, determinou que acabasse o culto
judaico no Templo de Jerusalém e se colocasse no altar do Templo
uma estátua de Zeus, estátua essa que, na tradição judaica, passa
por ser a abominação da desolação (Dn 11, 31; 12, 11; Mc 13, 14).
Colocou uma guarnição militar síria numa fortaleza, chamada Akra,
na cidade de Jerusalém, para poder controlar todas as
manifestações hostis dos judeus. Por tudo isto, ao epónimo

17
Epifânio = Antíoco, o divino, os judeus chamavam-lhe Epimanes
Antíoco, o maluco.
É muito possível que a ideia inicial de Antíoco fosse a melhor,
isto é, dar um estatuto de polis à cidade de Jerusalém e, com
isso, criar condições de melhorar a vida dos judeus através do
comércio aberto com as outras polis, e estabelecer, ao mesmo
tempo, a cultura grega através da língua, literatura, teatro, etc.
Para que tal acontecesse havia que acabar com a língua aramaica e
com a religião específica dos judeus. Quem recusasse era morto.
Semelhante estado de coisas vai suscitar a revolta da familia dos
Macabeus e originar o livro de Daniel, de tipo apocalíptico, que,
duma maneira críptica, utiliza figuras de reis da Babilónia do
séc. VI a. C. para descrever o papel dos governantes sírios,
inimigos de Deus, sobretudo o papel de Antíoco Epifânio.
Em 167 a.C. começou, então, a revolta dos Macabeus, dirigida pelo
patriarca Matatias, que era sacerdote, e foi continuada por um
período de 35 anos pelos seus filhos Johanan, Eleazar, Judas,
Jónatas e Simão. A certa altura, o patriarca Matatias entregou a
chefia da guerrilha ao seu filho Judas, que tinha como alcunha o
macabeu, que significa martelo, devido à sua força e estratégia na
guerrilha contra as tropas do rei. Pouco a pouco, Judas Macabeu
foi derrotando as tropas do rei Antíoco, servindo-se sempre do
sistema da guerrilha, e, ao mesmo tempo, desenvolvendo uma
actividade diplomática a seu favor com Roma e com Esparta. A esta
familia juntou-se um grande número de apaniguados chamados
Chasideus ou "Piedosos".
Devemos juntar também um facto importante que tem a ver com o
descanso sabático. Uma vez que as tropas do rei atacavam sobretudo
ao sábado, Judas determinou combater também ao sábado para poderem
salvar as suas vidas (lMc 2, 40-41: "E disseram uns aos outros:
Se todos agirmos como os nossos irmãos, não combatendo contra os
estrangeiros para salvarmos as nossas vidas e as nossas leis,
depressa nos exterminarão da face da terra. Tomaram, pois, naquele
dia, esta resolução: Se alguém nos atacar em dia de sábado,
combateremos contra eles e não nos deixaremos matar a todos, como
fizeram os nossos irmãos, nos seus esconderijos).
A política dos Macabeus acabou por agradar a Roma e por vencer, em
164, o rei Antíoco V Eupator, seguindo-se a purificação e
dedicação do Templo de Jerusalém com a respectiva festa chamada
Hallukkah, que ainda hoje é celebrada pelos judeus. A guarnição
militar de Akra é vencida em 141 e os judeus readquirem a sua
liberdade política e religiosa, que subsiste até à tomada de
Jerusalém pelo romano Pompeu no ano 63 a.C. Os judeus pediram a
ajuda dos romanos, que reconheceram a sua independência, mas, mais
tarde, subjugaram-nos ao seu grande império.
Com o desaparecimento dos filhos de Matatias Macabeu terminou uma
dinastia e surgiu uma nova dinastia, a dos Asmoneus. Realmente,
Matatias pertencia à família dos Asmoneus e quando a guerra acabou
duas famílias disputaram o poder: a dos Asmoneus e a dos Tobíades.
Simão Macabeu, o único sobrevivente dos cinco filhos de Matatias
derrotou os Tobíades, começou a cunhar moeda e auto proclamou-se
Sumo Sacerdote e Nasi, isto é, príncipe.
A vitória dos Macabeus teve consequências políticas e religiosas
que vão determinar uma nova fase dentro do judaísmo, que perdurará
até ao ano 70 d. C. com a queda final de Jerusalém pelos romanos.
Uma das consequências reside no facto de Simão Macabeu se auto
proclamar rei e sumo Sacerdote, acabando, assim, com o sacerdócio
sadoquita estabelecido por David. Por causa disto é que surgiram
os religiosos de Qumrân, para reporem o sacerdócio sadoquita no
templo de Jerusalém. De igual modo, nenhum fariseu aceitava
semelhante situação. Os Asmoneus permaneceram como Sumos
Sacerdotes até ao tempo dos romanos, e, por isso, o sumo
sacerdócio foi-se degradando cada vez mais, de tal modo que, no
tempo dos romanos, o sumo sacerdócio até era comprado aos romanos
pela aristocracia das familias sacerdotais - geralmente saduceus -
conforme a lei da compra e da oferta.

18
Herodes e, depois, os romanos detinham as vestes dos sumos
sacerdotes no palácio real e os mesmos sumos sacerdotes submetiam-
se às autoridades pagãs para receberem as suas vestes.
Outra consequência tem a ver com o cânone das Escrituras
Hebraicas. O último livro sagrado é o de Daniel cujo conteúdo de
género apocalíptico descreve os tempos difíceis dos judeus na sua
luta contra Antíoco Epifânio. Os reis babilónicos e persas,
perseguidores dos judeus, aí nomeados, não são mais do que figuras
retóricas e crípticas para simbolizarem o rei Antíoco.
João Hircano I (134-104 a.C.), que era filho de Simão Macabeu,
mandou destruir o santuário dos samaritanos no monte Garizim, o
que acicatou ainda mais os velhos ódios entre judeus e
samaritanos. O seu filho Aristóbulo (104-103) recebeu o título de
rei e esta mistura de rei e de sumo sacerdócio vai durar 45 anos e
ser causa de mal entendidos entre os políticos judeus e os
religiosos judeus. Foi, a partir deste estado de coisas, que se
formaram os saduceus, os fariseus e os essénios, que vamos
encontrar, mais tarde, no tempo de Jesus.
O rei Alexandre Janeu, que governou entre 103-76 a.C., conseguiu,
através de várias guerras, aumentar as suas fronteiras, mas sofreu
a oposição dos "religiosos", os tais chassideus, que mandou matar
aos milhares. O mesmo fez a sua mulher Salomé Alexandra,
entretanto viúva e que governou entre 76-69. Os seus dois filhos,
Hircano II e Aristóbulo II, entraram na política da guerra
familiar, suja e fratricida, que levou a uma certa anarquia, e foi
por isso que apareceu Roma para impor a ordem e enviou o seu
general Pompeu, que arrasou tudo o que era contra a ordem, segundo
os parâmetros romanos, a começar pela destruição do mosteiro de
Qumran, onde viviam os monges essénios, subindo depois para
Jerusalém, onde entrou triunfalmente no ano 63 a.C. Para marcar
bem a sua entrada e a sujeição da Palestina a Roma, entrou também
no Templo com as suas tropas, o que era um crime de blasfémia
contra Deus e o seu Templo. A partir de então, os romanos tomaram
conta da política da Palestina.

3. OS JUDEUS E O IMPÉRIO ROMANO
E foi assim que entrou em cena o rei Herodes, o Grande, filho do
idumeu Antipater II. Este Antipater II começou por ser conselheiro
do rei Hircano e tornou-se procurador da Palestina devido aos bons
serviços de Júlio César. O seu filho Herodes tornou-se um político
muito arguto e megalómano, variando de política segundo as
circunstâncias. Com o assassinato do imperador César, no ano 44 a.
C., passou-se para os novos donos do Império romano jogando na
balança entre Octávio e Marco António. No ano 43 a.C., o pai
Antipater é morto por envenenamento. Em 37 a. C. torna-se rei
efectivo da Judeia e, mais tarde, recebe os territórios da
Traconítede, Bataneia, Auranítide e Paneias.
Como Herodes era apenas um meio judeu, pois descendia de Idumeus,
casou-se com Mariamme I, neta de Aristóbulo e de Hircano
II, para agradar aos judeus, mas o seu coração estava com Roma e
com a cultura grega. E como era um político megalómano construiu
grandes cidades, palácios e fortalezas, baptizando algumas delas
com nomes dos imperadores romanos. Assim, reconstrói Samaria,
baptizando-a de Sebaste, que significa "Augusto" em honra do
imperador, constrói a cidade de Cesareia Marítima, com o nome de
César, para agradar a César, a torre "Antónia" em Jerusalém para
agradar a Marco António. Para poder resistir aos seus inimigos
constrói as fortalezas de Antipatris, de Fasaclis, do Maqueronte,
esta última na Transjordânia, onde, mais tarde, foi martirizado
S.João Baptista, o Herodium, perto de Belém, onde vai ser
sepultado, a fortaleza de Massadá, em pleno deserto de Judá, para
onde fogem os últimos resistentes zelotas aquando da tomada de
Jerusalém no ano 70 d.C. pelas tropas de Tito. Constrói o palácio
real de Jerusalém, na parte alta da cidade, cujas ruínas ainda
hoje se podem admirar e, sobretudo, reconstruiu o Templo de
Jerusalém

19
para agradar aos judeus, de cujos restos apenas podemos contemplar
e apreciar o muro das lamentações.
Como Herodes "tinha a mania da perseguição", mandava matar todas
as pessoas que pensava que lhe pudessem fazer sombra. Assim
acontece, com a mulher que mais amava, Mariamme I, a tal judia,
neta de Hircano II e Aristóbulo II no ano 29 a.C., com dois dos
seus filhos, Alexandre e Aristóbulo, e com alguns dos sobrinhos.
No ano IV a. C., pressentindo a morte, manda matar o seu filho
primogénito Antipater e deixa o testamento a favor dos seus dois
filhos Arquelau e Herodes Antipas, que eram filhos da sua mulher
Malthace, samaritana, e de seu filho Filípe.
E foi com este pano de fundo de mortes e crueldades, que o
evangelista S. Mateus constrói a história "lendária" da matança
dos inocentes, de que mais tarde iremos falar.
Depois do assassinato de Júlio César no ano 44 a. C., o império
romano é governado por Octaviano e Marco António. Octaviano vence
Marco António e é nomeado "Augusto" no ano 27 a.C. Estabelece a
pax romana e desfaz-se de todos os inimigos que queríam fazer
perigar semelhante paz. Foi descoberta em Halicarnasso uma
inscrição onde Augusto é nomeado "salvador do mundo". Em Roma foi-
lhe dedicado o altar da paz, onde se comemoram todos os seus
feitos e a sua política religiosa de homem divino.
A esta cultura de divindade pagã respondem os evangelhos e a fé
cristã que só Jesus é o Salvador, o Homem Divino, a Verdade final
de Deus. Semelhante atitude de fé vai revolucionar toda a cultura
e história ocidental depois de Constantino.

4. A GEOGRAFIA DE ISRAEL NO TEMPO DE JESUS
O mapa da Palestina, no tempo de Jesus - tal como se apresenta
também hoje em dia -, divide a terra de Jesus em duas partes bem
distintas, através do rio Jordão. Por isso, se chamavam a
Cisjordânia e a Transjordânia.
Vamos apresentar alguns textos evangélicos para vermos como Jesus
se movimentava tanto na Cisjordânia como na Transjordânia. Lemos
por exemplo em Jo 4, 25-26: "Então levantou-se uma discussão entre
os discípulos de João e um judeu, acerca dos ritos de purificação.
Foram ter com João e disseram-lhe: 'Rabi, aquele que estava
contigo na margem de além-Jordão (Transjordânia), aquele de quem
deste testemunho, está a baptizar, e toda a gente vai ter com
Ele."' Ou então em Mc 5, 1-2: "Chegaram à outra margem do mar
(Transjordânia), à região dos gerasenos. Logo que Jesus desceu da
barca, veio ao seu encontro, saído dos túmulos, um homem possesso
de um espírito maligno". Em Mc 7, 24-26: "Partindo dali, Jesus foi
para a região de Tiro e de Sidon. Entrou numa casa e não queria
que ninguém o soubesse, mas não pôde passar despercebido, porque
logo uma mulher que tinha uma filha possessa de um espírito
maligno, ouvindo falar dele, veio lançar-se a seus pés. Era pagã,
siro-fenícia de origem, e pedia-lhe que expulsasse da filha o
demónio". Em Jo 7, 33-36: "Entretanto, Jesus começou a dizer: 'Já
pouco tempo vou ficar convosco, pois irei para aquele que me
enviou. Haveis de procurar-me, mas não me encontrareis, e não
podereis ir para o lugar onde eu estiver. Os judeus por isso
disseram entre si: Para onde tenciona ele ir, que não o possamos
encontrar? Tenciona ir até aos que estão dispersos entre os gregos
para pregar aos gregos? Que significam estas palavras que ele
disse? ...

20
Neste caso, a terra dos gregos era a chamada decápole (isto é,
terra das dez cidades não judaicas), que se situava no norte da
Transjordânia. Foi incorporada no reino da Judeia por Alexandre
Janeu. Pompeu separou-a em 63 a. C, e deu-lhe autonomia debaixo da
tutela do governador da Síria, com o fim de fortalecer a cultura
grega contra a cultura hebraica. Estas cidades formavam uma liga e
tinham uma administração própria. Eram elas: Damas, Filadélfia,
Chitópolis, Gadara, Hippos, Dion, Pella, Gerasa, Kenatá e Abilá.
Estejamos agora atentos a alguns textos dos evangelhos sinópticos
sobre a geografia da Cisjordânia, pois foi sobretudo aí que Jesus
passou a maior parte da sua vida pública.
Uma vez que os evangelhos são narrativas históricas, também os
espaços geográficos são, realmente, muito importantes porque
determinam tanto o tempo como o espaço, e é através desse tempo e
desse espaço que melhor se compreendem as pessoas que os preenchem
- no caso concreto a pessoa de Jesus, seus discípulos, seus
amigos, o povo duma maneira geral e também os seus inimigos.
Peguemos sobretudo no evangelho de Marcos, por se tratar do
primeiro a ser escrito, aquele que apresenta a pessoa histórica de
Jesus duma maneira mais pura, isto é, sem as cristologias
desenvolvidas de Mateus, Lucas e João.
Marcos começa por apresentar a geografia de João Baptista ligada
ao seu baptismo no rio Jordão. Trata-se do rio Jordão na sua
passagem pela Judeia e não pela Galileia, como se pode ler em Mc
1, 9: "Por aqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi
baptizado por João no rio Jordão".
O texto também refere a vida penitente e profética de João
Baptista no deserto (Mc 1, 4), e o deserto só podia significar o
deserto da Judeia.
É o mesmo Marcos que refere as tentações de Jesus no deserto
durante quarenta dias (Mc 1, 12-13).
Depois de João Baptista ter sido preso, Marcos fala da tal vida
pública de Jesus na Galileia, sempre à volta da cidade de
Cafarnaum e outras pequenas cidades e lugarejos ribeirinhos ao
lago ou mar da Galileia, apenas com as seguintes excepções: uma
ida a Gerasa, como já vimos (Mc 5, 1-20), onde cura o demoníaco
epiléptico, uma outra saída à sua cidade de Nazaré (6, 1), onde é
incompreendido pelos seus concidadãos, que lhe dizem: "Não é ele o
carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas
e de Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?" (6, 3), uma
ida a Tiro e Sídon, na vizinha Síria (7, 21), onde cura a filha
duma mulher pagã, como também já vimos, uma ida a Cesareia de
Filipe, no extremo norte da Palestina (8, 27), onde Pedro faz a
sua confissão de fé em Jesus como Messias, mais uma ida à
Transjordânia, onde Jesus discute o problema do divórcio (10, 1-
12), e, finalmente, a ida definitiva de Jesus para Jerusalém com
esta abertura muito significativa em 10, 32: "Iam a caminho,
subindo para Jerusalém, e Jesus seguia à frente deles. Estavam
assombrados e seguiam-no temerosos".
É importante que reparemos em três afirmações neste pequeno texto.
Primeira afirmação: "subiam para Jerusalém". O facto de Jerusalém
se situar a 800 metros acima do nível do mar, faz com que quase
todos os relatos usem o verbo "subir". Até acontece que há alguns
Salmos chamados Salmos ascendentes ou Salmos de peregrinação por
narrarem a subida dos crentes judeus ao Templo de Jerusalém. Damos
o exemplo do SI 24, que é um cântico processional, lendo-se no
versículo 3: "Quem poderá subir à montanha do Senhor?" e o do SI
122, 4: "Para lá sobem as tribos, as tribos do Senhor". Segunda
afirmação: "JesUs seguia à frente deles", o que significa que
Jesus é o Mestre, sem medo, que toma a dianteira, enquanto os
discípulos vão atrás e "temerosos", o que aparece de modo mais
claro na terceira afirmação: "Estavam assombrados e seguiam-no
temerosos". Isto quer dizer que os discípulos não concordavam com
a deslocação do Mestre a Jerusalém,

21
pois bem sabiam que os seus grandes in'migos se encontravam lá e
não percebiam como é que o Mestre se ia "meter na boca do lobo".
No lugar paralelo de S. Lucas, o evangelista ainda é mais preciso.
Lemos em Lc 9, 51: "Como estavam a chegar os dias de ser levado
deste mundo, Jesus dirigiu-se resolutamente para Jerusalém".
Literalmente, o texto reza assim: "Como se estivessem a cumprir os
dias da sua assunção, [Jesus] endureceu o seu rosto para ir para
Jerusalém". A expressão "endurecer o rosto" significa tomar uma
resolução firme. Ele tomou, portanto, a resolução de deixar a
Galileia, onde se sentia seguro e em paz, uma vez que o Sinédrio
judaico de Jerusalém não tinha jurisdição sobre os judeus
galileus, e seguir resolutamente para Jerusalém e enfrentar o seu
destino. E é interessante repararmos que Lucas narra esta subida
de Jesus desde a Galileia para Jerusalém ao longo de dez capítulos
(de 9, 51-19, 27), ao contrário de Marcos e Mateus que usam apenas
alguns versículos.
O resto do evangelho continua a narrativa da subida de Jesus para
Jerusalém, passando por Jericó, onde cura o cego Bartimeu (11, 46-
52), por Betfagé e Betânia (devia ser ao contrário, primeiro
Betânia e só depois Betfagé (11, 1).
Uma vez em Jerusalém, Jesus tem a sua entrada triunfal (11, 1-11),
purifica o templo (11, 15-19), apresenta a parábola dos
vinhateiros homicidas (12, 1-12), a doutrina sobre o tributo a
César (12, 13-17), o discurso escatológico (13), vive a ceia
pascal com os discípulos e institui a Eucaristia (14, 12-25),
seguindo-se depois a negação de Pedro, a oração de Jesus no
Getsémani, a prisão de Jesus, a apresentação de Jesus no tribunal
judaico e no tribunal romano, a Paixão, a Morte no monte Gólgota e
a respectiva sepultura.
Esta listagem em que se misturam os dados geográficos com os dados
vivenciais de Jesus com doentes, discípulos, amigos e inimigos, é
deveras importante, porque situam a vida de um homem - a de Jesus
- numa geografia, num tempo e num espaço bem conhecidos e bem
comprovados.
Tudo Isto tem a ver com a verdade do Jesus da história. É uma
história que não foi Inventada, mas foi real e, para o provar, aí
está a geografia da Palestina do seu tempo.
Continuando o nosso estudo sobre a geografia física e humana de
Jesus, detenhamo-nos um pouco na geografia de Jesus apenas na
Galileia, centrada na cidadezinha de Cafarnaum e arredores, sempre
junto ao mar ou ao lago da Galileia.
Marcos, depois de narrar o baptismo de Jesus e a tentação na Ju
deia, escreve assim em 1, 14-15: "Depois de João ter sido preso,
Jesus foi para a Galileia, e proclamava o evangelho de Deus,
dizendo: 'Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo:
arrependei-vos, acreditai no Evangelho."
É, portanto, na Galileia e, mais precisamente, em Cafarnaum e
arredores, que se vão passar "os três" anos da vida pública de
Jesus. Vale por isso a pena estarmos atentos à maneira como Marcos
apresenta as deslocações de Jesus no seu evangelho, que
correspondem mais ou menos às mesmas deslocações em Mateus e
Lucas.
Logo a seguir, em 1, 16, para narrar o chamamento dos primeiros
quatro discípulos, escreve: "Passando ao longo do mar da Galileia
vi Simão e André, seu irmão ... e disse-lhes: "Vinde comigo, e
farei de vós pescadores de homens"'. Um pouco mais adiante, em 1,
21, escreve "Entraram em Cafarnaum... Chegando o sábado foi à
sinagoga de Cafarnaum e ensinava a doutrina do Reino de Deus, de
modo que todos se maravilhavam pela doutrina e pelos milagres". Um
pouco mais adi ante, em 1, 29, escreve: "Saindo da sinagoga, foram
para a casa de Simão e André, onde Jesus curou a sogra de Simão
Pedro." Um pouco mais adiante, escreve em 1, 35: "De madrugada,
ainda escuro, levantou-se e saiu para ir orar num lugar solitário.
Mas os discípulos vieram ter com ele e disseram-lhe: Todos te
procuram, ao que ele lhes respondeu: Vamos para outra parte, para
as aldeias vizinhas, a fim de pregar aí, pois foi para isso que eu
vim". Um pouco mais adiante, em 2, 1

22
escreve o evangelista: "Dias depois, tendo Jesus voltado a
Cafàrnaum, ouviu-se dizer que Jesus estava em casa. Curou naquela
ocasião um paralítico e perdoou-lhe os pecados. Por causa disto
mesmo, deu-se a primeira controvérsia porque os doutores da Lei,
que estavam presentes, pensavam, lá para si, que Jesus estava a
blasfemar uma vez que só Deus e mais ninguém é que pode perdoar os
pecados. Um pouco mais adiante, em 2, 13, escreve Marcos: "Jesus
saiu de novo para a beira mar. Viu o publicano Levi no seu
escritório de finanças e chamou-o para seu discípulo. Mais tarde,
ceou com ele e outros publicanos, de modo que surge a segunda
controvérsia com os doutores da Lei que diziam: "Por que é que ele
come com cobradores de impostos e pecadores?", ao que Jesus
responde: "Eu não vim chamar os justos mas os pecadores." Um pouco
mais adiante, em 2, 23, escreve o evangelista: "Ora num dia de
sábado, indo Jesus através das searas, os discípulos puseram-se a
colher espigas e a comê-las..." Os fariseus ficaram todos
escandalizados, e levantou-se a terceira controvérsia por causa de
colherem espigas em dia de sábado, mas Jesus, depois de um breve
diálogo, termina por proclamar que ele como "Filho do Homem até do
sábado é senhor." Logo a seguir, em 3, 1, escreve Marcos:
"Novamente entrou na sinagoga". Curou lá um homem com uma mão
paralizada, e levantou-se a quarta controvérsia por causa de mais
uma cura em dia de sábado. Logo a seguir, em 3, 7, Marcos volta a
escrever: "Jesus retirou-se para o mar com os discípulos" e curou
todos os que sofriam de enfermidades. Logo a seguir, em 3, 13,
escreve Marcos: "Jesus subiu a um monte" e escolheu os doze
discípulos. Depois disto, continua a narrativa de Marcos em 3, 20:
"Tendo Jesus chegado a casa... "
O interessante de todas estas pequenas narrativas é que todas
estão enquadradas por um parâmetro geográfico, seja de geografia
fisica, seja de geografia humana. Recordemos, uma vez mais, as
afirmações: Jesus saiu ... Jesus entrou ... Jesus entrou na
sinagoga ... em casa ... Jesus subiu... Jesus voltou ... de
madrugada, ainda escuro ... Jesus levantou-se ... passando ao
longo do mar da Galileia. Sem este espaço geográfico e humano,
Jesus nada diz e nada faz. E o que ele diz e faz é novidade para
os judeus. As narrativas de controvérsias têm a ver com dados
doutrinais: Jesus cura doentes físicos e psíquicos, perdoa
pecados, é senhor do sábado, apelidado pelos demónios de "Santo de
Deus", ensina de modo totalmente diferente do dos fariseus e
doutores da Lei. O importante de tudo isto - tornemos a dizê-lo -
é que a geografia física e humana fazem um todo com a doutrina
revolucionária de Jesus, e esta doutrina não consiste apenas em
pregação académica à volta da Lei de Moisés e tradições judaicas,
como faziam os doutores da Lei, mas consiste numa acção directa
sobre os doentes e numa declaração solene sobre as instituições
sagradas dos judeus, sobretudo o sábado.
Por tudo isto, temos que concluir que Jesus veio trazer uma outra
maneira de ver as coisas. A humanidade nova é a humanidade sem
sofrimento, sem pecados, sem a alienação religiosa. É a humanidade
que tem como primazia a pessoa, a vida e o amor.
O que acabamos de descrever refere-se apenas aos três primeiros
capítulos de Marcos. Mas o mesmo estilo de narração continua por
todo o evangelho, e, bem assim, em Lucas e Mateus.
Em Mc 4, 1 lemos: "De novo começou a ensinar à beira mar...". Em
Mc 5, 35: "Naquele dia, ao entardecer...". Em Mc 5, 1: "Chegaram à
outra margem do mar, à região dos gerasenos...". Em Mc 5, 21:
"Depois de Jesus ter atravessado, na barca, para a outra
margem..." Em Mc 6, 1: "E partiu dali. Foi para a sua terra [de
Nazaré], e os discípulos seguiam-no." Em Mc 6, 6: "E Jesus
percorria as aldeias vizinhas a ensinar...". Em Mc 6, 35: "A hora
já ia muito adiantada, quando os discípulos se aproximaram e
disseram..."
A conclusão é sempre a mesma: os evangelhos são narrativas
históricas em que a geografia física e humana fazem um todo e
estão em função da doutrina do evangelho. Jesus não é um Rabbi
metido dentro de casa ou metido na sinagoga a ensinar a doutrina
de Moisés. Ele caminha pelas estradas poeirentas da sua terra,
entra nas sinagogas, na casa das pessoas, come com justos e
pecadores, passeia junto ao lago, entra no barco, passa duma
margem à outra, sai de manhãzinha para orar em lugares solitários.
Mas

23
não viaja ou passeia simplesmente pelo prazer de viajar, nem come
simplesmente pelo prazer de estar com amigos e pecadores. Toda a
geografia fisica e humana estão em função da verdade maior que é o
evangelho da libertação, do perdão e do amor. Isto não significa,
porém, que todas as palavras e actos de Jesus estejam devidamente
assinalados num tempo e espaço completamente enquadrados. Quando
estendermos a "questão sinóptica", dar-nos-emos conta disto mesmo.
O tempo e o espaço, nas narrativas evangélicas, funcionam como
parâmetros da vida de um homem histórico, mas não como parâmetros
de uma biografia.

5. OS GRUPOS RELIGIOSOS DE ISRAEL
Vimos até aqui a pessoa de Jesus situado na geografia da
Palestina. A partir de agora, vamos estudar a pessoa do mesmo
Jesus através dos vários grupos religiosos daquele tempo.
Ao lermos os evangelhos deparamos continuamente com os grupos
religiosos dos judeus com os quais Jesus entra em conflito. Entre
eles sobressaem os fariseus, os saduceus e os escribas, mas é
preciso contarmos também com os essénios, herodianos, baptistas e
zelotas. Vamos estudar sobretudo os três primeiros grupos, por
serem os mais importantes, procurando entremear a história com
alguns textos evangélicos, geralmente de confronto e polémica e,
assim, pela lei dos contrastes, perceberemos melhor a pessoa de
Jesus.
5.1. OS FARISEUS
A nossa palavra fariseu depende do hebraico parash, que tanto
significa "separar" como "explicar".
A semântica que está por detrás do verbo separar tem a ver com o
rigor da sua disciplina moral, geralmente à volta do que era puro
e impuro, e que os separava do resto do povo. Eles eram os
"santos", os "separados", os "justos". Jesus responde-lhes em Mc
2, 17: "Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim
os enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores".
Foi devido a esta maneira de ser, que separava os fariseus do
resto do povo, tornando-os uma espécie de seita, muito radical e,
por vezes, fundamenta lista, que criticavam, por isso mesmo, a
aristocracia judaica que se dava bem com judeus e pagãos, que João
Hircano e Alexandre

24
Janeu os perseguiram de maneira cruel, martirizando muitos deles.
Esta questão dos reis João Hircano e Alexandre Janeu (que
apresentámos no nosso primeiro capítulo contra os fariseus do seu
tempo só se entende no contexto histórico precedente.
A partir do ano 63, com a entrada de Pompeu na Palestina e a
influência romana, os fariseus foram perdendo a sua importância.
Herodes Magno, ao princípio, não os enfrentou de maneira directa,
porque eles eram amados pelo povo, e havia muitos homens e
mulheres na corte de Herodes e até no seu harém que admiravam os
fariseus. Mas Herodes Magno, um pouco mais tarde, obrigou-os a
serem-lhe fiéis e ao imperador Augusto. Perante a desobediência de
muitos deles a tal imposição (um historiador judeu do século 1 d.
C. fala de 6.000 que se negaram a prestar semelhante fidelidade)
mandou matar muitos fariseus. E foi assim que os fariseus perderam
bastante da sua autoridade moral e política junto do povo e os
saduceus aproveitaram-se desta situação para subirem na
consideração de Herodes e da camada mais rica dos judeus. Só
depois do ano 70, após a derrocada de Jerusalém, e terminado o
poder dos saduceus e dos sacerdotes, é que os fariseus voltaram a
dominar o mundo judaico e a salvar Israel de perder a sua
identidade religiosa. Isto aconteceu sobretudo com o sínodo de
Jabne (ou lamnia), ao norte de Jerusalém, por volta do ano 75 d.C.
Mas, não obstante todas estas peripécias históricas, devido à
lealdade dos fariseus para com a Lei e tradições, devido ao seu
radicalismo e até fundamentalismo, os fariseus continuavam a ser
amados e admirados pela gente simples e humilde. Eles tornaram-se,
com o andar dos tempos, uma espécie de directores espirituais do
povo simples, com as suas reuniões próprias e confrarias próprias.
A semântica que está por detrás do verbo "explicar", que tem como
raiz hebraica o verbo parash, como vimos, relaciona-se com a
explicação da Lei de Moisés e das tradições orais. Neste estudo e
interpretação, os fariseus seguiam duas linhas: a halakáh e a
haggadah.
Por "halakáh", do verbo halak, que significa "caminhar", os
fariseus apresentam comentários à Lei de Moisés que têm a ver COM
as disposições jurídicas ou com a jurisprudência segundo a qual
eles e todo o povo deviam viver ou encaminhar a sua vida, seja no
campo da familia, do casamento, das comidas, do vestuário, dos
funerais, etc. Nada da vida podia escapar a esta jurisprudência.
Por isso, elaboraram 613 regras das quais 248 eram preceitos a
cumprir e 365 eram interditos a evitar com todo o rigor.
Por "haggadáh", que significa dito, refrão, máxima, e, por
extensão, lenda, narrativa, definição e determinação, os fariseus
discutiam, geralmente em diálogo e controvérsia de escolas
rabínicas, os fundamentos teológicos das suas posições. Por isso
serviam-se das tradições orais e das próprias histórias
verdadeiras ou fictícias. Lembremos, por exemplo, a "haggadáh"
sobre a ressurreição, que vem em Mt 22, 23-33 e par.: "Nesse mesmo
dia, os saduceus, que não acreditam na ressurreição, foram ter com
Ele [Jesus] e interrogaram-no: 'Mestre, Moisés disse: Se algum
homem morrer sem filhos, o seu irmão casará com a viúva, para
suscitar descendência ao irmão. Ora, entre nós, havia sete irmãos.
O primeiro casou e morreu sem descendência, deixando a mulher a
seu irmão; sucedeu o mesmo ao segundo, depois ao terceiro, e assim
até ao sétimo. Depois de todos eles, morreu a mulher. Então, na
ressurreição, de qual dos sete será ela mulher, visto que o foi de
todos?' Jesus respondeu-lhes: 'Estais enganados porque
desconheceis as Escrituras e o poder de Deus. Na ressurreição, nem
os homens terão mulheres nem as mulheres maridos; mas serão como
anjos no Céu. E, quanto à ressurreição dos mortos, não lestes o
que Deus disse: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus
de Jacob? Não dos mortos, mas dos vivos é que Ele é Deus!"'
Vejamos agora uma "haggadáh" do próprio Jesus a respeito da lei
sabática, que vem em Mt 12, 1-8 (par. Mc 2, 23-28 e Lc 6, 1-5).
Jesus é criticado pelos fariseus por causa dos seus discípulos,
com fome, apanharem espigas ao sábado e comerem os seus grãos.
Jesus serve-se da história de David, que também sentiu fome, bem
como os que o acompanhavam,

25
entrou no templo e comeu os pães da oferenda, que só os sacerdotes
podiam comer.
A história contada por Jesus sobre David é bastante diferente da
original que vem no lSrn 21, 2-7, até porque no caso de David não
se trata do assunto sobre o sábado, mas apenas do assunto duma
proibição infringida por David, tal como os seus discípulos o
fizeram em relação ao sábado.
Semelhante sistema de ler e interpretar as Escrituras fazia com
que os fariseus formassem uma espécie de ordem religiosa laica,
com o seu noviciado de algums meses para serem provados, com as
suas regras de jejuns, dízimos, purezas rituais, etc. Basta
ouvirmos a parábola de Jesus sobre o fariseu e o publicano no
evangelho de Lc 18, 10-14: "O fariseu, de pé, fazia interiormente
esta oração: ó Deus dou-te graças por não ser como o resto dos
homens, que são ladrões, injustos, adúlteros; nem como este
cobrador de impostos. Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo
de tudo quanto possuo"'.
Os fariseus eram recrutados de todas as camadas sociais: havia
artesãos, sacerdotes, comerciantes, escribas, gente simples dos
campos... Sem dúvida que os sacerdotes, mesmo os não fariseus,
faziam uma espécie de pacto secreto com eles por causa de imporem
as suas leis de impureza ritual a todo o povo.
Para se distinguirem de todos os demais, os fariseus caíam no
exibicionismo e na incoerência, pois gostavam de dar nas vistas e
de mostrar as suas boas obras, quando davam esmola, quando
jejuavam e quando oravam, e é precisamente esta maneira de ser que
Jesus combate, pedindo aos seus discípulos que façam precisamente
o contrário. O Jesus de Mateus é o que mais combate este
exibicionismo e incoerência dos fariseus (Mateus 6, 1-17 e 23, 1-
33). Mas reparemos que a finalidade de Mateus é catequética e se
dirige à multidão e aos discípulos (Mateus 5, 1-2 e 23, 1). Mateus
carrega as cores da crítica contra os fariseus para que os
cristãos não caiam nos mesmos defeitos, mas isto não significa que
os fariseus fossem assim tão maus e perversos. Temos que ter em
conta que quando os evangelhos foram escritos, já não havia nem
saduceus, nem sacerdotes, nem qualquer outro tipo de judeus, a não
ser os fariseus que combatiam ferozmente a Igreja cristã nascente.
Além do mais, Flávio Josefo descreve os fariseus de maneira muito
positiva na sua obra Antiguidades Judaicas XVIII, 2, terminando
desta maneira: "As cidades renderam homenagem a tantas virtudes
[dos fariseus], aplicando às suas vidas o que há de mais perfeito
neles tanto na prática como na doutrina".
Os fariseus perscrutavam as Escrituras Sagradas e as tradições
para encontrarem a vontade de Deus em todos os pormenores da sua
vida. Para tanto, tinham as suas reuniões semanais em assembleias
de pequenos grupos e serviam-se especialmente das ceias de sexta
feira e de sábado para semelhante estudo e doutrinação. É por isso
que os evangelhos nos apresentam Jesus a ser convidado pelos
fariseus para jantar e a maneira como Jesus se servia desses
jantares para a sua própria doutrinação.
Lembremos apenas três narrativas dos sinópticos. A primeira vem em
Lc 7, 36-50 (paralelos em Mt 26, 6-13; Mc 4, 3-9; Jo 12, 1-11).
A narrativa começa assim: "Um fariseu convidou Jesus para comer
consigo. Jesus entrou em casa do fariseu, e pôs-se à mesa." Depois
segue-se a cena duma mulher pecadora que unge os pés de Jesus com
um perfume muito raro como sinal de amor. Jesus dialoga com o
fariseu sobre aquela atitude e termina por declarar que ele mesmo
tem poder para perdoar os "muitos pecados daquela mulher, porque
muito amou ".
A segunda narrativa vem em Lc 11, 37-53 (paralelos em Mt 23,
1-36 e Mc 12, 38-40). Como na cena anterior, também abre com um
convite de um fariseu a Jesus para ir jantar a sua casa: "Mal
Jesus tinha acabado de falar, um fariseu convidou-o para jantar em
sua casa". O fariseu estranhou que Jesus não tivesse feito as suas
abluções rituais antes de começar a comer, e é a partir deste
estado de coisas que Jesus lança o seu repto contra o farisaísmo
que só se interessa pelo exterior e

26
aparências, sem ir ao interior das coisas: "Vós, os fariseus,
limpais o exterior do copo e do prato, mas o vosso interior está
cheio de rapina e maldade".
A terceira narrativa vem em Lc 14, 1-24 (paralelos em Mt 12, 9-14;
Mc 3, 1-6) que começa desta maneira: "Tendo entrado, a um sábado,
em casa de um dos principais fariseus para comer uma refeição,
todos o observavam". Depois curou um hidrópico que se encontrava
também ali, e foi por causa desta cura que surgiu a controvérsia
uma vez que a cura acontecia em dia de sábado. Seguiu-se a posição
doutrinal de Jesus sobre a maneira de fazer bem em dia de sábado e
a sua diatribe contra os fariseus que só se interessam pelas
aparências e pelos primeiros lugares.
Em todas estas cenas, muito vivas no contraste doutrinal entre
Jesus e os fariseus, o que mais sobressai é o amor de Jesus pelos
pecadores e pelos doentes, que os fariseus marginalizavam por
pensarem que eram uns amaldiçoados de Deus. Os fariseus seguiam a
lei do Levítico que prescrevia a santidade: "Sede santos porque Eu
[vosso Deus] sou santo" (Lc 12, 45). Simplesmente, a santidade foi
transformada no cumprimento exterior de leis e regras sobre as
prescrições do puro e impuro ritual, obrigando-os, na lógica
destes rituais, a evitarem todo o contacto com os pecadores e os
doentes.
Mas os fariseus eram pessoas muito mais abertas e compreensivas do
que os saduceus, porque enquanto os saduceus apenas estavam
ligados às Escrituras, isto é, às leis escritas, os fariseus
aceitavam também a tradição oral, embora, tantas vezes, o seu zelo
fosse excessivo e pouco humano (Mt 15, 1-20). É, no entanto,
devido a esta abertura à tradição oral que aceitavam a
ressurreição e a imortalidade (Ac 23, 6-10) e as expectativas
messiânicas.
Embora os evangelhos apresentem Jesus em diatribes constantes
contra os fariseus, a verdade é que eles estão ausentes nos
relatos da paixão, porque o processo final contra Jesus só podia
depender das autoridades que tinham o poder de julgar a favor da
vida ou da morte, que era o Sinédrio, formado sobretudo pelos
representantes dos saduceus, dos anciãos, dos doutores da Lei e,
especialmente, dos sumos sacerdotes.
5.2. OS SADUCEUS
A origem dos saduceus não provém da palavra saddiq, que significa
"o justo", como se pensava antigamente, mas do nome Sadoc, um
sacerdote que Salomão colocou à frente dos sacerdotes no Templo de
Jerusalém, substituindo Abiatar.
No tempo de David, Sadoc e Abiatar, juntamente com outros, faziam
parte dos sacerdotes da casa real de David (2 Sm 20, 26). Mas
quando Salomão subiu ao trono, Abiatar não defendeu a causa de
Salomão, ao contrário de Sadoc, e Salomão, por isso mesmo, mandou
eliminar os seus inimigos, de modo que foi Sadoc que esteve na
origem genealógica dos sacerdotes futuros (1Rs 2, 12.35),
estabelecendo a ponte entre Aarão, sacerdote irmão de Moisés, e o
actual sacerdócio. Assim se explicam as palavras da Escritura
postas na boca de Deus: "Suscitarei para mim um sacerdote fiel,
que procederá segundo o meu coração e a minha vontade. Hei-de
edificar-lhe uma casa sólida [isto é, uma linhagem hereditária] e
duradoira, e ele viverá sempre na presença do meu ungido [isto é,
do meu rei]" (1 Sm 2, 35).
Esta linhagem de Sadoc permaneceu até ao exílio, mas quando se deu
a reconstrução do Templo de Jerusalém, depois do exílio, no ano
515 a.C., apareceram outros sacerdotes a defenderem a sua
legitimidade sadocita. O profeta Ezequiel, que era sacerdote, fala
dos sacerdotes do seu tempo, como verdadeiros "filhos de Sadoc" em
40, 46; 43, 19; 44,
15; 48, 13.
Mas o partido dos saduceus, que aparece nos evangelhos, tem a sua
origem no século II a.C., no tempo dos Macabeus. Apresenta-se a
primeira vez quando Jónatas Macabeu, que era de familia
sacerdotal, mas não sadocita, se autodenominou, ao mesmo tempo,
rei e sacerdote

27
(153 a. C.; lMc 10, 20-21). Necessariamente, surgiu a contestação
da verdadeira família dos sacerdotes sadocitas contra este estado
de coisas. E foi também deste modo que os saduceus e os fariseus
começaram a degladiar-se, de modo que os reis Asmoneus, saídos do
clã dos Macabeus, como já vimos, ora apoiavam mais os fariseus,
ora mais os saduceus. Assim aconteceu com Alexandre Janeu depois
de João Hircano, com a rainha Alexandra (76-67 a.C.), com
Aristóbulo II (67-63 a. C.) e com Herodes Magno, que tentou
agradar e controlar os dois partidos consoante as suas
conveniências.
O grupo ou o partido dos saduceus designa, portanto, no tempo de
Jesus, aqueles homens, recrutados entre a classe sacerdotal e a
nobreza laica, representados no Sinédrio e que, por isso mesmo,
governavam o Israel político e religioso, sempre de mãos dadas com
os políticos da ocasião, primeiro com os Asmoneus, depois com
Herodes e com os romanos.
Ao contrário dos fariseus, os saduceus mantinham uma atitude mais
liberal e mais laica, agarrados ao poder e ao tradicionalismo
político e religioso, tentando dar-se bem com Asmoneus e Romanos.
Por isso mesmo, só aceitavam como Escritura normativa e sagrada o
Pentateuco e rejeitavam as tradições dos fariseus, que defendiam o
resto das Escrituras, a ressurreição, a imortalidade e os anjos
(Mt 22, 23-33. Lc 20, 27-38; Ac 4, 2; 23, 8; Flávio Josefo, Bellum
Judaicum 2, 164-166;AntiquitatesJudaicae, 12, 173; 18, 12).
interessante ouvirmos o texto de Flávio Josefo das Antiguidades
Judaicas no cap. 18, 12: "A doutrina dos saduceus afirma que as
almas se desvanecem ao mesmo tempo que os corpos, e não se
preocupam em observar qualquer outra coisa que não sejam as leis
[isto é, o Pentateuco]. Para eles é uma virtude estarem em
desacordo com os mestres da sabedoria [alguns escribas do grupo
dos saduceus] que eles professam. Esta doutrina penetrou apenas
nalgumas pessoas, mas que são as primeiras em dignidade. Não têm,
por assim dizer, nenhuma função. E que, quando chegam ao governo,
apesar disso e por necessidade, concedem tudo o que diz o fariseu,
para que o povo não se vire contra eles."
Por aqui ficamos a saber que, para os saduceus, só os sacerdotes
eram os intérpretes autênticos da Lei, opondo-se desta feita aos
fariseus que eram leigos. Não acreditavam na imortalidade da alma
e na ressurreição, defendiam um tradicionalismo político e
religioso, mas, na prática, porque eram menores em relação aos
fariseus e tinham menos Influência junto do povo, cediam as suas
posições a favor dos fariseus quando se tratava de agradar ao
povo. Serviam-se, portanto, de dois pesos e duas medidas, conforme
as conveniências.
Por isso é que se explica que as relações de Jesus com os saduceus
são muito menores do que as relações com os fariseus. Se Jesus
contactava directamente com o povo e não com os políticos e com as
autoridades religiosas era natural que os seus conflitos tivessem
mais a ver com os fariseus e menos com os saduceus. Mas, quando
Jesus começou a ser realmente perigoso para a ortodoxia judaica,
foram os saduceus que determinaram a sua morte e não os fariseus.
Mesmo assim os evangelhos apresentam também os fariseus de acordo
com o Sinédrio na questão da morte de Jesus (Mc 3,6; Jo 11, 47-
50), possivelmente porque, como já vimos, os fariseus eram o grupo
religioso que sobressaiu quando os evangelhos foram escritos.
Os saduceus entregaram Jesus a Pilatos, para ser morto, por
motivos religiosos e políticos. Viram nele um blasfemo e um homem
de ideias messiânicas capaz de arrastar multidões e pôr em perigo
a estabilidade religiosa e política que sempre defenderam (Jo 19,
15).
Mesmo assim, o grupo dos saduceus fracturou-se por causa
precisamente da mistura entre política e religião no tempo dos
Asmoneus e dos Romanos, o que originou o aparecimento dos essénios
na célebre comunidade de Qumran. Realmente, os escritos
encontrados em Qumran, a partir de 1947, dão uma grande
importância à linhagem sadocita e criticam mordazmente os sumos
sacerdotes de Jerusalém como usurpadores do verdadeiro sacerdócio.

28
Em conclusão, ao longo da história de Israel, deixa de se falar
dos "filhos de Aarão", para se falar apenas dos "filhos de Sadoc".
Nos evangelhos, aparecem por vezes em companhia dos fariseus, mas
distinguem-se dos fariseus tanto pelas suas crenças como seu
comportamento político. Aparecem com uma grande responsabilidade
na morte de Jesus porque eram eles que julgavam sobre a ortodoxia
clássica e histórica do judaísmo, contra a qual Jesus se
sobrepunha, o que equivalia a ser julgado como blasfemo e digno de
morte (Mt 16, 1.6.11; 22,
23; 22, 34).
5.3. OS ESCRIBAS
A nossa palavra "escriba" ou "escrivão" deriva do latim
"scribere", mas nos judeus trata-se do sôper, do verbo sápar, e no
grego bíblico do grammateus, que tem a ver com um grupo bem
determinado de judeus que liam, escreviam e interpretavam as
Escrituras sagradas.
Ao princípio, este múnus estava ao encargo dos sacerdotes, que
liam, interpretavam e explicavam a Lei e a Escritura. Por outro
lado, na corte real, seja de Israel como na de todas as cortes
reais do Próximo Médio Oriente, existiam os escribas ou os
secretários da corte, que aconselhavam também os homens da
política e da religião, de acordo com as Escrituras e as
tradições. Eram uma espécie de oficiais do ministério da cultura e
da religião.
Depois do exílio da Babilónia, os sacerdotes tornaram-se os
senhores do Templo e do poder, na dependência do Sumo Sacerdote,
que era o chefe da nação, uma vez que não existia o rei e os
profetas também tinham perdido a autoridade moral e religiosa dos
tempos de antes do exílio. Por isso, o poder é entregue aos
sacerdotes e aos escribas, que estudam a lei e a aplicam às
circunstâncias de cada tempo.
Geralmente, os escribas são leigos, mas operam lado a lado com os
sacerdotes. Ezequiel, que viveu antes do exílio e durante o
exílio, é um profeta sacerdote, mas Esdras, que actua no exílio e
no pós-exílio já é sacerdote escriba (Es 7, 25-26: "E tu, Esdras,
segundo a sabedoria do teu Deus na qual és versado, estabelecerás
juízes e magistrados para fazerem justiça a todo o povo da outra
margem do rio e a todos aqueles que conhecem as leis do teu Deus:
e hás-de ensiná-las aos que as ignoram. Todo aquele que não
observar a Lei do teu Deus e a lei do rei será castigado
rigorosamente, ou com a morte, ou com o desterro, ou com uma multa
ou, ao menos, com a prisão": cf. 9, 1-10, 17; Ne 8).
Uma vez que a monarquia desaparece depois do exílio, era natural
que os sacerdotes e os escribas dessem as mãos para que a vontade
de Deus fosse conhecida e cumprida através do culto e das leis. É
assim que se estabelece a teocracia, que exigia um cumprimento
rigoroso da Lei para que não se incorresse no castigo divino.
Assim se explica a veneração pelo sacerdote e pelo escriba, e é
por este tempo que o cânone das Escrituras hebraicas vai recebendo
forma pouco a pouco.
Mas como o poder corrompe, o profeta Malaquias, um dos poucos
depois do exílio, verbera com diatribes contínuas a falsidade dos
sacerdotes daquele tempo (cf. Ml 1, 6-2, 9) por não cumprirem as
leis da aliança de Levi, que tinham sobretudo a ver com o culto do
Templo e cuja formulação dependia dos escribas.
A partir do século III a. C., os escribas são sobretudo leigos e
no tempo de Jesus há escribas leigos, mas também sacerdotes e
levitas.
Ao contrário dos sacerdotes, que dependem da sua linhagem
sacerdotal, ninguém nasce escriba. Só se é escriba através do
estudo. O jovem judeu que desejava ser escriba procurava um mestre
e sujeitava-se a ser seu aluno durante alguns anos, como aconteceu
com S. Paulo em relação ao mestre Gamaliel (Ac 22, 3). E uma vez
que o jovem se torna escriba e mestre, tem o direito de
interpretar as Escrituras, ser membro dum tribunal e dar os seus
pareceres de jurisprudência.

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Por volta dos 40 anos, o mestre ou doutor ordenava-se escriba
através da imposição das mãos e ficava com o direito de fazer
parte do Sinédrio e com o direito de atar e desatar (cfr. Mt 16,
19 e 18, 18).
Com toda esta importância, o escriba facilmente acabava por se
manifestar como alguém superior e a quem se deviam honras e uma
certa veneração por parte do povo. Assim se explica a diatribe
mordaz de Jesus contra escribas e fariseus no capítulo 23 de
Mateus (ver VV.6-7: "Gostam de ocupar o primeiro lugar nos
banquetes e os primeiros assentos nas sinagogas. Gostam das
saudações nas praças públicas e de serem chamados Mestres pelos
homens"). Reparemos nos sete epítetos de Jesus em Mt 23, 13-33 ao
mesmo tempo contra os doutores da Lei, escribas, e contra os
fariseus: "Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas...".
Reparemos, ainda, nas críticas contra a hipocrisia dos escribas ou
doutores da Lei em Lc 21, 45-47 e paralelos.
Há que reparar que, muitas vezes, quando Jesus critica mordazmente
os doutores da Lei bem como os fariseus, não se dirige
directamente a eles, mas sim ao povo e aos seus discípulos: Lc 25,
45: "Quando todo o povo o escutava, Jesus disse aos discípulos:
"Tomai cuidado com os doutores da Lei..."; Mt 23, 1: "Então, Jesus
falou assim à multidão e aos discípulos: "Os doutores da lei e os
fariseus instalaram-se na cátedra de Moisés... "; Mt 5, 1-2: "Ao
ver a multidão, Jesus subiu a um monte. Depois de se ter sentado,
os discípulos aproximaram-se dele. Então tomou a palavra e começou
a ensiná-los..." Neste último caso, e uma vez que se trata do
sermão da montanha, Jesus tanto ensina as bem-aventuranças como a
maneira de dar esmola, de orar e de jejuar, de modo diferente da
dos hipócritas (Mt 2.5.16), que eram os fariseus e os doutores da
Lei. Este aspecto é importante porque Jesus não se está a dirigir
aos fariseus e aos doutores da Lei, mas ao povo e, sobretudo, aos
seus discípulos, tanto aos daquele tempo histórico de Jesus como
aos de hoje. Na intenção dos evangelistas, o que está em causa é
uma catequese a todos os cristãos para que não ajam à maneira dos
escribas e dos fariseus. Não se trata de chamar à atenção os
escribas e os fariseus do tempo de Jesus, mas da possibilidade dos
cristãos se portarem da mesma maneira que os escribas e os
fariseus.
Necessariamente, os escribas não podiam gostar de Jesus porque
ensinava com autoridade sem ter frequentado qualquer escola
rabínica (Mc 1, 27: "Tão assombrados ficaram que perguntavam uns
aos outros: que é isto? Eis um novo ensinamento, e feito com tal
autoridade que até manda aos espíritos malignos e eles obedecem-
lhe!"'; 11, 27-28: "Regressaram a Jerusalém e, andando Jesus pelo
Templo, os sumos sacerdotes, os doutores da Lei e os anciãos
aproximaram-se dele e perguntaram-lhe: 'Com que autoridade fazes
estas coisas? Quem te deu autoridade para as fazeres?"').
Para Jesus, portanto, a autoridade não lhe vem dos livros, mas de
si mesmo, e é por isso que interpreta várias questões de suma
importância de maneira própria e única, até mesmo contra a própria
Escritura, como é o caso do divórcio em Mt 19, 8: "Jesus
respondeu: "Por causa da dureza do vosso coração é que Moisés
permitiu que repudiásseis as vossas mulheres; mas, ao princípio,
não foi assim". Purifica o Templo com toda a autoridade que lhe
vem de si mesmo (Mt 21, 23-27), defende a aclamação messiânica das
crianças recorrendo à autoridade dc Salmo 8, 3 (Mt 21.15-16). O
mesmo se diga da sua autoridade doutrinária acerca da ressurreição
em resposta aos saduceus (Mc 12, 26:") e de todas as suas atitudes
em relação ao Templo (Mc 11, 15, 18; cf. v. 18 "Os sacerdotes e os
doutores da Lei ouviram isto e procuravam maneira de o matar, mas
temiam-no, pois toda a multidão estava maravilhada com o seu
ensinamento"), em relação ao sábado (Lc 6, 3-5 e par.), ao perdão
dos pecados (Mc 2, 5. 11) e a todas as tradições judaicas que vão
contra a pessoa, contra a vida e contra o amor (Mc 7, 1-23 e
par.).
É de realçar o facto dos escribas, que atingiam o grau de "rabbi"
ou de "rabun" ("meu mestre", "meu grande mestre"), como
professores da Lei mosaica, não exigirem qualquer pagamento aos
seus alunos vivendo, por isso, das esmolas dos alunos, do dízimo
dos pobres e das esmolas do Templo. Apenas os escribas
funcionários do Templo e os escribas sacerdotes recebiam um
salário mais ou menos fixo. Os outros viviam das tais esmolas de
que falámos e dos seus trabalhos manuais. O grande rabi Hillel
trabalhava como jornaleiro, Chammai como carpinteiro, Paulo de
Tarso como tecelão.

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6. INSTITUIÇõES RELIGIOSAS DE ISRAEL
Depois de termos apresentado os vários grupos religiosos e a sua
importância para a compreensão da pessoa de Jesus, vamos agora
estudar as instituições religiosas mais importantes de Israel do
seu tempo, e ver como é que o mesmo Jesus se comportou em relação
a essas instituições. São elas o Sábado, o Templo e a Lei.
6.1. SÁBADO
Ao lermos os quatro evangelhos é frequente encontrarmos Jesus a
fazer os seus milagres em dia de sábado, sendo, por isso mesmo,
repreendido pelos fariseus e doutores da Lei. Jesus afirma sem
rebuços que ele mesmo é superior ao sábado, que o sábado foi feito
para o homem e não o homem para o sábado (Mc 2, 27).
A palavra sábado aparece, nada mais nada menos, do que 68 vezes em
todo o NT. A santificação do sábado é fundamental na religião de
Israel, tanto antigamente como actualmente. Juntamente com a
circuncisão, sobretudo depois do exilio da Babilónia, o sábado
era, como é ainda hoje, uma nota característica e distintiva de
Israel. Marca o ritmo sacral do tempo. Por isso, temos que
compreender o que é que se passava no AT e no tempo de Jesus
acerca do sábado, para melhor compreendermos a pessoa de Jesus.
O significado do descanso sabático perde-se na bruma dos tempos. A
palavra "sábado" e o verbo "shabat" significa "descanso" e
"descansar", pela positiva, ou, então, "não trabalhar" ou "deixar
de trabalhar", pela negativa. É interessante notar que os judeus
contam os dias da semana por números, como nós, portugueses, menos
o sábado.

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Não foram, é sabido, os judeus que inventaram o descanso sabático.
Na Mesopotâmia e em todo o Médio Oriente, o povo seguia um
calendário lunar, fundamental para a pastorícia e a agricultura.
Assim sendo, as quatro fases da lua determinavam os tempos
propícios ou nefastos para estas actividades. Para a cultura da
Mesopotâmia, o dia correspondente às quatro fases da lua era um
dia "nefasto" ou "sagrado", em que não se podia trabalhar. Em
Canaã, o sábado da lua cheia era, igualmente, sagrado, e, por
isso, não se tratava já dum dia nefasto, mas de alegria e
celebração.
Esta ambiguidade está patente na cultura judaica: o sábado é um
dia de festa, dedicado a Javé e, como tal, não se pode trabalhar,
para que as pessoas possam ir ao Templo ou à sinagoga celebrar o
seu Deus. É com este fundo cultural e religioso que nasce a
narrativa do primeiro capítulo do Génesis sobre a criação,
correspondendo a criação do sábado ao sétimo dia. Deus trabalha
durante os seis dias da semana e descansa ao sábado. Desta
maneira, os judeus sacralizam o sábado e rodeiam-no de inúmeras
leis e prescrições. Estas leis e prescrições multiplicam-se ainda
mais com o exílio da Babilónia, quando os judeus estão longe da
sua terra, sem Templo e sem sacrifícios. O mesmo acontece com os
Macabeus (1Mc 2, 32-38), que se deixam matar às mãos dos seus
inimigos por não se poderem defender em dia de sábado.
De tal maneira o sábado é importante e sagrado que, mais tarde, os
rabinos afirmam que a sua observância até se deve cumprir no
inferno (bSan 65b; GenR 11 [8b]; Billerbeck, IV, 1082s), ou,
então, que bastaria que os judeus cumprissem dois sábados com todo
o rigor para que o Messias viesse.
Os principais textos do AT sobre a sacralidade do sábado aparecem,
em primeiro lugar, no Decálogo, como lei do descanso por causa do
descanso do próprio Deus (Êx 20, 8-11: "Recorda-te do dia de
sábado, para o santificar. Trabalharás durante seis dias e farás
todo o teu trabalho. Mas o sétimo dia é sábado consagrado ao
SENHOR teu Deus. Não farás trabalho algum, tu, o teu filho, e a
tua filha, o teu servo e a tua serva, os teus animais, o
estrangeiro que está dentro das tuas portas.
porque em seis dias o SENHOR fez os céus e a terra, o mar e tudo o
que está neles, mas descansou no sétimo dia. Por isso, o SENHOR
abençoou o dia de sábado e santificou-o"; cf. Dt 5, 12-15). Em
segundo lugar, a observância do sábado faz parte integrante da
aliança de Deus com o seu povo (Êx 31, 12-17). Finalmente, em
terceiro lugar, a sacralidade do sábado tem a ver com a libertação
do Egipto (Dt 5, 15).
O que nos espanta, são algumas leis sabáticas que terminam por
impor nada mais nada menos do que a morte a quem infringir a lei
sabática! Será que tal legislação alguma vez se consumou? Há
razões para duvidarmos porque há vários textos do tempo antes do
exílio e do depois do exílio que apresentam a infracção à lei
sabática, mas sem qualquer consequência. Em Jr 17, 22-23 o profeta
pede: "Abstende-vos de tirar cargas para fora das vossas casas no
dia de sábado, nem façais trabalho servil. Mas santificai o dia de
sábado, como ordenei a vossos pais. Eles, porém, não prestaram
ouvidos, mas endureceram a sua cerviz para não me escutarem nem
receberem a instrução." O mesmo acontece com os queixumes de
Neemias em 13, 15-18. "Naquela época encontrei em Judá homens que
pisavam uvas ao sábado, carregavam molhos e transportavam em
jumentos vinho, uvas, figos e toda a sorte de fardos, que levavam
para Jerusalém em dia de sábado. Admoestei-os a respeito do dia em
que vendiam os seus produtos. Havia também alguns habitantes de
Tiro estabelecidos na cidade, que traziam peixe e toda a sorte de
mercadorias, que vendiam em dia de sábado aos judeus, em
Jerusalém. Repreendi os notáveis de Judá e disse-lhes: "Procedeis
muito mal, profanando o dia de sábado. Os vossos pais faziam o
mesmo e, por isso, Deus fez cair todas essas desgraças sobre vós e
esta cidade. E vós ireis inflamar a sua cólera contra Israel,
profanando o sábado?"
Estas leis sabáticas não agradavam aos comerciantes judeus que
queriam fazer riqueza, mas eram impedidos pelas leis que proibiam
o comércio em dia de sábado (Am 8, 5: "Vós [os ricos exploradores]
dizeis: 'Quando passará a Lua Nova, para vendermos o nosso trigo,
e o sábado, para abrirmos os nossos celeiros, diminuindo o efá,
aumentando

32
o siclo e falseando a balança para defraudar?"'). Mas para os
crentes de Deus era um dia de festa e de delícias (Is 58, 13-14).
Depois do exilio da Babilónia, no chamado período do Segundo
Templo (515 a.C. - 70 d. C.), uma vez que a vida dos judeus se
modificou significativamente, porque viveram sempre na dependência
dos vários impérios (Babilónia, Pérsia, Grécia e Roma), a Lei
ganhou foros de grandeza divina até então desconhecida, e foi
assim que surgiram os rabinos "canonistas" com o papel de
definirem com precisão o que era permitido e proibido em dia de
sábado. Todo o problema girava à volta da semântica da palavra
obra. O que é proibido tem a ver com uma obra e, assim sendo,
aparecem as listas das obras proibidas em dia de sábado (Jub 2,
29-30; 50, 6-13; CD 10). Claro que os escribas não partem do nada,
mas das obras proibidas já no AT como era o caso de acender o fogo
(Êx 35, 3), o transporte de cargas (Jr 17, 21-22), viajar e tratar
de negócios (Is 58, 13), lavrar e ceifar (Ex 34, 21). Também fica
estabelecido que a liturgia do Templo, com os seus sacrifícios de
animais e ofertas da agricultura, têm precedência sobre o descanso
sabático (Nm 28, 9-10; lCr 23, 31), e, bem assim, a prática da
circuncisão.
As leis sabáticas chegaram a um tal rigorismo que durante o tempo
da revolta dos Macabeus, muitos judeus que estavam em pé de guerra
contra os seus inimigos se deixaram matar por ser dia de sábado
(lMc 2, 32-38). É facto que, perante tal chacina, Judas Macabeu e
os seus apaniguados decidiram "combater contra tudo o que viesse
atacar-nos em dia de sábado...". Mas o livro dos Jubileus [um
livro intertestamentário, não canónico, do tempo de Jesus] em 50,
12-13 proíbe também combater em dia de sábado. Segundo este texto,
em dia de sábado não se pode "caminhar, cultivar o campo, acender
o fogo, cavalgar, viajar de barco, ferir ou matar qualquer ser,
degolar animais ou aves, capturar animais, aves ou peixes, lutar
na guerra." O texto termina afirmando: "E o homem que fizer
qualquer destas coisas em dia de sábado, morra."
Nos tempos de Jesus, tanto os romanos como os demais povos
"pagãos" viam a legislação sabática dos judeus, como as demais
festas e ritos, seja com admiração (Flávio José Ag.Ap. 2, 39 &
282; Filão, Vit. Mos. 2, 21), seja com desprezo (Flávio José A.
Ap. 2.2 && 20-21). o império romano legislou a favor dos judeus em
relação às leis sabáticas, e isentou-os também de participarem no
exército (cf. Flávio José Ant. 14, 10.12 && 226-227). A religião
judaica fazia parte, assim sendo, das muitas manifestações do
império romano. Inclusivamente, os judeus ofereciam sacrifícios no
Templo de Jerusalém em honra do imperador. As questões
complicaram-se definitivamente com o levantamento dos zelotas
contra Roma a partir do ano 66, que só terminou no ano 70 com a
derrocada total da cidade de Jerusalém às mãos das tropas de Tito.
Depois de termos estudado a doutrina dos judeus sobre a
sacralidade do sábado, ao longo dos tempos, vamos agora
compreender como é que Jesus se comportava em relação ao mesmo
sábado.
É, realmente, neste ambiente complexo de leis a favor da
sacralidade do sábado e de proibições por tudo e por nada para o
defender, que a pessoa de Jesus se defronta. O que lemos em Mc 2,
23-28, que termina por apresentar a afirmação de Jesus: "O Filho
do Homem até do sábado é Senhor" e 3, 1-6, depois da cura, em dia
de sábado, da mão paralisada de um certo homem, pode não ter sido
totalmente histórico, mas não há dúvida que corresponde totalmente
às atitudes de Jesus a respeito do sábado. Jesus aceitava o sábado
como o dia do Senhor Deus e, por isso, frequentava as sinagogas ao
sábado e tomava a palavra como qualquer outro judeu (Lc 4, 16ss).
O mesmo fazia Paulo e os seus companheiros quando queriam falar
aos judeus sobre Jesus Cristo (Ac 13, 14; 17, 2; 18, 4; 16, 13;
13, 27.42.44). Mas, para Jesus, não há nada mais sagrado do que
Deus e a sua imagem, o homem e a mulher.
O sábado, bem como a circuncisão ou o Templo, só têm sentido se
estiverem a favor da vida de Deus e desta sua imagem, o homem e a
mulher, o que não acontecia a maior parte das vezes com as leis
sabáticas. Neste aspecto, o que é relatado em Lc 14, 1-6 e par. é
bem paradigmático: "Tendo entrado, a um sábado, em casa de um dos
principais fariseus para comer uma refeição, todos o observavam.
Achava-se ali, diante dele, um hidrópico. Jesus, dirigindo a
palavra aos doutores da lei e

33
fariseus, disse-lhes: "É permitido ou não curar ao sábado?" Mas
eles ficaram calados. Tomando o hidrópico então pela mão curou-o e
mandou-o embora. Depois, disse-lhes: 'Qual de vós, se o seu filho
ou o seu boi cair a um poço, não o irá logo retirar em dia de
sábado?' E a isto não puderam replicar" (cf. também no IV
evangelho 5, 1-18; 7, 22-23; 9, 13-16).
Neste texto é interessante repararmos que Jesus dá a entender que
há excepções, quando se trata da vida duma pessoa ou dum animal;
havia, portanto, uma corrente menos rigorista dentro do próprio
judaísmo. Isto leva-nos a concluir que havia mais do que uma única
interpretação sabática. Esta linha também é iluminada pelo
documento de Qumran chamado Documento de Damasco (CD XI, 13.16),
onde se lê:
"Que ninguém ajude um animal a parir em dia de sábado. E se ele
cair num poço ou numa fossa, que não seja tirado de lá no dia de
sábado. E todo o homem vivo que cair na água ou noutro lugar, que
ninguém o tire com uma escada, ou uma corda, ou outro utensilio."
O texto distingue entre os animais e os humanos. Estes podem ser
salvos em dia de sábado desde que não se trate dum trabalho de
salvamento por uma corda, escada ou outro utensílio. Assim se
explica que num outro documento de Qumran (4Q 26521) se diga: "Que
ninguém salve um animal que caiu à água em dia de sábado. Mas se
for um homem que caiu à água em dia de sábado, que se lance uma
veste para ser puxado para cima através dela".
Jesus tem em vista toda esta variedade de interpretações, mas
corta a direito" porque, para ele, o que interessa é a vida das
pessoas e não a casuística jurídica. A vida é olhada na
perspectiva original de Deus e não na perspectiva das leis e
tradições judaicas que punham obstáculos à mesma vida, fosse
perante a fome das pessoas (Mc 2, 23-28 e par.), fosse perante a
doença das mesmas pessoas (as cinco curas de Jesus em dia de
sábado: Mc 3, 1-6 e par.; Lc 13, 10-17; 14, 1-6 e
par.; Jo 5, 1-18; 9, 1-38).
É evidente que, por detrás destas histórias humanas de necessidade
e doença, está a autoridade de Jesus como intérprete do sábado e
de toda a Lei mosaica.
Quando se trata de Jesus defender os seus discípulos que colhiam
espigas em dia de sábado, ele defende-se com a atitude de David
(Mc 2,
23-26 e par.), não por causa do exemplo de David, mas para se
apresentar como superior ao próprio David na interpretação da Lei.
Os fariseus e os doutores da Lei perceberam isto muito bem. Por
isso, já não se tratava apenas de um taumaturgo ou de um bem
pensante filantrópico, mas de um subversor da ortodoxia judaica e
suas instituições mais sagradas; numa palavra, de um blasfemo que
se arrogava o direito de interpretar a vontade primigénia do
próprio Deus, para além de Moisés e da Halaká. Por isso, os
fariseus e doutores da Lei, sobretudo por causa do sábado,
pensaram que era a vontade de Deus destruir este homem Jesus (Mc
3, 6; Mt 12, 14).
Mais tarde, a comunidade cristã que vivia em Colossos, recebe de
Paulo estas palavras: "Por isso, não vos deixeis condenar por
ninguém, no que toca à comida e à bebida, ou a respeito de uma
festa, de uma Lua Nova ou de um sábado. Tudo isto não é mais que
uma sombra das coisas que hão-de vir; a realidade está em Cristo"
(CI 2, 16-17).
6.2. TEMPLO
A questão do Templo é fundamental na vida de Jesus, tanto mais
porque foi por causa da sua atitude em relação ao Templo que o
Sinédrio decidiu, finalmente, a sua morte. Trataremos, em primeiro
lugar do Templo ao longo da sua história de séculos, e, depois,
duma maneira mais precisa, da pessoa de Jesus confrontada com o
Templo.
A realidade do Templo de Jerusalém tem a ver com muitos sécu los
de história e os textos bíblicos e extra bíblicos, bem como as
atitudes dos judeus em relação a ele nem sempre são concordes.

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Antes da construção do Templo por Salomão, os israelitas adoravam
o seu Deus em vários santuários, mas sobretudo no de Silo, que foi
destruído por volta de 1050 a.C. pelos Filisteus (lSm 4), levando
com eles a Arca da Aliança. Finalmente, deu-se a construção
magnífica do Templo, em Jerusalém, por ordens de Salomão, cujo
relato vem no lRs 6-7 e no 2Cr 3-4. Este Templo foi completamente
destruído por Nabucodonosor em 587 a.C. e voltado a construir em
515. Por isso, os únicos dados que temos para o descrever são os
dos textos bíblicos e as comparações que podemos fazer com os
templos pagãos sobretudo da Síria e da Fenícia.
O Templo estava dividido em três partes: o átrio exterior (ulâm),
um grande espaço interior (hêkál) e um pequeno espaço ao fundo,
chamado "o Santo dos Santos" (dbir ou qodesh q'dashim), onde se
guardava a Arca da Aliança. No espaço do hekal estava o altar
dourado do incenso, a mesa dos pães da preposição e o candelabro.
Na parte exterior estava o altar de bronze para os sacrifícios dos
animais. A Bíblia fala também do "mar" de bronze, que era uma
espécie de grande bacia de bronze com água para as abluções dos
sacerdotes. E de cada lado da entrada havia dez bacias de bronze
também com água, cinco de cada lado, que serviam para a
purificação das rezes a sacrificar pelos sacerdotes. E todos estes
elementos constitutivos do Templo fizeram parte integrante do novo
templo de 515 a.C., o de Zorobabel, e do magnífico Templo
reconstruído, mais tarde, por Herodes Magno. Sobre este templo de
Herodes Magno, que foi o de Jesus, temos bastantes dados no
tratado middot da Mishna e nas duas obras de Flávio Josefo (A
Guerra Judaica 5.5.1-6 & 184-227 e as Antiguidades 15.11.1.3 &&
380-402). Com a destruição do Templo pelas tropas romanas de Tito,
no ano 70 p.C., não ficou pedra sobre pedra, excepto o chamado
"muro das lamentações", mas todo o espaço ocupado hoje em dia
pelas duas mesquitas, a "dourada" e a "El Aksa", juntamente com as
descrições bíblicas, podem fornecer-nos uma imagem do que seria a
beleza e magnificência deste Templo, aliás celebrado em todo o
império romano daquele tempo.
Foi no espaço exterior do Templo que aconteceu o que narra Mateus
em 21, 12-14: "Jesus entrou no Templo e expulsou dali todos os que
nele vendiam e compravam. Derrubou as mesas dos cambistas e as
bancas dos vendedores de pombas... Aproximaram-se dele, no Templo,
cegos e coxos, e ele curou-os. Perante os prodígios que realizava
e as crianças que gritavam no Templo: 'Hossana ao Filho de David',
os sumos sacerdotes e os doutores da Lei ficaram indignados...".
Neste espaço exterior havia os claustros exteriores onde Jesus e
mais tarde, os seus discípulos ensinavam (Mc 14, 49: "Estava todos
os dias junto de vós, no Templo, a ensinar, e não me
prendestes..."; Ac 2
46: "Como se tivessem uma só alma, [os cristãos] frequentavam
diariamente o Templo..."; 3, 1-2: "Pedro e João subiam ao templo,
para a oração das três horas da tarde. Era para ali levado um
homem, coxo desde o ventre materno, que todos os dias colocavam à
porta do Templo ... 11).
No espaço dedicado às mulheres orava frequentemente a idosa Ana,
de que fala Lucas em 2, 37, e foi também ali que Jesus viu a pobre
viúva a deitar na caixa das esmolas as suas duas moedinhas, que
eram tudo quanto tinha para o seu sustento (Mc 14, 41-44 e par.).
No espaço dedicado aos homens - e só para os que se encontravam
ritualmente puros - estava o altar dos sacrifícios. Foi aqui que
se deu a narrativa da oração do fariseu e do publicano (Lc 18, 9-
14: "Dois homens subiram ao templo para orar: um era fariseu e o
outro cobrador de impostos. O fariseu, de pé, fazia interiormente
esta oração: 'ó Deus dou-te graças por não ser como o resto dos
homens, que são ladrões, injustos, adúlteros; nem como este
cobrador de impostos. Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo
de tudo quanto possuo'. O cobrador de impostos, mantendo-se à
distância, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu; mas batia
no peito, dizendo: "Ó Deus, tem piedade de mim, que sou
pecador"'). Foi aqui, igualmente, que, segundo o último versículo
de Lc 24, 53, se diz que os discípulos, depois da Ascensão,
"estavam continuamente no Templo a bendizer a Deus".

35
Uma vez que o Templo não constitui apenas um epicentro religioso,
mas também social, comercial e político, Herodes Magno mandou
construir, paralelo ao Templo, na parte norte ocidental, uma
fortaleza, chamada Antónia, de onde os soldados romanos podiam
facilmente controlar todas as actividades do Templo. A sua função
era a de obrigar os judeus a não se envolverem em motins político
-religiosos contra Herodes ou Roma. Foi o que aconteceu com Paulo
quando, no final da sua terceira viagem missionária, foi ao Templo
com quatro judeo-cristãos para cumprirem um voto de sacrifício. Os
seus inimigos judeus prepararam-lhe uma armadilha e acusaram-no de
se ter metido no Templo com pagãos. Segundo o relato dos Ac 21,
27-40, quando Paulo saiu do Templo, os judeus agarraram-no e
quiseram matá-lo, mas, perante o motim que se formou, os soldados
da fortaleza Antónia desceram imediatamente e tomaram conta do
assunto (vv.35-38: "Quando [Paulo] chegou aos degraus, os soldados
tiveram de o levar, por causa da violência da multidão, pois o
povo seguia em massa, a gritar: 'À morte!' Já quase dentro da
fortaleza, Paulo disse ao tribuno: "Ser-me-á permitido dizer-te
uma palavra? Disse o tribuno: "Tu sabes grego? Não és, então, o
egípcio que, há tempos, provocou uma rebelião e arrastou para o
deserto os quatro mil sicários?' Paulo respondeu: 'Eu sou judeu,
de Tarso, cidadão de uma notável cidade da Cilícia. Peço-te que me
autorizes a falar ao povo."'
Os soldados romanos confundiram Paulo com um zelota judeu,
emigrante no Egipto, que se tinha revoltado contra Roma, e há
muito que esperavam encontrar este cabecilha precisamente no
Templo.
Depois de termos apresentado a história do templo de Jerusalém ao
longo dos séculos e algumas histórias narradas no NT relacionadas
com o mesmo Templo, vamos agora tentar perceber a intenção de
Jesus acerca do Templo.
A pergunta é, então, a seguinte: como é que se comportou Jesus
perante o Templo? Já vimos que muitas passagens evangélicas como
também dos Actos dos Apóstolos se passam no Templo. Se tivermos em
conta as passagens dos Actos, concluiríamos que os primeiros
cristãos se davam bem com o Templo, pois continuavam a frequentá-
lo normalmente, embora celebrassem a Eucaristia nas casas
particulares (Ac 2, 46).
O que Jesus pensava ou não do Templo só o sabemos pelos
evangelhos, mas estes divergem bastante uns dos outros sobre este
assunto, aliás tão importante e decisivo para a vida de Jesus. O
que podemos concluir, depois duma leitura atenta a todas as
passagens, é que os evangelhos nos apresentam duas atitudes de
Jesus, a positiva e a negativa.
Na atitude positiva, os evangelhos apresentam Jesus a pagar o
imposto do Templo (Mt 17, 24-27), a referir o juramento "pelo
santuário" e "pelo altar" como algo de normal (Mt 23, 16-22) e a
ver no Templo a morada de Deus (Lc 6, 4 e par.). Na atitude
negativa, aparecem-nos três textos fundamentais: 1) a narrativa da
purificação do Templo (Mc 11, 15-17 e par.); 2) o logion atribuído
a Jesus pelas testemunhas dúrante o julgamento de Jesus perante o
Sinédrio sobre a destruição, por um lado, e a recomstrução em três
dias, por outro lado, do Templo (Mc 14, 58 e par.); 3) a profecia
de Jesus sobre a destruição do Templo na narrativa apocalíptica
dos chamados capítulos apocalípticos de Mc 13; Mt 24 e Lc 21.
Estes últimos textos têm todos em comum uma atitude de Jesus muito
negativa contra o Templo: ele vai ser destruído porque os judeus o
transformaram num centro de comércio, numa casa de ladrões, quando
deveria ser um lugar sagrado de oração e de presença de Deus, não
apenas para os judeus, mas também para todos os povos.
Mas, antes de apresentarmos o pensamento final de Jesus sobre o
Templo, temos que compreender que já nas escrituras hebraicas e
nalguns textos intertestamentários, tanto alguns profetas como
outras personagens, não estavam contentes com a maneira como os
sacerdotes e a política vigente viam o Templo. O profeta Jeremias
ataca a política do rei e dos sacerdotes que se agarravam ao
Templo pensando que Deus, por habitar nele, nunca poderia deixar
que os seus inimigos conquistassem

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Jerusalém. Por isso proclama vigorosamente em 7, 4.11.14: "Não vos
fieis nas palavras mentirosas: É o santuário de Jahvé, o santuário
de Jahvé, o santuário de Jahvé! ... Será que para vós, este
Templo, que tem o meu nome, não passa dum refÜgio de ladrões? ...
Vou tratar este Templo, que tem o meu nome, e no qual colocais
toda a vossa confiança, este lugar que vos entreguei como aos
vossos pais, como tratei o santuário de Silo. Rejeitar-vos-ei como
rejeitei todos os vossos irmãos, toda a gente de Efraim".
Do mesmo se queixa o profeta Ezequiel em 8, 6: "Deus disse-me:
Filho do homem, vês o que eles fazem? Todas as abominações
horrorosas que a casa de Israel pratica aqui, para me afastarem do
meu santuário?". Também Isaías em 63, 3 critica o Templo por causa
do sincretismo religioso, isto é, do culto ao mesmo tempo
monoteísta e pagão praticado pelos judeus no Templo de Jerusalém.
Num escrito judaico mais ou menos do tempo de Jesus, chamado
Testamento de Levi, o autor do escrito considera os sacerdotes que
exercem funções no Templo como indignos e impuros, esperando, por
isso, que apareça um novo sacerdócio, e, com ele, os céus abrir-
se-ão e surgirá um Templo glorioso e cheio de santidade. O mesmo
acontece com o autor do livro dos Jubileus (cerca de 170 a.C.),
que não vê outra solução que não seja a de um novo Templo com
outras estruturas completamente diferentes.
A comunidade judaica dos essénios, que viviam na comunidade de
Qumran, muito perto do lugar onde S. João Baptista também
habitava, deixaram-nos dois textos, chamados respectivamente Rolo
do Templo e Nova Jerusalém, onde manifestam o seu repúdio por
aquilo que se passa no Templo de Jerusalém.
A tudo isto acresce ainda o facto de muitos judeus não concordarem
com a construção do Templo de Salomão e do segundo Templo de
ZOrobabel porque não estaria de acordo com o prescrito no livro do
Exodo 25-31, onde o próprio Deus determina a Moisés o modelo de
Templo que quer para si.
O que se pergunta, sobretudo em relação à narrativa da purificação
do Templo, na qual Jesus expulsa os cambistas e os vendedores de
pombas e animais para os sacrifícios, é se Jesus tem em vista
apenas uma declaração profética contra o estado actual do Templo,
tal como o fizeram Isaías e Jeremias, ou se, pelo contrário, Jesus
se pronunciou como Messias que vinha substituir o próprio Templo,
uma vez que semelhante Templo nada teria a ver com a vontade
original de Deus.
Os pronunciamentos negativos de Jesus sobre o sábado, a Lei, o
divórcio, etc., vão neste sentido. Todos estes pronunciamentos,
que correspondem a atitudes históricas de Jesus contra as
instituições mais sagradas da ortodoxia judaica daquele tempo,
teriam por finalidade chamar a atenção dos judeus sobre a própria
pessoa de Jesus e sua respectiva identidade. Ele veio desencadear
historicamente o Reino de Deus, substituindo -se, por isso mesmo,
ao Sábado, à Lei e ao Templo.
Não há dúvida que a prisão de Jesus, o seu julgamento diante do
Sinédrio e a sua morte se deram precisamente por causa da sua
atitude contra o Templo. É sintomática a pergunta dos responsáveis
judeus: "Com que autoridade fazes isto? E quem te deu tal poder?"
(Mt 21, 23 e par.). Também é sintomático o que descreve Marcos cm
15, 29 acerca das testemunhas que injuriavam Jesus suspenso na
cruz do Calvário: " Os que passavam injuriavam-no e, abanando a
cabeça, diziam: "Olha o que destrói o Templo e o reconstrói em
três dias! Salva-te a ti mesmo, descendo da cruz!" Também é
deveras significativo o facto da narrativa sobre a purificação do
Templo incluir, na mesma unidade literária, a parábola sobre a
figueira seca com as palavras trágicas de Jesus: "Nunca mais
ninguém coma fruto de ti" (Mc 11, 14 e par.). Não se pode duvidar
que a figueira representa simbolicamente o Israel que não dá os
frutos que Deus quer, e que, por isso mesmo, tem de ser
substituído. Acontece com esta parábola o que acontece com a dos
vinhateiros, que termina desta maneira: "Que fará o dono da vinha?
Regressará e exterminará os vinhateiros e entregará a vinha a
outros. Não lestes esta passagem da Escritura: A pedra que os
construtores rejeitaram tornou-se

37
pedra angular. Tudo isto é obra do Senhor e é admirável aos nossos
olhos?" (Mc 12, 9-12 e par.).
É por demais consabido que os exegetas discutem, sem nunca
chegarem a um consenso unívoco, sobre a historicidade de todos
estes textos. Não foram os evangelistas, influenciados pela
destruição de Jerusalém e seu Templo no ano 70, que inventaram
tais narrativas? Não se tratará de profecias ex eventu, já que os
evangelhos foram escritos muito depois do ano 70, se exceptuarmos
Marcos? Sem dúvida que as querelas entre o judaísmo e as
comunidades cristãs primitivas influenciaram estas narrativas, mas
não se pode duvidar que por detrás de todas elas está o Jesus
histórico, com todo o seu drama, frente a Israel e frente ao
Templo. E também é consentimento geral entre os exegetas que o
evangelho de Marcos, como dissemos acima, foi escrito antes do ano
70. Mas o argumento principal consiste no facto de que aquela
morte de Jesus não apareceu por acaso. O Sinédrio tinha que
arranjar uma causa grave para o prender e o denunciar,
precisamente nas vésperas da festa da páscoa. E tal razão de ser
ou argumentação realmente grave foi a atitude de Jesus frente ao
Templo como epicentro de toda a religião judaica. Nem a
alegorização do evangelho de João sobre a destruição do Templo
para significar a própria morte e ressurreição de Jesus como novo
Templo teria qualquer fundamento sem o facto histórico que a
pressupõe (Jo 2, 18-22: "Então os judeus intervieram e
perguntaram-lhe: 'Que sinal nos dás de poderes fazer isto?'
Declarou-lhes Jesus, em resposta: 'Destruí este Templo, e em três
dias eu o levantarei!' Replicaram então os judeus: 'Quarenta e
seis anos levou este Templo a construir, e tu vais levantá-lo em
três dias?' Ele, porém, falava do Templo que é o seu corpo. Por
isso, quando Jesus ressuscitou dos mortos, os seus discípulos
recordaram-se de que ele o tinha dito e creram na Escritura e nas
palavras que tinha proferido"').
Em conclusão, para apreciarmos a posição de Jesus em relação ao
Templo temos que apreciar também a sua posição em relação ao
Sábado e à Lei, e a verdade é que todos os textos coincidem pela
negativa. Jesus está descontente com o Templo, o Sábado e a Lei
porque, a partir destas instituições sagradas, o judaísmo daquele
tempo discriminava as pessoas e os dirigentes serviam-se destas
instituições para interesses próprios. O Reino de Deus que Jesus
vem apresentar como alternativa não pode estar de acordo com
semelhantes instituições sagradas.
6.3. LEI
O tema da Lei constituía um centro vital na religião judaica.
Juntamente com o Templo e o Sábado perfaziam uma trindade de vida
ou de morte. Todos os judeus se movimentavam em torno desta
trindade institucional, razão de ser do eu judaico. Entre as três,
a Lei era o fundamento das outras duas, uma vez que nada existe
sem a Lei de Deus pois constitui a ordem do Sábado e do Templo.
A palavra "Lei" aparece 31 vezes nos evangelhos e significa corpo
legislativo ou o corpo dos mandamentos que Deus deu a Moisés para
governar o seu povo. Por isso, tanto é chamada "a Lei do Senhor"
(Lc- 2, 23-24.39) como "a Lei de Moisés" (Lc 2, 22; Jo 7, 23). Em
cinco lugares, a Lei aparece de mãos dadas com os profetas na
frase "A Lei, os Profetas", e uma vez com a frase: "tudo quanto a
meu respeito está escrito em Moisés, nos Profetas e nos Salmos"
(Lc 24, 44).
Geralmente, a Lei tem a ver com o Pentateuco, mas quando se fala
de Lei e Profetas, ou de Moisés, Profetas e Salmos, tem a ver com
toda a Bíblia Hebraica ou com todo o AT: as Escrituras Sagradas.
Mas no NT, além da palavra nomos (LeI), também aparecem as
palavras entolè (mandamento) e dikaioma (decreto), e, ainda, a
referência pura e simplesmente a Moisés. Por aqui se vê que a Lei
se refere a maior parte das vezes ao Pentateuco, outras vezes a
todo o AT e ainda às leis tradicionais dos judeus, à sua Halakah,
que, actualmente, se apresenta na Mishna e no Talmude.
A Lei de Moisés é o tal corpo legislativo com que se comserva
Aliança de Deus com o seu povo. Primeiramente dá-se a gratuidade e
Aliança e só depois é que aparece a Lei para a defender (Dt 28, 1:
"@ escutarás a voz do Senhor, teu Deus, procurando observar todos
os seus mandamentos, que hoje te prescrevo, o Senhor, teu Deus, te
tornará

38
superior a todos os povos da terra"). Com o decorrer dos anos e
dos séculos, pela leitura que fazem os responsáveis de Israel, os
judeus foram, de facto, infiéis, e, por isso, sofreram penas e
castigos da parte dos seus inimigos, sobretudo o castigo do exílio
para a Babilónia (583-538 a.C.). Já antes, em 622, o piedoso rei
Josias tinha feito uma reforma religiosa para que os judeus
centralizassem toda a sua liturgia em Jerusalém, fugindo, desta
maneira, ao sincretismo religioso dos "lugares altos", onde se
adorava, ao mesmo tempo, o Deus Jahvé e os deuses da fertilidade.
A consequência desta reforma está patente na escola Deuteronomista
(Deuteronómio, Josué, Juizes, 1 e 2 de Samuel, 1 e 2 dos Reis). E
foi com o exilio que os judeus mais responsáveis começaram a reler
toda a sua história do passado, fazendo um grande exame de
consciência. Daqui provém o arrependimento nacional em relação ao
passado e a necessidade de não perderem o mesmo passado, tornando-
o, por isso, escrita "sagrada", surgindo, paralelamente 'a
esperança dum futuro mais fiel. Esta "fidelidade" tem que ver,
necessariamente - e uma vez mais - com a Lei. Assim, aparecem os
dois vectores da Lei: um ligado às tradições de Moisés,
configurado com os sacerdotes, levitas e, mais tarde, os doutores
da Lei, e outro perspectivado prolepticamente para um futuro
messiânico e escatológico. É desta forma que Jr 31, 31-34
apresenta a nova aliança fundada numa lei "impressa no íntimo de
cada judeu e gravada nos seus corações": "Dias virão em que
firmarei uma nova aliança com a casa de Israel e a casa de Judá -
oráculo do Senhor. Não será como a aliança que estabeleci com seus
pais, quando os tomei pela mão para os fazer sair da terra do
Egipto, aliança que eles não cumpriram, embora eu fosse o seu Deus
- oráculo do Senhor. Esta será a aliança que estabelecerei, depois
desses dias, com a casa de Israel
- oráculo do Senhor: Imprimirei a minha lei no seu íntimo e gravá-
la-ei no seu coração. Serei o seu Deus e eles serão o meu povo":
Também Ez 36, 26-27 fala de Deus a converter o seu povo a partir
dum novo coração "Dar-vos-ei um coração novo e introduzirei em vós
um espírito novo: arrancarei do vosso peito o coração de pedra e
vos darei um coração de carne. Dentro de vós porei o meu espírito,
fazendo com que sigais as minhas leis e obedeçais e pratiqueis os
meus preceitos."
Esta nova linha teológica desemboca nos profetas do pós-exílio e
na apocalíptica intertestamentária em que a Palavra e o Espírito
substituirão os ritos litúrgicos (cf. Jl 3, 1. "Depois disto,
derramarei o meu espírito sobre toda a humanidade. Os vossos
filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos anciãos terão
sonhos e os vossos jovens terão visões").
Quando chegamos ao tempo de Jesus, deparamos com estas duas linhas
sobre a Lei judaica, à primeira vista um pouco antagónicas: a
linha apocalíptica que não acredita mais na Lei de Moisés e da
tradição e a linha tradicional de fariseus e saduceus que
privilegia Moisés e a tradição. Jesus vai, por sua vez, dar relevo
à pessoa e não à Lei. Por isso, os autores perguntam-se se Jesus,
nas suas críticas à Lei, tinha por intenção anular a Lei e fundar
uma nova Lei e uma nova ordem ou, pelo contrário, apenas renovar e
espiritualizar a Lei de Moisés e as tradições do passado.
Vamos colher alguns pareceres de Jesus tal como nos aparecem nos
evangelhos e tentar compreender a situação, para entendermos
também a própria pessoa de Jesus.
Nos evangelhos sobressaem sobretudo as atitudes e palavras de
Jesus que, à primeira vista, parecem anular a Lei de Moisés e
demarcar uma nova Lei.
Em Mt 22, 34-40 e par., quando os fariseus e os saduceus se reúnem
para pôr à prova Jesus sobre a Lei, e lhe perguntam: "Qual é o
maior mandamento da Lei", ele responde com o mandamento do amor:
"Amarás o Senhor teu Deus e amarás ao teu próximo como a ti
mesmo....Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os
Profetas." Já vimos que a expressão "Lei e Profetas" engloba todas
as Escrituras judaicas. Assim sendo, Jesus afirma que nem a Torah,
nem a Halakah têm força de Lei se não estiverem sujeitas à Lei do
amor: Deus e os seus filhos, criados à sua imagem e semelhança (Gn
1, 27), é que são objecto da Lei e tudo o mais fica relativizado a
esta Lei do amor. Em Mt 7, 12 e par. Lc 6, 31, Jesus pronuncia a
mesma afirmação com a

39
chamada "Lei de ouro": "Portanto, o que quiserdes que vos façam os
homens, fazei-o também a eles, porque isto é a Lei e os Profetas".
Esta Lei do amor que privilegia as pessoas tem igualmente a ver
com os textos tipicamente de Mateus em que Jesus insiste na "Lei
da misericórdia" contra a "Lei ritual" (Mt 9, 13: "Ide aprender o
que significa: prefiro a misericórdia ao sacrifício. Porque eu não
vim chamar os justos, mas os pecadores"; cf. Mt 12, 7). Neste caso
concreto, os ",justos" são os fariseus e saduceus, cumpridores das
leis rituais, que, por isso mesmo, punham de parte os tais
"pecadores" que as não cumpriam. Na crítica feroz de Jesus contra
os doutores da Lei e contra os fariseus em Mt 23, 23, encontramos
o mesmo pensar de Jesus: "Ai de vós, doutores da Lei e fariseus
hipócritas, porque pagais o dízimo da hortelã, do funcho e do
cominho e desprezais o mais importante da Lei: a justiça, a
misericórdia e a fidelidade."
As curas que Jesus faz em dia de sábado, precisamente contra as
"obras" proibidas nesse dia pela Lei mosaica e pelas leis
halákikas, também têm a mesma função: primeiro é preciso salvar as
pessoas, curando-as dos seus males ou da sua fome, e, só depois,
salvaguardar o sábado. Jesus não se apresenta de maneira directa
contra o sábado, mas submete-o à pessoa. Em princípio, a Lei do
amor e da misericórdia, que coloca a pessoa necessitada por cima
de qualquer Lei, venha ela de Moisés ou da tradição, não anula
esta última Lei, mas submete-a à primazia da pessoa.
Mas esta submissão da Lei mosaica e da Lei das tradições
religiosas ao absoluto de Deus e da pessoa não é o mesmo que
anular a própria Lei?
Os comentadores biblistas dividem-se sobre este assunto.
Realmente, enquanto os escribas fariseus e saduceus insistem na
observância literal das leis, Jesus interpreta-as sempre a partir
do epicentro da pessoa. Sem dúvida que o amor ao próximo também é
recomendado no Pentateuco, ao lado do amor a Deus, só que este
"próximo" é exclusivamente o ",judeu" (Lv 19, 18: "Não te vingarás
nem guardarás rancor aos filhos do teu povo, mas amarás o teu
próximo como a ti mesmo").
No quarto evangelho, esta lei do amor é realmente chamada de
@@novo mandamento" (Jo 13, 34: "Dou-vos um novo mandamento: que
vos ameis uns aos outros assim como eu vos amei..."). A novidade,
neste caso, não consiste tanto em amar o próximo, mas em amá-lo
como Jesus o ama, isto é, em total doação e entrega, segundo o
contexto signático da ceia "de adeus" com o "lava-pés".
Descendo a alguns casos mais concretos, não há dúvida que Jesus
anula a Lei de Moisés do Dt 24, 1-4, que permitia a lei do
divórcio, ao contrário de Jesus, referindo-se, precisamente, à
vontade primeira e frontal do próprio Deus, citando Gn 1, 27 e 2,
24 (Mc 10, 2-10 e par.). Este caso particular é bem elucidativo do
pensar geral de Jesus sobre todas as instituições judaicas: a
intenção primigénia ou criadora de Deus sobre as suas criaturas,
como imagem e semelhança de si mesmo, está por cima de toda a Lei
de Moisés, por mais "sagrada" que seja e por cima de todas as
tradições que interpretam a mesma Lei. É o que Jesus profere em Mc
7, 8-13 ao referir-se à "tradição dos anciãos": "Descurais o
mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens".
Ou, então, em Mt 15, 2, à pergunta de alguns fariseus e escribas:
"Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos?",
Jesus responde: "E vós, por que transgredis o mandamento de Deus,
por causa da vossa tradição"? E um pouco mais adiante, Jesus
pronuncia-se da mesma forma: "E assim em nome da vossa tradição,
anulastes a palavra de Deus". O "mandamento de Deus" e a "palavra
de Deus" dizem a mesma coisa: é o pensar e a intenção primigénia
de Deus sobre a humanidade, que Jesus vem restaurar precisamente
com a instauração do "Reino de Deus". A legislação e a
jurisprudência de Jesus têm que passar sempre pelo humano.
Perante esta atitude de Jesus é difícil estabelecer qualquer
coordenada legislativa porque não há lei nem instituíção sem a
primazia da pessoa, até mesmo quando Jesus concorda com a Lei
mosaica dos dez mandamentos. É o que acontece com a narrativa de
Mc 10, 17-22 e par. sobre o jovem rico que quer "alcançar a vida
eterna". Jesus "receita-lhe" os dez mandamentos, que o jovem
"cumpria desde a juventude".

40
Desta feita, Jesus "fita nele os olhos, sente afeição por ele" e
diz-lhe: "Falta-te apenas uma coisa: vai, vende tudo o que tens,
dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e
segue-me." O centro da narrativa está no verbo "seguir"
(akoloutheô), que tem a ver com a Lei dos dez mandamentos e com o
que é mais do que a Lei. A "sacralidade" do seguimento não é
contra a "sacralidade" da Lei, nem forma uma nova Lei, legislação
ou jurisprudência, mas está de acordo com a vontade de Deus para
casos singulares, como aconteceu com os profetas, os apóstolos,
etc. É neste mundo de Deus que Jesus se situa e não no mundo dos
homens e suas leis, mesmo que tenham a ver com os dez mandamentos.
Diante da liberdade de Deus, sempre "incompreensível" ao simples
olhar da razão e da lei dos homens, nasce a vocação e a opção do
crente como novidade que mana da eternidade e se faz história na
vocação e opção do mesmo crente. Esta é a novidade de Jesus que só
a pessoa atinge no mais íntimo da sua fé e nunca nos parâmetros
das leis por mais sagradas que sejam.
Há em Jesus um excesso de vida quando confrontado com a Lei. Assim
se explicam as bem-aventuranças (Mt 5, 3-12 e Lc 6, 20-26) bem
como as propostas de contraste nas antíteses entre o viver dos
judeus segundo a Lei e o viver dos cristãos em Mt 5, 17-6, 24 (Mt
5, 20: "Porque eu vos digo: Se a vossa justiça não superar a dos
doutores da Lei e dos fariseus, não entrareis no Reino do Céu";
devemos ter em atenção também o refrão dos v.21.27. 33.38.43:
"Ouviste o que foi dito aos antigos ... eu, porém, digo-vos...").
Jesus refere a Lei e as tradições acerca do homicídio, adultério,
divórcio, juramentos, lei de talião, amor aos inimigos, a vivência
da esmola, da oração e do jejum. Em todas estas antíteses e
propostas de contraste com o "normal religioso dos judeus", o que
está em questão é a tal liberdade com que Jesus trata todas as
questões. E por detrás desta liberdade está a vontade criacional
do próprio Deus. Jesus não é o novo rabino que vem interpretar a
Lei para a transcender, mas o enviado do Pai que vem repor a
vontade do mesmo Pai. Por isso, não admira que os ouvintes fiquem
espantados (Mt 7, 28-29: "Quando Jesus acabou de falar, a multidão
ficou vivamente impressionada com os seus ensinamentos, porque ele
ensinava-os como quem possui autoridade e não como os doutores da
Lei").
Tudo quanto acabãmos de explicar encerra-se no verbo grego plèroô,
que significa "cumprir, completar, realizar, encher", e que
aparece 87 vezes no NT. Em relação à Lei trata-se dum sentido
figurado - significa que a Lei e as suas exigencias práticas se
devem cumprir ou realizar. Neste "realizar" a Lei, não se trata da
Lei jurídica como objecto, mas do que ela significa em relação ao
tempo novo do Messias. Assím, por exemplo, em Mc 1, 15: "O tempo
cumpriu-se", quer dizer que o tempo de todas as esperanças
messiânicas acaba por acontecer. E é por isso que da Lei de Moisés
se passa para a Lei de Cristo, como se lê em Gl 6, 2: "Cumprireis
a Lei de Cristo." Esta Lei de Cristo tem a ver com a lei nova do
amor fundada na maneira de ser do próprio Senhor Jesus Cristo.
Mas, para que aparecesse o Senhor Jesus Cristo, tinha que cumprir-
se tudo o que foi dito por Moisés e pelos profetas com vista ao
Messias. Em Mt 5, 17-18 temos um texto muito interessante, porque
à primeira vista parece que Jesus está a defender a Lei e os
Profetas contra quem quer ir para além do AT: "Não penseis que vim
revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas cumpri-los.
Porque em verdade vos digo: Até que passem o céu e a terra, não
passará um só jota ou um só ápice da Lei, sem que tudo aconteça
(heôs an panta genètai) ". Este infinitivo plèrôsai (cumprir), no
contexto do texto, só pode significar "fazer respeitar a lei e os
profetas" "para que tudo aconteça". O verbo "cumprir" do v.17 e o
verbo "acontecer" (gènetai) do v.18 formam uma unidade textual e
apresentam o desígnio de Deus sobre a salvação de Jesus Cristo - a
terra e o céu passam, mas a salvação tem que se cumprir e
acontecer. O mesmo aparece com o verbo "cumprir" em Marcos 1, 15:
peplèrôtai ho kairós, "cumpriu-se o tempo", isto é, o tempo da
salvação ou da nova idade acaba de se cumprir na pessoa de Jesus
Cristo. Da mesma maneira se lê em Lc 4, 21: peplèr, tai hè graphè
autè, "cumpriu-se esta Escritura", isto é, o tempo da actividade
salvadora de Jesus corresponde ao cumprimento daquilo que escreveu
Isaías em 61, 1. Igualmente lemos também em Lc 24, 44: "... era
necessário que se cumprisse tudo quanto a meu respeito está
escrito em Moisés, nos Profetas e nos Salmos". Em Mt 3, 15, Jesus
responde a S. João Baptista, que o quer impedir de se baptizar:
"Deixa por agora.

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Convém que cumpramos assim toda a justiça", isto é, toda a vontade
de Deus.
Em conclusão, todo o AT, inclusivamente a Lei, é visto numa
perspectiva profética e escatológica. Todo o AT é uma promessa que
se realiza ou se cumpre na pessoa de Jesus, e a Lei entra dentro
desta promessa, tal como os Profetas ou os Salmos. Por isso, Jesus
não veio abolir a Lei, mas fazer com que a mesma Lei se realize no
seu climax escatológico. A partir de agora, o ensino - e não uma
simples lei jurídica - passa pela pessoa de Jesus. Só ele tem a
autoridade final e definitiva para ensinar qual é o desígnio
escatológico de Deus, em que consiste o Reino de Deus, a salvação
e a nova humanidade.

7. A QUESTÃO SINÓPTICA
Passemos agora a um novo capítulo no nosso estudo sobre a pessoa
de Jesus. Vamos tentar compreender a chamada questão sinóptica.
Trata-se duma questão textual ligada aos evangelhos de Marcos,
Mateus e Lucas, mas que é fundamental para compreendermos o Jesus
real da história conjuntamente com o Jesus não menos real da nossa
Igreja.
Os leitores devem ter reparado que utilizo frequentemente esta
expressão: como está escrito em Marcos e paralelos, ou em Mateus e
paralelos, ou em Lucas e paralelos. Isto significa que determinado
texto, seja ele de narrativa, de ensino, etc., a que nós também
chamamos de "perícopa", se encontra nos três evangelhos de Marcos,
Mateus e Lucas, ou se encontra apenas em dois deles. Mas acontece
que as mesmas narrativas se exprimem de maneira, ao mesmo tempo,
semelhante e diferente. E nós temos que perguntar: se se trata da
mesma história ou do mesmo ensinamento, por exemplo do mesmo
milagre ou da mesma parábola, porque é que se apresenta, ao mesmo
tempo, tão semelhante e tão diferente? Mais complicado ainda é
quando os respectivos evangelhos apresentam textos muito
importantes que só aparecem num evangelho, quando, - segundo o
nosso parecer -, deveriam aparecer nos outros dois.
A questão sinóptica surge, portanto, do facto dos três evangelhos
de Marcos, Mateus e Lucas serem, ao mesmo tempo, muito semelhantes
e diferentes. Pondo de lado o chamado evangelho da infância de Lc
1-2 e Mt 1-2, que não aparece em Marcos, os três sinópticos narram
os mesmos passos mais significativos da pessoa de Jesus de Nazaré:
Jesus e João Baptista, pregação de Jesus na Galileia, tendo como
centro o Reino de Deus (Mateus diz Reino dos Céus) através de
pequenos discursos, diatribes retóricas, milagres e parábolas. Nos
três evangelhos

42
aparece Jesus rodeado dos doze discípulos e apóstolos, que umas
vezes o compreendem e outras nem tanto, e, finalmente, a história
da paixão, morte e ressurreição.
A palavra sinóptico provém do grego syn-oraô, que significa
precisamente visão de conjunto: os três evangelhos mantêm uma
visão de conjunto mais ou menos semelhante. O problema reside em
compreender por que é que há esta semelhança e esta diferença. Se
os discursos, as parábolas, os milagres, os diálogos com
discípulos e demais judeus são os mesmos, como se explica que haja
também enormes diferenças? Como se explica que os três divirjam no
número das parábolas e dos milagres e que as narrativas, quando se
trata dos mesmos milagres e das mesmas parábolas, sejam também
diferentes nos seus conteúdos? Como se compreende que a oração do
Pai Nosso só apareça em Mateus e Lucas, e não apareça em Marcos? E
como se compreende que mesmo em Mateus e Lucas, o Pai Nosso tenha
quatro pequenas diferenças? Como se compreende que as chamadas
bem-aventuranças, que também só aparecem em Mateus e Lucas, sejam
igualmente diferentes tanto no número como nos conteúdos? Como se
compreende que a última ceia seja descrita com bastantes variantes
entre os três sinópticos? Os exemplos podem estender-se às
narrativas da paixão e morte e, bem assim, às das aparições do
Ressuscitado. Como compreender que Mateus narre a única aparição
do Ressuscitado no monte da Galileia (Mt 28, 16-20) e Lucas na
cidade de Jerusalém (Lc 24, 36-49) e com conteúdos tão diferentes?
Como compreender que Marcos nem sequer atribua qualquer
importância às aparições do Ressuscitado uma vez que o Marcos
primitivo terminava em Mc 16, 8 com a narrativa da ida das
mulheres ao túmulo de Jesus? Como compreender que só Lucas tenha a
narrativa da Ascensão (Lc 24, 50-53), afirmando no evangelho que a
Ascensão se deu no próprio domingo da Ressurreição e, logo a
seguir, nos Actos dos Apóstolos, que se deu quarenta dias depois
da ressurreição (Ac 1, 9ss)?
Estes poucos exemplos já são suficientes para nos levantarem uma
quantidade de dúvidas e interrogações: os autores dos três
evangelhos são mesmo historiadores? De que história se trata? Há,
realmente, contradições entre eles? O que eles afirmam é para se
tomar à letra como história factual ou, pelo contrário, tratar-se-
á de um outro tipo de história? E não será que os autores destes
evangelhos inventaram ou criaram histórias que nada tiveram a ver
com a verdadeira história da figura central que foi Jesus de
Nazaré?
Para melhor compreendermos esta questão sinóptica vamos apresentar
alguns textos e tentar solucionar os tais porquês das semelhanças
e diferenças. Escolhemos as perícopas do Pai Nosso, bem-
aventuranças, última ceia, Ascensão e pregação de João Baptista
por serem muito significativas e paradigmáticas. A tradução terá
que ser o mais literal possível para melhor apreendermos a
questão.
Como iremos ver através destes exemplos e de muitos outros, os
evangelhos não nos apresentam uma biografia de Jesus. Os
evangelistas não tinham por intenção narrar os feitos e a doutrina
de Jesus como hoje nós lemos as biografias dum Gandhi, duma Madre
Teresa de Calcutá, dum Napoleão, etc. A sua finalidade era
catequética, isto é, apresentar uns tantos traços da vida de Jesus
que servissem de modelo atractivo para fundamentar a fé dos
cristãos das comunidades prímiti vas. Mas Mateus, Marcos e Lucas
viviam em comunidades muito diferentes. Eles não tinham sido
discípulos directos de Jesus. E Jesus nunca escreveu nada, nem
mandou escrever. Nenhum discípulo ou apóstolo andava de caderno e
caneta na mão a tomar notas e apontamentos dos feitos e da
doutrina de Jesus. Só bastante mais tarde, muitos anos depois da
morte de Jesus e depois da morte dos discípulos e apóstolos que
tinham andado com Jesus, é que os evangelhos foram escritos para
não se perder a memória desses feitos e dessa doutrina de Jesus
que, entre tanto, já era vida e alimento da pregação cristã. Mas
esta doutrina, estes feitos de Jesus, narrados agora nos
evangelhos, já tinham sido crivados pela fé dos cristãos na
Ressurreição. Os cristãos viviam a fé messiânica e salvadora no
Jesus Messias e Salvador, no Jesus da história e no Jesus
Ressuscitado. Assim se explica que os evangelhos sejam tão iguais
e tão distintos e que os evangelistas descrevam aquelas doutrinas
e feitos de Jesus, não numa perspectiva apenas biográfica, mas
também catequética. Por isso aquelas narrativas evangélicas têm a
ver

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com a vida de Jesus e com a vida da fé das comunidades cristãs
primitivas. Os exemplos que iremos apresentar a seguir irão
ilustrar-nos sobre a riqueza evangélica - e é preciso sublinhar
evangélica - da pessoa de Jesus e da pessoa das comunidades. É
esta história e esta fé que alimenta a nossa liturgia e a nossa
vida de cristãos e de Igreja.
7. 1. Pai Nosso
Na versão de Mateus 6, 9-15 lemos assim:
9 "Vós, pois, orai assim: Pai nosso que (estás) nos céus, seja
santificado o teu Nome,
10 venha o teu reino, seja feita a tua vontade como no céu também
na terra.
11 O nosso pão quotidiano, dá- (o) a nós hoje,
12 e perdoa-nos as nossas dívidas como nós também (já) perdoámos
aos nossos devedores.
13 E não nos introduzas na tentação mas livra-nos do Maligno."
Na versão de Lucas 11, 2-4 lemos assim:
2 "Ele disse-lhes: Pai! Seja santificado o teu Nome, venha o teu
Reino.
3 O nosso pão de cada dia, dá-(o) a nós em cada dia,
4 e perdoa-nos os nossos pecados, porque nós também (já) perdoámos
a todo aquele que nos deve. E não nos introduzas na tentação".
Como é fácil de ver, uma simples leitura comparativa entre o Pai
Nosso de Mateus e Lucas apresenta-nos quatro diferenças, sendo o
Pai Nosso de Lucas um texto mais curto que o de Mateus, pois
enquanto Mateus tem cinco versículos, Lucas tem apenas três. Em
Lucas não aparece: que estás nos céus, seja feita a tua vontade
como no céu também na terra, mas livra-nos do Maligno. Por fim, a
quarta diferença é que em vez de dívidas, Lucas tem pecados.
A primeira pergunta a fazer é esta: Quem é que é mais original,
Mateus ou Lucas? Os exegetas partem do princípio que o mais
original é o texto de Lucas pelo simples facto de ser o mais
curto, uma vez que há uma regra exegética fundamental, segundo a
qual o texto mais curto é o que mais se aproxima da fonte,
enquanto que o mais extenso se explica por razões catequétícas,
litúrgicas ou pastorais das respectivas comunidades onde teve
origem o evangelho e a quem é dirigido. Por outro lado, é fácil de
concluir que a mão redaccional de Mateus está bem patente no seu
Pai Nosso uma vez que Mateus nunca diz Reino de Deus, ao contrário
de Lucas e Marcos, mas sempre Reino dos Céus. Assim se explica
porque é que no seu Pai Nosso também diga que Deus (está) nos
céus. Como veremos, Mateus pertence a uma escola judeo-cristã,
para quem o nome sacrossanto de YAHVÉ não devia ser pronunciado,
substituindo-se por Céu, Nome, Altíssimo, etc.
Ao contrário de Lucas, Mateus tem Pai nosso. Em Lucas, o vocativo
Pai é uma pura invocação, e é natural que o pater grego seja a
tradução do aramaico Abba, que significa Papá/Paizinho. Dizer que
Deus é Papá/Paizinho era um puro escândalo para os judeus daquele
tempo, como o seria também para os judeo-cristãos das primeiras
comunidades. Assim se explica que Mateus escreva "Pai nosso que
estais nos céus". O pronome pessoal nosso tem a sua origem na
liturgia cristã primitiva da comunidade mateana. Enquanto que em
Lucas, o Pai tem a ver originalmente com o Pai/Papá de Jesus, em
Mateus o Pai tem a ver com o Pai comum da comunidade cristã.

44
O mesmo se diga da adição de Mateus seja feita a tua vontade como
no céu também na terra. Para Lucas basta dizer venha o teu Reino,
uma vez que na boca de Jesus o Reino já comporta a vontade de
Deus, mas Mateus tem a necessidade de explicitar em que consiste
este Reino: consiste em fazer a vontade do mesmo Deus na terra
como já acontece no céu. Semelhante explicitação é indício que o
texto mais curto de Lucas é o mais original.
Esta necessidade de explicitação aparece igualmente no fim do Pai
Nosso, para melhor compreender a tentação. Mateus adiciona: mas
livra-nos do Maligno. Para Mateus, a tentação é personalizada na
figura do Maligno. Não se trata apenas do mal, como é usual nas
nossas traduções bíblicas e litúrgicas, mas do Maligno.
Por tudo isto concluímos que a redacção de Lucas está mais próxima
da fonte e que a redacção de Mateus é um desenvolvimento do Pai
Nosso primitivo. Tudo isto vai trazer consequências muito
importantes para a compreensão dos evangelhos e para a compreensão
da pessoa de Jesus.
Outra diferença importante entre Mateus e Lucas reside na orígem
temporal e espacial do Pai Nosso em relação à pessoa do Jesus
histórico. Em Mateus, o Pai Nosso vem incluído no chamado "Sermão
da Montanha" (Mt 5-7), que é o primeiro dos cinco grandes
discursos de Mateus: cc.5-7; 10; 13; 18; 24-25. No c.6 do tal
"Sermão da Montanha", Jesus começa por referir o tripé fundamental
da piedade judaica: a esmola (6, 1-4), a oração (6, 5-15) e o
jejum (6, 16-18), opondo as atitudes judaicas às novas atitudes
cristãs: quando derdes esmola, quando rezardes e quando jejuardes
não o deveis fazer à maneira dos judeus hipócritas. E em relação
ao Pai Nosso, Mateus refere os judeus hipócritas e os pagãos: "Nas
vossas orações, não sejais como os pagãos, que usam de vãs
repetições, porque pensam que, por muito falarem, serão
atendidos... "(6, 7).
Mas em Lucas, a origem histórica e geográfica do Pai Nosso é outra
muito diferente. Ele narra que Jesus estava a orar algures (11,
1). E quando acabou, disse-lhe um dos seus discipulos: "Senhor,
ensina-nos a orar, como João ensinou também os seus discípulos. "
Esta situação enquadra-se muito melhor com o Jesus histórico, pois
sabemos que as diferentes correntes judaicas ou movimentos
religiosos judaicos tinham as suas próprias orações: fariseus,
saduceus, zelotas, joanitas, essénios. Era natural, pois, que os
discípulos pedissem a Jesus para lhes oferecer uma oração que os
distinguisse dos demais.
É também importante olharmos não apenas à origem do Pai Nosso -
como de qualquer outra perícopa -, mas também à conexão final com
a perícopa que se segue. Em Lucas, o Pai Nosso é seguido duma
parábola sobre a necessidade de recorrermos a quem nos possa
ajudar em situações de dificuldade (11, 5-8) e dum pronunciamento
de Jesus sobre a confiança na oração dos discípulos ao Pai (11, 9-
13). Mas em Mateus, Jesus continua com o assunto do perdão e não
da oração: "Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas,
também o vosso Pai celeste vos perdoará a vós... "(6, 14s). A
maneira como Mateus e Lucas apresentam a oração do Pai Nosso leva-
nos, então, a concluir, que os dois evangelistas têm uma tradição
histórica, oral e litúrgica diferentes, que os leva a redigir,
também de maneira diferente, a mesma oração. E, depois, ainda há o
facto de Marcos, - que foi o primeiro evangelho a ser escrito -,
não conter a oração do Pai Nosso. Será que o primeiro evangelista
não conhecia o Pai Nosso? É pergunta cuja resposta só entenderemos
com outras explicações fornecidas ao longo deste ensaio sobre a
pessoa de Jesus.
7. 2. BEM-AVENTURANÇAS
Vamos agora estudar as BEM-AVENTURANÇAS, que, como o PAI NOSSO,
também só aparecem em Lucas e Mateus, e de maneira bastante
diferente.
A versão de Mateus aparece no cap. 5, 3-12 desta maneira:
3 "Bem aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino
dos Céus.

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4 Bem aventurados os mansos, porque herdarão a terra.
5 Bem aventurados os aflitos, porque serão consolados.
6 Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão
saciados.
7 Bem aventurados os misericordiosos, porque receberão
misericórdia.
8 Bem aventurados os puros de coração, porque verão a Deus.
9 Bem aventurados os artífices da paz, porque serão chamados
filhos de Deus.
10 Bem aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque
deles é o Reino dos Céus.
11Bem aventurados sois vós, quando vos insultarem e perseguirem e
disserem todo o mal contra vós, mentindo por causa de mim.
12Exultai e alegrai-vos, porque a vossa recompensa (é) grande nos
céus: porque (foi) assim que eles perseguiram os profetas que
(existiram) antes de vós."
A versão de Lucas vem no cap. 6, 20b-26 desta maneira:
20b "Bem aventurados vós os pobres porque o reino de Deus é vosso.
21 Bem aventurados os que tendes fome, agora, porque vós sereis
saciados. Bem aventurados os que chorais, agora, porque vós haveis
de rir.
22 Bem aventurados sois vós, quando os homens vos odiarem, e
quando vos expulsarem e vos insultarem e vos rejeitarem como maus
por causa do Filho do Homem.
23 Alegrai-vos nesse dia e exultai, porque a vossa recompensa
(é)grande no céu: porque da mesma maneira os seus pais tratavam os
profetas.
24 Mas ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossa consolação.
25 Ai de vós, os que estais fartos, agora, porque tereis fome. Ai
(de vós) os que rides, agora, porque gemereis e chorareis.
26 Ai, quando todos os homens disserem bem de vós, porque da mesma
maneira os seus pais tratavam os falsos profetas."
Este quadro sinóptico patenteia muitas semelhanças e diferenças.
Quanto às semelhanças, trata-se de apresentar as quatro primeiras
bem-aventuranças, e, mesmo assim, com algumas diferenças. Quanto
às diferenças, Mateus apresenta nove bem-aventuranças, enquanto
que Lucas apresenta apenas quatro. Mas Lucas, além das quatro bem-
aventuranças, apresenta também quatro maldições, precisamente em
oposição às bem-aventuranças, e que não vêm em Mateus.
Nas quatro bem-aventuranças, comuns a Mateus e Lucas, há também
algumas diferenças substanciais, sobretudo porque Mateus
espiritualiza-as ao falar dos pobres em espírito (v.3), dos que
têm fome e sede de j'ustiça (v. 6), dos puros de coração (v. 8) e
dos perseguidos por causa da justiça (v.10). Como veremos mais
tarde, o termo justi'ça (dikaiosynè) é muito importante para
Mateus porque determina a nova moral cristã. Por isso é que
emprega por duas vezes este termo carregado de significado próprio
nas bem-aventuranças. Ter fome e sede de justiça, nada tem a ver
com a nossa justiça social, mas com a justiça da nova realidade da
fé cristã. Este significado é mais claro quando se refere aos
perseguidos por causa da justiça, isto é, por causa da fé cristã e
de tudo aquilo que essa fé implica. Por seu lado, Lucas é mais
directo e

46
incisivo: bem-aventurados vós, os pobres (v.2ob); vós, os que
tendes fome agora (v.21a),- vós, os que chorais agora (v.21b);
vós, os que agora sois odiados pelos homens (v.22). Isto significa
que Lucas apresenta as bem-aventuranças duma maneira mais radical,
de acordo com a realidade social de então (e de todos os tempos),
enquanto que Mateus moraliza ou espiritualiza as mesmas bem-
aventuranças. Por isso Mateus usa a terceira pessoa do plural e
Lucas a segunda.
Se perguntarmos qual dos dois é que está mais próximo das bem-
aventuranças pronunciadas por Jesus, devemos responder que é
Lucas. Como já vimos em relação ao Pai Nosso, também agora Mateus
desdobra e explicita as bem-aventuranças, seja em quantidade, seja
em interpretação. Tudo dá a entender que Jesus era directo e
certeiro quando se referia aos pobres e deserdados, tal como
acontecia com os profetas. Por isso devia ter usado a segunda
pessoa do plural e proclamar urbi et orbi com toda a clareza tanto
as bem-aventuranças como também as maldições: Deus está convosco,
vós, os pobres, vós, os esfomeados, vós, os que chorais, vós, os
mal amados por causa (da vossa fé) no Filho do Homem. O simples
facto de Mateus mudar a expressão por causa do Filho do Homem em
por causa de mim (v. 11) é um bom indício da originariedade de
Lucas, uma vez que só Jesus usa, e com frequência, o título
perifrástico de Filho do Homem para designar a sua pessoa.
Uma vez que Marcos não tem as bem-aventuranças, surge o mesmo
problema que já encontrámos com o Pai Nosso. Como é possível que
nem o Pai Nosso, nem as Bem-aventuranças apareçam em Marcos? Não
as conhecia? Deixamos - e uma vez mais - a pergunta em aberto
porque iremos encontrar muitos textos evangélicos que só aparecem
em Mateus e Lucas e não em Marcos. A resolução estará na chamada
fonte Quelle (palavra alemã que significa precisamente fonte) como
veremos mais adiante.
Com certeza que Jesus se referiu muitas vezes a estes bem-
aventurados, pobres e infelizes. Mateus e Lucas apenas nos
apresentam estas duas versões que a tradição cristã, através da
pregação oral, lhes forneceu. Mas, como vimos, é fácil discernir
que Mateus aplica as bem-aventuranças aos cristãos da sua
comunidade, sejam eles pobres ou ricos. O que interessa é que
sejam pobres de espírito, tenham fome de justiça, sejam
misericordiosos, puros de coração, artífices da paz, e não percam
a fé quando forem perseguidos por causa da justiça (isto é, por
causa da sua religião cristã). Se assim for, terão a certeza de
obter o Reino dos Céus na outra vida. Segundo Lucas trata-se dos
pobres reais, dos esfomeados reais e dos que choram pelas
dificuldades reais da vida. Deus está com eles, não apenas no
Reino dos Céus, depois da morte, mas já nesta vida. E o contraste
das quatro maldições, que só vêm em Lucas, mais reforça esta
ideia. É facto que o Jesus de Lucas é o grande amigo dos pobres e
dos pecadores. Necessariamente, esta pincelada tem a ver com o
Jesus da história e com o Jesus como Lucas o vê, porque o recebeu
da tradição.
Nós, cristãos de hoje, temos que saber conjugar estas bem-
aventuranças com a carga espiritual que lhes dá Mateus, e com a
carga real que lhes dá Lucas.
7.3. ÚLTIMA CEIA
Passemos agora a estudar a questão da última ceia. Não é possível
lermos o relato da última ceia como fizemos em relação ao PAI
NOSSO e às BEM-AVENTURANÇAS. É que a última ceia, com a respectiva
instituição eucarística, aparece em quatro autores: nos três
sinópticos (Mt 26, 26-29; Mc 14, 22-25; Lc 22, 15-20) e na 1Cor
11, 23-26.
É importante repararmos que se a "instituição da eucaristia" se
apresenta num quadro sinóptico de quatro autores diferentes: os
três sinópticos mais Paulo na 1Cor 11, 23-26, isto significa que
estamos diante duma narrativa histórica. É que, como veremos,
quando é apenas um evangelista a narrar um feito de Jesus, é mais
natural que seja um relato redaccional do próprio evangelista. Em
relação à Eucaristia a Igreja não inventou a Eucaristia, foi o
próprio Jesus que a criou nas vésperas da sua morte.

47
Mas esta asserção choca com o evangelho de S. João, que narra no
seu cap.13 uma ceia de "Adeus", sem qualquer instituição da
eucaristia. E perguntamos como é que o quarto evangelista não nos
apresenta nem uma ceia pascal nem uma ceia eucarística. Será que
na sua comunidade não se celebrava a eucaristia? A resposta vem no
cap. VI do seu evangelho, onde o Jesus de S. João nos apresenta as
palavras consacratórias que aparecem também nos três sinópticos e
em S. Paulo. De facto lemos em João 6, 52-56: "Então, os judeus,
exaltados, puseram-se a discutir entre si, dizendo: Como pode ele
dar-nos a sua carne a comer?! Disse-lhes Jesus: Em verdade, em
verdade vos digo: se não comerdes mesmo a carne do Filho do Homem
e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Quem
realmente come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna
e Eu hei-de ressuscitá-lo no último dia, porque a minha carne é
uma verdadeira comida e o meu sangue uma verdadeira bebida..."
Mais tarde veremos porque é que o autor do IV evangelho, de
maneira bem consciente, não nos quis apresentar a última ceia de
Jesus como ceia pascal e como eucaristia cristã. Importa é que
este simples facto deve obrigar-nos a pensar que os evangelhos não
nos apresentam uma mera biografia de Jesus como muita gente está
habituada a pensar.
Também já iremos ver que na narrativa da última ceia de Jesus dos
três evangelhos sinópticos e de S. Paulo há muitas diferenças. A
razão de ser está na maneira como S. Paulo recebeu esta história.
Ele vai falar-nos desta ceia eucarística com a seguinte introdução
na 1Coríntios 11, 23: "Com efeito, eu recebi (parelabon) do Senhor
o que também vos transmiti (paredôka ymin)...". Paulo não recebeu
do Senhor o que vai escrever sobre a instituição da Eucaristia
através duma revelação directa, mas sim através da tradição oral e
litúrgica da própria Igreja. É isto o que significa o verbo
receber (paralambanô). E como Paulo é o primeiro escritor do Novo
Testamento, devemos concluir que pelos anos cinquenta a eucaristia
era um rito cristão normal nas comunidades cristãs.
Uma outra conclusão importante é o facto dos quatro autores não
descreverem a eucaristia ou a ceia pascal cristã com todo o ritual
da ceia pascal judaica, que todos nós conhecemos, uma vez que a
eucaristia cristã foi instituída no decorrer da ceia pascal
judaica. A única coisa que interessa aos três evangelistas e a
Paulo é a eucaristia cristã e não a ceia pascal judaica. Mesmo
assim, Lucas distingue entre a primeira parte e a segunda parte do
ritual judaico.
Realmente, na ceia pascal havia duas partes bem distintas. A
primeira abria com a explicação do pater familias sobre o rito,
sempre relacionada com a libertação dos judeus do Egipto, seguida
depois da comida dos "aperitivos", da bebida da primeira taça, da
partilha do pão ázimo e da manducação do cordeiro pascal. A
segunda era preenchida com a bebida da segunda taça e com os
cânticos do Salmo 118 (Hallel). Lucas começa por apresentar Jesus
a pronunciar a sua homilia, à maneira do pater familias. "Eu
desejei ardentemente comer convosco esta Páscoa antes de
morrer..."(22, 15). Jesus não refere a sua última ceia pascal com
as referências à primeira Páscoa judaica no Egipto, mas à sua
própria Páscoa: não é o cordeiro pascal que se imola, mas ele
próprio. Depois, Lucas apresenta a primeira taça de vinho (v.17),
mas sem qualquer palavra consacratória ou eucarística. Segue-se,
então, a partilha e manducação do pão ázimo com as palavras
consacratórias: "Isto é o meu corpo... "(v. 19b). Terminada esta
primeira parte, Lucas refere explicitamente o começo da segunda
parte: "E a taça, da mesma forma, depois da refeição", com as
palavras consacratórias: "Esta taça é a nova aliança no meu sangue
derramado por vós." Neste particular, Paulo segue também a
tradição de Lucas.
Uma questão interessante - e embaraçosa - é a forma como Marcos
descreve a entrega da taça de vinho oferecida por Jesus aos
discipulos- "E tendo tomado uma taça, depois de dar graças, deu-a
[aos discípulos] e eles beberam todos dela." Só depois é que
Marcos apresenta as palavras consacratórias: "E ele disse-lhes:
Isto é o meu sangue da aliança, que vai ser derramado por muitos.
Será que Marcos não deu pela "gaffe" quando escreveu o seu
evangelho? Não temos qualquer tipo de resposta lógica para este
"erro", mas a verdade é que Lucas, Mateus e

48
Paulo são lógicos ao apresentarem primeiro as palavras
consacratórias, e, só depois, a acção de beber, ao contrário de
Marcos.
Já vimos acima, que Paulo segue a tradição de Lucas ao distinguir
as duas partes da ceia. O mesmo se diga de mais três pormenores,
aparentemente insignificantes, mas, deveras, significativos. O
primeiro refere-se ao pão-corpo de Jesus. Enquanto a tradição de
Marcos e Mateus diz apenas: "Tomai (Mateus ajunta: "comei"), isto
é o meu corpo", Lucas e Paulo escrevem: "Isto é o meu corpo
entregue por vós. Fazei isto em minha memória. " A primeira
adição: entregue por vós (to yper ymôn didomenon) tem um
significado sacrificial ou redentivo, que não aparece em Marcos-
Mateus. E a segunda adição: Fazei isto em minha memória interpreta
a ceia pascal cristã como verdadeiro sacramento daquele pão e
daquele vinho a ser vivido liturgicamente por todos os que
acreditam que estão, realmente, diante dum sacramento. Sem esta
memória sacramental, a última ceia ou eucaristia pascal só
afectaria directamente os discípulos. Paulo - mas, agora, só ele -
, repete esta sacramentologia da memória em relação à taça: "Fazei
isto, sempre que beberdes, em minha memória." O segundo elemento
comum a Lucas e Paulo tem a ver com a taça do vinho. Enquanto
Marcos e Mateus escrevem: " ... Isto é o meu sangue da
aliança...", Lucas e Paulo dizem: "Esta taça é a nova aliança no
meu sangue...". O facto de sublinharem que se trata da nova
aliança é deveras importante se tivermos em conta as alianças do
AT, sempre chanceladas com o sangue dos animais, e a proposta da
nova aliança de alguns profetas (cf. Jr 31, 31ss; Ez 16, 59-60;
36, 26-27). Todas as alianças do AT desaguam nesta nova, única e
definitiva aliança. O terceiro elemento está relacionado com as
últimas palavras de Jesus, que interpretam e reforçam as suas
palavras performativas ou consacratórias sobre a taça. Segundo
Marcos e Mateus, Jesus afirma que nunca mais há-de beber "do
produto da vinha até ao dia em que o beber, novo, no reino de
Deus" (Mateus diz: " ... no reino do meu Pai."). Lucas e Paulo
terminam doutra maneira. Lucas escreve: ... até que o reino de
Deus venha", e Paulo: " ... até que ele venha."
Não vamos entrar em pormenores de análise exegética e perguntar
quem é que está mais de acordo com a historicidade dos factos
naquela última ceia pascal e eucarística de Jesus. Têm-se escrito
livros e artigos sem conta sobre o assunto. Para o nosso caso, o
mais importante é constatarmos que há duas correntes da tradição
histórica: uma de acordo com Marcos e Mateus, e outra de acordo
com Lucas e Paulo. Partindo do princípio que Paulo foi o primeiro
a escrever, concluiríamos que é a corrente ou a tradição paulina a
mais antiga, e que foi ele quem influenciou a redacção de Lucas.
Mas, em contrapartida, é fácil perceber-se que a corrente ou a
tradição paulina e lucana explicitam a marciana e mateana. Por
isso, os problemas continuam todos em aberto. Seja como for, a
grande conclusão a tirar é esta: a última ceia de Jesus é-nos
apresentada em quatro autores, de acordo com a liturgia cristã
vivida a partir dos primeiros tempos da fé cristã, e de acordo com
duas correntes ou tradições semelhantes no essencial, mas
diferentes em detalhes significativos. Por isso, quando nós
celebramos todos os domingos a nossa eucaristia não estamos a
celebrar uma ceia judaica, mas uma ceia cristã. Os evangelistas e
S. Paulo apenas nos transmitem o rito sacramental da eucaristia
cristã e não a descrição da ceia pascal judaica. S. Paulo, na 1
Coríntios 11, 20 chama-lhe kuriakon deipnos, isto é, a "refeição
do Senhor".
7. 4. AsCENSÃO DO SENHOR.
Vamos continuar com o estudo da chamada questão sinóptica para
melhor entendermos a finalidade dos evangelhos como literatura
cristã de boa nova, e, não simplesmente, como uma mera biografia
de Jesus. Para tanto, é importante o estudo das narrativas da
ASCENÇãO DE JESUS, que só aparecem em Lucas.
O estranho está no facto, não tanto de Marcos e Mateus passarem ao
largo do acontecimento (Marcos descreve-a no c.16, 19, mas não
pertence ao evangelho primitivo), mas de Lucas descrever o mesmo
acontecimento de duas maneiras muito diversas, uma vez em Lc 24,
50-53 e outra vez em At 1, 9-11. Em Lucas 24, 50-53 temos a
seguinte narrativa:

49
50 "Então ele [Jesus] conduziu-os [os discípulos-apóstolos] até
Betânia e, erguendo as mãos, abençoou-os.
51 E aconteceu, ao abençoá-los separou-se deles e era levado para
o céu.
52 E eles, depois de se terem prostrado diante dele, voltaram para
Jerusalém com grande alegria,
53 e estavam continuamente no Templo louvando a Deus".
Na narrativa de Actos 1, 9-12 lemos assim:
1, 9 "E, tendo dito isto, como eles [os discípulos-apóstolos]
olhavam, foi elevado, e uma nuvem subtraiu-o aos seus olhos.
1, 10 E como eles tinham os seus olhos fixos no céu, enquanto
Jesus se afastava, surgiram de repente dois homens vestidos de
branco,
1, 11 que lhes disseram: 'Homens da Galileia, por que estais assim
a olhar para o céu? Esse Jesus que vos foi arrebatado para o Céu
virá da mesma maneira, como agora o vistes partir para o céu".
Os pontos de contacto entre o evangelho e os Actos consistem
apenas em duas coisas: 1) Jesus é elevado aos céus, 2) os
discípulos voltam para Jerusalém. As diferenças são puramente
literárias e sem grande importância. No evangelho, Lucas afirma
que Jesus abençoou os discípulos, que estes se prostraram [por
terra], isto é, que adoraram Jesus, que regressaram a Jerusalém
com grande alegria, e que louvavam a Deus continuamente no Templo.
Nos Actos é importante a pincelada de Lucas sobre a nuvem que
subtrai Jesus aos olhos dos discípulos.
A dificuldade não está, portanto, na descrição da Ascensão, mas no
tempo em que ela se deu e no porquê da mesma Ascensão, uma vez que
Mateus e Marcos não a descrevem.
Quanto ao tempo, no evangelho, Lucas coloca a Ascensão no mesmo
dia da Ressurreição (24, 1.36.44.50), enquanto que nos Actos
coloca-a quarenta dias depois da Ressurreição (1, 3.9).
Perguntamos então: como é possível que o mesmo autor descreva o
mesmo fenómeno com a diferença de quarenta dias um do outro,
formando os dois livros uma unidade, e seguindo-se as duas
narrativas imediatamente uma à outra? Que tipo de historiador é
Lucas que cai em semelhante erro histórico?
Lucas não está a enganar os seus leitores, nem é um mau
historiador. Como todos os demais evangelistas, Lucas é
precisamente um evangelista, o que é diferente de ser um
historiador, como nós concebemos hoje em dia os historiadores. O
evangelista trabalha a história em função do evangelho. Para ele
não existe uma história puramente objectiva e factual. Por isso,
nos Actos dos Apóstolos, o objecto da narrativa de Lucas é a
Palavra e o Espírito Santo, e tanto uma como outro não podem ser
objecto de historicidade objectiva. Os agentes da Palavra e do
Espírito é que são históricos: Pedro, os Doze, Estêvão, os sete
diáconos, Barnabé, Paulo, Silas, etc.
Porque é que Lucas escreve em At 1, 3: Jesus apareceu vivo aos
Apóstolos "depois da sua paixão e deu-lhes disso numerosas provas
com as suas aparições, durante quarenta dias, e falando-lhes
também a respeito do Reino de Deus"? A resposta é puramente
catequética e depende da intenção de Lucas acerca da importância
da Ascensão e dos quarenta dias. Se os outros dois sinópticos,
assim como João e Paulo nunca falam da Ascensão de Jesus, mas
apenas da Ressurreição e, com ela, da nova situação do
Ressuscitado à direita do Pai, quer dizer que Ressurreição,
Ascensão e Glorificação à direita de Deus são o mesmo
acontecimento. Lucas, como bom helénico é que gosta de distinguir
os diferentes estádios do mesmo mistério. Mas não é Lucas que
inventa este paradigma narrativo da Ascensão. Ele conhece bem a
literatura

50
apocalíptica das Ascensões de Enoc, Elias, Adão, Esdras, e muitas
outras figuras, e a literatura simbólica à volta do número
quarenta. (1)
Neste particular há que ter em linha de conta a simbólica do
número quarenta e a simbólica da nuvem. Quanto ao número quarenta,
no nosso caso concreto, simboliza o espaço de tempo absolutamente
necessário para uma catequese amadurecida (cf. Ex 24, 18, os
quarenta dias e as quarenta noites de Moisés no monte Sinai; 1Sm
17, 16, Golias a desafiar os israelitas durante quarenta dias; Jon
3, 4 e o profeta Jonas a caminhar pela grande cidade de Ninive e a
proclamar em voz alta: "Dentro de quarenta dias, Nínive vai ser
destruída").
Em Mc 1, 12-13 temos a descrição da tentação de Jesus, guiado pelo
Espírito Santo, a viver no deserto durante quarenta dias entre
animais selvagens e a ser servido pelos anjos. O facto de Jesus
estar no deserto, viver com os animais selvagens e ser servido
pelos anjos tem a ver com a recriação do Génesis, onde Adão vivia
igualmente com os animais selvagens e falava com Deus, pela
tardinha (Gn 2; 3, 8). Esta recriação passa-se - em simbólica
representativa - no deserto e na tentação, o que significa que o
Adam, que somos todos nós, passa pelo Adam genesíaco e pelo novo
Adam cristianizado. O mesmo acontece com At 1, 3, em que Jesus,
durante quarenta dias, falava aos discípulos sobre o Reino de
Deus. Trata-se duma catequese como preparação para a vinda do
Pentecostes, que tem mais a ver com a intenção de Lucas em relação
à vivência da Igreja do que com um facto histórico segundo o
sentido moderno da história.
O símbolo da nuvem revela e oculta a presença divina. É um símbolo
comum nas teofanias do AT e do NT (cf. Ex 16, 18; 19, 9.16; 24,
14-18; 33, 20). Entrar na nuvem ou ser coberto por ela é o mesmo
que penetrar na intimidade de Deus (cf. Ex 40, 35; Lc 9, 34). Nos
sinópticos têm importância as narrativas sobre a Transfiguração
(Lc 9, 34-35 e par.) e sobre o discurso apocalíptico (21, 27:
"Então verão o Filho do Homem vir numa nuvem, com grande poder e
glória"). Neste último texto é importante notarmos que nos
paralelos de Mt 24, 30 e Mc 13,
26 temos o plural, nuvens, enquanto que Lucas usa o singular. Em
Mateus e Marcos, o Filho do Homem vem como juiz "sobre as nuvens
do céu", em Lucas a nuvem significa sobretudo a vinda do Filho do
Homem - o Ressuscitado - Exaltado - e que, sem cessar, vem para o
meio dos homens, à maneira da vinda do Deus do AT, que se
manifesta ao seu povo em êxodo (Nm 9, 18.22; Ex 40, 35). A nuvem
simboliza, pois, a própria presença de Deus (cf. Dn 7, 13; Ex 13,
21-22; 16, 10; 1R
8,10-12).
A diferença teológico -catequét ica - e não tanto histórica -
sobre a Ascensão entre o terceiro evangelho e os Actos reside no
verbo abençoar, que aparece duas vezes no evangelho (24, 50-51), e
que tem por sujeito a pessoa do Ascensionado. Esta diferença surge
ainda na figura da nuvem, exclusiva dos Actos como vimos. No
evangelho, o centro da Ascensão reside na benção final de Jesus
aos seus discípulos, à imagem da benção final dos Patriarcas.
Nessa benção aparecem as últimas vontades do "pai - patriarca -
rabbi - messias", que, neste caso, é o envio da "promessa do Pai",
que se realizará no Pentecostes (24, 48). Com esta benção e com a
promessa do Espírito, Jesus continua para sempre presente no meio
dos discípulos e da sua Igreja. Por isso mesmo, a narrativa
evangélica não refere a vinda de Jesus. Mas, nos Actos, Lucas
refere esta vinda: "Esse Jesus que vos foi arrebatado para o Céu
virá da mesma maneira, como agora o vistes partir para o Céu" (1,
11). No evangelho, a Ascensão é apenas uma separação dos
discípulos (24, 51), enquanto que nos Actos é uma elevação numa
nuvem (1, 9), que representa simbolicamente a presença divina na
pessoa do mesmo Jesus. Por isso, a vinda não tem tanto a ver com
um futuro apocalíptico ou escatológico,

51
mas com um presente absoluto da Presença continuada. O virá
significa, segundo a modalidade verbal dos tempos hebraicos, que o
tempo de Jesus não acabou na Ascensão, mas que se vai completando
e realizando na vida dos discípulos. Afinal, toda a "história"
narrativa dos Actos não é outra coisa que esta vinda contínua e
sempre presente de Jesus através da Palavra e do Espírito. É
precisamente por isto mesmo que os dois homens da Ascensão (1, 11;
cf. também os dois homens do túmulo vazio em Lc 24, 4) criticam os
discípulos que ficam extasiados de olhos no céu à espera da
parusia final: "Homens da Galíleia, por que estais assim a olhar
para o céu?".
Embora as narrativas da Ascensão no evangelho e nos Actos pareçam
tão distintas, e até contraditórias, dizem a mesma coisa, se
considerarmos a intenção catequética do mesmo autor Lucas numa e
noutra, e se tivermos em conta o seu género literário apocalíptico
em Actos e de benção final no evangelho. A Ascensão não existiu
como facto real. Temos que olhar para o significado do texto e não
para a historicidade do mesmo texto. Os evangelhos são história e
teologia; umas vezes mais história e outras mais teologia. Na
narratíva da Ascensão temos uma narrativa teológica do mistério da
Ressurreição e não uma narrativa de história factual.
(1) Uma boa introdução aos Apócrifos do AT é a obra de A. Diez
Macho, em quatro volumes: Apocrifos del Antiguo Testamento, Madrid
1984ss. Reparemos apenas na narrativa da Ascenção de Enoc, no
primeiro livro de Enoc, segundo a edição de A. Diez Macho, Ibid.,
Vol. IV, p. 93s: "70, 1 E aconteceu que depois de tudo isto,
estando ainda vivo, a sua pessoa foi assumida diante desse Filho
do homem e do Senhor dos espíritos, para longe dos que moram sobre
a terra. 2 E subiu no carro do Espírito e a sua pessoa desapareceu
do meio deles. 3 Desde aquele dia não fui contado entre eles, e (o
Senhor) pôs-me entre os dois pontos cardeais, norte e ocidente,
onde os anjos, tomavam as medidas para me medir o lugar dos
eleitos e dos justos. 4 Ali pude ver os primeiros pais e os justos
que moram desde a eternidade neste lugar."
7. 5. PREGAÇÃO DE JoÃo BAPTISTA
Vamos terminar este confronto de textos sinópticos com a pregação
apocalíptica de João Baptista em Mt 3, 7-10 e Lc 3, 7-9, que diz o
seguinte:
7 "Vendo, porém, que muitos dos fariseus e saduceus vinham ao
baptismo, ele disse-lhes: 'Raça de víboras! Quem vos sugeriu a
fugir à cólera [que está] próxima?
8 Fazei, pois, um fruto digno de arrependimento
9 e não vos iludais dizendo a vós mesmos: 'Nós temos por pai
Abraão.' Porque eu vos digo que Deus pode, das pedras que estão
aqui, fazer surgir filhos a Abraão.
10 O machado já está posto à raiz das árvores; por isso, toda a
árvore que não der bom fruto é cortada e lançada ao fogo."
Existe um completo acordo entre Mateus e Lucas neste discurso de
João Baptista. A única diferença reside nos destinatários, pois
enquanto Mateus refere os fariseus e os saduceus, Lucas refere as
multidões. Não se trata apenas dum acordo completo nos conteúdos
do discurso, mas inclusive nas próprias palavras. A conclusão a
tirar é a seguinte: ou Mateus copiou de Lucas e vice-versa, ou os
dois copiaram duma fonte que lhes era comum. A primeira
alternativa não parece que se possa defender se tivermos em conta
os dois evangelhos, onde as diferenças e as semelhanças são mais
do que muitas, a começar pelos dois primeiros capítulos - o
célebre evangelho da infância. A resposta só pode ser esta: Lucas
e Mateus conheciam uma fonte comum, a tal Quelle, que mais adiante
iremos estudar.
Notemos depois esta realidade, como já vimos em relação ao PAI
NOSSO e às BEM-AVENTURANÇAS: todos estes textos só se encontram
nos evangelhos de Mateus e Lucas, mas não no de Marcos. É facto
que Marcos narra o encontro de Jesus com S. João Baptista, mas não
esta pregação. E como nestes quatro versículos temos as mesmas
palavras, isto não se explica pela tradição oral, mas só por uma
fonte comum a Mateus e a Lucas. Existia, portanto, uma espécie de
evangelho escrito, além de Marcos, que Mateus e Lucas conheceram,
mas que não chegou até nós. Reparemos, finalmente, que esta
pregação de S. João Baptista é de características apocalípticas.
Fixemo-nos bem na doutrina: "Raça de víboras! Quem vos sugeriu
fugir à cólera que está próxima ... o machado já está posto à raiz
das árvores; por isso, toda a árvore que não der bom fruto é
cortada e lançada ao fogo." S. João esperava um messias
apocalíptico que viesse desencadear o Reino total de Deus através
duma manifestação arrasadora. Mas não foi isso que Jesus veio
fazer e, por isso mesmo, houve desentendimentos profundos entre S.
João Baptista e o próprio Jesus no que diz respeito à vontade
final de Deus através do seu Messias, como veremos mais tarde.

52
A conclusão final do percurso por estas cinco perícopas ou
unidades literárias (Pai Nosso, Bem-aventuranças, Ceia do Senhor,
Ascensão e pregação de S. João Baptista) é fundamental para o
estudo que vamos expor a partir de agora.
Há um fundo comum de profundas semelhanças e diferenças, seja nos
três evangelhos, ou só em dois deles, ou - como no caso da
Ascensão - no mesmo evangelho. O nosso estudo vai, pois, procurar
entender como explicar esta concordância e discordância. Ao longo
das achegas exegéticas que já apresentámos foi fácil percebermos
que cada evangelista vai beber o seu evangelho à figura histórica
de Jesus de Nazaré - o chamado Jesus da história -, mas também a
tradições das comunidades cristãs primitivas que interpretavam
esse mesmo Jesus da história à luz do mistério pascal - o caso da
última ceia -, e, finalmente, à própria redacção do autor - como é
o caso da Ascensão apenas em Lucas.
Assim sendo, concluímos que, para compreender os evangelhos
sinópticos e, com eles e através deles, a pessoa de Jesus, temos
que saber distinguir as três etapas que condicionam os mesmos
evangelhos.

8. O JESUS DA HISTóRIA
A primeira etapa tem a ver com o chamado Jesus da História.
Ninguém duvida hoje em dia de que Jesus existiu, embora em tempos
passados se tivesse falado de figura lendária e mitológica. Trata-
se dum judeu que viveu a maioria dos seus anos em Nazaré, mesmo
que pouco saibamos das suas origens e da sua juventude. É
historicamente certo que, por volta dos trinta anos, deixa os seus
familiares em Nazaré e começa uma vida itinerante de pregador, de
profeta e de taumaturgo para anunciar a vinda próxima do Reino de
Deus. A sua vida faz um todo com esta pregação. Ainda hoje os
estudiosos do NT continuam e hão-de continuar a investigar sobre o
significado históríco e teológico deste sintagma - o Reino de Deus
-, uma vez que Jesus apenas o enunciou, mas nunca o explicou. As
suas parábolas são histórias fictícias que nos demonstram as
várias facetas deste Reino de Deus, mas também os seus milagres e
os seus pequenos discursos, narrativas de seguimento, diatribes e
controvérsias com amigos e inimigos.
É absolutamente certo que Jesus pregou o Reino de Deus em
parábolas, mas continua sempre por estudar quais são as autênticas
parábolas, tanto em número como em conteúdo, uma vez que o tempo
histórico da tradição e da redacção intervêm naturalmente neste
assunto. O mesmo se diga dos seus milagres, discursos,
controvérsias e diatribes com os seus amigos e inimigos. Quer isto
dizer que é sempre difícil chegarmos a concluir com precisão quem
foi e como foi o verdadeiro Jesus histórico e quais são as suas
ipsissima verba, isto é, as suas próprias palavras. O que os
evangelhos sinópticos nos apresentam são memórias desse verdadeiro
Jesus, pregador e profeta, que se distinguiu profundamente de
todos os profetas do AT, inclusive de Moisés, - como já vimos no
estudo que fizemos aos grupos judaicos daquele

53
tempo e às instituições religiosas de então - e que, pelo seu
mistério pascal, é depois acreditado, não apenas como pregador e
profeta, mas também como Messias, Filho de Deus, Salvador e
Senhor.
Saber situar o Jesus da história no contexto político, social e
religioso do seu tempo é absolutamente necessário para não cairmos
em fantasias lendárias e gnósticas, como foi apanágio de
evangelhos posteriores não canónicos (o exemplo do proto evangelho
de Tiago e todos os evangelhos gnósticos). Modernamente, muito se
tem escrito sobre Jesus como essénio, como um simples fariseu
reformador, como um mago, como um zelota ou guerrilheiro, como um
marxista, etc. Ao longo do nosso estudo abordaremos estas
posições.
Uma vez que a história de Jesus (jesuologia) se mistura nos
evangelhos com a cristologia e soteriologia, a descoberta do Jesus
histórico é um estudo académico relativamente recente, e é por
isso que os autores procuram encontrar critérios exegéticos
capazes de nos aproximar o mais possível desse Jesus histórico.
Semelhantes critérios variam de autor para autor, mas, duma
maneira geral, confluem nos seguintes: 1) o critério do embaraço
(quando os evangelhos afirmam dados que nos embaraçam porque nos
apresentam situações da vida de Jesus em aparente contradição com
a fé cristã sobre o mesmo Jesus, como é o caso do baptismo de
Jesus em Mc 1, 7-8 e par., ou o caso dos irmãos e irmãs de Jesus
em Mc 6, 3 e par.); 2) o critério da descontinuidade (quando se
trata de material próprio de Jesus, que não depende nem do
judaísmo nem das comunidades pós-pascais, como é o exemplo da
proibição de jejuar (Mc 2, 18, 22 e par.) ou a proibição do
divórcio mosaico (Mc 10, 2-12 e par.; 3) o critério do duplo
testemunho (quando os mesmos textos se encontram em mais do que
uma fonte ou tipo de materiais, como é o caso da proclamação do
Reino de Deus, da ceia pascal, de algumas parábolas, milagres,
paixão e morte); 4) o critério da coerência (quando a doutrina de
Jesus ou as suas acções concordam com a mesma doutrina e acções
autenticadas pelos outros critérios, como é o caso de Jesus se
servir da catequese de tipo oral e não lógico -racional, usando,
por isso, da sabedoria oral judaica e da apocalíptica, que têm a
ver, por exemplo, com a proclamação do Reino que já veio e que
ainda há-de vir); 5) o critério da língua aramaica (como é o caso
da evocação de Deus como Abba em Mc 14, 36; cf. Rm 8, 15; GI 4,
5); 6) o critério da rejeição e execução na Cruz, como
consequência normal política e religiosa da sua pretensão
messiânica e da sua pregação pouco ortodoxa quando comparada com a
ortodoxia de fariseus, saduceus e Sinédrio; 7) o critério das
origens cristãs, que não têm explicação se não aceitarmos o dado
histórico da vida de Jesus.

54

9. O JESUS DA TRADIÇÃO
Apresentámos acima os sete critérios para encontrarmos, no
emaranhado dos evangelhos sinópticos, o verdadeiro rosto do Jesus
histórico. Vamos agora apresentar o chamado Jesus da Tradição.
Uma vez que Jesus nada escreveu nem mandou escrever, e uma vez que
Jesus não morreu como todos os outros mortais, na medida em que os
seus discípulos mais próximos, a começar por algumas mulheres,
acreditam que ele ressuscitou, depressa se forma um pequeno grupo
de homens e mulheres que crêem que este homem é mais do que um
simples pregador, rabi, profeta e taumaturgo. Ele é o Messias, o
Filho de Deus e o Salvador que havia de vir ao mundo. Este grupo
de homens e mulheres concluem que o plano de Deus sobre a
humanidade atinge o seu clímax precisamente em Jesus de Nazaré.
Para tanto, perscrutam as Escrituras Sagradas dos seus
antepassados (o AT ou as Escrituras Hebraicas) e encontram nelas
os tipos ou a prefiguração deste Jesus de Nazaré. Tudo quanto
Jesus fez e disse já tinha a marca da autenticidade divina
naquelas Escrituras. Por isso mesmo, os evangelhos e, já muito
antes, as cartas de Paulo, estão cheias de alusões bíblicas ao AT,
que hoje chamaríamos apologéticas, sobre a vida de Jesus. Em quase
todos os discursos de Pedro e Paulo nos Actos dos Apóstolos (e
também de Estêvão em 7, 2-53) há um exórdio ou abertura, que
começa precisamente com este plano de Deus exarado nas Escrituras
e agora completado na vida do mesmo Jesus (At 2, 22: " ... este
[Jesus], depois de entregue, conforme o desígnio imutável e a
previsão de Deus. . . "; 3, 18: "Dessa forma, Deus cumpriu o que
antecipadamente anunciara pela boca de todos os profetas...";
v.24: "E, por outro lado, todos os profetas que falaram desde
Samuel anunciaram igualmente estes dias...";
10, 43: "É dele [de Jesus] que todos os profetas dão
testemunho..."; 13, 16-41; cf. v. 27: "Sem dúvida, os habitantes
de Jerusalém e os seus chefes

55
não quiseram reconhecer Jesus, mas, condenando-o, cumpriram, sem
disso se aperceberem, as profecias que são lidas todos os
sábados..."; vv.32s: "E nós estamos aqui para vos anunciar a Boa
Nova de que a promessa feita a nossos pais, Deus a cumpriu em
nosso benefício..."; 20, 27: " ... jámais recuei, quando era
preciso anunciar-vos todos os desígnios de Deus... "; 26, 6: "E,
agora, encontro-me aqui a ser julgado por causa da minha esperança
na promessa feita por Deus a nossos pais. . . "; v. 22: " ... sem
nada dizer além do que os Profetas e Moisés predisseram que havia
de acontecer").
É durante este período, logo a seguir ao mistério pascal, que
apóstolos, discípulos, evangelistas, profetas e doutores, anunciam
o kerigma cristão centrado na morte e ressurreição de Jesus. Neste
tempo, ainda não há os chamados ministérios eclesiais bem
estabelecidos. Por volta do ano cinquenta, Paulo escreve aos
Coríntios sobre a diversidade de dons e carismas de maneira livre
e de acordo com o Espírito Santo (cf. 1Cor 12, 8-11: o dom da
sabedoria, o da ciência, o da fé, o das curas, o dos milagres, o
da profecia, o do discernimento dos espíritos, o da glossolália, o
da interpretação da mesma glossolália. Ainda hoje continuamos a
discutir sobre os conteúdos de cada um destes dons e carismas e a
necessidade dos mesmos para um bom crescimento e organização do
corpo de Cristo-Igreja (1Cor 12, 14ss). Na continuação da
narrativa, Paulo faz esta afirmação: "Vós sois o corpo de Cristo e
cada um, pela sua parte, é um membro. E aqueles que Deus
estabeleceu na Igreja são, em primeiro lugar, apóstolos; em
segundo, profetas; em terceiro doutores [mestres]..." (1Cor 12,
27-28). Só depois é que vêm os que têm o dom dos milagres, das
curas, das obras de assistência, do governo e da glossolália. E,
por fim, para que não haja confusão e vaidade espiritual, Paulo
apresenta-nos um hino ao amor, o dom e o carisma que está por cima
de todos os demais, e ao qual todos os outros devem obedecer (1Cor
13).
Ficamos, então, a saber, que naquelas primitivas comunidades,
mormente nas paulinas (nas cartas chamadas pastorais e nas
chamadas católicas o assunto já é diferente), se anunciava a nova
fé cristã de maneira muito livre, e sempre na dependência do
Espírito Santo, isto é, da força divina do Pai e do Filho que tudo
determina e a todos impulsiona. Mesmo assim, o Apóstolo distingue
entre "apóstolos, profetas e doutores", que encabeçam todos os
demais ministérios. Mas também não nos é fácil estabelecer
conteúdos precisos para estes três ministérios, tanto mais que, ao
falar de apóstolos, Paulo não pensa apenas nos Doze, mas também
nele próprio e em tantos outros que o acompanham como enviados por
Jesus Cristo para a obra da nova fé ou boa nova (evangelho).
O que Paulo quer significar com estes ministérios da Palavra é a
sua oposição à Lei de Moisés, muito estática em todos os seus
mandamentos e preceitos, segundo a qual advinha a justificação
para os judeus que a cumpriam. A justificação -salvação residia,
agora, na fé em Jesus Cristo, e não na Lei, e era preciso que esta
nova maneira de acreditar fosse espalhada por todo o mundo.
São estes apóstolos, profetas, doutores, evangelistas,
catequistas, etc., que espalham a fé cristã um pouco por toda a
parte, no meio de dificuldades internas e externas, e é esta fé
que aparece nos nossos evangelhos.
Nesta perspectiva, não há dúvida de que a pregação apostólica
destes apóstolos, profetas e doutores, se adaptava às novas
circumstâncias consoante os destinatários da mesma pregação. O
Jesus da história era um judeu da Galileia que falava em aramaico
para galileus, enquanto que agora estes evangelistas cristãos
falavam em grego para judeus, gregos e romanos, fossem eles rurais
ou citadinos. Só a simples passagem do aramaico para grego tem as
suas implicações nos evangelhos.
Reparemos no exemplo das palavras de Jesus sobre o divórcio em Mt
5, 31-32; 19, 7-9; Mc 10, 4-12 e Lc 16, 18. Em Mateus e Marcos
Jesus responde de maneira negativa aos judeus que defendiam a
possibilidade do divórcio de acordo com a lei de Moisés em Dt 24,
1. Em Mt 19, 8 Jesus apresenta o critério do próprio Deus: " ...
mas desde a origem não era assim." Em Mt 5, 3 1, Jesus apresenta a
sua própria autoridade: "Foi dito: 'Aquele que repudia a sua
mulher, passe-lhe um documento de divórcio', mas eu digo-vos...".
Em Mc 10, 5, Jesus refere a dureza do coração dos judeus: "Por
causa da vossa dureza do coração

56
Moisés deixou-vos este preceito." Qual foi o verdadeiro critério
que o Jesus histórico usou? É impossível qualquer conclusão de
modo absoluto, porque os três critérios obedecem à tal pregação
apostólica dos apóstolos, profetas e doutores. O assunto é tanto
mais interessante quanto Jesus, apenas em Mateus (Mt 5, 32 e 19,
9), refere uma excepção para a possibilidade do divórcio: "... a
não ser em caso de adultério da mulher". Em caso de infidelidade
da mulher, segundo Jesus, o marido podia divorciar-se dela. Mas
todos sabemos que Jesus ia à raiz das questões e não admitia
excepções deste género. Isto leva-nos à conclusão de que é o
próprio Mateus, por razões pastorais da sua comunidade, e não
Jesus que abre esta excepção. Esta inculturação ainda é mais
patente na versão de Marcos uma vez que este evangelista - e só
ele - admite a possibilidade de também a mulher se poder divorciar
do marido (Mc 10, 12: "E se aquela que repudiou o seu marido se
casar com outro, comete um adultério."). Esta adjunção de Marcos
só se pode compreender dentro da moral matrimonial de gregos e
romanos, onde, realmente, a mulher também tinha o direito de se
divorciar, mas nunca na dos judeus.
Como estes exemplos, há muitos outros que poderíamos aduzir.
Nesta época da pregação apostólica, a liturgia - como se viu no
último exemplo apresentado -, deve ter influenciado bastante a
doutrina evangélica, sobretudo na questão da oração, do sábado, do
baptismo e da eucaristia. Como veremos, o evangelho que melhor
espelha este tipo de influências é o de Mateus. Por isso mesmo é
que ele termina com o sermão do Ressuscitado no monte da Galileia
a pedir aos onze discípulos: "Ide, pois, fazei discípulos de todos
os povos, baptizando-os em nome do Pai, e do Filho e do Espírito
Santo" (Mt 28, 19). Semelhante doutrina sobre o baptismo e sobre a
Trindade vai muito além do Jesus histórico. Jesus foi baptizado,
mas segundo a tradição sinóptica nunca baptizou nem se referiu
jamais ao baptismo cristão. Este é um resultado da vivência da
Igreja à luz do Espírito Santo. O mesmo se diga da doutrina da
Trindade, tanto mais que nas cartas de Paulo temos fórmulas
triádicas e não propriamente trinitárias. Por isso, a prática do
baptismo cristão influenciou a doutrina trinitária e vice-versa.
Deste período da pregação e tradição apostólica advém muito do
material das controvérsias de Jesus contra os judeus,
especialmente contra os fariseus, tanto mais que, como vimos,
depois da queda de Jerusalém, no ano 70, desaparecem os saduceus,
os zelotas, o Sinédrio, o Templo e os sacerdotes, mas permanecem
os fariseus que vão salvar o judaísmo da derrocada. E são
precisamente estes fariseus que, na assembleia de Jabne, impõem a
expulsão dos judeus cristãos das suas sinagogas (Jo 9, 22 e 16, 2)
e estabelecem uma oração própria contra os minim (cristãos). Uma
vez mais, é o evangelho de Mateus (mas, agora, também o de João)
que mais influências absorveu deste tempo apostólico. Iremos,
pois, a seguir, estudar a última etapa da elaboração dos
evangelhos sinópticos, chamada precisamente a etapa do Jesus da
redacção.

57

10. O JESUS DA REDACÇÃO
Pela etapa da Redacção, descobrimos que os autores dos evangelhos
não foram apenas compiladores de tradições históricas mas também
verdadeiros autores. Autor é aquele que dá forma e sentido à sua
investigação histórica. E é por isso que os exegetas procuram
encontrar em cada evangelho a sua estrutura através da sintaxe, da
semântica e da intencionalidade. Todos eles têm formas próprias
gramaticais e uma semântica teológica própria.
Lucas é o evangelista que melhor serve de modelo como autor, uma
vez que começa o seu evangelho com um prólogo de fundamentação
histórica:
"Visto que muitos empreenderam compor uma narração dos factos que
entre nós se consumaram, como no-los transmitiram os que desde o
princípio foram testemunhas oculares e se tornaram servidores da
Palavra, resolvi eu também, depois de tudo ter investigado
cuidadosamente desde a origem, expô-los a ti por escrito e pela
sua ordem, caríssimo Teófilo, a fim de reconheceres a solidez da
doutrina em que foste instruído" (Lc 1,1-4).
Lucas afirma, então, que já antes dele muitos outros tinham
escrito sobre o mesmo assunto. E trata-se de testemunhas oculares,
que depois se tornaram servidores da Palavra. O que interessava a
estas testemunhas oculares não era tanto a realidade histórica
factual, mas a sua base histórica para que a pregação da Palavra
tivesse um sentido ou um acento bem histórico. A Palavra não era
uma filosofia, uma gnose ou uma iniciação de mistérios de
salvação, mas girava em torno duma narração (diègèsis) dos factos
que entre nós se consumaram. Trata-se de

58
factos e não de mistificações ou lendas. Mas uma vez que estes
factos são a base sólida para a Palavra, a história transforma-se
em história da salvação, tanto mais que a finalidade de Lucas é
apresentar factos a Teófilo para que a sua fé em Jesus Cristo
tenha solidez.
Lucas não é um historiador que apresente ao seu amigo Teófilo a
verdade factual duma vida de Jesus, mas a verdade da fé
fundamentada em factos. A história está em função da Palavra e da
Fé e não o contrário.
E quem foram estes "muitos" que empreenderam compor antes de Lucas
o que também ele agora compõe? Como veremos, apenas nos chegou às
mãos antes de Lucas, o evangelho de Marcos e a fonte Quelle. Mas
não há dúvida que muitos outros terão escrito sobre aquilo que se
pregava acerca de Jesus, mas cujos escritos não chegaram até nós.
Naquele tempo dava-se mais valor à verdade da Palavra saída
através da tradição oral do que à escrita propriamente dita. A
catequese passava pela oralidade e não pela escrita. É por isso
que Papias, bispo de Hierápolis, cerca de 115 p.C., procurava
falar com as pessoas que tinham contactado directamente com as
testemunhas oculares de Jesus, a começar pelos próprios Apóstolos,
a fim de fundamentar a sua fé nas testemunhas pessoais e não tanto
nos escritos.
Os chamados "cabeçalhos" dos evangelhos: "Evangelho segundo S.
Mateus ... segundo S. Marcos ... segundo S. Lucas... segundo S.
João", só aparecem nos princípios do século terceiro, o que
significa que não foram os autores que hoje conhecemos como
Mateus, Marcos, Lucas e João que puseram o seu nome na respectiva
obra ou evangelho, mas foi a Igreja. Também não conhecemos nenhum
manuscrito desses autores, mas apenas cópias de cópias. Os
manuscritos mais antigos em códices que possuímos de todo o NT
remontam ao séc. IV. Antes desta data temos códices e pergaminhos
parcelares, alguns escritos dos chamados Padres da Igreja e já
alguns textos evangélicos em traduções antigas (copto, siríaco e
latim).
O facto de a Igreja escolher Mateus, Marcos, Lucas e João para
autores dos respectivos evangelhos, não significa que corresponda
à verdade histórica. A Igreja depende da tradição sobre este
assunto, mas a tradição fundamenta-se na apostolicidade dos
autores. Era preciso que os autores fossem apóstolos ou discípulos
directos dos apóstolos. Teríamos, então, dois apóstolos, Mateus e
João, e dois discípulos de apóstolos, Marcos e Lucas. Mas a
moderna crítica bíblica conclui sobre a incerteza de semelhantes
atribuições, pelo menos no que se refere a Mateus e a João. No
nosso caso, o que interessa é a afirmação de que os autores dos
evangelhos, sejam eles quem forem, são verdadeiros autores e não
simples compiladores de factos e narrativas. A redacção final tem
a ver com uma organização interna bem ordenada das tradições
escritas e orais que os respectivos autores possuíam. Depois
veremos que cada autor apresenta materiais próprios, exclusivos a
cada autor, como já vimos, aliás, com o estudo que fizemos da
narrativa da Ascensão, que só aparece em S. Lucas. A estes textos
chamamos de redaccionais, e dão-nos a tónica catequética,
teológica, cristológica, eclesiológica, pneumatológica, de cada
um.
O facto dos evangelhos não terem sido escritos por testemunhas
oculares explica mais facilmente as divergencias entre eles. Quem
lê os evangelhos (e toda a Bíblia) de maneira fundamentalista e
historicista procura explicar estas divergências através do
concordismo bíblico. Vejamos o exemplo do sermão da montanha.
Realmente Mateus 5, 1 chama-lhe sermão da montanha, que abrange os
cc.5-7 de Mateus, mas Lucas, em 6, 17 chama-lhe sermão da
planície. Trata-se de dois sermões de Jesus, um na montanha e
outro na planície ou de um só sermão? Claro que se trata de um só
sermão. Mas como a palavra montanha, em Mateus, tem um significado
especial, pois vê Jesus como sendo o novo Moisés que sobe à nova
montanha do Sinai para nos dar a sua doutrina, chama-lhe sermão da
"montanha", enquanto que Lucas não tem essa maneira de ver a
pessoa de Jesus tão ligada à figura de Moisés. A solução não está
no concordismo, mas na intenção do evangelista como autor da sua
respectiva obra. Assim sendo, a conclusão mais importante a tirar
é a seguinte: os evangelhos foram compostos com uma ordem lógica e
não necessariamente com uma

59
ordem cronológica. Como autores, os evangelistas são também
teólogos quando direccionam as suas tradições ou quando adicionam
o seu material próprio às mesmas tradições com fins ou objectivos
específicos.
Surge, assim, tantas vezes, a questão sempre presente, entre a
verdade bíblica e a verdade histórica. Entre uma e outra não há
qualquer contradição ou oposição desde que partamos do pressuposto
de que os autores dos respectivos evangelhos não tiveram por
intenção escrever uma biografia de Jesus como hoje entendemos o
género literário biográfico. A sua intenção, como já vimos com o
prólogo de Lucas, é fundamentar a fé dos seus leitores e ouvintes.
Por isso, não estranha que cada autor possa compor as suas
tradições segundo objectivos próprios. A sua verdade tem a ver com
a história em função da fé e da salvação e não o contrário.
Veremos como isto é fundamental para compreendermos as profundas
divergências no chamado evangelho da infância de Lucas e Mateus.
Mas também compreendemos que muitos cristãos tenham perdido a fé,
em tempos passados, quando se confundia verdade bíblica com
verdade histórica factual. E também compreendemos que, hoje em
dia, um dos problemas fundamentais no estudo da Bíblia continua a
ser esta tónica da verdade, sobretudo por causa do aparecimento
das novas igrejas de tipo fundamentalista e historicista.
Como já vimos, os exegetas servem-se de critérios para atingirem o
mais possível os ditos e os factos do Jesus histórico, mas, por
mais que investiguem, nunca chegarão a uma verdade histórica
absolutamente comum e neutral, uma vez que se trata de quatro
evangelhos com visões teológicas, cristológicas e eclesiológicas
bastante distintas. É que, finalmente, tudo o que temos nos
evangelhos vem de Jesus Cristo e vem da Igreja, e, para quem
acredita, tanto é verdade o que vem de Jesus Cristo como o que vem
da Igreja. Veremos, então, como este estudo é importante para a
compreensão das chamadas duas fontes que presidem à feitura dos
três evangelhos sinópticos: a fonte do evangelho de Marcos e a
fonte chamada em alemão Quelle.

11. AS DUAS FONTES
Chegados a este ponto da nossa investigação sobre a questão
sinóptica, terminamos com a hipótese das duas fontes como a
solução mais provável para o assunto.
Por tudo quanto já vimos e iremos estudando ao longo do nosso
trabalho, concluiremos que Marcos foi o primeiro evangelho a ser
escrito e que Lucas e Mateus o tinham à mão e o seguiram como
fonte inspiradora para os seus evangelhos. A segunda fonte, como
já foi aludido, consiste na Quelle, e tem a ver com o material
evangélico comum a Mateus e Lucas, mas que não aparece em Marcos.
Esta solução é relativamente recente, e não significa que seja a
última palavra da exegese. Até ao séc. XVIII, o problema não se
punha com esta acuidade, mas já fora intuído pelos próprios Padres
da Igreja. Se, realmente, tivéssemos apenas um evangelho, tudo
estaria resolvido uma vez que não haveria a possibilidade de
compararmos vários textos. Mas como temos três sinópticos - para
além de João -, tão semelhantes e tão díspares, o problema tem que
ser enfrentado sem medo.
A favor da prioridade de Marcos sobre Mateus e Lucas há,
efectivamente, argumentos de ordem interna muito pertinentes.
Comecemos por reparar no número dos versículos dos três
sinópticos. Marcos contém 661, Mateus 1.068 e Lucas 1.149. Mateus
absorve oitenta por cento dos versículos de Marcos e Lucas
sessenta e cinco por cento. Quando o mesmo material evangélico
aparece nos três sinópticos classificamo-lo de "tripla tradição".
Quando aparece apenas em Lucas e Mateus e não em Marcos, que
perfazem uns 220-235 versículos, classificamo-lo de "dupla
tradição". Quando é material exclusivo

60
de cada um dos evangelhos - como já Vimos -, classificamo-lo de
material redaccional de cada um dos autores.
Para provarmos a prioridade de Marcos, reparemos que Mateus e
Lucas sempre que estão de acordo com Marcos, nunca discordam um do
outro, embora Marcos possa concordar com Mateus ou com Lucas ou
com os dois em conjunto.
A prioridade de Marcos prova-se ainda pelos dados evangélicos
sobre as proclamadas profecias "ex eventu" de Jesus, sobretudo no
evangelho de Lucas, ao descrever a destruição da cidade de
Jerusalém. Em Lucas 13, 35a Jesus prediz: "eis que a vossa casa
está abandonada" (fica abandonada). Jesus refere-se, sem dúvida
alguma, a Jerusalém, se tivermos em conta o v.34: "Jerusalém,
Jerusalém, tu que matas os profetas...". Com raras excepções, os
autores concluem que se trata duma referência à cidade de
Jerusalém destruída no ano 70, segundo o método das profecias "ex
eventu".
No discurso "escatológico" de Jesus sobre o templo, enquanto que
em Mc 13, 14 temos uma referência à "abominação da desolação" (cf.
Dn 11, 12 e 9, 27), em Lc 21, 20 fala-se de Jerusalém cercada de
exércitos: Quando virdes Jerusalém cercada de exércitos, ficai
sabendo que se aproxima a sua desolação" (eremôsis). Enquanto que
Marcos se refere à profanação do Templo, com uma alusão ao profeta
Daniel, Lucas, pelo contrário, refere-se à destruição da cidade de
Jerusalém. O desenvolvimento de Lucas em relação ao original de
Marcos parece ser claro. Em Lc 19, 43-44 descreve-se a tomada de
Jerusalém: "virão dias sobre ti em que os teus inimigos te
circundarão com tapumes, te rodearão por todos os lados, esmagar-
te-ão, a ti e aos teus filhos, que estão no meio de ti, e não
deixarão pedra sobre pedra, porque não reconheceste o tempo da tua
visitação." Esta terminologia lucana é tipicamente militar.
Especialmente no v.43, razão porque os autores costumam chamar a
atenção para o paralelo com Flávio Josefo, ao descrever a
derrocada de Jerusalém no ano 70 pelas tropas de Tito. Marcos
parece que não tinha ainda conhecimento da destruição de Jerusalém
quando escreveu o seu evangelho, ao contrário de Lucas.
Para provar a teoria das duas fontes e a prioridade de Marcos, os
autores referem ainda o prólogo de Lc 1, 1-4, onde o autor parece
distinguir duas gerações, a das testemunhas oculares e a sua
própria geração. A composição da sua obra situar-se-ia num período
posterior, e entre esses muitos da primeira geração, que
escreveram antes dele, estaria também Marcos.
É importante também repararmos no factor literário dos três
sinópticos. Todos eles utilizam o grego popular de então, chamado
koine, que tem como pano de fundo o aramaico popular, mas Mateus e
Lucas, sempre que podem, melhoram o grego de Marcos demasiadamente
popular. Ainda dentro deste capítulo, Mateus e Lucas procuram
suavizar algumas expressões de Marcos um pouco "escandalosas", ou,
inclusivamente, suprimí-las (cf. Mc 3, 5: "Então [Jesus] olhando-
os com ira..." e Lc 6, 10: "Olhando-os a todos em volta...".
Mateus suprime pura e simplesmente esta passagem. Em Mc 10, 14:
"Jesus indignou-Se/enfadou-se...", mas Mateus e Lucas suprimem
este verbo, provavelmente por caracterizar de maneira tão dura os
sentimentos de Jesus). Quando Mateus e Lucas escrevem os seus
evangelhos, a cristologia já estava mais desenvolvida e, por isso,
a pessoa histórica de Jesus tinha que ser apresentada de maneira
mais hierática e menos humana.
Já numa perspectiva de critérios internos cristológicos, os
autores aludem, finalmente, ao facto de Marcos não conter o
"evangelho da infância", nem o "evangelho das aparições" (o Marcos
primitivo terminava em 16, 8), ao contrário de Mateus e Lucas. O
mesmo se diga de textos fundamentais como são, por exemplo, o Pai
Nosso e as Bem-Aventuranças. Isto indicaria que Mateus e Lucas
representam um desenvolvímento posterior duma cristologia
incipiente de Marcos.
Como dissemos, esta teoria é bastante recente. Antigamente
pensava-se que Mateus teria sido o primeiro evangelho a ser
escrito. Foi S.Agostinho quem mais influenciou esta teoria ao
afirmar que Marcos abreviou o evangelho mais desenvolvido de
Mateus por razões catequéticas. E Mateus tinha que ser o primeiro
por ser o evangelho que contém mais discursos doutrinais e uma
eclesiologia mais desenvolvida,

61
sobretudo por causa do cap. 16 acerca da promessa de Jesus a Simão
Pedro: "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha
Igreja..."(16, 18). Nem admira que, até meados deste século, tenha
sido o evangelho de Marcus o mais estudado e comentado ao longo
dos tempos.
Ultimamente, vários autores, na solução do problema sinóptico,
referem a possibilidade da existência de protoevangelhos, isto é,
de evangelhos de menor dimensão que teriam existido antes dos
actuais evangelhos, supostamente escritos em aramaico, e por estes
absorvidos.

12. A FONTE QUELLE (Q)
Vimos acima que o evangelho de Marcos foi, com toda a
probabilidade, o primeiro a ser escrito, muito possivelmente antes
do ano 70 da nossa era, e que os evangelhos de Lucas e Mateus
dependem deste evangelho de Marcos. Mas também vimos que os
evangelhos de Lucas e Mateus têm muito material evangélico comum
que não aparece em Marcos.
Quando, em capítulo anterior, apresentámos o exemplo da pregação
de S. João Baptista em Mateus 3, 7-10, vimos que as palavras são
as mesmas que em Lucas 3, 7-9, e que esse fenómeno só se podia
explicar através duma fonte documental conhecida por Lucas e
Mateus. A esta fonte, como já aludimos, chamamos fonte Quelle (uma
palavra alemã que significa precisamente "fonte"), mas cujo texto
original não chegou até nós. Só o conhecemos através destes textos
comuns a Lucas e Mateus, mas que não aparecem em Marcos.
Trata-se de 220-235 versículos ou partes de versículos. Os
exegetas continuam a discutir sobre a quantidade e a ordem desta
matéria Mas todos admitem a existência desta fonte, dado o
montante e a identidade do material, ígual nos dois evangelistas,
embora por vezes numa ordem diferente e com palavras um pouco
diferentes. Geralmente, os estudiosos apresentam Lucas como o mais
fiel à própria fonte, uma vez que Mateus parece ter trabalhado o
material desta fonte de maneira mais livre, como é o caso concreto
do sermão da montanha, já estudado. E é, por isso, que quando se
apresenta o material evangélico da Q se cita, em primeiro lugar,
Lucas e não Mateus, regra que nós seguimos também. Haja ainda em
vista que, para provar a existência da Q como fonte escrita
independente, os autores - e com razão -, costumam apresentar o
critério ou o argumento dos "duplicados". Trata-se das mesmas

62
palavras de Jesus que aparecem em dois lugares distintos,
sobretudo em Lucas (Cf. Lc 8, 16 e 11, 33 com o mesmo provérbio
sobre a luz ou a lâmpada; Lc 14, 27 e 17, 33 com a mesma frase
sobre a renúncia para se seguir Jesus). O facto de Lucas nos
apresentar dois discursos de missão, um no c.9 e outro no c.10,
também deve ter a sua origem na fonte Q, na medida em que Lucas 9
coincide com Marcos 6, 7-13 e Lucas 10 com a Q de Mateus também no
c.10.
Os autores também concluem que a fonte original era em grego e que
se tratava mesmo duma fonte escrita e não apenas duma fonte oral
porque a quantidade e a qualidade literária do material não se
poderia explicar doutra maneira. Mas, se há pequenas diferenças
entre os dois evangelistas no mesmo material, é porque cada um o
trabalhou à sua maneira ou, então - o que não é de excluir -,
haveria mais do que uma cópia e, dessa maneira, Mateus e Lucas
teriam acesso à Q de modo independente.
Vamos agora apresentar este material evangélico de Lucas e Mateus
e mais tarde faremos algumas considerações importantes de ordem
literária e doutrinal.
Mateus
Lucas
Conteúdos
3, 7b-12;
3,7-9,16-17
A pregação de João Baptista (texto analisado).
4, 2b-1a
4,2-13
As tentações de Jesus.
5, 3.6.4.11-12
6, 20b-23
As bem-aventuranças.
5,44,
39b-40.42
6,27-30
Amor aos inimigos.
7,12
6, 31:
"O que quiserdes que os outros vos façam, fazei-lho vós também."
5, 46-47.45.48
6,32-33,
35b-36
Amar os outros com o amor de Deus Pai.
126
7, 1-2
6, 37a, 38c
Não julgar para não ser julgado.
15, 14;10, 24-25a
6,39-40
Um cego não pode dirigir outro cego; o discípulo não está acíma do
mestre.
7, 3-5
6,41-42
O cisco no olho do irmão e a trave no próprio olho.
7, 16-20
6, 43-45:
"Não há árvore boa que dê mau fruto, nem árvore má que dê bom
fruto."
Cada árvore conhece-se pelo seu fruto; não se colhem figos dos
espinhos, nem uvas dos abrolhos."
7,21.24-27
6, 46-49 :
"Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor entrará no reino do Céu,
mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está no Céu..."
8, 5a-10.13
7, 1-2, 6b-10
A cura do criado do centurião (milagre).
11,2-11
7,18-28
João Baptista manda discípulos a Jesus.
11,16-19
7,31-35
Esta geração não acredita em João Baptista nem no Filho do Homem.
8,19-22
9,57-60
O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça.
9, 37-38; 10, 7-16
10,2-12
A ceara é grande e os trabalhadores são poucos.
11, 21-23; 10,
40
10, 13-16
Maldições contra Corazin e Betsaida; quem vos recebe, a mim
recebe.

63
11, 25-27; 13,
16-17
10,21-24
Oração ao Pai: "Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra,
porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as
revelaste aos pequeninos..."
6,9-13
11,2-4
Oração do Pai Nosso.
7,7-11
11,9-13
Pedi e recebereis.
12,22-30
11,14-15.17-23
O forte e o mais forte.
12,43-45
11,24-26
O espírito impuro que sai e volta a entrar.
12,38-42
11,29-32
A geração que procura sinais.
5, 15; 6, 22-23
11,33-35
Não pôr a lâmpada debaixo do alqueire; a luz do corpo são os
olhos.
23, 25-26.23.6-7a.27
11,39-44
Crítica contra os rituais dos fariseus.
23,4.29-31
11,46-48
"Ai de vós, doutores da lei, porque carregais os homens com fardos
insuportáveis e nem sequer com um dedo tocais nesses fardos. Ai de
vós, que edificais os túmulos dos profetas, quando os vossos pais
é que os mataram..."
23, 34-36, 13
11,49-52
A sabedoria de Deus envia profetas que serão perseguidos.
10, 26-33; 12,
32
12,2-10
O encoberto será revelado; não temer os que matam o corpo;
declarar-se a favor do Filho do Homem.
10, 19-20
12,11-12.
O Espírito Santo ensinará os perseguidos ("Quando vos levarem às
sinagogas, aos magistrados e às autoridades, não vos preocupeis
com o que haveis de dizer em vossa defesa, pois o Espírito Santo
vos ensinará, no momento próprio, o que deveis dizer").
6,25-33
12,22-31
Não se preocupem com o corpo.
6,19-21
12,33-34
Não entesourem na terra mas no céu.
24, 43-44.45-51
12,39-40.42-46
O dono da casa e o ladrão; estar preparado para a vinda do Filho
do Homem.
10,34-36
12,51-53
Não vim trazer a paz mas a espada.
16,2-3
12,54-56
Discernir os sinais dos tempos.
5,25-26
12,58-59
Pensar bem antes de se meter com as autoridades.
13,31-33
13, 18-21
O Reino de Deus é semelhante a um grão de mostarda e ao fermento
na massa.
7, 13-14.22-23;
13,23-29
A porta é estreita; o dono da casa fecha a porta; os estrangeiros
virão ocupar o Reino.
23,37-39
13,34-35
Jerusalém que mata os profetas.
22, 2-10
14, 16-24
A parábola do banquete
10, 37-38
14, 26-27
Preferir jesus á família.
5,13
14, 34-35
A metáfora do sal.
18, 12-14
15, 4-7
A parábola da ovelha perdida.
6, 24
16,13
Não se pode servir a dois senhores.

64
11, 12-13; 5, 18-32
16, 16-18
A lei e os profetas até João Baptista; a doutrina contra o
divórcio.
18, 7.15.21-22
17, 1.3b-4
Ai dos escandalosos; a lei do perdão.
17,20
17,6
A fé como um grão de mostarda ("Se tivésseis fé como um grão de
mostarda, diríeis a essa amoreira:
'Arranca-te daí e planta-te no mar, e ela havia de obedecer-vos."
24,26-28
17,23-24.37
Os sinais da vinda do Filho do Homem
24,37-39
17,26-27, 30
Como nos dias de Noé assim será também nos dias do Filho do Homem.
10,39
17,33
Quem poupar a vida, perde-a.
24,40-41
17,34-35
Nessa noite, uma de duas pessoas será tomada.
25, 14-30
19,12-27
A parábola dos talentos.
19,28
22,30
Os discípulos julgarão as doze tribos de Israel.

13. A DOUTRINA DOS TEXTOS EVANGÉLICOS DA FONTE QUELLE
Acabámos de apresentar o quadro da doutrina de Jesus comum aos
evangelhos de Mateus e Lucas, que não aparece no evangelho de
Marcos. Como dissemos, são 220-235 versículos, e trata-se
realmente de material evangélico doutrinal. Aparecem apenas três
pequenas narrativas: a das tentações, a da cura do servo do
centurião (o único milagre em toda a Q) e o envio dos discípulos
de João Baptista a Jesus para lhe perguntarem se é ele que há-de
vir ou devem esperar ainda por outro.
Começando sempre com a citação de Lucas que, como vimos, deve ser
mais original que Mateus, os temas principais da Q são os
seguintes: 1) A pregação escatológica do Baptista (Lc- 3, 7-
9.16s); 2) A pregação escatológica e ética de Jesus (sermão da
montanha/planície, Lc- 6, 17-19); 3) O confronto entre a pessoa de
Jesus e a do Baptista (Lc 7, 18-35); 4) discipulado e seguimento
cristão (Lc 9, 57-62; 10, 2-16.21-24); 5) A oração dos cristãos
(Lc- 11, 1-4.9-13); 5) Os conflitos de Jesus e dos seus discípulos
com o statu quo daquele tempo, seja do Jesus da história, seja das
comunidades (Lc 11, 14-26.29-32.39-52; 12.2-10.22-34); 6) A
necessidade de vigilância (Lc- 12, 39-46); 7) A decisão a favor ou
contra Jesus (Lc- 12, 51-59); 8) A chegada dos últimos tempos (Lc-
10, 23s; 13, 28s; 14, 16-24; 19, 12-27); 9) A figura e a vinda do
Filho do Homem (Lc 12, 8s; 13, 35; 12, 8s.40; 17, 24.26.30; 9,
58s; 7, 34; 12, 10); 10) A revelação do Filho pelo Pai e vice-
versa (Lc- 10, 21); 11) O contraste entre a falta de fé desta
geração, representada pelos escribas e fariseus (Lc 11, 29-32) e
os estrangeiros crentes (Lc- 7, 9; 11, 30-32; 10, 13-15; 13, 28s);
12) O contraste entre Jesus e Beelzebú na questão dos milagres
(Lc- 11, 14-23), juntamente com um certo destaque para a acção
taumatúrgica de Jesus (Lc 10, 13-15; 11, 29).

65
Alguns autores costumam comparar a Q com o apócrifo evangelho de
Tomé, que apresenta exclusivamente "ditos" doutrinais de Jesus.
Mas este último evangelho tem laivos de gnosticismo e só pode ser
uma colecção mais tardia de expressões postas na boca de Jesus. No
entanto é importante sabermos que, além das narrativas históricas,
existiam nas igrejas primitivas estas colecções estruturalmente
doutrinais.
A fonte Q deve ter nascido por causa dos apóstolos itinerantes que
iam de terra em terra a pregar o novo "Caminho" de Jesus Cristo,
um pouco à maneira dos filósofos itinerantes, os sofistas e os
cínicos. O que mais nos "escandaliza" é que na Q não se fale da
paixão, morte e ressurreição. Jesus aparece apenas como um grande
pregador ou profeta dum novo "Caminho" moral e espiritual, e é por
isso que alguns autores separam a Q do resto do evangelho e
transformam a pessoa de Jesus num simples profeta filósofo.
Contudo, esta tese é insustentável porque o material da Q também
nos apresenta o Jesus que há-de vir para baptizar no Espírito
Santo (Lc 3, 16-17; 7, 18-23), Jesus é maior que Salomão e Jonas
(Lc 11, 31-32), Ele é como o Filho do Homem que há-de vir para
julgar (Lc 17, 23-27.30.37), que há-de ser rejeitado e sofrer (Lc
7, 31-35; 9, 57-60), que deve ser preferido acima de todo o amor
familiar (Lc 14, 26-27), que dará o poder aos seus discípulos -
apóstolos de julgarem as doze tribos de Israel.
Um tal Jesus e uma tal cristologia está muito longe de se reduzir
a uma simples sabedoria moral e filosófica.
A incidência doutrinal da Q é de tipo escatológico, com abundância
de avisos em relação a um futuro iminente da vinda do Filho do
Homem, de apóstrofes e invectívas para a conversão em função do
juízo de Deus, de expectativa e sobreaviso sobre a chegada do
Reino final. Basta reparar nas citações directas e indirectas do
AT, seja em relação aos textos propriamente ditos, seja,
sobretudo, em relação às figuras e acções correlacionadas. As
citações explícitas aparecem apenas na cena da tentação (Lc 4, 1-
13) e na declaração de Jesus sobre o carácter profético do
Baptista (Lc 7, 26-27). Estes dois textos da fonte Q são
paradigmáticos porque nos mostram, por um lado, a luta "divina"
pelo Reino entre o "opositor" e o Messias, e, por outro lado, a
teologia e a cristologia "profética" da fonte Q. Nas figuras e
acções correlacionadas sobressaem o castigo de Sodoma (Lc 10, 12),
o sinal de Jonas (Lc 11,
29-30), a rainha do Sul e os ninivitas (Lc 11, 31-32); a
perseguição dos enviados da sabedoria (Lc 11, 49-51), o dilúvio
(Lc 17, 26-27) e Sodoma (Lc 17, 28-29). Todos estes textos têm
como fundo catequético o juízo de Deus: assim como foi
antigamente, assim será também agora.
O AT é interpretado de maneira profética, relacionando-se o
"typos" com o "antitypos", e como "modelo de acção". Esta
orientação sobre o juízo aparece de maneira muito precisa na
apóstrofe contra Jerusalém (Lc 13, 34-35) e em muitos outros
textos. Mesmo assim, embora a iminência do juízo apareça
sublinhada (Lc 12, 40: "Portanto, estejam também preparados,
porque o Filho do Homem virá quando menos o esperam"), não se pode
cair na paranóia dessa vinda (Lc 17, 23-24: "Alguns hão-de dizer-
vos: 'Olha, está aqui', ou 'está acolá'. Mas não vão atrás desses
boatos, porque o Filho do Homem virá no seu dia próprio como um
relâmpago que ilumina o céu de um extremo ao outro."). Como muito
bem escreve J. Schlosser: " ... a dimensão escatológica, embora
dominante, não esgota o alcance do recurso à Escritura". O tempo
actual é o tempo do fermento na massa, do crescimento da semente,
do pôr a render os dons que Deus nos deu (I-x, 19, llss), da
realização profética da lei até às últimas consequencias (Lc 16,
17: "No entanto, é mais fácil acabar o céu e a terra do que cair
uma só vírgula da lei"), de sofrer as consequencias da fé cristã
(6, 22: "Felizes quando vos odiarem, rejeitarem, insultarem e
disserem que são maus, por serem seguidores do Filho do
Homem..."), de curar os doentes e de anunciar o evangelho (Lc 7,
22-23: "Então Jesus respondeu aos enviados: 'Vão contar a João
isto que agora viram e ouviram : que os cegos vêem, os coxos
andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos
ressuscitam e aos pobres é anunciada a Boa Nova. Feliz daquele que
não se escandalizar por minha causa."). O juízo escatológico da Q
transforma-se em cristologia actualizada, uma vez que o centro de
toda a doutrina tem como Sujeito o próprio Jesus e a sua acção na
história presente como última instância do plano de Deus sobre a
humanidade. O já e o ainda não

66
deste juízo e desta história aparecem mais determinados em Lc 13,
35: "Agora, vão ficar com a casa abandonada. E digo-vos que já não
me hão-de ver mais, senão quando chegar a altura em que disserem:
Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor."). A citação do SI
117, 26: "Bendito o que vem em nome do Senhor", aparece novamente
na narrativa da entrada "triunfal" de Jesus em Jerusalém (Lc 19,
38), de modo que o juízo de Deus realçado na Q realiza-se no "aqui
e agora" da pessoa de Jesus.
A leitura atenta da Q leva-nos a concluir que, para além dos
"logia", isto é, da doutrina do Jesus histórico, o seu Sitz im
Leben, isto é, o seu ambiente histórico, aconteceu ao longo do
tempo da tradição com a pregação oral de apóstolos, profetas e
doutores, que esperavam a parusia do Filho do Homem com poder e
majestade. As cartas paulinas são preclaras neste assunto. A
matéria evangélica da Q é variada e complexa, pois tanto aparece
com ditos e sentenças apocalípticos, como com ditos e sentenças
puramente sapienciais, e até de obediência à Lei. Por isso, a
formação final da Q tanto pode pertencer a uma comunidade
partícular como a um profeta cristão individual ou a um movimento
maior que tinha como pano de fundo algums aspectos fundamentais da
pregação doutrinal de Jesus em volta do julgamento, do seguimento
e desprendimento e da consumação iminente do Reino.

14. DO JESUS DA HISTóRIA AO CRISTO DA FÉ
Como vimos, pelo estudo que fizemos à chamada "Questão Sinóptica",
os três evangelhos sinópticos são muito semelhantes e muito
diferentes e, em relação ao quarto evangelho, as diferenças são
abissais. Isto significa que temos pelo menos três tradições
originais acerca da pessoa de Jesus, como depois nos foram
transmitidas nos quatro evangelhos: a tradição de Marcos, da qual
provém também Mateus e Lucas, a tradição da "Quelle", da qual
provém o material evangélico comum a Mateus e a Lucas, que não vem
em Marcos, e a tradição joânica, que está na origem do evangelho
de S. João, das três cartas de S. João e do Apocalipse de S. João.
Em todos estes escritos, a pessoa de Jesus, tal como ele viveu
durante os três anos da sua chamada "vida pública", isto é, o
Jesus da história, mistura-se com o chamado Cristo da fé, ou seja,
os evangelistas não nos relatam uma biografia histórica, como nós
estamos habituados a ler as biografias modernas sobre os grandes
homens/mulheres da história. Os evangelhos não são, portanto, uma
biografia da pessoa de Jesus, mas uma Boa Nova - pois é isso que
significa a palavra Evangelho - que Jesus nos trouxe. E esta Boa
Nova tem a ver com a história e com a fé; nem só história, nem só
fé, mas sim história e fé. É que os evangelhos foram escritos
muito depois do mistério da morte e ressurreição de Jesus, e não
há dúvida de que quando os evangelistas os escreveram foi a partir
do ângulo da fé no Ressuscitado. Esta fé determina, na pregação de
apóstolos, discípulos, profetas e doutores, que imediatamente
começaram a pregar a Boa Nova sobre a pessoa de Jesus, a
elaboração literária dos quatro evangelhos. Por isso é que se fala
do Jesus da história, da tradição e da redacção.
Desde que o NT começou a ser estudado, a partir do séc. XVII, com
critérios científicos, a questão do Jesus da história veio
imediatamente à tona da água e tem seguido o seu processo
consoante as perspectivas

67
de cada investigador e das posições históricas e ideológicas das
respectivas escolas ou correntes. Já há cem anos, o autor alemão
A. Schweitzer escrevia: cada nova época da teologia descobria em
Jesus as suas próprias ideias e não se podia imaginar que fosse
doutra maneira. E não se reflectiam nele apenas as distintas
épocas: cada indivíduo interpretava-o segundo a sua própria
personalidade. Não há nenhuma tarefa histórica mais pessoal do que
escrever uma vida de Jesus.
Outro grande estudioso alemão sobre o Jesus histórico foi J.
Jeremias, que escreveu: Os racionalistas descrevem Jesus como o
pregador mor; os idealistas como a quinta essência do humanismo;
os estetas exaltam-no como o amigo dos pobres e o reformador
social, e os muitos pseudocientíficos fazem dele uma figura de
novela.
Em 1996, os dois exegetas alemães Gerd Theissen e Annette Mertz
publicaram um livro volumoso precisamente com o título o Jesus
Histórico, onde estudam com profundidade todos os assuntos
relacionados com a questão. No Prólogo, depois de confirmarem a
importância destes últimos duzentos anos de estudos científicos
sobre a pessoa histórica de Jesus, ressalvam quatro aspectos sobre
os mesmos resultados.
O primeiro é que a ciência não diz "assim foi", mas "assim poderia
ter sido tendo em vista as fontes" que nos servem de base para o
estudo. O segundo é que a ciência não diz "é assim", mas "assim
estão as coisas segundo o estado actual da investigação", e isto
significa exactamente "segundo o estado actual dos nossos saberes
e erros". O terceiro é que a ciência não diz simplesmente "este é
o nosso resultado", mas "este é o nosso resultado a partir de
determinados métodos". E isto significa que "a via pela qual a
ciência alcança o seu objectivo é para ela tão importante como o
próprio objectivo; por vezes, inclusivamente mais". O quarto é que
a ciência é consciente de que os seus resultados são mais efémeros
do que os problemas a que procura dar respostas. E em relação à
questão do Jesus histórico muitos problemas continuam em aberto,
porque dependem, necessariamente, das "précompreensões" e
"interesses" dos respectivos estudiosos.
No estudo desta questão sobre a investigação do Jesus da história
podemos distinguir três grandes etapas.
A primeira é a do tempo do Iluminismo, sobressaindo as figuras de
Reimarus, Schweitzer, Bultmann e W. Wrede. Reimarus afirma, que os
discípulos de Jesus foram para além da intenção original de Jesus,
que era a de ser um judeu libertador, mas que resultou num
fracasso. E o tempo da teologia liberal, que produziu muitas vidas
de Jesus caracterizadas pela precompreensão do positivismo
histórico. Bultmann, anos mais tarde, afirma que os evangelhos não
passam duma criação da fé pascal e, por isso, não nos podem servir
de base para u estudo sério sobre o Jesus da história. Mais ainda,
o estudo histórico de Jesus não interessa à fé cristã, pois
equivaleria a destruir a mesma fé porque seria cair na
"justificação pelas obras". Neste sentido, "a crítica histórica
mais radical e a fé cristã coexistem, mas não dialogam". Bultmann
parte sempre do pressuposto ideológico luterano de que a fé cristã
deve subsistir apenas a partir do mistério da cruz do Calvário e
nada mais.
A segunda etapa aparece com a reacção de alguns discípulos de
Bultmann, a começar por Kãsemann, que acharam que era legítimo e
importante o estudo do Jesus histórico, a começar pela própría
historicidade dos relatos da ressurreição, que originou o tempo da
chamada "new quest", para o distinguir do tempo da "old quest".
Kãsemann parte do princípio de que os evangelhos têm em primeiro
lugar uma intenção querigmática, mas cujo querigma não renuncia de
modo algum à realidade histórica de Jesus, antes, a pressupõe. Sem
este pressuposto histórico resvala-se imediatamente para a
possibilidade do gnosticismo. Esta investigação, que se passa
sobretudo nos meios protestantes, tem a ver com uma hermenêutica
existencial e com uma preocupação teológica e pastoral ao mesmo
tempo. Para eles existe uma certa continuidade entre o Jesus
histórico e a fé no Jesus que a Igrej'a primitiva

68
prega. Trata-se não duma "cristologia explícita", como vem a
acontecer mais tarde, mas duma "cristologia implícita". "Jesus não
reivindicou para si próprio os títulos da cristologia da Igreja,
mas a investigação histórica descobre em Jesus uma pretensão de
autoridade, de contacto imediato com Deus, de desempenho dum papel
único para a chegada do Reino de Deus, e tudo isto constitui uma
cristologia implícita e explica porque é que posteriormente surge
a cristologia explícita. Sem dúvida que esta cristologia explícita
já pressupõe a fé no acontecimento pascal, mas não é uma
tergiversação da realidade histórica, mas apenas um
desenvolvimento e explicitação duma possibilidade de sentido que
já existia nela.
A terceira etapa aparece por volta de 1980. Tanto a exegese como a
cristologia católica e protestante da hora actual se fundamentam
nestes pressupostos: o Cristo da fé está na continuação do Jesus
da história.
O Cristo da fé não é de modo algum uma criação das comunidades
cristãs primitivas, mas uma criação do próprio Jesus frente à sua
novidade histórica se tivermos na devida conta o critério da
"descontinuidade" que Jesus nos apresenta ao confrontarmos a sua
pessoa e propostas religiosas e a religião histórica do judaísmo
do seu tempo. Se os evangelhos apresentam um Jesus, como temos
vindo a expor, que se autoproclama com uma autoridade única frente
à Lei, ao Templo, à sinagoga, etc., o posterior mistério pascal em
nada contradiz este sentido da consciência única de Jesus como
figura escatológica e messiânica, antes o pressupõe.
Os autores que mais sobressaíram neste período, para além de
Kãsemann, foram G. Ebeling, E. Fuchs, H. Braun, W. Marxzen, H.
Conzelmann, G. Bornkamm e M. Robinson.
Ultimamente esta etapa ganhou novo ânimo, sobretudo a partir dos
anos 80 e dos estudos de alguns exegetas dos Estados Unidos da
América do Norte. Nesta etapa, os investigadores estão voltados
para uma orientação interdisciplinar e, portanto, servem-se muito
das ciências humanas, mormente da sociologia, antropologia e
arqueologia.
A sociologia e antropologia apresentam-nos os costumes e os
parâmetros da vida social e familiar dos tempos de Jesus: quais
eram os valores familiares e tribais da cultura e civilização
mediterrânicas daquele tempo e como é que Jesus se moldou aos
mesmos ou reagiu contra eles?
Os textos dos evangelhos apresentam-nos um Jesus completamente
inserido no judaísmo de então, partilhando das refeições dos seus
compatriotas, da liturgia na sinagoga, da pesca no lago de
Tiberíades, da peregrinação anual ao Templo de Jerusalém. Mas esta
inculturação viva e existencial também lhe servia de púlpito de
doutrinação, onde expunha as suas ideias de ruptura ou de contra
cultura em relação à cultura e aos valores patriarcais e
familiares daquele tempo.
O facto de Jesus permanecer sempre celibatário ia contra a cultura
patriarcal de então. Por isso, nem admira que alguém o
classificasse de homossexual, como se pode depreender da frase de
Jesus sobre os "eunucos" em Mateus 19, 11-12. O facto de ter
abandonado a sua família, para formar uma família de discípulos,
constituía outro escândalo, sobretudo partindo-se do princípio de
que era filho único - o primogénito - e que tinha como dever
sagrado velar pelo resto da família. Assim se explica que os
próprios familiares o julgassem como alguém pouco ajuizado (Mc 3,
20-21). O seu poder taumatúrgico, sobretudo em relação aos
chamados "possessos", fazia com que os seus detractores o
classificassem como possuído de Beelzebú (Mc 3, 22-29 e par.) O
facto de ter escolhido doze discípulos especiais ia contra o
costume rabínico em que os alunos escolhiam o seu rabbi, apenas
por alguns anos, para depois se tornarem também rabbis. Os
discípulos-apóstolos de Jesus, pelo contrário, são seus discípulos
por toda a vida, e não aprendem na escola de Moisés, mas na escola
do próprio Jesus. É com ele que vivem e é segundo ele que ensinam
a vinda do Reino de Deus. Quando o convidam para as refeições, nem
sempre segue os costumes ritualistas das

69
purificações e, quando se dirige aos anfitriões, inverte por
completo toda a sociologia antropológica de então (Lc 7, 36-50 e
par; 11, 37-41 e par.). Neste sentido, Jesus é um judeu de raça
pura e um anti-judeu de cultura religiosa, familiar e social. E é
por tudo isto que chamava tanto a atenção das pessoas que se
perguntavam: mas quem é este homem, mestre e rabbi? Porque é que
se comporta desta maneira tão estranha e inaudita?
Na procura do Jesus histórico, esta fase do "Third Quest" também
dá muito valor à especificidade da Galileia, uma vez que o judeu
da Galileia era um tanto ou quanto diferente do judeu da Judeia.
Na Galileia, os judeus estavam habituados a conviver com os pagãos
desde os velhos tempos da conquista de Sargão II em 722 a.C. Por
isso é que Mateus classifica a Galileia como "Galileia dos pagãos"
(Mt 4, 15, citando Isaías 8, 23-9, 1). E em João 7, 41 alguns
judeus perguntam: "Mas pode lá ser que o Messias venha da
Galileia?" e, um pouco mais adiante, dentro do mesmo contexto, em
7, 52, o Sinédrio responde a Nicodemos: "Investiga e verás que da
Galileia não sairá nenhum profeta."
Durante a revolta dos Macabeus, no séc. II a.C., o nome "Galileia
dos estrangeiros" é bastante comum, e a minoria judaica da
Galileia pede ajuda aos da Judeia (cf. 1Macabeus 5, 14s). Um dos
filhos de Judas macabeu, Simão, recolheu muitos judeus da Galileia
e transferiu-os para a Judeia (1Macabeus 5, 21ss). Um pouco
depois, no reinado de Aristóbulo I (104-103 a.C.), a Galileia
acaba por ser conquistada e unificada à Judeia. Esta posição
político-religiosa é invertida por Pompeu no ano 63 a. C., ao
libertar do jugo judaico as cidades helenizadas da chamada
"Decápole". No tempo de Jesus, a Galileia formada pelos habitantes
judeus era um país de condição judaica, juntamente com a Pereia e
a Judeia, mas sem as dez cidades da Decápole.
É sintomático que as relações de Jesus com os pagãos da Galileia
não fossem nem frequentes nem amistosas. Há apenas dois relatos em
que Jesus se encontra com pagãos - com a mulher sirofenícia e com
o capitão de Cafarnaum - e, tanto num caso como noutro, Jesus
realiza as duas curas à distância.
Outro elemento importante é verificarmos que as duas maiores
cidades da Galileia eram cidades de influência grega e romana, a
saber, Séforis, que ficava apenas a 6 quilómetros de Nazaré, e
Tiberíades, a 16 quilómetros de Cafarnaum. Lendo os evangelhos,
percebemos que Jesus nunca foi a estas cidades, e, se tal
corresponde à história, significa que Jesus se dirigiu sempre ao
povo tipicamente judeu e sobretudo aos humildes dos campos e das
aldeias. As críticas aos ricos e a defesa dos pobres e humildes
também têm a sua explicação a partir desta sociologia e desta
geografia.
Os evangelhos sinópticos, especialmente se tivermos em conta uma
leitura sociológica de algumas parábolas, são bastante preclaros
em nos mostrarem as tensões entre os ricos latifundiários da
Galileia e os pequenos agricultores e trabalhadores à hora. A
parábola dos vinhateiros homicidas (Mc 12, lss) demonstra que os
trabalhadores não querem entregar a terra ao patrão. A parábola
dos trabalhadores da vinha, seguindo-se por grupos das horas do
dia (Mt 20, 1-16), apresenta a "murmuração" pela injustiça do
patrão em pagar igualmente aos que trabalhavam de sol a sol e aos
demais. A parábola de Mateus 18, 23-34 sobre o servo que não tem
dinheiro para pagar as dívidas ao patrão e que, por isso mesmo,
tem que ir para a prisão, indica a influência do direito romano,
porque tal não acontecia com o direito judaico: as dívidas

70
de judeus para com judeus nunca levavam os devedores à prisão (cf.
também Mt 5, 25ss).
Em que é que o facto de ser galileu poderá ter influenciado Jesus
nas suas opções? Terá influenciado a sua revolução teológica? A
abertura galilaica ao mundo greco-romano terá influenciado a sua
atitude de "Rabbi" carismático, sem eira nem beira, um pouco à
maneira dos filósofos da escola filosófica dos gregos "cínicos",
como pensam alguns investigadores? Por causa de ter vivido na
Galileia, terra da subversão judaica contra os romanos, será que
podemos classificar Jesus de um subversivo da ordem, à maneira dos
zelotas, como pensa por exemplo R.A. Horsley?
Todas estas interrogações são pertinentes, pois temos que partir
do princípio de que Jesus foi Alguém que pensou demorada e
atentamente a sua "vocação" religiosa, sempre a partir do factor
histórico e político -religioso do seu tempo. Para quem crê que
Jesus é o Filho de Deus e o Salvador do mundo não são estranhas
todas estas posições e interrogações, mesmo que não concorde com
as ilações deste ou daquele investigador.
Sempre dentro desta perspectiva, deixando agora os possíveis
contributos das ciências humanas, sobretudo da socíologia e
antropologia, e também da arqueologia, os investigadores da "Third
Quest" pesquisam, igualmente, o mundo bíblico e extrabíblico
daquele tempo, tanto o imediatamente antes de Jesus, como o
imediatamente depois, para inferir dados que possam iluminar a sua
figura histórica. Trata-se, sobretudo, dos textos de Qumran e dos
textos dos evangelhos não canónicos.
Quanto a Qumran, depois de ter passado a febre do qumranismo,
ninguém duvida de que as expectativas messiânicas dos monges de
Qumrân - como já estudamos no primeiro capítulo -, as suas comidas
rituais, o seu zelo pela Lei e, sobretudo, a exegese dos pesharim
(comentários a textos proféticos), mormente o pesher a Habacuc,
iluminam tanto pela negativa como pela positiva o mundo religioso
de Jesus e de todo o NT.
Embora ainda persistam muitas dúvidas sobre a razão de ser dos
essénios e da comunidade de Qumrân, não há dúvida de que tudo
começou quando, no séc. II a.C., um sumo sacerdote macabeu, o
chamado "sacerdote sacrílego" dos escritos de Qumrân, se outorgou
o poder de rei e sumo sacerdote ao mesmo tempo, deixando cair o
sacerdócio sadoquita tradicional. Assim sendo, para o "Mestre de
Justiça", que era a alma religiosa da comunidade, Jerusalém e o
seu Templo viviam fora da Lei de Deus, e só havia uma coisa a
fazer: sair de Jerusalém, refugiar-se no deserto e esperar que
Deus castigasse os sacrílegos de Jerusalém e restabelecesse a
ordem sadoquita e enviasse o seu Messias a partir da comunidade de
Qumran. Nesta comunidade cultual, os "filhos de Sadoc", isto é,
parentes das familias dos sumos sacerdotes legítimos, tinham a
parte de leão, e é por isso que as questões sobre a pureza
sacerdotal e sobre o calendário litúrgico assumem papeis de
teologia fundamental. Os qumranitas têm consciência de que expiam
os pecados do povo infiel, a começar pelo sumo sacerdote e demais
sacerdotes de Jerusalém. E uma vez que os dados arqueológicos nos
levam para os anos
125-100 a.C., o sumo sacerdote sacrílego só pode ser um dos três
macabeus: Jónatas, Simão ou João Hircano.
O fundador, o tal "Mestre de Justiça", explicava os profetas em
função da própria comunidade, dando, desta feita, à própria
comunidade, um estatuto teológico de escatologia realizada: os
profetas falaram em função da comunidade. O que Jesus anunciava
sobre o Reino de Deus também os qumranitas o anunciavam, embora
com perspectivas diferentes, e a maior das diferenças consistia na
vertente pessoal e individual do próprio Jesus como entidade
central desse mesmo Reino, enquanto que em Qumran era a comunidade
em si que desempenharia essa função. E, para a comunidade de
Qumran, a vinda do Reino de Deus consistia na observância estrita
da Torah, muito ao contrário de Jesus. À mística qumrânica da
Torah, Jesus responde com a mística da graça e do amor, como já
vimos.

71
Um outro aspecto muito importante, que nestes últimos tempos tem
interessado os estudiosos do Jesus histórico, refere-se à
literatura apócrifa dos judeus e dos cristãos. Quanto aos judeus,
sobressaem os estudos em volta dos targumes, que eram os
comentários litúrgicos das sinagogas em que o hebraico era
traduzido para aramaico acompanhado de alguns comentários
internos. E quanto aos cristãos sobressaem os evangelhos apócrifos
descobertos em Nag Hammadi e demais literatura dos primeiros
séculos cristãos.
O problema que se põe é o das fontes e a pergunta que se faz é
esta: haverá escritos mais antigos que os nossos textos canónicos?
Enquanto a maioria dos investigadores responde pela negativa, há,
no entanto, alguns autores que respondem pela positiva, isto é,
que conferem valor histórico a alguns apócrífos e descobrem,
neles, textos que podem ter a ver directamente com o próprio Jesus
e, inclusivamente, serem mais antigos que os canónicos. Inscrevem-
se, neste caso os autores H. Koester e D. Crossan. Acima de tudo,
há quem pense que o chamado Evangelho de Tomé contém palavras
autêntícas de Jesus que terão influenciado a fonte Q. O próprio D.
Crossan admite que o chamado Evangelho Egerton é dos anos 50, que
o Papiro Oxirinco 1224, o Evangelho dos Hebreus, o Evangelho da
Cruz (que seria o núcleo do Evangelho de Pedro), e que o primeiro
estrato do Evangelho de Tomé (que teria sido redigido em Jerusalém
a mando de Tiago, "irmão de Jesus") são textos independentes dos
nossos canónicos e muito primitivos. O mesmo autor defende, ainda,
que o Evangelho dos Egípcios e o Evangelho secreto de Marcos se
devem datar pelo ano 70.
Embora estas vozes sejam contraditadas pela grande maioria dos
exegetas e historiadores, a verdade é que vieram para a rua,
veiculadas também em parte pela imprensa americana e muito
difundidas entre um certo público ávido de novidades contra tudo o
que seja tradicionalmente católico ou protestante. Apenas como
exemplo de grande divulgação referimos o artigo de fundo da Time,
de 6 de Dezembro de 1999, intitulado Jesus at 2000, acompanhado
por um rosto de Jesus na própria capa. De facto, todo o artigo se
fundamenta em literatura apócrifa sobre a pessoa de Jesus.
Como afirma um exegeta espanhol, R. Aguirre Monasterio, não é
possível admitir que o Evangelho de Tomé seja anterior e
independente dos evangelhos canónicos, [quando, além do mais -
ajuntamos nós - tem notas específicas de gnosticismo], nem é
possível que o Evangelho da Cruz seja a fonte dos relatos da
Paixão dos nossos evangelhos canónicos, quando está cheio de
aspectos fantasistas e secundários.

72

15. JESUS E OS JUDEUS
Chegámos ao fim duma grande primeira parte do nosso estudo sobre
Jesus. Estudámos a história de Israel daquele tempo, a sua
geografia, os seus principais grupos religiosos, as suas
principais instituições, as fontes literárias que nos apresentam a
pessoa de Jesus, isto é, os evangelhos, defrontámos a chamada
questão sinóptica de Mateus, Marcos e Lucas, apreciámos, à luz da
história e dos evangelhos, o problema levantado pelos estudiosos
sobre o Jesus da história e o Cristo da fé. Agora vamos entrar
numa segunda parte e estudar o que é que os evangelhos sinópticos
nos dizem, passo a passo, sobre a real pessoa de Jesus: o seu
nascimento, a sua pregação, os seus milagres, a sua morte e a sua
ressurreição. Mas antes de entrarmos neste estudo vamos dedicar
ainda um capítulo particular ao Jesus dos judeus: como é que os
nossos irmãos mais velhos, os judeus, viram a pessoa de Jesus nos
tempos passados e a consideram hoje em dia.
Actualmente há três correntes judaicas na apreciação da pessoa de
Jesus.
A primeira tem a ver com a corrente clássica que percorreu o
judaísmo nestes dois mil anos e julga Jesus como um traidor ao
judaísmo devido à heterodoxia da sua doutrina para com Moisés e
tradições judaicas. Jesus é visto como um mago e um sedutor
perigoso. E o que lemos no tratado Seder Neziqin do Talmude da
Babilónia: "Na vigília da Páscoa, Jesus (o nazareno) foi pendurado
(na cruz). E durante os quarenta dias que precederam a execução um
arauto saía e gritava: 'Ele vai ser lapidado porque praticou a
magia e seduziu Israel a apostatar. Se houver alguém para
testemunhar qualquer coisa em seu favor, venha e declare-o'. Mas
como ninguém se apresentou em sua defesa, ele foi pendurado na
vigilia da Páscoa. Mas seria realmente preciso - objecta

73
Ulá - procurar alguém que o defendesse? Porventura não era ele o
sedutor de que fala a Bíblia: Não o deveis poupar e não deveis
ocultar-lhe a culpa? Infelizmente era preciso agir desta maneira
porque ele andava de relações com o governo".
Para explicar o poder taumatúrgico de Jesus, os chamados Toledot
Jesu, um escrito judaico do século IX, apresenta as origens de
Jesus (em hebraico Toledot Jesu) e os seus poderes de maneira
aberrante. Jesus seria filho de Maria e dum tal José Pandira.
Maria foi abandonada pelo marido devido ao seu adultério e Jesus,
uma vez adulto, foi expulso da sinagoga. Em Jerusalém, o mago
Jesus conseguiu descobrir os segredos do nome inefável de Deus,
contidos num pergaminho, que ele mantinha escondido, e, desta
maneira, pôde realizar prodígios extraordinários. Judas, enviado
pelos sacerdotes contra ele, fingiu ser seu discípulo, e conseguiu
arrancar-lhe o pergaminho com o nome divino. Então Jesus voltou a
Jerusalém para ver se readquiriria o talismã, e os seus
discípulos, não o tendo encontrado, acreditaram que tinha
ressuscitado.
Esta visão clássica contra Jesus procura explicar a origem
virginal de Jesus como tendo sido um adultério da sua mãe, a
pregação e milagres de Jesus através dos seus poderes mágicos, e a
sua morte por ter sido um traidor. Infelizmente, estes libelos
acusatórios e infamantes dos judeus do passado contra Jesus ainda
subsistem hoje, mas há a juntar que os cristãos pagaram da mesma
maneira aos judeus considerando-os a todos como pérfidos deicidas
e, mais tarde, com a Inquisição e as leis contra os judeus,
sobretudo em Espanha e Portugal, perseguiram muitos até à própria
morte. O corolário de tudo isto aconteceu com a Shoá ou o
holocausto nazi em que foram sacrificados seis milhões de Judeus.
Temos presente as imagens do nosso Papa João Paulo II, seja no
museu do holocausto, no Yad Yashem, seja no muro das lamentações
com o pedido de perdão em nome de toda a Igreja.
Enquanto que o Sinédrio judaico, ao tempo de Jesus, e a tradição
popular judaica, ao longo destes vinte séculos - mas com muitas
excepções, graças a Deus, como foi o caso da boa convivência
ecuménica na nossa Península Ibérica nos séculos nove a onze entre
cristãos, judeus e islâmicos, apreciou Jesus como um apóstata e um
blasfemo, alguns exegetas e istoriadores judeus modernos, já não o
veem como apóstata e blasfemo, embora critiquem a Igreja por fazer
dele o Salvador e o Messias.
E desde que Israel se tornou independente, os judeus têm publicado
mais obras sobre Jesus, nestes últimos anos, do que nos dois
milénios desde Jesus até hoje. Duma maneira geral apresentam
Jesus, Maria e os Apóstolos como verdadeiros judeus de fé judaica.
Outros apresentam Jesus como simpatizante dos zelotas
guerrilheiros e outros, ainda - e são a maioria -, apresentam
Jesus como um fariseu reformador do judaísmo daquele tempo. Entre
estes estudiosos judeus da pessoa de Jesus sobressaem David
Flusser, Shalom Ben-Chorim, J. Klausner e Gesa Vermes.
Para Chalom Ben-Chorin, Jesus não tinha a consciência de ser o
Messias, embora tivesse uma certa "vocação messiânica" em relação
ao Israel de então. A sua pessoa configura-se com a dos escribas
daquele tempo, embora falasse com uma certa autoridade pessoal,
que também o diferenciava dos outros escribas. À semelhança de
David Flusser, este estudioso pensa que Jesus foi um reformador e
intérprete da Lei, mas sem jámais sair da mundividência da mesma
Lei. Jesus, segundo ele, era "um trágico visionário, obcecado pelo
amor a Israel". São impressionantes as suas palavras, que passamos
a citar: "Para mim, Jesus é o eterno irmão, e não só o irmão
humano, mas o meu irmão judeu. Sinto a sua mão fraterna que me
convida a segui-lo. Esta mão chagada não é a mão do Messias; não
e, certamente, uma mão divina, mas uma mão humana em cujas linhas
está estampado um enorme sofrimento. É a mão duma grande
testemunha religiosa de Israel. A sua fé incondicional, a sua
confiança absoluta no Deus Pai (... ) eis o que nos poderá unir a
nós, judeus e cristãos. Une-nos a fé que Jesus vivia, mas separa-
nos a fé em Jesus".
Subjacente à pessoa de Jesus está sempre o eterno problema do
Jesus e do Cristo: do Jesus humano, judeu, histórico, e o do
Cristo e

74
Filho de Deus acreditado pelos cristãos. Os judeus cada vez mais o
consideram como um irmão judeu fora de série. Martin Buber, que,
juntamente com Theodor Herzl, lutaram politicamente e
religiosamente pelo Estado actual de Israel, confessava acerca de
Jesus: "Desde a minha juventude que reconheci em Jesus o meu irmão
mais velho. Para mim era coisa muito séria o facto dos cristãos
verem nele um deus e redentor. A minha relação pessoal, fraterna e
franca para com ele, fortalecia-me sempre cada vez mais e hoje
vejo-o com olhos de profundidade e de pureza como nunca antes.
Tenho a certeza que ele tem um lugar eminente na história
religiosa de Israel e que tal lugar não cabe em nenhuma das
categorias usuais".
Mark Tully é um jornalista protestante inglês que se interessou
seriamente pela pessoa de Jesus e escreveu um livro, que está
muito na moda, intitulado Vidas de Jesus, e que tem a ver com as
várias maneiras dos biblistas e historiadores judeus e cristãos
verem a pessoa de Jesus. Por isso foi a Jerusalém falar com o
rabino David Rosen, que lhe apresentou a sua maneira de encarar a
pessoa de Jesus. Para este rabino e teólogo judeu Jesus "foi um
rabino judeu. Nasceu como um judeu, foi criado como um judeu,
pregou como um judeu e morreu como um judeu". Pertencia à linha
dos fariseus e discutia com eles abertamente. Estas discussões não
tinham qualquer novidade porque havia entre os fariseus sete tipos
de farisaísmos, que "mostra como eles próprios eram diferentes
entre si...".
A conclusão a tirar é a de que a maioria dos historiadores e
exegetas judeus contemporâneos consideram Jesus como um fariseu
reformador do seu tempo. Veremos, entretanto, que há muitos
judeus, hoje em dia, que ainda vão mais longe. É o caso de David
Flusser que escreveu um livro sobre Jesus e tem dedicado grande
parte da vida a investigar a sua pessoa.
Em 1992, nos dias 8-11 de Junho, realizou-se em Jerusalém um
congresso de teólogos e historiadores judeus e cristãos,
mundialmente considerados, para exprimirem o resultado das suas
investigações sobre as duas personagens judias mais importantes no
tempo de Jesus: o rabi Hillel e o próprio Jesus.
Hillel foi o maior representante do farisaísmo no seu tempo, e
morreu entre os anos 10 e 20 depois de Cristo. Foi a sua doutrina
que determinou a religião judaica depois da destruição de
Jerusalém e seu Templo no ano setenta da nossa era. Tanto Hillel
como Jesus eram simplesmente doutrinadores e não escritores. O que
os evangelhos nos apresentam, como já sabemos, são as tradições
dos ensinamentos e dos feitos de Jesus e, bem assim, a Mishna, a
Tosephta e o Talmude no que se refere a Hillel. A grande
diferença, a nível literário, - e não é pouco -, é que entre
aquilo que Hillel disse e fez e aquilo que foi escrito sobre ele,
e chegou até nós, medeiam três a cinco séculos, enquanto que em
relação a Jesus medeiam apenas alguns anos. Seja como for, nunca
devemos esquecer que a figura de Hillel foi a que mais determinou
o judaísmo depois de Esdras, no século VI A. c., até ao ano 70 da
nossa era. E é por isso que o Talmude lembra Hillel desta maneira:
"Nos tempos antigos, quando a Torá foi esquecida por Israel,
Esdras veio da Babilónia para a restabelecer. Depois foi novamente
esquecida até que Hillel, o babilónico, apareceu e tornou a
restabelecê-la".
As grandes diferenças entre Hillel e Jesus podem resumir-se ao
seguinte: Hillel era provavelmente da Babilónia e Jesus da
Palestina. Hillel estudou com os rabinos Shemaiah e Abtalyon,
enquanto que Jesus não frequentou qualquer escola rabínica. Hillel
foi um homem muito querido pelos judeus, altamente considerado,
que, a julgar por uma tradição rabínica, terá sido eleito Nashi,
isto é, o responsável maior do Sinédrio durante 40 anos, enquanto
Jesus termina a sua vida, como um indesejado de judeus e romanos,
numa cruz. Hillel era um homem casado e os seus descendentes foram
famosos, sobretudo o seu neto Gamaliel I, que teve como discípulo
S. Paulo (Ac 22, 3), Gamaliel
II e o Rabi Judah, o Príncipe, que foi o compilador da Mishnah.
Hillel foi um homem do regime e da Lei enquanto Jesus entrou em
conflito aberto com o regime religioso judaico e com o regime
político romano.

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Hillel optimizou o mandamento do amor ao próximo na linha do que
diz o Levftico 19, 17, mas só Jesus tem o mandamento do amor
também para com os inimigos (Mt 5, 44). No que diz respeito à Lei,
Hillel estava mais interessado na halakah, isto é, na legislação
religiosa e cultual do que devia ser o dia a dia de qualquer
judeu, enquanto que Jesus pregava o Reino de Deus através da
aggadah, isto é, através de histórias, comparações, milagres e
parábolas. Hillel interessou-se sobretudo pela Torah - o
Pentateuco -, e Jesus pelos profetas interpretados à luz da
escatologia e apocalíptica. Hillel era a favor da lei do divórcio,
ao contrário de Jesus. Hillel nunca se referiu ao Espírito, ao
contrário de Jesus. Jesus termina a sua carreira histórica numa
cruz, mas os seus discípulos dão testemunho de que ele lhes
apareceu como Ressuscitado, de modo que começaram a reverenciá-lo
e a adorá-lo, celebrando os sacramentos do Baptismo e da
Eucaristia. Pelo contrário, Hillel só é recordado como o grande
Rabi.
Neste mesmo congresso, David Flusser que, como dissemos, é
considerado o teólogo judeu que mais estudou a pessoa de Jesus,
começa por afirmar que tanto Hillel como Jesus tinham a
autoconsciência de serem pessoas que queriam determinar os
destinos religiosos do seu tempo, embora por processos diferentes.
Para ambos, as suas tomadas de posição sobre o "aqui e o agora"
eram decisivos. Mas Jesus tinha uma consciência de enviado
escatológico e messiânico que Hillel não tinha. Jesus introduziu e
modificou o conceito rabínico do Reino de Deus, que era estranho
para a escatologia dos essénios e dos baptistas (Mt 11, 11-12).
Por isso, Jesus determinou os três tempos da salvação: o tempo até
João Baptista, o seu próprio tempo, que lança as raízes duma nova
sementeira na história da humanidade, e o tempo final da vinda do
Filho do Homem, desconhecido aos olhos humanos. "A carreira
histórica de Jesus não estava confinada ao seu ministério
terrestre, pois tinha também um papel a desempenhar no futuro
escatológico". Neste sentido, David Flusser aceita como históricas
as palavras de Jesus em Lucas 11, 20 e Mateus 11, 28: "Se é pelo
dedo de Deus que eu expulso os demónios, então o Reino de Deus
está no meio de vós". Flusser afirma que a imagem do "homem forte"
simboliza o diabo e a do "mais forte", que vence o forte,
simboliza o próprio Jesus (Lc 11, 21-22). Afirma ainda que as
palavras de Jesus dirigidas ao Pai como o "meu Pai", diferente de
"o vosso Pai", só podem manifestar uma experiência unica da
relação de Jesus com o Pai. Neste particular, David Flusser aceita
como histórica a passagem de Lucas 10, 21-22 e par. Mateus 11, 25-
27: "Eu te dou graças, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque
escondeste estas coisas aos sábios e cultos e as revelaste aos
simples; sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado. Tudo me foi
entregue por meu Pai; e ninguém conhece quem é o Filho senão o
Pai, nem quem é o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho houver
por bem revelar-lho." E, como conclusão de tudo isto, David
Flusser afirma que Jesus tinha consciência de ser o Filho de Deus
de modo diferente de todos os outros filhos de Deus. Isto mesmo se
prova com a parábola dos vinhateiros de Marcos 12, lss e
paralelos.
Para David Flusser, portanto, há diferenças abissais entre Hillel
e Jesus. Hillel é um representante da humanidade legal perante
Deus, enquanto que Jesus tem a consciência da sua importância
única na determinação do Reino de Deus. Hillel foi um sábio e
pensador judeu extraordinário, enquanto que Jesus foi um líder
carismático, um taumaturgo e um santo. A passagem do Jesus
histórico como profeta carismático, messiânico e escatológico para
o Cristo da dogmática cristã, não tem apenas a ver com o mistério
da ressurreição, mas também com esta posição histórica de Jesus,
ao assumir-se como alguém que tem um papel decisivo e único na
história da humanidade, precisamente porque o Deus Pai o investiu
nesta missão.
O que o referido judeu teólogo nos diz sobre a pessoa histórica de
Jesus é o máximo até onde se pode chegar. A partir daqui só a fé
no mistério pascal nos leva a dar o salto qualitativo do Jesus
messiânico, profeta escatológico e Filho próprio de Deus para o
Ressuscitado, Salvador e Redentor.
Este salto foi dado e está a ser dado até certo ponto por milhares
de judeus que, ultimamente, aceitam Jesus como o seu Messias.
Trata-se do movimento intrajudaico chamado comumente Jews for
Jesus ou os judeus messiânicos.

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Oficialmente, este movimento começou em Setembro de 1973 com o
judeu Moishe Rosen. Actualmente é seu Presidente o judeu David
Brickner. A finalidade do movimento é a de divulgar e proclamar
que Jesus é o Messias de Israel e o Salvador do mundo. Os seus
seguidores têm como lema: "Nós existimos para dar a conhecer que o
messianismo de Jesus é um assunto inevitável para o nosso povo
judaico espalhado pelo mundo". Segundo o "site" da Internet, Jews
for Jesus, só nos Estados Unidos há entre 25 mil a sessenta mil
adeptos, mas os judeus messiânicos encontram-se espalhados pela
Rússia, França, Inglaterra, África do Sul, Israel, etc. Também
fazem parte do movimento muitos cristãos católicos e protestantes
de origem judaica, incluindo bispos, sacerdotes e religiosos.
Para cativar os seus irmãos judeus que não crêem em Jesus, estes
judeus messiânicos não se servem de qualquer campanha missionária,
mas apenas do seu testemunho e do seu amor. Mesmo assim - porque
acreditam que Jesus é o único Messias e Salvador dos judeus e do
mundo -, acham absolutamente necessário que se evangelizem os
judeus com palavras, testemunhos e literatura, mas sem confrontos
doutrinais e com total amor. Para tanto, publicam o jornal
mensário Jews for Jesus Newsletter, a revista Havurah, o jornal
bimensal Issues: A Messianic Jewish Perspective, e já dispõem de
comentários e dicionários próprios da Bíblia na perspectiva da sua
doutrina.

16. EVANGELHOS DA INFÂNCIA
Como ficou dito, vamos agora começar por estudar alguns passos
mais significativos da pessoa de Jesus, sempre à luz dos
evangelhos. E quando abrimos os evangelhos de Mateus e Lucas
deparamos imediatamente com os chamados evangelhos da infância nos
dois primeiros capítulos.
Se pegarmos em qualquer bom livro de exegetas católicos ou
protestantes sobre a pessoa histórica de Jesus, geralmente nenhum
deles trata dos evangelhos da infância. Apresento como exemplo o
livro muito bom do exegeta católico alemão Joachim Gnilka, também
traduzido em português. Nos doze capítulos do livro trata-se da
situação política e religiosa em Israel no tempo de Jesus, de
Jesus e João Baptista, da mensagem de Jesus sobre o Reino de Deus,
dos discípulos de Jesus, do Israel novo ou igreja de Deus, dos
conflitos de Jesus com os grupos religiosos de então e com o
Sinédrio, do processo religioso e político que conduziu Jesus à
morte e do epílogo pascal. Porque é, então, que este autor, como
tantos outros, não apresenta um capítulo sobre os evangelhos da
infância? A resposta é simples, mas pode escandalizar os mais
incautos: é que os evangelhos da infância não têm a ver com a
história, como a entendemos hoje, mas com a teologia e a
cristologia. Vamos tentar perceber isto por partes neste capítulo.
Comecemos por reparar que as narrativas do evangelho de Mateus e
de Lucas não vêm em Marcos e, - pior ainda -, que aquilo que
Mateus nos narra é completamente diferente do que narra Lucas
excepto em duas proposições: a concepção virginal de Jesus e o seu
nascimento em Belém.

77
Mateus começa com a genealogia e depois narra a gravidez de Maria
com grande "escândalo" para o seu noivo José, que se vê muito
atrapalhado para resolver aquela situação, uma vez que, no dizer
do texto: "era um homemjusto e não queria difamá-la", isto é,
entregá-la às autoridades judaicas para a julgarem e condenarem.
É, então, que lhe aparece, em sonhos, o Anjo do Senhor e lhe diz:
"José, filho de David, não temas receber Maria como tua esposa,
pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo". Em seguida,
Mateus narra a vinda dos magos do Oriente, que vêm a Jerusalém
conduzidos por uma estrela. Uma vez em Jerusalém vão procurar o
rei Herodes e perguntam-lhe: "Onde está o rei dos judeus que acaba
de nascer? Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo". O
rei fica perplexo e convoca o Sinédrio que lhe diz que o rei dos
judeus havia de nascer em Belém da Judeia, como está escrito no
profeta Miqueias 5, 1. O rei deixa partir os magos e pede-lhes
para o avisarem do nascimento daquele rei dos judeus, porque
também ele o quer ir adorar. Entretanto, depois de os magos
adorarem o menino são avisados em sonhos "para não voltarem junto
de Herodes", porque este quer matar o menino. O mesmo acontece com
José: o Anjo do Senhor apareceu-lhe em sonhos e disse-lhe:
"Levanta-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egipto e fica lá
até que eu te avise, pois Herodes procurará o menino para o
matar." A narrativa de Mateus continua com a cena da matança dos
Inocentes, mas é muito estranho nesta narrativa que Herodes só se
lembre dos Magos passados dois anos, razão porque manda matar
todos os meninos de Belém com menos de dois anos. Entretanto, o
evangelista narra que Herodes morreu e que novamente o Anjo do
Senhor apareceu em sonhos a José e a dizer-lhe: "Levanta-te, toma
o menino e sua mãe e vai para a terra de Israel...". José vem do
Egipto e tem intenção de morar na Judeia, mas, advertido em
sonhos, foi para a Galileia, para uma pequena cidade chamada
Nazaré, para que assim se cumprisse o que foi anunciado pelos
profetas: Ele será chamado nazoreu.
Se compararmos as narrativas de Mateus com as de Lucas é fácil de
concluir que Lucas nada tem a ver com Mateus, excepto - como já
assinalámos - nos dois pontos: conceição virginal e nascimento em
Belém. De facto, Lucas apresenta o seu evangelho da infância num
quadro ou pintura narrativa servindo-se do díptico das duas
familias: a de João Baptista com os seus pais e a de Jesus com os
seus pais. Reparemos nos paralelos que representam verdadeiros
"clichés" literários e respectivas mensagens evangélicas: em
primeiro lugar a apresentação dos pais de João Baptista, o
sacerdote Zacarias e a sua mulher Isabel, pessoas avançadas em
idade, já sem poderem ter filhos, e a apresentação da mãe de
Jesus, jovem moça, ainda não casada, mas apenas noiva, e de
familia simples e pobre de Nazaré; em segundo lugar, a aparição do
Anjo ao pai Zacarias, enquanto exercia as suas funções sacerdotais
no Templo de Jerusalém e à mãe Maria de Nazaré; em terceiro lugar,
a perturbação de Zacarias e a de Maria; em quarto lugar, o
discurso do Anjo a Zacarias e a Maria sobre os respectivos filhos;
em quinto lugar, as dúvidas de Zacarias em poder ser pai por ser
avançado em idade, tal como a sua mulher, e as dúvidas de Maria,
por não ser casada; em sexto lugar, a resposta do Anjo tanto a
Zacarias como a Maria; em sétimo lugar, o tempo do nascimento
tanto de João Baptista como de Jesus; em oitavo lugar, a reacção
de alegria dos circunstantes sobre o nascimento das duas crianças:
os vizinhos e parentes dos pais de João Baptista, por um lado, e
os anjos e os pastores de Belém, por outro lado; em nono lugar, a
nota histórica sobre a circuncisão e respectivo nome de João
Baptista e de Jesus; em décimo lugar, o hino de Zacarias - o
Benedictus
- e o hino de Maria - o Magnificat - e o hino do profeta Simeão -
o Nunc dimittis -; em undécimo lugar, a maneira como os dois bebés
cresciam e, finalmente, em duodécimo lugar, o lugar de
permanência, mais tarde, dos dois jovens adultos: o deserto de
João Baptista e a terra de Nazaré do menino e do jovem Jesus.
Nada, portanto, é igual em Mateus e em Lucas. Temos, então, que
concluir que Mateus não conhecia Lucas e vice-versa. E como Marcos
nada nos diz sobre tal evangelho da infância, temos de concluir
que estes dois evangelhos da infância só apareceram alguns anos
mais tarde, depois de passar o tempo da pregação primitiva à volta
do kerigma ou anúncio pascal, como é próprio das cartas de S.
Paulo e dos discursos de S. Pedro e S. Paulo nos Actos dos
Apóstolos. Pouco a pouco, os cristãos acabaram por perguntar: mas
onde é que Jesus nasceu? como nasceu? As respostas dependem das
tradições teológicas e não históricas,

78
uma vez que não havia nenhuma tradição histórica igual que
passasse de boca em boca nas respectivas comunidades. Por isso, a
única tradição igual que subjaz a Mateus e a Lucas é a tradição da
conceição virginal e do nascimento em Belém. Tudo o mais é uma
narrativa chamada midráchica, isto é, construída com um objectivo
estritamente teológico. E para que os leitores não fiquem um pouco
perplexos com estas afirmações vou citar dois grandes exegetas
católicos, um sobre a narrativa de Lucas e outro sobre a narrativa
de Mateus. Sobre a narrativa de Lucas, escreve o célebre exegeta
francês Pierre Grelot: "De facto, o objectivo de Lucas é
estritamente teológico. Ele apresenta uma "releitura" das origens
de João Baptista e de Jesus, para que possamos compreender os seus
papéis futuros segundo o desígnio de Deus. Narra tudo a partir da
pessoa de Maria, porque a mãe de Jesus desempenha um papel capital
na vinda ao mundo de Jesus. Mas não está preocupado em objectivar
as visões de Zacarias e de Maria, como se as visse do exterior.
Ele põe a falar as personagens para demonstrar a progressão da
acção: Isabel dá graças pela sua gravidez fora do tempo (1, 25);
Isabel e Zacarias dão o nome de João a seu filho (1, 60-64); os
vizinhos de Zacarias interrogam-se sobre a futura vocação de João
(1, 66); os pastores saúdam o nascimento de Jesus (2, 15); Simeão
anuncia o futuro de Jesus e as dificuldades da sua mãe (2, 34-35);
Maria e Jesus dialogam na cena do Templo (2, 48-49). Lucas até
introduz na narrativa do nascimento de Jesus uma cena apocalíptica
(2, 9-14: os anjos que aparecem aos pastores e entoam o hino:
"Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do seu agrado
,)13.
Vamos agora ouvir, sobre o evangelho da infância de Mateus o que
escreve o exegeta católico Alberto Mello: "Podemos considerar
todas estas narrativas [de Mateus] como aggadot, isto é, como
desenvolvimentos narrativos, que servem para explicar passagens da
Escritura: a) pela ausência deste material em Marcos, que é o
evangelista mais antigo; b) pela analogia com as aggadot judaicas,
sobretudo com aquelas que se referem ao nascimento de Moisés; c)
pela impossibilidade histórica das suas principais asserções (a
estrela que vem do oriente, a ingenuidade de Herodes, a fuga para
o Egipto, a matança dos inocentes). Naturalmente, não afirmo que
tudo seJa obra da improvisação de Mateus: ele pode servir-se de
modelos literários ou de tradições orais.
Mas o resultado reside realmente na tonalidade da sua mentalidade
midráchica. Um tal resultado não tem apenas um valor tipológico,
enquanto nos leva ao AT. Tem, sobretudo, um valor Prefigurativo:
cada episódio do evangelho da infância de Jesus prefigura outros
acontecimentos da sua vida adulta, ou, até, o seu mistério pascal,
a sua morte e a sua ressurreição. Tudo isto nos conduz a um
desígnio teológico bem preciso, muito mais do que a uma intenção
historiográfica".
A nível literário vimos que a finalidade dos dois evangelistas é
teológica e não biográfica. Esta conclusão tem a ver com os
conteúdos narrativos de cada evangelista. O que narra Lucas não é
narrado por Mateus e vice-versa. Por isso não podemos conciliar, à
luz da história, os dois evangelistas. Todas as tentativas de
concordismo bíblico, que, ainda hoje subsistem em muitos católicos
e protestantes, não têm qualquer fundamento. Tais tentativas de
concordismo historiográfico vão contra a intenção do texto
sagrado. Pensemos apenas nesta contradição dos dois textos:
enquanto Mateus coloca a "sagrada familia" durante dois anos no
Egipto, Lucas coloca a "sagrada familia" em Belém, para o
nascimento de Jesus, e imediatamente a apresenta no Templo de
Jerusalém para a circuncisão do menino, e, dali, segue para
Nazaré. No total, Lucas fala-nos de duas ou três semanas da
"sagrada família" na Judeia. E, se não é possível conciliar os
dois textos, também não podemos concluir que haja uma contradição
histórica ou biográfica consciente. Só não há contradição porque
os autores não têm em vista uma biografia histórica, mas, tão-
somente, uma exposição midráchica em que as personagens são
determinadas pela teologia, isto é, são personagens tipológicas e
não históricas.
Descendo um pouco mais ao pormenor, reparemos como Mateus põe a
funcionar os acontecimentos e as personagens. Por cinco vezes

79
Mateus afirma que tudo quanto está a acontecer à volta do
nascimento de Jesus é a realização do que já fora anunciado pelos
profetas: se Maria concebe virginalmente é para se realizar ou
cumprir o que está dito pelo profeta Isaías em 7, 14 (Mt 2, 22-
23); se Jesus nasce em Belém, é para se cumprir o que está escrito
em Miqueias 5, 1 (Mt 2, 5-6); se Jesus vai para o Egipto com sua
mãe e Pai, é para se cumprir o que diz o profeta Oscias 11, 1: Do
Egipto chamei o meu filho; se acontece a matança dos Inocentes, é
para se cumprir o que escreve o profeta Jeremias em 31, 15;
finalmente, se Jesus vai viver em Nazaré e não na Judeia, é para
se cumprir o "que foi anunciado pelos profetas: Ele será chamado
Nazoreu". Reparemos que nesta última profecia, Mateus não se
refere a um profeta explícito, mas usa o plural: "o que foi
anunciado pelos profetas...". Mas a verdade é que em nenhum texto
do AT se diz que o Messias devia viver em Nazaré. Mateus, muito
simplesmente, serve-se dos métodos exegéticos dos rabinos,
aplicando a lei da assonância, que consiste no facto da palavra
nazoreu ser muito semelhante a Nazaré, que, por sua vez, é muito
semelhante às palavras hebraicas nazir, que significa consagrado a
Deus, e nezer, que significa raiz. Pois bem, Jesus é o
"consagrado" e o "santo de Deus" por excelência, como aparece em
Números 6, 2-3 e em Juízes 13, 5.7, e nasce da raiz de Jessé, como
se lê profeticamente em Isaías 11, 1.10.
O que Mateus nos quer dizer é que o menino Jesus, como tal, já faz
todo o percurso que mais tarde, como homem, vai realmente e
historicamente percorrer. Esta é uma maneira literária de
apresentar as grandes figuras de reis, faraós, conquistadores e
homens de Deus, nas literaturas clássicas daquele tempo. O mesmo
acontece com Moisés, com Sansão, com Samuel ou com David na
historiografia do AT. Se Mateus apresenta uma estrela e os magos é
para dar cumprimento à estrela de Balaão segundo o livro dos
Números 24, 17: "Uma estrela surge de Jacob e um ceptro se ergue
de Israel". Se apresenta o rei Herodes e todo o Sinédrio
perturbado é por causa do que vai acontecer, mais tarde, no
julgamento de Jesus levado a efeito pelo Sumo Sacerdote e todo o
Sinédrio (26, 57) e, bem assim, pelo alvoroço de toda a cidade de
Jerusalém aquando da chamada entrada triunfal de Jesus na cidade
santa, como aparece em Mateus 21, 10: "Quando Jesus entrou em
Jerusalém, toda a cidade, ficou em alvoroço...". É importante
repararmos que os magos não dizem "rei de Israel", como seria
lógico, mas "rei dos Judeus", e isto porque foi este o título que
ocasionou o processo e a condenação de Jesus à morte (27,
11.29.37). O ouro, incenso e mirra dos magos, oferecido ao menino
de Belém, é uma referência analéptica ao Salmo 72, 10-12 e a
Isaías 60, 5ss. Quem comanda, portanto, a história da infância de
Jesus, segundo Mateus, é a visão profética ligada ao AT e a
escatológica, ligada à realização messiânica e ressurreccional.
Jesus tem que percorrer tudo o que Moisés e o povo de Israel
percorreram. Por isso é que tem que ir ao Egipto, onde nasce o
povo, e regressar de lá para a sua terra natal como aconteceu com
Moisés. Basta notar nas semelhanças literárias entre Êxodo 4, 19-
20 Ç'Yahvé disse a Moisés em Madian: 'Vai, regressa ao Egipto,
porque morreram todos aqueles que queriam a tua vida. Moisés tomou
consigo a sua mulher e os seus filhos, pô-los em cima de um
jumento e regressou à terra do Egipto") com Mateus 2, 19-21
('Morto Herodes, o anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, no
Egipto, e disse-lhe. 'Levanta-te, toma o menino e sua mãe e vai
para a terra de Israel, porque morreram os que atentavam contra a
vida do menino"). Reparemos que o verbo vem no plural: porque
morreram, quando, na verdade só era Herodes que queria desfazer-se
do menino rei. Mas o plural é exigido por causa do mesmo plural na
narrativa sobre Moisés: "porque morreram todos aqueles que queriam
a tua vída".
O evangelista Mateus, para acentuar a verdade da conceição
virginal usa de estratagemas literários muito interessantes, para
além da narrativa fundamental sobre o anjo em sonhos a José:
"José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o
que ela concebeu é obra do Espírito Santo"(1, 20). Na genealogia,
depois de falar da genealogia de 39 nascimentos, sempre na linha
directa do pai, - como não podia deixar de ser, chega a José e
escreve contra a lógica da genealogia paterna: "Jacob gerou José,
esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo." O
correcto seria escrever: "José gerou Jesus...". Por isso mesmo é
que sempre que se refere a José e ao seu filho nunca diz "pega no
teu filho e sua mãe", mas "pega no menino e sua mãe " (2, 13.20.2
1).

80
Chegando a este ponto, temos que abordar as angelofanias ou
aparições de anjos tanto em Mateus como em Lucas. A única
diferença que há entre os dois evangelistas é que Mateus refere
sempre o anjo que aparece em sonhos, e só a José, enquanto que
Lucas refere o anjo directamente a Zacarias, a Maria e aos
pastores. Os sonhos e os anjos são fundamentais em muitas
narrativas bíblicas para significarem aspectos que transcendem a
simples história factual. Os anjos e os sonhos simbolizam o mundo
de Deus e, por isso mesmo, o mundo da fé. Os anjos e os sonhos são
a garantia desta ordem da fé ou, melhor ainda, desta verdade da
fé. E como estamos diante duma proposta de fé por causa da
conceição virginal de Jesus e de toda a sua vida, tanto Mateus
como Lucas nos apresentam uma narrativa em que os anjos e os
sonhos nos oferecem essa mesma garantia. E vale a pena reparar
que, na vida pública de Jesus, não há nem anjos nem sonhos, uma
vez que estamos diante da história real, mas os anjos voltam a
aparecer nas narrativas da ressurreição, a começar pela narrativa
do túmulo vazio, porque - e uma vez mais - estamos perante uma
narrativa de história de fé.
Reparemos ainda que, para Mateus, a figura de José é central por
causa dele ser da descendência de David e, desta forma, poder
falar do messianismo davídico de Jesus, enquanto que Lucas centra
toda a narrativa em Maria, não apenas por ser a mãe biológica de
Jesus, mas também por representar a nova Sião e a nova Jerusalém
que dá à luz o seu Messias tão desejado e suspirado. Por isso é
que Simeão diz a Maria: "Este menino está aqui para queda e
ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição;
uma espada trespassará a tua alma. Assim hão-de revelar-se os
pensamentos de muitos corações" (Lc 2, 34-35). É preciso ainda
termos na devida conta as afirmações de Simeão no mesmo cântico:
"... os meus olhos viram a salvação que ofereceste a todos os
povos, luz para se revelar às nações, e glória de Israel, teu
povo" (3, 30-32). Esta referência aos povos e às nações só se pode
entender, no seu sentido universalista, se tivermos em conta o
livro dos Actos dos Apóstolos do mesmo evangelista Lucas.
Em conclusão, a finalidade de Mateus e Lucas, nos seus evangelhos
da infância, é a de informarem os seus leitores acerca do menino
Jesus, não sobre o modo de ser concebido, modo de nascer, modo das
relações dos pais e demais actores a seu respeito, mas sobre a
modalidade do ser dessa criança. Para tanto, começam por
apresentar uma série de episódios em que não são pessoas humanas
mas vozes angélicas e sonhos que anunciam a pessoas humanas
(Zacarias, José, Maria, pastores) o ser dessa criança, a sua
natureza e a sua função. Não se trata duma verdade que vem da
razão, da história e da inteligência dos homens, mas do próprio
Deus. A função catequética destas vozes angélicas é precisamente a
de ser função da visibilidade de Deus e não da visibilidade de
história factual. É um apelo à credibilidade do mistério e da fé.
Os anjos e os sonhos legitimam a verdade dos acontecimentos, mas
sobretudo a interpretação dos mesmos acontecimentos. No caso
concreto da narratologia de Lucas, é o mesmo processo por ele
usado para a manifestação da transcendência da Ressurreição e da
Ascenção de Jesus aos céus.

81

17. JESUS E JOÃO BAPTISTA
A figura de S. João Baptista é fundamental para compreendermos a
pessoa de Jesus. Ele aparece não apenas nos quatro evangelhos como
também nas Antiguidades Judaicas XVIII, 116 de Flávio Josefo. Em
Mateus e Lucas, aparece depois do chamado "evangelho da infância",
mas, como vimos, este evangelho da infância tem a ver com uma
profunda reflexão teológica apresentada à luz de Jesus, o Cristo
ressuscitado. Por isso é que a entrada em cena da vida de Jesus, a
partir daquilo que nós chamamos história, começa com o seu
encontro com João Baptista. É o que lemos em Actos 1, 21-22, a
propósito da substituição de Judas: "Portanto, de entre os homens
que nos acompanharam durante todo o tempo em que o Senhor Jesus
viveu no meio de nós, a partir do baptismo de João Baptista até ao
dia em que nos foi arrebatado para o Alto ... ".
A pessoa do Baptista aparece descrita de maneira histórica, mas
sempre de acordo com as Escrituras hebraicas, para designar a
ordenação divina na história da salvação. São sempre as Escrituras
hebraicas que classificam a natureza de tais figuras e a natureza
da história. Perante elas, o plano divino chancela a última figura
da revelação divina, Jesus, o Cristo e o Filho de Deus. Todas as
demais figuras se revêem no contraste significativo com a de
Jesus. João Baptista não podia fugir à regra. Por isso, Marcos,
antes de descrever a sua figura como "proclamador dum baptismo de
conversão para a remissão dos pecados", a viver no deserto vestido
"de pele de camelo e alimentado de gafanhotos e mel silvestre", a
baptizar "na água, em contraste com aquele que irá baptizar no
Espírito Santo", apresenta-o a partir do que está escrito no
profeta Isaías: "Eis que vou enviar-vos o meu mensageiro diante da
minha face, que preparará o teu caminho, voz daquele que grita no
deserto: 'Preparai o caminho do Senhor, aplanai as suas veredas"'
(Mc 1,

82
2-3). Embora o narrador se refira ao profeta Isaías, a verdade é
que apenas a segunda parte tem a ver com Isaías (v.3), enquanto
que a primeira parte (v.2) é retirada de Malaquias 3, 1
conjuntamente com Exodo 23, 20 (LXX). Este simples facto é
importante para entendermos como os cristãos, logo nos seus
inícios, reliam as Escrituras hebraicas sem as nossas exigências
modernas de fidelidade ao texto ou de objectividade. O que lhes
interessava era provar a verdade de Deus, sempre através das
Escrituras hebraicas, seja fundamentalmente por causa de Jesus,
seja das figuras que o envolviam.
O mensageiro que havia de aparecer antes do Messias era uma figura
muito importante na apocalíptica judaica antes e depois do tempo
de Jesus. Na tradição judaica, esta figura acaba por ser o Elias
redivivus [mas "redivivo" nada tem a ver com reincarnação] de
Malaquias 3, 23@ dada a importância que Elias tinha desempenhado
no seu tempo para repor o monoteísmo judaico, que, depois, foi
visto como exemplo a seguir em todos os tempos de crise religiosa
e acabou por configurar-se como o "precursor" do Messias. Os
evangelhos, como seria normal na dinâmica desta exegese, vêem João
Baptista como este Elias redivivus (Mc 9, 11-13). Assim sendo,
Jesus é a figura escatológica final preparada pelo Elias
redivivus.
No v.3, Marcos, ao citar o texto de Isaías 40, 3: "Preparai o
caminho do Senhor...", só se pode referir a Jesus, quando o
original de Isaías se refere ao próprio Deus. No AT, o nome divino
YHwh é traduzido geralmente na tradução grega dos LXX por Kyrios,
e é desta feita que Marcos, embora de maneira velada, atribui a
Jesus toda a sua qualidade divina (o mesmo aparece em Mc 7, 28;
11, 3; 13, 35, mas sobretudo em 12, 36-37: "O próprio David
afirmou, inspirado pelo Espírito Santo: 'Disse o Senhor ao meu
Senhor: Senta-te à minha direita, até que ponha os teus inimigos
debaixo dos teus pés'. O próprio David chama-lhe Senhor,- como é
Ele seu filho?").
Quanto aos conteúdos da pregação do Baptista, tanto em Marcos como
em Mateus e Lucas, devemos salientar três aspectos: 1) "o baptismo
de conversão para o perdão dos pecados" ; 2) a atitude do Baptista
como servo daquele que virá depois dele, de quem "não é digno de
desatar a correia das suas sandálias" ; 3) o contraste entre o
Baptismo de João, apenas na água, e o de Jesus, no Espírito
Santo".
É por causa da posição de Marcos sobre o baptismo de João "para o
perdão dos pecados" que o baptismo de Jesus está envolvido em
contradições internas, pois parte-se do princípio de que Jesus não
tem pecados, mas que, no entanto, foi baptizado por João Baptista.
Por causa disto mesmo é que no evangelho de Lucas 3, 20, não é
João quem baptiza Jesus, porque, quando tal acontece, João já está
na prisão, e, no evangelho de Mateus 3, 15, o baptismo de Jesus às
mãos de João só acontece para que se "cumpra toda a justiça", isto
é, todo o desígnio de Deus. Por tudo isto, a afirmação de Marcos -
e a tradição que a suporta - desencadeou posteriormente uma
reflexão cristológica seja em relação ao baptismo de Jesus, seja
dos cristãos. Tudo dá a entender que a narrativa de Marcos não se
pode compreender sem a prática do baptismo cristão, tanto mais que
a afirmação de Marcos sobre o perdão dos pecados do baptismo de
João está em contradição com o que depois vai afirmar pela boca do
próprio Baptista: "Eu baptizei-vos na água, mas ele baptizar-vos-á
no Espírito Santo" (v.8). Assim sendo, não é um baptismo na água
que pode perdoar os pecados.
Quanto ao segundo aspecto, - o do Baptista assumir conscientemente
uma atitude de servo -, tem a ver precisamente com o contraste de
desigualdade entre ele e a pessoa de Jesus. Semelhante atitude é
uma imagem para caracterizar as duas pessoas e os dois baptismos.
Mais tarde, o quarto evangelista sublinha isto mesmo com cores
mais carregadas (Jo 3, 30: "Ele é que deve crescer, e eu
diminuir"). Há que ter em consideração que para as primeiras
comunidades, sobretudo as judeocristãs, a figura de João Baptista
levantou, realmente, muitos problemas porque o Baptista tinha
muitos seguidores que faziam dele o Messias e não Jesus. Por isso
é que os quatro evangelhos acentuam o papel do Baptista apenas
como percursor e servo. E é também por causa disso mesmo que o
quarto evangelho dá tanto realce à pessoa de João Baptista ao
longo dos primeiros três capítulos. No prólogo, que é um hino à
pessoa do Logos - Jesus como Deus, Criador, Vida e Luz de todos os

83
que nele acreditam -, atravessa-se a figura de João Baptista nos
vv. 6-8 e 15 apenas como "testemunho da Luz" e como " o mais
pequeno frente Àquele que já existia antes dele". É João Baptista
que anuncia Jesus como "o Cordeiro de Deus que tira o pecado do
mundo" (1, 19), e os primeiros discípulos de Jesus, ao contrário
do que vem nos sinópticos, não são arrancados às fainas da pesca
em Cafarnaum, mas sim arrancados à pessoa de João, pois eram seus
discípulos (1, 35-51).
No evangelho de Marcos, a grande figura do Baptista aparece apenas
em 10 versículos, mas nos evangelhos de Mateus e Lucas temos um
pequeno discurso do mesmo Baptista, que o caracteriza muito bem.
Há que recordar o que já dissemos sobre a questão sinóptica e
sobre a questão da fonte Quelle. Vimos que o primeiro exemplo
desta fonte Quelle é precisamente esta pregação de João Baptista
em Mt 3, 7-12 com as mesmas palavras em Lc 3, 7-9. João dirige-se
ao povo judaico de então com palavras trágicas e apocalípticas:
"Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera que está
mesmo a chegar? ... O machado já está posto à raiz das árvores, e
toda a árvore que não dá bom fruto é cortada e lançada ao fogo".
Este era o real João Baptista, profeta austero do deserto, que
pregava uma doutrina apocalíptica, na esperança de que o Messias
viria trazer um evangelho de mudança social, política e religiosa
através do castigo e desaparecimento de todos os maus. Mas Jesus
não actuou assim, razão porque, já na prisão do Maqueronte, o
Baptista tivesse duvidado do messianismo do próprio Jesus,
enviando-lhe alguns discípulos a perguntar-lhe: "És Tu aquele que
há-de vir, ou devemos esperar outro?" (Mt 11, 3). E a resposta de
Jesus aos enviados de João encerra esta frase, à primeira vista
bastante misteriosa: "Em verdade vos digo: 'Entre os nascidos de
mulher, não apareceu ninguém maior do que João Baptista; e, no
entanto, o mais pequeno no Reino do Céu é maior do que ele" (Mt
11, 11 e Lc 7, 28). O que Jesus quer dizer é que qualquer cris
tão, por mais santo ou menos santo ' é maior do que João Baptista,
não em santidade de vida moral ou de austeridade moral, mas só
pelo facto de ter entrado no mistério pascal de graça e amor, a
que João Baptista não teve acesso.

18. BAPTISMO DE JESUS
Como dissemos, ao expormos os vários critérios sobre os textos
evangélicos para estudarmos a vida histórica de Jesus, um dos
critérios era o do embaraço; isto é, trata-se de textos que
embaraçaram os primeiros cristãos sobre a pessoa de Jesus. E entre
esse conjunto de textos sobressai a narrativa do baptismo de Jesus
por João Baptista uma vez que o mesmo baptismo tinha a ver com o
perdão dos pecados. Como é que Jesus foi ter com João Baptista
para se baptizar, se não tinha pecados? Se os evangelhos
sinópticos nos falam do baptismo de Jesus, apesar desse grande
"handicap", é porque ele aconteceu e representa um ponto
fundamental na sua vida.
Por outro lado, já vimos que a forma dos quatro evangelhos
narrarem o baptismo de Jesus, diverge substancialmente, não pelo
baptismo em si, mas por causa da pessoa de João Baptista. Por
isso, Lucas coloca João Baptista na prisão e só depois é que narra
o baptismo (Lc 3, 19-20). Em Mateus, João Baptista pergunta a
Jesus: "Eu é que preciso de ser baptizado por ti, e Tu vens a
mim?" (Mt 3, 14), e, em João, temos uma pequena narrativa sobre o
ser de Jesus como Filho de Deus relacionado com o seu baptismo,
mas tal baptismo de Jesus não é administrado directamente por
ninguém. Estejamos atentos ao texto do quarto evangelista: "Eu
[João Baptista] não o conhecia bem; mas foi para Ele se manifestar
a Israel que eu vim baptizar com água". E João testemunhou: "Vi o
Espírito que descia do céu como uma pomba e permanecia sobre Ele.
E eu não o conhecia, mas quem me enviou a baptizar com água é que
me disse: Aquele sobre quem virdes descer o Espírito e poisar
sobre Ele, é o que baptiza com o Espírito Santo. Pois bem: eu vi e
dou testemunho de que este é o Filho de Deus." Neste texto, João
Baptista afirma duas vezes: "Eu não o conhecia", e afirma também
duas vezes: "vi o Espírito descer sobre Ele", e desde que viu o

84
Espírito a descer sobre Jesus fica a conhecê-lo como o Filho de
Deus e como "Aquele que baptiza com o Espírito Santo".
O baptismo de Jesus aconteceu historicamente e foi administrado
por João Baptista. Todas as tentativas dos evangelistas darem a
volta ao texto é para fugirem à célebre questão do Baptismo de
João Baptista estar relacionado com o perdão dos pecados.
É a partir do seu baptismo que Jesus entra no centro da
macronarrativa evangélica. A sua pessoa ganha em identidade, se
comparada com o que vimos em relação com o contraste entre João
Baptista e ele mesmo. Agora, ao sair das águas do Jordão, ele vê
os céus que se abrem e o Espírito a descer sobre Ele como se fora
uma pomba e ouve a voz dos céus (do Pai) a classificá-lo: "Tu és o
meu Filho muito amado, em ti pus o meu encanto." A teofania e as
palavras saídas dos céus são uma parábola em acção ou uma
encenação sobre a verdade da pessoa de Jesus, à imagem e
semelhança das teofanias do AT e da literatura intertestamentária.
As duas afirmações teológicas mais importantes têm a ver com a
descida do Espírito e com as palavras de identificação sobre o
Filho. Como o Espírito é indizível e invisível, os evangelistas
ajuntam que o Espírito veio ao encontro de Jesus como uma pomba.
Os autores procuram pesquisar na literatura bíblica e extra
bíblica analogias sobre esta pomba, mas sem resultados. Trata-se
dum "cliché literário" tal como os céus que se abrem e a voz dos
céus que ressoa. Em bom português, trata-se da embalagem que
envolve o presente, e o presente é o Espírito e as palavras que
saem da voz.
Quanto à declaração da voz celeste dos evangelhos sinópticos: "Tu
és o meu Filho muito amado", faz de Jesus um Filho diferente de
todos os outros filhos que aparecem na literatura do AT,
literatura apocalíptica e textos de Qumran. O adjectivo grego
agapètos tanto significa "muito amado" como único, a condizer com
a tradução grega dos LXX, que das vinte e duas vezes que aparece
no AT, em sete traduz a ideia de filho único.
A mesma afirmação aparece na cena da Transfiguração (Mc 9, 9 e
par.). E o facto da Transfiguração se ligar directamente ao
mistério pascal tem a ver com a verdadeira identidade de Jesus se
revelar definitivamente no mesmo mistério pascal. Tanto o Baptismo
como a Transfiguração não se podem entender sem o mistério pascal.
E o evangelho de João é o que leva mais longe e mais fundo esta
mesma verdade ao misturar o baptismo de Jesus ligado
exclusivamente ao Espírito com o baptismo cristão: "Aquele sobre
quem verdes descer o Espírito e poisar sobre Ele, é o que baptiza
com o Espírito Santo".
Mas isto não significa que Jesus se tornou Filho só a partir do
Baptismo, da Transfiguração ou da Ressurreição, porque a
declaração que se segue nos sinópticos: "em Ti pus o meu encanto",
emprega o verbo eudokein no aoristo grego, o que significa uma
acção passada e agora realizada: o Jesus que veio de Nazaré e foi
baptizado por João já era o Filho de Deus antes do baptismo. Tanto
o Espírito que desce sobre Ele como a voz celeste apenas confirmam
com toda a autoridade divina a verdade de Jesus. Qualquer doutrina
adopcionista, como aconteceu em grupos cristãos dos primeiros
séculos, não tem razão de ser. E é por isso mesmo que Mateus e
Lucas antepõem à vida pública de Jesus os seus chamados evangelhos
da infância, e o evangelho de João o seu prólogo ou hino ao Logos
preexistente e incarnado no meio dos homens (Jo 1, 1-18).

85

19. TENTAÇõES DE JESUS
Há uma diferença fundamental entre a maneira de Marcos apresentar
a tentação de Jesus no deserto e as de Mateus e Lucas. Marcos
oferece-nos apenas dois versículos (1, 12-13), ao contrário dos
onze versículos de Mateus (4, 1-11) e dos treze de Lucas (4, 1-
13). Como já vimos, Mateus e Lucas apresentam-nos a primeira
narrativa da fonte Quelle. Por isso, a narrativa de Marcos não
deve ser estudada em contraste com os outros dois sinópticos,
razão porque iremos estudar primeiramente as tentações segundo
Marcos e depois segundo Mateus e Lucas.
A narrativa de Marcos faz um todo com a do baptismo através do
advérbio temporal imediatamente: "Imediatamente, o Espírito
impeliu Jesus para o deserto. E ficou no deserto quarenta dias.
Era tentado por Satanás, estava entre as feras e os anjos serviam-
no." Uma vez que Jesus está cheio do Espírito, é este mesmo
Espírito de Deus que o impele para o deserto. O autor quer
significar que a vida de Jesus está totalmente na dependência do
Espírito. Jesus vai para o deserto meditar na sua missão a iniciar
brevemente. Diante desta missão abrem-se dois caminhos: o de Deus
e o de Satan. Por isso, a narrativa da tentação, em Marcos, está
estruturada em quatro afirmações: 1) Jesus vive no deserto durante
quarenta dias; 2) é tentado por Satan; 3) convive com os animais
selvagens; 4) é servido pelos anjos.
O deserto é um tema tipicamente bíblico, que tanto significa a
terra onde habitam os demónios, terra de perdição, tentação e
morte, como de purificação e conversão. Para Jesus, o deserto
também tem estes dois significados: lugar de encontro com o Pai na
solidão do deserto (Mc 1, 35.45; 6, 32.35) e de tentação, como
acontece na nossa perícopa. No deserto é tentado por Satan, mas
convive com os animais

86
selvagens e é servido pelos anj'os. Numa única frase, o narrador
oferece-nos uma descrição de tipo simbólico, que caracteriza a
mundividência de Jesus. Ao fim e ao cabo, tudo se resolve no
contraste entre o Espírito e Satan.
Segundo a mentalidade judaica de então, mormente a de feição
apocalíptica, Israel estava entregue a Satanás e seus demónios
porque quem dominava Israel não era a teocracia do antigamente mas
o império romano com a sua legião de demónios (Mc 5, 9). A
narrativa coloca-nos, então, numa perspectiva escatológica e
apocalíptica em que Satanás tenta Jesus durante o tempo simbólico
da prova (o número 40), pensando trazê-lo para a sua política de
morte. Mas uma vez que Jesus é dominado pelo Espírito, os animais
selvagens convivem em paz total com ele, realizando-se, assim, a
profecia de Is 11, 6-8: "Então o lobo habitará com o cordeiro, / e
o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; / o novilho e o leão
comerão juntos, / e um menino os conduzirá. / A vaca pastará com o
urso, / e as suas crias repousarão juntas; / o leão comerá palha
com o boi. / A criancinha brincará na toca da víbora / e o menino
desmamado meterá a mão na toca da serpente." O mundo de Jesus é o
mundo do Espírito, dos anjos, da conversão dos animais selvagens
(símbolo da conversão messiânica), o mundo da luta entre o
Espírito e Satan.
O evangelho de Marcos é classificado como evangelho dos conflitos
na medída em que Jesus, desde o seu começo de vida messiânica, até
à Cruz, está sempre em conflito com os seus "inimigos", sejam eles
os demónios, a doença, o Templo, o sábado, as leis e a tradição
sobre o puro e o impuro, as ondas encapeladas do lago, ou as
pessoas: fariseus e saduceus, os seus próprios discípulos, o
Sinédrio e Pilatos. Este conflito inicial no deserto durante
quarenta dias (analepse simbólica de toda a história passada do
povo de Israel) indicia o acontecimento que Jesus vai começar a
realizar: o triunfo sobre tudo quanto não seja Espírito e vontade
original de Deus.
Os evangelhos de Mateus e Lucas oferecem-nos três tentações do
diabo que têm como pano de fundo as tentações do povo judaico no
deserto. Na primeira tentação diz-lhe o diabo por causa do jejum
de 40 dias e 40 noites: "Se tu és o Filho de Deus, ordena que
estas pedras se convertam em pães", ao que Jesus responde com o
texto do Dt 8, 3: "Nem só de pão vive o homem, mas de toda a
palavra que sai da boca de Deus. " Na segunda tentação, o diabo
leva Jesus ao pináculo do tempo e oferece-lhe o espectáculo de ser
agarrado pelos anjos se Ele se deitar dali abaixo, ao que Jesus
responde com o texto do Dt 6, 16: "Não tentarás o Senhor teu
Deus!". Na terceira tentação, o diabo leva Jesus a um monte muito
alto e oferece-lhe as riquezas de todo o mundo se Jesus lhe cair
aos pés e o adorar, ao que Jesus responde com o texto do Dt 6, 13:
"Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto."
A compreensão bíblica destas tentações resulta das respostas de
Jesus, que nada mais são do que a citação de três textos do livro
do Deuteronómio entre os cc.6-8. E estes capítulos têm a ver com a
aliança entre Deus e o seu povo. Ao pegarmos nestes três
capítulos, é fácil vermos que a sua recta final reside no c. 8, 7-
20, onde Moisés proclama em nome de Deus: "O Senhor, teu Deus, vai
introduzir-te numa terra óptima, terra de torrentes de água, de
fontes e de nascentes profundas, que jorram por vales e montes;
terra de trigo, cevada, uvas, figos, romãs; terra de azeite e
mel....Toma cuidado em não esquecer o Senhor, teu Deus, observando
os seus mandamentos, preceitos e leis, que hoje te ordeno. Não
suceda que depois de teres comido e estares saciado, decidas
construir boas casas para nelas habitar, aumentar o teu gado miúdo
e graúdo, acumular a tua prata e o teu ouro e multiplicar tudo o
que te pertence. Então, o teu coração se tornaria soberbo e tu
esquecerias o Senhor, teu Deus, que te tirou da terra do Egipto,
da casa de servidão... Foi Ele quem te alimentou neste deserto com
um maná desconhecido dos teus pais, para te humilhar, para te pôr
à prova e, no futuro, te tornar feliz. Poderias dizer no teu
coração: 'Foi a minha força e o poder do meu braço que me
proporcionaram esta riqueza"'.
Estes textos dizem-nos que Deus põe à prova o seu povo diante da
aliança que estabelece com o mesmo: ou Deus ou os deuses pagãos;
ou Deus ou o orgulho do povo; ou Deus ou a vaidade humana; ou a
riqueza de Deus e o pão de Deus ou a auto-satisfação humana.
Reparemos

87
que em Mt 4, 3.6, o diabo se refere a Jesus duas vezes com este
condicional: "Se tu és o Filho de Deus...". O que está em causa,
portanto, é a questão do ser de Jesus como Filho de Deus. No AT,
Moisés pede ao povo, que está para entrar na Terra Prometida, que
não caia na tentação dos seus antepassados diante do teste ou da
prova que Deus lhes dirigiu. Agora, com Jesus, está em prova a
natureza do seu messianismo que ele vai começar a efectuar. Irá
anunciar um messianismo de vaidade, de espectáculo, de grandeza
humana, à maneira dos valores do diabo, ou um outro messianismo,
segundo a dimensão e os valores do próprio Deus? E como nós já
sabemos que toda a vida messiânica de Jesus esteve sempre em
conformidade com os valores do próprio Deus, foi por isso que ele
entrou em conflito com as instituições e com os vários grupos dos
judeus do seu tempo, como vimos atrás. Por isso, as chamadas
tentações de Jesus mais não dizem do que a fidelidade do mesmo
Jesus ao projecto do Pai, bem diferente do projecto dos homens. O
que está em causa é a natureza deste : se és o Filho de Deus. E,
realmente, Ele é o verdadeiro Filho de Deus porque não cedeu às
provas ou tentações dos antigos filhos de Deus, nem às do Satan,
com os seus valores de vaidade e riqueza, mas foi fiel à nova
aliança de Deus com o seu povo estabelecida através da sua própria
pessoa, Ele, o Unigénito, o Filho de Deus, que vai alimentar com o
novo maná o seu povo (Mt 14, 13-21 e 15, 32-39 e par.) e
estabelecer a sua nova aliança na obediência ao Pai e não na
obediência a Satan. Por isso, é que quando disse a Satanás: "Vai-
te, Satanás..." em Mt 4, 10, também o disse a Simão Pedro em Mt
16, 21, porque o mesmo Simão Pedro queria afastar Jesus da
obediência ao Pai para o conduzir para um messianismo em
contradição com o do Pai.

20. REINO DE DEUS
A partir de agora iremos tratar da doutrina central de Jesus, que
tem a ver com o Reino de Deus. Poderíamos dizer que tudo quanto
estudámos até aqui foi por causa disto mesmo. É que, realmente,
Jesus passou os anos da sua vida de pregação e acção messiânicas a
pregar o Reino de Deus. Mas, como também já expusemos mais do que
uma vez, ele não nos deixou um tratado doutrinal, bem definido,
sobre o que é que entendia por Reino de Deus. E é por causa disto
que os historiadores e exegetas crentes e não crentes apresentam
este Reino de Deus de diversas maneiras quanto à sua
concretização.
Sem dúvida que Jesus tinha por intenção dizer aos judeus do seu
tempo que a expectativa secular dos mesmos judeus por este Reino /
Reinado/ Realeza / Soberania estava a chegar ou já acabava de
chegar. Ao pregar o Reino de Deus, Jesus queria dizer aos seus
ouvintes que o seu Deus ia, finalmente, ouvir os seus queixumes, e
dar as respectivas respostas a esses queixumes e ansiedades de há
séculos, pois que, na realidade, há séculos que osjudeus
suspiravam por uma pátria livre dos estrangeiros. Primeiro foi
Sargão II, no séc. VIII, que conquistara o Israel do Norte, depois
foi Nabucodonor, no séc. VI, que conquistou o Israel do Sul e, a
partir de então, passaram pelas mãos dos babilónios, persas,
macedónios e, agora, dos romanos. Logo, quando os ouvintes de
Jesus o escutavam e ele lhes dizia que o Reino de Deus chegara,
muitos terão pensado numa libertação divina de teor político. Foi,
aliás, o que pensaram os seus próprios discípulos. Basta
considerar alguns textos.
Em Mt 16, 21-23, quando Jesus pergunta aos discípulos: "Quem dizem
vocês que eu sou?", Pedro responde: "Tu és para nós o Messias".
Mas Pedro estava a pensar num Messias de libertação política,
contraditando, por tal motivo,

88
as palavras de Jesus sobre as suas afirmações acerca dos seus
sofrimentos, morte e ressurreição: "Deus te livre, Senhor! Isso
nunca te há-de acontecer!" (16, 22). Ao que Jesus lhe responde:
"Afasta-te, Satanás! Tu és para mim um estorvo, porque os teus
pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens!" (16, 23). O
mesmo se depreende do pedido que a mãe dos filhos de Zebedeu faz a
Jesus: "Ordena que estes dois meus filhos se sentem um à tua
direita e o outro à tua esquerda, no teu Reino" (Mt 20, 21 e
par.), ao que Jesus responde: "Não sabeis o que pedis. Podeis
beber o cálice que Eu estou para beber?" (20, 22 e par.). A
multidão que aclama Jesus na chamada "entrada triunfal em
Jerusalém" com a citação do Si 118, 25-26: "Hossana ao Filho de
David! / Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor! / Hossana
nas alturas", também devia entender aquela entrada como a de um
Messias de salvação política. Nem admira que os doze apóstolos
abandonem Jesus quando o vêem morrer numa cruz e que, já depois da
ressurreição, lhe perguntem: "Senhor, é agora que vais restaurar o
Reino de Israel?" (At 1, 6), ao que Jesus responde: "Não vos
compete saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou com a sua
autoridade. Mas ides receber uma força, a do Espírito Santo, que
descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por
toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo" (Ac 1, 7-8).
Como é fácil de ver, sempre que os discípulos ou outras pessoas
põem o acento tónico no messianismo político de Jesus para
realizar o tal Reino de Deus, o mesmo Jesus se encarrega de mudar
a linha de pensamento. Mas a verdade é que ainda hoje há quem
pense que Jesus tinha por intenção esmagar os inimigos dos judeus
e os maus judeus através duma acção apocalíptica. Seria pensar
como, aliás, pensava João Baptista quando pregava: "Raça de
víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera que está para vir?...
O machado já está posto à raiz das árvores... Ele tem na sua mão a
pá de joeirar; limpará a sua eira e recolherá o trigo no celeiro,
mas queimará a palha num fogo inextinguivel" (Mt 3, 2-12 e par.).
Por isso, quando os caros leitores pegarem em livros que
apresentem Jesus como um revolucionário político, ou como um
zelota guerrilheiro, ou como um sublevador das massas populares
daquele tempo, lembrem-se destes textos e de como Jesus procurou
desfazer todos estes mal entendidos.
Os evangelhos sinópticos deixaram-nos vários sumários sobre a
pregação fundamental de Jesus acerca deste Reino de Deus.
LembreMOS Mc 1, 15: "O tempo está completo e o Reino de Deus está
próximo: arrependei-vos e acreditai no Evangelho." Mateus escreve
mais ou menos a mesma coisa: "Convertei-vos, porque está próximo o
Reino do Céu" (4, 17). O evangelista Lucas não nos transmite este
sumário, mas substitui-o pela pregação inicial de Jesus na
sinagoga de Nazaré, que corresponde ao programa narrativo de
Marcos e Mateus e o explicita através da citação de Isaías 61, 1-
2, que nós passamos a estudar.
É deveras interessante este texto de Lucas em 4, 16-30, porque se
trata dum texto redaccional de Lucas, isto é, sem paralelo com
Marcos e Mateus, mas que espelha bem o que é que Jesus entendia
pelo tal Reino de Deus.
Escreve Lucas que Jesus entrou na sinagoga de Nazaré num sábado,
como era próprio da liturgia sabática daquele tempo, levantou-se
para ler as Sagradas Escrituras (a chamada haphtarah ou
ashelematah) e o encarregado da sinagoga (o chamado hazzan ou
shamash) lhe entregou o rolo das mesmas Escrituras. Jesus abriu-o
em Is 61, 1-2 e leu: "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque
me ungiu para anunciar a boa-nova aos pobres; enviou-me a
proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da
vista,- a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano da
graça (jubilar) da parte do Senhor".
O texto de Isaías encontra-se no chamado Trito Isaías, o que
corresponde a um tempo do exilio da Babilónia ou imediatamente ao
pós-exilio. Diante das grandes dificuldades e amarguras do exilio
e pós-exilio, Deus apresenta o seu mensageiro - aliás, inominado -
, cheio do seu Espírito, para infundir esperança ao seu povo
classificado de pobre, cativo, cego e prisioneiro. Estas quatro
classes sociológicas em que vive o povo são bem expressivas, pois
simbolizam toda a situação de degradação, pobreza e falta de
liberdade em que vive o povo.
Mas o Jesus de Lucas não lê de maneira literária o tExto original
de Isaías, pois elimina a parte final : um dia de vingança para o
nosso

89
Deus, absolutamente necessária ao texto de Isaías, porque o ano da
graça do Senhor, na mentalidade do AT e neste caso concreto de
Isaías, só se concretizava se o povo fosse liberto dos seus
inimigos pelo castigo correspondente contra esses inimigos. Mas o
Jesus de Lucas não refere esse dia de vingança contra os inimigos
do povo, precisamente por corresponder aos antípodas de toda a
acção de Jesus: ele veio para salvar, agraciar, perdoar e não para
castigar. Agora deixa de haver amigos e inimigos, judeus e pagãos,
para haver apenas o ano jubilar da graça para todos. E há que
ressaltar este último aspecto do ano jubilar, porque é o único
texto do NT que refere o ano jubilar que estamos a viver.
Além do mais, há ainda a acrescentar que Jesus introduz no seu
texto isaiano a frase de Is 58, 6d: libertar os oprimidos, que vem
acentuar um pouco mais a semântica da opressão ao texto de Is 61.
O que é que Lucas pretende com esta libertação torna-se claro se
tivermos em conta o verbo aphesin no v. 18: libertar os cativos e
libertar os oprimidos. O verbo "libertar" diz o mesmo que
"salvar", como aparece claro em vários textos de Lucas (1, 77; 3,
3; 24, 47; Ac 2, 38; 5@ 31; 10, 43; 13, 38; 26, 18). Libertar do
cativeiro é salvar do cativeiro. Trata-se duma libertação ao mesmo
tempo política e religiosa em conformidade com o contexto de Is 61
e 58. Na pessoa de Jesus, trata-se da sua actividade como
pregador, taumaturgo e exorcista. E estas três actividades de
Jesus só aparecem e só se compreendem depois do baptismo do mesmo
Jesus em que o Espírito Santo de verdade e libertação que o possui
também liberta os cativos políticos, os doentes físicos e
psíquicos dos seus males.
E quando Jesus, depois de ter lido o texto de Isaías, o ter
enrolado novamente e o ter entregado ao funcionário, Proclama alto
e bom som: "Hoje mesmo se cumpriu esta Escritura que acabais de
ouvir", está a proclamar o seu programa narrativo sobre o Reino ou
Soberania de Deus.
O ano jubilar de Jesus corresponde ao Reino que ele pregou e viveu
e deve corresponder ao nosso ano jubilar. O hoje de Jesus é o hoje
da Igreja: um hoje de graça, libertação e salvação. Por isso
mesmo, a nossa Igreja, que é a de Jesus, ou é livre e libertadora
ou não é Igreja.
A identidade de Jesus passa, portanto, por aquilo que ele disse e
fez em relação ao Reino de Deus. Neste sentido é importante
determo-nos um pouco na macronarrativa de Mc 2, 1-3, 6 e
respectivos paralelos sinópticos em Mateus e Lucas. Trata-se de
cinco controvérsias de Jesus com os seus inimigos fariseus e
doutores da LeI, onde apresenta a sua autêntica identidade.
Responde, portanto, à sempre debatida pergunta: mas, afinal de
contas, quem foi o Jesus real da história? Estas cinco
controvérsias são chamadas apotegmas, isto é, narrativas que têm
por centro uma declaração de Jesus sobre a sua própria pessoa. A
primeira controvérsia vem em Mc 2, 1-12 e par. Mt 9, 1-8 e Lc 5,
17-26. Trata-se da cura de um paralítico na casa habitada por
Jesus. Perante a fé dos que transportaram o paralítico para ser
curado, Jesus começa por dizer ao paralítico: "Filho, os teus
pecados estão perdoados." Os doutores da Lei que estavam presentes
acharam que Jesus estava a blasfemar uma vez que só Deus é que tem
poder para perdoar os pecados, ao que Jesus responde: "Pois bem,
para que saibais que o Filho do homem tem na terra poder para
perdoar os pecados, Eu te ordeno: levanta-te, pega no teu catre e
vai para tua casa." Perante esta afirmação ou apotegma colada à
cura do paralítico, os presentes exclamam: "Nunca vimos coisa
assim!".
Se Jesus curasse apenas o paralítico já era algo de muito
especial, na medida em que Jesus, ao contrário de todos os demais
taumaturgos judeus e não judeus, não reza a Deus para o curar, mas
cura-o apenas com a sua própria autoridade. Mas a blasfémia está
no facto de perdoar os pecados, e, desta maneira, afirma a sua
identidade - totalmente nova em relação a todas as demais
personagens da Bíblia Hebraica.
A segunda controvérsia vem em Mc 2, 13-17 e par. Mt 9, 9-13 e Lc
5, 27-32, onde se narra a vocação de Levi ou Mateus, que era um
publicano ou cobrador de impostos. Já sabemos que estes judeus
publicanos eram mal vistos pelos demais judeus, pois estavam ao
serviço do império romano. Logo, eram tidos por pecadores
públicos. O facto de Jesus convidar um homem destes para seu
discípulo e apóstolo já era de

90
si um autêntico escândalo. Mas o escândalo adensa-se muito mais
quando Jesus come com Levi e outros seus colegas publicanos, razão
porque os doutores da Lei do partido dos fariseus o criticam,
perguntando, por isso, aos discípulos de Jesus: "Por que é que Ele
come com cobradores de impostos e pecadores?" A isto Jesus
responde com o segundo apotegma ou declaração doutrinal sobre a
sua própria pessoa: "Não são os que têm saúde que precisam de
médico, mas sim os enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas os
pecadores. "
Pelos evangelhos fora, ficamos a saber que Jesus, tanto nas
parábolas como nas acções, tinha por hábito receber os
marginalizados da sociedade judaica de então, tidos por pecadores,
como meio pedagógico de chamar a atenção dos responsáveis
religiosos judeus para a tal conversão, de maneira a verem as
pessoas segundo o plano original de Deus e não segundo as
observações e as tradições da Lei. É nisto que consiste a sua
novidade de identidade pessoal.
A terceira controvérsia e respectivo apotegma vem em Mc 2, 18-20 e
par. Mt 9, 14-15 e Lc 5, 32-35, que tem por pano de fundo a
questão do jejum. Segundo a narrativa, o tempo desta controvérsia
passava-se num dia em que tanto os discípulos de João Baptista
como os fariseus estavam a jejuar.
Segundo o que se lê no AT, os judeus jejuavam no dia das expiações
ou do perdão (o célebre yom kippur: Lv 16, 29-31; 23, 26-32), e,
ainda, em outros dias segundo as tradições devocionais (Ne 1, 4;
Dn 9, 3: Salmos de Salomão 3, 8; Didaké 8, 1). Os evangelhos devem
referir-se aos jejuns devocionais a que Jesus pura e simplesmente
não ligava. A resposta de Jesus é, de facto, revolucionária, não
tanto pelo facto de Jesus e os seus discípulos não jejuarem, mas
pela causa que Jesus apresenta: "Poderão os convidados para a boda
jejuar enquanto o esposo está com eles? Enquanto têm consigo o
esposo, não podem jejuar. Dias vírão em que o esposo lhes será
tirado; e então, nesses dias, hão-de jejuar."
O que Jesus afirma através da metáfora do esposo/noivo é que ele,
a partir de agora, é esse esposo/noivo da nova humanidade e, sendo
assim vem estabelecer os tempos da festa e não da tristeza. Os
veLhos temas bíblicos dOs profetas sobre a festa ou o banquete e
sobre o noivo (Is 25@ 6-8; 551, 1-21; 61, 10) realizam-se, agora,
na sua pessoa. A força do texto consiste não tanto na apresentação
da metáfora sobre as bodas e a festa, mas na definitiva presença
do noivo. Convenhamos que é um arrojo inaudito, da parte de Jesus,
propagar urbi et orbi que é ele o noivo da nova humanidade, quando
as velhas profecias se referiam sempre ao próprio Deus. É mais uma
afirmação enunciativa sobre a identidade de Jesus.
A quarta controvérsia vem em Mc 2, 23-28 e par. Mt 12, 1-3 e Lc 6
1-5, que, desta vez, tem por detrás a sacralidade do sábado, que
já estudamos anteriormente. Os fariseus queixam-se a Jesus pelo
facto dos seus discípulos, através das searas, colherem espigas em
dia de sábado.
Jesus responde-lhes com o exemplo de David e termina com a
afirmação solene: "O sábado foi feito para o homem e não o homem
para o sábado. O Filho do Homem até do sábado é Senhor."
O que interessa a Jesus, segundo os evangelhos, é a importância da
figura de David ter passado por cima duma lei sagrada das
Escrituras Hebraicas. Se David o fez, com muita mais razão Jesus o
poderia fazer. Sem dúvida que o dia de sábado era uma instituição
sagrada para os judeus, só comparável ao próprio Templo, e a razão
era deveras divina, já que Deus repousou no sábado (Gn 2, 2-3).
Pois bem, se Jesus se auto proclama como Senhor do sábado,
modIfica por completo o sentido bíblico e tradicional da
sacralidade do sábado. Ser Senhor do sábado é uma outra afirmação
ou enunciação teológica demasiado ousada porque nos apresenta a
identidade de Jesus paralela à do próprio Deus. Assim como em Mc
2, 10 o Filho do Homem tem poder para perdoar os pecados, o mesmo
se afirma, agora, sobre o próprio sábado. Nem devemos deixar
passar em vão a força da partícula grega kai: "O Filho do Homem
até do sábado é Senhor." Também devemos reparar na partícula grega
conjuntíva de modalidade consecutiva HÔste: " ... de modo que o
Filho do Homem é Senhor até do sábado."

91
Finalmente, a quinta controvérsia e respectivo apotegma vem em Mc
3, 1-5 e par. Mt 12, 9-14 e Lc 6, 6-11. Trata-se também duma cura
de Jesus em dia de sábado. Mas o apotegma doutrinal é um pouco
diferente do que acabámos de estudar. Agora Jesus pergunta: "é
permitido ao sábado fazer bem ou fazer mal, salvar uma vida ou
matá-la?" Enquanto que nas outras controvérsias, Jesus apresenta a
sua doutrina de maneira afirmativa: "o Filho do Homem tem na terra
poder para perdoar os pecados"... "Eu não vim chamar os justos mas
os pecadores"... "Enquanto têm consigo o esposo não podem
jEjuar"..."O Filho do Homem até do sábado é Senhor", nesta última
apresenta-a de maneira interrogativa, como, aliás, acontece em
muitos outros lugares evangélicos. Trata-se duma retórica dialogal
em que o destinatário é interpelado a responder às suas próprias
dúvidas.
o que Jesus quer significar nesta quínta controvérsia com a
interrogação: "É permitido ao sábado fazer bem ou fazer mal,
salvar uma vida ou matÁ-la?", é responder a um ponto fundamental
que tem a ver com a natureza ou a identidade do próprio Deus, uma
vez que para o Deus da Bíblia, a vida é só uma: a terrena e a
escatológica. Deus é a VIDA por excelência e quer que os seus
filhos também a possuam. É o que afirma o Jesus do quarto
evangelho em 10, 10: "Eu vim para que tenham a vida e a tenham em
abundância".
Nestas cinco controvérsias e respectivas afirmações ou apotegmas
de Jesus sobre a sua própria pessoa temos a primeira Cristologia
de Jesus. Estamos com o Jesus histórico e não com o Jesus Cristo
da Ressurreição, mas neste Jesus histórico já reside toda a
Cristologia posterior. Não existe nenhuma contradição entre o
Jesus da história e o Cristo da Ressurreição, Senhor e Salvador. E
é por isto mesmo que estas cinco controvérsias, segundo Marcos,
acabam com a narrativa dos fariseus se reunirem com os partidários
de Herodes para deliberarem como haviam de matar Jesus. Quem leva
Jesus à morte são as suas próprias afirmações dogmáticas sobre a
identidade da sua pessoa. E desta identidade Jesus nunca fugiu nem
podia fugir.

21. MILAGRES DE JESUS E REINO DE DEUS
Os milagres fazem parte integrante da acção de Jesus, uma vez que
ele não se limitou apenas a anunciar a vinda do Reino de Deus
através de pequenos discursos e parábolas, mas também pela acção
libertadora das curas, a que nós chamamos milagres. Tem havido
historiadores e até exegetas bíblicos que não dão grande valor aos
milagres de Jesus por os julgarem um assunto do mundo mitológico.
Mas semelhante atitude não é séria. Seria pôr de lado uma
quantidade muito signiFicativa das narrativas evangélicas. Há, no
entanto, também autores que vêem a pessoa de Jesus apenas como um
taumaturgo ou um carismático curandeiro, ao lado de tantos outros
carismáticos curandeiros judeus e não judeus daqueles tempos. São
dois extremos que nada condizem com o real signíficado dos
milagres de Jesus. Por isso, os milagres evangélicos não são
simples narrativas de tipo jornalístico, como diríamos hOje, uma
vez que a historiografia daquele tempo era bem diferente da de
hoje.
Comecemos por reparar que no AT há poucos milagres. Nem os
patriarcas, nem os profetas faziam milagres, se exceptuarmos Elias
e Eliseu. Os grandes feitos de Moisés relacionados com as célebres
pragas do Egipto no livro do Êxodo 7-14 ou com o maná em Ex 16 não
sÃo curas nem milagres, mas interpretações "teológicas" de
realidades naturais.
A actividade taumatúrgica de Jesus é de outra ordem. E devemos
começar por afirmar que Jesus realizou realmente curas ou milagres
porque são os seus próprios opositores que o corroboram ao
querereM explicar essas curas e exorcismos pela acção de Beelzebu.
Segundo Mt 12, 22-24 e par. Lc 11, 14-15, depois de Jesus ter
curado um cego e mudo, as pessoas que viram tal milagre
exclamavam: "Não é este o Filho de David?", ao que os fariseus
logo juntaram: "Este expulsa os

92
demónios porque está feito com Beelzebu, o príncipe dos demónios."
De seguida, o próprio Jesus vai dizer-lhes: "Se eu expulso os
deMónios por Beelzebu, por quem os expulsam os vossos filhos" (Mt
12, 27)? Esta narrativa é realmente muito estranha e tem todo o
sabor de narrativa histórica. Por ela ficamos a saber que a doença
de um surdo e mudo (Lucas diz apenas mudo) era fruto dum demónio,
tal como aparece também em Mt 9, 32, e que aquilo que Jesus fazia
também outros o faziam. o povo estava, portanto, familiarizado com
a actividade dos exorcistas e carismáticos. Assim sendo, há que
estudar o assunto com respeito e sentido criterioso.
Dos quatro evangelhos, é o de Marcos que mais realça os milagres
de Jesus. No evangelho de João, não se trata de milagres, mas de
sinais", e tudo indica que os doze primeiros capítulos do
evangelho de João, onde se narram os sete "sinais", dependem duma
fonte da tradição histórica, onde o quarto evangelista vai beber
as suas informaçÕes sobre os tais sinais, a que chamamos a "fonte
dos semeia ou sinais". E o que distingue substancialmente os
sinais de Jesus no evangelho de João dos milagres nos evangelhos
sinÓpticos é precisamente a característica simbólica-teológica do
quarto evangelho. Daqui advém que cada evangelista tem a sua
tonalidade própria e significativa ao narrar os milagres de Jesus.
Para Marcos os milagres significam a luta de Jesus contra Satanás.
É o próprio Jesus que o afirma em Mc 3, 23-27 com esta parábola
dirigida aos seus opositores que o acusam de curar as pessoas por
estar feito com Satanás: "Como pode Satanás expulsar Satanás? Se
um reino se dividir contra si mesmo, tal reino não pode perdurar;
e se uma familia se dividir contra si mesma, essa familia não pode
subsistir. Se, portanto, Satanás se levantou contra si próprio,
está dividido e não poderá subsistir; é o seu fim. Ninguém
consegue penetrar em casa de um homem forte e roubar-lhe os bens
sem primeiro o amarrar; só depois poderá saquear-lhe a casa." Para
Marcos, portanto, Jesus é o mais forte que vem prender o forte,
isto é, Satanás, que dominava a sociedade. Em Mateus, os milagres
têm menos força do que a palavra e apenas querem explicar a força
da mesma palavra. Por isso, Mateus apresenta-nos cinco grandes
discursos de Jesus e os milagres - embora importantes -, decorrem
da acção da mesma palavra. É paradigmático o resumo de Mt 4, 23:
"E [Jesus] percorria toda a Galileia, ensinando nas suas sinagogas
e pregando o evangelho do Reino e curando toda e qualquer doença e
enfermidade do povo"(o mesmo em Mt 9, 35). Finalmente, no
evangelho de Lucas, os milagres de Jesus realizam o programa
narrativo que ele apresenta no cap. 4, 16-30, que já estudámos:
Jesus veio para "anunciar a Boa Nova aos pobres, proclamar a
libertação aos cativos, dar a vista aos cegos, pôr Em libErdade os
oprimidos e proclamar o ano jubilar do Senhor". Em conclusão, os
milagres de Jesus, na intenção de cada evangelista, não valem por
si mesmos, mas pelo que simbolizam e significam no contexto
cristológico e teológico do anúncio do tal Reino de Deus. Para
haver Reino ou Soberania de Deus não deve haver doença, opressão,
dores e lágrimas. Pois bem, os milagres de Jesus definem e
simbolizam um aspecto importante deste Reino de Deus.
Um outro aspecto importante nos milagres de Jesus é repararmos que
o mesmo Jesus não dava valor aos seus milagres como factos
extraordinários. Quase dá a entender que não gostava lá muito
desta sua acção taumatúrgica. No quarto evangelho Jesus diz
expressamente: "Se não virdes sinais e prodígios, não acreditais"
(4, 48). Em Mc 8, 11-12 e par. de LC 12, 54-56 e Mt 16, 1-4 os
fariseus pedem um sinal/milagre a Jesus, de ordem extraordinária,
para poderem acreditar nele, ao que Jesus, profundamente
entristecido, lhes responde: "Por que pede esta geração um sinal?
Em verdade vos dIgO: sinal algum será concedido a esta geração."
Nos três evangelhos sinópticos aparece o chamado "segredo
messiânico" relacionado com o silêncio que Jesus impõe aos
miraculados e parentes e, bem assim, aos próprios endemoninhados
já curados. Em Mc 1, 32-34, depois de Jesus curar muitos doentes
físicos e psíquicos, a narrativa termina assim: "... e ele não
deixava que os demónios pudessem falar uma vez que eles o
conheciam." Em Mc 1, 40-45, Jesus impõe o silêncio a um leproso
curado com estas palavras: "Tem cuidado em não dizeres nada a
ninguém ... ". Em Mc 5, 37-43, o evangelista descreve a cena'da
ressurreição da filha de Jairo, com as recomendações finais:
"Recomendou- lhes vivamente que ninguém soubesse do

93
sucedido...". Em Mc 7, 31-36 descreve-se a cura de um surdo-mudo e
Jesus "iMpôs aos presentes que a ninguém revelassem osucedido". Em
Mc 8, 26 Jesus dá a seguinte ordem a um Cego que acaba de curar:
"Não entres sequer na cidade!". mas Jesus também impõe o segredo
messiânICo aos prÓprios discípulos quando se trata da identIdade
da sua pessoa COmo Messias e Filho de Deus (Mc 8, 30 e Mc 9, 9 e
par.).
A pergunta que se impõe é esta: como explicar semelhante "segredo
Messiânico?" Não vimos já que em Mc 2, 1-36, o pRÓprio Jesus
realizou alguns milagres e manifestou através dos chamados
"apotegmas" a sua própria identidade de Filho dO Homem que tem na
terra poder de perdoar os pecados, de ser o SenhoR do próprio
sábado, de ser o noivo da nova humanidade? E por que é que, agora,
proÍBe os endemoninhados curados, os doentes curados e seus
familiares e, até, os seus próprios discípulos, de o aclamarem
como taumaturgo de Deus? A resposta que imediatamente nos parece
ser a mais consentânea com a intenção dos evangelistas e, através
deles, do próprio Jesus, é que Jesus não queria passar por um
simples taumaturgo curandeiro à maneira de tantos outros
curandeiros e carismáticos daquele tempo. Os milagres, só por si,
prestavam-se a ambiguidades sobre a identidade de Jesus. Para os
gregOs daquele tempo, um carísmático milagreiro passava por ser um
Theos anèr, Isto é, um homem divino diante do qual toda a gente se
curvava em adoração e admiração. Para estes "homens divinos" o que
estava em questão eram os feitos extraordinários, mas nÃo a fé. o
mesmo se diga dos judeus se tivermos em conta os tais feitos
extraordinários de Moisés, Elias e Eliseu, Razão porque S. Paulo
escreve na 1Cor 1, 23: "Enquanto os judeus pedem sinais e os
gregos andam em busca da sabedoria, nós pregamos um Messias
crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios."
Os evangelhos sinópticos - e, especialmente Marcos -, apresentam-
nos o "segredo messiânico" não por causa de qualquer estratégia
"cristã", mas por causa da estratégia do próprio Jesus. Ele quer
que o aCeitem na fé e não por causa de feitos extraordinários de
curas e milagres. Por isso é que não fez muitas curas,
numericamente falando. Nos evangelhos encontramos apenas umas
vinte narrativas de curas e de exorcismos, se exceptuarmos os
chamados relatos -sumários, que nos apresentam as curas em massa
(Mc 1, 32-14 e par.; 3, 7-12 e par.; 6, 53-56 e par.). E também é
por causa disto Mesmo que Jesus, muitas vezes, antes de fazer o
milagre, pergunta pela fÉ das pessoas (Mc 2, 5 e par: "VEndo Jesus
a fé daqueles hoMens..."; Mc 5, 34 e par: "Disse Jesus à mulher:
Filha, a tua Fé salvou-te; vai em paz e sê cuRada do teu mal"'...
Mc 5, 36 e par.: "NãO tenhas receio; crê somente" ... Mt 15, 28 e
par.: "ó mulher, grande é a tua fé. Faça-se coMo desEjas." ... Mc
9, 23 e par.: "Tudo é possível a quem crê". Em sentido contrário,
Jesus ressente-se do facto dos seus concidadãos de Nazaré não
acreditarem nele. Segundo o dizer de Mc 6, 6 e par.
ELE [Jesus] estava admirado com a falta de fé daquela gente.
Modernamente alguns exegetas bíblicos apresentaram a tese de que
este segredo messiânico de Marcos tinha a ver com a posição cristã
do mesmo Marcos contra uma certa ideia triunfalisTA de muitos
cristãos da Igreja primitiva que desprezavam a Cruz de Cristo e só
viam o triunfo do Jesus Cristo, profeta e sábio de Deus, vencedor
da morte pela sua Ressurreição, que iria trazer a paz total com a
sua sobErania divina .através da parusia iminente. Diante das
perseguições de Nero e da divinização dos imperadores romanos,
Jesus iria dar a sua resposta de TriunfalisMo messiânico sobre
romanos e imperadores. Contra esta corrente cRIstã é que Marcos
terá escrito, em Roma, o seu evangelho. Seria também por isso que
Marcos não apresenta nenhum texto da fonte Quelle, dE que já
falámos, e nenhuma narrativa das aparições do Ressuscitado. Só lhe
interessa a Cruz de Cristo, diante da qual o centurião romano faz
a sua profissão de fé: "Verdadeiramente este homem era Filho de
Deus!" (Mc 15, 39).
Não cremos que esta tese tenha alguma base sólida. Por isso, vamos
continuar a estudar os milagres de Jesus na sua real dimensão
relacionada com o Reino de Deus e com a figura messiânica de
Jesus. A pessoa do Messias, por ser ambígua, é que obriga Jesus a
impor o segredo messiânico aos discípulos, aos curados e seus
familiares e aos endemoninhados. Tudo gira à volta do significado
Da pessoa do Messias. Para o comum dos judeus, o Messias teria que
se apresentar com as duas vertentes, a política e a religiosa, uma
vez que não havia Messias sem sEr da linhagEm de David, isto é,
libertador político e soberano de

94
Deus neste mundo. Ainda hoje os nossos irmãos judeus continuam a
pensar mais ou menos da mesma maneira.
Já vimos que no tempo de Jesus havia muitos carismáticos ou
taumaturgos. Nem podia ser doutra maneira, porque, naquele tempo,
as curas eram todas fruto de homens santos, judeus ou não judeus,
e não da medicina, que, como todos sabemos, não existia. Hoje
falamos de leis naturais e falamos de milagre quando a cura vai
para além das tais leis da medicina ou da ciência. Só quando a
ciência deixa de explicar a cura é que se pode chamar "milagre". É
por isso que existe em Lourdes e Fátima uma comissão de médicos
para estudarem cientificamente os milagres, e é também por isso
que nenhum católico pode ser beatificado e canonizado sem a
apresentação dum milagre de Deus, através da sua pessoa, para além
das suas virtudes heróicas. É facto que a ciência moderna está a
pôr em causa esta visão clássica do milagre porque já não existem
as tais leis científicas da natureza como se pensava há alguns
anos.
Para provarmos a existência real dos milagres de Jesus temos que
distinguir entre milagres da natureza e milagres de curas físicas
e psíquicas. Os milagres de natureza não têm a mesma realidade ou
objectividade histórica que as curas físicas e psíquicas. Pensemos
na multiplicação dos pães, nas bodas de Caná em que a água é
transformada em vinho, na caminhada de Jesus por cima das águas,
na ressuscitação de Lázaro. Todos estes "milagres" são sinais
simbólicos do poder divino de Jesus. O que interessa é o sinal e
não o facto em si mesmo. Mas para os judeus e cristãos daquele
tempo não se faziam estas distinções porque a realidade era uma
só, e essa tinha a ver com o mundo de Deus e não com o mundo dos
homens. Reparemos apenas na caminhada de Jesus sobre as águas em
Mc 6, 45-52 e par. Mt 14, 22-33 e Jo 6, 16-21. Não se tratará duma
lenda porque só nas lendas é que as pessoas caminham sobre as
águas? O que devemos responder é que a intenção dos narradores
evangélicos não é contar um evento miraculoso, mas transmitir uma
mensagem: a de que os poderes caóticos e maléficos estão
submetidos a Jesus. Realmente, segundo a mentalidade judaica e do
Médio Oriente, o mar é o símbolo dos poderes maléficos,
ameaçadores e assassinos. Lemos no SI 93, 4: "Mais forte que o
bramido das ondas caudalosas, mais poderoso que o rebentar das
vagas, é o SENHOR lá nas alturas", e no Ap 21, 1: "Vi, então, um
novo céu e uma nova terra; pois o primeiro céu e a primeira terra
tinham desaparecido e o mar já não existia." O AT fala muitas
vezes do monstro marinho chamado Leviatan como personificação de
todas as forças ameaçadoras (Is 27, 1: "Naquele dia, o SENHOR
ferirá com a sua espada grande, temperada e forte, o monstro
Leviatan, serpente sinuosa, o monstro Leviatan, serpente fugidia,
e matará esse dragão do mar."; cf. SI 74, 14; 104, 28). Nestes
milagres da natureza mistura-se o real com o ficcional, o
histórico com o imaginário, mas para o homem do AT e do NT a
realidade de Deus é uma e única.
Quanto aos milagres ou curas de doenças físicas, são os próprios
evangelistas que nomeiam diferentes doenças. Em Lc 14, 2-4 Jesus
curou um hidrópico, em Mc 2, 1-12 e par. Jesus curou um
paralítico. Outros textos falam da cura de leprosos, cegos e
coxos. Em Mc 9, 14-27 e par. o evangelista apresenta-nos o quadro
clínico de um jovem levado à presença de Jesus: "Mestre, trouxe-te
o meu filho que tem um espírito mudo. Quando se apodera dele,
atira-o ao chão, e ele põe-se a espumar, a ranger os dentes e fica
rígido." No paralelo de Mt 17, 15, o pai do rapaz diz a Jesus: "o
meu filho é lunático (selèniadzetai) e está muito mal, cai
frequentemente no fogo e muitas vezes na água." Não há dúvida de
que estas descrições nos apresentam o quadro clínico de um
epiléptico. Por causa dos ataques repentinos em que o doente
ficava inconsciente pensava-se que existia uma ligação mágica
entre a doença e a Lua. Por isso tratava-se duma doença sagrada. O
mesmo acontecia com os endemoninhados ou possessos do demónio por
causa das características da doença, que hoje classificamos de
foro psicótico. Esta mistura entre demónios e doença pertence às
representações antropológicas e cosmológicas daquela época. "De
acordo com estas representações, os seres humanos são dominados
por demónios, déspotas terríveis, que provocam o sofrimento fisico
e psíquico. A crença do demónio, existente no mundo antigo, é
partilhada pelos evangelhos sinópticos" mas

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é importante notar que no quarto evangelho não há qualquer
exorcismo de Jesus, o que significa que estamos diante de
tradições distintas. Os evangelhos sinópticos estão muito mais de
acordo com a mentalidade popular de então sobre as doenças e
demónios. Mesmo assim, se exceptuarmos os "sumários", só
encontramos dois relatos de exorcismos nos sinópticos : Mc 1, 23-
28 e par. e Mc 5, 1-20 e par. Notemos, ainda, que também se fala
de possessos nalgumas doenças fíSicas: assim o "possesso mudo" de
Mt 9, 32; a "mulher encurvada por causa de um espírito" em Lc 13,
11; a "filha possessa de um espírito maligno" da siro-fenícia de
Mc 7, 25 e par. O que interessa a Jesus é libertar as pessoas das
suas doenças, sejam de ordem física ou psíquica, mas reparemos
também que a acção dos demónios não está associada ao pecado.
Jesus é o terapeuta do corpo e do espírito, para que a nova
humanidade tenha vida e paz.
O exegeta católico Joachim Gnilka fala desta maneira sobre toda a
problemática dos demónios e das doenças dos nossos evangelhos:
"Será possível encontrar explicações mais precisas para esta
actividade, ainda existente em povos "primitivos"? Nos casos de
possessos do demónio, pensou-se em anomalias extraordínárias e
terríficas, especialmente em doentes dos nervos ou mentais,
neuróticos profundos, neurasténicos, ou no fenómeno de perda de
identidade. Assinalou-se que as guerras, a opressão, a miséria são
capazes de intensificar e provocar nas pessoas simples o medo do
demónio. A crença em demónios compreende-se, então, como algo
provocado por sentimentos de temor e solidão, de abandono e
terror, sob a forma de sonhos, fenómenos naturais, doenças,
loucura, êxtase. Os demónios são projecções objectivadas destas
experiências terríveis. O projecto de existência e de vida assim
delineado afecta o ser humano que se encontra numa situação de
extraordinária opressão, da qual ele dificilmente será capaz de se
libertar. Jesus não criou esta situação. Ela já existia. Os seus
exorcismos actuam de forma libertadora sobre as pessoas que se
encontram nesta situação difíCil.
Terminamos este assunto chamando a atenção aos fundamentalistas
cristãos, católicos ou evangélicos, para que tenham o cuidado de
não ler a Bíblia à letra, sobretudo quando se trata de doenças ou
perturbações psíquicas, confundindo disfunções psicóticas com
diabos e demónios. Esta mentalidade está muito presente nalgumas
novas igrejas, a que também chamamos "seitas", mas também em
muitos católicos fundamentalistas.

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22. PARÁBOLAS E REINO DE DEUS
Vamos agora procurar compreender o que é que Jesus queria dizer
com a pregação sobre o Reino de Deus ou Soberania de Deus através
das suas parábolas.
Já sabemos que tanto o AT como o NT se servem de formas literárias
que têm a ver com o figurativo e não com o conceptual, ao
contrário da doutrinação filosófica dos gregos. A literatura
bíblica é estruturalmente imagética e figurativa. Por isso, como
já temos afirmado várias vezes, a Bíblia usa muitas formas
literárias: o mito, a saga, o romance, a hipérbole, a metáfora, o
símbolo, a alegoria, a personificação, a ironia, os jogos de
palavras, a poesia, a apocalíptica e a história. Só no fim é que
falei de história, embora toda a Bíblia tenha a ver com história.
Isto significa, - e uma vez mais o afirmamos, para que fique bem
claro -, que não estamos diante de uma historiografia à maneira da
historiografia científica dos nossos dias, mas duma historiografia
bíblica, que tem a ver com a salvação e a fé. E nada melhor do que
uma literatura imagética e figurativa para veicular esta história,
tal como acontece com a história do amor e dos sentimentos. Ao fim
e ao cabo, a Bíblia é um romance de amor entre Deus e os homens
com os seus dramas, traições, encantos, sonhos, utopias, fraquezas
e fidelidades. Para melhor percebermos tudo isto, reparemos apenas
nalgumas metáforas dos Salmos que nos caracterizam a pessoa de
Deus: Deus é uma "torre forte" (SI 9, 9), uma "rocha" (SI 28, 1),
um "escudo" (SI 3, 13), um "refúgio na montanha" (SI 18, 2), uma
"luz" (SI 27, 1), um "pastor" (SI 23, 1). Esta maneira de falar de
Deus nada tem a ver com a maneira conceptual dos gregos de
apresentar Deus como o SER supremo ou a causa primeira. E se a
Bíblia é um grande romance de amor entre Deus e a humanidade, como
afirmámos há pouco, o SI 23 apresenta Deus como um pastor e o seu
povo como ovelhas que Deus conduz a boas

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pastagens, onde as nutre e as protege. Da passagem da metáfora do
"pastor" passa-se à alegoria das pastagens, alímentação e
protecção. O mesmo acontece com a alegoria da vinha em Is 5, 1-7:
da passagem da metáfora de Deus como dono da vinha passa-se à
alegoria dos cuidados que Deus tem com a vinha: "cavou-a, tirou-
lhe as pedras, plantou-a de bacelo escolhido, edificou-lhe uma
torre de vigia, construiu um lagar."
Esta introdução serviu para melhor compreendermos o porquê das
parábolas de Jesus. Os rabinos diziam: "Não seja a parábola
qualquer coisa de insignificante aos teus olhos, porque através
duma parábola o homem pode chegar a compreender a Torá. É como um
rei que tenha perdido na sua casa um objecto de ouro ou uma pérola
preciosa; não a poderá encontrar servindo-se apenas duma lâmpada
de pequeno valor? Assim também a parábola não deve ser qualquer
coisa de insignificante aos teus olhos, porque graças a uma
parábola um homem pode chegar a compreender a Torá". Os rabinos
serviam-se das parábolas para se compreender a Torá, enquanto que
Jesus se serve delas para compreendermos o Reino de Deus.
Os estudiosos perguntam-se se Jesus utilizou o método parabólico
porque já era muito comum entre os rabinos do seu tempo ou se
Jesus teria sido original na utilização desse método. A pergunta
tem razão de ser porque as parábolas dos rabinos estão contidas no
Talmude cuja compilação é do séc. IV d. C. Seja como for, os
evangelhos sinópticos estão cheios de parábolas e é por elas que
devemos ir ao Jesus da história, descobrindo aí a identidade, a
personalidade e a consciência do próprio Jesus. E já sabemos que o
ensino parabólico é muito mais significativo do que o ensino
discursivo. E esta atitude de Jesus caiu de tal modo na tradição
da pregação das igrejas primitivas que os próprios evangelistas as
dispõem em unidades literárias catequéticas. Assim acontece com as
cinco parábolas de Marcos em Mc 4, 1-34: a parábola do semeador e
a sua respectiva explicação, a da lâmpada, a da medida, a do grão
que germina e a do grão de mostarda. Não foi Jesus que expôs estas
cinco parábolas no mesmo dia e no mesmo espaço: "à beira mar e
sentado num barco" (4, 1), mas o evangelista Marcos que assim o
entendeu por razões catequéticas. O mesmo faz Mateus em todo o
capítulo treze com a apresentação de sete parábolas: a do
semeador, a do trigo e joio, a do grão de mostarda, a do fermento,
a da pérola e a da rede. Reparemos que Mateus tem aqui três
parábolas que só aparecem no seu evangelho: a do trigo e do joio,
a do tesouro e da pérola e a da rede. Lucas segue um sistema
diferente. Quando apresenta a parábola do semeador (8, 1-8), que é
sempre a primeira, não faz como Marcos e Mateus que a apresentam
estando Jesus junto ao mar e sentado num barco, seguida de outras
parábolas. Lucas apresenta a parábola separada de todas as demais
e em circunstâncias diferentes das de Marcos e Mateus, como se lê
no v. 4: "Como estivesse reunida uma grande multidão, e de todas
as cidades viessem ter com ele, disse esta parábola". Mas à
parábola do semeador junta a da lâmpada e a da medida de Marcos e
Mateus, sem se referir, contudo, à pequena história como parábola.
Como ele interpreta de maneira alegórica a parábola do semeador em
função da Palavra de Deus, que, neste caso, é a Palavra de Jesus,
funde nesta mesma Palavra as parábolas da lâmpada e da medida
(vv.16-18). Lucas segue o mesmo esquema catcquético de Mateus e
Marcos no seu célebre cap. 15 com a apresentação de três parábolas
seguidas umas às outras: a da ovelha perdida, a da dracma perdida
e a do filho perdido ou filho pródigo. As parábolas da dracma
perdida e do filho perdido são exclusivas de Lucas. São
classificadas de parábolas da misericórdia porque apresentam a
mesma tipologia. O pastor tem cem ovelhas e perde uma. Deixa
imediatamente as noventa e nove e procura a ovelha perdida, e,
quando a encontra, põe-na aos ombros e, ao chegar a casa, convoca
os amigos e vizinhos e diz-lhes: "Alegrai-vos comigo, porque
encontrei a minha ovelha perdida." O mesmo acontece com a
mulherzinha quando encontra a sua dracma perdida: " ... convoca as
amigas e vizinhas e diz: 'Alegrai-vos comigo, porque encontrei a
dracma perdida." E quanto ao filho perdido, o pai diz aos seus
servos: vamos fazer um banquete e alegrar-nos, porque este meu
filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado."
Por estas parábolas, Lucas apresenta a pessoa de Jesus como Aquele
que procura ou vai ao encontro da pessoa perdida e, quando a
encontra, faz uma grande festa. Se tivermos em consideração o
princípio da narrativa deste cap. 15, facilmente percebemos porque
é que o Jesus de Lucas narra estas três parábolas: "Aproximavam-se
dele todos os cobradores de

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impostos e pecadores para o ouvirem. Mas os fariseus e os doutores
da Lei murmuravam entre si, dizendo: 'Este acolhe os pecadores e
come com eles."' Os pecadores representam, portanto, a ovelha
perdida, a dracma perdida e o filho perdido, mas agora
reencontrados e salvos para o Reino de Deus com os quais o próprio
Deus faz uma grande festa, enquanto que os fariseus e doutores da
Lei representam o filho mais velho, que não aceita o regresso do
irmão perdido. A conclusão é, portanto, esta: Jesus falou muitas
vezes em parábolas para chamar a atenção dos ouvintes sobre a sua
pessoa, a sua palavra e o Reino de Deus. A tradição condensou umas
tantas parábolas e os evangelistas apresentam-nas nos seus
evangelhos dispondo-as de acordo com a tradição catequética e com
a sua própria catequese.
À luz da ciência da linguagem, uma parábola é uma história
fictícia, que tem a ver com a realidade concreta do contador ou
narrador, com o fim de apresentar uma mensagem. Em qualquer
parábola há aquilo a que os autores chamam o "tercium
comparationis" ou o termo de comparação entre a realidade da
história parabólica e a realidade da mensagem do autor da mesma
parábola. Por isso devemos distinguir entre semelhança, metáfora e
parábola. A semelhança apresenta uma situação típica ou regular,
enquanto que a parábola apresenta um caso singular e único. Na
semelhança, a imagem aparece sempre da mesma maneira: o fermento
leveda sempre a farinha (Mt 13, 33), o pai dá sempre coisas boas
aos filhos (Lc 14, 11-13). A semelhança refere-se àquilo que é
universalmente válido, enquanto que a parábola se refere àquilo
que acontece uma vez. Por isso, a tradução comum da abertura de
muitas parábolas por: "O Reino de Deus é semelhante...", não é uma
tradução muito feliz. Embora a parábola contenha semelhanças
dentro de si mesma, a parábola, em si, não é uma semelhança. A
melhor tradução será: "Acontece com o Reino de Deus como acontece
com a história que a seguir vos vou contar...". A parábola
apresenta um caso típico, por vezes estranho e fora do comum. O
mesmo se diga da metáfora, que tem a ver com uma palavra que,
retirada dos contextos em que aparece usualmente, apresenta um
significado diverso. É o caso dos exemplos que apresentámos há
pouco sobre a identidade de Deus como "rocha", "torre", "escudo",
"refúgio na montanha", "pastor", etc. Também devemos distinguir
entre parábola e alegoria porque a parábola só apresenta um termo
de comparação enquanto que na alegoria cada imagem significa uma
realidade distinta, como ficou claro com os exemplos que
apresentámos em cima.
Depois desta longa introdução sobre as parábolas de Jesus temos
que voltar à pergunta: o que é que as parábolas de Jesus nos
querem dizer sobre a sua pessoa e sobre o Reino de Deus?
Como ficou mais ou menos claro no estudo que fizemos à questão
sinóptica e aos três estádios da elaboração dos evangelhos
sinópticos, temos que compreender as parábolas como chegaram até
nós na redacção dos respectivos evangelistas, através de três
vertentes ou três dimensões: a dimensão histórica ou primeira de
Jesus frente aos seus interlocutores, a dimensão evangélica dos
próprios evangelistas, na dependência da transmissão oral, e,
finalmente, a dimensão actual e eclesial das parábolas.
No fundo, Jesus proclamou as parábolas para responder aos
problemas levantados com a sua pregação sobre o Reino de Deus.
Todos sabemos que os judeus daquele tempo esperavam a vinda do
Reino ou Soberania de Deus duma maneira concreta, muito visível,
para não dizer de maneira muito triunfalista. Reparemos que as
primeiras parábolas de Jesus, na orgânica dos respectivos
evangelhos, só aparecem depois de Jesus já se ter manifestado como
um grande taumaturgo. Isto tem muita importância porque os judeus,
diante de tais feitos, acabaram por concluir que aquele profeta de
Nazaré tinha mesmo o poder de Deus e, se era assim, tanto tinha
poder divino para curar cegos, coxos e leprosos, como para acabar
com a servidão política e, desta forma, estabelecer o Reino de
Deus. Assim o entendiam, como já vimos, os próprios apóstolos (Mc
9, 33-37;10, 35-40; Ac 1, 6) e o povo em geral. Se Jesus anunciava
continuamente que este Reino estava próximo a chegar, ou que já
estava no meio deles, o que é que ele oferecia como dados
observáveis ou como critérios para que o povo visse a verdade
deste Reino de Deus? Geralmente responde-se que Jesus oferecia o
critério ou as razões dos seus milagres. Mas também já vimos que
os milagres de Jesus não são algo de espampanante se tivermos em
conta que naquele

99
tempo havia curandeiros de coxos, cegos e leprosos, tanto entre os
judeus, como entre os gregos e romanos. Se Jesus expulsava os
demónios, muitos outros, como ele mesmo afirmava, os expulsavam
também. Na mentalidade do povo, verdadeiramente extraordinários
tinham sido os milagres de Moisés a fornecer o maná ou a abrir as
águas do Mar Vermelho. Extraordinários seriam os milagres de Jesus
se ele tivesse concretizado o pedido de Satanás: converte estas
pedras em pão ... deita-te daqui abaixo, que os anjos de Deus te
segurarão com as suas mãos...(Mt 4, 3-6 e par.). Mas Jesus chamou
a tais "milagres" tentações.
Para explicar este paradoxo e este "mistério" é que Jesus se serve
das parábolas. Comecemos pela parábola do semeador (Mc 4, 19 e
par.). O que é que Jesus pretende com aquela história do camponês
que vai semear a sua semente, que cai em terra rochosa, em terra
cheia de espinhos e que só uma pequena parte cai em boa terra
dando fruto cem por cento? Referir-se-á Jesus à suapalavra,
conforme a explicação alegórica que se segue, dependente das
pessoas (terrenos) que a ouvem? Segundo tal alegoria, a semente
que cai à borda dos caminhos são os que ouvem a palavra, acreditam
por algum tempo, mas vêm as provações que tudo deitam a perder. A
semente que cai no meio dos espinhos são os que sufocam a palavra
com os cuidados e prazeres da vida. Finalmente, a semente que cai
em boa terra, refere-se aos que têm coração nobre e virtuoso. Esta
alegorização transforma a parábola inicial em doutrinação e
catequese, tanto para o tempo de Jesus como para todos os tempos.
Mas terá sido esta a intenção primeira e histórica de Jesus? Tudo
dá a entender que não. Jesus apresenta a parábola num contexto de
fracasso: a maior parte da semente perde-se e apenas uma pequena
parte vinga em bom terreno para proporcionar uma boa colheita. A
que fracasso se refere Jesus? Precisamente ao fracasso da sua
pregação sobre o Reino. Os seus ouvintes acham que nada acontece
de real, tal como eles esperavam, e Jesus responde com a parábola
da semente que, aparentemente, parece ser um autêntico fracasso,
mas que, no fim, acabará por ser um sucesso. O mesmo se diga da
parábola da semente lançada à terra que germina por si só, sem a
intervenção do semeador (Mc 4, 26-29). Como se lê no próprio
texto: "O Reino de Deus é como um homem que lançou a semente à
terra. Quer esteja a dormir, quer se levante de noite e de dia, a
semente germina e cresce, sem ele saber como," -Aos seus
interlocutores duvidosos, Jesus responde que a manifestação do
Reino está nas mãos de Deus ... leva o seu tempo e tem a sua hora.
Também o próprio João Baptista, na prisão do Maqueronte, duvida de
Jesus, e Jesus responde-lhe, através dos seus mensageiros, com a
realização da profecia de Is 35, 5: "Os cegos vêem, os coxos
andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos
ressuscitam e aos pobres é anunciada a boa nova" (Mt 11, 5). Neste
caso concreto, os milagres funcionam como uma parábola em acção.
Ao contrário dos fariseus, saduceus, essénios e zelotas, Jesus não
apresenta uma nova Lei de Moisés sobre os puros e impuros, os
santos e os pecadores, mas a lei performativa da nova humanidade
em que os sãos e os doentes, os pecadores e os cumpridores das
leis, tinham entrada no banquete do Reino de Deus por obra e graça
do mesmo Deus. Neste sentido é que apresenta as três célebres
parábolas do cap. 15 de Lucas, de que já falámos: a da ovelha
perdida, a da dracma perdida e a do filho perdido. O mesmo se diga
da parábola do banquete de Mt 22, 1-10 e par. Lc 14, 15-24. A
história narrada, segundo Mateus, tem mais os ares de alegoria,
enquanto que na pena de Lucas é mais parábola e, portanto, está
mais de acordo com a história primigénia de Jesus. Um homem rico
preparou um grande banquete e enviou o seu criado a dizer aos
convidados ricos: "Vinde, já está tudo pronto". Mas eles
desculparam-se, um porque tinha comprado um terreno, outro, porque
tinha comprado cinco juntas de bois e outro porque se tinha
casado. Mas o bom homem do banquete não desanima, embora fique
irritado, e diz ao criado: "Sai imediatamente às praças e às ruas
da cidade e traz para aqui os pobres, os estropiados, os cegos e
os coxos." O criado voltou e disse-lhe: "Senhor está feito o que
determinaste, e ainda há lugar." E o senhor dísse ao criado: "Sai
pelos caminhos e azinhagas e obriga-os a entrar, para que a minha
casa fique cheia. Pois digo-vos que nenhum daqueles que foram
convidados provará do meu banquete."'

100
Caminhemos, agora, com Jesus pelas terras da Galileia, há dois mil
anos. Ele é rodeado de gente simples, pobre, analfabeta e de
muitos doentes. Os senhores grandes da terra desprezam-no. Mas se
os detentores da religião, da Lei de Moisés e do Templo não fazem
caso dele, não seria isto mesmo um sinal de que ele é alguém de
quem se deve desconfiar? Imaginemos um casal daquele tempo que
ouvira esta parábola, e que, à noitinha, enquanto ceavam, se
punham a dialogar: "ó marido, o que é que Jesus quereria dizer com
aquela história do banquete? Reparaste como ele se referiu aos
ricos e aos maiorais da nossa terra, que o criticam, e como se
referiu a nós, os pobres, que o seguimos e gostamos dele?
Reparaste no brilho dos seus olhos e na convicção das suas
palavras? Mas o que é isso do banquete, ó marido?" Era assim que
Jesus levava os seus interlocutores a descobrirem a nova face das
coisas. As parábolas são um método didáctico que obrigava as
pessoas a pensar uma nova maneira de ver Deus e a sua religião.
Chegou a hora de inverter os valores e a maneira de pensar Deus
demasiado humana, racionalista, baseada no conhecimento da Lei e
das tradições, no mérito e demérito do cumprimento da Lei. Chegou
a hora da descoberta do coração de Deus. Assim se compreende a
parábola dos trabalhadores da vinha de Mt 20, 1-16. Os que
trabalham de sol a sol, como era o costume daquele tempo, com
todos os rigores do sol e do cansaço, recebem o mesmo salário que
os que trabalham uma sõ hora. Não terão mais do que razão as vozes
descontentes dos trabalhadores da primeira hora: "Estes últimos só
trabalharam uma hora e deste-lhes a mesma paga que a nós, que
suportamos o cansaço do dia e do seu calor?" Se o patrão paga o
aprazado e de igual modo a quem trabalhou de sol a sol e a quem
trabalhou apenas uma hora é porque Deus tem outras vistas, outros
pesos e medidas, outros critérios e outras balanças bem diferentes
das dos homens. A justiça de Deus não se baseia em leis de
equidade distributiva e comutativa ou reivindicativa, à maneira
dos nossos sindicatos. A equidade e a justiça de Deus só têm um
nome: o amor.
Mas as parábolas não são uma espécie de tratado de teologia. Não é
só para fazer pensar que Jesus as pronuncia, mas sobretudo para
levar as pessoas a tomarem uma posição diante de Deus e de quem as
pronuncia. Jesus oferece uma oportunidade única, que deve ser
apanhada, tanto há dois mil anos como hoje. Por isso pronuncia as
parábolas do tesouro escondido e da pérola preciosa (Mt 13, 44-
46). O Reino de Deus é este tesouro e esta pérola. Há que pôr tudo
de lado para os possuir. E a razão de ser de semelhante ousadia
vem expressa na parábola dos vinhateiros homicidas de Mc 12, 1-12
e par. Depois do dono da vinha ter mandado os seus servos aos
vinhateiros para receberem dos mesmos a parte que lhe cabia, e
depois dos vinhateiros, por duas vezes, os terem tratado mal,
enviou-lhes o seu próprio Filho. Como diz o texto: "Finalmente,
enviou-lhes o seu próprio filho, dizendo: Hão-de respeitar o meu
filho". É esta consciência de Jesus como filho, ou, melhor, esta
experiência de Jesus como filho que lhe dá toda a autoridade para
levar até ao fim a sua revolução teológica e social. Foi por ela
que viveu e morreu. É a partir dela que pode propor o samaritano
"hereje" como exemplo de humanidade (11- 10, 25-37), ou, ainda, na
parábola do fariseu e do publicano, apresentar o publicano
arrependido como aquele que recebe a graça e o perdão, ao
contrário do fariseu orgulhoso da sua própria religião baseada no
mérito de si mesmo. Jesus é este Filho de Deus que substitui a
teologia da Lei e do mérito próprio pela teologia da Graça e do
Amor. E não há nada melhor do que as parábolas para entendermos
Jesus de Nazaré, Filho de Deus, e o Reino de Deus que pregou,
viveu e nos entregou.

101

23. DISCíPULOS E REINO DE DEUS
Já tivemos ocasião de falar da relação de Jesus com os seus
discípulos várias vezes. Fizemo-lo quando tratámos das
instituições judaicas, da comunidade dos essénios de Qumran, das
relações entre Jesus e Hillel, das relações de João Baptista com
Jesus, e, ainda, em várias outras ocasiões. Agora vamos tratar
deste assunto de maneira mais ordenada.
É óbvio que Jesus nada faz sem os seus discípulos. Quando decide
deixar a sua familia e seguir o seu próprio caminho, vai ter com
João Baptista e anda com ele algum tempo, misturado com os
discípulos deste (Jo 3, 22-36). Quando João Baptista é preso,
deixa a Judeia e segue para a Galileia, rodeando-se imediatamente
de alguns discípulos.
Já vimos que os rabinos tinham os seus discípulos, como era o caso
de Hillel e Shamai no tempo de Jesus, mas também Buda, Sócrates e
Confücio, e os grandes filósofos gregos tinham as suas escolas de
discípulos. No tempo de Jesus as mais famosas eram a dos cínicos,
epicuristas e estóicos. Basta lembrarmo-nos de S.Paulo em Atenas a
falar a epicurístas e estóicos (Ac 17, 18).
No AT vemos Moisés rodeado dos seus conselheiros (Ex 18, 21-27; Nm
11, 24-29) e a comunidade de Elias e Eliseu com os seus discípulos
(1R 19; 2R 2). No caso de Elias há um paralelo muito estreito
entre a vocação de Eliseu, relacionada com o seu mestre Elias, e a
dos primeiros quatro discípulos de Jesus, na narrativa dos
evangelhos sinópticos (Mc 1, 16-20 e par). Vale a pena ler 1Rs 19,
19-21:

102
"Partindo dali, (Elias) encontrou Eliseu filho de Safat
trabalhando com doze juntas de bois diante dele; ele próprio
conduzia a duodécima junta. Elias passou perto dele e lançou sobre
ele o seu manto. Eliseu abandonou os bois, correu atrás de Elias e
disse: 'Deixa-me abraçar o meu pai e a minha mãe, depois seguir-
te-ei. Elias respondeu: 'Vai e volta; pois que te fiz eu? ...
Depois, levantou-se e seguiu Elias na qualidade de servo."'
Com os discípulos de Jesus acontece a mesma coisa. Jesus passa e
chama os discípulos, que imediatamente deixam as suas tarefas e os
seus familiares e se põem à sua disposição. É fora de dúvida de
que se trata dum esquema de vocação, porque nem Elias, nem Jesus,
eram uns ilusionistas manipuladores de consciências. Antes de
Elias encontrar e convidar Elíseu e antes de Jesus encontrar e
convidar Pedro e André, João e Tiago, já eram conhecidos. A
vocação teve o seu processo de amizade e de admiração dos
discípulos em relação ao mestre, mas quando se efectua, modifica
completamente a vida dos discípulos. Dá-se uma mudança de 180
graus na vida dos discípulos. Estes vivem na dependência do
mestre, comem e fazem vida comum com ele, ouvem a sua doutrina,
são enviados a doutrinar como ele e convidados a segui-lo em todas
as coisas. E é precisamente aqui que reside a diferença do que
acontecia entre os rabinos e os seus discípulos ou entre os
filósofos gregos e as suas escolas. Tanto num caso como no outro,
os discípulos é que escolhiam o mestre, ouviam as suas doutrinas
durante alguns anos, mas levavam a sua própria vida, na sua
própria família, e abandonavam o mestre depois do tempo
estabelecido da doutrinação.
Os profetas do AT eram casados (excepto Jeremias e, porventura,
Elias e Eliseu), levavam a sua vida própria, e os seus discípulos
eram mais ouvintes do que propriamente seguidores, ao contrário de
Jesus e dos seus discípulos. Até mesmo no caso de Elias, não é
propriamente Elias que chama Eliseu, mas o mesmo Deus, se tivermos
em conta o símbolo do manto sobre os ombros de Eliseu. Com Jesus é
a sua autoridade carismática e a sua palavra criadora que tudo
determina, segundo a imagem do próprio Jesus dirigida aos quatro
primeiros discípulos, pescadores do lago de Genezaré: "Farei de
vós pescadores de homens" (Mc 1, 17 e par.). Tanto a vida de Jesus
como a dos seus discípulos dependem da urgência da vinda do Reino
ou Soberania de Deus. o Reino não é de Jesus e dos discípulos, mas
de Deus, que quer realizá-lo, através de Jesus, seu Filho. Mas
este sabe que o Reino é para ser vivido pelos homens e, para
tanto, escolhe alguns homens como exemplos vivos para viverem com
ele a nova dimensão do Reino/Soberania de Deus e a levarem ao
Israel de Deus.
Assim sendo, Jesus tem um duplo objectivo na eleição dos seus
discípulos: doutriná-los ou ensiná-los, a fim de viverem com ele o
Reino de Deus, e enviá-los a pregar o mesmo Reino. Entre o mestre
Jesus e os seus discípulos dá-se uma comunhão de vida e não apenas
uma comunhão de doutrina. Em relação aos rabis e seus discípulos,
está escrito no Talmude: "O discípulo deve fazer para o seu mestre
todos os trabalhos que um escravo faz para o seu senhor, excepto
desapertar-lhe as sandálias" (bKeth 96a). Este trabalho era uma
espécie de paga pelas lições do rabi aos seus discípulos. Mas
Jesus não fornecia um ensinamento à maneira dos rabis, porque nem
ele tinha estudado para ser rabi, nem ensinava os seus discípulos
para serem, por sua vez, rabis. A relação era uma relação de nova
vida, que passava pela nova doutrina do Reino, e não uma relação
de professor e aluno da Torá.
Ao contrário dos rabis judeus, que ensinavam os alunos nas suas
próprias casas, Jesus era um "mestre" itinerante. Embora alguns
textos nos digam que Jesus ensinava os seus discípulos, em
particular, na própria casa (Mt 13, 36), semelhante maneira de
actuar já tem a ver com o ensinamento cristão das comunidades
primitivas nas suas casas particulares, fora das sinagogas e fora
das casas dos rabis. O seu ensinamento confunde-se com a sua
própria acção e esta com os seus sinais. Como vimos em relação aos
chamados apotegmas, a sua doutrina liga-se dírectamente aos
milagres e às institucionais judaicas daquele tempo. No centro
está a sua pessoa ou a identidade da mesma como Filho do Homem que
tem poder de perdoar pecados, de passar por cima da lei do sábado,
de ser o noivo da nova humanidade e o médico de todos os doentes e
marginalizados do Reino.

103
Na urgência de anunciar por palavras e acções a vinda do Reino de
Deus é que devemos entender as suas exigencias radicais em relação
aos discípulos. A literalidade de tais exigências é, realmente,
estranha, o que só comprova a sua veracidade. Recordemos a célebre
passagem de Lc 9, 57-62 e par. de Mt 8, 19-22: "Quando iam a
caminho, houve alguém que disse a Jesus: "Irei contigo para onde
quer que fores." Jesus respondeu-lhe: "As raposas têm tocas e as
aves têm ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde encostar a
cabeça." Depois disse a outro: "Vem comigo". Mas ele respondeu:
"Senhor, deixa-me ir primeiro fazer o enterro do meu pai." Jesus
replicou: "Deixa lá os mortos enterrar os seus mortos, mas tu vai
anunciar o Reino de Deus." Houve outro que lhe disse: "Senhor, eu
quero ir contigo, mas primeiro deixa-me ir despedir da família."
Jesus respondeu: "Todo aquele que pega na charrua e olha para trás
não serve para o Reino de Deus. "'
É nesta mesma linha que envia os doze discípulos-apóstolos a
anunciar o Reino de Deus com as seguintes recomendações: "Não
levem nada para o caminho: nem cajado, nem saco, nem pão, nem
dinheiro, nem muda de roupa..." (Lc 9, 2-3 e par.). O discípulo
tem que estar inteiramente à disposição do mestre e ao anúncio do
Reino. Nesta linha recomenda aos discípulos: "Não andem
preocupados com o que hão-de comer, nem com a roupa de que
precisam para vestir. A vida vale mais do que a comida e o corpo
mais do que a roupa. Reparem nos corvos ... e nos lírios dos
campos ... Procurem primeiro o Reino de Deus, que tudo o mais vos
será dado." (Lc 12, 22-31 e par.).
Vemos como Jesus tinha uma atitude radical para com os seus
discípulos devido à urgência da pregação do Reino de Deus e como
isso o distinguia de todos os rabis do seu tempo e também das
grandes figuras do AT.
Esta maneira de ser radicaliza-se ainda mais na segunda parte dos
evangelhos sinópticos, depois de Pedro confessar Jesus como
Messias.
Nesta segunda parte, Jesus deixa as grandes multidões, faz poucos
milagres e entrega-se duma maneira especial a doutrinar os
discípulos por causa dos acontecimentos que se avizinham, e que
tinham a ver com a sua paixão, morte e ressurreição. Para tal, os
discípulos tinham que estar preparados. Eles pensavam o Reino de
Jesus duma maneira estruturalmente político-religiosa e
restauracionista, e, por isso mesmo, Jesus passa a última parte da
sua vida a doutriná-los sobre a verdadeira identidade do Reino de
Deus e, com ela, a verdadeira identidade da sua pessoa. Entre a
verdade do Reino, a verdade da pessoa de Jesus e a verdade daquilo
que é ser discípulo há uma lógica interna que determina toda a
vida de Jesus e é o paradigma do que deve ser a Igreja.
Apontemos os tempos e os temas principais seguindo a versão de
Marcos, uma vez que a doutrina de Jesus sobre o que devem ser os
seus discípulos anda de mãos dadas com as três profecias ou
anúncios sobre a sua paixão e morte.
Depois da primeira confissão de Pedro sobre o messianismo
restauracionista de Jesus e respectivo desacerto entre Jesus e
Pedro, por causa do primeiro anúncio da sua paixão e morte,
chegando Jesus ao ponto de lhe chamar "Satanás", Jesus chamou a
multidão juntamente com os discípulos e disse: "Se alguém quiser
acompanhar-me, tem de se esquecer de si próprio, e levar a sua
cruz para vir comigo. Toda a pessoa que quiser salvar a sua vida,
perde-a, mas aquele que perder a sua vida por causa de mim e da
minha doutrina, esse salva-a." (Mc 8, 34-35 e par.). Depois do
segundo anúncio, Jesus repreende os discipulos quando entra na
casa em Cafarnaum, desta maneira: "O que é que vocês vinham a
discutir pelo caminho?" Mas eles calaram-se, porque pelo caminho
tinham vindo a discutir quem seria o mais importante. Jesus então
sentou-se, chamou os doze e disse-lhes: "Se alguém quer ser o
primeiro, tem que se tornar o último e o servo de todos."' (Mc 9,
33-35 e par.). Imediatamente depois do terceiro anúncio, relata
Marcos: "Tiago e João, filhos de Zebedeu, aproximaram-se de Jesus
e disseram-lhe: "Mestre, queríamos fazer-te um pedido". E Jesus
respondeu: 'Então digam lá o que querem que eu faça.' E eles
disseram: "Deixa-nos ocupar os dois primeiros lugares quando
estiveres no teu reino glorioso".

104
Jesus voltou a responder: "Vocês nem sabem o que me estão a pedir.
Julgam que podem beber o cálice de amargura que eu tenho de beber
e ser baptizados como eu vou ser?". "Podemos, sim!" - disseram
eles. Então Jesus acrescentou: "Realmente, ainda hão-de beber o
cálice de amargura que eu vou beber e ser baptizados como eu vou
ser, mas isso de ocuparem os dois primeiros lugares não depende de
mim. Esses lugares são para quem Deus os preparou."' A narrativa
continua desta maneira: "Os outros dez discípulos ouviram a
conversa e ficaram indignados com Tiago e João. Então Jesus
chamou-os a todos para perto deles e disse-lhes: "Como sabem, os
que governam os povos têm poder sobre eles, e os grandes são os
que mandam neles. Mas entre vocês não pode ser assim. Pelo
contrário, aquele que quiser ser grande deve servir os outros, e
aquele que quiser ser o primeiro deve ser o criado de todos. Pois
também o filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir
e dar a sua vida para resgatar a humanidade."' (Mc 10, 35-45).
Toda esta doutrinação de Jesus com os seus discípulos termina de
maneira trágica precisamente logo após a última ceia pascal e
respectiva instituição da eucaristia. Agora, é outra vez a pessoa
de Pedro que entra na questão. Ouçamos a narrativa: "Jesus disse
aos discípulos: @Todos me vão abandonar, pois lá diz a Escritura:
Ferirei de morte o pastor e as ovelhas ficarão dispersas. Mas
depois de eu ressuscitar irei antes de vocês para a Galileia.
Pedro então disse: 'Mesmo que todos te abandonem, eu é que não!'
Mas Jesus disse-lhe: 'Olha, Pedro! Ainda esta noite, antes do
segundo canto do galo já tu me terás negado três vezes.' Pedro,
porém, dizia ainda com mais força: 'Mesmo que seja preciso morrer
contigo, nunca te renegarei.' E todos os outros afirmavam o
mesmo"(Mc 14, 27-3 1).
É fácil perceber que há em todos estes relatos uma metodologia e
catequese que tem a ver com o Jesus da história e com o Cristo da
Igreja. As reacções anti-cristãs dos discípulos acontecem sempre
depois dos anúncios de Jesus sobre a sua paixão e morte, ou,
então, depois da última ceia. Ao programa de Jesus, de entrega ao
Pai e à humanidade, de serviço e de amor, opõe-se o programa dos
discípulos à volta do poder e da honra, da política
restauracionista do Reino e respectivos primeiros lugares. Choca-
nos profundamente a falta de compreensão dos discípulos. Eram,
assim, tão falhos de inteligência perante as declarações repetidas
de Jesus sobre a sua paixão, morte e ressurreição? Claro que os
evangelhos foram escritos numa segunda geração depois do Jesus
histórico. Por isso, eles espelham os discípulos dos tempos do
Jesus histórico e os discípulos dos tempos da Igreja subsequente.
Sem dúvida que a Igreja se viu a braços com a sua direcção: morto
Jesus, quem é que mandava na Igreja daquele Crucificado e
Ressuscitado? O facto dos dois filhos de Zebedeu serem os "filhos
do trovão", o facto de Pedro ser o primeiro a manifestar-se e o
facto de existirem desavenças e ciúmes dos doze entre si, tudo tem
a ver com o que, mais tarde, vai acontecer nas discussões sobre a
responsabilidade de cada um no governo da Igreja, tanto mais que,
entretanto, surgiram as grandes figuras de Paulo de Tarso, de
Apolo e, na tradição do IV Evangelho, a figura do "discípulo
amado". As cartas de Paulo, os Actos dos Apóstolos e o IV
evangelho não fogem a apresentar-nos todas estas dificuldades. Nem
podia ser doutra maneira, uma vez que Jesus nada deixou escrito e
determinado sobre este assunto. Por isso, as narrativas que
acabámos de ouvir só ganham em grandeza se as compreendermos a
partir de Jesus e a partir das dificuldades internas das igrejas
primitivas. A solução evangélica não está na vã glória de mandar,
mas no serviço a Deus e à Igreja do mesmo Deus. Perante este
serviço, só nos resta a total disponibilidade, a morte de si
mesmo, o baptismo da morte do nosso egoísmo, para que os valores
do espírito do Reino estejam sempre por cima dos contravalores da
nossa vã glória de mandar. O pensamento original de Jesus punha
tudo na dependência do valor maior do Reino: casamento, familia,
dinheiro, sábado, templo, política, leis do puro e do impuro. E se
Pedro, os filhos do trovão, Judas e todos os demais fracassaram
neste programa de Jesus, a leitura dos evangelhos vem lembrar-nos
que essas figuras cimeiras dos discípulos e apóstolos são, agora,
figuras da nossa catequese para que não nos aconteça o mesmo.
Sobre este assunto, há um dito de Jesus que nos "escandaliza"
sobremaneira, que vem em Mt 10, 34-39 e Lc 12, 51-53 e 14, 26-27:
"Não pensem que vim trazer a paz à terra. Não vim trazer a paz,
mas a guerra. Vim, de facto, trazer a divisão entre o filho e o
seu pai, a

105
filha e a sua mãe, a nora e a sua sogra : os inimigos de uma
pessoa serão os da sua própria familia. Aquele que amar o pai ou a
mãe mais do que a mim não é digno de mim; e o que amar o filho ou
a filha mais do que a mim não é digno de mim..." Em primeiro lugar
é preciso ter em atenção que a primeira parte desta sentença de
Jesus já vem em Mq 7,6: "Porque o filho trata o pai com desprezo,
a filha revolta-se contra a mãe, a nora contra a sogra; os
inimigos são os da própria família." Diante deste contexto, as
palavras de Jesus sobre o "odiar o pai ou a mãe" ou "amar o pai ou
a mãe mais do que a mim", só se aplicam diante dum estado de
conflito ou de escolha. Assim como Jesus teve que escolher entre o
Reino e a sua própria família, assim pode acontecer com os seus
discípulos.
"O determinante para os discípulos não é a paz interior resultante
da indiferença, que caracteriza os filósofos no seu distanciamento
perante o mundo e os seus bens, nem sequer a superação do mundo,
que Buda exigia aos seus monges no caminho da meditação e da
mortificação.Os discípulos que viviam carenciados e dependentes de
ajuda exterior, constituem simultaneamente uma ilustração da
soberanía de Deus anunciada por Jesus e por eles próprios. A
soberania de Deus introduz uma nova ordem, que já não deve ser a
dos bens, do lucro, da riqueza e do desprezo pelas pessoas ".

24. JESUS E A IGREJA
Não há dúvida de que existe uma relação muito profunda entre Jesus
e os discípulos, entre Jesus e o Reino de Deus e entre Jesus e a
Igreja.
A Igreja é formada por todos os baptizados em nome do Pai e do
Filho e do Espírito Santo, isto é, por todos os discípulos de
Jesus. Mas esta ligação entre discípulos e Igreja tem os seus
cambiantes, no percurso da vida histórica de Jesus, que é preciso
compreender.
Aos discípulos de Jesus pertenciam homens e mulheres. Embora a
palavra discípula, no NT, só apareça em Ac 9, 36, aplicada a
Tabita, que, no caso concreto designa os "cristãos", não há dúvida
de que as mulheres também faziam parte do número maior dos
discípulos de Jesus. Lemos em Mc 15, 40-41: "Também ali [junto à
cruz] estavam algumas mulheres a contemplar de longe; entre elas
Maria de Magdala, Maria, mãe de Tiago Menor e de José, e Salomé,
que o seguiam e serviam enquanto ele esteve na Galileia; e muitas
outras que tinham subido com ele a Jerusalém." Em Lc 8, 1-3, a
lista destas mulheres ainda é mais significativa, sobretudo se
tivermos em conta que elas aparecem conjuntamente com Jesus e com
os doze no anúncio da boa nova do Reino: "Em seguida, Jesus ia de
cidade em cidade, de aldeia em aldeia, proclamando e anunciando a
Boa-Nova do Reino de Deus. Acompanhavam-no os Doze e algumas
mulheres, que tinham sido curadas de espíritos malignos e de
enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete
demónios; Joana, mulher de Cuza, administrador de Herodes; Susana
e muitas outras, que os serviam com os seus bens." E o facto de
Jesus se deixar acompanhar por mulheres devia ser mais um dos
"escândalos", uma vez que as mulheres não podiam ser discípulas
dos rabinos, não contavam para nada no culto da Sinagoga, não liam

106
a Torá, não participavam na ceia pascal, não recitavam a oração do
Schemá, não eram obrigadas a observar o sábado como os homens.
Tudo isto se compreende se tivermos em conta a cultura
estritamente patriarcal de então, como acontece, também, com os
islâmicos.
Entre estes homens e mulheres, discípulos/as de Jesus, há que
distinguir os Doze. Em Marcos são apenas denominados os "Doze" (3,
14; 6, 7; 9, 35; 11, 11; 14, 17), mas em Mateus também são
chamados os "Doze discípulos" (10, 1) e os "Doze apóstolos" (10,
2), e em Lucas acentua-se muito mais a terminologia dos "Doze
Apóstolos" (6, 13; 9, 10; 17, 5; 22, 14; 24, 10). Lucas é o único
que descreve a substituição de Judas por Matias, e Pedro apresenta
como critério para tal substituição a escolha de um homem "entre
os homens que nos acompanharam durante todo o tempo em que o
Senhor Jesus viveu no meio de nós, a partir do baptismo de João
até ao dia em que nos foi arrebatado para o Alto... " (Ac 1, 21-
22). Para Lucas, portanto, os Doze foram o grupo que Jesus
escolheu entre os muitos discípulos para o acompanharem e viverem
com ele desde os tempos de João Baptista até à sua Ascenção.
Também temos que distinguir entre estes Doze "apóstolos" e os
demais "apóstolos" que vamos encontrar na 1Cor 15, 5: Jesus
"apareceu a Cefas e depois aos Doze. Em seguida, apareceu a mais
de quinhentos irmãos, de uma só vez, a maior parte dos quais ainda
vive, enquanto alguns já morreram. Depois apareceu a Tiago e, a
seguir, a todos os Apóstolos. Em último lugar apareceu-me também a
mim, como a um aborto." Neste texto devemos reparar que Paulo
devia escrever: "apareceu a Cefas e depois aos Onze...", uma vez
que Judas ainda não tinha sido substituído, o que significa que o
grupo dos Doze era já uma instituição no seio da comunidade.
Também devemos reparar que a distinção entre os "Doze" e os
"Apóstolos" depende da prática recorrente dos responsáveis das
igrejas paulinas: Apóstolos, Profetas e Doutores. Para Paulo, os
Apóstolos eram mais do que os Doze, pois ele mesmo se classificava
também de Apóstolo.
Embora alguns autores afirmem que os Doze foi uma fundação pós-
pascal, é difícil compreender semelhante tomada de posição se
tivermos bem presente a pessoa de Judas. Como é que Judas, o
traidor, aParece em todas as listas dos Doze, no tempo do Jesus
histórico (Mc 3, 16- 19 c par.)? Sem dúvida que o número Doze
simboliza, no pensamento de Jesus, a visibilidade do novo Israel
com as doze tribos de Israel. A Igreja de Jesus começa
precisamente com esta escolha dos Doze com todo o seu simbolismo.
Jesus não veio implantar o seu Reino/Soberania entre os pagãos,
mas entre os judeus. Ele veio para os judeus, mas como estes o não
reconheceram, a sua Igreja foi-se abrindo, pouco a pouco a todos
os povos.
É muito significativo o texto de Lc 22, 28-30: "Vós sois os que
permaneceram sempre junto de mim nas minhas provações, e eu
disponho do Reino a vosso favor, como meu Pai dispõe dele a meu
favor, a fim de que comais e bebais à minha mesa, no meu Reino. E
haveis de sentar-vos, em tronos, para julgar as doze tribos de
Israel. " Embora o texto seja exclusivamente de Lucas e
redaccional, e esteja em contradição com a verdade dos factos, uma
vez que os Doze, realmente, não estiveram com Jesus nas suas
provações, vale pelo significado profético e simbólico no tempo do
Jesus histórico e do Jesus da Igreja. Este número doze era sagrado
para os judeus, pois simbolizava todo o seu povo que, nos tempos
messiânicos, haveria de voltar a reunir-se e a impor-se ao mundo
inteiro por obra e graça do mesmo Messias. Assim se realizaria a
profecia de Is 2, 2-4 e Mq 4, 1-5 sobre a conversão de todos os
povos ao Deus de Israel. Também em Qumran havia um grémio de doze
homens relacionado simbolicamente com as doze tribos de Israel
(IQS 8, 1; cf. IQM 2, 2) e o autor do Apocalipse de S. João
apresenta-nos a multidão dos 144000 assinalados ou salvos, doze
mil de cada tribo, e, bem assim, a nova Jerusalém com as "doze
portas", os "doze anjos", as "doze tribos" e os "doze nomes dos
Doze Apóstolos do Cordeiro" (20, 12-14).
A Igreja de Jesus começa, portanto, pela associação íntima entre
Jesus e estes Doze que ele escolheu para que estivessem com ele e
para os enviar a pregar (Mc 3, 14). É facto que Jesus veio
anunciar o Reino de Deus e não a Igreja de Deus, mas entre estas
duas denominações existe um laço estreito, tanto mais que Paulo e
os demais Apóstolos, Profetas e Mestres das igrejas primitivas já
não pregam o Reino de

107
Deus, mas a Igreja ou as Igrejas de Jesus Cristo e do próprio
Deus. Depois do mistério pascal, o sintagma "Reino de Deus" pouco
dizia à cultura dos novos cristãos, sobretudo aos cristãos de
língua grega, ao contrário de Igreja ou assembleia dos convocados
em nome de Deus.
Acabamos de ver a relação que existe entre os discípulos de Jesus,
os Doze Apóstolos e a Igreja de Jesus. Uma vez que Jesus decidiu
muito conscientemente anunciar por palavras e obras a vinda do
Reino de Deus, mas sempre de parceria com discípulos e apóstolos,
mormente com os Doze, temos que concluir que a sua e nossa Igreja
já começa na vida histórica do mesmo Jesus. Aqueles discípulos e
apóstolos, ora com fé e dedicação, ora com dúvidas e traições,
representam todos os cristãos que haviam de acreditar em Jesus
através da sua história de salvação que termina no mistério
pascal. Mais ainda, esta história de salvação continua também
depois do mistério pascal não apenas na pessoa de homens e
mulheres cristãos, mas sobretudo na pessoa do Espírito Santo que
só se apresenta na dimensão trinitária depois do mistério pascal.
A pessoa divina do Espírito Santo, que tem como função a conversão
dos corações e a iluminação dos mesmos para que os cristãos possam
compreender em profundidade, largura e altura o mistério total de
Jesus e, com ele, o mistério da própria Santíssima Trindade,
representa, por isso mesmo, a última etapa do desvendar desta
história de salvação. São sobretudo Lucas e João que nos
apresentam esta verdade da nossa fé. Em Lc 24, 48, o Ressuscitado
diz aos Doze Apóstolos: " Vós sois testemunhas destas coisas. E eu
vou mandar sobre vós o que meu Pai prometeu. Entretanto,
permanecei na cidade até serdes revestidos com a força do Alto." A
Promessa do Pai não é mais do que o Espírito Santo que os
Apóstolos vão experimentar duma maneira própria no Pentecostes. É
por isso que o texto nos diz: "permanecei na cidade [de Jerusalém]
até serdes revestidos com a força do Alto."
O Jesus do quarto evangelista diz a mesma coisa se bem que com
outras palavras, e a tempos espaçados, nos discursos de adeus de
Jesus aos seus discípulos, logo após a ceia de despedida. Também
aqui se trata de textos tipicamente joânicos e redaccionais, que
têm a ver com as experiências espirituais dos primeiros cristãos.
São textos etiológicos sobre a realidade teológica do Espírito
Santo. Em Jo 14, 15-17 diz Jesus: "Se me tendes amor, cumprireis
os meus mandamentos, e eu apelarei ao Pai e ele vos dará outro
Paráclito para que esteja sempre convosco, o Espírito da Verdade,
que o mundo não pode receber, porque não o vê nem conhece; vós é
que o conheceis, porque permanece junto de vós, e está em vós." Um
pouco depois, em Jo 14, 25-26 diz Jesus: "Fui-vos revelando estas
coisas enquanto tenho permanecido convosco; mas o Paráclito, o
Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, esse é que vos
ensinará tudo, e há-de recordar-vos tudo o que eu vos disser." A
terceira promessa do Espírito aparece em Jo 15, 26: "Quando vier o
Paráclito, o Espírito da Verdade, que procede do Pai, e que eu vos
hei-de enviar da parte do Pai, ele dará testemunho a meu
respeito." A quarta promessa vem nalguns versículos a seguir, em
Jo 16, 7ss: "É melhor para vós que eu vá [para o Pai], pois, se eu
não for, o Paráclito não virá a vós; mas, se eu for, eu vo-lo
enviarei." Finalmente, a quinta promessa vem em Jo 16, 12-15:
"Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as
compreender por agora. Quando ele vier, o Espírito da Verdade, há-
de guiar-vos para a Verdade completa...". A Igreja está, pois, na
dependência do mistério pascal completo, e não há mistério pascal
completo sem a presença do Espírito Santo. O quarto evangelista
ora chama ao Espírito Santo o Paráclito, isto é o "Consolador" e
"Advogado", ora o Espírito da Verdade que há-de guiar os cristãos
para a Verdade completa. Esta Verdade tem a ver com a Verdade das
realidades do AT, com a Verdade da pessoa de Jesus e com a Verdade
da própria Igreja. Quem é cristão vive da fé e não apenas da
razão. O diálogo profundo entre a razão e a fé, entre a história,
cultura e fé, é um diálogo importante, de complementariedade e de
profundidade. A revelação não termina com a morte e ressurreição
do Senhor Jesus. Ela continua sempre em aberto e ao sabor do
Espírito Santo, que fala na Igreja através da história. Neste
sentido, a história é um "locus theologicus", um "lugar
teológico". A Verdade do evangelho e de toda a sua revelação vai-
se manifestando e explicitando sempre mais e mais através da
Igreja. A revelação objectiva ficou completa com Jesus e o seu
evangelho, mas a sua explicitação é um continuum sempre

108
em aberto. Por isso mesmo, a Igreja olha para o seu passado e
revê-se não apenas na Verdade do evangelho, realizada nos seus
filhos, mas também nos seus pecados e ofensas ao próprio evangelho
ou contra o próprio evangelho.
As velhas questões dogmáticas e eclesiais sobre quando é que Jesus
fundou a sua Igreja, foram mal colocadas. Uns diziam que Jesus
fundou a sua Igreja quando disse a Simão Pedro: "Tu és Pedro e
sobre esta pedra edificarei a minha Igreja..." (Mt 16, 18), outros
que terá sido na ceia pascal, quando Jesus pede aos Apóstolos:
"Fazei isto em minha memória" (Lc 22, 19), outros que terá sido
quando o Resssuscitado diz aos Apóstolos na aparição da Galileia:
"Foi-me dado todo o poder no céu e na terra. Ide, pois, fazei
discípulos de todos povos, baptizando-os em nome do Pai, do Filho
e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho
mandado. E sabei que eu estarei sempre convosco até ao fim dos
tempos" (Mt 28, 18-20). Finalmente, outros inclinam-se mais para a
eclesiologia de Lucas que arranca no dia de Pentecostes. Mas
reparemos que todos estes textos são exclusivos de cada
evangelista e que são todos redaccionais. Representam, de facto, a
experiência das diversas eclesiologias consoante os diversos
evangelistas. Por isso, não podemos determinar qual foi o momento
e acontecimento próprio em que Jesus fundou a sua Igreja. Mas o
simples facto de Jesus escolher Doze discípulos-apóstolos, já tem
que ver com a intenção de Jesus em relação à própria Igreja.
Já sabemos que Jesus, com a pregação do Reino de Deus, tinha em
vista a conversão de Israel às suas ideias messiânicas. Nele se
realizavam todas as ansiedades e saudades do velho Israel. Com ele
' irrompia em Israel o tempo escatológico de Deus: "Completou-se o
tempo e o Reino de Deus está próximo..." (Mc 1, 15). "A Lei e os
Profetas chegam até João. Daí para diante, o Reino de Deus exige
violência...". Se o Israel dos tempos de Jesus se tivesse
convertido a este Jesus e ao seu Reino ou Soberania, sem dúvida
que tudo tinha sido diferente, e era precisamente isso mesmo que
Jesus queria e desejava. Diante da liberdade dos homens, o próprio
Deus lhes fica sujeito, e é por causa desta opção do Israel de
então que Jesus pronuncia as suas sentenças de juízo: "A rainha do
Sul levantar-se-á no Julgamento juntamente com esta geração e
condená-la-á, porque veio dos confins da terra para ouvir a
sabedoria de Salomão. Mas aqui está algo mais do que Salomão. Os
habitantes de Nínive levantar-se-ão no Julgamento, juntamente com
esta geração, e condená-la-ão, porque eles se converteram pela
pregação de Jonas. Mas aqui está algo mais do que Jonas" (Mt 12,
31ss e par. Lc 11, 31ss). Na ideia de Jesus trata-se da última
geração no processo da história da salvação. Mas a geração daquele
Sinédrio, daqueles saduceus e fariseus, não quis. Concluíram que
Jesus era um blasfemo, um anticristo e que devia desaparecer para
que o "verdadeiro" Israel de Deus se salvasse. É o que pronuncia o
Sumo Sacerdote em Jo 12, 49ss: "Vós não entendeis nada, nem vos
dais conta de que vos convém que morra um só homem pelo povo, e
não pereça a nação inteira." Perante isto, Jesus nada mais podia
fazer do que lançar as suas invectivas e lamentações, bem à
maneira dos profetas do AT: "Jerusalém, Jerusalém, que matas os
profetas e apedrejas os que te são enviados, quantas vezes eu quis
juntar os teus filhos, como a galinha recolhe os seus pintaínhos
debaixo das suas asas, mas tu não quiseste" (Mt 23, 37 e par. Lc
11,
49). "Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Porque se em Tiro e
Sídon, tivessem sido realizados os milagres que em vós se
realizaram, há muito se teriam arrependido, vestindo-se de cilício
e cobrindo-se de cinza. No dia do julgamento, haverá menos rigor
para Tiro e Sídon do que para vós. E tu, Cafarnaúm, julgas que
serás exaltada até ao céu? Serás precipitada no abismo" (Mt 11,
21-24 e par. l-e 10, 13-15). E foi porque o Israel de Jesus não o
quis que o mesmo Jesus se pronuncia profeticamente sobre os
estrangeiros pagãos: "Virão muitos do oriente e do ocidente e
sentar-se-ão à mesa do banquete com Abraão, Isac e Jacob, no Reino
do Céu, ao passo que os filhos do Reino serão lançados nas trevas
exteriores, onde haverá choro e ranger de dentes" (Mt 8, lls e
par. Lc 13, 28s).
Tais invectivas de Jesus sobre os descrentes de Israel não
significa que ele tenha abandonado o seu povo de raça e de origem.
Mas Jesus, assim como superou a sacralidade do templo e do sábado,
também superou a sacralidade do povo como único povo de Deus. E é
desta maneira que nasce a Igreja de Jesus como proposta de fé na
pessoa

109
de Jesus e no seu Reino, Reino esse que é mais do que a Igreja. "A
Igreja surgiu da morte e ressurreição de Jesus, sob a acção do
Espírito Santo. A Igreja é uma realidade transitória. O Reino de
Deus é a grandeza definitiva. Quanto mais ela o reconhecer e se
deixar determinar pelo definitivo, mais se conformará à missão de
Jesus."

25. ENTRADA EM JERUSALÉM E PURIFICAÇÃO DO TEMPLO
Iremos agora debruçar-nos sobre a paixão e morte de Jesus, um
assunto de que muito se tem escrito e que divide, em várias
questões, biblistas e historiadores.
Há três questões fundamentais a ter em conta. A primeira consiste
em apreendermos a consciência de Jesus sobre a sua paixão e morte
e sobre o significado das mesmas. A segunda consiste em
compreender qual foi o papel dos judeus, por um lado, e o dos
romanos, por outro lado, na morte de Jesus. A terceira tem a ver
com uma opinião, modernamente bastante divulgada, que, à luz de
algumas narrativas, que iremos estudar, defende que Jesus acaba
por ser julgado e condenado à morte de cruz pelo facto de ser um
religioso político que queria acabar com o reinado do império
romano em Israel, à maneira do que vai acontecer com os zelotas
nos anos 66-70. Sobre estes três assuntos, as opiniões dividem-se
e, por vezes, extremam-se. Para compreendermos tudo isto temos que
estudar a última semana de Jesus em Jerusalém: a sua entrada dita
"triunfal e messiânica" em Jerusalém, a sua acção contra o Templo,
a sua última ceia, a sua prisão no Getsémani, o seu julgamento
pelo Sinédrio e por Pilatos, e, consequentemente, a sua paixão e
morte.
Comecemos pelo aspecto narrativo das cenas. Trata-se da única
narração em que os evangelhos sinópticos seguem uma unidade
geográfica e cronológica iguais, seguida também de perto pelo
quarto evangelho. Este distingue-se dos sinópticos sobretudo na
narrativa da purificação do Templo, que coloca na primeira semana
activa da vida de Jesus (Jo 2, 13-22), e na narrativa da ceia, por
ser apenas uma ceia de "adeus" e não propriamente pascal (Jo 13,
1-20), ao contrário dos sinópticos.

110
Este aspecto de unidade narrativa tem a ver com a importância que
os responsáveis cristãos da primeira hora, apóstolos, profetas,
catequistas e evangelistas, davam a este final da vida de Jesus.
Uma vez que Jesus acaba por morrer numa cruz, só podia ter
acontecido devido a uma questão política, pois todos os condenados
à morte por crucifixão, no tempo de Jesus, acabavam assim a vida
devido a desordens con'tra a pax romana. Os evangelhos apresentam-
nos o assunto de maneira mais complexa, mas não há dúvida que a
intenção dos evangelistas é ao mesmo tempo histórica e cristã:
aquele crucificado é o próprio Filho de Deus, Messias e Salvador
de Israel e da humanidade. Para tanto, os evangelistas não nos
apresentam uma narrativa puramente neutral. Basta reparar nas
citações bíblicas do AT, umas explícitas e outras implícitas, para
demonstrar o plano divino de Deus naquela paixão e morte do seu
Filho.
Este conflito final entre Jesus e os judeus e Pilatos já vinha de
muito longe, sobretudo em relação aos judeus, por causa da
doutrina de Jesus sobre o sábado, a Lei, o jejum, o perdão dos
pecados, as suas atitudes para com os pecadores e publicanos.
Marcos, que é o primeiro evangelista a escrever, anota logo no
cap. 3, 6: "Os fariseus saíram da sinagoga [de Cafarnaum] e foram
imediatamente juntar-se aos herodianos para resolverem como haviam
de matar Jesus". Mas a última gota de água acontece naquela semana
final de Jesus em Jerusalém.
Comecemos com a narrativa da entrada triunfal de Jesus em
Jerusalém. Porque é que Jesus decide deixar a pacatez e a
segurança da Galileia e descer a Jerusalém, para se meter na boca
do lobo? Foi como simples peregrino para viver em Jerusalém a
festa da Páscoa, como determinava a Lei e a tradição? Foi para
pregar, finalmente, a sua doutrina sobre o Reino de Deus na cidade
mãe da religião judaica? Ou foi, finalmente, porque tinha
consciência de que era a vontade do Pai que havia de morrer ali e
ali ressuscitar? Para quem acredita em Jesus como Messias e
Salvador, a terceira pergunta e respectíva resposta é a da verdade
cristã. Mas condiz com a verdade da história?
Em Mc 11, 1 - 11, o narrador afirma duas coisas: que Jesus se
encontrava em Betânia e enviou dois dos seus discípulos para lhe
arranjarem um jumentinho na povoação vizinha, e que entrou na
cidade montado nesse jumentinho com as aclamações do povo:
Hossana! Bendito seja o que vem em nome do Senhor! Bendito o Reino
do nosso pai David que está a chegar. Hossana nas alturas! A
narrativa é muito simples e viva, mas carregada de sentido
messiânico, se tivermos em consideração a citação de Zc 9, 9:
"Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha
de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti; ele é justo e vitorioso;
vem, humilde, montado num jumento, sobre um jumentinho, filho de
uma jumenta. " Por esta citação, Jesus vem a Jerusalém para
proclamar alto e bom som que aquela cidade santa lhe pertence, uma
vez que a profecia de Zacarias se está a realizar.
Mateus (21, 1-11) narra a mesma coisa, mas termina assim: "Quando
Jesus entrou em Jerusalém, toda a cidade ficou em alvoroço. 'Quem
é este?' - perguntavam. E a multidão respondia: 'É Jesus, o
profeta de Nazaré, da Galileia."' Lucas (19, 29-40) segue na
esteira de Marcos, mas apresenta-nos alguns pormenores
importantes. Ele afirma que "o grupo dos discípulos começou a
louvar alegremente a Deus, em alta voz, por todos os milagres que
tinham visto. E diziam: 'Bendito seja o Rei que vem em nome do
Senhor! Paz no céu e glória nas alturas!"' (vv.37-38). Tanto como
Marcos e Mateus, Lucas cita o salmo
118, 26, mas evita a palavra Hossana e acrescenta o título de Rei,
juntamente com o cântico dos anjos aos pastores de Belém: "Paz no
céu e glória nas alturas!" (Lc 2, 14).
Alguns autores tiram partido desta cena para concluírem que Jesus
tinha mesmo uma intenção política de tomar conta de Jerusalém e
acabar com o reinado dos romanos. Semelhante parecer não tem
qualquer viabilidade. Para ser viável, Jesus teria que instruir os
seus discipulos nesse sentido, o que não acontece. É facto que
Lucas acentua a questão de Jesus ser Rei (Bendito seja o rei que
vem em nome do Senhor), mas trata-se duma interpretação lucana. E
o facto da narrativa apresentar as duas citações bíblicas, a de
Zacarias 9 e a do Salmo 118,
26, logo nos indicam que a narrativa foi interpretada pela Igreja
como

111
uma entrada messiânica de Jesus em Jerusalém, e nada mais. Se os
evangelistas vissem nesta entrada a intenção de messianismo
político de Jesus teriam adicionado a Zc 9, 9 também o versículo
que imediatamente se segue: "Ele exterminará os carros de guerra
da terra de Efraim e os cavalos de Jerusalém; o arco de guerra
será quebrado. Proclamará a paz para as nações. O seu império irá
de um mar ao outro / e do rio [Eufrates] às extremidades da terra.
" Além do mais, se a entrada "triunfal" de Jesus em Jerusalém
fosse uma entrada de sabor político, os soldados romanos,
acantonados na Torre Antónia, teriam que intervir imediatamente, o
que não aconteceu, ao contrário de tantas outras manifestações
messiânico-políticas de falsos profetas e messias guerrilheiros. E
o primeiro a referir-se a este assunto seria o próprio Flávio
Josefo como aconteceu com a sua narrativa acerca do egípcio que
quis conquistar Jerusalém e com as narrativas de muitos outros
falsos messias (Ant. 20, 169; Bell. 2, 262, etc.). Para
terminarmos, reparemos que nunca é Jesus quem dá o tom de uma
entrada triunfal em Jerusalém, mas apenas o povo que ansiava por
essa libertação política. E como estamos em ambiente de preparação
para a grande festa da Páscoa, não há dúvida de que o povo, que
tinha ouvido falar deste profeta de Nazaré, esperava que ele se
manifestasse no sentido messiânico-político, mas tal pensar não é
o de Jesus.
Esta entrada em nada condiz - como vimos - com uma entrada de
libertação política contra os romanos. Nem o Sinédrio, nem Pilatos
se servem desta entrada como prova política contra Jesus. Mas o
mesmo já não acontece com a narrativa da purificação do Templo,
que vem em Mc 11, 15-19 e par Mt 21, 12-17 e Lc 19, 45-48; cf. Jo,
2, 13-18).
Comecemos por ler a narrativa segundo Marcos, para depois,
consoante os outros três evangelistas, notarmos as diferenças:
"[Jesus e os seus discípulos] chegaram a Jerusalém; e, entrando no
templo, Jesus começou a expulsar os que vendiam e compravam no
templo; deitou por terra as mesas dos cambistas e os bancos dos
vendedores de pombas, e não permitia que se transportasse qualquer
objecto através do Templo. E ensinava-os, dizendo: "Não está
escrito: A minha casa será chamada casa de oração para tOdOs os
povos? Mas vós fizestes dela um covil de ladrões. ". Os sacerdotes
e os doutores da Lei ouviram isto e procuravam maneira de o matar,
mas temiam-no, pois toda a multidão estava maravilhada com o seu
ensinamento."
Mateus segue a narrativa de Marcos, mas adiciona o seguinte:
"Aproximaram-se dele, no Templo, cegos e coxos, e Ele curou-os.
Perante os prodígios que realizava e as crianças que gritavam no
Templo: "Hossana ao Filho de David", os sumos sacerdotes e os
doutores da Lei ficaram indignados e disseram-lhe: "Ouves o que
eles dizem?" Respondeu Jesus: "Sim. Nunca lestes: Da boca dos
pequeninos e das crianças de peito fizeste sair o louvor
Perfeito?". Sem dúvida que este acrescento de Mateus é da sua
própria lavra, tanto mais que repete o "Hossana ao Filho de
David", de que falara um pouco antes, aquando da entrada de Jesus
em Jerusalém (21, 9), citando, depois o SI 8, 3 sobre o louvor dos
pequeninos. A cura de cegos e coxos no templo, também não se
compreende lá muito bem, porque estes doentes passavam por serem
impuros e não podiam entrar no Templo. Mateus tem em vista uma
teologia e não uma história 'isto é, a partir de agora, todos os
doentes têm o direito de entrar no novo Templo de Jesus e serem
curados.
Na versão de Lucas afirma-se apenas que Jesus "começou a expulsar
os vendedores", sem especificar que tipo de vendedores,
acrescentando de imediato uma citação de Is 56, 7 e Jr 7, 11:
"Está escrito: "a minha casa será casa de oração; mas vós fizestes
dela um covil de ladrões. " Para Lucas, portanto, o acento recai
na oração, em oposição ao comércio. Esta atitude é típica do seu
evangelho e das críticas do seu Jesus contra as riquezas deste
mundo.
João coloca a purificação do Templo na primeira semana de
actividade de Jesus, imediatamente depois do milagre das bodas de
Caná, sendo o episódio mais prolixo em termos narrativos. Fala dos
"vendedores de bois, ovelhas e pombas e dos cambistas nos seus
postos", dum "chicote de cordas que Jesus fez" para expulsar toda
aquela gente do Templo, termínando Jesus por dizer aos vendedores
de pombas: "Tirai isso daqui. Não façais da casa de meu Pai uma
feira." Numa segunda parte

112
da narrativa entram os discípulos que se lembraram do SI 69, 10: O
zelo da tua casa me devora. E diante de tudo isto, os judeus
perguntaram a Jesus: "Que sinal nos dás de poderes fazer isto?",
ao que Jesus respondeu: "Destruí este Templo, e em três dias Eu o
levantarei!" Então os judeus replicaram: "Quarenta e seis anos
levou este Templo a construir, e Tu vais levantá-lo em três dias?"
Mas o narrador anota imediatamente que Jesus "falava do Templo que
é o seu corpo."
É evidente que, se a narrativa de João fosse histórica, todos os
discípulos de Jesus se teriam colocado ao seu lado, expulsando
eles também os vendedores de bois, ovelhas e pombas e derrubando
as mesas dos cambistas. O quarto evangelista usa da hipérbole,
tanto em relação ao chicote como em relação à expulsão de todos
aqueles vendedores. A ser real tal acontecimento, certamente teria
havido uma batalha campal com muitos feridos e sangue, o que em
nada condiz com a figura de Jesus em todos os evangelhos. Por
outro lado, se assim fosse, os soldados romanos da Torre Antónia,
que tinham por missão vigiar o que se passava de anormal no
Templo, teriam descido imedíatamente ao lugar de combate para
manterem a ordem. Por muito menos o fizeram aquando da ida de S.
Paulo ao Templo (Ac 21, 29-40). Como toda a narrativa de João tem
por fim apresentar o Jesus ressuscitado como o novo Templo,
estamos diante de mais um sinal de fundo teológico e não tanto de
uma narrativa de história factual.
Assim sendo, a narrativa que mais se aproxima da verdade histórica
é a de Marcos, e todas as demais apresentam a acção de Jesus
através dos olhos da fé e da teologia, uma vez que, com a
destruição de Jerusalém e do seu Templo, os cristãos servem-se
desta acção de Jesus para contrapor o culto cristão ao culto
judaico do Templo.
O acontecimento só podía ter tido lugar no chamado átrio dos
pagãos, onde Jesus fez uma declaração sobre a verdade divina do
Templo, como tinha feito, outras vezes, sobre a verdade divina do
sábado, da Lei, do casamento, da oração, do jejum, da esmola,
entre outras. A revolução de Jesus - e uma vez mais - não é de
teor político, mas teológico, embora muitos autores defendam a
tese do Jesus revolucionário. Jesus faz o que já Jeremias também
tinha feito em relação ao Templo: "Não vos fieis em palavras de
mentira, dizendo: Templo do Senhor, Templo do Senhor! Este é o
Templ o do Senhor... Porventura, este Templo, onde o meu nome é
invocado, é a vossos olhos, um covil de ladrões? ... Eu farei da
casa em que é invocado o meu nome e na qual depositais a vossa
confiança, deste lugar que vos dei, a vós e aos vossos pais, o
mesmo que fiz a Silo..." (Jr 7, 4-15).
O significado desta purificação do Templo consiste, pois, em Jesus
mostrar a sua autoridade sobre o mesmo, servindo-se, para tanto,
dum pequeno discurso profético, cujas palavras, conforme terão
saído da sua boca, desconhecemos. Por outro lado, havia que chamar
a atenção, com palavras e gestos, para alguns vendedores, sobre o
significado da sua acção. É a primeira vez, no evangelho de
Marcos, que o evangelista refere a atitude dos sumos sacerdotes
contra Jesus - estes querem, simplesmente, matá-lo. Não há dúvida
de que esta acção de Jesus é a última gota de água que leva ao
rubro o conflito entre Jesus e o Sinédrio, que tinha começado na
Galileia e iria terminar, agora, em Jerusalém. Jesus era um
blasfemo perigoso ao pôr de avesso a ortodoxia religiosa dos
judeus, cuja manutenção e verdade competia ao Sinédrio, que tinha
à sua cabeça o sumo sacerdote.
Em Mc 14, 58, as falsas testemunhas apresentam diante do tribunal
judaico a prova de condenação contra Jesus nas suas palavras sobre
o Templo: "Ouvimo-lo dizer: "Demolirei este templo construído pela
mão dos homens e, em três dias, edificarei outro que não será
feito pela mão dos homens." O que interessa neste testemunho é
concluirmos que, sem dúvida, Jesus terá falado da destruição dum
Templo e da reconstrução doutro Templo (Cf. Ac 6, 14). Semelhante
destruir e construir tem a ver com a sua morte e ressurreição. A
acção de Jesus é, então, uma parábola em acção, sobre o seu
destino que se cumpriria dali a poucos dias.

113

26. CEIA PASCAL
A ceia pascal com a respectiva eucaristia cristã é uma parte
integrante do mistério pascal. O que é que esta ceia tem a ver com
a morte de Jesus e qual foi e continua a ser o seu significado?
Comecemos por perguntar como é possível que a última ceia de
Jesus, segundo os sinópticos, tenha lugar no dia e na hora da ceia
pascal judaica (Mc 14, 12-16 e par.; Lc 22, 15s), mas que o mesmo
não aconteça com a narrativa do quarto evangelho? Realmente, o
autor do quarto evangelho abre a narrativa da última ceia desta
maneira: "Foi antes da festa da Páscoa" (13, 1). E quando se trata
do julgamento de Jesus diante de Pilatos o autor escreve: "Era de
manhã cedo e eles [os judeus] não entraram no edifício [do
governador romano Pilatos] para não se contaminarem e poderem
celebrar a Páscoa." Finalmente, em Jo 19, 14, ainda durante o
tempo do julgamento de Jesus diante de Pilatos, o autor anota:
"Era a Véspera da Páscoa, por volta do meio dia...", e o mesmo
acentua já depois da morte de Jesus: "Como era o dia da Preparação
da Páscoa" (Jo 19, 31), e também por ocasião da sepultura de
Jesus: "Como para os judeus era o dia da Preparação da Páscoa e o
túmulo estava perto, foi ali que puseram Jesus" (Jo 19, 42). Esta
espécie de leitmotiv do autor do quarto evangelho que acentua o
julgamento e a morte de Jesus antes da festa pascal ou ceia pascal
é, realmente, intencional. Ele quer demarcar muito bem que a ceia
e a morte de Jesus nada têm a ver directamente com a festa pascal
judaica. Quando o autor do quarto evangelho escreve, nos finais do
século primeiro d. C., os cristãos da tradição joânica distinguem
a eucaristia cristã da festa da Páscoa judaica. Esta Páscoa
judaica já nada tem a ver com eles. É o que se lê em Jo 11, 55:
"Estava próxima a Páscoa dos judeus."

114
Para não haver confusões entre a ceia eucarística cristã e a ceia
pascal judaica, o autor do quarto evangelho apresenta-nos, no cap.
13 do seu evangelho, uma ceia de despedida de Jesus com os seus
discípulos, seguida duma série de diálogos e monólogos entre Jesus
e os mesmos discípulos (Jo 14-17). A eucaristia cristã é
apresentada em Jo 6, 52-57: "Em verdade, em verdade vos digo: se
não comerdes mesmo a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu
sangue, não tereis a vida em vós...". Assim sendo, todas as
tentativas de harmonizar os evangelhos sinópticos com o quarto
evangelho através da distinção do calendário solar seguido pelos
homens de Qumran e pelos apocalípticos e o calendário lunar
seguido pela ortodoxia judaica, não têm qualquer sentido, porque a
intenção do autor do quarto evangelho é de ordem teológica e
eclesial e não histórica. Para o quarto evangelista, o verdadeiro
Cordeiro de Deus é o próprio Jesus Cristo (Jo 1, 30.35) que, por
isso mesmo, quando crucificado, "não lhe quebraram as pernas" (Jo
19, 31-37). A ceia pascal, que tem por centro a manducação do
cordeiro pascal e o seu significado, termina diante da nova Páscoa
cristã, isto é, daquele Jesus crucificado que exclama precisamente
antes de morrer: "Tudo está consumado" (19, 30).
Assim sendo, para compreendermos o verdadeiro significado da
última ceia pascal de Jesus temos que nos agarrar às narrativas
dos evangelhos sinópticos e também à narrativa de S. Paulo na 1Cor
11, 23-26. Já vimos, ao tratarmos da questão sinóptica, que tanto
os sinópticos como S. Paulo só se interessam pela ceia pascal de
Jesus na perspectiva cristã. Sabemos que a ceia tinha lugar
durante a noite (cf. 1Cor 11, 23), que era celebrada dentro dos
muros da cidade de Jerusalém e que consistia em duas partes: na
primeira havia uma espécie de homilia da pessoa mais importante
sobre o significado da festa, seguindo-se, depois, a comida do
haroshet, do pão ázimo e a bebida dum cálice de vinho e, na
segunda parte, a comida do cordeiro pascal e a bebida dum segundo
e dum terceiro cálice de vinho, concluindo com o cântico do Hallet
(cf Lc 22, 15: "Tenho ardentemente desejado comer esta Páscoa
convosco, antes de padecer.... v.20: Depois da ceia, fez o mesmo
com o cálice...."; cf. Mc 14, 22: "Após o cântico dos Salmos [do
Hallet], saíram para o monte das Oliveiras." Na narrativa da
última ceia não se fala da parte central da celebração judaica,
isto é, no cordeiro pascal, porque as palavras consacratórias ou
performativas de Jesus só incidiram sobre o pão e sobre o vinho e
porque, na liturgia cristã da eucaristia, o cordeiro pascal é o
próprio Cristo morto e ressuscitado. Por outro lado, a ceia pascal
judaica só se celebrava uma vez ao ano, no 15 de Nisan, enquanto
que a eucaristia cristã celebrava-se todos os domingos.
Jesus conferiu a esta última ceia um sentido de despedida ou de
adeus aos seus discípulos e um sentido de memória sacramental
ligado directamente ao programa narrativo de toda a sua vida sobre
o Reino de Deus. Por isso, a ceia termina com as palavras de Jesus
que chegaram até nós em duas versões. Segundo Mc 14, 25 Jesus
declara: "Em verdade vos digo: não voltarei a beber do fruto da
videira até ao dia em que o beba, novo, no Reino de Deus." Segundo
Lc 22, 18 as palavras são um pouco diferentes: "Pois digo-vos que
não tornarei a beber do fruto da videira, até chegar o Reino de
Deus." Trata-se duma profecia da sua morte ligada directamente à
vinda do Reino. O importante é repararmos que a última ceia se
relaciona com toda a vida de Jesus e esta com a vinda do Reino ou
Soberania de Deus. "No seu sentido geral, as palavras
escatológicas de Jesus, sustentadas pela confiança e
perspectivadas pelo Reino de Deus, constituem uma confirmação de
que Jesus, nos últimos momentos da sua vida, contava com uma morte
violenta, mas também de que ele manteve a expectativa da vinda da
basileia, que constituía o fulcro da sua pregação, ainda que,
aqui, a tenha referido sobretudo à sua própria pessoa e se tenha
referido a uma expectativa pessoal. Portanto, este logion ou
sentença, cuja autenticidade nunca foi

115
seriamente contestada, torna-se um ponto de partida importante
para a reconstrução daquilo que, nesta ceia, teve um significado
especial".
Por aqui ficamos a saber que as palavras consacratórias de Jesus:
"Isto é o meu corpo" e "este é o meu sangue, sangue da Aliança,
que vai ser derramado por muitos, para perdão dos pecados", estão
dírectamente ligadas à sua morte e à efectivação do seu Reino, que
começou com ele e que vai consumar-se com o seu mistério pascal e
com o seu memorial sacramental através dos seus seguidores. Nesta
última ceia, Jesus converte o pão em corpo e o vinho em sangue,
isto é, o pão e o vinho em signo sacramental da sua própria pessoa
que, definitivamente, se vai entregar ao Pai e à humanidade.
Surge-nos, então, a pergunta: será que Jesus só agora se deu conta
de que a sua pregação do Reino ao Israel concreto do seu tempo,
foi, de algum modo, um fracasso, reabilitada através desta ceia e
desta morte? A pergunta é pertinente porque, de facto, Jesus não
viria falar a Israel propondo-lhe a conversão para a vinda do
Reino, se não esperasse essa mesma conversão. Mas a verdade é que
essa conversão não aconteceu. Estamos diante da vontade de Deus,
através do seu Filho, e da liberdade do homem, que se opõe ao
desígnio de Deus, como, aliás, tantas vezes já acontecera no
Israel concreto desde os patriarcas até Jesus. Tal fracasso, "não
provoca em Jesus, nem a resignação, nem o desespero. A sua
confiança inclui a sua disponibilidade para aceitar esta morte das
mãos de Deus. Se ele aceitou o destino de morte em conformidade
com a vontade do Pai, dificilmente se pode excluir desta
conformidade a sua tarefa messiânica, pelo que a sua morte se
situa no horizonte da sua missão". O "sangue da alíança derramado
por muitos" e o "corpo entregue por vós" conferem à última ceia a
verdade redentora e salvífica daquela morte e do destino final de
Jesus. Esta "nova aliança" ou esta nova comunhão entre Deus e os
homens, através do destino do Messias e Filho de Deus, marcam o
novo ritmo da salvação e da comunhão oferecida por Deus a todos
nós.

27. PROCESSO DA PAIXÃO E CRUCIFICAÇÃO
Depois de termos estudado alguns aspectos fundamentais da vida de
Jesus na sua última semana em Jerusalém, a saber: a sua entrada
triunfal na cidade, a purificação do Templo e a última ceia, vamos
terminar com este estudo sobre a paixão e morte de Jesus,
debruçando-nos na prisão de Jesus, no processo diante do Sinédrio
e de Pilatos e, finalmente, na sua morte.
Como aconteceu em todos os outros passos fundamentais da vida de
Jesus, também agora vamos encontrar muitas semelhanças e
diferenças entre os três evangelhos sinópticos e entre estes e o
quarto evangelho. Uma vez mais, as diversas narrativas estão
carregadas de citações do AT para demonstrarem que tudo estava de
acordo com o desígnio salvador de Deus.
Comecemos com a narrativa da prisão. As diferenças fundamentais
entre os quatro evangelhos consistem sobretudo na qualidade e
quantidade das pessoas que foram prender Jesus ao seu refúgio do
Getsémani. Segundo Mc 14, 43, Judas é acompanhado de "muito povo
com espadas e varapaus, [enviados] pelos sumos sacerdotes, pelos
doutores da Lei e pelos anciãos", isto é, pelos representantes do
Sinédrio. Marcos não fala de soldados ou de tropa, mas de povo. O
mesmo se diga da narrativa de Mt 26, 47. Mas na narrativa de Lc
22, 52, Jesus dirige-se directamente aos que "tinham vindo contra
ele, a saber, aos sumos sacerdotes, aos oficiais do templo e aos
anciãos". Segundo os sinópticos, portanto, o responsável pela
prisão de Jesus é o Sinédrio. Claro está que a narrativa de Lucas
não pode condizer com a história porque não foram os sumos
sacerdotes e os anciãos que prenderam Jesus, mas os seus enviados.
O facto de Lucas se referir aos "oficiais do Templo" é importante
porque historicamente o Sinédrio dispunha de

116
soldados judeus para tomarem conta da ordem do templo. Na
narrativa de Jo 18, 3, os protagonistas já são diferentes quando
refere Judas acompanhado duma " coorte de soldados romanos e dos
guardas ao serviço dos sumos sacerdotes e dos fariseus",
repetindo, depois, mais tarde, no v.12: "Então, a coorte, o
comandante militar e os guardas das autoridades judaicas prenderam
Jesus e manietaram-no." Não é possível que a coorte ou o
destacamento romano formado por 600 soldados e comandado pelo
chefe militar (chiliarchos) fosse prender Jesus. João quer
implicar a responsabilidade romana porque segundo o seu evangelho
Jesus não é julgado directamente pelo Sinédrio mas apenas por
Pilatos. Aliás, se os soldados romanos fossem os responsáveis pela
prisão de Jesus, teriam levado Jesus imediatamente a Pilatos e não
ao Sumo Sacerdote. A conclusão a tirar é que Jesus foi preso a
mando do Sinédrio. E o Sinédrio só se interessava pela prisão de
Jesus e não pela dos seus discípulos, o que aconteceria se fosse a
autoridade romana a tomar conta do assunto.
Passemos agora ao estudo do julgamento de Jesus diante do tribunal
judaico, isto é, do Sinédrio, formado por 70 membros de entre os
responsáveis das familias dos sumos sacerdotes, dos anciãos e dos
escribas, e capitaniado pelo sumo sacerdote em funções (cf. Nm 11,
16 e Michná Sanh 1, 6; Sheb 22). Não se trata dum julgamento
formal com todos os requisitos que eram exigidos, sobretudo para o
caso dum veredicto de pena de morte. Para tal, o sinédrio não
podia reunir-se de noite, e muito menos nas vésperas do sábado e
da festa da Páscoa. O veredicto do Sinédrio sobre a morte de Jesus
já tinha sido tomado, mas não tinha sido formalizado. Como vimos,
foi a acção de Jesus naqueles últimos dias, sobretudo a sua acção
relacionada com a "purificação" do Templo que levou o Sinédrio a
concluír pela sua morte. Para tanto só havia duas soluções: ou a
morte por lapidação conferida pelo Sinédrio aos casos de judeus
blasfemos, como aconteceu, por exemplo, com Estêvão (Ac 7, 54-60)
ou a morte pela cruz (o ius gladii) apenas conferida pelo tribunal
romano.
Embora os sinópticos nos descrevam aparentemente um julgamento
formal de Jesus diante do Sinédrio, condenando-o à morte por
blasfémia, o que aconteceu, realmente, não foi um julgamento
formal, mas apenas uma reunião informal do Sinédrio para decidirem
a maneira de entregarem Jesus a Pilatos. Basta repararmos que a
reunião do Sinédrio se deu em casa do Sumo sacerdote, o que está
contra a lei, uma vez que o Sinédrio, para estes casos, tinha uma
sala própria nas dependências do Templo. Sem dúvida que o
Sinédrio, na sua totalidade ou apenas representado por alguns
membros, encontra-se pela primeira vez com Jesus e lhe fez várias
perguntas sobre a sua pregação do Reino, os seus discípulos, a sua
messianidade, e que as respostas de Jesus vieram confirmar o que
eles já sabiam, isto é, a perigosidade da sua doutrina para com a
ortodoxia religiosa e as possíveis implicações políticas que daí
poderiam advir. A solução estava em passarem a responsabilidade
para Pilatos, tanto mais que a pregação de Jesus sobre o Reino de
Deus e sobre a messianidade do mesmo Jesus facilmente se
transformava em argumento político. Neste sentido, a narrativa de
Mc 15, 1 está de acordo com as verdadeiras intenções do Sinédrio:
"Logo de manhã, os sumos sacerdotes reuniram-se em conselho com os
anciãos e os doutores da Lei e todo o Sinédrio; e, tendo manietado
Jesus, levaram-no e entregaram-no a Pilatos."
O julgamento de Jesus diante de Pilatos demonstra muito bem as
ambiguidades entre as causas religiosas e as políticas neste
julgamento. É claro que as narrativas já têm a ver com a
apologética cristã por causa daquela condenação que, se por um
lado, era um "escândalo para os judeus e uma loucura para os
gregos" (1Cor 1, 23), por outro lado, é "a força de Deus para os
que se salvam" (1Cor 1, 18). Mesmo assim, as diversas narrativas
não fogem à verdade fundamental histórica.
Reparemos que, segundo o relato do quarto evangelho, o Sinédrio
pediu a Pilatos para condenar Jesus na Cruz por causa da
perigosidade de Jesus para a religião e para a paz romana.
Estariam os judeus à espera que Pilatos instaurasse um julgamento
formal? Possivelmente não. Mas a verdade é que Pilatos instaura um
julgamento formal, que exigia, segundo o direito romano, a
presença de testemunhas de acusação. Segundo Jo 19, 13, Pilatos
sentou-se na cadeira de juiz (bèma), e depois

117
de muito dialogar com os judeus termina condenando Jesus porque se
deu conta que ele com a sua pregação dum novo Reino de Deus, com
as suas virtudes carismáticas, com a sua auto consciência de ser o
Messias tão suspirado, com o movimento que instaurou e que já
envolvia muitos discípulos, podia, realmente, ser perigoso para a
sua política frente aos judeus e frente a Roma. O paradoxo e o
anacronismo da situação chega ao ponto dos judeus dizerem a
Pilatos: "Se libertas este homem, não és amigo de César! Todo
aquele que se faz rei declara-se contra César ... Não temos outro
rei, senão César" (Jo 19, 12.15). Embora esta confissão política
seja exclusiva da narrativa de João, e dificilmente aceite como
histórica, apenas nos diz - pelo seu aspecto extremista - como as
narrativas passam da religião para a política. E não há qualquer
dúvida que a última palavra de Pilatos, ao condenar Jesus à morte
da cruz, foi um acto político, tanto para agradar aos judeus, como
para agradar a Roma, embora a expressão de Pilatos: "entregou
Jesus para que fosse crucificado" (Mc 15, 15; Mt 27, 26; Jo 19,
16) tenha um sabor teológico especial, porque nesta entrega, com a
força do verbo paradidonai, está todo o percurso da história da
salvação: Ele foi entregue por causa da nossa salvação.
Ultimamente, muitas obras literárias e cinematográficas têm
interpretado o julgamento e a consequente morte de Jesus através
da questão política que envolvia Pilatos. Esta é uma visão
unilateral que não corresponde à realidade. Aquela morte tem a ver
com toda a vida pública de Jesus. Quem decidiu a morte de Jesus
foi a religião judaica daquele tempo por causa da revolução
teológica de Jesus, que a punha em causa. Contudo, é preciso não
perder de vista que, frequentemente, e no fim de tudo, motivos
religiosos e políticos acabam por se confundir, na maior parte dos
conflitos da humanidade. Porventura, foi o que aconteceu no
desfecho dramático da passagem do Filho do Homem, Jesus, o
Salvador.

28. A RESSURREIÇÃO DE JESUS
Se a história da humanidade continua a dividir-se em antes de
Cristo e depois de Cristo é por causa da acção que o Cristianismo
determinou na mesma humanidade, mas o Cristianismo nunca
aconteceria sem a ressurreição de Cristo. É a fé na ressurreição
que faz com que o Cristianismo seja o que realmente é. Já Paulo
afirmava: "Ora, se se prega que Jesus ressuscitou dos mortos, como
é que alguns de entre vós dizem que não há ressurreição dos
mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não
ressuscitou. Mas se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação,
e vã é também a vossa fé. ( ... ) E se nós temos esperança em
Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os
homens" (1Cor 15, 12-19).
S. Paulo disserta sobre a ressurreição de Cristo por causa da
nossa própria ressurreição. Realmente, a força dos Apóstolos e
demais crentes e evangelistas das comunidades cristãs primitivas
residia na fé da ressurreição de Cristo que, necessariamente,
proporcionava a ressurreição da cada um dos crentes. Jesus Cristo
é as primícias de todos os demais ressuscitados (1Cor 15, 20).
As dúvidas dos cristãos de Corinto sobre a ressurreição de Jesus
tem a ver com a dialéctica entre a fé e a razão. Não é preciso
acreditar que Jesus foi um homem extraordinário como pregador e
taumaturgo, como homem de Deus e como reformador teológico da
religião judaica do seu tempo. Mas é preciso acreditar que ele
ressuscitou. Os coríntios eram gregos e estavam habituados às
filosofias gregas que distinguiam o mundo das ideias e do espírito
do mundo da matéria. Por isso, era-lhes fácil ver em Jesus um anèr
Theos, isto é, um homem divino, cheio dessa mesma força divina
para pregar um novo tipo de religião e para realizar as suas
acções taumatúrgicas. Contudo, uma vez que a ressurreição

118
exigia a ressurreição da própria matéria ou corpo de Jesus fazendo
com que o Ressuscitado fosse um corpo espiritual, achavam isso
muito estranho e indigno de gente culta e amiga dos mistérios. Foi
o que aconteceu com S. Paulo quando pregou o seu discurso no
Arcópago de Atenas a epicuristas e estóicos. É importante
recordarmos a narrativa de Lucas em Ac.17, 18: "Até alguns
filósofos epicuristas e estóicos trocavam impressões com ele. Uns
diziam: 'Que quererá dizer este papagaio?' Outros: 'Parece que é
um pregoeiro de deuses estrangeiros.' Isto, porque Paulo anunciava
a Boa-Nova de Jesus e a ressurreição." O mesmo acontece no fim do
seu discurso em Ac 17, 32: "Ao ouvirem falar da ressurreição dos
mortos, uns começaram a troçar, enquanto outros disseram: 'Ouvir-
te-emos falar sobre isso ainda outra vez."'
Realmente, não é fácil dissertarmos sobre a ressurreição porque se
trata de acreditar que Jesus continua a viver numa vida diferente,
totalmente outra. Ele é, simultaneamente, o mesmo Jesus de Nazaré
e da Cruz mas em forma de Ressuscitado. O seu corpo não tem mais
carne e sangue. Ele não fala nem caminha como falava e caminhava
quando vivia entre os seus discípulos, embora algumas narrativas o
apresentem a caminhar e a comer mesmo depois de ressuscitado.
Lembremos as narrativas mais significativas. Comecemos pela
narrativa de Lc 24, 13-35 sobre Jesus que caminha e dialoga com os
discípulos de Emaús. Mas os discípulos só o reconheceram quando
"ele se pôs à mesa, tomou o pão, pronunciou a benção e, depois de
o partir, entregou-lho. Então, os seus olhos abriram-se e
reconheceram-no; mas Ele desapareceu da sua presença". Como é que
os discípulos não reconheceram Jesus quando lhes falou, lhes
explicou as Escrituras, mas apenas na "fracção do pão",
desaparecendo, depois, como que por encanto? Não há dúvida que se
trata duma narrativa catequética que tem por finalidade apresentar
a ressurreição ligada ao sacramento da eucaristia e a toda a
liturgia sacramental que consiste na leitura da sagrada Escritura
e na fracção do pão. O mesmo acontece com a narrativa da sua
aparição aos onze em Lc 24, 36-42: "Jesus apresentou-se no meio
deles e disse-lhes: 'A paz esteja convosco!' Dominados pelo
espanto e cheios de temor, julgavam ver um espírito. Disse-lhes,
então: "Por que estais perturbados e por que surgem tais dúvidas
nos vossos corações? Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu
mesmo. Tocai-me e olhai que um espírito não tem carne nem ossos,
como verificais que eu tenho.' Dizendo isto, mostrou-lhes as mãos
e os pés. E como, na sua alegria, não queriam acreditar de
assombrados que estavam, Ele perguntou-lhes: 'Tendes aí alguma
coisa que se coma?' Deram-lhe um bocado de peixe assado; e,
tomando-o, comeu diante deles." Também, aqui, a intenção do
evangelista é provar que o Ressuscitado não é um espírito ou um
fantasma, mas é o mesmo da Galileia, de Jerusalém, embora em forma
de Ressuscitado. E como prova, Jesus pede qualquer coisa para
comer. A comensalidade tinha sido importante para Jesus e seus
discípulos porque foi através dessa mesma comensalidade que se
formou o grupo, que os discípulos receberam instruções de Jesus e,
com elas, receberam a sua identidade. Nessa comensalidade comiam o
pão, bebiam o vinho e comiam o peixe do lago. Por isso é que se
fala tanto de peixe na comensalidade do Ressuscitado com os
discípulos. No cap. 21 de João, às ordens de Jesus, os apóstolos
apanham 153 peixes, e depois da pesca chegam à praia, onde está
Jesus, que "tomou o pão e deu-lho, fazendo o mesmo com o peixe"
(Jo 21, 13). Tudo isto só se pode explicar se tivermos em
consideração que os discípulos e os primeiros cristãos realizavam
os seus encontros eucarísticos com o pão e o vinho, mas também
tinham as suas refeições com o pão e o peixe. Desconhecemos
imensas coisas sobre as eucaristias primitivas e seu significado
sacramental como signo da presença viva do ressuscitado no meio
dos discípulos e da comunidade. Uma vez mais, trata-se duma
catequese para que os discípulos acreditem que Jesus está mesmo
vivo. Repare-se que no relato de Lucas nem com a aparição os
discípulos ficam a acreditar. Eles apenas pensam que estão a ver
um espírito ou um fantasma. O facto do evangelista se referir à
comida do peixe, às mãos e ao peito é uma forma de demonstrar que
o Jesus da cruz com as mãos e os pés pregados é o mesmo que está,
agora, diante deles. O mesmo acontece na descrição de Jo 20, 19-
20: "Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando
fechadas as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, com
medo das autoridades judaicas, veio Jesus, pôs-se no meio deles e
disse-lhes: 'A paz seja convosco!' Dito isto, mostrou-lhes as mãos
e o peito. Os discípulos encheram-se de alegria por verem o
Senhor." Reparemos que neste texto, as portas estão fechadas, mas,
mesmo assim, Jesus entra na casa

119
e mostra aos discípulos as mãos e o peito. Enquanto em Lucas se
fala de "mãos e pés", agora, em João, Jesus apresenta as "mãos e o
peito" porque no relato da morte de Jesus, João é o único a falar
do peito trespassado, de onde "saíu sangue e água", como símbolo
do baptismo e da eucaristia (Jo 19, 34). A mesma catequese
acontece com a aparição de Jesus a Tomé em Jo 20, 27: "Olha as
minhas mãos: chega cá o teu dedo! Estende a tua mão e põe-na no
meu peito. E não sejas incrédulo, mas fiel." O mais importante
desta narrativa são as palavras finais de Jesus: "Porque me viste,
acreditaste. Felizes os que crêem sem terem visto!".
As narrativas das aparições do Ressuscitado que temos vindo a
estudar referem-se todas a uma catequese sobre a identidade de
Jesus: o Ressuscitado é o mesmo que o da Cruz, da Galileia e de
Jerusalém. Quando os evangelhos foram escritos, muitos cristãos,
sobretudo de origem grega acreditavam, sim, na ressurreição, mas
dum Jesus Cristo que nada tinha a ver com o Jesus Cristo
terrestre. Para demonstrar a fé no Ressuscitado, que é o mesmo,
uno e indivizível, é que os evangelistas emprestam a roupagem da
eucaristia (ou eucaristias) e apresentam os sinais físicos das
mãos e dos pés ou das mãos e do peito. Para os que afirmavam que o
Jesus histórico era diferente do Jesus ressuscitado temos a
doutrina da primeira carta de S. João 4, 1-3: "Caríssimos, não
deis fé a qualquer espírito, mas examinai se os espíritos são de
Deus, pois muitos falsos profetas apareceram no mundo. Reconheceis
que o espírito é de Deus por isto: todo o espírito que confessa
Jesus Cristo que veio em carne mortal é de Deus, e todo o espírito
que não faz essa confissão de fé acerca de Jesus não é de Deus.
Esse é o espírito do Anticristo, do qual ouvistes dizer que tem de
vir; pois bem, ele já está no mundo."
Acabámos de ver que as aparições não se devem tomar à letra, mas
devem ser interpretadas. As narrativas são catequeses cristãs que
nos querem provar, através da roupagem literária das aparições
físicas, que o Ressuscitado é o mesmo Jesus de Belém, da Galileia
e do Gólgota. Por isso mesmo, até os próprios discípulos duvidavam
de Jesus quando este lhes aparecia, o que nos leva a concluir que
também precisaram de acreditar como nós acreditamos. Ninguém
duvida que Jesus apareceu aos apóstolos e discípulos, mas não
sabemos como é que apareceu. As narrativas não têm por intenção
descrever esse como mas apenas a verdade da ressurreição de Jesus.
Assim se explicam as narrativas das aparições sobre a identidade
do Ressuscitado. Para além das narrativas sobre a identidade do
Ressuscitado há também as narrativas sobre a missão que o
Ressuscitado confia aos apóstolos e discípulos. Entre elas
sobressai a de Mt 28, 16-20: "Os Onze discípulos partiram para a
Galileia, para o monte que Jesus lhes tinha indicado. Quando o
viram, adoraram-no; alguns, no entanto, ainda duvidavam.
Aproximando-se deles, Jesus disse-lhes: "Foi me dado todo o poder
no Céu e na Terra. Ide, pois, fazei discípulos de todos povos,
baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo,
ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. E sabei que
Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos."'
O primeiro aspecto importantc a ter em conta nesta narrativa é a
afirmação do texto: "alguns, no entanto, ainda duvidavam" da
ressurreição de Jesus. O mesmo acontece em Lc 24, 37, onde se diz
que os Onze, "dominados pelo espanto e cheios de temor, julgavam
ver um espírito." Mas o exemplo maior de descrença acontece com
Tomé ao dizer aos demais apóstolos: "Se eu não vir o sinal dos
pregos nas suas mãos e não meter o meu dedo nesse sinal dos pregos
e a minha mão no seu peito, não acredito" (Jo 20, 25). Tomé
simboliza, pois, todos os descrentes na ressurreição, os de há
dois mil anos como os de hoje em dia. E é por isso que Jesus lhe
diz: "Porque me viste, acreditaste. Felizes os que crêem sem terem
visto!" Há, portanto, que afirmar: também os apóstolos e
discípulos precisaram de fé para acreditar na ressurreição.
O segundo aspecto importante na narrativa de Mateus tem a ver com
a doutrina da Santíssima Trindade: "Ide, pois, fazei discípulos de
todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo". Se tivermos presente a doutrina das cartas de S.
Paulo e as narrativas dos Actos dos Apóstolos, facilmente
concluímos que a doutrina sobre a Santíssima Trindade não foi
anunciada directamente por Jesus,

120
mas foi uma aquisição da fé da Igreja, iluminada pelo Espírito
Santo. A narrativa de Mateus tem por fim a missão da Igreja. A
pessoa do Ressuscitado mistura-se com a pessoa dos ressuscitados.
Finalmente, devemos compreender um terceiro tipo de narrativas de
ressurreição que têm a ver com a autoridade dos próprios
apóstolos. Comecemos por S. Paulo na 1Cor 15, 3-8: "Transmiti-vos,
em primeiro lugar, o que eu próprio recebi: Cristo morreu pelos
nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou
ao terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas e depois
aos Doze. Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos, de uma
só vez, a maior parte dos quais ainda vive, enquanto alguns já
morreram. Depois apareceu a Tiago e, a seguir, a todos os
Apóstolos. Em último lugar, apareceu-me também a mim, como a um
aborto." O estranho desta tomada de posição de S. Paulo consiste
no facto do Apóstolo não nos apresentar uma narrativa de aparição
do Ressuscitado à maneira dos evangelhos, mas apenas enunciar uma
lista de pessoas a quem o Senhor apareceu. Paulo distingue entre
Cefas e os Doze, o que é estranho, e o mesmo entre os "Doze" e os
"Apóstolos". Fala do aparecimento a mais de quinhentos irmãos, dos
quais alguns ainda vivem, o que não condiz com os evangelhos, e,
finalmente, acentua as pessoas de Tiago e dele próprio.
O Apóstolo escreve muito antes dos evangelhos, por volta do ano
54-55, o que nos leva a concluir que, ao princípio, a tradição da
Igreja apenas anunciava as pessoas a quem o Senhor ressuscitado
tinha aparecido, e só depois, mais tarde, é que se foram formando
as narrativas como vêm nos evangelhos, a fim de provar
catequeticamente a tal identidade do Ressuscitado e a missão da
Igreja a partir duma palavra fundamentadora do próprio
Ressuscitado.
Mas a lista de S. Paulo também tem em linha de conta a importância
ou a autoridade dos Apóstolos. Por isso anuncia a primeira
aparição a Cefas e individualiza também a pessoa de Tiago,
precisamente por causa da importância que teve no comando da
igreja primitiva de Jerusalém. Reparemos que em nenhuma narrativa
dos evangelhos se evidencía a pessoa de Tiago que, aliás, não
pertencia aos Doze.
Neste particular, a pessoa de Cefas sobressai em muitas narrati
vas; basta consultar Mc 16, 7: "Ide, pois, e dizei aos seus
discípulos e, Pedro...", Li- 24, 34: "Realmente o Senhor
ressuscitou e apareceu a Simão!"; Jo 20, 2: "[Maria Madalena]
correu e foi ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, o que
Jesus amava, e disse-lhes: 'O Senhor foi levado do túmulo e não
sabemos onde o puseram"'; Jo 21, 7: "Então, o discípulo que Jesus
amava disse a Pedro: 'É o Senhor!' Simão Pedro ao ouvir que era o
Senhor, apertou o saio, porque estava sem mais roupa, e lançou-se
à água"; Jo 21, 15-17: "Depois de terem comido, Jesus perguntou a
Simão Pedro: "Simão, filho de João, tu amas-me mais do que estes?"
Pedro respondeu: "Sim, Senhor, Tu sabes que eu sou deveras teu
amigo." Jesus disse-lhe: "Apascenta os meus cordeiros...". Todos
estes textos nos dão a entender que as aparições do Ressuscitado a
Simão Pedro, de maneira directa ou indirecta, estão relacionadas
com sua autoridade e primazia na Igreja primitiva. Todos sabemos
que o problema da substituição de Jesus como autoridade visível na
comunidade dos crentes foi um problema sério e complicado. Os
próprios crIStãos andavam divididos entre a figura de Pedro, de
Tiago, de Paulo, do discípulo amado e de Apolo. Mas é a figura de
Pedro que acaba por se impor e as aparições do Ressuscitado a
Pedro chancelam esta posição da própria Igreja, que, em Mateus, é
transposta para a vida pública de Jesus (16, 17-19).
É fácil apercebermo-nos de que as narrativas da ressurreição não
obedecem a qualquer tipo de concordismo histórico. Em Mateus,
Jesus aparece apenas uma vez aos Onze no monte da Galileia, em
Lucas aparece também uma só vez, mas, agora, em Jerusalém, e em
Marcos, Jesus não aparece nenhuma vez, já que o evangelho
primitivo de Marcos terminava no cap. 16, 9. Em João, Jesus
aparece duas vezes em Jerusalém e outra vez no lago de Tiberíades.
Em todas estas aparições os conteúdos doutrinais são diferentes
porque têm em vista ora a identidade da pessoa do Ressuscitado,
ora a missão que o Ressuscitado confia aos Onze ou somente a
Pedro, ora a chancela duma autoridade própria, como é o caso de
Pedro, de Tiago e do próprio Paulo na 1Cor 15. Aliás, se Paulo tem
a consciência de ser Apóstolo como os demais por isto mesmo: Jesus
apareceu-lhe (1Cor 9, 1).

121
Por tudo isto, concluímos que a ressurreição de Jesus não obedece
a critérios de verificação "histórica". Não se trata dum
acontecimento histórico que possa ser comprovado por métodos das
ciências históricas. Ninguém viu, fotografou ou filmou o momento
da ressurreição de Jesus. Mas as pessoas a quem Jesus apareceu são
históricas. O Ressuscitado apenas diz: "Sou Eu", mas, mesmo assim,
os Apóstolos ainda duvidam, sinal de que também eles precisaram de
acreditar. Os Apóstolos tiveram uma experiência única: a de que
Jesus estava vivo e que este Vivo lhes falava e que eles lhe
podiam falar. Geralmente as narrativas usam um aoristo passivo:
Jesus deu-se-lhes a aparecer; Jesus fez com que eles o vissem. A
partir daí eles perdem o medo e anunciam a ressurreição por toda a
parte. O espírito da ressurreição entrou neles e tudo vai ser
diferente a partir de então.
A ressurreição de Jesus não tem qualquer paralelo em nenhuma outra
religião, a começar pelo judaísmo. Os judeus só começaram a
acreditar numa ressurreição colectiva, no fim de tudo, ou no juízo
final. Esta ideia apareceu por causa dos mártires judeus no tempo
de Antíoco Epifânio e aparece narrada no primeiro livro dos
Macabeus, no cap. 7, escrito por volta do ano 100 a.C. No tempo de
Jesus, os saduceus ainda não acreditavam nem sequer nesta
ressurreição final, ao contrário dos fariseus. É o que diz Marta a
Jesus acerca do seu irmão Lázaro: "Eu sei que ele há-de
ressuscitar na ressurreição do último dia" (Jo 11, 24). Por isso,
nem os próprios Apóstolos esperavam qualquer ressurreição. Esta é,
pois, a novidade de Cristo e a novidade do Cristianismo de ontem,
de hoje e de sempre.

29. PARUSIA OU SEGUNDA VINDA DE JESUS CRISTO
Vamos acabar o nosso estudo sobre a pessoa de Jesus com a questão
da parusia ou segunda vinda de Jesus Cristo. É um assunto que anda
na boca de milhões de cristãos, sobretudo nestes últimos tempos,
por causa do advento do ano 2000 e do milenarismo a ele vinculado.
A palavra parusia é um termo grego que tem a ver com presença,
aparecimento e vinda. Vem do verbo grego pareimi que significa
estar presente. A doutrina da "parusia" tem, portanto, a ver com a
segunda vinda de Jesus Cristo e faz parte integrante do credo
cristão e de toda a tradição, tanto da Igreja Católica como de
todas as demais confissões cristãs. Dos vinte e sete livros do NT,
esta doutrina, expressa de diversas maneiras e modos, aparece em
vinte e um.
Nas nossas eucaristias proclamamos de acordo com o Credo de
Niceia:
De novo há-de vir em sua glória, para julgar os vivos e os mortos;
e o seu reino não terá fim.
O sacerdote que preside à eucaristia suplica a Deus Pai,
precisamente depois de orar o Pai Nosso:
Livrai-nos de todo o mal, Senhor, e dai ao mundo a paz em nossos
dias, para que, ajudados pela vossa misericórdia, sejamos sempre
livres do pecado e de toda a perturbação, enquanto esperamos a
vinda gloriosa de Jesus Cristo nosso Salvador.

122
Os textos do NT tanto falam de parusia como de dia do Senhor ou de
juízo final. Trata-se da escatologia final e do fim deste mundo.
Ao longo dos dois mil anos da era cristã sempre se acreditou nesta
segunda vinda. Muitos Padres da Igreja deram o seu assentimento a
esta doutrina. Apresentamos as figuras principais: Papias, que
viveu entre 60-130, a carta de Barnabé, escrita entre 96-130,
Ireneu de Lião, que viveu entre 140-202; Justino Mártir, que viveu
entre 110-165; Tertuliano, que viveu entre 160-220, e que
acreditava que a segunda vinda teria lugar muito em breve,
Hipólito, que viveu entre 170-236, e que determinou o fim do
mundo, a partir dos textos bíblicos, para os anos 500. O mesmo
pensou Júlio Africano, que determinou o fim do mundo primeiramente
para os anos 500, e, mais tarde, para os anos 800.
Fora dos Padres da Igreja surgiram algumas figuras ligadas a
movimentos separatistas da própria Igreja como foi o caso dos
gnósticos e dos montanistas. Montano, por volta de 172, apresentou
as suas ideias apocalípticas e foi seguido por muita gente.
Afirmava que a segunda vinda teria lugar na Ásia Menor,
transformada, por isso mesmo, na Nova Jerusalém.
Durante a Idade Média, o pico mais alto desta doutrina aconteceu
com o monge cisterciense Joaquim de Fiore, que viveu entre 1135 -
1202. Diante do estado de pecado da Igreja e do mundo do seu
tempo, repemsou a história em três tempos.
O primeiro foi o do AT, em que Deus se apresentou de maneira
terrível. O segundo foi o tempo desde Jesus até ao séc. XII, isto
é, o tempo de Jesus Cristo e da sua Igreja que, segundo ele, não
se portava espiritualmente de acordo com o Evangelho. O terceiro
seria o tempo futuro, o do Espírito Santo, em que os santos e os
monges haviam de tomar as rédeas do mundo e da sociedade,
transformando-o em tempo de santidade e de Espírito. Era,
portanto, uma espécie de profeta utópico em relação ao futuro.
Esta esperança e novidade numa sociedade mais perfeita e governada
por gente santa e sábia veio, mais tarde, a influenciar muitos
pensadores e movimentos cristãos, sobressaindo os Espirituais
Franciscanos, como também os filósofos Lessing, Schelling, Fichte,
Hegel, Karl Marx, etc. Modernamente, o movimento da chamada New
Age, ou Era do Aquário faz de Joaquim de Fiore um dos pais ou
profetas do seu movimento.
Joaquim de Fiore partiu do evangelho de Mateus que apresenta
42 gerações desde Adão até Jesus, acreditando que o mesmo sistema
se deveria aplicar ao resto da história. Para ele, cada geração
continha uma média de trinta anos; logo, a segunda etapa da
história de 42 gerações terminaria entre 1200 e 1260. Diante duma
cristandade em guerra com o Islão, pensou que a figura do
Anticristo já estava em acção, mas que brevemente seria vencida
pelas forças do Espírito. Disto mesmo falou com Ricardo Coração de
Leão, que, por sua vez, abraçou as mesmas ideias. A era do
Espírito Santo iria chegar brevemente e o mundo seria radicalmente
diferente com uma Igreja completamente purificada e dirigida por
monges e místicos. O que mais sobressai neste homem é a sua visão
de esperança num futuro reino de Deus de acordo com o evangelho e
não com as políticas dos homens. Nem admira que os Espirituais
Franciscanos se revissem nas doutrinas joaquímitas e julgassem ser
eles os senhores espirituais da nova Igreja e do novo mundo. E,
como os Papas os combatiam, viram nesses papas a figura do
Anticristo do Apocalipse, que seria destruído brevemente.
Mais tarde apareceu o grande pregador e professor da Universidade
de Praga, Jan Huss, que viveu entre 1371-1415. Também ele criticou
fortemente o papado, que etiquetava de Anticristo. Jan Huss acabou
por ser queimado como herege. Os seus seguidores, chamados
Taboritas - por causa do monte Tabor que, segundo eles, fora o
lugar onde Jesus teria anunciado a sua segunda vinda -,
profetizaram que o fim do mundo dar-se-ia em Fevereiro de 1420.
Outra figura muito semelhante a Jan Huss foi a do dominicano
Jerónimo Savonarola, que viveu entre 1452-1498. Também ele se
revoltou contra os males e pecados da Igreja e da sociedade do seu
tempo, tornando-se num líder religioso e político na cidade de
Florença, que queria transformar na Nova Jerusalém do Apocalipse,
como mais tarde acontece com Calvino em relação a Zurique. Para
ele, Carlos VIII de França seria o último imperador. Acabou na
fogueira em 1498.

123
Com a reforma protestante, as ideias obsessivas sobre a segunda
vinda de Cristo surgiram dentro do próprio protestantismo em
grupos radicais, a começar pelos Anabaptistas, mais tarde por
Thomas Müntzer e por Melchior Hoftnan. Este último apontou várias
datas para a parusia do Senhor e a cidade de Estrasburgo como a
nova Jerusalém, que deveria acontecer em 1533. Veio a morrer
precisamente numa prisão em Estrasburgo. Um seu admirador, Jan
Matthys, passou a nova Jerusalém para Münster. Tudo terminou num
grande banho de sangue entre os zelotas populares defensores da
parusia e os governantes protestantes luteranos e católicos
defensores da paz e da ordem. Entretanto, os reformadores
protestantes apontavam a instituição da Igreja Católica, sobretudo
a figura dos papas, como sendo a personificação do Anticristo.
Neste sentido divergiam profundamente dos católicos que também
atacavam o papado e o classificavam de Anticristo, não por ser uma
instituição anticristã, mas por causa da política mundana deste ou
daquele@Papa. A finalidade não era o fim do papado, mas a sua
purificação. É interessante, neste aspecto, ver a posição de
Lutero que considerava os Turcos como a personificação política
dos inimigos de Deus, ligados ao mitológico Gog de Ezequiel (Ez
38-39), mas só o papado como o Anticristo do Apocalipse.
A partir do séc. XVIII os Estados Unidos da América do Norte
tornaram-se o centro de todos os movimentos apocalípticos e
parusíacos.
Ficaram célebres os Shakers com a sua dinamizadora Ann Lee Stanley
(1736-1784), que se apresentou como a incarnação feminina de Deus,
de tal modo que a segunda vinda de Cristo teria começado com ela e
seu respectivo movimento.
Outro movimento da máxima importância para o nosso estudo foi o de
Joseph Smith (1805-1844), mais conhecido pela Igreja de Jesus
Cristo dos Santos dos últimos Dias ou pelos Mormons. É um
movimento que ganha todos os dias novos adeptos, de tal modo que
os analistas religiosos já consideram que este movimento se
tornará, possivelmente, no mais numeroso e poderoso entre os Novos
Movimentos Religiosos nascidos nos Estados Unidos no séc. XIX.
Defendem que Jesus Cristo, quando ressuscitou, apareceu em
primeiro lugar aos americanos, constituídos pelas tribos judaicas
que emigraram para a América por ocasião do exilio da Babílónia.
Destas tribos judaicas é que teriam nascido os índios americanos.
O anjo Moroni apareceu ao jovem Joseph Smith, revelando-lhe que as
Sagradas Escrituras finais se encontravam escondidas em placas de
ouro e que seria ele o último profeta de Deus a receber essas
Escrituras e a divulgar a última mensagem divina aos homens. Foi
assim que nasceu o livro de Mormon. A América era agora a Nova
Jerusalém, possuidora das últimas promessas de Deus através da
última e definitiva parusia do Senhor Jesus Cristo. Mas este pós-
milenarismo não substitui o milenarismo parusíaco da última vinda
do Senhor através duma acção cósmica universal, seguindo-se,
depois, o juízo final. Então, os Mormons, descendentes da tribo de
Efraim, juntar-se-ão aos da tribo de Judá e às outras dez tribos
perdidas. São eles os únicos Santos dos últimos Dias que formarão
o milénio final de benção e glória no novo Sião restaurado.
Importante para o nosso estudo é também o movimento fundado por
William Miller que originou os Adventistas do Sétimo Dia. O
próprio título do Movimento já indica tudo: trata-se de cristãos
que esperam o Advento do Senhor. William Miller foi primeiramente
baptista, depois deísta e, finalmente, regressou aos baptistas com
o desejo decidido de encontrar as datas precisas do Advento do
Senhor. Durante muitos anos desenvolveu o maior movimento
parusíaco dos Estados Unidos. Pegando no texto de Dn 8, 14, que
responde à pergunta de um ser "celestial" sobre o tempo do
"holocausto perpétuo, da abominação devastadora, do abandono do
santuário e do exército dos fiéis calcado aos pés" (v.13) com a
seguinte resposta de um outro ser celestial: "Dois mil e trezentos
dias; depois disso o santuário será restaurado", William Miller
vai concluir, através de cálculos estranhos arrancados a outros
textos da Bíblia, que o Advento final do Senhor iria ter lugar a
22 de Outubro de 1844, depois de ter afirmado que seria a 21 de
Março de
1843. As datas passaram e o Advento do Senhor não aconteceu. Mesmo
assim, o movimento Adventista refez-se deste "grande fracasso"
(Great

124
Disappointment), interpretando a "vinda do Senhor" não como uma
vinda histórica e física mas como uma vinda espiritual ao
Santuário celestial definitivo para, daí, preparar, finalmente, a
sua aparição última, que os Adventistas actuais afirmam estar para
muito breve.
Na sequência da importância dos Novos Movimentos Cristãos com
incidências parusíacas sobressaem também os Testemunhas de Jeová.
Embora se proclamem cristãos, não acreditam na divindade de Jesus
Cristo e não aceitam, logicamente, a verdade cristã da Santíssima
Trindade. Partem do princípio que este mundo está nas mãos de
Satanás enquanto não se der a parusia do Senhor. Assim sendo, não
aceitam nem as monarquias, nem as democracias da nossa sociedade.
Todas as instituições humanas, sejam políticas ou religiosas,
culturais ou de desporto, estão dominadas pela força do Mal. Só
com a segunda vinda de Cristo é que o Reino de Deus terá lugar.
Por isso já estabeleceram várias datas para tal acontecimento,
sobretudo as datas de 1874, 1878, 1881, 1910, 1914, 1918, 1925,
1975, 1984. Uma vez que todas elas falharam, os seus responsáveis
procuraram acalmar os fiéis com a explicação da parusia invisível:
Jesus veio realmente, mas de maneira invisível. Outras vezes
pediram desculpa, afirmando que se tratara dum erro de cálculo.
Hoje em dia continuam a afirmar que a parusia está para muito
breve se tivermos em conta os dados bíblicos de Daniel e Ezequiel,
Marcos 13, Mateus 24, as duas primeiras cartas de S. João sobre o
Anticristo e o livro do Apocalipse de S. João com os sinais de
sempre: guerras, tremores de terra, energia nuclear, desfasamento
das famílias, aparecimento de falsos profetas e do Anticristo.
Poderíamos continuar com a enumeração de dezenas de Novos
Movimentos Cristãos da linha apocalíptica. Hoje em dia, mormente
nos Estados Unidos, um terço da população de matriz cristã
acredita na vinda próxima de Jesus Cristo. Em 1983 a célebre
agência Gallup levou a efeito uma sondagem sobre este assunto e
concluiu que 62 por cento dos americanos acreditavam que o dia do
Senhor aconteceria nesta geração. Em 1994, a U.S.News and World
Report, após uma sondagem, concluiu que 60 por cento dos
americanos acreditava que o fim do mundo estava para breve. E é
por causa desta cultura apocalíptica que se deram tragédias
colectivas e até suicídios colectivos. Em 1992 cerca de duzentas
mil pessoas da seita coreana Dami, que esperava a vinda de Cristo
para os dias 20 ou 28 de Outubro, sofreram um desaire total
porque, entretanto, tinham-se desfeito dos seus próprios bens,
incluindo empregos e casas. Em Outubro de 1994 quarenta e oito
membros da seita apocalíptica do Templo Solar perpetraram um
suicídio colectivo na Suiça. A seita da Verdade Suprema do Japão,
por causa da fé no fim do mundo, e para que as pessoas não
sofressem semelhante catástrofe, colocou gaz letal em Março de
1995 nalgumas carruagens do metropolitano de Tóquio. O profeta
apocalíptico Jim Jones realizou um suicídio colectivo com mais de
novecentas pessoas, em Jonestown, Guyana, em Novembro de 1978,
como meio de salvar os seus fiéis do dia do fim do mundo. David
Koresh vivia no seu rancho "apocalíptico" de Waco com 86 pessoas,
incluindo dezassete crianças, e morreram todos através do fogo em
Abril de 1993. O seu nome era Vernon Jowell, mas mudou-o para
David Koresh com o fim de se autenticar como o novo rei David e o
novo libertador da humanidade, na esteira do rei Ciro da Pérsia,
que libertou os judeus no ano de 539. O nome Koresh é uma
metonímia de Ciro.
A nível de literatura, qualquer pessoa que pesquise nas grandes
livrarias dos Estados Unidos e da Europa vai encontrar dezenas de
obras sobre este assunto. Sobressai a obra de Hal Lindsey, Late
Great Planet Earth, que vendeu mais de 25 milhões de exemplares, e
foi o maior best-seller literário de 1970. A Hal Lindsey juntam-se
os grandes teleevangelistas com dezenas de milhões de ouvintes,
entre os quais sobressaem Jerry Falwell, Pat Robertson, Oral
Roberts, Rex Umbard, Jim Bakker e muitos outros. Em 1998 dez dos
principais evangelistas americanos publicaram um livro sobre As
razões porque Jesus está mesmo a chegar. Entre eles sobressai o
célebre pregador Billy Graham, conselheiro de vários Presidentes
dos Estados Unidos, sobretudo de Ronald Reagan, que também
acreditava que o mundo estava próximo do seu fim. As razões
referem sempre as mesmas profecias de Daniel e Ezequiel, Marcos 13
e Mateus 24, alguns textos de Paulo e o livro do Apocalipse. Para
eles, estes textos bíblicos não devem ser interpretados de maneira
figurativa, mas histórica. E passando revista à história dos

125
nossos dias, cheios de guerras e tremores de terra, de fome e
desespero social, e à política da independência de Israel e do mal
estar político e social um pouco por toda a parte, concluem que
aqueles textos bíblicos têm que ser interpretados profeticamente e
que, como tal, estão a concretizar-se nos dias de hoje. O mesmo se
diga a nível de cinema, como é o caso dos filmes: The Rapture (O
arrebatamento aos céus), The Road to Armageddon (A estrada para o
Armagedon), Image of the Beast (A imagem da besta), A Thief in the
Night (Um ladrão na noite).
Como explicar toda esta fé, para não dizer esta febre e, por
vezes, uma certa paranóia à volta do Dia do Senhor, da parusia, do
fim do mundo e juízo final? Será que os textos bíblicos são assim
tão precisos e concretos que respaldem esta doutrina?
Como vimos, sem dúvida que a doutrina sobre a segunda vinda de
Cristo faz parte integrante da tradição cristã desde as suas
origens. Dos vinte e sete livros do Novo Testamento, vinte e um
referem esta doutrina. O termo parusia aparece 24 vezes no NT, mas
com excepção do capítulo 24 de Mateus, o termo encontra-se apenas
nas cartas: onze vezes nas cartas paulinas autênticas, três vezes
na segunda aos Tessalonicenses e seis nas cartas Católicas. Destas
24 vezes, em 16 é, realmente, um termo técnico para indicar a
vinda de Cristo no fim dos tempos. A questão consiste em saber
interpretar os textos. Será que os textos poderão ter uma outra
significação? E não será que o exemplo dos apocalípticos dos
tempos passados, desde a Patrística até aos nossos dias, terá
alguma coisa a dizer-nos? Se eles interpretaram os mesmos textos
bíblicos como profecias que se estavam a realizar no campo
político e religioso do seu tempo, e se todos eles falharam ao
longo destes vinte séculos, não será tudo isto um sinal de que os
profetas apocalípticos do presente estão a cometer o mesmo erro?
Mas não pensemos que esta realidade é apenas uma ideia peregrina
de grupos evangélicos e de americanos que tudo vêem e perscrutam à
luz da Biblia, interpretada de maneira literalista e
fundamentalista. Esta doutrina também anda na boca e no coração de
milhares de católicos agarrados a visões e aparições de Nossa
Senhora e a videntes apocalípticos. Refiro apenas o caso do
célebre Padre Stefano Gobbi, fundador dos Cenáculos, que dinamiza
milhares de sacerdotes e de leigos católicos. Segundo ele, Nossa
Senhora dá-lhe a graça de audições interiores sobre os males do
mundo e da Igreja. Numa dessas audições, a 18 de Setembro de 1988,
em Lurdes, numa locução interior, Nossa Senhora ter-lhe-á dito:
"Estes próximos dez anos vão ser muito importantes. Vão ser dez
anos decisivos. Peço-te que os passes comigo porque vais entrar no
período final do segundo Advento, que culminará com o triunfo do
meu Imaculado Coração na vinda gloriosa do meu Filho Jesus...
Neste período de dez anos o mistério da iniquidade, preparado pela
apostasia cada vez mais alastrada, tornar-se-á manifesto. Neste
período de dez anos, todos os segredos que eu revelei a alguns dos
meus filhos hão-de acontecer e todos os acontecimentos que te
foram preditos por mim vão ter lugar. "
Mais tarde, em Dezembro de 1994, no Santuário de Nossa Senhora de
Guadalupe, no México, Nossa Senhora ter-lhe-á revelado que o
regresso final do seu Filho aconteceria no ano jubilar de 2000
(Movimento Mariano dos Sacerdotes, número 532). Mas não estarão
semelhantes "revelações" em contradição com a Bíblia, além de
terem falhado na perspectiva histórica?
Comecemos por reparar que os textos mais recorrentes são os dos
livros de Ezequiel, Daniel, Marcos 13 e par. Mateus 24 e Lucas 21,
1ª e 2ª carta aos Tessalonicenses, 1ª e 2ª carta de João e o
Apocalipse. No seu conjunto trata-se de literatura apocalíptica, e
já sabemos que este

126
género literário tem a ver com uma literatura figurativa e
imagética, em que as imagens são evocativas de realidades
escatológicas sobre as últimas realidades. Mas isto não significa
que as últimas realidades se devam interpretar em perspectiva de
historicidade física e cronológica como fizeram todos os
movimentos e personagens que examinámos, desde os Padres da Igreja
até aos nossos dias.
É claro que a doutrina sobre a parusia já aparece nalguns textos
paulinos, os primeiros a serem escritos na cronologia do Novo
Testamento. Na primeira carta aos Tessalonicenses, escrita por
volta do ano 50, escreve o Apóstolo:
4, 15: Eis o que vos dizemos, baseando-nos numa palavra do Senhor:
nós, os vivos, os que ficarmos para a vinda do Senhor, não
precederemos os que faleceram; 16 pois o próprio Senhor, à ordem
dada, à voz do arcanjo e ao som da trombeta de Deus, descerá do
céu, e os mortos em Cristo ressurgirão primeiro. 17. Em seguida
nós, os vivos, os que ficamos, seremos arrebatados juntamente com
eles sobre as nuvens, para irmos ao encontro do Senhor nos ares, e
assim estaremos sempre com o Senhor.
A questão central do texto, atendendo ao seu contexto, não é a da
parusia do Senhor, mas a da ressurreição. Os cristãos de
Tessalónica andavam muito preocupados com o problema de quem
estaria nas melhores condições de salvação final no dia da
ressurreição final: os que ainda viviam ou os que já tinham
morrido? Paulo escreve: "Irmãos, não queremos deixar-vos na
ignorância a respeito dos que faleceram, para não andardes tristes
como os outros, que não têm esperança. De facto, se acreditamos
que Jesus morreu e ressuscitou, assim também Deus reunirá com
Jesus os que em Jesus adormeceram" (4, 13-14). Só depois é que
fala da vinda do Senhor, baseando-se numa palavra do Senhor. A que
palavra é que o Apóstolo se refere? Não sabemos. Trata-se duma
iluminação interior? Trata-se, pura e simplesmente, da doutrina
tradicional do Antigo Testamento sobre o Dia Javé, agora revista
pela fé cristã, de tal modo que o "dia de Javé" passa a ser o "dia
do Senhor Jesus"? Não devemos esquecer que a fé crístã sobre Jesus
como O SENHOR é que revolucionou todo o esquema teológico do AT.
Semelhante atitude só se compreende a partir da ressurreição de
Jesus. O centro é sempre a ressurreição e não o dia do Senhor.
Pois bem, nesse dia não haverá diferença para vivos e para mortos.
O próprio Paulo pensa estar vivo nesse dia final: nós, os vivos,
os que ficarmos para a vinda do Senhor... Nem admira que Paulo
utilize as imagens apocalípticas: voz do arcanjo ... som da
trombeta ... descida do céu. Paulo morreu e o dia do Senhor não se
efectuou. Será que Paulo se enganou?
A mesma ideia aparece na primeira carta aos Coríntios:
15, 22. E, como todos morremos em Adão, assim em Cristo todos
voltarão a receber a vida. 23 Mas cada um na sua própria ordem:
primeiro, Cristo; depois@, aqueles que pertencem a Cristo, por
ocasião da sua vinda (en tè parousia autou).
Todo o cap. 15 da primeira carta aos Coríntios tem a ver com a
questão da ressurreição e do modo da mesma ressurreição. Como
havia dúvidas nos cristãos de Corinto sobre a verdade da
ressurreição (v.12b: "como é que alguns de entre vós dizem que não
há ressurreição dos mortos?"), Paulo disserta "per longum et
latum" sobre a verdade da mesma ressurreição. Desta forma, a
alusão à segunda vinda do Senhor aparece como mais uma prova da
ressurreição do Senhor e da nossa ressurreição. Mas não há
uniformidade entre a ressurreição de Jesus e a nossa própria
ressurreição: primeiro, Cristo, e, só depois, aqueles que
pertencem a Cristo. Paulo distingue entre a primeira ressurreição
de Cristo e a segunda ressurreição, que ele classifica de vinda
(parusia). Mas o pensamento de Paulo é confuso porque, um pouco
mais adiante, ele apresenta o baptismo pelos mortos (v.29) também
como prova da ressurreição dos mortos. No entanto, semelhante
baptismo - que nós não sabemos lá muito bem o que significa - só
se compreende se os mortos já ressuscitam desde agora. Uma vez
mais, o contexto do texto apresenta a ideia de que Paulo espera a
ressurreição final para muito breve.

127
Na segunda carta aos Tessalonicenses - que a maioria dos exegetas
afirma ser um escrito pseudonímico - o autor apresenta novamente a
vinda do Senhor por causa das falsas ideias sobre o assunto que
corriam na comunidade. E estas falsas ideias tinham a ver com
invenções de alguns cristãos sobre alegadas cartas de Paulo: 2, 1.
Acerca da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo e da nossa reunião
junto dele, pedimo-vos, irmãos, 2 que não percais tão depressa a
presença de espirito, nem vos aterrorizeis com uma revelação
profética, uma palavra ou uma carta atribuída a nós, como se o dia
do Senhor estivesse iminente. 3 Ninguém, de modo algum, vos
engane. Na comunidade falava-se, portanto, de "revelações
proféticas", de "palavras" e de "cartas" atribuídas a Paulo sobre
a "vinda do Senhor", mas tudo isso, segundo o nosso autor, era
falso. Tais boatos "aterrorizavam" as pessoas. Por isso, o autor
da carta pede aos crentes que tenham calma e que não façam caso de
tais falsos boatos. E para que os cristãos fiquem mais calmos, o
autor vai-lhes dizer que o dia do Senhor só virá depois de se
manifestarem as seguintes personagens: o homem da iniquidade, o
filho da perdição, o adversário, aquele que se ergue contra tudo o
que se chama Deus ou é objecto de culto, até ao ponto de ele
próprio se sentar no templo de Deus e de se ostentar a si mesmo
como Deus (2, 3-4). Quem é esta personagem? É uma só ou são
várias? Os apocalípticos, ao longo destes dois mil anos, têm
procurado descobri-la em instituições políticas, em personagens
religiosas ou instituições religiosas, mas tudo em vão. O autor da
carta afirma no v.6: "E agora sabeis o que o detém para que se
manifeste no momento que lhe toca". Quem é esta personagem ou
instituição que detém o tal homem da iniquidade, filho da perdição
e adversário? Também não sabemos. Mas o certo é que, segundo o
texto, tal figura já existia naquele tempo. A questão do tempo
fica ainda mais precisa no versículo seguinte: "Com efeito, o
mistério da iniquidade já está em acção; basta que seja afastado
aquele que agora o detém... ". Andar hoje em dia à procura de
identificar estas personagens em figuras políticas ou religiosas
do nosso tempo é correr contra o tempo...
O mesmo assunto é descrito na 2Pd 3, 3-13. Os exegetas concluem
que esta carta deve ser o último escrito do Novo Testamento.
Trata-se - e uma vez mais - dum escrito pseudonímico.
3, 3. Antes de mais, ficai a saber que, nos últimos dias, hão-de
vir uns impostores trocistas, que viverão segundo as suas más
paixões e, troçando, 4 vos perguntarão: 'Em que fica a promessa da
sua vinda? Desde que os pais morreram, tudo continua na mesma,
como desde o princípio do mundo!' ... 8 Mas há uma coisa,
caríssimos, que não deveis esquecer: um dia para o Senhor é como
mil anos, e mil anos, como um só dia. 9 Não é que o Senhor tarde
em cumprir a sua promessa, como alguns pensam, mas simplesmente
usa de paciência para convosco, pois não quer que ninguém pereça,
mas que todos se convertam.
Já passou a primeira geração e a vinda do Senhor não aconteceu. E,
se assim é, os cristãos andavam a ser enganados. Se Jesus era o
Senhor e o Messias devia mudar a face da terra conforme vem nas
Escrituras Hebraicas (Is 11, 1-9 e passim), mas a verdade é que
tudo continua na mesma; logo, a fé cristã e messiânica no Senhor,
que já devia ter vindo e mudado a face da terra, não passa duma
farsa. O autor da carta escreve como um pastor que deve conservar
a fé dos cristãos. A única resposta que encontra para acalmar as
hostes desgarradas é a do tempo de Deus: o tempo de Deus não é
como o nosso tempo pois um dia para o Senhor é como mil anos. Os
apocalípticos de todos os tempos interpretam de maneira literal
estes mil anos e procuram encontrar o fim do mundo e o dia do
Senhor a partir de falsas cronologias desde Adão até hoje, a
começar pelo erro de não aceitarem o evolucionismo científico.
A febre parusíaca naquelas primeiras comunidades aparece
igualmente nos Actos 1, 6-8:
6. Estavam todos reunidos, quando lhe perguntaram: "Senhor, é
agora que vais restaurar o Reino de Israel?' 7 Respondeu-lhes:
`Não vos compete saber os tempos nem os momentos

128
que o Pai fixou com a sua autoridade. 8 Mas ides receber uma
força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas
testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos
confins do mundo.
Quando Lucas escreve os Actos dos Apóstolos, a febre parusíaca
estava em maré alta. E como não concordava com semelhante doutrina
desfaz a mesma doutrina substituindo-a pela acção do Espírito
Santo. Segundo ele, não devemos esperar por uma nova vinda ("é
agora que vais restaurar o Reino de Israel?") mas viver da
Ressurreição -Exaltação do Senhor e do seu Espírito. Jesus veio
uma só vez, deixou-nos o seu Espírito e, agora, entregou-nos a
missão de o anunciar ao mundo inteiro. Lucas substítui a febre
parusíaca pela verdade do Pentecostes. A Igreja é a Igreja do
Pentecostes e não a Igreja que espera pela parusia e pelo Reino de
Deus.
O livro do Apocalipse é o último livro do Novo Testamento, um dos
mais usados e manipulados pelos adeptos da "parusia" iminente do
Senhor. Sem dúvida que o autor do Apocalipse acredita nesta vinda
para breve. O livro foi escrito num período de grandes tribulações
para a Igreja, possivelmente no tempo do imperador Domiciano (81-
96), que desencadeou uma forte perseguição aos cristãos da Ásia
Menor. O autor usa uma linguagem simbólica contra Roma, contra o
império e contra a religião imperial. As imagens da besta (c.13),
da prostituta (c.17) e da Babilónia (c.18) só podem significar
Roma e o seu império, embora muitos evangélicos de ontem e de
hoje, como também católicos de outras eras, como vimos, tenham
visto nestas figuras pessoas e instituições políticas e,
sobretudo, religiosas, especialmente o papado.
O que interessa para o nosso estudo é vermos que o autor espera a
segunda vinda de Cristo para o seu tempo ou para tempos muito
próximos. Se a besta do c. 13 e a grande prostituta do c. 17 só
podem significar Roma e o seu império, então, o autor do
Apocalipse tem por fim infundir esperança e confiança aos cristãos
perseguidos do seu tempo, afirmando-lhes que a perseguição é
passageira, pois só o Senhor é eterno e vencedor. Se ele se
referisse a um século, dez séculos ou vinte séculos depois, que
confiança e esperança podia dar aos seus leitores? Tanto os
profetas do AT como os do NT tinham sempre em vista as comunidades
e os leitores do seu tempo. A partir da fé e da esperança destas
comunidades é que nós, os cristãos de hoje, e os de sempre, nos
devemos reler à luz daqueles tempos e daqueles testemunhos.
A célebre batalha do Armaguedon descrita no livro do Apocalipse
16, 16 é uma metonímia do Armaguedon do AT. Em hebraico, a palavra
Armaguedon significa "montanha de Meguido", uma cidade da planície
de Esdrelon ligada à derrota do santo rei Josias (2Rs 23, 29-, 2Cr
35, 22-24). A partir daí, o lugar de Armaguedon recebe um
significado simbólico (cf. Zc 12, 11) para indicar a batalha final
entre Deus e os seus inimigos. O autor refere a derrocada da
grande cidade (16, 11 que só pode significar Roma, com imagens
apocalípticas, estabelecendo o paralelo entre esta grande cidade e
a cidade da Babilónia (v.1 "Deus recordou-se da grande Babilónia,
a fim de lhe dar a taça do seu vinho, isto é, do furor da sua
ira"). Se assim é, falar da batalha do Armaguedon como se fosse
acontecer nos nossos dias ou para tempos muito em breve, por causa
da energia nuclear ou por outra causa qualquer, é fugir à intenção
do texto.
Esta vinda iminente do Senhor transparece claramente nas frases do
Apocalipse: " ... as coisas que brevemente devem acontecer" (1, 1)
porque o tempo está próximo" (1, 3) ..."Eis que venho em breve" (,
12)... "Sim. Virei brevemente!" (22, 20)..."pois o tempo está
próximo (22,10).
Todos os textos do NT que vimos até agora são textos de Paulo, dos
Actos dos Apóstolos, do Apocalipse e de outras cartas do NT.
Excepto o texto dos Ac 1, 6-8, que vai contra a maré parusíaca,
todos demais exprimem essa fé e doutrina, embora os textos nem
sempre sejam claros, e alguns até combatam a tal febre parusíaca
como é o caso da 2Pd 3, 3-13 e 2Ts 2, 1-10.

129
Temos que regressar agora à pessoa de Jesus e dos Evangelhos e
perguntar se a doutrina da segunda vinda do Senhor j'á arranca do
próprio Jesus da história ou se é um dado doutrinal que tenha
nascido e se tenha desenvolvido a partir das próprias comunidades.
A pergunta não é nenhuma heresia uma vez que, tanto no AT como no
NT, há muita doutrina de fé judaica que os judeus colocam na boca
de Deus e Deus na boca de Moisés. O mesmo acontece ou pode
acontecer com o NT em relação à pessoa de Jesus. Para
compreendermos tudo isto temos que rever quanto dissemos sobre a
questão sinóptica e as três etapas da composição dos evangelhos
sinópticos: o tempo do Jesus histórico, o tempo da tradição e o da
redacção.
Os evangelhos sinópticos - ao contrário do quarto evangelho -
apresentam-nos o próprio Jesus a falar não propriamente da sua
segunda vinda, mas da vinda do Reino e do Fílho do Homem.
Há, assim, duas categorias de logia ou palavras de Jesus sobre o
assunto. Umas vezes refere a vinda iminente do Reino de Deus e
outras a vinda iminente do Filho do Homem. Sobre o Reino de Deus,
Jesus afirma em Mc 9, 1: "Em verdade vos digo que alguns dos aqui
presentes não experimentarão a morte sem terem visto o Reino de
Deus chegar em todo o seu esplendor". Se tomarmos este texto ao pé
da letra - e não há motivo para não ser assim - Jesus afirma que o
Reino de Deus, por ele tantas vezes proclamado, e que constitui,
como vimos, o cerne de toda a sua mensagem, será manifesto em todo
o seu esplendor na geração dos seus ouvintes. Mais ainda, afirma
que alguns dos presentes o hão-de ver.
O texto e o seu conteúdo tem a ver com o que Jesus afirmara um
pouco antes, em Mc 8, 38: "Pois quem se envergonhar de mim e das
minhas palavras entre esta geração adúltera e pecadora, também o
Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu
Pai, com os santos anjos". Como fica claro, o evangelista
apresenta num versículo (8, 28) a vinda do Filho do Homem no meio
daquela geração adúltera e pecadora, e no versículo seguinte (9,
1) a vinda do Reino de Deus. Logicamente, esta repetição de
figuras distintas e de vindas iguais sobrecarregam o texto e a sua
doutrina. Sem dúvida que anda aqui a mão pastoral do redactor
final. Esta conclusão fica mais clara se tivermos na devida conta
todo o contexto pastoral dos versículos 34-38. Basta reparar no v.
35: "Na verdade, quem quiser salvar a sua vida, há-de perdê-la;
mas, quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, há-de
salvá-la."
Já sabemos que o Jesus da história sempre falou do Reino de Deus e
não do Evangelho. Com o mistério pascal é que Paulo e os demais
cristãos deixam de falar de "Reino de Deus" e começam a falar de
"Evangelho" (Mc 1, 1; 10, 29; 13, 9-11). No nosso texto concreto,
o evangelista só se pode referir a um tempo eclesial em que os
cristãos sofriam perseguição por causa da sua fé ou do evangelho
cristão. Assim sendo, as palavras de Jesus sobre a vinda do
"Reino" e sobre a vinda do "Filho do Homem" têm a ver com os
tempos da própria Igreja. Esta mistura entre o Jesus como Filho do
Homem e a Igreja é uma constante ao longo dos evangelhos, e nem
sempre é fácil distinguir o que é do Jesus da história e o que é
do Jesus da Igreja porque tudo nos Evangelhos é de Jesus e é da
Igreja.(1)
(1) O célebre exegeta católico Simon Légasse, no seu comentário em
dois volumes ao Evangelho de Marcos: LÉvangile de Marc, T.11,
Paris, 1997, p. 513, escreve sobre o nosso v. 35: "Mourir pour le
Christ, c'est aussi mourir "à cause de l'Évangile", puisque ayant
quitté ce monde, le Christ est communiqué dans ce monde par le
message chrétien que répandent apôtres et missionnaires. On
traduirait tout aussi bien : "à cause de lévangélization" qui
proclame le Christ, sa personne et son oeuvre de salut." E um
pouco mais adiante sobre o v.38: "Le Christ est ici inséparable de
ses "paroles", addition opportune comme celle de l'Évangile" au
verst 35, du moment qu'à l'heure oú Marc écrit, Jésus est
désormais soustrait à Ia rencontre directe des siens et communique
avee eux para une parole: celle qui se transmet dans et par les
Églises." E acerca de Mc 9, 1 escreve o nosso autor na p. 518:
"Ces remarques portent à croire qu'une telle promesse, plutôt que
d'avoir été formulée par Jésus lui-même, est l'oeuvre de quelque
prophète chrétien s'adressant aux premières communautés
palestiniennes [ ... ] et visant à les réconforter, alors que
leurs membres s'inquiétaient de voir les choses se dérouler comme
avant et de constater que le Royaume de Dieu prêché par Jésus se
faisait attendre." É hoje ponto assente na exegese moderna que os
profetas cristãos tiveram um grande papel na elaboração da
tradição evangélica. Cf. M.E.Boring, Sayings (jf the Risen,lesus:
Christian Prophecy in the Synoptic Tradition, Cambridge 1982.
Tradução das partes da nota em francês, por Vânia Sacramento -
luso-francesa- estudante de medicina em Lisboa: Morrer por Cristo
também é morrer pelo Evangelho, uma vez que, tendo deixado este
mundo, Cristo é comunicado nele pela mensagem cristã que os
apóstolos e missionários propagam. Poder-se-ia traduzir também
pela "causa da evangelização" que proclama Cristo, a sua pessoa e
a sua obra de salvação. (...) Cristo é aqui inseparável das suas
"palavras" adição oportuna como a do Evangelho ao V. 35 do momento
e da hora em que Marcos escreveu, Jesus é agora submetido ao
encontro directo dos seus e comunica com eles por uma palavra:
essa que transmite nas e para as Igrejas (...) Estes comentários
levam a crer que uma tal promessa, em vez de ser formulada pelo
próprio Jesus, é obra de algum profeta cristão dirigindo-se às
primeiras comunidades palestinianas [...] visando reconfortá-las
enquanto os seus membros se preocupavam, por ver as coisas
acontecer como antes e constatar que o Reino de Deus pregado por
Jesus se fazia esperar (...).

130
A mesma doutrina aparece no paralelo de Mt 16, 27-28: Porque o
Filho do Homem há-de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos,
e então retribuirá a cada um conforme o seu procedimento. Em
verdade vos digo: alguns dos que estão aqui presentes não hão-de
experimentar a morte, antes de terem visto chegar o Filho do Homem
com o seu Reino.
A nota redaccional de Mateus está bem clara na afirmação sobre a
retribuição a cada um conforme o seu procedimento. Mateus é o
evangelista que faz sobressair a salvação através das obras (cf.
25, 14-46 e ter em consideração o contraste entre a parábola de
Mateus e os paralelos de Lucas e Marcos na parábola da rede em Mt
13, 47-50, na explicação da parábola do trigo e do joio em Mt 13,
36-43, que é exclusiva de Mateus, na exposição da parábola do
grande banquete em Mt 22, 1-14, com o final redaccional de Mt 22,
11-14). O Jesus de Mateus não é o Jesus da gratuidade, mas o Jesus
duma Igreja que necessita de ter uma Lei e viver segundo essa
mesma Lei. E é assim que se explica a obrigação inadiável da
missão a todas as cidades de Israel antes que chegue o Filho do
Homem.
A vinda inesperada do Filho do Homem aparece igualmente em Mt 24,
27 e par. Lc 17, 23-24 (fonte Q) e em Mt 24, 29-31 e par. Mc 13,
24-27 e Lc 21, 25-28. Em todos estes textos, ao contrário de Paulo
e demais textos anteriormente examinados, não se trata da vinda do
Senhor ou do dia do Senhor, mas da vinda do Reino de Deus e da
vinda do Filho do Homem. Depois da sua morte, os cristãos
transferiram a "vinda do Reino de Deus" e do "Filho do Homem" para
a vinda do seu Senhor. Enquanto que Jesus estabelece o Reino de
Deus, a Igreja estabelece a soberania do próprio Jesus
ressuscitado e exaltado.
Em conclusão, a doutrina cristã sobre a segunda vinda do Senhor
das comunidades primitivas sobrepõe-se à doutrina de Jesus sobre a
vinda do Reino e do Filho do Homem. Por isso perguntamos: a
escatologia apocalíptica da segunda vinda do Senhor Jesus não é um
fruto amadurecido das igrejas cristãs primitivas na linha da fé
cristã na ressurreição messiânica do Senhor? O mal estar das
comunidades e o mal estar do mundo de então exigia esta segunda
vinda para repor, finalmente, a ordem e a paz definitivas de Deus,
castigando os maus e recompensando os fiéis com um reinado
definitivo de paz e amor (Ap 20).
Em Mc 13, 24-27, a vinda do Filho do Homem é assim descrita:
24 Mas naqueles dias, depois daquela aflição, o Sol vai escurecer-
se e a lua não dará a sua claridade, 25 as estrelas cairão do céu
e as forças que estão no céu serão abaladas. 26 Então, verão o
filho do Homem vir sobre as nuvens com grande poder e glória. 27
Ele enviará os seus anjos e reunirá os seus eleitos dos quatro
ventos, da extremidade da terra à extremidade do céu.
O cap. 13 de Marcos, juntamente com os paralelos de Mt 24 e Lc 21,
constituem os três apocalipses dos sinópticos. Trata-se de
capítulos muito complexos precisamente por causa da complexidade
dos conteúdos. A sua elaboração depende profundamente dos dois
últimos estádios da formação sinóptica: o estádio da tradição e o
da redacção.
A elaboração destes textos tem muito a ver com o género literário
midráshico que já encontrámos na análise que fizemos aos
evangelhos da infância. As imagens figurativas que aparecem nestes
textos são a reprodução de muitos textos do AT. No nosso texto
concreto, as imagens do "sol que se escurece" e da "lua que não dá
a sua claridade" dependem de Is 13, 10, segundo a tradução grega
dos LXX, e a "queda das estrelas do céu" aparece da mesma maneira
em Is 34, 4. Mas, enquanto no AT é o próprio Deus que intervém com
o seu "Dia" de juízo final, agora, no NT, Deus intervém através do
Filho do Homem. Em Dn 7, 13, é o vidente que contempla a vinda do
Filho do Homem, mas em Mc 13, 26, o verbo aparece no plural:
verão. Trata-se, pois, de muita gente. Em Daniel o Filho do Homem
tem a ver com os santos de Deus, mas em Marcos e paralelos trata-
se da pessoa de Jesus Cristo que dispõe dos seus anjos para reunir
os seus eleitos dos quatro ventos. Estes

131
"eleitos" não são os judeus, mas, sim, os cristãos espalhados pelo
império romano no tempo da composição de Marcos.
O que mais estranha nesta composição de Marcos é o facto da vinda
final do Filho do Homem sobre as nuvens e com grande poder e
glória não referir a ressurreição dos mortos nem um julgamento que
recompense os bons e condene os maus, ao contrário do que afirma o
paralelo de Mateus 25, 31-46. Em Marcos a mensagem é apenas de
esperança e não de castigo. Mais ainda - e que é fundamental para
a nossa tese -, se atendermos bem aos vv. 20, 29 e 30, o
evangelista espera esta vinda do Filho do Homem para muito breve
precisamente por causa dos eleitos: mas, por causa dos eleitos que
escolheu, abreviou esses dias (v.20b)..Assim, também, quando
virdes acontecer estas coisas, sabei que ele está próximo, às
portas (v. 29). Em verdade vos digo: não passará esta geração sem
que todas estas coisas aconteçam (v.30). Esta maneira de
apresentar a vinda do Filho do Homem só se pode explicar se o
narrador tiver em vista os "eleitos", isto é, os cristãos que
viviam em dificuldade e dispersos pelo império romano que esperam
para os seus dias (para a sua geração) a vinda do Filho do Homem,
embora o texto termine afirmando no v.32: Quanto a esse dia ou a
essa hora, ninguém os conhece: nem os anjos do Céu, nem o Filho,-
só o Pai. O narrador joga com a ambiguidade da certeza, ainda por
cima corroborada com a parábola da figueira (v.28), por um lado, e
da incerteza, por outro lado. Trata-se duma ambiguidade pastoral e
catequética diante das muitas ideias que grassavam nas comunidades
primitivas sobre o assunto da "parusia".
O narrador é um evangelista que adere à tradição parusíaca, até
porque semelhante doutrina converte muita gente à pessoa de Jesus
Cristo, o Filho do Homem. Como escreve Jacques Dupont: "Marcos não
está disposto a abandonar de modo algum a ideia dum fim iminente:
é possível renunciar a essa ideia sem terminar numa
"desmobilização" dos crentes, sem "desvitalizar" uma fé que deve o
seu dinamismo a esta tensão da esperança que alimenta a
expectativa dum desfecho próximo ?"
Outro texto de Jesus que aparece sempre citado pelos defensores da
parusia iminente vem em Mt 10, 23: Quando vos perseguirem numa
cidade, fugi para outra. Em verdade vos digo: Não acabareis de
percorrer as cidades de Israel, antes de vir o Filho do Homem.
Uma vez mais, o significado parece claro: trata-se dum apelo à
missão evangélica (vv 5-23) para a conversão de Israel a Jesus,
tanto mais que a vinda do Filho do Homem está para muito breve.
Qualquer leitor pode estranhar o facto de Jesus pedir aos
discípulos que fujam duma cidade para outra no caso de serem
perseguidos, Não se esperaria que Jesus pedisse aos seus
discípulos que sofressem as perseguições em vez de lhes fugirem?
Simplesmente, não é só Jesus que está a falar, mas também o
evangelista que fala em vez de Jesus, para quem a evangelização
cristã é uma obrigação pertinente e inadiável até que venha o
Filho do Homem. O mesmo aparece em Mt 24, 14: Este evangelho do
Reino será proclamado em todo o mundo, para se dar testemunho
diante de todos os povos. E então virá o fim. Mas quando é que se
dará o fim? Em 10, 23, o fim tem a ver com a vinda do Filho do
Homem. O mesmo aparece em Mt 16, 28: Em verdade vos digo: alguns
dos que estão aqui presentes não hão-de experimentar a morte,
antes de terem visto chegar o Filho do Homem com o seu Reino.
Em conclusão, Jesus nunca fala da sua vinda, mas da vinda do Reino
de Deus e da vinda do Filho do Homem, ao contrário dos textos já
examinados de Paulo e de outras cartas do NT. Isto significa que
Jesus anunciou a vinda do Reino e que as igrejas primitivas
anunciaram a vinda do próprio Jesus Cristo. Se Jesus é o
Ressuscitado e o Senhor exaltado à direita do Pai, também é o
Messias que vem instaurar a paz e o amor definitivos. As
expectativas messiânicas do AT concentravam-se numa personalidade
terrena que seria o salvador de

132
Israel e, através dele, do mundo inteiro (Nm 24, 7.17LXX; 2Sin 7,
12s. 16; Jr 23, 5; Mq 5, 1; em Qumran CD 7, 19-21; IQM 11, 6;
4QTest 9-13 ; SISI 17, 21; 18, 5) ou numa personalidade celestial
(4Esd 7, 28;
12, 31; ApBar 29, 3; 53, 8-11) que, nalguns textos, se chama o tal
Filho do Homem (Dn 7, 131-XX, Enoc etíope 46, 1; 53, 6; 4Esd 13,
3s.32). Mas a verdade concreta é que, nos novos tempos cristãos,
não há nem paz social nem amor por causa dos inimigos judeus e
romanos, mas também por causa de falsos profetas cristãos e
anticristos que estavam a surgir nas igrejas (lJo 2, 18ss; 4, 3;
2Jo 7, ss; 2Pd 2, lss; lTin 4, lss; 2Tm 3, lss, etc.); logo, as
igrejas têm que esperar pela segunda vinda do seu Senhor. A
doutrina da parusia do Senhor é, então, uma aquisição normal da fé
cristã a partir da fé na Ressurreição e no Messias e uma variante
lógica da vinda do Reino e do Filho do Homem, embora os textos
jesuânicos sobre a vinda iminente destas duas figuras já estejam
carregados de pastoral e catequese cristãs dos evangelistas e
respectivas tradições.
Sabemos pelo AT e pelas tradições judaicas posteriores que a fé na
ressurreição implicava para os judeus a fé no fim dos tempos -
nesse dia ressuscitariam para que a justiça final acontecesse.
Como para os cristãos a mesma ressurreição já aconteceu, também a
escatologia final acaba por acontecer. Mas a ambiguidade persiste
por causa dos males políticos, sociais e religiosos, como já
expusemos. E é assim que nasce naturalmente a fé na segunda vinda
do Senhor. Além do mais, também devemos ter em consideração o
fenómeno da destruição de Jerusalém com o seu Templo, que foi
visto como o prenúncio do fim da história para judeus e cristãos,
sobretudo os da linha apocalíptica. Mesmo assim, reparemos que
Paulo é o primeiro a escrever sobre a segunda vinda do Senhor, e
isto muitos anos antes da destruição de Jerusalém.(1)
Finalmente, falta ainda repararmos nos textos do NT que nos
apresentam uma escatologia realizada no tempo presente. Basta
lermos com atenção 2Cor 5, 17-6, 2: 5, 17 Por isso, se alguém está
em Cristo, é uma nova criação. O que era antigo passou; eis que
surgiram coisas novas. 18 Tudo isto vem de Deus, que nos
reconciliou consigo por meio de Cristo e nos confiou o ministério
da reconciliação. 19 Pois foi Deus quem reconciliou o mundo
consigo, em Cristo, não imputando aos homens os seus pecados, e
pondo em nós a palavra da reconciliação .... 6, 1 E como seus
colaboradores, exortamo-vos a não receber em vão a graça de Deus.
Pois ele diz: No tempo favorável, ouvi-te e, no dia da salvação,
vim em teu auxílio (cf. Is 49, 8). É este o tempo favorável, é
este o dia da salvação.
O Apóstolo é bem claro: quem tem a fé cristã já vive o dia da
salvação, já é uma nova criação e já está totalmente reconciliado
com Deus, em Cristo. Assim sendo, a fé da segunda vinda do Senhor
está em total tensão com esta doutrina de Paulo.
Na primeira carta aos Tessalonicences, embora Paulo nos apresente
a segunda vinda do Senhor em 4, 13ss, como já expusemos, também
afirma em 5, 9-10: "De facto, Deus não nos destinou à ira mas à
posse da salvação por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo que morreu
por nós, a fim de que, quer durmamos, quer estejamos vigilantes,
com ele vivamos unidos." Neste último texto, o Apóstolo apresenta
um bom exemplo da escatologia realizada no tempo presente. O mesmo
acontece em Fl 1, 23-24: "Estou pressionado dos dois lados: tenho
o desejo de partir e estar com Cristo, já que isso seria
muitíssimo melhor; mas continuar a viver é mais necessário por
causa de vós."
(1) Marcus J. Borg, em The Meaning ofJesus, San Francisco 1998,
p.194 vai um pouco mais longe, defendendo que até os logia de
Jesus sobre a vinda do Filho do Homem e do Reino de Deus nasceram
dentro das comunidades cristãs primitivas. Escreve: "This view
also emphasizes that the coming Son of Man sayings are in fact the
second coming of Jesus sayings. That is, 1 do not think that Jesus
spoke of the imminent coming of the Son of Man and that the
community later saw these as referring to Jesus. Rathcr, 1 sce
them as a product of the community, created after Easter to
express thc conviction that Jesus would soon return as lhe Son of
Man".
Tradução: "Este ponto de vista também enfatiza o facto de que as
palavras do vindouro Filho do Homem são, na verdade, a segunda
vinda das palavras de Jesus. Isto é, não penso que Jesus tenha
falado da vinda eminente do Filho do Homem e que a comunidade,
mais tarde, tenha visto isto como referente a Jesus. Em vez disso,
eu vejo-o como produto da comunidade criado depois da Páscoa para
expressar a convicção de que Jesus voltaria em breve como o Filho
do Homem".

133
A doutrina normal de Paulo é precisamente a da escatologia
realizada no tempo presente: o cristão baptizado já vive a vida
eterna no tempo histórico da sua existência. Como compaginar a
esperança apocalíptica com a fé na escatologia realizada no tempo
presente? É um enigma teológico que continua sem solução linear.
Como escreve W. Radl, "É dificil identificar os rasgos
absolutamente essenciais das variadas maneiras de falar, com
marcado carácter apocalíptico, sobre a parusia. Em todo o caso, o
cristão espera e aguarda o encontro com Cristo, que se revela a si
mesmo como o Senhor"
Os mesmos evangelhos sinópticos, aqui e além, apresentam-nos
narrativas de uma escatologia realizada a partir da própria
ressurreição do Senhor. É o que Jesus responde ao bom ladrão após
o seu pedido: "Jesus, lembra-te de mim, quando estiveres no teu
Reino"... "Em verdade te digo que hoje mesmo estarás comigo no
Paraíso" (Lc 23, 43). O advérbio temporal grego sèmeron, no caso
concreto de Lucas significa precisamente hoje mesmo (Cf. Lc 4, 21:
"Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura..."; cf. ainda
Lc 5, 26; 19, 5.9). De modo algum podemos traduzir como fazem as
Testemunhas de Jeová: "E ele [Jesus] lhe disse: Deveras, eu te
digo hoje: Estarás comigo no Paraíso"'. Esta tradução quer
significar que o "bom ladrão" só estará com Jesus no Paraíso
quando se der a segunda vinda do Senhor.
Mas é sobretudo o quarto evangelho que melhor apresenta a chamada
escatologia realizada, especialmente em 5, 24-29: "Em verdade, em
verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me
enviou tem a vida e não é sujeito a julgamento, mas passou da
morte para a vida. 25 em verdade, em verdade vos digo: chega a
hora - e é já - em que os mortos hão-de ouvir a voz do Filho de
Deus, e os que a ouvirem viverão, 26 pois, assim como O Pai tem a
vida em si mesmo, também deu ao Filho o poder de ter a vida em si
mesmo; 27 e deu-lhe o poder de fazer o julgamento, porque Ele é
Filho do Homem. 28 Não vos assombreis com isto: é chegada a hora
em que todos os que estão nos túmulos hão-de ouvir a sua voz, 29 e
sairão: os que tiverem praticado o bem, para uma ressurreição de
vida e os que tiverem praticado o mal, para uma ressureição de
condenação. "
O midrache de Mt 27, 51-53 apresenta a mesma doutrina ao narrar
que, imediatamente a seguir à morte de Jesus, "o véu do templo
rasgou-se em dois, de alto a baixo, a terra tremeu e as rochas
fenderam-se, abriram-se os túmulos e muitos corpos de santos, que
estavam mortos, ressuscitaram; e, saindo dos túmulos depois da
ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a
muitos", é um óptimo exemplo da escatologia realizada a partir da
morte e ressurreição de Jesus. O evangelista serve-se de imagens
apocalípticas (as rochas fendem-se ... os túmulos abrem-se ... os
mortos aparecem aos vivos ... ) para demonstrar que não pode haver
qualquer segunda vinda de Jesus Cristo, nem uma segunda
ressurreição, definitiva e total, ligada à "parusia" do Senhor. A
partir daquela morte e ressurreição de Jesus começa um mundo novo:
o Templo de Jerusalém não divide mais os pagãos dos crentes
judeus, as mulheres dos homens, os sacerdotes do Sumo Sacerdote, o
"santo" do "santo dos santos". A partir daquela morte e
ressurreição acontece a ressurreição final para todos os santos. E
tudo isto acontece porque, nunca é demais repetir, JESUS CRISTO É
DE ONTEM, HOJE E SEMPRE.

134
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