terça-feira, 1 de setembro de 2015 By: Fred

{clube-do-e-livro} Livros em TXT - NO Calor da Cama - L.P. Baçan, - Os Dez Mandamentos - Mariângela Amorim etc

FAZ-SE A LUZ

Maria Dolores Figueras



ÍNDICE

Dedicatória.......................................................1
Raízes ...............................................................4
Infância ............................................................6
Temores ............................................................9
A Filosofia de luís...............................................10
Perguntas sem Respostas .................................13
Rebeldia ............................................................15
Liberação...........................................................17
Questionamentos...............................................19
A Hora do Encontro............................................21
Reflexões...........................................................23
Perplexidade......................................................25
Mestres..............................................................27
Pablo de Tarso...................................................29
Testemunhas de Jeová.......................................31
A Grande Alternativa.........................................34
A Humanidade e seus Deuses...........................37
Memórias de Dora..............................................40
Final do Trajeto.................................................48
A Caminhada Iluminada.....................................52




DEDICATÓRIA


Esta pequena obra é dedicada as minhas dívidas e a toda minha grande família espiritual, que fui encontrando ao
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longo desta existência; um número importante de pessoas que falam a mesma linguagem, compartilhando aspirações
análogas, estudando e analisando, à luz do Espiritismo, porque nascemos, morremos e renascemos.
Como Irmãos de Alma, no momento de terminar este trabalho, sinto-me feliz por tê-los ao meu lado e saber que, mesmo
sem medir palavras, nossos espíritos estavam no mais cordial diálogo sobre as eternas verdades que tanto amamos. Um
por um, seus rostos e nomes vão aparecendo diante de mim. A ninguém esqueço e desejo que saibam que me sinto muito
próxima de suas presenças. E por ter experimentado fatos e aceito a essência dos meus mais caros desejos, auxiliando
o direito legítimo de conhecer profundamente os anseios que movimentam e alimentam meu espírito.
Conseqüentemente é desolador sentir-se órfão, indefeso, e sem poder esperar que um Amor Paterno, nos proteja e nos
aninhe em seus braços, transmitindo-nos o calor da autêntica Vida. Não questionamos a existência de Deus. Sabemos
que temos um Pai, que nossa estirpe é divina e logicamente somos possuidores da Vida indestrutível. Esta condição, no
entanto, não é de conhecimento de todos os seres humanos. É necessário perguntar o motivo de tão freqüente
desconhecimento e questionar a causa que provoca incredulidade, indiferença, ateísmo, ou em uma palavra, o frio da
alma. Muitas vezes, a maioria das pessoas está tão atarefada que nem sequer notam que lhes falta o calor da esperança.
Mas algumas se debatem entre a dúvida e o desejo que alguém ou algo dê respostas as suas perguntas.
A estas pessoas que buscam, que chamam por conhecimento, é preciso atendê-las a fim de que sua súplica não seja
inútil e que possam descobrir por si mesmas a grandeza das leis divinas.
Ao mesmo tempo é obrigação irrefutável, denunciar de onde germinam as sementes das confusões para que estas sejam
adequadamente tratadas.
É fácil deduzir que, praticamente, todos os indiferentes ao conteúdo espiritual procedam de ambientes religiosos.
Por que razão as religiões representam terreno fértil de onde proliferam os incrédulos e indiferentes,
particularmente entre as novas gerações?
A evidente distorção está no acúmulo de suas incoerentes aprendizagens colocando em evidência claras contradições
que deformam a verdadeira natureza de Deus. Insiste-se em manter vivo, atualmente, um Deus arcaico, antropomorfo,
criado a imagem e semelhança dos homens portanto atribuindo-lhe idênticas debilidades.
Se nos remetermos as origens do Gênesis Bíblico, para comprovar que Deus se arrependeu de ter criado o homem e que
tanto lhe decepcionou este infeliz mortal com suas desobediências que , quem sabe na tentativa de solucionar as
deficiências de sua obra, a este "Deus", desta maneira entre aspas, não lhe ocorreu maior solução do que enviar um
dilúvio para varrer da face da terra todo ser vivente. Notemos que tais fatos, por certo, pregariam a
incompatibilidade dos mesmos com todos os atributos, em grau infinito, inerentes ao Criador. É óbvio que a Infinita
Sabedoria, por exemplo, não pode sofrer lapsos e criar uma humanidade que desconhecia suas limitações.
Mil inquietantes perguntas nos ocorrem ao observar as diferentes situações com que homens e mulheres se
deparam no cotidiano. Cataclismas naturais, saúde, doenças, riqueza, miséria, inteligência, perturbações mentais e
até mesmo a morte de recém-nascidos, diante da longevidade nem sempre invejável dada à precária qualidade em que se
passa a vida destas pessoas. O sofrimento humano segue sendo uma incógnita para a maioria dos mortais.
É verdadeiramente grave ignorar que este imenso e aparente caos e desordem, de apressados contratempos, estão
regidos por uma lei natural justa e infalível. A lei de ação e reação. Reencarnar significa ter a oportunidade de
semear com inteira liberdade, para colher mais tarde, os frutos de nossos atos. Inflexivelmente a natureza de nossos
sentimentos e a forma de nos comportarmos criarão na medida precisa, o cenário idôneo onde se reunirão as condições
e através das quais poderemos adquirir o equilíbrio espiritual. Para evoluir teremos todo tempo que necessitarmos:
séculos, milênios, dependendo sempre do esforço com que nos dediquemos. Por mérito próprio, reencarnando uma e outra
vez, conquistaremos os ápices da paz.
Em uma simples fórmula, ignorada e destorcida em muitas ocasiões e ocultada deliberadamente em outras, por quem
tenta impedir o progresso moral da humanidade, impondo sua sede de poder ao bem comum. Cumpre-se assim a sábia
advertência de que se um cego guia outro cego, ambos caem no buraco.
Poe esta razão, o apressado desejo de meu espírito é de prosseguir no empenho de que a existência da lei das
conseqüências, seja conhecida pelo maior numero possível de pessoas. Nós seres humanos, todos, nascidos de um mesmo
Amor, somos herdeiros de um idêntico patrimônio e a nenhum de nós, na justiça, será negado crescer, evoluir
espiritualmente em sentimentos e sabedoria.
O conhecimento que nos aguarda depois da morte física e as conseqüências derivadas de nossos atos quando
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transitamos pela terra, é algo que nenhum ser deveria ignorar. Nós economizaríamos incontáveis sofrimentos, porque,
somos donos por inteiro de nossos destinos e poderíamos subir, assim, com maior diligência a escada do progresso.




RAÍZES


Dora às vezes, levantava a cabeça do seu trabalho para olhar através dos cristais do balcão para as pessoas que
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andavam pela praça. A maioria era da sua vizinhança. O tempo havia passado com extraordinária rapidez, mas ela podia
recordar-se, com grande clareza, destas pessoas a cinquenta anos atrás. Desde aquela época muitas coisas haviam
acontecido. Inês, a conformada Inês, graças as suas convicções religiosas, sendo católica fervorosa, foi capaz de
superar a morte primeiro de seus três filhos, e mais tarde de seu marido. Berta, ao contrário, estava em depressão
profunda, sem motivos aparentes. A família Garcia durante o período de pós-guerra civil Espanhola havia se
"encumbrado" economicamente, mas o primogênito acabou por dilapidar o patrimônio em maus negócios mercantis, drogas
jogos. E ali passava Maria, quase que arrastando o filho, um homem de 40 anos que, devido as suas deficiências, não
podia articular uma só palavra...
Parecidas situações, com muita freqüência podem ser vistas em todos lugares e, incitam a questionar a razão do
sofrimento humano. Dora, guardou o trabalho e pegou de uma estante um volumoso álbum de fotografias.
Na primeira página se encontrava a fotografia de uma mulher de mais de noventa anos. Dora sorriu ao contemplar o
rosto enrugado e sério de sua bisavó. Conhecia dela o suficiente para entender suas reações e sua postura. Ela foi
mãe de nove filhos, seis dos quais morreram nos primeiros anos de vida. Escutava dos lábios do padre, que aqueles
filhos eram flores tão delicadas, "que Deus os queria para si", a mulher enrugava o cenho e sentia que uma dor
profunda lhe atormentava, sem entender os "cruéis caprichos" de Deus. E que acometiam seus filhos! Por que eles lhe
eram enviados para depois serem resgatados? A gota d´água de sua paciência chegou ao ápice quando nasceu Benjamim e
seu marido estava doente e acamado. Uma manhã ao ir amamentar seu rosado bebê, o encontrou morto. Ela queria
enlouquecer e o padre não a consolava em absoluto, muito pelo contrário, a responsabilizou pelo filho não ir direto
ao limbo, uma vez que não o batizara em seu devido tempo.
A mãe pousou seus olhos chorosos na volumosa barriga do padre e lhe disse que ele assim a tinha, graças às
comilanças que haviam feito gulosamente nos batizados e enterros dos seus filhos. O Limbo! Mas que crença tinha ele?
Quem era para mandar para ali seu filhinho? O filho devia estar junto a seus irmãos, no céu.
A bisavó de Dora nunca mais voltou a por os pés numa igreja. Exigindo que seus filhos lhe dessem a palavra de que
não chamariam a nenhum padre para seu enterro. Seu desejo foi cumprido, a velhinha Antônia, faleceu no final de 1937
em plena guerra civil espanhola. A família vivia na Catalunha.




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INFÂNCIA


Dora relembrou, com a ajuda de sua fiel memória, aos "aciagos" dias de sua infância. Havia chegado a este mundo num
dia quente de julho de 1932. Dois anos mais tarde morria, vitima de tuberculose, Antônio seu tio paterno, de 24 anos,
a quem ela acreditava recordar, talvez, graças a uma grande fotografia posta em uma parede da sala de jantar no lugar
de seus avós José e Emilia.
Dora sentia que lhe invadia uma profunda tristeza, uma forte angústia, uma estranha escuridão que envolvia tudo. Sua
mãe, doente e acamada, seu pai envolvido no exército republicano. Os adultos contanto mil tragédias e deflagrando a
falta de alimentos. A proibição de ter as luzes acesas e as janelas abertas, diante de um possível ataque aéreo, as
aterrorizantes sirenes avisando para as pessoas estarem a salvo nos abrigos mais próximos... Desolação, confusão,
impotência... E foi assim um dia após o outro.
O estado de saúde de sua mãe piorou. O avô José, seu sogro, a levou para um hospital de Barcelona com a esperança de
que pudessem curá-la. Passados, alguns meses os médicos disseram que a tuberculose que lhe acometeu estava bastante
avançada e era irreversível. Não podiam seguir atendendo-a, pois muitos enfermos, talvez com maiores possibilidades
de cura, estavam aguardando para dar baixa.
O avô foi buscá-la mas ela lhe disse que não poderia voltar para casa e correr o risco de contaminar a sua filhinha
com esta cruel enfermidade. não, de modo algum! Dora tinha que viver! A enferma de 25 anos, se refugiou na casa de
seu pai, o avô João e sua terceira esposa, Carmem. Eles cuidaram dela da melhor maneira que podiam, mas em 12 de
fevereiro de 1938, a mãe de Dora deixou este mundo.
A pequena ficou aos cuidados de seus avós paternos e da sua tia Montse, uma risonha jovem de 20 anos. Eles lhe
disseram que sua mãezinha havia ido para o céu, mas Dora com pouco mais de cinco anos, não entendia que estranho
lugar era este. Cada vez que alguém chamava a porta ela corria para ver se era sua mãe voltando do céu ou da cidade
de onde viviam os avós João e Carmem. O que era estar morto?
Recém terminada a guerra, Dora freqüentou um colégio de freiras, as quais não vestiam o clássico hábito. Uma tarde,
a freira, contou para as suas alunas que "todas as pessoas que haviam morrido durante a guerra, como não existiam
sacerdotes para dar-lhes os sacramentos de penitência e eucaristia, estavam condenados ao inferno". Ao escutar tais
asseverações, as bochechas de Dora tornaram-se vermelhas e seu coração bateu mais apressado. Recordou-se de sua mãe,
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de sua querida e adorada mãe. A freira, chegou ao cúmulo de acrescentar todo tipo de absurdos "As pessoas no inferno
queimam continuamente, padecem de muita sede e não podem beber água..." "Quando Deus está de costas, pensou a menina
com rapidez, darei de beber a minha mãezinha".
Mesmo tendo tomado esta decisão , Dora não conseguiu se tranqüilizar. As desafortunadas palavras da freira
martelavam em sua cabecinha. Durante a noite em sua cama , não parava de pensar em sua mãe, no fogo do inferno, na
sede e em Deus que poderia lhe descobrir estando de costas! O medo e a impotência lhe fizeram chorar desesperadamente.
Tia Montse lhe encheu de beijos, secando suas lágrimas e lhe assegurou que nada do que havia dito a freira era certo.
"Nada, Dora, é verdade! Sua mãe esta no céu e de lá a olha e protege. Sua mãe era muito boa e Deus a ama. Sabes,
minha pequena, Deus nos ama a todos."
A Dora, lhe fascinava a História Sagrada e colecionava figuras de santos. Quando se preparou para a primeira
Comunhão decorou a catequese do início ao fim. Todo mundo lhe assegurava que aquele seria o dia mais feliz de sua
vida, de modo que ela esperava algo muito especial, uma vez que iria receber a "Deus." Importunamente o sacerdote em
seu púlpito, repetiu que "hoje era o dia mais feliz de suas vidas, ao lado de seus pais". Dora engoliu em seco, a sua
direita estavam a avó Emilia e o avô José e a sua esquerda tia Montse e seu prometido. As duas mulheres secaram suas
lágrimas. O pai da menina, por ser um soldado do exército "vermelho", estava em um campo de concentração na França. A
família estava à espera, de que, de um dia para outro ele voltaria. Não pesavam cargos políticos sobre ele, mas a
dura ditadura fascista aconselhava prudência.
Finalmente no final de agosto de 1941, o viúvo pode voltar a sua terra e abraçar a sua filha a quem não via a
mais ou menos três anos. Chegou bem a tempo de assistir ao casamento de sua irmã Montse que foi celebrado em setembro.
Um dia, tia Montse, sorridente, radiante disse a Dora que tinha um segredo e sussurrou umas palavras mágicas
em seus ouvidos. "Vais ganhar um priminho. Um bebê pequeno e que desejo que segures em teus braços". Ela não podia
acreditar e quis saber quanto tempo levaria. Faltavam sete meses, mas começaram a mexer em uma grande caixa que
tinha roupinhas de quando Dora havia nascido. Estavam em muito bom estado e seu estado econômico não permitiria gasto
algum.
Ao terminar a escola em 1942, o pai de Dora lhe disse que aquele verão ela passaria em companhia de seus avós
João e esposa e prometeu que em agosto iria lhe buscar para assistir ao batizado do filho de tia Montse. Somente 30
quilômetros de sinuosa estrada separavam as duas cidades. A Dora lhe encantou esta idéia. O avô João era um homem
otimista, jovial e sabia um monte de truques e adivinhações. Mostrava o dorso firme de sua mão direita a sua neta e
muito sério lhe perguntava o que era aquilo. Era a mão do avô. "Não que nada, dizia ele! É a mão de um padre morto,
porque se estivesse vivo lhe pediria de volta."
No meio do mês de agosto o pai de Dora veio vê-la. Não lhe trazia boas noticias. Tia Montse tinha dado a luz a
um menino, a quem chamaram de Antônio em homenagem ao seu jovem tio, mas devido a grandes dificuldades no parto, o
bebê morreu em dois dias. Dora sentiu muita pena pela perda do priminho. Sua tia o esperava com tanta alegria! E da
morte agora ela sabia, ninguém havia regressado.
Tia Montse não estava bem de saúde, estava a tossir e o mais prudente era que ela e sua sobrinha não
convivessem juntas. O avô João e Carmem, encantados, se ofereceram para cuidar da neta. Perto de sua casa havia um
colégio de freiras Carmelitas, ao qual Dora foi durante alguns meses., até que seu pai decidiu interná-la com o
objetivo dela receber uma educação mais "refinada". Na realidade o verdadeiro motivo era as desavenças que sempre
aconteciam entre ele e seu sogro. Eram duas pessoas totalmente diferentes e Dora entristeceu-se porque lhes queria
muito bem, além da angústia da sua separação com seu avô e Carmem, duas pessoas que a cobriam de atenção e carinhos.




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TEMORES


A vida de Dora mudou completamente no internato. Novamente a idéia de Deus, a imortalidade e o céu fizeram "presa"
de sua alma. Para ela parecia muito difícil não pecar nem em pensamento, e lhe aterrorizava a possibilidade de cair
no inferno. As freiras lembravam-nas com freqüência quão trabalhosa era para salvar a alma e o seu diretor espiritual
confirmava estas aprendizagens. De modo que, as palavras de tia Montse sobre o inferno, perdiam forças mediante as
repetidas e insistentes cenas que as freiras contavam as suas alunas, de pessoas que apareciam nos confessionários,
onde brotavam sapos e cobras de suas bocas e dizendo que gemiam no inferno por não haver confessado um pecado mortal.
Um pecado mortal era faltar à missa em um domingo. Dora estava aterrorizada e suspirava por morrer depois de
confessar e comungar para desta maneira conseguir a glória eterna. Ela estava obcecada com a idéia e adotou o papel
de anjo salvador para sua querida família. Durante as férias recomendava, com insistência, aos seus, que não
deixassem de ir a missa dominical. Seu avô João ria dizendo-lhe: "Não se preocupe , Dora, tudo isso não são mais do
que contos" chinos ". Este é o" modus vivendi "do clero". Carmem, prevendo, falava sempre: "Mas tu, pequena, disto
que te disse teu avô "mutis". Nem meia palavra , pois estas pessoas são muito ruins..." E começava a contar mil e uma
histórias sobre a Inquisição.
Dora, às vezes, pecava em pensamento. Reconhecia que tinha muitos defeitos, e o maior de todos a inveja. Invejava,
sem ninguém saber até que ponto, as demais meninas pois elas tinham mãe, e sempre acabava por pensar: "Se Deus é tão
bom, por que levou minha mãe?" Depois entrava na capela da escola e pedia perdão por sua rebeldia.
Em junho de 1944, tia Montse cada vez mais debilitada e doente, teve que ser internada em um sanatório para
tuberculosos e Dora voltou para casa abandonando o internato definitivamente.




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A FILOSOFIA DE LUIS


Freqüentemente, a avó Emilia, convidava a Luis, um novo vizinho, para uma limonada. O homem vivia sozinho, pois
durante a guerra tinha perdido sua família. O regime fascista lhe manteve encarcerado mais de quatro anos, devido as
suas idéias liberais. Defendia o direito de livre expressão e a prática dos próprios ideais. Estava em desacordo com
a Igreja em numerosos pontos.
"A qualidade de uma instituição se pode medir por seus postulados e seus atos. Se ambos estão distantes e não são
complementares, temos que desconfiar dela. Temos que separar o joio do trigo. Péssimos exemplos dão os padres nos
dias da Semana Santa, consentindo que as crianças vão a "matar judeus" providos de matracas e marretas, dentro da
casa de Deus. Ruim aprendizagem esta de alimentar o ódio fazendo uma nivelação e acusando de "baixa", uma vez que não
tinha culpa por Jesus ter nascido em Belém e a casta sacerdotal instigou sua crucificação, porque via cambalear seu
poder e interesses".
Luis calava, escutando os favoráveis comentários do avô José, sorrindo ao observar a atenção com que Dora
acompanhava a conversação, e continuava "O poder e o dinheiro está presente em todos os serviços do seu ministério.
Se já é difícil cumprir os 10 mandamentos, o clero nos tem sobrecarregado com mais cinco, os das igrejas. No momento
que nasce uma criatura, agora por decreto de lei, devemos batizá-la e automaticamente a convertem em algo seu, não a
soltando até sua morte. Eles se caracterizam imprescindíveis para manobrar todos os atos de nossas vidas. Penetram
nos mais profundo das consciências e através da confissão, aterrorizam com as ameaças de penas eternas do inferno e
vendem "pedaços do céu" a bom preço, a qualquer incauto que caia em suas redes. Queres comer carne sem pecar? Pagando
uma taxa, fica fácil. Utilizam o dinheiro como uma concessão."
"O povo simples, sofre pelas recordações terríveis da inquisição, vivendo envolto entre tradições e superstições.
Não vistes a reação de Matias diante da enfermidade de sua filha? Ele que diz não crer em Deus, prometeu subir até o
santuário para levar à Virgem uma vela mais alta que a filha, se esta curasse. Matias colocou também esta condição,
se a filha não fosse curada, não haverá vela. A isto eu chamo de truque de chantagem, mas parece que para o clero,
uma vez que permitem, estas oferendas são mostras de fervor religioso".
Passados alguns anos, a filha de Matias, por vocação entrou em um convento até professar os votos perpétuos, um
vizinho fanfarrão, comentou: "Quantas surpresas a vida no guarda! A filha de Matias casou-se com Deus, convertendo a
seu pai, um ateu convicto, em sogro de quem ele disse que não existia".
E Luis completava:
"Se não me esqueço dentro da Igreja, surgiram grandes figuras, seres altruístas que movidos por amor ao próximo,
levaram à prática os ensinamentos de Cristo. É uma exemplar conduta, sem dúvida alguma, mas estas pessoas se
limitaram a cumprir o seu dever. Não achamos natural que uma mãe amamente e cuide de seus filhos? O contrário, que
lhes abandone e maltrate, nos parece desumano e é lógico que reprovamos. Com a política e a religião devemos proceder
da mesma maneira. O que é provadamente razoável, é bom aceitá-lo, mas o que oferece dúvidas por ser confuso e
contraditório, faz-se necessário trazer a luz para que se corrija quem tenha que corrigir. A humanidade, a história
nos mostra, tem progredido graças ao se rebelar contra toda tirania, denunciando injustiças e tentando libertar-se
de jogos humilhantes."
As palavras de Luis tinham a virtude de trazer a Dora ao seu íntimo reparando situações e detalhes que talvez
houvessem passado desapercebidos.
As freiras tinham, por caridade, algumas meninas exiladas, na sua maioria órfãs. As maiores, entre onze e quinze
anos, eram as que faziam os trabalhos mais pesados do convento. Limpavam todas as dependências, lavavam a mão
verdadeiras montanhas de roupas, costuravam, passavam, preparavam a comida e a serviam em todos os refeitórios das
freiras e das internas. Estas meninas comiam em um refeitório separado. Em época de vagens, cozinhavam as cascas
vazias para elas e para o resto da comunidade e internas os grãos. Raras vezes eram vistas nas classes. Usavam
uniformes de distinto modelo e cor, de modo que quando saiam a passear aos domingos à tarde, em fila dupla, os que
passavam sabiam que se tratavam das meninas "pobres" do convento das carmelitas.
Durante a guerra os inconformados haviam queimado a Igreja do convento. Entretanto se utilizava uma capela
interior para os serviços das missas. Em junho do ano de 1943, celebrou-se uma grande festa abençoando uma imagem do
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Sagrado Coração em tamanho natural, destinada a permanecer no maior altar, no dia em que a Igreja estivesse
reconstruída. Naquela mesma noite choveu cântaros. As meninas órfãs, aquelas que as freiras deram abrigo por
caridade, viviam em uma ala do edifício, longe das pensionistas. Dormiam numa grande sala, sem camas, no chão, sobre
montes de palhas. O telhado estava em mau estado e não conseguiu conter a forte chuvarada. As meninas viram a água,
sem poder remediar, inundando seu dormitório, molhando seus corpos e todos seus poucos pertences.
Cada vez que Dora recordava, sentia um frio a invadir-lhe interiormente, esta passagem lhe serviu, quatro anos
mais tarde, para perguntar a um frei, amigo da família, o qual não compreendia o distanciamento da Igreja: "Frente a
este sucesso, quem pode pensar na caridade cristã? O que era mais importante, consertar o telhado ou venerar a uma
imagem de Jesus?"




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PERGUNTAS SEM RESPOSTAS


Em abril de 1946, o pai de Dora casou-se novamente. A Dora, uma mulher ocupando o espaço de sua mãe não lhe
entusiasmou, mas entendeu que ao seu pai cabia total direito de refazer sua vida e, mostrou-se compreensiva em todos
os momentos. O poder aquisitivo do casal era quase inexistente e o novo matrimônio não teve outra alternativa do que
se instalar no lugar dos avós José e Emilia, junto com o marido de Montse. Para Dora aquela solução pareceu
maravilhosa, pois estaria junto das pessoas que mais amava.
Ao final de Maio a família recebeu uma carta com termos, desgraçadamente reiterativos. "Descrevendo que o caso de
enfermidade de Montse era incurável e devido ao tempo transcorrido no sanatório, era de sua obrigação informar que a
família tinha o prazo de uma semana para buscá-la". A lista de outros pacientes para ingressar era enorme. Diante de
uma realidade tão amarga, uma preocupante incógnita se acumulava. Qual outra vítima, a tuberculose faria? A família
de Dora, pensando nela, sentiu que uma forte ansiedade lhe oprimia. A própria Montse, ao regressar para casa, foi a
primeira a pedir a seu irmão que levasse para longe a menina, pois ela queria bem demais a sua sobrinha.
Frente a esta conflitante situação o pai de Dora buscou uma alternativa. Não foi fácil, mas em primeiro de
setembro, ele e sua vistosa esposa e filha mudaram-se provisoriamente para Barcelona. No momento da despedida apesar
de todas as advertências da avó Emilia, Dora e Montse abraçaram-se fortemente, pela última vez. O pai de Dora as
separou, prometendo a Montse que no Natal viriam todos visitá-la. Contudo, quando se aproximaram aquelas datas Montse
liberou o irmão de sua promessa, dizendo-lhe que se sentia muito mal e que não demoraria muito para voltar ao mundo
espiritual. Ela o sabia pois muito freqüentemente Antonio, o irmão delas, Cecília a mãe de Dora e ela, ficavam
radiantes ao estarem em seu leito. Montse desejou para a sobrinha toda a felicidade do mundo e uma longa e venturosa
vida.
No dia 19 de fevereiro de 1947, tendo recém completado 31 anos, os olhos de Montse se fecharam, após aquela longa e
penosa doença. Dora, uma vez mais chorando desoladamente, perguntou: "Deus, meu Deus, por que?"
Passadas três semanas regressaram ao local dos avós José e Emilia. A Dora, lhe parecia estar vivendo um pesadelo.
Correu por toda casa para ter certeza de que ela não estava mais ali. E de fato encontrou a casa vazia, as paredes
recém pintadas, a varanda continuava de portas abertas de par em par e os móveis, por ordem da avó, haviam sido
queimados. Montse havia partido para não mais regressar.
Dora se perguntava se era possível viver sem o temor da monstruosidade da guerra, as longas e cruéis enfermidades, e
a aterradora morte chamando implacável a sua família. Em silêncio, agitando seu espírito de rebeldia, levantava, uma
e outra vez, os seus chorosos olhos, contemplando o espaço infinito e imperiosamente reclamava por uma resposta. "Por
que tanto sofrimento? Porque existem os órfãos, os cegos, os pobres e os poderosos? Onde está a justiça divina?"




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REBELDIA


O frei que visitava com freqüência a Montse nos últimos meses de sua enfermidade, expressou o desejo de
conhecer Dora. Sua tia, que a adorava e se desmanchava em elogios sobre a sobrinha: que era carinhosa, obediente,
submissa e inteligente, um encanto de criatura. O frei capuchinho encontrou-se frente a frente com uma menina ferida,
profundamente em seu íntimo, pela morte recente de sua tia e que não conseguia esquecer os demais dolorosos
acontecimentos que escureceram sua infância. Guerra, fome, doenças, mortes... Não, os olhos de Dora, não eram olhos
de uma adolescente que os abre para a vida em uma busca ávida, cheia de ilusões, um caminho que a levasse a saborear
delícias sem fim. Ela necessitava conhecer a razão do infortúnio humano.
O frei, suavemente, tentava dar respostas para as indiscretas mas sensatas perguntas de Dora, recordando-lhe
sua condição cristã pelo sacramento do batizado, coisa que ao mesmo tempo não lhe dava o direito a dúvidar da bondade
de Deus, muito menos ainda pedir-lhe contas de seus atos. Devia acatar sua vontade, ainda que esta quase sempre
constitua um grande mistério para toda a humanidade. Os argumentos do capuchinho não convenciam a Dora. Tinha a
impressão que o voto de obediência limitava sua liberdade de raciocínio, uma vez que não desfrutava de devida
autorização para sustentar um diálogo aberto. Não existia forma humana de questionar as bases da fé. O imutável muro
do dogma e o mistério estavam ali e a Igreja não permitia que alguém tivesse a ousadia esclarecê-lo.
Um domingo de manhã Dora permaneceu em sua cama e levantou-se tarde, por mais que a avó insistisse em chamá-la.
Ela tomou seu café da manhã, uma caneca de chocolate com biscoitos e colocou-se a ler. Não assistiu a missa dominical.
Na medida que as horas iam passando comprovava que sentia uma estranha paz interior, era como se correntes deixassem
de aprisioná-la e podia movimentar-se com inteira liberdade. Sorriu ao pensar que algo parecido devia ter sentido sua
bisavó Antonia quando decidiu que não iria voltar a pisar em uma Igreja.
Estanhando a mudança de comportamento de Dora, a avó quis saber o que se passava. A boa mulher descobriu uma
faceta insuspeita no caráter de sua neta. Era determinada em suas convicções. Sem titubear contestou: "Já não creio
na Igreja, porque prega o que não crê e deixa de fazer o que deveria de fazer, depois de ter feito muitas perguntas e
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em nenhum momento me respondeu com lógica. Cheguei a conclusão de que, ou mente ou ignora ou as duas coisas, o que é
tão grave que não merecem confiança. Eu não estou disposta a aceitar o que não entendo e não acho justo."
Dora tentou desenterrar de sua mente a idéia de Deus, um ser incapaz de compreender. Mas só conseguiu sentir-se
pior, desamparada por completo, abandonada a mais angustiante orfandade. Por outro lado seu espírito necessitava crer
na Vida, porque era a única forma que conhecia para vencer a morte. Ela iria meditar e por em ordem toda aquela
mistura de necessidades anímicas, aprendizagens religiosas ricas em contradições e supersticiosas tradições que de
forma bem abundante encontrava a sua volta.
Luís intuindo a crise espiritual que atravessava sua vizinha, lhe aconselhou: "Sempre que nos vemos obrigados a
colocar de lado um móvel que está carcomido e irreversível, antes devemos procurar substituí-lo por outro mais útil e
são."




LIBERAÇÃO


Desde pequena, Dora sentia debilidade de subir ao sótão e saber quando voltaria a estar com os demais. Havia uma
cadeira de balanço, duas lâmpadas, caixas contendo os mais diversos objetos e sobretudo, livros. Naquele dia chamou a
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atenção de Dora um livro velho e empoeirado. Estava escondido no fundo de uma caixa de madeira, a mais de dez anos
desde o começo da guerra civil. Tinha como título "Memórias do Padre Germán" e era uma obra genuinamente
espiritualista. Depois de folheá-lo, avidamente interessada, se dirigiu ao seu quarto e começou sua leitura. Na
medida que ia avançando, sentia que uma ordem interna a invadia, uma luz emergia em seu espírito iluminando-o por
completo. Desaparecia a escuridão, as dúvidas, a rebeldia... Dora descobriu que existem leis naturais e divinas. As
de Evolução de Causa e Efeito, que se cumprem mediante a reencarnação, reafirmando que a aparente desordem que
envolve os seres humanos é o cumprimento da justiça inerente as leis evolutivas, nas quais está imersa a humanidade.
As páginas do livro continham uma autêntica revelação. Falavam, várias vezes na inegável existência de um Deus com
todos os atributos em grau infinito: Amor, Bondade, Justiça... Do Pai da Vida, de quem todos os seres, igualmente,
haviam recebido a mesma herança. Criados simples e ignorantes, mas com a semente, em potencial, para poder
desenvolver até o infinito, a inteligência, os sentimentos e as virtudes, seguindo a responsabilidade que nos confere
o livre arbítrio. O tempo, indefinido, converte-se em grande aliado e existência após existência ensaiamos os
primeiros passos, lastimando-nos profundamente as quedas e aprendendo com os erros. Aceitando situações difíceis e
angustiantes que nos proporcionam, sem dúvidas, o poder de reparar aos graves equívocos cometidos. Mesmo os mais
horríveis crimes, filhos da crueldade e ignorância humana, não se tornam credores de uma sanção eterna. A moeda de
trocas para o resgate de uma dívida contraída é a prática do Bem e do Amor pelo próximo, o grande trabalho que requer
o progresso do espírito.
A avó Emilia recomendou a Dora que voltasse a colocar o livro no local onde este estava, sem comentar com ninguém.
Mas este avanço espiritual criou tal dimensão na jovem que não lhe era possível esquecer nem escondê-lo. Com tanta
convicção crescia em seu espírito uma segurança na imortalidade, que transcendia nas mais simples conversações.
Conversou muitas vezes com o amigo frei, sem utilizar os argumentos de rebeldia que antes lhe acometiam. Agora
estava amparada com pensamentos que podiam resistir as análises e a crítica. O frei e Dora falavam diferentes
linguagens. O primeiro defendia que tudo girava em torno da vontade de Deus, a quem ninguém tem o direito de cobrar
seus atos por mais irracionais que pareçam. Sua forma de agir é um mistério, mas devemos aceitar, dizia o homem
indefeso.
Ela lhe olhava sorrindo condescendente, como se tratasse de uma criança, e respondia: "Não podemos saber o que é
Deus, mas sim podemos saber o que não o é. Não é injusto, não é colérico, nem vingativo, porque estes defeitos são
próprios da imperfeição humana. E deduzindo que o Criador deve ter todos os atributos em grau infinito, não cabem
aqui nem privilégios, nem se equivocar. A infinita justiça, nega a mais remota possibilidade de castigo eterno".




13
QUESTIONAMENTOS


Dora tinha a grata sensação que o credo que por muito tempo lhe havia confundido e assustado fazia a sua esperança
não terem nenhum valor. Com insistência exigiu de seus avós a confirmação de alguns acontecimentos mediúnicos
acontecidos no seio familiar, pois anteriormente ao escutar seu relato, não os havia prestado a devida atenção.
Em 1928 seu tio Antônio, que na época estava com dezessete anos, um dia abandonou o lugar paterno, sem avisar e sem
deixar sinais. Seus pais, como é de se esperar, inquietaram-se exacerbadamente. O jovem não aparecia e alguém lhes
comentou sobre uma conhecida médium que morava em Barcelona. Em estado de transe a médium (uma bondosa senhora q
não desejava remuneração) revelou o local exato onde vivia o jovem, nome da rua e número, completando que trabalhava
de pedreiro na construção de pavilhões que abrigariam a Exposição Universal de Barcelona.
Buscar uma pessoa de paradeiro desconhecido em uma grande cidade equivale a encontrar uma agulha num palheiro, mas
nesta situação, assistido pelo fenômeno mediúnico, resultou ser como um jogo infantil. A família recordava-se sempre
deste fato como algo extraordinário. Ao jovem Antônio lhe assombrou grandemente que o haviam encontrado e mais ainda
quando ele soube que sabiam de seu esconderijo, uma vez que não contara a ninguém. A aventura do adolescente terminou
ali e confessou que no fundo se sentia envergonhado e não se atrevia a voltar para sua casa paterna e aos irmãos pois
se considerava muito inferior.
A capacidade de vidência de tia Montse desde sua mais tenra idade, era outro caso a levar em consideração. A menina
passava longos tempos a brincar com suas bonecas, no balcão de seu quarto. Do outro lado da estreita rua se podia ver
o pátio de um casarão vazio. Ela tinha pouco mais de quatro anos quando começou a explicar para sua mãe que os
velhinhos do pátio abandonado em frente saiam para tomar sol, sentando-se em um rústico banco. A mãe lhe olhava
estranhamente o pátio abandonado, mas Montse confirmava todos os dias a existência do velho casal, descrevendo-lhes
com todo tipo de detalhes, de roupas, gorro e alpargatas do avô e a manta negra cobrindo a cabeça amarrada embaixo do
queixo da mulher.
José e Emilia consultaram um centro Espírita, para saber o que acontecia com sua filha. Feitas as devidas indagações
comprovaram que o vizinho casarão fora habitado por um casal que falecera anos atrás, antes do nascimento de Montse.
Evocados estes seres pelo grupo espírita, lhes ajudaram a reconhecer seu estado espiritual, invocando-lhes a escutar
primeiro aos seus guias a abandonar o plano físico. A pequena não voltou a ver aos velhinhos, queixando-se às vezes
de sua ausência. Mas jamais esqueceu esta experiência.
Em 25 de outubro de 1934, Dora e sua mãe pararam uns dias no local onde viviam os tios de sua mãe. Seu estado de
saúde bastante precário, assim o requeria. Aquela noite ela sentia dificuldade de dormir, sentia-se inquieta. Sua
filha dormia placidamente em sua cama. De um momento para outro o quarto se iluminou e a figura do jovem Antônio
apareceu, nítida, diante de sua cunhada: "Não se assuste Cecília, sou eu, que venho despedir-me, mas tu e eu não
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tardaremos a nos reencontrar". A jovem viu como o irmão de seu marido se aproximava sorridente e dava-lhe um beijo em
sua testa.
Depois disso o quarto voltou a ficar escuro e a mãe de Dora surpreendida ao extremo pelo extraordinário
acontecimento, acendeu a luz de mesinha e olhou as horas. Eram duas horas da madrugada, sua filha seguia dormindo e
nada parecia perturbar o silêncio da noite.
No dia seguinte quando foram comunicar-lhe o falecimento do jovem, Cecília disse que sabia a mais de seis horas
que sabia do acontecimento.
Sempre que a família recordava deste episódio não deixavam de mencionar, tal como Antônio anunciara, que a mãe
de Dora não tardou mais do que três anos para desencarnar e voltar ao plano espiritual.




A HORA DO ENCONTRO


Na primavera de 1949, Dora conheceu a Josép, o homem de sua vida e este relevante acontecimento mudou,
fundamentalmente, a existência de ambos. O encontro, sem a menor dúvida, estava planificado desde que encarnaram. Um
profundo sentimento de amor aflorou com força e iniciaram uma longa trajetória, entrelaçando idéias e aspirações. Sem
discrepância, com irrefreável ímpeto lançaram-se ao estudo racional e avalizado posteriormente por comprovações,
sobre a supervivência do espírito depois da morte física. Não prevaleceu, neles, um outro objetivo maior e tal
dedicação prestavam firmeza e segurança as suas convicções.
O casamento deles, desenvolveu-se sempre sobre as sólidas bases de amor, sinceridade e respeito.
Ao término de abril de 1953, Dora viveu uma experiência inegável. Faltava um mês para seu casamento e fazia um ano
que a convivência com seu pai e sua mulher tornara-se insuportável. Eles, sem motivo exceto algumas cenas, absurdos
e infernais discussões, colocaram-se contra seu casamento com Josép. Aquele dia, seu pai ao ver que não conseguia
dobrar a vontade de sua filha e enraivecido diante de sua impotência, chegou a usar de violência física.
Dora, assustada ao extremo e machucada, buscou de imediato o apoio de seus avós. Um estranho tremor agitava-a
acompanhado de sudorese e náuseas, prévia do que resultou ser uma cólica hepática, segundo o diagnóstico feito pelo
médico em sua cabeceira. Horas mais tarde o pai de Dora colocou a cabeça pela porta do quarto da enferma para
continuar seus disparates e insultos, sem a menor consideração. Ela, desalentada chorava convulsivamente. Quando
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olhou e viu que seus passos se aproximavam, rogou: "Deus meu, até quando há de durar esta situação? Tudo isto não
aconteceria, sei muito bem, se minha mãe estivesse ao meu lado..." Então, em meio as suas lágrimas, apareceu com
toda claridade, o rosto sorridente de sua mãe. O rosto amado, adorado, jamais esquecido, radiante como se a luz do
sol o iluminasse, estava ali olhando para ela ternamente. O coração de Dora batia com força e por uns momentos lhe
pareceu que faltava ar para respirar. A imagem então se desfez deixando-a envolta em uma paz infinita.
A jovem tentou muitas vezes reproduzir, com a imaginação, aquela consoladora visão e, não lhe foi possível. A imagem
surgia borrada, sem cor e lhe faltava luz, mas acima de tudo carecia daquela realidade impalpável que havia acelerado
as batidas do seu coração, entretanto captava a autenticidade daquela presença, cheia de amor, de sua mãe.
Para Dora este fato significou uma irrefutável prova de imortalidade que havia de repetir-se em duas outras ocasiões
nas quais atravessava difíceis momentos. Sabia com antecipação que seus conflitos se resolveriam favoravelmente,
porque pontual, a mãe cuidou de prestar-lhe a ajuda moral que ela necessitava.
Josép e Dora descobriram o quão difícil é medir a quantidade de ternura que pode gerar um recém-nascido. A chegada
de seus filhos, um menino e uma menina num período de seis anos, lhes despertou um profundo sentimento de
responsabilidade e, tentaram assumir ao máximo seus deveres como genitores, não deixando de lado nada que
consideravam de vital importância para o bom desenvolvimento físico e espiritual de seus amados filhos.
No início de maio de 1954, teve lugar o momento obrigatório do batizado de seu primogênito. Em torno da pia
batismal se encontravam reunidos os bisavôs, avôs, enfim toda a família mantendo-se atenta aos movimentos do bebê.
O padre perguntou quando a criança havia nascido e a parteira muito pesarosa, temendo o que poderia ocorrer
disse a data. A voz do oficial disse: "Quinze dias! Sabem os pais desta criança que estão em pecado mortal? Esta
criatura corre grande perigo, é um pagão que necessita que lhe tirem o pecado original e, sem renunciar ao demônio e
suas obras..." O padre se aproveitou a contento em seu sermão falando a todos, indefesos e ao forçado auditório. Os
que ali estavam presentes não ignoravam que ele estava utilizando-se de um privilegiado pedestal, apoiado e mantendo
para ele o regime ditatorial do General Franco "General da Espanha pela graça de Deus".
Na atualidade esta suposta higiene espiritual, parece que não é tão urgente, uma vez que as crianças são
batizadas com vários meses de idade. Cabe perguntar, se antes era pecado mortal não batizar de imediato, por que não
é mais agora? Só necessita ratificação aquilo que não é exato, errôneo desde o princípio, imperfeito, como toda
doutrina humana. As leis divinas, por serem perfeitas, são imutáveis.




REFLEXÕES


O lugar no planeta Terra constitui uma valiosa aprendizagem, se estamos em condições de extrair as mensagens
constantes que nos transmitem as experiências próprias ou de outrem e Dora não desperdiçava nenhuma. Obtinha das
mesmas, as conclusões que lhe pareciam mais lógicas e tentava chegar ao fundo de qualquer questão, a experimentando
ao máximo.
Diante da incompreensível morte de um vizinho há poucos dias, surgiram as inevitáveis perguntas sobre a situação
mental dos bebês no céu. Seriam eternos recém-nascidos, por não terem chegado ao pleno desenvolvimento físico? E se,
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pelo contrário, haviam crescido mentalmente, em que momento e como se daria esta mudança? Seria justo que um ser, sem
esforço algum, pudesse desfrutar dos benefícios eternos? O amor infinito do Pai havia de gerenciar por lógica,
igualdade de oportunidades.
Uma vez mais, unicamente, a lei da reencarnação é capaz de dar uma resposta justa. Através dela podemos compreender
a Ordem e o Equilíbrio, que nos revela que nenhum ser tenha sido deserdado pelo Criador. Todos, o aceitando ou não,
estamos unidos por um vínculo extraordinário: todos somos filhos da Criação.
O grande novelista Victor Hugo, reafirmou a pré-existência da alma e sua sobrevivência com estas simples mas
profundas palavras: "La cuna tiene un ayer e la tumba tiene un mañana".
Sabemos que Krisna, Buda, Sócrates e Jesus, fidedignas fontes de sabedoria, não escreveram nada. Seus aprendizados
vem até nós, portanto, adulterados ou mal interpretados, sendo uma razão, para milhares de pessoas seguir sendo uma
incógnita o sofrimento humano.
A morte de um ser querido representa, para seus familiares, uma separação mais ou menos dolorosa e cruel segundo a
idade e circunstância em que ocorre. Dora viu, com o passar dos anos, que seus avós, aqueles queridos seres que
sempre a haviam rodeado de carinho e atenção, inevitavelmente, sofriam a natural deterioração física que ocorre na
velhice.
Chamou, em transe, a figura de Sócrates, o filósofo que, segundo Platão, foi um homem bondoso sábio e sereno...
Recaindo sobre ele a acusação de não crer nos deuses da cidade e de comprometer aos jovens com seus ensinamentos de
que somos seres imortais e tendo sido acusado e culpado foi condenado a beber cicuta. Ao conhecer este fato ele falou
do tribunal de maneira sossegada, relembrando: "A natureza condenará meus juizes a mesma pena". Quando seus
discípulos lamentaram de que ele tivesse que morrer sendo inocente, perguntou: " Preferirias por acaso que ele fosse
culpado?" Sua última recomendação é um valioso legado no qual ratificou sua crença na imortalidade da alma: " Fala
sempre com propriedade. Não digam vamos enterrar a Sócrates, mas sim, vamos enterrar o corpo que pertenceu a Sócrates.
"
Dora entendeu a mensagem e, ao partir suas dívidas ao mundo espiritual, por nenhum momento pensou que se
despedia em definitivo. O avô José sofreu uma fratura de fêmur e após este acontecimento surgiram graves
complicações. Esteve internado no hospital durante um mês, sem que lhe dessem medicações para dor ou calmantes,
porque dizia que nada lhe doía. A última semana falou a Dora, muito emocionado, que se sentia feliz de poder
regressar ao plano espiritual. Tinha plena segurança de reencontrar seus entes queridos: "Abraçarei aos meus filhos
Antônio, Montse e a tua mãe Cecília, eu a queria muito..." Dora às vezes lhe contemplava em silêncio. Ele rezava de
olhos fechados e sorria, abria os braços para agarrar com as mãos o vazio, alguma coisa lhe aproximava ao seu rosto e
ele aspirava com prazer. " São flores Dora, me trazem flores..."
O espírito do avô se despediu com suavidade de seu corpo. Manteve até o último momento uma serena lucidez,
portadora de tanta paz, que ajudou aos seus mais chegados solidificando a plena segurança de perpetuidade da vida.
Faz mais de dois mil anos, Cicerón, em honra de sua própria conveniência, conhecendo o benefício que lhe
ofereciam seus pensamentos, defendeu o direito de aceitar a sobrevivência com estas palavras: "Se erro em crer ser
imortal a alma do homem, com gosto e livremente erro; não quero que nada me tirem, enquanto vivo, este erro em que me
deleito".




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PERPLEXIDADE


Dora estava persuadida de que a disparidade dos textos bíblicos provoca distintas reações em seus leitores,
gerando incredulidade, confusão, fanatismo e inclusive uma fé solidificada, se renunciamos a submetê-los um estudo
racional ­ profundo.
Não se pode aceitar que seja palavra de Deus, o que segue: "E disse Jeová: Varrerei os homens que criei sobre a
face da terra, desde o homem até o animal, e até o réptil e as aves do céu; pois me arrependo de os haver feito."
(Gen. 6,7).
Com esta afirmação fica nas entrelinhas a infinita Sabedoria do Criador, uma vez que leva a pensar que Deus
desconhecia a qualidade de sua obra. Torna-se incompreensível ler que: " Jeová disse a Moisés: Pega todos os
príncipes do povo e enforca-os na presença de Jeová e perante o sol, e o ardor da ira de Jeová se retirará de Israel".
(Nm. 25,4).
Este duro castigo, imposto aos que adoravam a Deus, obviamente invalida o "não matarás". Em quantas infelizes
ocasiões foi aplicada tortura e morte em nome de Deus?
Depois de tropeçar com tantas contradições no Pentateuco, que descreve um Deus amante de sacrifícios, senhor dos
exércitos, que exige a adoração dos homens e se zanga diante de suas fraquezas, uma luz de esperança se vislumbra nas
seguintes citações: "Quando o homem cair não ficará prostrado, porque Jeová segurará em sua mão". (Sal. 37,23) e "
Antes que me chamem eu responderei; estando ainda eles falando, e eu os ouvirei" (Is 65,24).
Diante da leitura do Novo Testamento, Dora ia anotando os textos com os quais não concordava, pois ao se entender,
trazem dúvida e confusão.
É inegável que a Palavra chamada Deus, através dos séculos, foi sofrendo diversas transformações em quem sabe
quantas emendas. Existem disparidades nas passagens que podem parecer mais simples. Os evangelhos foram escritos
durante o primeiro século da era cristã, onde todo os sucesso por eles narrados deveriam estar claros e exatos para
os autores, entretanto não é assim.
É bastante conhecida a passagem dos mercadores do templo. Os quatro evangelistas dizem que Jesus virou as mesas dos
cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombos, citava as escrituras. João, inclusive, a ninguém ajudou para isto,
fazendo um acerto de contas. Os escribas e sacerdotes eram os que tinham conhecimento da lei e permitiam, sem dúvidas,
a favor de seus próprios interesses, o comércio dentro dos templos. A reprimenda, ou seja, apenas uma reprimenda,
teria que se dirigir aos responsáveis desta infração. Não se concebe a Jesus trabalhando de forma tão agressiva,
efetuando um ato que desminta sua própria mensagem. Ele recomendava aos seus seguidores a "mansedumbre", a paciência
o perdão e o amor.
Desconcertantes são também, as versões que dispomos do evangelho de Lucas 22,70, Jesus ante o Sinédrio: "Logo tu és
o filho de Deus?" E Ele lhes disse:"Vós dizeis que sou eu". Em outra versão lemos:"Então, tu és o filho de Deus?" E
Ele lhes disse: "Vocês que dizem, Eu sou".
Na última tradução internacional, em Catlán, modificou-se o símbolo de interrogação por um símbolo de exclamação, o
que equivale a uma afirmação. "Então, tu és o filho de Deus!".
Qual destas três versões corresponde ao texto original? Tem-se um verdadeiro cabedal de possibilidades, onde cada um
pode eleger de acordo com suas convenções e pontos de vista.
No texto em que se fala da crucificação, Mateus, Marcos e Lucas assinalam que "todos seus conhecidos e as mulheres
que os haviam seguido desde a Galiléia, estavam de longe olhando todas as coisas". Notável é a diferença com a qual
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João cita a célebre frase de : "Mulher, aqui está teu filho". Depois disse ao discípulo: "Aqui está tua mãe".
Evidentemente, esta cena foi transmitida com grande força no mundo católico. O que não se compreende é como a mãe de
Jesus, pode estar longe e ao pé da cruz ao mesmo tempo. Nem tão pouco que tivesse que designar aos que já possuía.
"Não é este o filho do carpinteiro? Não se chama Maria sua mãe e seus irmãos Jacó, José, Simão e Judas? Não estão
suas irmãs com nós"? (Mt 13,55).
O relato da morte de Judas também é confuso. Mateus diz que Judas vendo que Jesus fora condenado devolveu,
arrependido, as trinta moedas de pratas aos sumos sacerdotes e aos anciãos. E jogando as moedas de prata no templo,
saiu e enforcou-se. Os sumos sacerdotes recolheram as moedas e como não era licito deixar o tesouro de oferenda, por
ser preciso de sangue, compraram com estas moedas o Campo de Alfarero como local de sepultura para os forasteiros.
Entretanto, no primeiro capítulo dos Feitos dos Apóstolos, lemos que Judas com as moedas de sua traição, comprou um
campo e caindo de cabeça, esborrachou-se ao meio e todas suas entranhas se derramaram. Serve o comentário de tão
desagradável acontecimento, para destacar a inexatidão de ambas citações. As perguntas são: quem comprou o campo, os
sacerdotes ou Judas? E como morreu o desventurado discípulo, enforcado ou arrebentado?
Os intérpretes e tradutores dos evangelhos deveriam ter levado em consideração que, com o tempo, as escrituras
estariam ao alcance de todos os povos.



MESTRES


Josép e Dora, após um determinado tempo de troca de idéias, convenceram-se de que para conhecer qual deve ser o
correto comportamento humano, é imprescindível estudar minuciosamente as mensagens dos Mestres.
Os seres humanos têm o direito a uma informação fidedigna e as religiões, sem dúvida, junto às raízes dos
ensinamentos dos Grandes Mestres, consentiram no desenvolvimento em abundância, a densa maldade de seus dogmas,
filhos do orgulho e da ignorância. Apesar disto, por mais obscuras que sejam as nuvens que encobrem as horas dos dias,
o Sol sempre está aí , difundindo luz e calor.
O ponto de partida deve ser o reconhecimento do Amor Infinito da Causa Primeira. Todo o conceito ou postulado
que não destaca o princípio da Sabedoria e Igualdade, forçosamente se desmanchará em sua base por mais que se
pretenda sustentar-lhe com ostentação, mas também com débeis argumentos.
Assombrosa é a semelhança entre a mensagem dos enviados. No Bhagavad Guita, que significa "O Canto do Senhor",
Krisna disse: "A sabedoria espiritual consiste na humildade, modéstia, bondade, misericórdia, retidão, obediência,
pureza, perseverança, domínio próprio, despego e altruísmo".
"Podeis alcançar a bem-aventurança suprema de duas maneiras: a primeira é a justiça de pensamento e a segunda é
a justa ação. Que cada um cumpra sua ação segundo sua tendência e a conformidade das qualidades superiores de seu
caráter."
"Sou o mesmo para todos os seres. A ninguém prefiro nem aborreço. Pede e receberás. Em toda oração me faço
presente".
Confúcio queria que os povos vivessem em paz e aconselhava a humildade e o amor. "Quando sabemos algo, é sábio
reconhecer que não o sabemos". "Não faças aos outros o que não deseja que os outros façam a ti".
Buda em sua prédica usava a compaixão. Sabia que ela era a manifestação do amor e clamava: "Bem aventurados
aqueles cuja conduta é pacífica, honesta e pura".
E Jesus exclamava: "Sede vós perfeitos como perfeito é vosso Pai é perfeito". (Mt. 5,48). "Tudo quanto, pois,
quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também; porque esta é a Lei e os profetas". (Mt. 7,12)
O ensinamento é único pois provém da mesma Fonte. Escutemos a todas e a cada uma das Vozes com o mesmo respeito
Só temos que adequar sua linguagem aos conhecimentos presentes, que marcam diferentes formas de expressão.
As mensagens, para nos recordar, são palavras que só tem força se as colocamos em prática seus ensinamentos.
São luz que podem iluminar a mais densa escuridão, mas cabe a nós mesmos abrirmos as janelas do espírito e
contemplarmos o horizonte, longínquo mas real, que nos chama. A tão desejada paz na Terra, está ao nosso alcance.
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Vive em nós, presente em todos os momentos. Não exige maior esforço do que entremos em meditação, deixando de lado
vaidades humanas, liberta-nos de egoísmos e rancores, sacudindo-nos de jogos mesquinhos do ódio, concluindo por nos
convertermos nas mensagens vivas dos ensinamentos dos Mestres.
Enquanto não sermos um exemplo palpável de Amor feito obras, contudo mesmo que este Amor não nos impulsione a
estender a mão a todas as criaturas, mesmo que em nome de Krisna, Buda, Confúcio ou Cristo, sentindo-nos superiores,
descriminamos ao próximo, ao contrário de nos orgulharmos da claridade que fazemos, nos envergonhamos da esmola que
damos, desenganemo-nos, pois não compreendemos com toda sua magnitude a sabedoria das mensagens.
Não podemos permitir por mais tempo o luxo de seguirmos atrasando o processo evolutivo do planeta. De queremos que a
paz reine em todos os povos, urge que dialoguemos apoiados na Lei da Reencarnação, que une a todos os seres. Ela nos
diz que não existe castigo algum, nem atemporal nem eterno, mas nos obriga a reparar as transgressões. As
vicissitudes, mais ou menos difíceis e dolorosas, que cada ser humano, sendo o resultado de seus próprios atos, a Lei
da Conseqüência unida a necessidade imperiosa de superação espiritual nos impulsiona a corrigir preteridos erros.
Somos obrigados, portanto, a entender que é assim simples, tão simples como as mensagens dos Mestres, que insistem
sobre a conveniência de converter numa realidade o amor fraterno.




PABLO DE TARSO


Dora estava consciente de que não é possível comentar em umas poucas linhas, a obra de Pablo de Tarso, a quem
devemos o Hino a Claridade, em sua primeira carta aos Corintios. Ele demonstrou ser um espírito forte e valente.
Dedicou-se com ardor e obstinação a seguir aquela nova seta que seguia os ensinamentos do Nazareno, mas não empregou
menos ímpeto e convicção a hora de converter pagãos. O incansável apóstolo tinha pressa, acreditava na vinda do
Senhor tão próxima que, ingenuamente, escreveu aos tessalonicenses: "Logo nós, os que vivemos, os que ficamos,
seremos arrebatados justamente com eles (os ressuscitados), entre nuvens, para o encontro do Senhor nos ares, e
assim estaremos para sempre com o Senhor (1 Ts 4,17)".
Faz 2.000 anos que são transcorridos e tão entusiasmada proclamação não se cumpriu, prova irrefutável que este
tópico deixa muito de ser profético. Pablo em suas epístolas, reiteradamente, induz, repreende, fala de amor, de
deveres, de salvação por graças e condenação eterna. É evidente que nunca se pode sustentar a força de suas profundas
raízes farisaicas e seguia conservando a idéia de um Deus partidário: "De modo que, quem Ele quer, tem misericórdia e
quem Ele quer endurecer, endurece". (Ro 9,18).
E ratificou com esta passagem: "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isso não vem de vós, é dom de
Deus; não de obras, para que ninguém se glorifique." (Ef 2,8)
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Esta citação se opõe a muitas outras da mesma Bíblia, que por sua lógica adquirem maior valor e autoridade. "Tu
educas o homem, castigando suas culpas". (Sl 39,12) "E tua, oh Senhor, é a misericórdia; porque pagas a cada um
conforme suas obras." (Sl 62.12).
Cabe recordar aqui a parábola do filho pródigo que relata o evangelista Lucas e, que por não ser tão conhecida,
é menos consoladora. O filho, ávido por liberdade, abandona sua casa paterna empreendendo-se a viver unicamente de
suas custas. Mas em sua recém adquirida independência adoece de falta de experiência. Loucamente, portanto, deteriora
sua herança e acaba sumindo na miséria. É nesta situação que sente saudade do local paterno e decide regressar para
suplicar o perdão e apoio. Seu pai, com indisfarçável alegria, recebe o filho extraviado e de tal modo é sua
felicidade que converte este dia em uma festa.
Em nenhum momento esta parábola nos fala de "graça". Ao contrário, deixa bem explanado que é o filho quem causa
sua dolorosa experiência e, volta arrependido junto a seu pai, por sua própria decisão.
Se os espíritos regidos pela Lei da Evolução, iniciamos a espiral de nosso crescimento moral a partir da
simplicidade e ignorância; se a tentamos, tropeçamos, caímos e nos lastimamos; se nos fundimos aos abismos de todos
os desacertos humanos; se envoltos abaixo de todo peso de horríveis culpas, um dia desejamos emergir destes
sentimentos mesquinhos, pequenos e envergonhados, não encontramos razão alguma para que, no porvir dos tempos,
possamos "glorificarmo-nos" de nossas ações quando estas são boas.
León Denis em seu livro "Cristianismo e Espiritismo" disse categoricamente:"Porque Deus, que é a justiça
absoluta, não pode querer a condenação, nem a salvação pela "graça" ou por méritos de um salvador, se não a salvação
do homem pelas suas próprias obras..."
Só podemos aceitar a possibilidade do dogma da salvação pela graça com óbvia redução da Igualdade Divina. Se
assim fazemos, nos encontraremos frente a incrível caricatura de um deus de minguados atributos. E voltaremos a fazer
inumeráveis perguntas que não tem respostas razoáveis. Porque está aí, presente, vivendo conosco, a dor humana; esta
desagradável hóspede que chega sem avisar e se acomoda em nossa vida sem que, na maioria das vezes, possamos
afugentá-la. Chegando a este ponto, nos lançaremos em rebeldia, lamentando a injustiça que significa a notória
desigualdade de condições que sofremos nós mortais. Isto equivaleria a voltar a cair em um turbilhão de desordem e
confusão.
Allan Kardec, na pergunta 199 de sua obra "O Livro dos Espíritos" declara o seguinte:" Por meio da reencarnação,
se estabelece a igualdade à todos. O porvir pertence a todos sem exceção e não há favores para ninguém. Os que
chegam últimos, só podem atribuir isto a si mesmos. O homem deve ter o mérito de suas ações, assim como lhe cabe a
responsabilidade por estas".




TESTEMUNHAS DE JEOVÁ

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Dora encontrava persistente e incômoda a insistência das Testemunhas de Jeová, pretendendo que acordemos com ódio de
sua mensagem de salvação. Eles têm muita pressa pois crêem que se nos esgotam as oportunidades e não perdoam as
ocasiões apelando, uma ou outra vez, para a mesma porta. Manejam a bíblia com habilidade e dela extraem os versículos
mais de acordo com suas crenças. Tentam aproveitá-la por inteiro, num imenso esforço de aceitar, inclusive, o
inadmissível. Temos que reconhecer que este famoso livro oferece grande leque de interpretações.
As Testemunhas de Jeová, dispõem de um conhecido órgão de difusão, a sua revista "Despertar", que usam para entrar
em contato com possíveis "prosélitos" e serve, ao mesmo tempo, para afugentar possíveis argumentos que surjam a
medida que sejam examinados.
Em Gênesis, ele fala do diabo, através de uma serpente, induzindo Eva a desobedecer a proibição de comer o fruta da
árvore do bem e do mal. Deste relato podemos deduzir que, anteriormente, Deus havia criado alguns anjos que saíram a
contestá-lo, uma vez que cheios de orgulho e necessidades rebelaram-se contra Jeová. Desde então os demônios, em
guerra declarada, cometem impunemente todo tipo de atos. "Deus" cujo poder é a todas as luzes muito limitado, não
pode de maneira nenhuma impedir os assédios dos inimigos, atentando aos pobres mortais a inevitavelmente descumprir
as leis divinas.
Ou seja, confirmam que Deus não tem sabedoria infinita, uma vez que não poderia prever o nefasto comportamento dos
anjos caídos, nem as mal feitas conseqüências que sofreria, posteriormente, toda raça humana. De onipotência, muito
menos, pois sua obra se encontra estragada por este ponto de destruição, sem poder remediá-lo.
E o que dizer sobre a perfeição de Jeová? Ficou escrito em Eclesiástico, 16 "Misericórdia e ira estão com Ele, tão
poderoso em perdoar como em sua ira." A raiva é um defeito de seres imperfeitos. Arrebatado de raiva, fúria ou cólera,
qualquer uma destas emoções indicam o contrário de tenacidade. Gratuitamente a ignorância humana tem atribuído a
divindade limitações sem nomes. É incompreensível que ainda hoje, muitas doutrinas continuam sustentando estes erros.
As testemunhas de Jeová, empenham-se em provar a imortalidade da alma, indo aos extremos buscar as mais absurdas e
insustentáveis explicações, acerca da origem das mensagens que dizem os espíritos através de distintas mediunidades.
"Se a alma, dizem com a bíblia nas mãos, se a alma não é algo que segue vivendo depois da morte física, é impossível
que os vivos possam se comunicar com elas. De modo que as supostas manifestações espirituais são obras exclusivas do
mesmo Satanás e sua corte de espíritos malignos." Infantil este argumento, pois mostra quão arriscado é falar de um
tema que se desconhece. Depois de estudar as obras de Allan Kardec, o fundador do Espiritismo e outros autores,
ninguém poderá atribuir ao demônio os fenômenos espirituais.
O demônio não existe, teria que tê-lo criado Deus e Ele não poderia equivocar-se. Sim, existem espíritos
inferiores, pela simples razão de que são seres que estão evoluindo, mas com tempo, superadas todas as etapas
necessárias, chegarão a ser espíritos puros.
Os espíritos inferiores não são os únicos que podem comunicar-se com os moradores da Terra, buscando em sua
maioria das vezes, descanso para seus tormentos. Deus permite que os espíritos bons se aproximem de nós para trazerem
mensagens certas de esperança e consolo. Eles são a prova irrefutável da imortalidade, esclarecendo a própria
incógnita do sofrimento humano, e induzem ao crescimento espiritual praticando o Bem, único meio de alcançar a Paz.
Podem ser estes os ensinamentos do Diabo?
De maneira nenhuma, pois ele estaria violando seus próprios interesses, ao converter-se em porta voz da
existência de Deus e da necessidade de cumprir suas leis.
Prova da diversidade de espíritos que podem comunicar-se com os mortais, é esta sábia advertência " Amados, não
os fiéis de qualquer espírito, mas examinai se os espíritos vem de Deus". (1 Jn 4)
É fundamental reforçar a necessidade de estudar seriamente "O Livro dos Médiuns", de Allan Kardec para
informarmos com toda exatidão, sobre os benefícios e riscos que acometem estas faculdades mediúnicas. Há pessoas que
ignoram possuí-las, o que lhes acarreta uma série de problemas, dúvidas, confusão e inclusive o temor de sofrer
tormentos mentais por desconhecer a origem de suas percepções audiovisuais. Ao contrário do que se supõe, são os
ensinamentos Espíritas que auxiliam estes médiuns a desenvolver e encontrar o equilíbrio e a calma interior,
conseguindo que voltem a viver com normalidade, todas as suas atividades cotidianas.
As testemunhas de Jeová asseguram que a Bíblia, ou assim o tem incluído na sua, os dizeres: "Não vos volteis
aos Médiuns espíritas..." (Levítico 19,31).
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É curioso ao extremo "ler" esta frase na sua versão no antigo testamento. Uma vez que a palavra Espiritismo tem
pouco mais de 143 anos e devemos sua existência a Allan Kardec, que a utilizou pela primeira vez para designar a
doutrina Espírita. É provável que as Testemunhas ignorem este importante requisito, uma vez que imprudentemente,
tenha sido acrescentado o mencionado vocábulo a sua particular interpretação da bíblia.Todavia, impelidos pelo
fanatismo doutrinário para combater a crença na imortalidade da alma, não vacilaram em fazer notório, sem
conhecimento de causa, que "consultar médiuns, perguntar aos mortos ou buscar presságios, são praticas espíritas.
Algumas formas de adivinhação são da astrologia, da quiromancia, consultar uma bola de cristal, interpretar sonhos e
ler cartas de tarô. A tudo isto a revista "Despertar" chama de "algumas formas de espiritismo".
Com respeito a interpretação dos sonhos, cabe destacar a um famoso interprete, José o primeiro filho de Jacó,
segundo relata Gênesis. Quando seus companheiros de prisão lhe perguntaram se poderia interpretar o significado dos
seus sonhos, ele contestou: "Não são de Deus os sentido ocultos?". Conhecido é o episódio das sete vacas gordas e
sete vacas magras, tanto que até hoje utilizamos esta referencia para nos referirmos aos tempos de fartura e escassez.
Estarrecido o Faraó com a exatidão com que José prescreveu a mensagem de seus sonhos comentou: "Por acaso
encontraremos outros como este que tenha o espírito de Deus?"
O evangelista Mateus escreveu que em quatro ocasiões, um anjo apareceu nos sonhos de José, marido de Maria,
primeiro para não repudiá-la pela gravidez. Depois prevenindo sobre as péssimas intenções do rei Herodes,
indicando-lhe que fosse ao Egito com sua família. Mais tarde notificou a morte do rei, sendo que poderia voltar a
Israel porque Jesus não correria perigo algum. E uma vez ali, o anjo aconselhou-o que este se instalasse na Galiléia,
na cidade de Nazaré.
O Espiritismo não pode evitar que um bom número de pessoas se auto-intitulem médiuns e videntes e ofereçam seus
serviços para obter lucro, sem conhecer ou pertencer à doutrina espírita.
É justo, entretanto, distinguir os que se dedicam honestamente a prestar ajuda moral e, por meio de alguma das
práticas chamadas adivinhatórias, clamando a inquietação de seres que vivem situações dolorosas e incertas.. Por
seus frutos se conhece a árvore!
É preciso demarcar que o Espiritismo não aceita nenhuma destas práticas. A crítica é saudável quando denuncia
possíveis erros, após haver observado de forma imparcial. Se não se cumprem os objetivos de polir conceitos e formas
de proceder, a crítica converte-se em uma arma destrutiva e ruim porque desqualifica propositalmente as pessoas ou
doutrinas.




A GRANDE ALTERNATIVA


Dora observava como sua filha escolhia entre um monte de peças de distintas formas e cores, a que precisava para
reproduzir o modelo do quebra-cabeça. Pouco a pouca surgia uma bela paisagem, um céu com rosadas nuvens, um monte ao
longe, um vale no qual se vislumbrava uma pequena aldeia e em um plano via-se mansas águas de um riacho onde em sua
margem cresciam frondosas árvores; em sua margem esquerda, dois jovens pastoreios vigiando atentamente a uma meia
dezena de ovelhas. Para poder apreciar o quadro em sua totalidade, é imprescindível que não falte nenhuma peça e que
todas estejam dispostas corretamente em seus lugares, ou não sendo assim apareceria uma paisagem incompleta, um
amontoado de inexpressivos vazios.
Dora invocou a base e conceitos que sustentam a maioria das religiões e sorriu. São tão infantis e
inconsistentes que não resistem ao livre exame. Faltam as peças importantes para revelar com maior precisão o grande
enigma da vida e da morte, esta palpável realidade por todos conhecida e a qual ninguém pode escapar.
Nossa efêmera passagem pela Terra e as diferentes situações que nos envolvem, possibilitam admitir que nascemos
com um plano pré-concebido. Observando os efeitos, deduz-se logicamente que procedem de uma causa. A pré-existência
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da alma, dotada de livre arbítrio e seu equivocado comportamento no passado, apontando a caminhada que se percorrerá,
com mais ou menos dificuldades, no presente e em existências futuras, segundo seu desenvolvimento moral. Descartar o
ato irrefutável da evolução dos espíritos através da lei de Reencarnação, equivaleria a negar a justiça divina.
A crença em apenas uma vida, é relativamente recente, aparecendo nos primeiros séculos do cristianismo, esta
doutrina que a ignorância ou interesse pouco louvável de seus dirigentes, tenham deformado sensivelmente. Em relação
as penas futuras, o inferno pagão era mais equitativo com os condenados que caiam nele. As penas se aplicavam de
acordo e, no Tártaro, segundo a culpabilidade das desordens cometidas.
No ano de 593, a igreja católica com a intenção de corrigir ou suavizar a dureza das penas inventou o
Purgatório, um lugar onde se poderia pagar os pecados venais. A raíz disto é o escandaloso comércio de indulgências,
onde com esta ajuda se vendia a entrada para o céu. O interessado tinha a opção de abonar de seus erros cometidos na
vida e designar outra pessoa para os cumprir, depois de sua morte. Este abuso foi a causa da primeira reforma. Entre
outras coisas, Lutero, não estava de acordo com as orações pagas.
Quão certo é que nada há de novo embaixo do sol! No segundo livro de Macabeos, capítulos 12, 43, 46, do Antigo
Testamento, se cita um precedente: "Judas, depois ter reunido entre seus homens cerca de dois mil dracmas , mandou-as
a Jerusalém para oferecer um sacrifício de pagamento de dívidas em favor dos mortes, para que ficassem livres de
pecados".
É obvio que se recorremos a este subterfúgio é para alcançar a eterna glória. O difícil é escapar da
condenação eterna a qual os seres humanos podem tornar-se credores, pelos mais distintos deslizes.
Célebre é o final da personagem de ficção, Don Juan Tenório, que se livrou da condenação eterna ao ver passar
seu próprio enterro, tendo assim a total segurança de supervivencia da alma e arrepender-se dos seus múltiplos crimes
e maus costumes. A habilidade de Zorrilla de calcular que seu protagonista poderia ser liberto cinco minutos antes de
morrer, também merecia sê-lo depois de seu corpo morto. Uma inspirada e poética mensagem.
As aprendizagens que Dora recebera em sua infância, diziam que é um pecado mortal faltar à missa num domingo,
por exemplo: chegava-se a morte sem saber, sem conceder devido tempo para arrependimentos, se adquiria o direito de
ser hóspede perpétuo do antro infernal. Se a Igreja predicou esta "minúcia" com o intento de atemorizar sua clientela,
o conseguiu amplamente. Cumprido este objetivo se concluiu, parece, que assegurar a existência de um castigo eterno,
que sempre guardaria maiúscula proporção com a falta cometida, é admitir também, automaticamente, que a Bondade e
Justiça divinas não são infinitas, de acordo que tenham um limite. Nunca se insistirá de suficiente maneira em
denunciar tamanha injustiça.
Dora fez um bico de desagrado. As peças do quebra-cabeças doutrinário não se encaixavam. A humanidade têm três
alternativas: A nada, a absorção (panteísmo), ou a individualidade da alma antes e depois da morte. Nada é silencio,
imobilidade, vazio e destruição. A doutrina que precisa de absorção no todo universal, assinala que a alma perde sua
individualidade ao submergir no infinito, como uma gota d´água no oceano. De que lhe serviria a alma, seus esforços
para melhorar se negamos o direito de conservação do seu eu?
Tão pouco auxilia a idéia de uma só vida, pendente de mil situações equitativas, sem resposta satisfatória, que
conduz a um final infeliz e irrevogável.
Diz Allan Kardec em seu livro "O Céu e o Inferno" capítulo 1,8 " Uma teoria não pode ser aceita como verdadeira
sem que a condição de satisfazer a razão e dar conta de todos os feitos que a envolvem. Se somente um fato vem a
desmentí-la, é porque não possui a verdade absoluta".
Segundo esta premissa o mais prudente é rechaçar qualquer doutrina que não reúna tais condições onde um exame
profundo deixará descoberto a inexatidão de seus postulados.
Quando alguém desconhece a raíz profunda da Reencarnação, cabe comentar que é injusto viver situações dolorosas
por um mau procedimento que "outra" pessoa teve em um tempo mais ou menos distante. Esta queixa se formula ao não
captar que não se trata de outra pessoa, mas sim do mesmo Espírito utilizando distintos corpos e criando
circunstâncias adversas em virtude de seu livre arbítrio. De outro modo, acaso seria mais justo viver, às vezes desde
a mais tenra idade um azar cruel e caprichoso, fazendo-se necessário aqui, utilizar o raciocínio para encontrar as
devidas respostas.
Empédocles, filósofo grego nascido no ano de 492 antes da era cristã, admitiu a reencarnação das almas como
processo de purificação. A evolução do gênero humano é lenta, mas Jesus que conhecia esta lei assegurou: " Toda
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planta que meu Pai Celestial não plantou será arrancada". (Mt 15,13). Isto acontecerá quando a imensa maioria dos
habitantes do planeta Terra prescinda da ajuda moral de guias cegos.




A HUMANIDADE E SEUS DEUSES


Dora sabia que desde as mais remotas épocas, os povos primitivos estavam envoltos em espessa camada de neblina
em sua ignorância, motivados pela débil luz que iluminava sua capacidade de compreensão, em tal principio de
raciocínio, reconheceram nos mais distintos elementos da natureza, forças superiores. Impotentes para vencê-las,
submeteram-se a elas dando-lhes nomes e oferecendo-lhes todo tipo de sacrifício para acalmar suas iras e obter
compensações, como o nascer do sol todos os dias, receber o benefício da chuva ou o cessar de ventos e tempestades.
Um grande número de deuses, semideuses, heróis, mitos e lendas enriquecem a história dos povos e suas profundas
raízes se perdem na noite de ancestrais tempos.
Em um momento oportuno, quando os seres humanos estavam mais ou menos preparados para assimilar os primeiros
ensinamentos, apareceram os Mestres idôneos, ensinando aos seus pequenos alunos, o caminho a percorrer.
Tal como estava escrito, o Messias devia nascer na casa de Davi. José o carpinteiro, se era descendente de dito
rei, o que se deduz de que alguém estava enganado, porque se Jesus havia sido concebido pelo Espírito Santo,
geneticamente não poderia ser considerado filho de Davi. "Sobre vosso filho, nascido de linhagem de Davi segundo a
carne" Pablo em Ro 1,3.
Outra grande confusão pode ser percebida em Isaías 7,14 "Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho, e
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lhe chamará Emanuel. O termo hebreu "almah" refere-se a uma moça ou jovem recém casada, mas sem contar isto. A versão
grega traduz jovem por virgem".
No ano de 431 o Conselho de Efeso, parodiando os melhores tempos da mitologia, estabeleceu como divina a
maternidade de Maria. Partindo do princípio de que o povo já não exercia o uso de exame, ficando comprovada a idéia
por absurda que seja, primeiro por quem detinha o poder, depois a impondo e com o passar dos tempos sendo aceita por
grande maioria.
Cabe-nos perguntar até que ponto são confiáveis as seguintes indiscrições íntimas do matrimônio de José e Maria:
"Contudo, não a conheceu enquanto ela não deu à luz ao primogênito e lhe deu o nome de Jesus". (Mt 1,25) Este
texto além de negar uma "virgindade perpétua", abre espaço para falar dos irmãos do Mestre.
"Depois desceu a Cafarnaúm com sua mãe, seus irmãos e seus discípulos" (Jo 2,12).
Convertida polêmica desatou o dogma da trindade, sem dúvidas é a autoridade do próprio Jesus quem a manifesta,
em profusão, que ele não é Deus.
"Porque de Deus eu saí, e vim e não de mim mesmo, mas Ele me enviou" (Jo 7,33).
"Se me amasseis, alegrar-vos-eis de que eu vá para o Pai, pois o Pai é maior do que eu." (Jo 14,28).
"Porque eu não tenho falado por mim mesmo, mas o Pai que me enviou, esse me tem prescrito o que dizer e o que
anunciar". (Jo 12,49)
"Se alguém quiser fazer a vontade dele, conhecerá a respeito da doutrina, se ela é de Deus ou se eu falo por
mim mesmo". (Jo 7,17)
"E a palavra que estais ouvindo não é minha, mas do Pai que me enviou" (Jo 14,24).
Allan Kardec em seu livro " Obras Póstumas" faz um completo e profundo estudo sobre a natureza de Cristo e
comenta: " Desde o momento em que nada faz por si mesmo, mas sim como pela doutrina insigne não sendo sua, mas que a
recebe de Deus, que mandou que ele viesse para a conhecermos, desde o momento em que só faz o que Deus lhe deu poder
para fazer e que a verdade que ensina a aprendeu com Deus e cuja vontade esta submetido, Cristo não é o mesmo que
Deus, mas sim seu enviado, seu messias e seu subordinado."
Cristo reiteradas vezes, insiste em que não somos órfãos, pelo contrário, nos fala de um Pai de Amor e Bondade
a quem devemos nos dirigir dando seu nome para chamar e "cotidiano pão" alimento do corpo e força necessária para não
"cairmos em tentação".
"Se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai que está nos céus dará
boas cousas aos que lhe pedirem!". (Mt 7,11).
E ao traçar o tipo de conduta que mais convém, assinala: "Portanto, sede perfeitos como perfeito é o vosso Pai
celeste." (Mt 5,48).
Fica evidenciado que Jesus teve marcado interesse em ressaltar a expressão "vosso Pai que esta nos céus" a fim
de que não nos esqueçamos de quem procedemos.
A máxima revelação teve lugar depois de sua morte física quando apareceu para Maria Madalena e, categoricamente,
sem deixar a menor dúvida declarou: " Vá ter com meus irmãos, e diz-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu
Deus e vosso Deus". (Jo 20,17).
O Mestre nos incita a ser perfeitos, mas admite os diferentes e distintos graus de inferioridade moral do
gênero humano, é impossível pensar que se pode alcançar a perfeição em uma única existência na Terra, por mais
longevidade que tenhamos. Assim que se torna imprescindível aceitar o processo de múltiplas existências, sempre
solidárias umas com as outras para que se cumpra a Lei da Evolução Espiritual.
"Em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim, fará também as obras que eu faço, e outras maiores
fará, porque eu vou para junto do Pai". (Jo 14,12).
Nesta significativa passagem, Jesus, se desnuda de que não é Deus, pois se nós pudermos fazer "obras maiores
que ele" equivaleria a possuir uma ilimitada capacidade para poder superar "as obras de Deus".
A humanidade acredita ser uma grande expert em fabricar deuses. Divide e volta a dividir, uma e outra vez, as
mesmas mensagens. Com a intenção de engrandecimentos, iluminando o turno, se atreve a retocá-los, esclarecê-los,
segundo seus critérios, buscando as mais inverossímeis respostas, nos pontos menos crédulos, aqueles que não resistem
a uma análise racional. Agora, praticamente todos os desentendimentos religiosos se flagram elaborando, cada qual,
seus livros sagrados e suas conseqüentes e convenientes citações, antimatizando em seu nome o oponente.
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Os chefes de todas as crenças religiosas que procedem de um mesma ramificação, asseguram que Há mais coisas que
os unem do que os separam, mas sem dúvidas, longe de parecer uma atitude conciliadora, demonstram que "este pouco" é
um muro intransponível, porque cada um diz ser o único caminho disponível e de verdadeira salvação.
Os sofridos e incautos, balançados por temor e espanto devido aos "castigos" aos quais podem ser credores ao
tentar estudar outras opções, ficam envolvidos pelo emaranhado da fé cega. Nega-se a eles o livre arbítrio, ficando
assim paralisados e longe de um caminho que conduz ao conhecimento de uma Verdade maior, a qual nos faz livres.
Não podemos ser escravos da insegurança, se sabemos que somos filhos de um único Pai de Amor infinito, nos
convertemos todos em legítimos herdeiros da Vida crescente, plena, inacabável... e merecedores do mesmo indiscutível
destino!




DAS MEMÓRIAS DE DORA


No verão de 1999, Dora recolheu um bom número de recortes de jornais que falavam das últimas declarações do papa
Wojtyla, onde este declarava não existir o clássico céu e inferno. Espalhando os artigos sobre sua mesa de trabalho,
o conteúdo destes, despertou de imediato um impulso que teve a virtude de devolvê-la aos acirrados dias que seguiram
o término da guerra civil espanhola. O colégio regido pelas freiras, sob o amparo da mais severa ditadura, acolhendo
a este privilégio, propagando a destruidora idéia de um atroz inferno para os que haviam falecido durante este
período, sem os auxílios espirituais exigidos pela igreja.
Dora reviveu todo o terror e sufoco que se apoderaram de seu infantil coração, pensando na terrível sorte de sua mãe
querida, após sua morte. Agora, em sua maturidade, não pode conter a tormenta de queixas, censuras e argumentos que
existiam dentro de si e a irritavam em seu diário.
"Julho de 1999 os meios de comunicação informam que o papa Wojtyla parece ter feito uma importante descoberta de
acordo com os jesuítas que sempre demonstraram ser mais dispostos. Agora o céu não está em um lugar concreto de rosas
nuvens e anjos de cabeças e asas sem coras, nem tão pouco existe um inferno com fogo e enxofre. As pessoas do
Vaticano sempre despertam tarde. Quando dão conta do que estão fazendo, levando algo ao ridículo mais embaraçoso,
apressam-se em dissimular o engano, e assim, sempre com a intenção de proteger os privilégios terrenos e assegurar a
fidelidade da sua clientela. Fazem poucos anos, a Igreja pediu perdão, publicamente, a Galileu, que esteve a ponto de
perder a vida por ordem dos "sábios inquisidores" pois assegurava que a Terra não era o centro do universo.
"As declarações do Papa oxalá tenham tranqüilizado a mais de um católico, pois lhes fica o consolo de que uma noite
deixam de respirar, com um pecado bastante pesado em sua consciência e sem tempo de confessá-lo, não se tostarão no
inferno. Uma lástima que os "infalíveis" de Roma não tenham sido iluminados sessenta anos atrás. Eu teria me poupado
da cruel angústia de acreditar que minha mãe viveria eternamente envolta em chamas e, sem uma gota de água para
saciar sua sede."
"A parte de perseguir e decorar o descolorido e empoeirado João Paulo II, conservando o argumento da obra. Ele leu
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que " O céu e o inferno são um estado de alma. O inferno, mais do que um situação que vive quem se afasta de Deus
definitivamente e por vontade própria. Não necessitamos atribuir a condenação a iniciativa de Deus, porque em seu
amor misericordioso, Ele não pode querer outra coisa que a salvação de todos os seres que criou. Na verdade é a
criatura que recusa seu amor. A condenação consiste, portanto, na separação definitiva de Deus". Com estas
manifestações o Sr. Wojtyla ficou muito satisfeito. Mas não reparou que o Infinito Amor de Deus, deve estar em
equilíbrio com a sua infinita Justiça, e o castigo, por mais grave que seja, sempre será desproporcional. Alguns
teólogos, utilizando-se de um sentido comum, também o pontuam desta forma.
"Jamais esquecerei a imensa confusão , dúvidas, e angústias que recebi da Igreja. Não quero me esquecer. Pelo
contrário, quero manter isto vivo em minha memória, para que jamais dominem minha capacidade de discernir e
argumentar todas contradições que esta instituição prega. Muitos dos fregueses agora, já não são tão obedientes e
fiéis. Qualquer ser batizado pode se sentir teólogo e opinar sobre temas considerados sagrados. A liberdade de
expressão e a perda do poder eclesiástico, o fizeram possível. O imponente edifício mostra numerosas fissuras
demonstrando sua vulnerabilidade e isto instiga a pensar se as bases da fé descansam em um terreno suficientemente
sólido".
"Este é meu grande desafio, buscar contra-sensos, incoerências, erros e superstições, sustentadas ao longo dos
séculos, por quem , com desmedido orgulho, teve pretensão de estar em posse de toda verdade, afirmando serem
ministros indiscutíveis do mesmo Deus. Todavia hoje, ainda defendem que toda a estrutura da doutrina católica
descansa sobre o pecado original, aquele pecado de desobediência de "nossos primeiros pais" que com certeza nos
deixaram uma triste herança, mesmo que repartida em partes iguais. Parece que o caso era irremediável, que por um
homem, Adão, dizem, havia entrado o pecado no mundo e, por outro, Jesus, nos chegava a salvação. O preço desta
salvação, segundo a igreja, foi tão alto para Deus, que Ele não está disposto a admitir ao seu lado aqueles que não
tenham seguido os ensinamentos de seu Enviado, dentro de determinado tempo limitado. A Sabedoria, o Amor e a
Onipotência, todos os atributos infinitos de Deus ficam restritos, diminuídos, inexistentes, frente ao eterno
descumprimento de suas criaturas. Não se pode conceber esta idéia por estar longe de toda lógica e muito perto de um
contra-senso evidente.
"Me parece bem que existam variadas e múltiplas crenças, como diversas são as idéias que fazemos sobre Deus, a
vida e a morte. O respeito que devemos ter um para com os outros, obrigá-nos a defender a liberdade de eleger o
caminho que achamos mais conveniente. O verdadeiramente grave é que as fábulas que pregam e consideram verdades
inquestionáveis a maioria das confissões religiosas, geram incredulidade e ascetismo. A raíz do problema em boa
medida, nasce aqui. Ao ensinar utopias, em vez de estudar as leis naturais que governam a Criação. Nós seres humanos
durante a vida, nos encontramos diante de situações difíceis, amargas, sem saída possível. Estes são os momentos em
que as perguntas, aparentemente, não têm respostas. É desolador sentir-se órfão e não poder pedir a ajuda de um Pai,
porque a razão, sempre calculista, nos diz que parece impossível que na desordem terrena, possamos esperar justiça,
equilíbrio, sair da solidão e da impotência que nos aplaca".
"Minha queixa formal esta direcionada a Igreja Católica e, não para as outras Igrejas que são filhas da reforma.
Durante os primeiros séculos do cristianismo, a doutrina de vidas sucessivas foi uma crença generalizada. Os
discípulos de Jesus nada se surpreenderam quando Ele lhes falou de que a Elias e a João Batista lhes havia animado o
mesmo espírito.
No ano de 553, o triste e famoso Conselho de Constantinopla II, sob domínio do imperador Justiano I, condenou à
pena máxima quem sustentasse a crença da Reencarnação. A promulgação desta lei, que significou perseguição e morte,
caiu como fria lâmina sobre os povos. Silêncio e esquecimento. Os orgulhosos não aceitam perder privilégios. Para
admitir a lei da Reencarnação, é preciso ser humilde. Será por tal razão que a igreja não regressa a suas origens?
Tão alto se estabeleceram, entronados em seus lugares, que lhes atemoriza reencarnar e perder posições.
"Os senhores do Vaticano, dominados pela presunção de serem os eleitos que possuem a eterna glória, preferem uma
justiça divina feita a medida de suas conveniências. Longe de elaborar um estudo objetivo e imparcial de seus
incontáveis dogmas de fé, criaram a figura de um Deus limitado. Um Deus que não nos ama a todos por igual uma vez que
a intensidade de seu Amor sobe ou baixa de nível segundo o comportamento e os sentimentos dos pobres mortais..."
"Obrigada sou a tender-me um momento, o tema pede por isso. Quem nos criou tão diferentes? O que separa a pessoa
honesta, de bom coração, daquela que o tem endurecido e não podemos esperar dela nenhuma ação positiva? Qual é a
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razão deste abismo?"
Privilégio não, privilégio neste caso seria sinônimo de injusta Lei de Evolução Espiritual sim, mediante o
nascer e voltar a nascer, tentando nos erguer depois da queda fruto de nossa infância espiritual, vencendo obstáculos
e, debilidades, até chegar um dia por mérito próprio a conquistar o Equilíbrio e a Paz. Todos estamos imersos dentro
da Lei de Causa e Efeito, querendo aceitar ou não, de igual maneira que a Terra, em seus rítmicos movimentos de
rotação e mudanças, levava aqueles que sustentavam que o mundo estava quieto."
"A guarda e custódia da pureza e da fé, têm representado uma excelente desculpa para o clero que com ameaças de
condenação eterna e castigos "exemplares" do Santo Ofício, tem conseguido que seu rebanho ande as cegas e Roma sabe
muito bem que no país de cegos, quem tem um olho é rei. Ao esconder a lâmpada debaixo do cetim, tal como diz o
evangelho, não o fazem por ignorância, mas sim para proteger os grandes interesses e o vasto poder do qual desfrutam.
Tal atitude tem poucos atenuantes. Recordo que meu filho, quando tinha pouco mais de dez anos, comentou que a Igreja
havia sobrecarregado tanto de mentiras o barco de São Pedro, que um dia afundaria. Suponho que com ânimo de
sobreviver a gigantesca onda de avanços sociais, culturais e científicos, o Vaticano se sente obrigado a tirar pelas
bordas algumas insignificâncias."
"Ha quem creia e, é certo, que já estamos no inferno e outros esperam converter a Terra em um lugar o mais parecido
possível com o paraíso, coisa muito encomiable.
"Quando cataclismas naturais impõem sua irredutível fúria sobre os povos e centenas de criaturas humanas são
arrastadas pelas águas ou soterradas sobre a terra em suas próprias casas quando dos deslizamentos, nós em imensa
maioria, nos unimos a dor e a tragédia. A solidariedade então, converte-se em um fenômeno real de generosidade diante
do próximo."
"Terrível e aterrorizante é pensar o número de conflitos bélicos que afetam diferentes povos, enfrentados por
inadmissíveis razões étnicas ou territoriais, mas no fundo sempre com algum interesse econômico. Resulta
aterrorizante ver como ditadores sem consciência, uma vez que não conhecem a clemência, submetem, torturam
e assassinam a centenas de pessoas. Os meios de comunicação nos oferecem as mais cruéis imagens, que compartilhamos
com a comida e a janta. Nos perguntamos perplexos, como podem cometer tais atrocidades, pois as pessoas normalmente
são pacíficas, queremos viver em boa convivência e o contrário disto fomenta a indignação de quase todos."
"Desenganemo-nos, só o Amor pode nos libertar do sofrimento. Urgimos em aprender a amar, pois a conseqüência do
desamor nos faz prisioneiros de voltar a este mundo uma vez atrás da outra. Pedimos em oração a Deus o pai nosso, que
nos livre de nossos inimigos. A convivência com um inimigo não é recomendável, pois a situação pode se agravar tanto
que, brote a violência e conduza inclusive, a extremos homicídios. A prudência nos aconselha, assim, a nos afastarmos
das pessoas incapazes de conviver sociavelmente. Os seres humanos são imprevisíveis as diferentes maneiras de viver e
sentir as situações pelas quais passamos. É difícil Amar sem limitação alguma. Em muitos casos, um amor sincero, sem
egoísmo, não existe nem entre as pessoas com os mais estritos laços. Genros e noras, por exemplo, quase nunca se
apreciam por seus méritos próprios, mas sim em função da qualidade de vida que proporcionam a nossos filhos."
"Não é realmente difícil perdoar os desagrados. Quando alguém nos ofende, buscamos até encontrar o defeito da pessoa
que desencadeou tal comportamento menos nobre ou desleal para conosco, ou o que é pior, contra nossos seres mais
queridos. Disto desprendem-se várias atitudes, da mais radical "nunca o perdoarei", a outras mais suaves, "perdôo,
mas não esqueço", ou " esta pessoa não é nada, sinto total indiferença". A indiferença é ausência de amor. Não é ódio,
mas sim desagrado as debilidades que julgamos imorais e "condescendentes" assegurando-nos de que quem nos ofendeu
não tem princípios, ou que é tão primitivo que só pode pensar em cobrir necessidades materiais, pois não conseguiu
desenvolver seus sentimentos."
"Admito que não seja fácil seguir tendo na mesma estima, como se nada houvesse ocorrido, a pessoa que nos fere o
corpo e a alma, que nos rouba, que nos trai. E dói mais ainda, recebermos um tratamento que nunca demos. Sentir que
pisoteiam o amor que havíamos oferecido sem reservas e a resposta quase sempre é fechar a porta do coração. A
desconfiança é um bom conselheiro para nos impedir que o afeto maltratado, ressurja novamente. Encontramos os
argumentos que sejam necessários para dar apoio a nossa atitude. Por certo que temos o direito de esquivarmo-nos de
situações desagradáveis, mas não é menos certo que, ao mesmo tempo, mantenhamos nossa postura de não esquecer nada e
cada um dos condicionantes morais que tenham impulsionado a ocorrência de maneira tão injustificada, a pessoa a qual
guardamos prudente distância.
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"Cabe a possibilidade de encontrarmos alguns defeitos tão graves uma vez que já os superamos. Ter superado um
defeito, significa que este havia tornado parte de nossa personalidade. Ele nos mostra que devemos ser mais
tolerantes e, se não somos capazes de praticar esta virtude, admitamos pelo menos que esta é nossa falta pendente."
"Não quero que alguém que tenha acesso a estas páginas possa crer que quando exponho pensamentos e comentários, o
faço com a pretensão de me sentir bastante superior, como a dar conselhos aos demais. Muito pelo contrário. Quero
confessar aqui, que eu também sinto indiferença, prova irrecusável de minha pequenez. Sei, sem a menor dúvida, que as
pessoas as quais me afetaram, magoando-me consideravelmente, voltaremos a nos reunir em uma nova reencarnação. Apesa
disto não consigo evitar que "elas", espiritualmente, terão melhorado. Neste momentâneo e contínuo tribunal..."
"Jesus insistiu uma vez depois da outra, a necessidade de amar e perdoar aos inimigos. "Porque se amas a quem te
amas, que recompensa terás?". E quando Pedro perguntou se tinha que perdoar a seu irmão sete vezes as ofensas
recebidas, o Mestre lhe respondeu: "Não te digo sete vezes, mas sim setenta vezes sete". Estranha pretensão a nossa,
imperfeitos mortais, temos a obrigação de nos mostrarmos magnânimos e não podemos esperar que nosso Pai nos perdoe as
culpas, sempre ocasionadas pela condição humana. O senhor Wojtyla, assim o tem ratificado. A condenação é eterna para
quem se equivoque a primeira sem se arrepender. Falta saber em que consistirá esta condenação e que tipo de "justiça"
lhe regerá, porque a consciência dos seres humanos pode ir de um cinza pálido ao negro."
"O raciocínio do Vaticano são tão contraditórios, tão distantes da lógica que não me convencem nem minimamente.
Desvirtuam a mesma essência de um Pai perfeito, tal como Jesus ensinou. A perfeição divina em grau infinito,
resultando ser incoerente a ausência de misericórdia e rechaçando eternamente milhares de almas. Sigo crendo que os
evangelhos e os Feitos dos Apóstolos, devem ser analisados com um critério são. As idéias pessoais de seus autores,
expressadas em uma linguagem pobre e devido a numerosas traduções realizadas, são os maiores obstáculos na hora de
interpretar uma leitura esclarecedora. Sempre que tento harmonizar determinados textos com objetividade, sinto-me
envolvida por um grande caos mental. E é um deleite de tal categoria que é difícil de digerir e mais de uma ocasião
as pessoas acabam privando-se da Bíblia por não compreender sua turva linguagem.
"De certo te digo, que ele que nasceu outra vez, não pode ver o reino de Deus". Esta é a lua do evangelho. O
mistério descoberto dos enigmáticos hieróglifos. Não existe outro, A Reencarnação se repetirá sempre, nos fala de
justiça, de igualdade da Criação. Há um único caminho que conduz ao cume do Reino: a prática total do Bem."
"O perdão é um estado de amor, de humildade, de generosidade. Neste aspecto, a lição mais sublime recebemos do
Mestre Jesus. Injustamente aprisionado, acusado, condenado, flagelado, coroado com espinhos e condenado a morte na
cruz, mesmo os soldados cumprindo seu mandato, Ele, superando a si mesmo, em um abundante e generoso amor, converte
em realidade seus ensinamentos, suplicando: Pai, perdoa-lhes, pois eles não sabem o que fazem".
"O perdão é, sem a menor dúvida, o lacre e a marca de espíritos superiores, mas o gesto de Jesus vai além. Não
somente perdoa, mas roga clemência para seus carrascos. E este ato garante a autenticidade de sua missão. O exemplo é
apenas uma rubrica que tem mais força do que as palavras e, nós seres humanos o necessitamos."
"Penso que Jesus sabia que não era preciso pedir clemência ao Pai. Recorrer a esta instância significa tentar
que se suavizem os sentimentos de alguém, com o objetivo de que adote uma posição mais amena, não tão rígida. Se a
razão não nos permite questionar que as leis divinas são justas e imutáveis, não cabe acrescentar que, além disso são
clementes".
"Dando mãos a imaginação, eu que não suporto a menor injustiça, percorri o longo caminho do Calvário,
carregando comigo, injúrias, ultrajes e torturas, até sentir quase com calafrios, como os pregos penetravam em minhas
extremidades. O ponto culminante da cruel condenação. E quando o ar parece faltar em meus pulmões e um grito de
rebeldia nasce do fundo de minha alma, escuto as palavras do Mestre que crescem e crescem, ressoando no infinito".
"Meu espírito permanece acorrentado, consciente de que através de milênios, quando só era um embrião espiritual,
comecei o longo processo evolutivo. Tempo e mais tempo para aprender a caminhar, entre resvaladas e quedas ao fundo
do abismo. Que tipo de comportamento haverá gerado minha ignorância? Com quais déspotas procedimentos me mantive no
poder, alimentando o próprio orgulho, submetendo escravos e família? E de quantas amargas lágrimas causaram minha
frieza? As perguntas, claras e desafiantes, sacodem-me e adivinho as respostas. Respostas que uma lei prevista não
esconde, porque desconhecendo nossa inferioridade e a gravidade das culpas acumuladas, nos seja mais fácil tirar um
bom resultado de cada nova oportunidade que nos concedem nas múltiplas reencarnações. Sim, a falta de memória das
existências passadas, longe de ser um obstáculo, nos acalma a caminhada e, deste modo podemos conviver, mediante
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laços familiares, com o pior dos nossos inimigos ou com quem temos tirado a vida."
"Comove-me o gesto de Jesus! Sua indiscutível ternura até o ponto de suplicar perdão para os culpados,
atribuindo seus atos a sua falta de conhecimento do bem! Tanta magnificência me dá energia suficiente para
levantar-me e permanecer de pé. Se súbito descubro o que quero é o que hei de conseguir."
"Quando um ser é capaz de perdoar uma ofensa, sem calcular sua magnitude, este ser se liberta do jogo de ódios
e rancores, nada lhe oprime, conquistando o direito de respirar o ar limpo que envolve as consciências na paz."
"A situação de quem foi perdoado, em contraponto, não é a mesma. Uma grande distância separa um do outro.
Quanto mais sincero e generoso é o perdão, mais pequeno e embaraçado se sente o culpado no momento em que desperta
sua consciência, elevando-se a ser seu próprio juiz. O perdão que nos concedem, mantém-se presente em nossa memória,
de modo irrevogável, mostrando-nos que cometemos um ato punível".
"É por esta razão que não quero que me perdoem. Se alguém o faz, melhor para ele, significará que é um espírito
que está num bom nível espiritual. Mas a mim, não me basta obter o perdão por minhas debilidades. Quero, necessito
imperiosamente, que quem tenha recebido algum dano mais ou menos grave de minhas mãos, me permita que o ame. Curare
as feridas, secarei lágrimas... Apenas necessito do tempo e tempo é o que terei da eternidade. Sei que aquela ternura
que desprendem das palavras do Mestre Jesus, invadirá meu espírito e nada me deterá para chegar aos mais altos
postos de Equilíbrio e Paz, porque o Amor não carece de fronteiras, não tem limites. O amor vem de Deus, por isto é
infinito"!




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FINAL DO TRAJETO


Uma dupla fileira de verdes plátanos costeavam o largo calçadão. Durante o verão, seus ramos estendidos se juntavam
para converterem-se em sombra protetora, suavizando o rigor do sol. O forte vento outonal que soprara na noite
anterior, havia arrancado numerosas folhas secas que faziam barulho quando os transeuntes as pisavam. Pouco a pouco
os plátanos ficariam nus e a sua caduca vestimenta, durante o período do inverno acinzentava seus troncos, altivos e
desafiantes permaneciam ali, imbatíveis, suportando o açoite dos ventos gelados. A primavera, sempre pontual,
despertaria com sua presença, a natureza. Novamente a vida brotaria por tudo, envolvendo com ternas folhas as árvores
que as perderam e da terra estéril durante meses, surgiria a magia de mil plantas de distintas formas e cores que,
eloquente mensagem, nos falariam de seu renovado existir.
Era véspera de finados. Dora saiu da consulta médica e começou a caminhar devagar pelo calçadão olhando a folharada,
o que lhe fez sentir uma agradável sensação, porque pensou no nova primavera que viria ao findar o inverno. Lá na
sala de espera os pacientes sustentavam, mais ou menos, a conversação de sempre, seus problemas de saúde. Aquela
tarde alguém enumerou recentes ingressos hospitalares, inclusive o falecimento de três pessoas conhecidas. Isto
produziu sobressaltos e lamentos, sendo a queixa mais comum a rapidez com que transcorre o tempo, engolindo tudo. A
maioria das pessoas que ali estavam chegara a jubilação e portanto, sabiam que, ainda que se negassem a admitir
abertamente, o final do trajeto estava perto. Um final, diziam, que não há como escapar nem retornar. Uma mulher
recordou-se dos seus jogos de infância, o colégio, as excursões ao campo... Parecia-lhe que havia sido ontem, só
haviam transcorridos mais de sessenta anos e ela não sabia como.
Dora não se atreveu a se envolver na conversação. A julgar pelos comentários emitidos, o momento não oferecia
nenhuma possibilidade de reflexão. Se ela tivesse pontuado que a vida é inextinguível, teria apenas aumentado o grau
de incredulidade imperativo no local. Lastimou pelas pessoas que a rodeavam. Seu medo era quase palpável. Estava
impressa em seu olhar apagado, uma resignação que nasce com a impotência. Causa calafrios comprovas que tantos
milhares de seres cheguem ao final de sua existência com um escasso ou nulo conhecimento sobre a vida espiritual.
O materialismo frio, cruel e total, defende que atrás de um plano mais ou menos ao longo prazo, desconhecido mas
certo, chega um momento fatal de deixar de existir. É o não ser, não sentir, não fazer parte da vida. Repugna aceitar
a total destruição dos seres, não recuperar jamais os movimentos, a ação, a capacidade de pensar e trabalhar, sem que
tenhamos o direito de abrigar paixões, desenvolver sentimentos e levar ao fim empresas e altares da sociedade.
Dora percorreu as dependências do seu lugar. Contava com infinidades de objetos que conservava por alguma razão
especial, recordações de família e de viagens, quadros... Mais acima sobressaltava as estantes repletas de livros que,
com seu marido, que haviam colecionado ao longo de mais de quatro décadas e constituíam um são alimento moral e
intelectual para a família. Algumas vezes lia um título do querido tesouro, pensou que toda possessão, por menor que
seja, cria laços escravos e supõe um esforço desprender-se dos pertencimentos que formam parte de nosso todo. Com
maior motivo as uniões afetivas mais estreitas, são vínculos de uma magnitude considerável, por cuja razão a morte de
um ser amado é uma prova difícil de superar. Ela o sabia muito bem e as experiências vividas, lhe possibilitavam
entender a dolorosa situação das pessoas que atravessam a angustiante transição da separação.
Sobrevivência ou destruição, está ai o elo da questão, o ponto de partida da eterna discussão. Sobrevivemos a
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morte física? Personagens de renome indiscutível afirmam crer na vida mais adiante.
"A tumba com a qual se fecha os mortos abre o firmamento; e o que acreditamos ser o fim, é o começo. A morte é
a prova da vida". Victor Hugo
"Não digais que estou morto" Robert Browning, poeta inglês.
As últimas palavras do escritor Walter Scot, foram: "Sinto como se tivesse que ser eu mesmo outra vez".
"O amor é mais poderoso que a morte; o amor existe, a morte não." León Denis.
Afortunadamente dispomos hoje de um grande número de homens e mulheres que desde o campo da medicina constatam
com experimentos de regressão a vidas passadas, que a sobrevivência é uma realidade. Tudo que o espírito aprendeu em
suas diversas encarnações constitui a memória extracerebral e de forma provocada ou espontânea, se consegue que
pessoas de todas as idades possam detalhar as circunstâncias e os lugares onde se desenvolveram anteriores vidas, às
vezes tão próximas que possibilitam um reencontro com suas surpreendidas dívidas. Tais comprovações trocam o
desespero pelo sossego, atrás da escuridão se fará à luz.
É de se esperar que o por vir, do que hoje são alguns controvertidos mas sugestivos estudos, transcendam até o
domínio público e a Lei da Reencarnação, abarcada pela ciência, adquira o reconhecimento que merece. Ao nível
planetário é incalculável o benefício que pode apontar esta verdade universal. De imediato começaríamos a cuidar da
Terra, o lugar ao qual regressamos para completar nosso crescimento moral. Necessitamos das selvas e matas, do ar
limpo e que os mares não estejam contaminados. Não podemos esquecer que é de vital importância impedir o progresso
avassalador do planeta, dos danos que mãos insensatas estão causando. Nada, mediante um aviso, derruba suas casa para
viver sem abrigo, exposto as necessidades. No entanto a natureza está sendo maltratada por quem mais deveria
respeitá-la: o ser humano, que não pode escapar do processo evolutivo que lhe obriga a regressar no cenário terrestre.
Apesar de existirem leis sancionadas e centros penitenciários, estes não são obstáculos para que se continuem
cometendo numerosos delitos. É certo, mas os infratores comumente, pensam poder livrar-se desta lei, porque crêem
que nunca serão aprisionados e, no pior dos casos, fica o recurso de manter uma boa cartada e até dispor da ajuda de
um competente advogado, se o responsável desfruta de boa condição econômica.
Ficou comprovado em mais de uma ocasião que, a justiça humana é falível, mas não é assim a natural ou divina.
Se estivemos persuadidos de que toda ação negativa teremos, inevitavelmente, as conseqüências proporcionais aos
deslizes cometidos, mudaríamos de comportamento, mesmo que em um primeiro momento apenas o medo nos guiaria por n
fazermos credores a situações análogas ou equivalentes a que tivéssemos provocado. Não admite dúvida que o dano moral
ou físico ocasione a um semelhante, retornando sempre ao seu executor e esta representa a mais justa e estimulante
lição. Não há tribunal mais infalível, nem juiz mais severo que o próprio ser. Acontecem ocasiões que um espírito
durante séculos, pode encontrar atenuantes para seus delitos, mas a seu devido tempo despertará da pressão da
imutável lei de evolução e compreenderá a tarefa de reajustar-se espiritualmente.
É momento de insistir que não a final de trajeto, já que retornamos a escola da Terra até provar todas as
situações. Grande erro é sentir um imenso apego ao país que tenhamos nascido, crendo-nos tão superiores que chegamos
a menosprezar ou odiar aos demais, devido à cor de sua pele, o lugar de sua procedência, quando na realidade
pertencemos a todas as etnias, animando corpos de distintos sexos e formatos participando das mais diversas posições
sociais.
A mente de Dora acudiram, como que a brotar, umas frases como canos procedentes de um mesmo princípio, apagando
a sede de seu constante indagar.
Bhagavad Guita, diz: "As virtudes conduzem a libertação da mortalidade e a união com Deus. Os vícios obrigam a
repetidos renascimentos na profundidade da mortalidade. As virtudes conduzem a emancipação; os vícios a escravidão."
Um ensinamento budista diz: "É norma da natureza que o que se semeia é o que se colhe".
"As aflições não são, muitas vezes, mais do que benefícios disfarçados. A adversidade é o que exercita os
homens". Smiles
"Cada alma atrai o que é seu e nada lhe aproxima que não lhe seja correspondente".
"... e com a medida que tiverdes medido serás medido também." (Mt. 7,2)




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A CAMINHADA ILUMINADA



Em seu diálogo interior, Dora se deleitava ao recordar que o caminho até o ápice está assinalado por infinitas e
reluzentes luzes indicadoras. Ninguém pode errar o caminho se prestar atenção as advertências dos grandes Mestres e
aos seus mais esclarecidos alunos. Personagens exemplares que desfilaram pela história, emitindo juízos sãos e
advogando pelo procedimento correto.
Obrigação é a de repetir algumas comprometedoras palavras de Jesus, segundo Mateus, que tem por finalidade um grande
significado: " Ama aos teus inimigos e roga pelos que o perseguem..."
Sócrates ensinava a não desdenhar a pessoa alguma, dizendo: "Nossas orações devem encaminhar-se a prosperidade de
todos porque os deuses sabem muito bem o que particularmente nos convém".
Dizia Pitágoras: "Há felicidade em poucas coisas. Perdoa as debilidades humanas".
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O budismo declara: "O rancor nunca acaba com o ódio. Só o amor termina com ele. Esta é uma lei eterna".
J. Bálsamo nos chega à consoladora frase que abre a porta de uma esperança certa: "Para Deus nunca é tarde, porque
nunca anoitece em seu dia infinito".
A humanidade, um dia, haverá de envergonhar-se de sua ingratidão diante de tantos ensinamentos, por humildes que
sejam, expressada com o nobre desejo de convidar ao próximo a iniciar ele próprio seu crescimento moral.
O tropeço e as quedas inevitáveis são a conseqüência de caminhar com os olhos fechados. Permanecer, por indolência,
atrapalhados em profundo atraso e abandono de inquietudes espirituais, não faz mais do que retardar a evolução
individual e coletiva. Viver sem esperança, como enfermos terminais, impede o vislumbrar horizontes de maiores
relevâncias e, dificulta o trânsito por este mundo.
Inevitavelmente, os mais acirrados detratores da espiritualidade, depois da morte física, comprovam surpreendidos,
que somos imortais. É o grande triunfo da eternidade verdadeira sobre a inexistente morte definitiva.
Dora sorriu com uma onda de satisfação, ela jamais havia balançado diante da idéia de reduzir a vida a uma única e
efêmera instância neste planeta, sem uma continuidade precedente. A razão nos dita de que viemos de um Amor sem
limites.
Sem Amor não existiria a Criação. O Amor é a essência da Causa primeira, a Energia que fecunda a Vida Eterna.
O amor não adoece de nada porque é o todo.
O Amor orado abranda o espírito mais duro, e uma vez instalado nele, se transforma em fraterno abraço universal.
O Amor é o potente sentimento que quando cativa, liberta de egoísmos e vaidades.
O Amor acalanta o frio das almas enfermas e lhes devolve o calor da Vida.
Junto ao Amor germina, esplendorosa, a semente do Bem, por isso quem ama desprende generosidade e perdão.
O Amor é o fogo que purifica, sufocando deficiências e acendendo ânsias de progresso.
O Amor é luz que guia as almas até a sabedoria.
A força vigorosa do Amor invade toda criatura que consente em ser arrebatada pelo êxtase de saber que é filha
do Criador.




Igualada, 28 de Novembro de 2000.



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NO CALOR DA CAMA
l. p. baçan

Capítulo 1

Enquanto sua garota ia retocar a maquilagem no banheiro, Derek foi
conversar com um amigo, que conhecia de perto seu problema e que já
tentara aconselhá-lo antes.
- Eu não me incomodaria com isso, Derek. A disputa entre as
mulheres hoje em dia é muito grande. Elas são em maior número. Se Rebeca
quer dar uma de gostosa, deixe que ela vá em frente e se lasque toda.
Você vai ver como ela virá com o rabo entre as pernas, quando perceber
como a disputa está feia lá fora.
-Pode ser que você tenha razão, John. Afinal, é um exemplo vivo
dessa filosofia, não? - observou Derek.
-Não tenho do que reclamar, Derek. Essas mulheres estão cada vez
mais taradas. Hoje eu pude me dar ao luxo de escolher a mulher com quem
sairia. O que acha de uma coisa dessas?
- Estive trepando com uma só por muito tempo. Se a coisa está
assim, acho que vou gostar de liberar Rebeca. Afinal, isso pode me
custar apenas um par de chifres. Em compensação, fico livre para
experimentar as outras.
-Esse é o princípio, Derek. Esse é o princípio -comentou John.
- Então vamos ver isso bem de perto - falou Derek, rindo.
Após o jantar, ele e Rebeca foram dançar e, finalmente, acabaram
na casa dela.
- Você esteve muito gentil o tempo todo - comentou ela.
- Estive pensando, Rebeca. Acho que você, afinal, tinha razão. Não
devo prendê-la. Somos namorados, mas você precisa ter as experiências
que desejar. Só assim saberá me valorizar - falou isso.
A princípio, Derek pensara que isso seria muito difícil de fazer.
Depois, à medida em que se lembrava das mulheres com quem cruzara ao
longo daquela noite, dos olhares, das insinuações, da sedução daquelas
roçadas involuntárias de corpo, percebeu que poderia acabar ganhando
muito mais do que perdendo.
Estava há muito tempo com ela. Talvez fosse a hora de experimentar
mesmo outros pastos. E depois, como diria John, era só lavar que estava
novo outra vez.
- Está falando isso de coração? - indagou ela, emocionada.
-Com toda sinceridade-afirmou ele, sem estremecer ou vacilar
quando a olhou direto nos olhos.
- Vamos trepar - disse Rebeca, com sua voz incrivelmente modulada
e sensual, encarando-o.
- Isso a excitou?
-Muito-afirmou ela. -Não sabe como isso me deixa feliz, amor.
Derek, olhando-a nos olhos, segurou-a pelas mãos e levou-a até o
quarto.
Ela se sentou na cama, olhando-o sempre. Ele tirou o paletó,
depois a camisa, exibindo os músculos bem definidos de seu tronco.
Tirou os sapatos, as meias e abaixou a calça. Porfim tirou a
sunga. Seu caralho já estava duro.
- Está com tesão? - perguntou ele.
- Sim, você sabe que isso me deixa ligadona - falou ela,
estendendo a mão e apagando a luz do abajur.
No escuro, ele ficou esperando. Ouviu o farfalhar das roupas dela.
Quando subiu na cama, Rebeca já o esperava com as pernas abertas e a
xoxota lubrificada.
- Quero já - pediu ela, enroscando-se nele, puxando-o para junto
de si.
Ele se deitou e ela imediatamente subiu nele, vestindo uma
camisinha no cacete dele, depois acomodando-o às portas de sua
bucetinha.
Gemeu, quando soltou o corpo e o fez enterrar-se profundamente
dentro dela.
- Você está mesmo com tesão - observou ele.
- Já gozei, só de pensar nas trepadas que vou poder dar com outros
homens, talvez nesta mesma cama. Agora ela é território livre - disse
ela.
- Então vamos invadir já esse território livre - murmurou ele,
movendo os quadris no mesmo compasso dela, sentindo a cabeça de seu
caralho esfolar-se numa bucetinhá incrivelmente apertada.
Ela começou a gozar logo e continuou, mordendo os lábios para não
gritar, saltando sobre ele, sentindo aquele membro grosso alargar suas
dobras vaginais e roçar por completo o interior de sua xoxota,
esfregando- se em seu ponto G e fazendo-a se derreter.
Ela apertava e alisava o peito dele e os músculos do braço,
gozando ininterruptamente, quase perdendo o fôlego naquela cavalgada
alucinante, até que ele gozasse e enchesse a camisinha de esperma.
Ficaram gemendo e suspirando, aproveitando cada espasmo de prazer,
cada contração de seus ventres.
Rebeca ficou sentada na pica, rebolando os quadris e retirando
daquele cacete ainda duro um resto de prazer. Ele se estendeu na cama,
sob ela, extenuado.
Ela continuou movendo o corpo, subindo e descendo. Ele estremecia
e apertava os lábios. Ela foi aumentando novamente os movimentos. A pica
dele se mantinha em pé, deslizando com facilidade na xoxota lubrificada
e cheia de porra. Ela se ergueu, então, deixando o cacete dele escapar
de sua chana.
Derek pensou que ela fosse sair mas, num gesto inesperado, ela
guiou o caralho para o meio da bunda dela.
Comprimida, a porra que enchia o reservatório vazou por entre os
pêlos dele.
- Você vai comer meu rabo agora... Vamos aproveitar esse, cacete
durinho e lisinho - disse ela, com a voz rouca de tesão.
Rebeca foi soltando o peso do corpo sobre o membro dele. Derek
sentiu as preguinhas se dilatando.
Percebeu que a glande se apertava para encontrar o caminho,
avançandofirmemente.
A garota gingava a bunda de um lado para outro, oscilando o
tronco, enquanto fazia a pica dele invadir seu cú apertado e ardente. A
cabeça entrou.
Depois o resto do membro foi deslizando para dentro dela, que não
parava. Continuava rebolando.
Derek sentia um tesão enorme, com o pênis sendo sugado para dentro
daquela bunda esfomeada.
- Está... gostoso... - suspirou ela.- Põe tudo... quero sentir até
o fim... Enterra... Enterra tudo dentro de mim... - continuou ela,
movendo os quadris, até que o pau dele estivesse todo enterrado em seu
rabo.
- É bom demais - ofegou ele, sentindo seu caralho inteirinho
dentro dela.
- Oh, que coisa louca! - ajuntou ela, gemendo de prazer.
Suas mãos subiram pelo corpo dela, indo bolinar seus seios. Ela
continuou rebolando, subindo e descendo lentamente o corpo, aumentando
aos poucos o ritmo.
- Posso ficar em seu cú o resto da vida... Não sinto vontade de
parar... Meu caralho continua duro...
- E eu ficaria, se não quisesse tanto experimentar outros caralhos
em meu rabo...
- E eu quero experimentar outros cuzinhos, tão famintos e
apertados como o seu, para engolir meu caralho com tanta vontade... -
sussurrou, de forma que ela não o ouvisse, coordenando seus movimentos
aos dela.
O tesão aumentava violentamente. Ela começou a galopar sobre ele,
com a pica entrando e saindo de seu rabo. Derek correspondia,
golpeando-a com força.
A garota gozava com a vara dentro dela, entregando-se totalmente.
Derek sentiu seu caralho arrebentando-se de tesão.
Todo o seu corpo se agitou, então, ele gemeu alto, junto com
Rebeca, enquanto apertava os seios dela.
A garota empurrou com força a bunda contra o caralho dele e ficou
estremecendo e gemendo, contraindo os músculos, enquanto ele voltava a
gozar e encher a camisinha de porra.

Derek deixou a casa de Rebeca de madrugada. Quando retornava,
guiado por um impulso repentino, passou por um bar que havia muito não
freqüentava e onde deixara de ir, quando começara seu relacionamento com
Rebeca.
Havia bastante movimento ainda e uma garota, no balcão, chamou-lhe
a atenção.
Tinha um corpo muito bonito e parecia deslocada naquele ambiente.
Foi se sentar ao lado dela.
- Está sozinha?
- Sim, meu namorado me deixou esta noite.
Derek olhou para os lados. Era, com certeza, a mais bela mulher
dali. Sentiu-se em sua noite de sorte.
-Tem um namorado reserva?
-Sim, sempre trago um pardeles em minha bolsa-ironizou ela.
- Que tal experimentar um novinho em folha? - propôs ele, sentindo
que aquela era sua noite de libertação também.
Se Rebeca estava tão ansiosa para conhecer outras camas e outros
cacetes, ele tinha todo o direito de conhecer também outras camas e
outras bucetas.
A jovem se voltou para olhá-lo com simpatia.
- Sempre age dessa forma?
- Não, mas tenho meus motivos para estar assim hoje à noite -
respondeu ele, abrindo a porta.
- E que motivos são esses?
-Minha namorada me deu o fora-disse ele, convencido de que, de
certa forma, aquela não era uma mentira total. -Quer uma carona? Eu a
levo para casa. Olhando-o nos olhos, a garota ficou indecisa por
instantes. Depois tomou o resto de sua bebida, apanhou a bolsa e deixou
a cadeira do balcão. Derek segurou-a pelo cotovelo e levou-a até o
carro.
- Onde mora?
- Avenida Riverside.
- Certo, vamos lá - concordou ele.
- Meu nome é Carina.
- Ok, Carina. Sou Derek - respondeu ele, estendendo a mão, que ela
apertou com gentileza.
Tinha dedos firmes, mas macios. Conversaram e em pouco tempo Derek
descobriu naquela garota uma espontaneidade que há muito não via em
outra mulher. A garota morava num condomínio próximo de um centro
comercial.
- Quer entrar, tomar uma cerveja ou um café? - convidou ela,
sondando-o.
Nenhum compromisso o esperava e aquela noite tinha de ser especial
para ele. Não podia recusar aquele convite.
- Acho que vou aceitar um café - concordou ele.
Foram até o apartamento dela. Carina foi na frente, acendendo os
abajures.
-A cafeteira está na cozinha e todo o material necessário ao lado.
Pode ir adiantando as coisas? Vou vestir algo mais confortável.
- Deixe comigo - respondeu ele.
Ele foi até a cozinha e encontrou a cafeteira e tudo o mais.
-Tudo sob controle? - indagou ela, atrás dele.
Ele se voltou para olhá-la. Vestia uma camisola transparente sobre
o corpo perfeito, exibindo, abaixo do ventre uma cabeleira escura e
farta.

Ele nada disse. Ficou admirando a garota, enquanto ela ia ao seu
encontro, abrindo o zíper da calça dele, enfiando a mão e retirando pela
abertura o cacete, que terminou de endurecer entre seus dedos macios e
carinhosos.
-Querotransar... Querotransarcom um homem deverdade, que coma a
minha bucetinha... Que foda o meu rabo... Que me chupe inteira... Estou
desesperada de tesão... Quero ser usada... Lambida... Comida por essa
pica grossa e dura...
Ele se arrepiou todo com aquela voz ardente em seu ouvido, com
aquela língua atrevida penetrando sua orelha.
Ela se contorcia, esfregando-se nele, os dedos possessivos
enlaçando e acariciando o cacete duro, apertando, movendo para cima e
para baixo numa estonteante massagem.
- Quero chupar esta pica... - gemeu ela. - Quero-o na minha
boca... na minha buceta... no meu cú... -suspirou, subindo pelo corpo
dele com um fogo impressionante.
Parecia mesmo desesperada por uma trepada. Quando ele deu por si,
estavam os dois na cama, já nus.
Ela se debruçou sobre ele, lambendo seus testículos, enquanto as
mãos dominavam-lhe o membro endurecido.
Seus lábios carnudos e entreabertos aproximaram-se lentamente. A
língua estendeu-se, úmida e trêmula, roçando a glande avermelhada,
alisando-a e umedecendo-a de saliva.
Derek estremeceu, diante da fome e do tesão daquela mulher. Sentiu
o hálito ardente dela sobre sua glande e, no momento seguinte, uma boca
esfomeada e ardente envolveu seu membro. Ele se sentiu deslizando para o
interior de um paraíso morno.
Tremores de prazer fizeram todo o corpo dele estremecer, enquanto
a língua e a boca da garota o brindavam com as carícias mais íntimas e
alucinantes.
Ele acariciou febrilmente os cabelos dela, empurrando sua cabeça
contra o pinto, enterrando-o todo entre os lábios carnudos que o
devoravam.
- Vem... Vem... - pediu ela. - Quero ser chupada... Você me chupa?
- pediu ela, fora de si, já virando o corpo e enfiando sua chana molhada
e perfumada direto na boca dele.
Ele hesitou por instantes, mas aquela bucetinha estava tão
perfumada e tão apetitosa que ele não resistiu.
Agarrou-a freneticamente pelo traseiro, apertando-a contra o
rosto, puxando-a totalmente sobre si.
Sua língua enterrou-se de uma vez na buceta dela, afundando-se nas
carnes úmidas e perfumadas, buscando o ponto G para uma carícia
alucinadora.
Ela gemeu de prazer, arqueando todo o corpo, rebolando os quadris,
esfregando-se nele.
-Vocêé muitogostoso!-murmurou ela.-Quetesão de pinto... Que tesão
de corpo...
- É você quente demais... Muito quente e muito gostosa...
respondeu ele, erguendo o traseiro dela para examinar, com olhos
devoradores, a bucetinha bem delineada, com lábios rosados, contrastando
com os pêlos escuros que a rodeavam.
O perfume era perturbador e excitante. Ele afundou a cabeça entre
as coxas dela, bebendo direto na fonte o néctar mais embriagador.
Sua língua deslizou pra cima e para baixo, antes de se deter no
delicado grelinho, fazendo-a se remexer fora de controle.
Arrepiada e empolgada com aquela carícia tão íntima, ela voltou a
chupar sofregamente o caralho em sua boca, mascando-o e mamando- o com
um prazer inenarrável. Suas mãos distribuíam carícias recíprocas e
apressadas.
Gemidos e murmúrios apressados escapavam de suas gargantas. A
excitação aumentava vertiginosamente.
Derek queria acariciá-la por inteiro, tocando seus seios, alisando
sua bunda, massageando suas coxas.
- Não pare... Põe... Enfia o dedo... - pediu ela, alucinada,
quando a mão dele deslizou ao longo do rego entre suas nádegas. Derek
não a fez esperar. Seu dedo encontrou o orifício do ânus dela.
Massageou-o, forçando a entrada. Ela gemeu mais forte, quando o dedo
penetrou e ficou acariciando-a por dentro, levando-a à loucura.
- Põe tudo... Até o fim..: Lá dentro... Eu gosto... - suplicou
ela, estremecendo-se toda.
Derek vibrava, sentindo o calor intenso daquele corpo, enquanto
ela chupava, lambia e mascava seu cacete, levando-o ao auge da
excitação. Derek se viu à beira do orgasmo.
Ela continuava, enquanto estremecia continuamente, gozando mais e
mais.
-Não goze já, por favor... -suplicou ela, a língua deslizando ao
longo do pênis ereto dele.
- Não se preocupe... -tranquilizou-a ele, a língua indo e vindo na
xoxota molhada, o dedo enfiado no cu dela, girando, afundando-se,
retirando-se e voltando a entrar.
- Quero tudo... - pediu ela, com o corpo todo entrando em
convulsão.
Ele voltou a se concentrar no clitóris dela. Gemidos profundos e
roucos escapavam dos lábios entreabertos da garota, que estremecia
continuamente.
- Oh, como é bom... Como você é gostoso... Não pare... Mais...
Tudo... O dedo... A língua... Chupe... Assim... Oh, que delícia!-gemia
ela, enquanto ele se esmerava nas carícías que a punham fora de si,
chupando, beijando, lambendo, massageando, roçando habilmente seu ponto
G.
Tremores convulsos e suspiros mais fortes anunciaram o gozo no
corpo dela. Gritinhos escaparam de sua garganta, entrecortados,
deslumbrados, em êxtase.
- Goze... Goze bastante, querida... Goze no meu cacete... na minha
língua e no meu dedo... -murmurou ele, controlando-se ao máximo.

- Oh, como você é gostoso... Que tesão! Não pare... Estou
gozando... Gozando sem parar... - disse ela, agitando-se toda.
Depois, gradativamente, foi relaxando o corpo sobre o dele,
repousando a cabeça entre as coxas de Derek, que se sentiu tonto e à
beira da explosão, querendo enfiar seu caralho nela e gozar livremente.
-Quero gozar... Deixe-me fodê-la... -pediu ele, tentando virá- la
para trepar nela.
- Eu só estava aquecendo os motores. Agora quero trepar de
verdade...
Ela se moveu sobre ele de novo, enlaçando seu cacete. Ficou
apertando-o entre as mãos, provocando-o, fazendo Derek tremer de tanto
tesão. Ele se sentia à beira da explosão. sentindo necessidade de gozar.
Seu pênis latejava.
- Você está acabando comigo - confessou ele, trêmulo de tanto
tesão.
As bolas de seu saco pareciam que explodiriam, de tão sensíveis
que estavam. Ela lambeu suavemente toda a extensão do membro dele.
Deteve-se na glande exposta, quase arroxeada agora de tantas
mordidas e chupões.
Umedeceu-a com sua saliva, lambeu-a, depois apanhou uma camisinha
sob o travesseiro e vestiu-a no caralho, empurrando-a com os lábios e
com os dedos.
Em seguida ela se deitou de barriga para cima, como uma gata
preguiçosa e lânguida.
- Sou toda sua agora, Derek... Venha trepar comigo... - pediu ela,
oferecendo-lhe o corpo excitado.
Os olhos dela brilhavam. Os lábios entreabertos e úmidos pediam
beijos, exibindo a ponta da língua oferecida. Os seios arfavam, no
compasso da respiração apressada.
Eram redondos e perfeitos, com biquinhos escuros, enrugados de
tesão e salientes.
O olhar dele desceu pelo ventre, onde uma suave penugem ia se
acentuando, à medida que descia rumo à xoxota.
Ajoelhou-se ao lado dela, admirando suas formas, aspirando o
perfume sutil e embriagador que vinha da chana molhada e excitada ao
extremo.
- Você é tão tesuda! - murmurou ele, espalmando as mãos sobre os
seios dela, deslizando pelas encostas, subindo e descendo, alisando os
mamilos durinhos, provocando-a e fazendo-a arrepiar-se.
Uma expressão de prazer e luxúria se estampou no rosto dela.
Enquanto uma das mãos afagava os seios, a outra descia rumo aos pêlos
fartos que rodeavam sua buceta.
A mão sobre os seios subiu para acariciar o rosto dela. A garota
mordeu delicadamente um dos dedos dele, chupando-o para o interior de
sua boca.
Ele se inclinou sobre os seios dela. Seu hálito quente e sua
respiração quase ofegante, fizeram-na se arrepiar.
Ele lambeu uma das tetinhas dela, subindo e descendo, detendo-se
no biquinho para mascá-lo com provocação.
Ela gemeu de tesão, remexendo-se inquietamente.
- Ah, que tesão gostoso! - rouquejou ela.
A língua dele desceu pelo ventre da mulher, fazendo-a se contrair
e se arrepiar de novo. As pernas dela se abriram naturalmente. O seu
perfume se acentuou.
Ele foi lamber provocantemente a chaninha dela, depois retornou
pelo ventre, até os seios.
A mão entrou pelo meio das coxas, buscando o grelinho,
friccionando-o delicadamente, continuamente, fazendo-a remexer-se toda,
antes de avançar e ir buscar de novo o ponto G, massageando-o com
habilidade.
Ela estava de novo em brasa. Em pouco tempo já se contorcia
novamente, suplicando por ele, pedindo que ele a fodesse. Derekjá havia
esperado demais para comer aquela mulher.
- Vem... Foda-me... - suplicou ela, entregue, dominada e alucinada.
Ele não a fez esperar. Avançou decididamente para aquela bucetinha
com seu caralho pulsando de tesão.

Capítulo 2

Derek examinou melhor a mulherdiante de si. Vestia-se elegante-
mente, com um vestidojusto e um generoso decote, que deixava à mostra as
lindas e perfeitas formas de seus seios.
Os cabelos estavam presos no alto da cabeça e a maquilagem era
discreta, apenas realçando sua beleza. Seu rosto era expressivo e
tentador, com lábios carnudos num desenho delicado e provocante.
Até então, nunca olhara para Malory Duncak como uma mulher de
verdade. Fora sempre uma cliente de sua seguradora, jamais uma provável
amante.
Pela primeira vez reparou como os olhos dela passeavam pelo corpo
dele. Naquele olhar Derek percebeu o desejo e a tentação. Haviam
terminado de fechar uma apólice de seguro da casa e Derek pedira para
fazer uma vistoria.
Após percorrer todas as demais dependências, estavam agora no
quarto dela. Malory ofegava e seus seios pareciam querer saltar fora do
decote. Estava ruborizada e o brilho de seus olhos se acentuava cada vez
mais.
Derek não teve mais dúvidas. Aquela mulher o desejava mais do que
qualquer outra coisa. Precisava incentivá-la e fazê-la quebrar aquela
barreira inicial.
Não sabia exatamente como fazer isso, mas parou junto dajanela e
ficou olhando para ela. A dona da casa de aproximou:
- O jardim é lindo, visto daqui - disse ele.
Ela se aproximou e ficou junto dele para olhar pela janela. Seu
perfume era tentador e convidativo. Lado a lado, olharam-se.
- Posso ser ousado? - indagou ele, num fio de voz, resolvendo
arriscar.
- Sim, por favor! - respondeu ela, trêmula.
- O que desejaria ter mais do que tudo neste momento?
Ela pensou por instantes, hesitando, mas olhando-o no fundo dos
olhos.
- Você! - respondeu, num fio de voz.
- E por que não me pede isso?
- Eu jamais ousaria:
-Ouse-encorajou-a.
Seu olhar cintilou e ela ficou trêmula e tensa.
- Quero você. Quero vê-lo nu agora mesmo!
Derek não se fez de rogado. Despiu-se diante dos olhos extasiados,
que ficaram examinando seu corpo másculo e peludo. Ela sentiu um tesão
forte e incontrolável, devorando-o com os olhos, desejando fodê-lo
desesperadamente.
- Você é tão desejável...
- Agrado-a?
- Muito.
- Você me queria, você me tem agora. O que pretende fazer comigo?
- indagou ele, indo se deitar na cama, de onde ficou olhando-a com
provocação.
Malory levou as mãos às costas e o vestido que ela usava nem
farfalhou ao deslizar para seus pés. Seu corpo exuberante se exibiu
diante do olhar de aprovação do rapaz.
Ela subiu pela cama e se pôs de quatro sobre ele, com sua xoxota
ao alcance da língua dele e o caralho dele ao alcance de sua boca.
- Que coisinha mais delicada é sua bucetinha... E tão perfumada...
-murmurou ele, passando os dedos com adoração na vulva graciosa e
molhada.
- Ponha a língua... - pediu ela, trêmula de desejo.
Ele enterrou, então, sua língua na xoxota dela, buscando a fonte
mais profunda do sabor, a origem do néctar que adocicava seus lábios. A
carícia foi intensa e prolongada, pondo Malory frenética e extasiada.
A boca ardente de Malory buscou a ponta do cacete dele. A língua
hábil e morna se estendeu, penetrando entre a glande e o prepúcio,
girando. A sucção e os movimentos de sua língua entonteceram-no. Ele se
agarrou às coxas dela, sugando com redobrado ardor sua buceta, lambendo
o clitóris, mordiscando-a cuidadosamente. Suas mãos escorregavam pelas
pernas dela, numa carícia longa e vibrante.
Malory gemia. Sua respiração entrecortada revelava toda a paixão
que explodia em seu corpo, arrancada pela língua dele. Ela retribuía,
sugando avidamente o caralho em sua boca.
Seus corpos se esfregavam numa dança alucinante e excitada. Lenta
e habilmente ele penetrou seu dedo médio na xoxota dela, buscando o
ponto mais sensível, até encontrá-lo. Quando massageou a região do ponto
G, Malory sentiu o ar faltar em seus pulmões.
Derek parecia ter ligado um interruptor na chana dela, pondo-a
frenética, aguçando seu tesão e sua sensibilidade a um ponto que pareceu
a ela insuportável.
- E muito bom... Você é muito bom-murmurou ela, mascando o cacete
em súa boca gulosa.
-Sim... Quero vê-la se acabar de tanto gozar em meu caralho...
-disse ele, num estremecimento de prazer.
Uma das mãos foi acariciar o reguinho tentador das nádegas dela,
buscando o cuzinho para uma carícia mais profunda. Ela rebolou,
aceitando aquele dedo que forçava a passagem por entre suas pregas
anais:
Ela gemeu de puro prazer. Ele redobrou os beijos e chupadas no
clitóris, enquanto o dedo médio continuava lá dentro, massageando aquele
ponto sensível da chana de Malory, que logo começou a gozar
incessantemente, interminavelmente, com seu corpo tomado por contrações
e espasmos.
Enquanto ela o chupava, ele movia os quadris ritmicamente, fodendo
a boca devoradora da garota, cujos lábios apertavam-se contra a pele
retesada de seu pênis.
Pouco a pouco os movimentos dele foram se tornando frenéticos. Seu
dedo não saía da xoxota de Malory, que se contorcia de prazer, gozando
seguidamente e chupando seu caralho.
Finalmente ele gemeu rouca e prolongadamente, retesando o corpo
abalado por espasmos.
- Vou gozar! - avisou ele e ela ergueu o corpo, masturbando-o e
vendo, deliciada, o esperma jorrar e escorrer por entre seus dedos,
enquanto Derek gemia e se esvaía de tanto gozo.

Derek observou com tesão aquele corpo escultural e lânguido
deitado ao seu lado. Os biquinhos dos seios exibiam as auréolas escuras
e as pontinhas rijas e excitadas.
Seu olhar fixou-se na penugem que rebrilhava abaixo do umbigo dela
e ia se engrossando, na direção do monte-de-vênus, formando um delicado
novelo de pêlos sedosos e enrolados ao redor da vulva.
-Essa brincadeira me deixou com mais tesão ainda. Quero trepar de
verdade agora- pediu ela e ele imediatamente calçou uma camisinha no
caralho e subiu nela, acomodando a bucetinha na ponta do seu membro.
Ela gemeu, quando ele soltou o corpo e se enterrou profundamente
dentro dela.
- Que tesão! - murmurou ela, movendo os quadris no mesmo compasso
dele, sentindo a cabeça do caralho esfregar o interior de sua bucetinha.
Começou a gozar logo e continuou, mordendo os lábios para não
gritar, sentindo aquele membro grosso alargar suas dobras vaginais e
roçar seu ponto G alucinadamente.
Ela apertava e alisava o peito dele e os músculos do braço ,
gozando ininterruptamente, quase perdendo o fôlego naquela cavalgada
alucinante.
- Estou gozando! - gemeu ela, abraçando-o com força.
- Eu também... Que gostoso! Que tesão de bucetinha! Como ela é
apertadinha... Como você é tesuda... Ah, como é gostosa! -dizia ele,
acelerando ao máximo seus movimentos.
- Vem... Vem comigo... Goze comigo - pediu ela, beijando-o e
lambendo-oalucinadamente.
Derek gemeu alto, apertando as nádegas dela, enquanto seu pinto
pulsava, enchendo a camisinha de esperma. Ficaram gemendo e suspirando,
aproveitando cada espasmo de prazer, cada contração de seus ventres.
Malory girou o corpo e ficou sentada na pica dele, rebolando os quadris
e retirando daquele cacete ainda duro um resto de prazer:
Ele se estendeu na cama, sob ela, extenuado. Ela continuou movendo
o corpo, subindo e descendo. Ele estremecia e apertava os lábios. O
rosto dela era de pura malícia. Ela tremia, começando a gozar de novo.
Gradativamente foi aumentando os movimentos. A pica dele se mantinha em
pé, deslizando com facilidade na xoxota lubrificada. A porra escorria
pela base do cacete dele, lambuzando seus pêlos.
Suas mãos subiram pelo corpo dela, indo bolinar seus seios. Ela
continuou rebolando, subindo e descendo lentamente o corpo, aumentando
aos poucos o ritmo.
- Posso ficar aqui, dentro de você, pára sempre... Não sinto
vontade de parar... Meu caralho continua duro...
O tesão aumentava violentamente. Ela começou a galopar sobre ele,
com a pica. entrando e saindo de seu corpo. Derek correspondia,
golpeando-a com força.
Malory estava gozando com aquela vara dentro dela. Ele a
maravilhava e ela queria retribuir o prazer, entregando-se totalmente.
Derek sentiu seu caralho estremecer. Todo o seu corpo se agitou.
Ele gemeu alto, junto com ela, enquanto apertava os seios dela. A garota
ficou estremecendo e gemendo, contraindo os músculos, enquanto ele
voltava a gozar.

Haviam adormecido após aquelatrepada. Quando Derek acordou, Malory
estava terminando de vestir uma camisinha no cáralho dele, já
endurecido.
-Você não perde tempo-murmurou ele, sonolento, enquanto ela subia
nele, acomodando sua xana na ponta do caralho.
Com um gemido deliciado soltou o corpo e o fez enterrar-se
profundamente dentro dela.
- Você está quente de verdade - observou ele.
-Há muito eu queria trepar com você, Derek! Estavatarada porvocê.
- Então hoje é seu dia de sorte. Use e abuse.
-Quero que foda a minha bucetinha de novo, por favor! - pediu ela,
suplicante.
- Sendo assim... - murmurou ele, movendo os quadris no mesmo
compasso dela, entrando e saindo de sua xoxota incrivelmente apertada.
Ela começou a gozar logo e continuou, mordendo os lábios para não
gritar, saltando sobre ele, sentindo o membro alargar suavagina e roçar
por completo seu ponto G.
- Coma a minha buceta de novo. Estou cheia de tesão por você. Vem!
- falou ela, desmontando para cobrir todo o corpo dele de beijos.
Ele se árrepiava todo com aquela voz sensual e suplicante ao seu
ouvido, com aquela língua atrevida penetrando sua orelha, passeando por
sua pele. Ela se contorcia, esfregando-se nele, os dedos possessivos
enlaçando e acáriciando o cacete duro, apertando, movendo para cima e
para baixo, masturbando-o apaixonadamente.
- Quero chupar sua pica... - gemeu ela. - Quero-o na minha boca...
na minha buceta... no meu cu... -suspirou ela, subindo pelo corpo dele
com um fogo impressionante. .
Continuava fogosa e ardente. Quando ele deu por si, ela se
debruçava sobre ele, lambendo seus testículos, enquanto as mãos
dominavam-lhe o membro endurecido.
Seus lábios carnudos e entreabertos aproximaram-se lentamente. A
língua estendeu-se, úmida e trêmula, roçando a glande, alisando-a e
umedecendo-a de saliva.
Ele estremeceu, diante da fome e do tesão daquela garota, que
superava suas melhores expectativas. Sentiu o hálito ardente dela sobre
sua glande e, no momento seguinte, uma boca esfomeada e ardente envolveu
seu membro.
Ele se sentiu deslizando para o interior de um paraíso morno.
Tremores de prazer fizeram todo o corpo dele estremecer, enquanto a
língua e a boca da garota brindavam-no com as carícias mais íntimas e
alucinantes.
Ele acariciou febrilmente os cabelos dela, empurrando sua cabeça
contra o pinto, enterrando-o todo entre os lábios carnudos que o
devoravam.
-Vem.:. Vem... Eu quero serchupadatambém...-pediu ela, fora de si,
virando o corpo na cama.
Ele sentiu o perfume da xoxota dela próximo de seu rosto. ,Ele a
agarrou freneticamente pelo traseiro, apertando-a contra o rosto,
puxando-a sobre si.
Sua língua enterrou-se de uma vez na buceta dela, afundando-se nas
carnes úmidas e perfumadas.
Ela gemeu de prazer, arqueando todo o corpo, rebolando os quadris,
esfregando-se nele:
- Você é muito gostoso mesmo - murmurou ela. - Que pinto gostoso!
- É você quente demais. Muito quente e muito gostosa! - respondeu
ele, cheirando a bucetinha dela.
O perfume era perturbador e aguçava-lhe o desejo de comê-la sem
demora. Afundou a cabeça entre as coxas dela. Sua língua deslizou pra
cima e para baixo, antes de se deter no delicado grelinho, fazendo-a se
remexer fora de controle. Depois avançou pela bucetinha estreita,
localizando seu ponto G.
Arrepiada e empolgada com aquela carícia tão íntima, ela voltou a
chupar sofregamente o caralho em sua boca, mascando-o e mamando o com um
prazer sempre crescente.
Suas mãos distribuíam carícias recíprocas e apressadas. Gemidos e
murmúrios escapavam de suas gargantas. A excitação dela aumentava
vertiginosamente.
Ele sentia a fome e o desejo daquela garota ardente contagiando-o.
Queria acariciá-la por inteiro, tocando seus seios, alisando sua bunda,
massageando suas coxas.
- Não pare... Enfia o dedo... - pediu ela, alucinada, quando a mão
dele deslizou entre suas nádegas.
Ele a atendeu. Seu dedo encontrou o orifício do ânus dela.
Massageou-o, forçando a entrada. Ela gemeu mais forte, quando o dedo
penetrou, levando-a à loucura.
- Põe tudo. Eu gosto assim! -pediu ela, estremecendo-se toda, a
língua deslizando ao longo do pênis ereto dele.
Derek se esmerava a nas carícias, a língua indo e vindo na xoxota
molhada, o dedo enfiado no cú dela, girando, afundando-se, retirando-se
e voltando a entrar.
- Quero tudo! - pediu ela, com o corpo todo entrando em convulsão.
Ele voltou a concentrar-se no clitóris e no ponto G dela. Gemidos
profundos e roucos escapavam dos lábios entreabertos da garota, que
estremeciacontinuamente.
-Oh, como é bom! Como você é gostoso! Não pare! Mais! Oh, que
delícia!-gemia ela, enquanto ele se esmerava nas carícias que a punham
fora de si, chupando; beijando, lambendo, massageando e fodendo.
Tremores convulsos e suspiros mais fortes anunciaram o gozo no
corpo dela. Gritinhos escaparam de sua garganta, entrecortados,
deslumbrados, em êxtase.
-Goze! Goze bastante, querida! Goze no meu cacete, na minha língua
e no meu dedo! - gemeu ele, controlando-se ao máximo.
- Não pare! Estou gozando! Gozando sem parar! - disse ela,
agitando-se toda. - Quero na chana agora... Na buceta... Põe na minha
buceta, por favor!
Ela estava em brasa. Contorcia-se, suplicando por ele, pedindo que
ele a fodesse. Ele achou já a havia excitado demais. Ela estava pronta
para ser comida de verdade.
- Vem! Foda-me! - suplicou ela, enterre.
Ele avançou para a bucetinha dela com seu caralho pulsando de
tesão e levou-a à loucura com seus movimentos.
Ele ficou ali, com os sentidos saciados, aspirando aquele perfume
de sexo e prazer que pairava no aposento.

Capítulo 3

No estreito corredor que levava ao depósito de livros da editora
onde Rebeca trabalhava ela parou e esperou que ele se aproximasse por
trás dela. A provocação foi deliberada e aberta, deixando-o sem reação.
O rapaz havia percebido todas as insinuações e entendido o
convite. Sem pestanejar, ele a agarrou por trás, apertando os seios
dela, beijando sua nuca. Ela rebolou a bunda, provocando-o.
Ele a empurróu contra a parede. Enfiou a mão pelo decote dela,
colhendo um de seus seios rijos e redondos, com biquinhos salientes e
tentadores. Seu joelho entrou por entre as coxas dela, esfregando a
chana molhada.
Rebeca estava com seu fogo interior constantemente aceso, depois
que Derek a liberara para se entregar a quem quisesse. Não pensava em
outra coisa a não ser nisso.
O rapaz era Albert, um empacotador de músculos fortes e salientes,
com um sorriso cínico e um olhar devorador.
Levantou a saia dela e se ajoelhou diante do corpo excitado da
garota. Afastou suas coxas, beijando a pele acetinada e coberta por uma
penugem dourada. Aspirou o perfume intenso de sua chana.
Febrilmente retirou-lhe a calcinha e avançou sua língua, enfiando-
a pela estreita abertura perfumada. A sua respiração e o toque sutil de
sua língua fizeram-na estremecer de gozo.
Ela agarrou a cabeça dele, apertando-o contra o corpo, enquanto
olhava para ele, ofegando e gemendo, excitando-se brutalmente. A língua
de Albert penetrou entre suas coxas, tocando sua buceta.
Naquele mesmo instante Rebeca gozou, estremecendo toda. Albert
levantou a cabeça, vendo seu rosto de puro gozo. Ela lambia os próprios
lábios e revirava os olhos, numa imagem de volúpia e sensualidade
maravilhosa.
Ele continuou lambendo com gosto a bucetinha molhada. Ela se
contorcia e gozava.
- Ah, que língua safada... Não paro de gozar...
Ele continuou chupando-a. Os olhos dela ficaram esgazeados. Seu
corpo estremecia continuamente. Seusjoelhos ameaçaram dobrar-se, de
tanto tesão.
Albert sentia toda sensualidade daquela garota fluir para a língua
dele, enquanto a enterrava o mais fundo que podia, apertando a boca
contra a xoxota dela. O membro dele ameaçava romper o tecido da calça,
de tão duro que estava.
- Venha - disse ela, fazendo-o erguer-se.
Foi a vez dela se ajoelhar diante dele, soltar-lhe o cinto e puxar
a calça com a sunga para baixo, expondo o caralho duro, com a glande
avermelhada e maciça.
Os olhos dela brilhavam. O pinto de Albert, grosso e longo, era
uma novidade que provocava nela uma reação quase selvagem. Tirou-lhe os
sapatos e arrancou de toda a calça e a sunga. Ela recuou até uma pilha
de caixas e se sentou numa delas, abrindo as pernas e expondo sua
xoxota.
- Você é gostosa demais! - disse ele, estremecendo de tanto tesão,
quando a viu ali, oferecida, esperando por ele.
Suas mãos subiram pelo ventre dela, sob a blusa, tocando os seios,
com os biquinhos eriçados de tesão. Rebeca estremeceu, quando Albert pôs
uma camisinha e posicionou sua pica na buceta dela. Lentamente o caralho
dele foi deslizando para dentro de sua bucetinha apertada e molhada, até
que seus pêlos se juntassem.
Ela o abraçou em desespero, cheia de tesão, beijando-o, enfiando
sua língua na boca dele, que começou a movimentar os quadris, entrando e
saindo de dentro dela.
Rebeca foi ao delírio, perdendo totalmente a noção. Começou a
gemer cada vez mais alto. Albert golpeava a chana dela com vigor e
potência, pondo seu caralho profundamente dentro dela, em regiõesjamais
atingidas antes.
- Que loucura! - exclamou ela. Está bom demais... Tenho de ficar
assim... Eu quero gozar assim...
Albert abraçou a garota, com a pica dentro dela. Rebeca havia
passado as pernas sobre as dele e enlaçado a sua cintura. Seus
movimentos continuaram dentro de Rebeca.
- Está muito gostoso! - murmurou ela.
Albert acelerou seus movimentos.
- Eu estou, gozando! Está bom demais! Isto é que é uma foda
gostosa! -gritava ela, cada vez mais alto, agarrando-se nele com
frenesi, coordenando seus movimentos aos dele, enquanto se acabavam de
tanto prazer.

Havia um banheiro nos fundos do depósito e os dois foram para lá
refrescar seus corpos e se retazerem daquela foda inesperada. Rebeca
estava atordoada ainda pelo prazer inusitado que experimentara. Fora uma
experiência gratificante.
Albert a colocou sob a ducha morna e, com uma esponja marinha
ensaboada, começou a acariciar suavemente o corpo dela. De olhos
fechados, Rebecaficou sentindo aqueles movimentos carinhosos percorrendo
todo o seu corpo e sensibilizando a sua pele deliciosamente.
A esponja ensaboada deslizou pelo rosto dela, percorreu a curva do
pescoço, massageou os ombros por um longo tempo, depois desceu para os
seios, contornando-os, escalando-os de baixo para cima, esfregando os
biquinhos pontudos e intumescidos.
Ela suspirou. A esponja esfregou o ventre dela. Rebeca abriu as
pernas. A esponja fez carícias inéditas no clitóris, depois avançou
pelas coxas. Foi até os pés dela, passando por entre os dedos, pela
sola, voltando, subindo de novo pelas coxas.
Foi até a xoxota. Deteve-se e ficou esfregando. Tremores de tesão
percorreram o corpo dela.
-Você é tão carinhoso gostoso, Albert! -murmurou ela, de olhos
fechados e boca entreaberta.
Albert a beijou, lambendo os lábios dela, enfiando a lingua lá
dentro .
- Vem comigo - convidou ela, enlaçando-o pelo pescoço.
Albert foi puxado para debaixo da ducha. Rebeca tomou-lhe a
esponja e enlaçou-o por trás, fazendo-o apoiar as costas nos seios
pontudos e firmes. Rebeca esfregou-lhe o peito cabeludo, depois o
ventre. Soltou a esponja ao sentir o pênis dele grosso e duro. Segurou-o
entre seus dedos carinhosos, apertando-o possessivamente.
Albert estremeceu. Ela o beijou nos ombros e na nuca. De olhos
fechados, Albert sentia os movimentos suaves mas firmes e voluptuosos em
seu pênis. A mão dela subia e descia deliciosamente, dando prazer.
Ele se entregou nas mãos dela. Rebeca continuou movendo a mão,
roçando a glande e beijando-o no pescoço e nas orelhas.
- É tão gostoso sentí-lo... Apertá-lo... - murmurou ela.
A excitação dele era um afrodisíaco poderoso para ela. .
- É tão gostosa essa tua mão - afirmou ele.
- Estou adorando fazer isso - sussurrou ela, sem parar de mover o
pulso.
O membro rijo em sua mão pulsava, maciço e quente. Ela o alisava
continuamente, percebendo ostremores no corpo dele. Às vezes acelerava
os movimentos e os tremores no corpo dele aumentavam. Reduzia, então,
observando sempre as reações dele.
Albert suspirava. Ela voltava aos movimentos suaves, tentando-o.
Depois apressava, num jogo provocador, numa tortura alucinante e
prazerosa.
-Quero sentí-lo gozar! -disse ela, continuando seus movimentos,
alternando rapidez com suavidade.
Aquilo dava muito prazer a ele e Rebeca encontrava uma satisfação
naquilo. Percebia a tensão dele aumentar. Ele respirava fundo.
Estremecia. Ela acelerava. Ele vibrava. Ela diminuía. Ele suspirava. Ele
girou a cabeça e procurou os lábios dela com voracidade. Ela percebeu a
reação mais forte que se avizinhava no corpo dele. Acelerou os
movimentos.
- Oh, Rebeca! - murmurou ele e seu corpo se contorceu.
Ele gemeu e suspirou, com a língua enfiáda na boca da garota,
lambendo sua saliva.
- É delicioso! - ofegou ele, o corpo retesando-se.
- Venha! - convidou ela, puxando-o para fora do banheiro.
Deitou-o num banco de madeira, depois que ele colocou a camisinha.
Ela o montou e segurando o cacete dele, acomodando-o na entrada de sua
xoxota, fazendo entrar a pontinha.
Depois, decididamente, com um golpe de quadril fez o caralho
entrar profundamente em sua vagina. Começou a mover lentamente os
quadris; em círculos. Albert ofegava. Suspirava. Gemia. Agarrava-a.
Beijava-a. Movia seus quadris contra os dela, fodendo-a furiosamente. O
gozo foi enorme.
Rebeca desmontou do rapaz, retirou a camisinha e, com umas toalha
de papel, enxugou a porra que lambuzava o caralho dele. Depois se
inclinou, colhendo a glande entre seus lábios e sugando avidamente.
Ele gemeu e suspirou de tesão. Ela deixou o pau dele entrar
lentamente, sugando-o com avidez, fazendo-o recuperar rapidamente a
rigidez. Ela pensou em Derek, em como ele ficaria se soubesse o que ela
fazia naquele momento.
Isso aumentou ainda mais seu tesão e ela apanhou uma camisinha em
sua bolsa, pondo-a no caralho duro a sua frente: Depois subiu de novo
nele, enterrou-o em sua chana e ficou contraindo os músculos vaginais,
enquanto acariciava o peito de Albert, maravilhado com o fogo daquela
mulher sobre ele.
Começou ele a se mover lentamente, indo e vindo, sentindo cada
dobra interna daquela xoxota estreita e tesuda. Seus pensamentos e ações
estavam concentrados em Rebeca. Espicaçavam-no aqueles gemidos qué ele
sufocou com os lábios. A língua dela roçou a sua e dançou em sua boca
atrevidamente.
Os movimentos dele foram ganhando ritmo e intensidade. O tesão
crescia violentamente. Seus corpos se estremeciam, abalados por espasmos
e contrações instintivas. Rebeca ofegava, com a respiração entrecortada.
O desejo crescia. A empolgação também. O gozo se anunciava
violentamente.
- Mais, meu tesão... - pediu ela. - Mais forte... Assim... Quero
tudo... Sim... Tudo... Seu cacete inteiro...
Ele acelerou ao máximo seus movimentos. Seus corpos se
entrechocavam em murmúrios, em gemidos abafados por bocas vorazes. Ele a
beijava alucinadamente, apertando o corpo dela contra o seu, esfregando
seu peito nos seios pontudos e tentadores, sugando a língua dela,
bebendo sua saliva morna e perfumada.
- Mais... mais... Eu estou gozando... Como é gostoso trepar com
você, Albert... Mais... Dê-me mais... Quero derreter...
O prazer explodiu ém seus corpos novamente, intenso e demorado.
Suas bocas se esfregaram com volúpia, num beijo arrebatador que
encarnava todo o prazerque fluía torrencialmente em seus corpos suados.

Carina havia pedido que Derek a levasse até o centro da cidade.
Ela pretendia fazer compras. A tarde ia pelo meio e, considerando o
negócio que fechara com ela, Derek estava satisfeito com a comissão que
receberia e muito grato a ela por tudo o mais.
- Preciso escolher algumas roupas. Não quer me acompanhar?
-Tenho que fazer meu relatório do dia. Está ficando tarde.
- Promete que voltará a me visitar?
- Com certeza! - afirmou ele.
Deixou-a num shopping e foi para sua empresa. Precisava de
material, por isso foi ao almoxarifado apanhar. Quando entrou, encontrou
Marylou, uma garota que havia muito tempo vinha dando em cima dele.
Observou-a com atenção, atento agora a seus predicados. Ela vestia
uma calça comprida colante, que moldava suas coxas esculturaís e
evidenciava a xoxota, que se delineava perfeitamente.
Seu olhar se concentrou ali, depois foi subindo para os seios
pontudos, espetados na blusa de seda. Ela percebeu que ele a olhava de
uma forma diferente. Havia tesão e desejo em seu olhar dela e ela
interpretou logo isso.
Sorriu com malícia e jogou os cabelos para trás, passando a mão
num gesto displicente. Ficou olhando para ele e fazendo uma pose
estudada.
- O que foi? - indagou ela.
O desejo dele foi de agarrá-la.
- Puxa, Marylou, você está linda hoje.
- Sério? Nunca me disse isso antes...
- Você está... tesuda!
Ela esperou um instante, depois caminhou lentamente e parou diante
dele. Ambos ofegavam. Ela roçou os seios no peito dele. Derek olhou
aquele rosto tentador e provocante, depois os biquinhos dos seios,
eretos. Ela riu, enquanto suas mãos iam subindo atrevidamente pelas
pernas de Derek. Uma delas foi pousar sobre o pênis que se enrijecia. Um
sorriso de tesão e deslumbramento pairou nos lábios carnudos da garota.
Derek adorou quando ela tomou a iniciativa. Marylou puxou o zíper
da calça para baixo. Sua mão se introduziu marotamente pela abertura,
venceu a barreira da sunga e enlaçou o membro duro e grosso. Deslumbrada
e afogueada ela o trouxe para fora, admirando-lhe o tamanho e a rigidez.
Ofegou de prazer, com os olhos brilhantes e admirados. Ajoelhou-
se diante dele. Olhou com adoração o pênis em suas mãos, empurrando o
prepúcio para trás, descobrindo a glande avermelhada. Avançou a cabeça.
Derek arrepiou-se. Ela concentrou um pouco de saliva na ponta da língua,
depois esfregou-a na glande do pênis dele. Em seguida, com as duas mãos,
lenta e provocantemente, ela o masturbou, olhando as veias ázuis que se
dilatavam, quando ela empurrava a pele firmemente para trás.
Derekfoi recuando, até apoiar-se numa estante. Marylou estendeu a
língua. Enquanto o masturbava, ela lambia a cabeça inflada do caralho,
que se tornava cada vez mais vermelha.
Ele estremecia, enquanto ela babava de tesão, com a língua
ródeando a glande, lambendo e acariciando, mantendo-a sempre úmida de
saliva. A expressão do rosto dele era de pura satisfação. Marylou era
tesuda e sabia exatamente o que fazer para levá-lo ao delírio. Seus
lábios carnudos se abriram e ela sugou apenas a ponta do membro dele,
quase num beijo.
Soltou, enquanto Derek estremecia. Repetiu. Quando sugava, a ponta
da língua forçava o buraquinho da uretra, depois acariciava toda a
cabeça intumescida. Derek ofegou, deslumbrado.
Marylou suspirou, abrindo a boca e deixando o caralho dele se
enterrar nela lentamente, apertando os lábios contra a pele retesada.
Ela o abocanhou inteiro, girando a língua ao redor dele, sugando-o,
mamando- o com um prazer imenso.
Derek gemeu e retesou o corpo, deliciando-se com a carícia. A
garota sabia como fazer aquilo. A língua brincava com o membro dele. Os
lábios apertavam firme, indo e vindo, numa cadência gostosa, sem pressa,
mas lasciva e agradável.
Ele sentiu arrepios e sensações intensas percorrendo seu corpo, em
tremores inquietos e deliciosos
O olhar dele se concentrava agora nos seios jovens, rijos e
empinados que se ofereciam a ele. Ela continuava chupando-o. Derek
pendeu o corpo na direção dela, beijando seus ombros e seu pescoço,
enquanto suas mãos dominavam os seios dela.
Apertou-os, beliscando os mamilos eriçados, deliciando-se com
aquela firmezajovem e atrevida. Marylou ofegou e sugou com mais ênfase o
cacete em sua boca.
Derek olhava com profundo tesão aqueles lábios carnudos devorando
seu membro. As mãos dela subiram pelo corpo dele, soltando os botões da
camisa, depois os dedos finos e carinhosos enrolaram-se nos pêlos de seu
peito. Ela beliscou os mamilos dele.
- Fique pelada! - pediu ele, excitado ao extremo.
Ela sorriu, cheia de malícia. Levantou-se, então, e retirou a
calça. Seu corpo jovem e irretocável encheu os olhos dele, que a desejou
inteiramente.
Admirou com tesão os seios empinados, o ventre achatado e os pêlos
que cobriam seu monte-de-vênus gracioso.
- Fique pelado também! - pediu ela.
Ele a atendeu, depois se ajoelhou diante dela, enlaçou-a pela.
cintura, beijando-a ao redor do umbigo. As mãos foram apertar as nádegas
rijas e redondas. Em suas narinas chegava aquele perfume adocicado e
intenso, sutil e embriagadorda xoxotinhajovem, atraindo-o
inapelavelmente.
Seus lábios desceram, deslizando sobre os pêlos sedosos, buscando
o ponto mais úmido e perfumado.
Ela estremeceu e arrepios eriçavam sua pele continuamente. Ele
gemeu, esticando a língua e,lambendo toda a vulva e o clitóris ereto.
- Oh, delícia! - murmurou ela, o corpo estremecendo todo.
Suas mãos se enterraram nos cabelos dele, apertando-o contra o
corpo. Uma das mãos dele penetrou pelo reguinho tentador da bunda dela,
buscando o buraquinho apertado paraforçá-lo numa massagem inesperada.
Marylou sentiu as pernas bambearem e se apoiou nos ombros dele.
-Oh, isso é bom demais... Isso me derrete... - rouquejou ela, o
corpo pesando sobre ele.
Derek a fez se sentar numa escrivaninha que havia ali, postando-
se dejoelhos diante dela. Afastou as coxas dela para os lados. Olhou com
um prazer imenso aquela bucetinha orvalhada e ardente. Inclinou-se,
aspirando o perfume entontecedor, depois enfiou a línguá com prazer;
revirando, lambendo, sugando, beijando e alucinando-a.
- Também quero! - pediu ela, escorregando para fora da
escrivaninha e deitando-se no carpete.
Ele a atendeu, fazendo o sessenta e nove. Ele teve o caralho dele
ao alcance de sua boca.
Chupou-o desvairadamente, aumentando o tesão dele, que a lambia
alucinadamente. Suas respirações ofegantes misturavam-se ao ruído dos
gemidos e suspiros de prazerque escapavam de suas gargantas.
A língua de Derek roçava o clitóris dela, deixando-a tonta de
tantas sensações. Ela respondia com sucções e lambidas na pica dele,
pressionando seus lábios contra a glande, girando a língua,
entontecendo-o.
Marylou começou a gozar ininterruptamente. Derek percebia isso
pelas contrações do corpo dela, pelos tremores e pela maneira como ela
apertava as coxas contra a cabeça dele.
A volúpia no corpo dela o contagiava. Ele queria gozar e, ao mesmo
tempo, louvar demoradamente aquele corpo jovem que se oferecera a ele.
Esfregou-se nela, movendo-se como uma serpente sobre a pele da garota.
Beijou-lhe os seios, depois o pescoço e os ombros. As mãos dela se
mantiveram firmes no pênis dele, masturbando-o continuamente agora.
Marylou se remexia inquietamente no carpete. Derek girou-a,
pondo-a de bruços. Vestiu uma camisinha no cacete, depois deitou-se
sobre ela, beijando sua nuca e seus ombros, enquanto seu caralho se
enfiava entre as coxas dela, roçando sua vulva e seu ânus.
O contato com aquela bundinha rija e tentadora espicaçava-o. Derek
esfregou o pênis no reguinho tentador, depois o fez deslizar na direção
da xoxota, posicionando-o.
Pincelou-a, até encontrar o caminho. Empurrou apenas a ponta.
Marylou gemeu e ofegou, sentindo a potência e a grossura do caralho que
forçava a entrada de sua bucetinha.
- Quero tudo! Vem! - pediu ela.
-Vai tertudo!-garantiu ele, empurrando lentamente, enquanto a
puxava pelos quadris ao seu encontro.
A pica enterrou-se profundamente. A bunda dela ficou colada aos
pêlos dele, enquanto ambos suspiravam, ofegantes e trêmulos de tesão e
prazer.
- Oh, que tesão - gemeu ela, sentindo aquele cacete preencher toda
a sua vagina, distendendo-a totalmente, numa sensação gostosa e ardente.
Ele se debruçou sobre ela, coleando os quadris, entrando e saindo,
indo e vindo, numa cadência perfeita, que provocava espasmos de prazer
no corpo da garota. Ela gozou, a princípio em ondas menores, que foram
crescendo, até provocarem um verdadeirofuror em seu corpo, roubando-lhe
a consciência, deixando-a à beira da alucinação, de tão forte que era.
- Com força! Tudo! Põe! Enfia! Enterra! Quero gemer! Quero gozar
mais! É muito bom! Quero mais! Não pare! Oh, não pare! -dizia ela, fora
de si, rebolando e gozando.
Derek a mantinha presa pelos quadris, golpeando firme, sentindo a
bucetinha apertada e lubrificada comprimir seu caralho gostosamente,
dando-lhe um prazer extra ao roçá-la interna e externamente. Seus
movimentos cadenciados ganharam um ritmo alucinante.
- Vou gozar! - gemeu ele, estremecendo. - Goze comigo! Estou
começando! - interrompeu-se ele, retesando o corpo e gemendo
profundamente, enquanto o corpo todo se abalava.
Marylou sentiu que seus sentidos se embotavam, superados por uma
sensação deliciosa e prolongada de êxtase. Derek ainda estremecia de
gozo, quando Marylou se ergueu e encaixou o pênis entre suas nádegas. A
volúpia de Marylou foi uma grata surpresa. A garota gemeu, soltando o
corpo, girando os quadris, rebolando, forçando. A cabeça do pênis
entrou.
Ela suspirou e ofegou, imobilizando-se por instantes. Depois
forçou novamente e o caralho foi se enterrando gostosamente em suas
entranhas. Lágrimas brotaram em seus olhos.
- Oh, que delícia! - gemeu ela.
Começou a mover os quadris, até a glande quase escapar. Depois
enterrou-a novamente. Repetiu o movimento. Continuou, ganhando cadência.
Derek estremecia, sentindo o pênis latejar dentro daquele cuzinho
estreito e delicioso. Coordenou seus movimentos aos dela, fodendo-lhe o
rabo. Suas mãos bolinavam os seios dela, que gemia e se movia sobre ele.
Desvairada, ela sentia todo o seu corpo vibrar e seu ventre se
contrair em espasmos de pura delícia. Gozava seguidamente. Esfregava o
clitóris. Acariciava o próprio corpo. Agarrava-se aos pêlos dele.
Beliscava seus mamilos.
Derek jamais vira uma mulher tão ardente e decidida. Sentiu o
prazer de novo aproximar-se.
-Vou gozar! Vou gozar de novo! -anunciou e Marylou acelerou ainda
mais seus movimentos.
Ele gozou convulsamente, ejaculando novamente, quase estourando a
camisinha. Marylou continuou se movendo loucamente, até os gemidos serem
sufocados em sua garganta e ela tombar, quase desfalecida, sobre ele.
Ficaram ali, abraçados e engatados, beijando-se furiosa e
voluptuosamente.

Capítulo 4

Derek foi ao apartamento de Marylou, naquela noite, pois gostara
da maneira como ela fizera amor com ele naquela tarde. Haviam tomado
banhojuntos e Marylou enxugava-o, esfregando suavemente a toalha no
corpo dele. Finalmente, deteve-se no membro dele e começou a esfregar a
glande com a toalha úmida, provocando arrepios e tremores no corpo dele.
Rapidamente o caralho reagiu, endurecendo entre seus dedos
maravilhados. Marylou deixou cair a toalha de suas mãos e seus dedos
permaneceram, apertando e movendo-se lenta e voluptuosamente.
- Você é surpreendente! - murmurou ela.
- Por que diz isso?
-A maneiracomo fez amorcomigo. Pensei que nem percebesse que eu
existia. E olhe que já lhe dei muita bola!
- É que somente hoje eu pude perceber a mulher gostosa que você é
- respondeu ele, segurando-a pelas nádegas, flexionando os joelhos e
encaixando seu pênis entre as coxas dela.
Ergueu-se. Ela ficou nas pontas dos pés, com o caralho dele
roçando sua vulva molhada.
- É um grande mentiroso, mas acredito em você - respondeu ela,
esfregando-se nele, acariciando seus músculos firmes e delineados.
- Sabe o que eu gostaria de fazer?
- O quê? - indagou ela, tensa e excitada.
- Eu queria ficar aqui e repetir tudo o que fizemos hoje à tarde
fodendo-a a noite inteira, chupando sua bucetinha, comendo seu cuzinho!
-E porque não faz isso?-convidou ela, num desafio.-Tenho comida,
bebida e tudo o que precisarmos.
- E por que não? - arrematou ele, tomando-a nos braços.
Levou-a até a cama, onde deitou-a gentilmente. Olhou aquele corpo
tentador, ainda úmido e perfumado do banho. Depois inclinou-se e
lambeu-lhe os bicos dos seios, fazendo-os enrugarem-se deliciosamente.
Sua mão desceu pelo ventre dela e foi enfiar-se por entre as
coxas, que se abriram naturalmente. Tocou-lhe o clitóris e Marylou
arqueou o corpo, ofegando.
-Que delícia! Não pare! Continue assim!-pediu ela, enquanto o dedo
dele se movimentava sobre o botãozinho sensível.
A boca voraz de Derek pousou entre os seios dela, beijando,
lambendo, sugando, descendo e subindo as encostas acentuadas que se
arrepiavam mais e mais.
A mão continuou entre as coxas dela, movimentando-se ritmadamente,
arrebatando-a. Ela gemia e suspirava. Seus sons roucos e melodiosos eram
música aos ouvidos dele, provocando-o.
- Dentro! Põe dentro - pediu ela.
Derek atendeu-a imediatamente, enfiando o dedo e buscando o ponto
G para massageá-lo. Os olhos da garota ficaram esgazeados e ela respirou
profundamente.
Derek sentiu o tesão fazer seu pênis latejar. Os dedos apressados
e possessivos de Marylou tocaram-no, apertando-o, alisando a glande
intumescida.
O perfume da chana dela dominava o aposento. Derek deslizou o
corpo sobre o dela, indo até aquela fonte. Suas mãos ficaram acariciando
os seios e o corpo dela. Sua língua vou louvar a bucetinha perfumada com
lambidas apaixonadas.
Ela ofegou, retesando o corpo, gozando aquele prazer intenso que
ele lhe proporcionava.
- Que bucetinha gostosa você tem, Marylou! Tão apertadinha! Tão
ardente e tão gostosa!
O hálito quente em sua vagina e o som rouco da voz de Derek
provocaram um frêmito no corpo dela.
Ela agarrou a cabeça dele e apertou-a contra a vulva. Derek
lambeu com mais ímpeto, depois enfiou sua língua no buraco estreito,
lambendo e chupando, acariciando o ponto G habilmente, até que o corpo
dela fosse tomado por espasmos contínuos.
Ela apertou as coxas contra a cabeça dele, gozando
interminavelmente.
Ele percebia o quanto ela gozava pelas contrações de sua xoxota,
que se abria e fechava, contraindo e relaxando os músculos, acada vez
que um orgasmo acontecia.
- Oh, Derek! Venha! Quero sua pica dentro de mim! Agora! -
suplicou ela, agarrando-o pelos cabelos e puxando-o para cima de si.
Derek atendeu-a, subindo por ela, pondo uma camisinha no caralho,
depois abraçando-a com frenesi. Seu membro encaixou-se à entrada da
bucetinha apertada.
Ficou apenas pressionando levemente, pondo e tirando parte da
glande, sondando a entrada que se dilatava a cada avanço de seu pinto.
- Põe! Tudo! - pediu ela, suplicante e impaciente.
Derek ficou beijando-a e alisando seus seios, enquanto a cabeça de
seu pau ia e vinha, apenas ensaiando a penetração, pondo Marylou num
delirante estado de expectativa e tensão erótica.
- Põe! Vem! Eu quero agora! - pedia ela, os olhos entreabertos e
mortiços, brilhantes e úmidos.
A boca buscava impaciente a dele.
-Sim! Vou pôr! Agora! Tudo! Comovocê quer!-disse ele, afinal,
continuandoa brincadeira poralgumtempo, antesde pressionaro membro lenta
e firmemente, na bucetinha dela.
Sentiu a glande comprimir-se à entrada apertada da xoxota. Gozou
aquela resistência deliciosa, enquanto afundava-se pouco a pouco dentro
dela.
A bucetinha apertada sugou-o para dentro. Marylou ficou suspirando
e gemendo baixinho, contraindo os músculos vaginais, proporcionando-lhe
um prazer inusitado.
-Agora faz com força! Bastante força! Vem, paixão! - pediu ela,
movendo os quadris, transtornada de paixão.
Ele iniciou.seus movimentos de vaivém, que foram ganhando um ritmo
alucinante, como Marylou queria. Seus lábios se buscaram para um beijo
sôfrego e alucinado. Suas línguas se encontraram, trocando saliva e
paixão.
- Assim? - indagou ele, o ritmo da cavalgada tornando-se
alucinante.
-Sim! Sim!-concordou ela, frenética. -Estou gozando! Estou gozando
tanto! - acrescentou, num suspiro longo e profundo, enquanto todo o seu
corpo vibrava intensamente.
- Eu também! Oh! - gemeu ele, o corpo se retesando num espasmo
incontrolável.
Enterrado no mais fundo da xoxota de Marylou, Derek ejaculou
copiosamente, gozando cada jato, cada espasmo, cada onda de prazer e
arrepios que percorria seu corpo.

Marylou ficou deitada, com a cabeça no peito dele, sentindo aquela
forma especial que ele tinha de ficar tocando o corpo dela, como se
quisesse mantê-la numa excitação constante.
- Tenho uma festa para ir hoje à noite - lembrou-se ele.
- Precisa mesmo ir?
- Sim, por que não vamos juntos?
- Eu conheço alquém nessa festa?
- Não importa! E minha convidada. Vamos!
- Está bem, por que não? -concordou ela. - Só vou tomar um banho
rápido.
-Tudo bem! Vou me vestir enquanto isso -concordou ele, indo
apanhar suas roupas.
Começou a se vestir. Ouviu o barulho do chuveiro e imaginou a água
caindo sobre o corpo jovem e tentador de Marylou. Ela foi rápida,
retornando pouco depois, com gotículas brilhando em sua pele.
Vestiu-se diante dos olhos dele, que acompanharam a transformação.
Ela ficou linda com os cabelos soltos, o vestido evidenciando as curvas
do seu corpo e o rosto maquilado na medida certa para valorizar seus
encantos.
- Fantástico! - elogiou ele, como se visse uma nova mulher diante
dele.
- Podemos ir?
Ele sorriu, olhando-a. Havia uma oferta irrecusável nos olhos
dela, no seu corpo, no seu perfume. Ele simplesmente avançou e a abraçou
pela cintura, erguendo-ajunto ao seu corpo.
Beijou-a no pescoço e nos ombros, depois deixou-a escorregar
lentamente, enquanto seus lábios colavam-se em sua boca. Com extrema e
incendiária paixão ela o beijou, sugando sua língua e bebendo sua
saliva, embriagada de tesão.
-Tem certeza de que deseja mesmo ir a essa festa?-indagou ela, com
provocação.
- Convença-me do contrário! - pediu ele.
- Dê-me um motivo para fazê-lo! - retrucou ela.
Os braços fortes de Derek a apertaram cam tesão e ela desejou
fodê-lo de novo, sem mais demoras, esquecendo-se de tudo o mais. Marylou
estava mostrando ser uma garota especial e Derek queria aproveitar essa
descoberta.
- Nunca desejei uma mulher tanto como a desejo agora - murmurou
ele, beijando seus cabelos, o rosto, o pescoço, os ombros, enfiando seu
joelho por entre suas coxas e erguendo-a.
Ela encaixou a xoxota ali, esfregando.
- Você é um tesão...
- E você é gostosa demais. Está tão linda e desejável que quase
chego a gozar só de tocá-la - continuou ele, roucamente.
- Vamos mesmo sair? - indagou ela, provocando-o.
- Foda-se a festa! - exclamou ele, esfregando seus lábios nos
lábios mornos, carnudos e macios da garota.
- Foda mim, então!
- Com todo o prazer!
Ela suspirou; deslumbrada e febril, deixando-o se apossar dela.
Seu estômago se retorcia de tesão. Seus mamilos se arrepiavam, sensíveis
ao toque.
O sopro do hálito dele em suas orelhas a arrepiava. O joelho
roçando sua chana dava-lhe um prazer enorme.
-Quero vê-la nua outra vez - pediu ele, soltando-lhe o fecho do
vestido e puxando-o para cima.
Quando ele fez isso, seus peitinhos saltaram diante dos olhos
dele, belos e agressivos, empinádos e firmes, coroados por mamilos
enrugados de paixão e desejo.
-São lindos-murmurou ele, num suspiro.
Marylou sentia suas pernas bambas, enquanto elelambia, chupava,
mordiscava e beijava suas tetinhas, fungando de tanto prazer.
Tirou-lhe o paletó, depois repuxou acamisa dele, tirando-a.
Apertou seus músculos incrivelmente firmes e bem delineados. Enfiou seus
dedos naqueles pêlos fartos e encaracolados, sedosos e gostosos de
tocar.
Ele continuou beijando seus seios e devassando seu corpo
sofregamente. Lentamente ele foi se ajoelhando diante dela, beijando seu
ventre, enfiando a língua em seu umbigo. Seus dedos se enroscaram no
elástico da calcinha. Puxou lentamente para baixo, já de joelhos,
descobrindo seus pêlos.
O perfume de sua chana enlouqueceu-o.
- Que bucetinha linda! - rouquejou ele e ela sentiu seu hálito
quente entre as coxas, abrindo as pernas instintivamente. ,
Derek enfiou a cabeça entre elas e sua língua a tocou como um
ferro em brasa.
- Oh, Derek - ofegou ela, à beira de uma vertigem de puro prazer.
Ele insistiu na caricia. A ponta de sua lingua penetrou sua chana,
indo à procura do ponto G, tocando-o como uma corrente elétrica. Ela
quase desmaíou de gozo, apoiando-se na cabeça dele, apertando-o contra
seu corpo. A língua dele continuou lá dentro nela, alucinando-a. Seus
lábios tocavam sua vulva e seu clitóris. Movimentos sutis a faziam
explodir de gozo.
- Oh, Derek, vamos trepar! - pediu ela, quase sem fôlego.
-Sim, é o que mais quero-respondeu ele, fazendo-a sentar no tapete
do quarto.
Marylou ficou com as pernas abertas e com ele entre elas, a língua
indo e vindo, o hálito aquecendo-a intimamente, fazendo-a gozar. As mãos
dele subiram pelo seu corpo. Apertaram seus seios, beliscaram seus
mamilos durinhos e sensíveis.
Ela gemia de prazer, torcendo-se toda, gozando aquela delicia de
tê-lo ali, entre suas coxas, apenas sentindo sua fome de amor.
Derek sugava sua chana e sua vontade.
-Não pare! Não pare! Não pare! -suplicou ela, estremecendo e
gozando, os olhos revirados, a boca seca, o ar faltando em seus pulmões.
- Não vou parar. Quero que goze!. Que goze bastante, minha
querida!
Marylou perdeu a conta de quantas vezes ela gozou ali, até que ele
se levantou e ficou em pé, entre as suas pernas. Soltou o cinto. Abaixou
o zíper da calça. Empurrou-a para baixo, junto com a sunga. Retirou os
sapatos e as meias. Livrou-se de todas as roupas. Estava nu e cheio de
tesão diante dela.
- Vem, meu tesão! Você me deixou mole, sabia?
- E você me deixou tesudo. Muito tesudo, querida- respondeu ele,
excitado.
Derek se deitou sobre ela, beijando-a alucinadamente, fazendo-a
sentir a rigidez e o calor de seu pênis entre as suas coxas. Ele moveu
os quad ris lentamente, indo e vindo, rente a sua xoxota, molhando-se no
seu sumo.
-Foda-me, Derek! Foda-me todinha! -foi dizendo ela, com seus
sentidos em turbilhão.
Ela gozou com seu corpo sobre o dela, roçando, com seu hálito,
seus lábios, seu caralho em suas coxas, seu peito cabeludo esfregando-se
nos seios dela.
Tudo nele era uma fonte de prazer para Marylou. Nem ela conseguia
explicar o misterioso e violento fascínio que ele exercia agora sobre
ela. Sua simples presença estava tendo o poder de fazê-la melar-se toda.
- Minha gatinha molhadinha! - murmurou ele, descendo os lábios
para o seu pescoço e dali para os seus seios.
Lambeu-os, apertando os biquinhos com os dedos. Uma das mãos
desceu e foi tocar sua buceta, amolecendo-a totalmente. Seu clitóris
vibrou e ela foi gozando seguidamente.
Aqueles dedos mágicos e hábeis dedilhavam sua sexualidade e
levavam-na às alturas. Um deles penetrou seu corpo, buscando o ponto G,
alisando a rugosidade sensível e explosiva, fazendo Marylou se contorcer
no assoalho, gemendo de prazer.
- Quero seu caralho! Deixe-me brincar um pouco com ele. pedíu-lhe,
já fora de si, de tanto gozar.
- Sim, querida! Venha mamar no seu cacete - disse ele, .
sentando-se, as pernas abertas, o caralho endurecido à espera dela.
Ela caiu de boca e de língua nele. Apertou e beijou, masturbou e
lambeu, acariciou e chupou aquele pênis, sentindo um prazer enorme em
tê-lo nas mãos e na boca.
Derek ficou acariciando seus cabelos, enquanto ela o fazia
estremecer com suas carícias.
Seu pênis pulsava naquela boca faminta e hábil. Ela arranhou seus
testfculos, fazendo-se se torcer de gozo. Queria aquele cacete todinho
dentro dela, em sua chana, esfregando-se em seu clitóris, enfiando-se em
seu corpo, roçando seu ponto G.
Derek se deitou no assoalho e ela girou seu corpo; oferecendo sua
xoxota para ele chupar. A língua de Derek penetrou firmemente, morna e
viva, girando dentro dela.
Marylou redobrou a intensidade de suas carícias e quase o fez
gozar, de tanto que chupou e alisou seu pau , deixando-o à beira do
orgasmo.
- Mais! Enfie lá dentro! No grelinho! No ponto G! - ela pedia,
descontrolada, gozando continuamente.
-Chupe! Chupe mais! -pediu ele; enterrando a língua em sua xoxota,
indo e vindo.
- Oh, Derek! Quero foder! Quero trepar agora! - pediu ela, quando
aquele calor e aquelas serisações se tornaram insuportáveis em seu corpo
e ela se sentiu flutuando no centro de uma tempestade. Acomodaram-se.
Ela ficou por baixo. Ele começou a beijá-la a partir dos pés e foi
subindo lentamente. Uma das mãos brincava em sua xoxota, massageando seu
clitóris, indo até o ponto G para dar ligeiros toques que a incendiavam.
Tremores contínuos abalavam seu corpo. Os beijos chegaram a seus
seios e ao seu pescoço, concentrando-se, finalmente; em sua boca. Ela
arfava e suspirava, quase sem ar nos pulmões, arrepiada até à raiz dos
cabelos, presa de uma sensibilidade enorme em toda a sua pele.
-Oh, como você é gostoso! -murmurou, as mãos percorrendo o corpo
másculo que cobria o seu.
Ela queria sentir logo o caralho dele entrando em sua chana.
-Põe logo, Derek! Põe! Não agüento mais detesão! Quero sentir seu
caralho em mim, amor! Pôe! - suplicou.
-Calma, tesão! Calma! Temos tempo! Muito tempo!-disse ele,
segurando-a pelo ombro e pelo quadril, fazendo-a girar o corpo.
Ela ficou de costas para ele, ajoelhado ao seu lado: As mãos dele
tocaram sua pele e desceram como um arrepio pela sua espinha, até a sua
bunda arrebitada.
Dali cada uma delas tomou uma direção. Uma subiu até a sua nuca. A
outra desceu por entre suas coxas.
Ele se debruçou. Ela estremeceu com o hálito dele em suas nádegas.
Seus dentes em sua pele fizeram-na estremecer de gozo. Sua língua
descendo pelo reguinho provocou espasmos de prazer. Ela arrebitou ainda
mais a bunda. A língua moveu-se sobre seu ânus e convulsões agitaram seu
corpo novamente.
Ele beijou paciente e provocantemente suas costas, até sua nuca.
Ela estava mole, gozando sem parar.
Espasmos subiam e desciam sua espinha, brotando de seu ventre em
convulsão. Ela gemia e suspirava, sem forças para continuar gozando com
o toque de suas mãos e seus beijos.
Finalmente ele girou de novo o corpo. Pôs-se entre as suas pernas.
Debruçou-se mais uma vez e lambeu sua buceta, sugando o néctar abundante
que dela brotava. Ela estremecia em espasmos contínuos de prazer.
- Meu tesão! Você é simplesmente deliciosa! - rouquejou ele,
acomodando-se entre as coxas dela.
Ele segurou o caralho e pincelou a cabeça quase arroxeada em sua
vulva. Marylou quase desmaíou e se agarrou nele desesperadamente,
puxando-se sobre ela, enquanto movia ritmadamente os quadris, buscando a
penetração.
Ele a beijou alucinadamente, enquanto punha a camisinha.
Posicionou o membro. O caralho avançou devagar e firmemente, alargando,
entrando, afundando-se até que ela o engolisse todo e o ficasse
apertando com as contrações de sua buceta.
Ele ficou lá dentro dela e Marylou o sentia pulsar de tesão,
fundido à sua vagina, criando a sensação de que úm vulcão ameaçava
explodir. Ela havia atingido um nível de excitação jamais sentido antes.
Derek a levara ao paraíso. Ela estava à beira de desfalecer.
-Tesuda! -murmurou ele, trémulo e entrecortado.
- Foda-me, Derek! Foda-me! Estou à beira do desespero! Quero
gozar! Quero explodir! - suplicou ela, num fio de voz.
Ele a atendeu, finalmente, começando a se mover.
- Mais! Mais depressa! - ela pedia, mas ele controlava a situação
e aumentava o ritmo gradativamente, como se observasse suas reações e
sentisse prazer com isso.
- Oh, que bucetinha gostosa você tem! Como é apertadinha! Como é
gostosa!
- Vem! tudo! mais forte! mais! Oh, Derek! Oh, tesão! - ela
delirava.
Os quadris dele atingiram um ritmo impressionante, tirando-lhe o
fôlego, secando sua boca, fazendo-a se contorcer, inteiramente
arrepiada. Marylou começou a gozare seus orgasmos foram se prolongando,
subindo cada vez mais, cada vez mais fortes, até que seu corpo todo se
arrebentasse naquele vulcão contido.
Foi um gozo indescritível, cheio de sensações e emoções violentas.
Múltiplas reações ocorreram em seu corpo, cada uma melhor do que a
outra.
- Vou gozar! vou gozar em sua bucetinha! - anunciou ele,
imobilizando-se sobre ela, gemendo num suspiro prolongado e
entrecortado.
Seu rosto se contraiu de prazer, numa expressão de éxtase. Seu
caralho pulsou ritmadamente dentro dela, expelindo jatos quentes de
porra, inundando a camisinha. Ficaram ofegantes, apenas sentindo o
prazer, abraçados fortemente, naquela atmosfera que cheirava a porra e
buceta, a prazer e satisfação.
Depois seus corpos foram se relaxando. Ele ficou acariciando o
corpo dela.
- Quer ir a uma testa? - indagou ele.
Ela riu.
- Quer ir jantar?
-Qualquercoisa que você propuserestá bom para mim. Você foi ótimo!
-exclamou ela, sentando-se.
Ele a ajudou a se levantar. Foram para o banheiro. Um esfregava o
outro, na ducha morna e deliciosa. A espuma deslizava sobre as peles
lubrificadas. Os gestos foram provocantes, intencionalmente marotos,
buscando os pontos sensíveis, numa brincadeira divertida e excitante.
O tesão voltou mais forte do que da primeira vez.
-Estou desejando você de novo-murmurou ela, detendo suas carícias
no caralho dele.
Gradativamente ele reagiu e foi inchando entre seus dedos hábeis e
delicados.
- E eu quero mais! Quero tudo de você nesta noite- murmurou ele,
deslizando as mãos pelas nádegas dela, encontrando o buraquinho
pregueado para uma massagem provocante e sutil.
- E se fizéssemos um espaguete? - sugeriu ela, mas ele já a
beijava, sugando avidamente os lábios mornos e carnudos.
Apertou-a contra si, encaixando seu membro entre as coxas dela.
Segurou-a pelas nádegas e ergueu-a. Ela enroscou as pernas na cintura
dele. Caminharam assim para a cama.

Capítulo 5

Derek achou por bem não negligenciar de todo Rebeca. Acima de
tudo, aquela situação estava lhe proporcionando experiências incríveis
e, o que era mais importante, seu tesão por Rebeca era agora diferente,
muito mais intenso.
Percebeu isso quando se viu na garagem dela, esperando-a chegar,
num fim de noite. Assim que ela parou o carro, ele abriu a porta e
entrou.
-Surpresa! -disse ele, enquanto a abraçava e beijava ardente-
mente, enfiando a mão por entre as coxas dela, buscando sua xoxota que,
em questão de segundos, ficou toda molhada.
Ofegando, ela correspondeu àquele ataque inesperado e devastador,
apertando-se a ele e sentindo a rigidez dos músculos de seu tórax
másculo. Deslizou uma das mãos pela coxa dele, indo até o ventre,
encontrando ali o caralho já duro.
Derek estava excitado ao extremo, dedilhando a xoxota da garota
com habilidade, tocando seu clitóris e avançando até seu ponto G.
Ela se arrepiou toda e sentiu o ar faltar em seus pulmões.
Correntes de prazer percorreram sua espinha de cima a baixo.
- Oh, Derek! - exclamou, ofegando, sentindo os dedos dele
invadindo sua chana e arrancando dali as emoções mais arrepiantes.
- Pegue minha pica! - pediu ele, malissioso.
Ela empurrou o zíper da calça para baixo e enfiou a mão pela
abertura, encontrando facilmente o membro endurecido. Com tesão, Rebeca
trouxe para fora o caralho endurecido e quente, apertando-o entre seus
dedos febris.
Começou a masturbá-lo. Derek estremeceu, apertando-a e enfiando
uma das mãos pelo decote para buscar um dos seios rijos e tentadores.
-Quero você! -declarou ela, sentindo o desejo explodir em seu
corpo jovem e sedutor.
Derek concentrou sua atenção na xoxota dela, dedilhando-a com
habilidade, alternando carícias no clitóris e no ponto G, levando-a
rapidamente ao primeiro orgasmo.
Ela ficou estremecendo e apertando o pinto dele, com a língua toda
enfiada na boca dele, que a sugava deliciado.
- Vamos entrar - pediu ela, mas continuou com o caralho dele entre
seus dedos, manipulando-o, masturbando-o lentamente.
Inesperadamente, debruçou-se e começou a lamber e a sugar aquele
membro ereto e pulsante.
- Rebeca, sua tesuda!
Ela continuou mamando na pica dele, depois puxou-o pelo pinto,
fazendo-o sair do carro.
Entraram na casa, trocando beijos e amassos. Ele a prendeu contra a
porta, enfiou um dos joelhos entre as coxas dela e foi subindo, lévando
o vestido para cima. Imediatamente o perfume da xoxota dela invadiu a
sala, entontecendo-o.
- Oh, Rebeca, você continua mais quente do que nunca -
murmurou ele.
- Você me acende, Derek!
- Está trepando muito?
- Não tanto quanto gostaria- respondeu ela, levando-o para
a cama.
Ela se deitou, numa pose oferecida. Derek ficou observando
aquele corpo tentador, cujos seios perfeitos arfavam suavemente.
O ventre liso exibia uma penugem suave, que descia,
transformando-se num tufo escuro abaixo do ventre.
Ele concentrou sua atenção nas coxas entreabertas, sentindo um
tesão violento ao perceber a rachinha entre os pêlos encaracolados,
onde
rebrilhavam gotas do néctar da excitação.
Seu caralho latejou, de tanto desejo. Ela estava tão provocante
naquela posição que ele não resistiu e se abaixou diante dela.
Seu olhar passeou pelo corpo da garota, descendo dos cabelos
para os seios e dali para o ventre.
Ele se sentou na beira da cama e ficou se deliciando com a vi são
excitante daquela rachinha desenhada orvalhada.
Lembrava-se muito bem daquela xoxotinha e do prazer que elajá
lhe proporcionara tantas vezes.
Ele avançou por entre as pernas dela e se inclinou sobre o corpo
jovem e sedutor.
Pousou uma das mãos entre os seios dela e ficou alisando,
beliscando os biquinhos, que se enrijeceram.
- Você continua fantasticamente tentadora e deliciosa, Rebeca
-comentou ele.
Em resposta ela estendeu a mão e enfiou-a pela camisa dele, até
o peito. Deslizou-a para baixo lentamente. Suas unhas arranharam os
pêlos, descendo para a barriga.
O olhar dela se tornou brilhante. Derek fechou os olhos e
esperou,
apenas sentindo, até que a mão dela soltasse o cinto e o zíper de sua
calça
e chegasse ao seu pênis, agarrando-o e apertando-o com volúpia.
- Está tão duro! - falou ela, os dedos apertando o membro
grosso e longo, provocando-o.
-Oh, Rebeca! Seu toque é puro tesão-disse ele, sem abrir os
olhos, concentrado naqueles dedos movendo-se ao redor de seu cacete,
anunciando-lhe um prazer sem preçedentes.
Rebeca arrastou-se sobre a cama, enroscando-se nele e fazendo-o
se deitar.
Com gestos provocantes e sem pressa alguma, ela o despiu,
cobrindo de beijos a pele dele.
Em seguida, deitou-se sobre o corpo dele e segurou seu rosto, antes
de começar a lambê-lo.
Ele sentiu a respiração ardente contra sua pele, o contato dos
seios dela contra seu peito, as coxas macias esfregando-se nele. Os
movimentos do corpo dela incendiaram-no, contagiando-o.
Abraçou-a, apertando-a contra si, gozando o contato provo- cante
de sua pele, enquanto suas mãos desciam pelas costas da garota até as
nádegas roliças e arrebitadas, maravilhando-se com a perfeição de
formas.
- Senti um tesão enorme quando a vi chegar. Desejei trepar com
você lá no carro mesmo - murmurou ele, com a voz rouca pelo desejo.
Ela sorriu, buscando os lábios úmidos e entreabertos para beijá-
los sofregamente, enfiando sua língua na boca ardente, que a sugou com
voracidade.
Rebeca esfregou provocantemente seu ventre no pênis dele, gozando
aquele volume rijo e tentador. Derek ofegou de tesão, sentindo a pressão
e os movimentos dela.
- Você também me deixou cheio de tesão - murmurou ela, as mãos
passeando possessivamente pelo corpo dele.
-Quérotrepar logo com você! Enfiar meu cacete na sua bucetinha!
Sentir o fogo que há dentro de você - sussurrou ele.
O som daquela voz excitada arrepiou-a, fazendo-a ofegar de puro
prazer.
- Como você está ardente, Derek! Adoro isso! - exclamou ela,
beijando-o no pescoço e na orelha, enquanto éle punha o membro
endurecido entre as coxas dela, que se fecharam, prendendo-o.
Derek ficou fodendo nas coxas dela, movendo os quadris lentamente,
sentindo seu caralho roçar a pele macia e sensível.
- Que bom poder estar com você de novo! Fodê-la sem pressa! -
murmurou ele, girando o corpo e pondo-a sob si para gozar a visão do
formato perfeito de seus seios, com auréolas escuras que circundavam os
biquinhos enrugados de paixão.
Sua mão desceu pelo ventre achatado e foi se enfiar entre as coxas
dela, roçando os pêlos, buscando a buceta molhada e estreita para uma
carícia mais íntima.
Rebeca arqueou o corpo, quando o dedo dele roçou seu clitóris e
foi tatear a abertura lubrificada de sua chana, antes de penetrar
decidida e habilmente para ir tocar seu ponto G numa estonteante
massagem que a fez tremer de puro gozo.
O perfume penetrante de suá xoxota confundiu-se com os perfumes de
seus corpos, numa frágrância nova e erótica, aguçando o desejo dos dois.
Derek deslizou, então, sobre o corpo trêmulo e arrepiado debaixo
do seu. Segurou-a pelos tornozelos e começou a afastá-los lentamente,
com os olhos fixos na vulva dela.
A xoxota perfumada e estreita foi se abrindo gradativamente diante
de seus olhos excitados.
-Sua bucetinha é inesquecível, Rebeca-murmurou ele, rouco e
trêmulo.
- É toda sua! Faça bom proveito!
Derek desceu os olhos dos pêlos fartos para a tentadora xoxota,
onde gotas de néctar rebrilhavam:
Inclinou-se, atraido por ela. O cheiro arrebatador era um convite
irrecusável. Sua lingua estendeu-se.
Ele a segurou pelas nádegas, erguendo-lhe os quadris, trazendo a
taça preciosa de sua xana até os seus lábios.
Avançou a boca sofregamente e sugou, num beijo alucinado, o
delicado clitóris dela.
- Oh, Derek! Que loucura! - gemeu ela, arqueando o corpo de puro
prazer.
Ele enterrou a língua na xoxota dela, buscando o ponto G para
massageá-lo com a ponta da língua, enchendo-a de sensações e arrepios. A
carícia foi intensa e prolongada, pondo Rebeca frenética e extasiada.
-Deixe-me chupá-lo também-pediu ela, impaciente e faminta de
prazer.
Derek girou o corpo, conforme ela pedira. Seu caralho ficou ao
alcance dela. Voltou a segurá-la pelas coxas e a lamber e chupar a
xoxota molhada, enquanto a boca ardente de Rebeca tocava a ponta de seu
cacete.
Um arrepio intenso percorreu-lhe o. A língua morna estendeu-se,
aluciríando-o.
Ele estremeceu de puro prazer, sentindo espasmos percorrendo seu
corpo. A boca de Rebeca sugou o caralho dele e a sucção e os movimentos
de sua língua entonteceram-no:
Derek agarrou-se às coxas dela, chupando com redobrado ardor a
buceta deliciosa, lambendo o clitóris, mordiscando-o carinhosa mente,
indo buscar o ponto G numa alternância que enchia o corpo dela de tesão
e de calor.
Suas mãos escorregavam pelas pernas dela, numa carícia possessiva
e dominadora, quase dolorida.
Rebeca gemia agora. Sua respiração entrecortada revelava todo o
tesão que explodia em seu corpo jovem.
Ela retribuía, chupando gulosamente o caralho dele. Seus corpos se
esfregavam em movimentos alucinantes e excitados.
-Vou chupá-lo até enlouquecê-lo! -murmurou ela, mascando o cacete
em sua boca.
- Sim! Chupe! Desse jeito mesmo! - concordou ele, num
estremecimento de prazer.
Uma das mãos foi acariciar as nádegas dela, buscando o cuzinho
para uma carícia inesperada. Ela rebolou, aceitando aquele dedo que
forçava a passagem por entre suas pregas apertadas.
Ela gemeu de puro prazer novamente. Derek redobrou os beijos e
chupadas na chana e logo Rebeca começou a gozar incessantemente,
interminavelmente, com seu corpo tomado por contrações e espasmos.
Enquanto ela o chupava, Derek movia os quadris ritmadamente,
entrando e saindo por entre os lábios carnudos.
Pouco a pouco os movimentos dele foram se tornando frenéticos. Sua
boca não descolava da xoxota de Rebeca, que se contorcia de prazer.
Ela estava gozando seguidamente e chupando o caralho dele ao mesmo
tempo. Derek gemeu rouca e prolongadamente, retesando o corpo abalado
por espasmos contínuos. Começou a gozar, esguichando esperma na boca
faminta de Rebeca, que ficou gozando também, enquanto sugava e engolia
cada gota ejaculada por ele. Derek deitou-se sobre ela, que rebolava,
esfregando-se nele.
-Acho que vou querer isto aqui também!-disse ele, esfregando a
ponta do caralho entre as coxas dela.
Ela estremeceu e gozou mais forte e inesperadamente ainda, ao
sentir o toque da pica dele, de tanto tesão. .
- Por favor! Continue! - pediu ela, num fio de voz trêmulo e
excitado.
-Acho que vou fodê-la por completo. Comer sua buceta! Comer sua
bunda! Você é gostosa demais, sabia?
Os olhos dela cintilavam. Todo o seu corpo tremia. Lágrimas de
excitação e felicidade desciam de seus olhos.
-Tem usadocamisinha?
- Com as outras, sim. E você?
-Também!
- Então nada mais gostoso que comer uma xoxota ao natural.
- Sim! Foda-me, então, Derek! -disse ela, enquanto abria as pernas
ao máximo para prendê-lo depois pela cintura. - Põe! Põe logo! - pediu
ela.
Ele continuou esfregando o caralho na chana dela, fazendo-a
suspirarde paixão. Ela vibrava, gozando como nunca. Gemia e pedia mais.
Apesar de ter acabado de gozar, Derek continúava excitado.
Debruçado sobre ela, encaixou sua pica entre as coxas sedutoras. Ela
mesma, com a mão, guiou-o para a entrada de sua buceta.
- Põe tudo!
Ele a atendeu, empurrando de uma vez seu cacete, entrando fundo
dentro dela. Ele gemeu e gozou de prazer.
Elefodeu com gosto aquela bucetinha apertada, alisando a bunda
dela, amassando seus seios e lambendo sua nuca, enquanto a penetrava
freneticamente, fazendo-a gozar alucinadamente.
- Agora! Quero tudo! Estou gozando. Quero gozar mais! Mais! Mais!
- dizia ela, num tom cada vez mais alto.
Percebeu que ela desfalecia, o corpo agitando-se alucinada mente
de um lado para outro, os quadris jogando-se contra os dele: Sem lhe dar
tréguas, Derek continuava se movendo ritmada e virilmente. Seu cacete ia
fundo dentro da xana, num ritmo desenfreado que foi se tornando mais
forte, até que ele gozasse de novo.
-Delicioso! Você é o máximo, sabia?-disse ela, ofegante, com a voz
entrecortada, deixando-se envolver por uma gostosa sonolência.

Ela acordou algum tempo depois, espreguiçando-se gostosamente.
Derek ressonava ao seu lado, o corpo másculo e nu a sua disposição.
Um sorriso maroto se desenhou em seus lábios. Levantou-se e foi
até a cozinha, de onde retornou com um pote de manteiga de amendoim.
Lambuzou o pênis dele, depois começou a lamber deliciada. Ele
acordou e ficou olhando-a com olhos surpresos e deliciados.
-Está uma delícia!-exclamou ela, cheia de impaciência e desejo.
- Deixe-me experimentar também esse prato - falou ele, apanhando o
pote de manteiga de amendoim.
- Oh, claro que sim - respondeu ela, tentada.
Acomodou o corpo, pondo seu caralho ao alcance dos lábios dela.
Antes de cavalgá-lo num sessenta e nove, Rebeca lambuzou a xoxota,
depois ofereceu-a a ele.
Derek segurou-a pelas coxas e começou a lamber e a chupar a xoxota
dela, enquanto a boca ardente de Rebeca buscava afobadamente o cacete
dele, depois de tê-lo lambuzado de novo.
Ela sugou sofregamente, enquanto ele trabalhava com a língua na
xoxota dela, sentindo de novo um sabor novo e sutil naquela taça
inesquecível.
Coordenou os movimentos de suas mãos, para dar um prazer completo
à garota.
Primeiro deslizou os dedos pelos flancos dela. Um lado, depois o
outro, lentamente, numa provocação.
Depois enfiou uma das mãos por entre as nádegas dela, até encaixar
um dedo no apertado cuzinho dela.
Esfregou, indo e vindo. À outra mão apalpava uma das coxas delá.
Ela continua chupando e mascando seu caralho com desejo e tesão. Derek
sentiu a impaciência dominar seu corpo.
Lembrava-se daquela bunda e daquele cu e de como tivera tanto
prazer com eles.
- Vire-se! Assim! - pediu ele, ajudando-a a virar-se na cama,
pondo-se sobre ela e encaixando seu quadril contra as nádegas rijas e
empinadas.
Seu caralho entrou por entre as coxas dela. Suas mãos continuaram
alisando os flancos da garota, depois avançando por sua cintura, subindo
para seus seios.
- Esta posição me enlouquece-disse ele, com a boca próxima do
ouvido dela, fazendo-a arrepiar-se e rebolar.
-Então vem-murmurou ela, rebolando a bunda, esfregando-se no
caralho entre suas coxas.
-Oh, sim! Quero comer seu cuzinho como-murmurou ele, com a voz
trêmula e o corpo convulsionado de tesão.
- Come, querido!
- Sim, claro que sim!
Ela se arrepiou de tesão. Ele puxou os quadris dela para cima,
arrebitando seu traseiro.
O corpo dela cheirava agradavelmente, naquela mescla de cheiro de
buceta, de desejo, de perfume e de excitação.
Ele pincelou o pênis na bunda desejável, brincando um pouco com
ela. Depois esfregou manteiga de amendoim no orifício, preparando-se
para comer aquele cuzinho tentador.
Ela rebolava, estremecendo a cada vez que o pênis tocava seu
corpo. Ele encostou, então, sua pica no buraquinho apertado.
- Vou pôr na sua bundinha agora!
- Oh, sim, por favor! Coma a minha bundinha! - pediu ela,
arrebatada de tesão.
Ele experimentou a entrada, sentindo a glande comprimir-se no
buraco pregueado, deslizando com certa facilidade, graças à manteiga.
- É tão apertadinho! - murmurou ele, afogueado, empurrando
lentamente.
Sentiu a ponta comprimir-se gostosamente naquele rabinho tentador,
que se abria para recebê-lo prazerosamente.
- Está entrando! - ofegou ele.
- Sim, eu sinto! Mais!
- Assim?
- Sim, mas eu quero mais! Quero tudo! Está entrando! Mais! - foi
pedindo ela, enquanto ele avançava.
- Está gostoso?
- Oh, sim, que loucura! - ofegou ela. - Está me dando um tesão
enorme! Continue! - insistiu, com a voz trêmula e entrecortada,
rebolando os quadris, sentindo uma sensação selvagem tomar conta de seu
corpo.
Ele a segurou pelos quadris e continuou empurrando, enquanto a
puxava para si.
- Agora põe tudo - pediu ela.
-Tem certeza?
- Sim! Eu quero! Quero sentí-lo! Já estou gozando! Quero mais!
Mais! - disse ela, frenética, possessiva, alucinada.
- Então aqui está o que pediu, querida - disse ele, enfiando a
pica endurecida no rabo dela.
O cacete lubrificado deslízou pelas pernas dela, quando Derek
empurrou decididamente sua vara e ela se introduziu totalmente no
buraquinho faminto.
- É uma loucura! - murmurou ela, rebolando, sentindo todo aquele
volume dentro dela. - Agora foda-me de verdade! Coma meu cú! Foda meu
rabo! - insistiu, frenética e cheia de tesão.
Ele começou a moverseus quadris ritmadamente. Um movimento que foi
ganhando velocidade, entre gemidos e murmúrios abafados.
- Mais, Derek! Mais! - pedia ela, enquanto ele golpeava seu corpo
contra o dela, fazendo o caralho entrar fundo nas entranhas mornas e
famintas, que pareciam sugá-lo para dentro dela.
Ele acariciou os seios dela, beijando e mordendo seu pescoço e sua
nuca, enquanto roçava o cacete pelas pregas apertadas, num crescendo que
parecia levá-lo ladeira abaixo rumo a um abismo sem fim:
Rebeca masturbava-se, esfregando o clitóris ou massageando o ponto
G com a ponta de um dos dedos, num furor erótico que aenchia de arrepios
e de espasmos.
-Agora, Derek! Agora! Goze comigo! Goze comigo! -pediu ela, fora
de si, sentindo seu corpo experimentar mil tesões ao mesmo tempo.
Ambos explodiram novamente de gozo e ele caiu sobre ela, que se
estendeu extenuada na cama, molhada pelo suor de seus corpos.
Ficou contraindo o esfíncter, dando um prazer extra ao caralho
enterrado em seu rabo.
Uma gostosa sonolência invadiu seus corpos.
- Sentiu minha falta? - perguntou ele.
- Um pouco.
-Trepou com muita gente?
- Nem tantos. E você?
-Algumas.
-Acha que devemos continuar?
- Você é quem sabe.
Rebeca pensou por instantes. Novas experiências exerciam um apelo
muito forte sobre ela, mas preferiu não responder naquele momento.
Respirou fundo, abraçando-o. Adormeceu saciada.

Capítulo 6

Derek começou a desenvolver uma curiosa teoria. Tinha um tesão
muito grande por Rebeca e teria de conviver com isso. Por outro lado,
experimentar outras mulheres passou a ser uma tentação muito grande em
súa vida.
Decidiu fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Trepar com quem
quisesse e procurar Rebeca, quando tivesse vontade. Nada mais justo.
Afinal, a idéia inicial fora dela mesmo.
As experiências bem sucedidas reforçavam sua segurança, tornando-o
ousado. Ele se lembrou de uma garota com quem saíra algumas vezes, mas
com quem não conseguira ir para a cama. Resolveu visitá-la.
Ela o recebeu muito bem. Convidou-o a entrar, surpresa e
deliciada.
- O que o traz aqui? - quis ela saber.
- Vim comer você, Dianne! - respondeu ele com naturalidade,
olhando-a com olhos e mostrando o quanto estava interessado nela.
Ela estremeceu de surpresa, tesão e desejo. Pudera sentir no tom
da voz dele o quanto ele a queria e isso a agradava.
Um calor intenso invadiu seu corpo. Sua xoxota ardeu. Ela queria
correr e atirar-se sobre ele, agarrando seu caralho para brincar com ele
e ter muito prazer.
Resolveu valorizar um pouco o jogo e ficou andando de um lado para
outro, como se estivesse em dúvida. Ele foi se sentar no sofá, olhando-
a desafiadoramente.
-Você está me deixando louco de vontade de tocá-la, de acariciá-
la, de possuí-la. Estou doido de vontade de foder sua bucetinha, seu
cuzinho, sua boca, tudo em você!
Ela tremia cada vez mais, sentindo sua xoxota se derreter, fazendo
escorregar a umidade por suas coxas.
- Venha para mim - pediu ele, estendendo os braços.
Ela ficou tentada, olhando para ele. Sem hesitar, Derek começou a
se despir lentamente, revelando músculos sólidos, o peito másculo e
cabeludo, até, finalmente, o pênis grosso e longo, que pulsava, duro,
apontado para ela, numa promessa de longas e loucas horas de prazer.
Ele segurou o cacete com uma das mãos e arregaçou-o para trás,
exibindo a cabeça maciça e avermelhada.
-Quero enfiartudo isto dentro de sua buceta, Dianne-murmurou ele,
rouco de tesão.
Ela ficou olhando aquele caralho e arrepiando-se. Ele caminhou ao
encontro dela e se encostou nela. Apertou-a contra si, levantando
lentamente sua saia, enfiando o pau entre as coxas dela.
Dianne o sentiu, quente e delicioso. Arrepios a invadiram. Ela
ficou imóvel e trêmula, desejando que ele a fodesse ali mesmo. Ela viu
desejo, um désejo que a contagiava e atraía. Ela foi se aproximando.
Ajoelhou-se diante dele. Abriu a boca e estendeu a língua. Derek ficou
se masturbando, enquanto esfregava o pênis na boca e na língua da
garota. Estremecia de prazer com aquele hálito quente.
-Deixe-me cuidardisso-falou ela e segurou com firmeza o caralho.
Massageou-o com dedos finos e delicados. Lambeu a glande exposta.
Mordiscou a carne maciça. Enfiou-o todo em sua boca e Derek estremeceu,
sufocando um gemido de prazer.
Ela o deliciou com a língua e os lábios, sugando seu caralho,
lambendo e arranhando seus bagos, mordiscando sua barriga e beliscando
suas nádegas.
Enfiou um dedo no cu dele, fazendo-o rebolar, incendiando-se de
paixão. Ele a agarrou, beijando-a apaixonadamente.
- Quero fodê-la, Dianne! Você me deixou louco, sabia? Quero enfiar
meu cacete na sua buceta! Ah, como que quero comer você,
Enquanto ele falava, ela se esfregava no seu corpo nu, brincando
com aquele caralho gostoso e grosso que se enfiara entre as suas coxas.
- Deixa eu sentir sua bucetinha - disse ele, num suspiro
apaixonado, enfiando a mão por entre as pernas dela, roçando seus pêlos
e indo esfregar sua xoxota.
Ela estremeceu. Jamais vira um homem com tanto tesão e isso a
deixava excitada ao máximo. Ele continuou com aquele dedo enlouquecedor;
introduzindo-se parcialmente em sua xoxota, fazendo movimentos lentos de
vaivém, roçando seu clitóris e seu ponto G, provocando uma tensão enorme
em seu corpo.
Ela apertou o caralho dele entre seus dedos, depois ficou
esfregando-o, enquanto Derek suspirava e uma expressão de inegável
prazer estampava-se em seu rosto.
-Quero lambersuastetinhas! Chuparsuabucetinha! Deixá-latão
excitada que vai suplicar para que eu a coma!
- E depois vai pôr devagarinho?
- Sim!
- Sim, prometo tudo que você quiser, meu amor. Vou começar pondo a
só bem devagarinho, só a pontinha! Depois eu vou empurrando! Vou
enterrando! Vou enfiando! Vou comendo sua xoxota inteirinha!
- Vai me lamber também?
- Sim!
-Vai enfiar sua lingua em minha xoxota e descobrir meu ponto G,
não vai?
- Vou achar o abecedário todo em sua bucetinha, querida. Vou
lamber até o reguinho do seu cuzinho, meu bem! Quero morder sua bunda,
fazer de tudo que for gostoso para nós!
Ela estava trêmula e meio tonta de tanta excitação, esfregando-se
nele, trocando carícias incendiárias. Um tesão sem tamanho tomou conta
de seu corpo, pondo-a extremamente sensível.
Dianne ficou brincando com o caralho dele, enquanto Derek brincava
com sua chana, esfregando sutilmente seu ponto G e seu grelinho, pondo-a
mole e quase sem fôlego.
-Digaque quer trepar comigo-pediu ele, avoz rouca etrêmula de
tesão, alterada pelo desejo e pela paixão.
- Quero trepar com você! Quero comer você!
- Sim, você vai me comer. Vai engolir inteiro a minha vara -
respondeu ele.
Ela continuou masturbando-o suavemente, sentindo a rigidez de sua
pica.
- Eu não agüento mais de tesão-disse ele, pegando-a no colo e
levando-a para a cama.
Abraçou-a e beijou-a ardentemente. Suas mãos envolveram o corpo
dela com força, desejo e paixão. Ela sentiu a língua dele brincar em sua
boca e, depois, suas mãos subirem pelo seu corpo, envolvendo seus seios,
pressionando-os carinhosamente.
- Vou fazê-la gozar! Gozar muito! - disse ele e ela tremia toda,
de excitação, de expectativa, de desejo, de tesão e de paixão. Ele a
virou na cama, debruçando-se sobre ela, beijando seus ombros e sua nuca.
Seus beijos eram ardentes, molhados, excitados. Sua língua lambeu a pele
arrepiada, subindo para a nuca, enchendo-a de arrepios. As mãos
avançaram para os seios, dominando-os, massageando-os, apertando-os,
bolinando-os. Ele beliscou os mamilos durinhos, apertou ás tetas
possessivamente, enquanto seu hálito arrepiava-lhe a nuca e os ombros.
Uma das mãos desceu pelo ventre dela, penetrou por entre as coxas
e foi se esfregar em sua xoxota molhada. Uma estava nos seios dela, a
outra em sua chana, o hálito, a língua e os beijos em sua nuca e ombros,
num crescendo de sensações que a fizeram gozar.
Ela estremeceu toda, sentindo espasmos contínuos no ventre. Sua
respiração sumiu e ela ticou sentindo aquela coisa gostosa que a deixava
mole inteiramente.
Girou o corpo e rolou sobre a cama, ficando com os braços
pendentes. Derek se arrastou na direção dela e a beijou no pescoço. Sua
língua brincou depois no ouvido dela, acentuando seus arrepios.
Seu hálito apressado, seus murmúrios de tesão, tudo o alucinava e
ele a brindava com as carícias mais alucinantes, deixando-a vencida e
subjugada no leito.
Ela o queria. Queria sua pica dentro dela, sua língua em seu ânus,
seus dedos em seu corpo todo. Queria sua boca beijando-a, chupando seus
seios, sugando sua xoxota. Queria tudo dele. Tudo mesmo.
Só aquelas carícias eram suficientes para fazê-la gozar
continuamente. Um gozo intenso, que a fazia apertar as coxas e ficar
tremendo, enquanto ele dominava seu corpo com carinho e habilidade.
-Você me mata de tanto prazer-murmurou ela, flexionando as pernas
e abrindo-as, oferecendo-lhe a buceta orvalhada de tesão.
Ele fungou de tesão e se debruçou entre as coxas de Dianne. Ela
sentiu seu hálito forte e quente em sua xoxota. Estremeceu. Gozou.
Delirou. Gemeu, quando a língua dele ficou brincando lá dentro dela.
Dianne agarrou-o pelos cabelos e apertou-o contra si. A língua
morna era uma serpente viva, movendo-se em sua chana, alisando seu ponto
G, dando-lhe uma sequência alucinante de orgasmos múltiplos.
-Oh, Dianne, que deliciosa é sua bucetinha! Não vejo a hora de
enfiar nela meu cacete!. De gozar lá dentro de você, enchendo de porra
sua chaninha apertada e perfumada! -murmurou ele.
Derek se movia entre as coxas dela, as mãos subindo e descendo
pelo seu corpo, cada vez mais possessivas e mais exigentes.
-Sim, querido! Sim! Enfia tudo! É demais!-gemia ela, as mãos
apertando-ocontra avagina, enquanto aquela língua incansável iaevinha,
lambia, esfregava, girava, roçava, levando-a à loucura. Dianne gozava
cada vez mais forte, mais prolongado, como se aquelas sensações jamais
tivessem fim e apenas crescessem. Ele retardava o momento da posse e
essa expectativa a deixava tensa e doida de tesão e desejo.
Ele percebia o quanto ela gozava e insistia com a língua. A chana
estava mais do que lubrificada. Ela continuava gozando, mas esperando
pela entradatriunfal daquele cacete. Queria brincar com ele, chupá-lo
também.
-Quero pôr agora! -murmurou ele e ela percebeu o quanto ele estava
excitado também.
Jamais havia chegado antes àquele estágio com Rebeca. Estava
descobrindo novas sensações, novas possibilidades. Não queria terminar
logo. Não tinha pressa. Queria aproveitar tudo.
- Quero brincar com sua pica também - pediu ela.
- Não agüento mais de tesão, Dianne!
-Eu também não, querido! Venha! Deite-se!-ordenou-lhe e ele
obedeceu.
Dianne jamais vira o caralho dele tão duro, com a cabeça tão
inchada e maciça. Com deslumbramento, apertou-o entre seus dedos, depois
masturbou-o lentamente, para que ele não gozasse.
Ela queria que ele chegasse também ao limite do tesão, que ficasse
à beira de explodir.
Sentou-se sobre suas pernas, segurando-lhe o pênis com as duas
mãos. Inclinou a cabeça. Lambeu a glande inchada, umedecendo-a com sua
saliva. Enfiou-o em sua boca, fazendo-o esfregar-se lá dentro. Mascou- o
entre seus dentes, jogando-o de uma bochecha à outra. Arranhou-lhe o
saco com as unhas.
Ele gemia e movia instintivamente os quadris, indo e vindo com seu
caralho entre os lábios dela, que se excitava cada vez mais com a
excitação dele.
Chegavam ambos à beira do gozo. Ela soltou o caralho e foi beijar
sua boca, avançando seus quadris, quase sentando em sua piroca. Ele
gemia, enroscando língua com língua.
Ela moveu os quadris, encaixando o pinto bem no rego de sua bunda,
em cima do seu cu. Pressionou, apenas para provocá-lo.
-Oh, Dianne, assim você me mata-disse ele, agarrando-a pela
cintura e forçando.
Ela sentiu que a pica alargava as pregas do seu cú, querendo
entrar. Ela ficou rebolando, só provocando, levando a excitação ao
máximo, ao ponto sem volta.
- Dianne! Vem! Não aguento mais! - pediu ele.
Sobre ele, Dianne segurou-lhe o pênis e vestiu-lhe uma camisinha.
Depois apontou-o para a sua chana. Forçou, sentindo-o entrar suavemente,
deslizando pelos lábios lubrificados.
Uma deliciosa vertigem a assaltou e ela ficou ansiosa e aflita,
desejando logo ter todo ele dentro de mim.
- Enterra tudo agora, Derek! - pediu ela.
Ele golpeou inesperadamente, com um movímento de quadril e o
caralho dele se enterrou todo em sua buceta. Ficaram abraçados,
estremecendo e gozando, como os pêlos dele se confundindo com os dela.
Excitado, Derek se moveu sob ela em movimentos potentes. A cada
estocada, era como se ele bombeasse o ar dos pulmões dela para fora.
Dianne foi ficando alucinada, numa vertigem louca.
Apertou os mamilos dele, beijou-o e mordeu-o, enquanto ele gemia e
saltava como um louco, com ela sobre ele, com a pica enterrada
gostosamente em sua buceta. Quando gozaram, Dianne se abraçou com força
a ele e ficou estremecendo, totalmente saciada.

Para Rebeca, a situação havia se tornado muito conveniente. Derek
a atraía sobremaneira, mas liavia outros homens que ela queria
experimentar. Um deles era seu patrão, refinado, maduro, çom um charme
grisalho e elegante.
Ele sempre tivera uma queda por ela. Por muitas vezes lançara
indiretas, que ela soubera descartar. Agora podia, finalmente, vero que
ele tinha a ensinar ou oferecer para ela.
Aceitou passar um fim de semana com ele, numa casa de praia.
Durante a viagem, Morgan foi muito educado. Conversaram o tempo todo e
ele se mostrou sempre muito atencioso.
Quando chegaram à casa, finalmente, ele a carregou imediatamente
para o quarto. Ela se deslumbrou com a voracidade, com a sensualidade e
com a volúpia com que ele se atirara sobre ela, despindo-a, abrindo-lhe
as pernas e se ajoelhando diante de sua xoxota.
Ele gemia de prazer. Seu hálito varreu a xoxota de Rebeca, quente
e provocante, arrepiando-a intensamente. Toda a pele dela se arrepiou.
Ele beijou toda a vulva perfumada, detendo-se, finalmente, no seu
grelinho ereto e proeminente.
Prendeu-o entre os lábios, movendo-os de um lado para outro,
enquanto friccionava sua língua nele. A técnica era perfeita. Derec
jamais conseguira aquela coórdenação, fruto da experiência e da
maturidade. Ela ofegou e se contorceu de tanto prazer, despindo-o e
buscando o membro dele para sugá-lo com maestria.
Morgan enfiou a língua dentro da chana dela, provando o sabor
adocicado e intenso, embriagando-se no perfume de fêmea excitada que
vinha dela quente de prazer, buscando o ponto G para alucinar a garota.
Éla se agitou, fora de controle, gozando como se tivesse levado um
choque elétrico. Ergueu-se buscando os lábios dele para um beijo
desesperado. Morgan a enlaçou pelo pescoço, puxando-a para si. Suas
respirações se confundiram. Seu hálito a arrepiou. A língua dele
realizou prodígios, enquanto seus corpos se esfregavam com luxúria.
Ondas de prazer percorreram seus corpos. Abraçaram-se com força,
trocando beijos e carícias.
Ele deslizava a mão pelo corpo dela. Ela fazia o mesmo, apertando
sua bunda e seus testículos. Ele acariciou seus seios, suas coxas e suas
nádegas. Ela suspirava continuamente, com aquele fogo ardendo dentro
dela, contagiando sua xoxota, pondo fagulhas em sua pele. Sua língua se
enroscava na dele. Ela bebia sua saliva.
Com estremecimento, ela sentiu o pênis rijo e quente entre as suas
coxas e apertou-o com prazer. Moveu as pernas, friccionando-o. Morgan
gemeu, deliciado.
- Estou ardendo, querido! Estou com fogo na xoxota! Estou a fim de
experimentar tudo com você, querido! Quero foder e chupar! Quero ser
fodida e chupada! Quero tudo de você - murmurou, fora de si.
Cada vez maior era o seu desejo. A coceira em sua chana aumentava.
Seu cu ardia de vontade de sentir uma lambida. Sua boca ansiava devorar
aquele caralho duro e gostoso.
- Vamos nos chupar - propôs ele.
rebeca não se fez de rogada. Ela queria agradar aquele homem.
Sabia o que isso poderia significar.
-Fique porcima de mim-disse ele, deitando-se de barriga para cima,
com aquele caralhão levantado à espera dela.
Ela o atendeu, acomodando-se sobre ele. Sua xoxota ficou pairando
acima da cabeça de Morgan. Ela olhava fixamente para o caralho, ao
alcance de sua boca. Ficou trêmula, sentindo o hálito dele se aproximar
de sua xoxota.
Ele fez isso vagarosamente, puxando a sua bunda para baixo. Ela
ficou imóvel, esperando até que a língua lhe tocassea buceta. Estremeceu
e vibrou, quando sentiu seu hálito mais próximo.
Suas mãos enlaçaram-lhe o pal , fazendo-se estremecer e suspirar.
A língua se afundou dentro dela, movendo-se. Ela gemeu, entontecida e
deliciada. A carícia era muito forte, intensamente deliciosa,
tirando-lhe a respiração.
Sentiu umafome inesperada de devorar aquele caralho maravilhoso em
suas mãos. Estendeu a língua, lambendo a cabeça intumescida, de cima
para baixo, de baixo para címa, ao redor, de todo jeito.
Morgan suspirou e a língua se moveu com maior ênfase na chana,
buscando de novo o ponto G, a pequena rugosidade, dotada de uma
sensibilidade extrema. Ela foi ao delírio e retribuiu. Enfiou a língua
entre a glande e o prepúcio dele, girando e alucinando-o.
Beijou-o, prendendo-o entre seus lábios e soltando-o em seguida.
Morgan esmerava-se em seu clitóris e no interior de sua vagina.
Elatremia, começando a gozar seguidamente.
Rebeca percebeu que poderia ficar horas com um homem paciente e
experiente como Morgan, gozando sem parar. Abriu a boca, então, e
abocanhou todo o cacete dele, de uma só vez, com uma voracidade que o
fez gemer. Ele estremeceu de prazer, apertando suas nádegas, penetrando
ardentemente sua buceta com a língua, lambendo o clitóris, mordiscando-
o, prendendo-o entre os lábios e esfregando a língua.
Ela sentiu uma das mãos dele passear no rego de sua bunda. Um dedo
se destacou, pressionando seu ânus. Foi uma sensação inesperada, mas
gostosa. Ela relaxou o corpo. Ele empurrou. Ela sentiu o dedo entrar
dentro dela e mover-se em seu rabo, indo e vindo, massageando-a por
dentro. Foi uma loucura! Parecia que a língua dele e o dedo se tocavam
lá dentro, numa carícia alucinante que a deixou elétrica, fissurada,
mais acesa do que antes.
Ela tremia e suspirava. Sua respiração parecia sumir, às vezes,
quando ela gozava, chupando e mamando aquele caralho gostoso em sua
boca, esfregando sua chana no rosto dele, rebolando a bunda onde aquele
dedo realizava maravilhas. Tudo ganhou um ritmo frenético. Ela sentiu
vertigem. Tremia e se contorcia, retribuindo as carícias na mesma
medida. Enfiou, então, sua mão por baixo da bunda dele e buscou também
seu cu.
Enfiou o dedo e gostou da brincadeira. Morgan não protestou.
Tornou-se ainda mais ardente em suas chupadas e movimentos. Tudo aquilo
estava insuportavelmente delicioso. Ela sentiacrescerdentro dela aquela
onda de orgasmos, ameaçando sufocá-la. Era a língua dele indo e vindo, o
dedo, o caralho em sua boca, os gemidos, os suspiros, o cheiro de seus
corpos, os movimentos, o esfregar de peles, o tesão que crescia sem
parar.
- Mais! Mais depressa! Vou gozar! Vou gozar em sua boca! - avisou
ele, freneticamente, com a voz rouca e entrecortada, o corpo
estremecendo convulsamente.
Ela apressou seus movimentos de boca e aumentou a intensidade de
suas chupadas, fazendo isso em delírio, com prazer e volúpia extremos.
Sua língua esfregava a glande exposta de todas as formas possíveis. Ela
gozava sem pararcom as carícias de Morgan e queria fazê- lo gozar
também.
Ele gemeu alto e arqueou o corpo. Ela sugou forte, então. Osjatos
de esperma foram direto para sua garganta e ela engoliu aquele néctar
com um prazer imenso, sugando até a última gota.
Ele ficou, com a língua e o dedo ainda enterrados nela e sua pica
amolecendo entre os lábios carnudos.
Adormeceram. Rebeca acordou algum tempo depois, com as mãos dele
acariciando sua bunda. Arrepiou-se. Eram carícias possessivas e cheias
de volúpia.
Propositadamente ela arrebitou as nádegas. Ele se ajoelhou atrás
dela, esfregando-lhe o caralho na bunda. Percebeu que ele vestira uma
camisinha e que esfregara um lubrificante nas pregas de seu ânus. Em
seguida, ele pressionou a ponta do membro, que foi se enterrando em sua
bunda lubrificada.
A jovem se arrepiou toda e gozou de novo, só com aquela enterrada.
Ele percebeu isso e penetrou-a profundamente. Ela ficou estremecendo,
enquanto ele bombeava, indo e vindo, tirando-lhe o fôlego e fazendo-a
amolecer-se toda. Continuou os movimentos de vaivém. As mãos a
acariciavam os seios, a outra nas nádegas. Os beijos em seus ombros e em
seu pescoço eram ardentes e incendiários, cheios de volúpia e tesão.
Ela se derretia de prazer. Um prazer diferente, selvagem e
alucinante. Aquele pal enorme em seu cu continuava se movendo, indo e
vindo, ganhando cadência, à medida que ela mais rebolava a bunda,
esfregando-a nos pêlos dele, quando ele se afundava nela. Rebeca sentia
os testículos dele baterem em seu corpo, enquanto ele bombeava, agora
com furor, com potência, tirando-lhe a respiração.
Gozou com ele esfregando seu grelinho. Gozou com toque das mãos
dele em seus seios. Gozou com os dedos dele esfregando a entrada de sua
buceta. Gozou, finalmente, no rabo também. Um gozo diferente, forte, que
mexeu com ela; perturbando-a e reduzindo-a um amontoado de sensações
selvagens.
- Você é demais, Rebeca! Vamos nos dar muito bem - confessou ele,
ainda emocionado de tesão.
-Tenho certeza que sim - afirmou ela.
-Tenho muitos planos para nós...
- Como assim?
- Sonhei trepar com você em diversos lugares. Você vai me ajudar a
realizar essas fantasias todas, não vai?
- E onde são essas fantasias? - quis ela saber, cheia de
curiosidade.
-Trepar num veleiro, no meujatinho particular, num elevador, no
alto do Empire State, na Estátua da Liberdade, numa limusine no centro
de Nova Yorque...
- Você é maluco! - exclamou ela, excitada e divertida.
- Prometa que vai fazer isso?
- Vamos ser presos!
- Prometa! - insistiu ele, mas Rebeca não teve tempo de responder,
pois a boca faminta de Morgan já devorava a sua com ardente paixão.

FIM
APOLLO
Por: Alex Hanger

Esta é a história de Fernando, um jovem inteligente e desejado da elite de São Paulo que está a procura de um grande amor...
A história se passa entre clubes, academias, shoppings, mas tendo como cenário principal a boate fictícia APOLLO, onde acontecem a maior parte dos encontros
e desencontros da personagem e seus amigos. Os nomes e descrições das personagens, bem como alguns lugares, foram tirados de minha cabeça. Qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência.


CAPÍTULO I
A boate, a galera e os gatos
Sábado. A noite caiu. Nas ruas as pessoas voltam para suas casas. Umas exaustas
do trabalho, pensando apenas na hora em que vão deitar em suas camas, beijar
suas esposas e maridos, fazer sexo e dormir o Domingo inteirinho. Outras, ao
contrário, estão na maior expectativa para a noitada. Boates, bares, cinemas...
diversão! Não importa como, o lema é se divertir: sair com a galera, paquerar,
conhecer uns gatos e gatas, dar uns beijos, dançar, beber, curtir.
Esse é o caso de Fernando. Em seu apartamento no bairro de Pinheiros, grande São
Paulo, o jovem rapaz se prepara para cair na noite e voltar só de manhãzinha. A
música eletrônica no aparelho de som denuncia que hoje ele está muito animado.
Se olha no espelho fixamente, meio que admirando a si mesmo. Dá uma piscadela,
dá um sorriso, pega o gel sobre a mesa e aplica em seus cabelos lisos e negros.
Abre o armarinho do banheiro, pega uma loção pós-barba e passa em seu rosto liso
como bumbum de neném. Seus olhos negros procuram por mais alguma coisa... Claro!
O frasco de seu perfume favorito: Uomini. Não existe Fernando sem Uomini, oras.
Dá uns retoques finais e... pronto! A parte do embelezamento já está pronta,
agora ele parte para a roupa. A toalha ele joga no chão mesmo e dirige-se ao seu
guarda-roupa. Ao abri-lo.. quanta roupa! E tudo de marca. TNG, M. Officer,
Mulher do Padre, Fórum, Levis, Triton... até Armani e Prada o garoto tem. Não é
fraco não! Só que é tanta diversidade que ele fica na maior dúvida. O que vestir
nessa noite? A música continua tocando e ele vai se empolgando, dançando pelado
na frente do armário escancarado. Uma batida na porta. Quem será?
"Fala!" Diz com sua voz máscula.
"Telefone pra você, caramba! Tô chamando há meia-hora!" Diz a voz da irmã
caçula, Juliana. Parece irritada.
Fernando pega sua toalha no chão, enrola ao redor da cintura e vai até a porta
atender a irmã. Ela segura um telefone na mão e não parece nada feliz com a
idéia.
"Que carinha é essa?" Pergunta o gato.
"Carinha de quem teve que acordar pra atender o telefone que o senhor fez o
favor de deixar tocar até não poder mais".
"Desculpa, Ju. Eu juro que não ouvi. Mas obrigado mesmo assim".
Fernando pega o telefone e volta para o quarto, batendo a porta. Senta-se na
cama, novamente na frente do armário, e atende meio desanimado.
"Alô".
"Nando... Tá pronto? O Marcelo e o Ricardo estão passando pra te pegar aí em dez
minutos" Diz a pessoa do outro lado da linha. É Amanda, sua melhor amiga - desde
os três anos de idade que eles se conhecem.
"Como é que é aí?! Dez minutos?! Você bebeu, né Amanda? Eu não faço idéia da
roupa que eu vou vestir". Fala desesperado, começando a tirar qualquer coisa que
vê.
"Não sabe o que vestir? Bom, tá certo... Se eu tivesse metade do guarda-roupa
que você tem eu também não saberia o que vestir. Faz assim, pega aquela camisa
azul da Triton, aquele jeans manchado e rasgado da Fórum com aquele cinto que eu
te dei, e aquele Shocks. O que você acha?" Diz a amiga. Ela conhece o armário de
Fernando de cabo a rabo, afinal, é sua companheira inseparável nas compras (e em
tudo).
"Amanda, você bebeu? Eu já fui na Apollo com essa roupa!".
"Eu não vejo o menor problema em repetir uma roupa..."
"Como você é anti-fashion. Liga pros meninos e diz pra eles que eu vou atrasar
uns cinco minutos, tá? Vou ver mais umas coisas aqui".
"Tá. Mas se apressa porque eu ouvi que a boate hoje vai estar fervendo".
"Eu imagino. Deixe-me ir... Tchau, tchau, tchau" Fala rapidamente desligando em
seguida.
Ele olha para o armário, e olha e olha e olha e... nada! Tenta uma, duas, três
calças e nada. Seu humor, que antes estava muito bom, começa a cair
devagarzinho, e agora sua cara já não está uma das melhores. É então que uma luz
surge na escuridão... Jogada no canto, lá está sua camisa verde da Ópera Rock.
Era só isso que ele precisava. Foi bater o olho e já lhe veio toda a roupa que
ele iria usar. Sorte que não precisava passar, porque senão seria um Deus nos
acuda.
Rapidamente ele coloca a calça, afivela o cinto, veste a camisa, calça a meia e
o sapato, dá mais uma ajeitada no cabelo e corre para o espelho para conferir. A
camisa verde deixa seus braços bem à mostra, combinando bem com a calça que
marca sua bunda cheinha e as pernas. Ele pára, olha, dá uma rodadinha e fala com
seu jeito másculo:
"Fernando... hoje eu te comia! Gatão!"
Realmente, um gatão! Eu esqueci de dar maiores detalhes sobre o Fernando, não é
mesmo? Pois bem... vinte anos, um metro e oitenta e sete de altura, branco, mas
bem bronzeadinho (resultado de horas no clube); cabelos e olhos negros feito a
noite, nariz moldado pelas mãos de Apolo (Deus da beleza), os traços do rosto
delineados e fortes bem como os traços de seus lábios carnudos, cabelos finos e
lisos desfiados nas pontas com uma leve franja a la modelos Slam. Sem roupa ele
é melhor ainda! Peitoral largo e saltado, mas nada de exageros; barriga
"tanquinho", bem malhada; pernas e braços toneados e fortes, completamente sem
pêlos... COMPLETAMENTE! Ele depila "lá" também... E para completar, 18x5cm de
puro prazer, ativaço e muito discreto, embora assumido.
Agora está pronto. Marcelo e Ricardo já ligaram avisando que o estão esperando.
Essa noite promete mesmo!
Fernando pega o elevador e corre para o Astra CD de cor prata de seus amigos. Se
aproxima e já ouve os assobios deles, que o provocam toda vez que vão sair.
Marcelo sai do carro e abre a porta traseira.
"Entre príncipe!" Diz.
"Obrigado".
"Aonde é que você vai que está tão chique assim?"
"Eu não estou chique, eu sou chique. É bem diferente!" Diz Fernando com um tom
de brincadeira, zoando com Ricardo - o que está na direção.
"Pronto para ferver a Apollo esta noite, Nando?" Pergunta Marcelo entrando no
carro.
"Com certeza! Liga o som aí e vamos nessa"
Dito e feito. Marcelo liga o som e aumenta o volume. É um dos CDs favoritos
deles: Basement Jaxx. Eles saem com o som quase no último. Se rolar alguma
conversa, com certeza será nos berros, pois eles não fazem a mínima questão de
abaixar o volume.
Os amigos de Fernando - Marcelo e Ricardo - são namorados há mais de dois anos.
Eles se conheceram na Apollo, por intermédio do próprio Fernando, que já era
amigo de Marcelo - vinte e três anos, um metro e oitenta de altura, olhos
verdes, cabelos loiros, sorriso lindo, lábios bem rosados, cara de garotinho de
dezessete anos mas com um corpo de vinte e tantos - quando o apresentou a seu
primo Ricardo - também vinte e três anos, olhos negros como os de Fernando,
cabelos castanhos com uma grande franja diagonal cobrindo seu olho esquerdo,
corpo muito bem definido. Um detalhe que vale a pena ressaltar, todos os amigos
de Fernando, bem como ele próprio, são modelos - está aí o porquê de serem essas
beldades.
Os meninos estão empolgadíssimos essa noite. Desempedido, ao contrário dos que o
acompanham, Fernando só tem uma idéia na cabeça: beijar muito (e muitos). Se no
meio dessa farra toda, um namorado aparecer, ótimo! É isso mesmo que ele está
procurando... Mas apesar da empolgação, ele é bem seletivo, não é de ficar com
qualquer um. O primeiro pré-requisito que o cara tem que preencher é saber se
vestir. Nando ama um homem bem vestido. O segundo ponto que mais o atrai é o
rosto, principalmente se não tiver espinhas nenhuma. Depois, se ele tiver um
corpo muito bem esculpido e não tiver pinta de gay, ajuda muito. Normalmente, um
outro fator que conta muito, embora não leve muito em consideração, é a condição
financeira... Se for de algum bairro mais humilde, que esqueça! Por esse motivo,
algumas pessoas costumam chamá-lo de metido, arrogante e ridículo, embora ele
não se sinta dessa maneira. "Sou apenas muito seletivo e gosto de qualidade";
essa é sua resposta para tais ofensas.
Eles vão se aproximando da boate. Já se pode ver nas ruas os casais de mãos
dadas, drag queens maravilhosamente montadas, alguns gatos sozinhos, outros com
amigos, todos indo em direção ao point do momento: Apollo - a melhor boate GLS
da cidade. Apollo é conhecida não só pelos shows incríveis, mas também pelos DJs
muito bons e as pessoas que lá freqüentam. Em sua maioria, talvez pelo preço, é
de gente muito bem de vida e, pelo menos a metade, só modelos. São garotos e
garotas perfeitos, com corpos moldados a mão, e rostos angelicais. Segundo
Amanda, melhor amiga de Fernando, também freqüentadora da boate - apenas para
diversão, Apollo é uma "boate de gente fútil, metida, linda e que não quer nada
com nada". Em certo ponto ela está muito certa...
"Olha lá, a Amanda e o Juca!" Grita Marcelo apontando para a porta da boate.
"Buzina Ricardo" pede Fernando.
Assim o faz, chamando a atenção dos dois (e de meio quarteirão). Amanda e seu
namorado correm até o carro, mostrando uma vaga onde eles poderiam estacionar.
Param o carro e descem. Do caminho do estacionamento até a entrada da boate,
Fernando levou pelo menos cinco secadas fenomenais, sendo que duas delas foram
seguidas de elogios do tipo "Ai se eu te pego!" e "Me espera lá dentro que eu tô
chegando". Que alimento para o ego, não?
"Fer, você está simplesmente... ab.. abs... ah... eh... tudo!" Diz Amanda
engasgando no meio. Amanda, por sinal, estava linda! Com um longo preto da
Gucci, sapato combinado e seus cabelos castanhos todos cacheados. Ela é modelo
da Ford... Morena jambo, cabelos castanhos bem compridos e lisos (os cachos são
só charme), lábios carnudos e avermelhados, corpo a la Britney Spears, como ela
mesma gosta de se comparar.
"Realmente, eu queria parecer você hoje" Cumprimenta Juca, o namorado de Amanda.
Também é modelo da Ford, um metro e oitenta e cinco, cabelos bem escuros e
curtos, olhos azuis feito o céu e um corpo de dar inveja. O mais sexy de tudo é
seu olhar... E que olhar!
"Acho que o Nando hoje tá que tá! Todo mundo vem com elogios pra cima dele" diz
Ricardo.
"Gente, parem com isso. Eu já to me sentindo demais hoje e ainda vocês ficam me
enchendo. Vocês me estrag...". Não consegue terminar a frase ao ver um jovem
lindo, com braços grandes e fortes entrando na boate sozinho. Mas não foi nem
isso que o deixou pasmo, foi o olhar que o cara deu.
"Que foi, Fernando?"
"Quem é aquele cara?"
"Qual deles?"
"Aquele de cabeça raspada e blusa preta" explica.
Todos olham, analisam, pensam bem. Ricardo, porém, é quem sabe a resposta. É
Gabriel Monteiro, um modelo com quem já trabalhara dois meses atrás. Mas, pelo
que já se ouviu do rapaz, ele não é lá flor que se cheire.
"E você acha que eu ligo para o que os outros falam? Olha esse homem, meu! Eu
preciso conhecê-lo. Ricardo, você vai me ajudar".
"Eu?! Eu não vou fazer nada!"
"Ah, vai sim! Por favor, meu priminho querido. Fale com ele..."
"O que você não me pede rindo que eu não faço chorando, né?' Diz Ricardo se
rendendo ao charme do primo.
Antes de fazer qualquer coisa, eles precisam entrar na boate. Vão todos para a
fila, já com seus cartões VIP em mãos e entram rapidamente, afinal, a noite
estava apenas começando. Se bem que pra um começo de noite, a casa até que
estava bem cheia. Tão cheia que o tal do Gabriel, que mal havia entrado, já se
perdeu na multidão.
"Xii! O gatinho sumiu" diz Amanda, pegando seu namorado e indo para o meu da
pista.
"Assim que eu o vir, eu te chamo e você vai falar com ele, falou Ricardo?"
"Okay, Nando, okay! Eu só não to entendendo esse seu fogo todo... A gente mal
chegou na boate e você já tá querendo sair beijando qualquer um?"
"Não é qualquer um... É o deus do Gabriel!"
"Fernando, um dia você vai acabar quebrando a cara com esses carinhas aí" diz
Marcelo.
"Se eu quebrar, compro superbonder e colo".
"Se você acha... Ri, vamos dançar um pouco?"
"Vamos nessa!"
Ricardo, Marcelo e Fernando vão até a pista juntar-se a Amanda e Juca, que já
estão no maior agito.
Eles vão passando pelo meio das pessoas, se empurrando.. É quase uma luta para
conseguir andar por ali. Para dificultar ainda mais as coisas, a estrobo começa
a piscar ainda mais rápido e vem aquela fumaça chata. Os olhos de Fernando se
mantém abertíssimos, procurando Gabriel por todos os cantos. Está tão fissurado
que não foi nem preciso procurar demais, já o viu no cantinho sozinho, dançando
de olhos fechados, viajando. Fernando olha para um lado, olha para o outro, vê
que seus amigos não estão por perto e resolve tentar sozinho. Vai caminhando com
dificuldade até onde o gato se encontra. No meio do caminho, um rapaz o pára.
"Oi" diz o menino, que aparenta ter seus dezoito anos.
"Oi. Será que você pode me dar licença".
"Sabe o que é? Eu queria te conhecer melhor. Pode ser?"
"Hã?" Espanta-se.
"Quer dançar?"
"Humm... Eu quero... com aquele carinha ali. Sai da frente, pirralho".
"Desculpa aí" diz o garoto completamente desiludido.
Bom, Fernando quando quer sabe ser realmente muito grosso. O garoto era gatinho,
mas o problema é que ele está muito afim do outro. Quando Nando coloca uma coisa
na cabeça, pode aparecer até o Brad Pitt a sua frente que ele vai atrás de quem
ele quer. Só tem uma coisa, não é ele quem chega no cara... E, como todas as
vezes, prepara sua tática. Se aproxima do cara, ficando num local onde ele tenha
certeza que seus olhares possam se cruzar facilmente. Começa a dançar
sensualmente, mexendo bastante o quadril e alisando o corpo. Praticamente a
boate inteira pára para olhá-lo. Quando começa a tocar sua música favorita
(Irresistible, da Jéssica Simpson, na versão remixada), ele se empolga ainda
mais... Com o calor, levanta sua camisa até a altura do peito e começa a exibir
seu belíssimo abdome.
"Gostoso!" gritam no meio da galera.
Gabriel o nota. Um sorriso se estampa em seu rosto ao ver que a dança é para
ele. Do mesmo modo, Gabriel começa a dançar levantando sua camisa e vai se
aproximando de Fernando, que fica ainda mais animado com a presença do gato bem
pertinho dele. Gabriel vem lentamente e fica frente a frente, dançando coladinho
a seu corpo. Eles começam a se esfregar sensualmente, subindo e descendo, se
tocando muito. Os rostos começam a se aproximar lentamente.
"O que você quer comigo, Fernando Liandris?" Pergunta Gabriel ao ouvido do
rapaz.
"O que a noite permitir!"
Dizendo isso, Fernando, que já não estava mais agüentando segurar aquele tesão
que sentia, puxa Gabriel pela camisa e o beija loucamente, quase tirando todo o
ar do gostosão. Ali perto, Amanda, Juca, Marcelo e Ricardo só observam o
belíssimo beijo por entre cabeças e corpos suados. Nando se esquece
completamente do que se passa ao seu redor. A única coisa que nota é que está
com o cara que queria. Gabriel mal pode acreditar que esteja beijando Fernando.
Ele já estava bem informado sobre as histórias que contam a respeito dele, e por
isso nunca tinha tentado nada, embora sempre o tenha observado à distância. Mas
ele fica ainda mais surpreso com o beijo que recebe. Jamais alguém o tinha
beijado daquela forma tão gostosa! Aquele beijo não podia acabar, pelo menos
esse era o desejo de Gabriel.
Fernando está tão excitado que começa a ficar fora de si. Suas mãos fortes
começam a correr por todo o corpo de seu parceiro. Gabriel enlouquece com
aqueles toques. Em pouco tempo, estão ambos sem camisas e se agarrando
descaradamente na frente de todos.
"Você não quer ir para algum lugar mais discreto?" pergunta Gabriel,
interrompendo o beijo.
"Aham. Vamos para o darkroom".
"Eu estava pensando em algum lugar melhor, como minha casa talvez. Eu to louco
pra ir pra cama contigo".
"To ligado, mas eu não posso sair daqui. Vamos no darkroom cara!"
Sem nem esperar resposta, Fernando pega na mão de Gabriel e o puxa para dentro
do tal do darkroom. Eles se encaminham para um cantinho mais isolado e começam a
se beijar novamente. Fernando está com um fogo descomunal... Sua mão vai em
cheio na calça de Gabriel, desabotoando-a por inteiro, sendo necessário que o
próprio Gabriel a segure.
O clima vai esquentando e o careca se rende à Fernando. O jogando contra a
parede, desce direto até seu pau e começa um boquete de fazer inveja a qualquer
um. Suga com força o pau do menino, arrancando-lhe uns belos gemidos. A cada
momento vai aumentando ainda mais a sucção e começa a coloca-lo quase que
inteiro em sua boca. Fernando o segura pelos cabelos e começa a pressionar
contra seu membro, fazendo movimentos como se estivesse fodendo aquela boquinha
quente e gulosa.
"Meu, você chupa pra cacete!" Diz.
Gabriel começa a chupar mais rápido e, ao mesmo tempo, passar a mão pela bunda
do outro. Vai indo em direção ao seu cuzinho, mas sua mão é bruscamente tirada
dali. Fernando não gosta muito dessas idéias...
"Qual o problema?" Pergunta Gabriel se levantando.
"Eu não gosto disso. Sou ativo".
"Quê?"
"Sou ativo, oras. Por quê?"
"Eu tam... Quer saber... Eu tenho uma camisinha aqui, quer usar?"
"Adoro caras ousados!" Responde Fernando pegando a camisinha da mão do rapaz.
Está realmente escuro ali, enquanto na pista a ferveção é geral. Não tem ninguém
parado. E por todos os cantos tem pelo menos um casal se beijando. Mas com
certeza o clima no darkroom está apenas começando a pegar fogo...
Com dificuldade por causa da escuridão, Fernando veste a camisinha em seu pau e
encosta Gabriel de costas na parede. O tesão que os dois sentem é muito grande.
Gabriel sente também um pouco de medo, pois não era com freqüência que era o
passivo, e tem medo de que doa. Mas ao mesmo tempo, sente uma certa segurança,
pois Fernando não parece ser do tipo violento... Muito pelo contrário, ele é
super calmo, e vai devagar.
Encaixando seu pau na entradinha e o abraçando com força, Nando começa a
pressionar. Lentamente ele vai penetrando no cuzinho quase-virgem de Gabriel,
que vai soltando um leve gemido, num misto de dor e prazer incríveis. As
respirações tornam-se ofegantes quando os dezoito centímetros do ativo entram
completamente em Gabriel. Fernando começa a bombear bem devagar, para que o
outro se acostume com o tamanho e a grossura. Mas assim que percebe que já deu,
começa a bombear mais rápido. Ele mal pode se controlar, tamanho o tesão que
sente. Estar comendo um cara tão gostoso quanto Gabriel é a coisa mais gostosa
que poderia acontecer para um começo de noite. Um cuzinho tão apertadinho, tão
gostoso daqueles merecia ser comido.
Gabriel está delirando com aquele gostosão fodendo seu cu. Ele nunca pensou que
fosse gostar tanto da idéia de ser passivo. O jeito que Fernando mexe seu
quadril é de enlouquecer. Ele se sente nas nuvens e se segura ao máximo para não
gritar de tão bom que aquilo está sendo. Fernando por sua vez, aperta os
músculos de Gabriel, mordendo seu pescoço e metendo cada vez mais fundo nele.
Sente um calor intenso tomando conta de seu corpo, subindo pela espinha,
fazendo-o tremer estranhamente, não o deixando parar. Ele sussurra no ouvido do
parceiro, que está quase tendo um orgasmo.
"Gato, como você é gostoso! Cara!"
Ele começa a bombear ainda mais forte, fazendo com que Gabriel comece a gemer
loucamente.
Na pista de dança, ninguém desconfia do que se passa. Para eles, Nando está
apenas aproveitando mais uma noite dando beijos em altos gatos. Ricardo, primo
dele, fica preocupado com o comportamento do primo, mas acha que não deve
interferir para não causar briga - ele sabe que se disser alguma coisa, Fernando
vai ter um argumento bem forte para fazê-lo calar-se.
A boate inteira está fervendo. O darkroom, onde encontram-se Fernando e Gabriel
numa deliciosa transa, está começando a lotar de homens caçando outros para sexo
anônimo, e de namorados procurando um lugar mais quietinho para uns amassos mais
fortes. Os dois, por sinal, estão pingando de tão quentes que seus corpos estão.
Fernando começa a sentir os primeiros sinais de que vai gozar logo... Ele avisa
Gabriel que começa a se masturbar, aumentando ainda mais o prazer que sente.
Então, com gritos abafados, fechando fortemente seus olhos, os dois gatos gozam,
tremendo de tanto tesão. Gabriel despeja todo seu esperma no chão, próximo aos
pés de Fernando, que enche a camisinha com seu sêmen.
Eles permanecem abraçados naquela posição por algum tempo. Gabriel vira sua
cabeça lentamente e começa a beijar Fernando, que contribui na boa por algum
tempo. Ele retira seu membro ainda rijo do ânus de Gabriel e arranca a camisinha
jogando num cantinho qualquer, limpando o resto que sobrou com um lenço que tira
da camisa. Fica parado encostado na parede com os olhos fechados, enquanto sente
as mãos do outro subindo por seu peito, indo em busca de um abraço. Gabriel se
sente muito atraído por aquele homem, e quer tê-lo mais do que uma noite.
Fernando mexeu com ele... Porém, mal sabe ele o que se passa na cabeça do
modelo. Tenta beija-lo novamente,mas, para sua surpresa, Fernando vira o rosto e
o afasta. Pega sua camisa pendurada no cinto, veste e sai do darkroom se
juntando aos amigos. Gabriel permanece no local sem nada entender. Para ele as
coisas estavam meio confusas. Como pode? Como um cara sai com ele, o beija, o
come em plena boate e sai sem dizer nada? Ele se sente um lixo...
Fernando está de volta com os amigos. Age como se nada tivesse acontecido. Só
pensa em dançar e se divertir. Por um momento vai até o bar pedir alguma coisa
para beber, mas volta a dançar em pouco tempo. Está se sentindo renovado,
realizado, pois ganhou o cara que queria... Pena que ele não correspondia a
todas as suas expectativas. Se sente um deus.
Enquanto dança, nem percebe que Gabriel passa por sua frente mais de três vezes
seguidas, provocando-o com o olhar. Ele realmente não o vê. É como se alguém
tivesse deletado os registros de sua memória. Gabriel tenta se aproximar
novamente. Ele afasta algumas pessoas e chega até o gatinho. Fica olhando-o
indignado com o que acontecera. O toca no ombro direito, chamando-o.
"Hei!" diz.
"Desculpe, mas eu não estou afim" Diz Fernando.
"Cara, qual é o seu problema?"
Calmamente, Nando responde: "Eu tô com cara de quem está com problemas? Eu só
estou dançando, por que?"
"Você... Ah! Esquece!"
Gabriel sai indignado com a atitude daquele com quem tinha ficado e transado.
Ele realmente se sente um lixo. Se sente tão mal que resolve sair da boate.
Fernando já está de olho em um outro cara. É um loirinho, mais baixo que ele,
mas bem sensual. Ele dança de um jeito que o está deixando ligadão. Veste uma
camisa presa apenas num botão e uma calça tão larga que deixa aparecendo um
pedaço de sua cueca. Seus olhos estão fixos nos olhos de Fernando, que o provoca
insistentemente, como que o chamando para dançar com ele. Amanda, Juca e os
outros dois não estão mais por ali, eles foram pegar alguma bebida. O garoto,
que aparenta uns dezesseis anos, sorri. Fernando retribui. Ele repara na boca do
rapaz, bem rosadinha... O menino vai chegando lentamente e começa a dançar na
frente dele. Eles se olham fixamente. O novinho resolve arriscar e põe sua mão
na cintura de Fernando, dançando com ele, acompanhando seus movimentos. Depois
coloca a outra mão, se aproximando ainda mais. Fernando, ousadamente, desabotoa
a camisa do garoto, passando sua mão nem seu corpinho em desenvolvimento, porém
bem definido. Eles não tiram os olhos uns dos outros. Fernando morde seus
lábios, induzindo o menino a tentar um beijo. Ele resolve facilitar as coisas e
o beija também. É um beijo maravilhoso. Suas línguas se encontram e começam a
massagear uma a outra, numa dança sincronizada, quase que seguindo as batidas da
música que toca. Seus corpos vão se aproximando mais e mais, até que se abraçam
e continuam a beijar-se, sem nunca parar de dançar.
Novamente, aquele fogo começa a tomar conta do corpo de Fernando. Aquele garoto
é diferente, ele tem um "Q" a mais que realmente o deixou ligado. Eles começam a
se esfregar um no outro. Logo, Fernando começa a beijar e chupar o pescoço do
garoto, que mal pode acreditar no que está acontecendo. Continua beijando-o e
vai descendo até o peito dele, chupando seus mamilos com força, deixando-o sem
ar. O garoto o afasta um pouco e fica olhando-o.
"Qual seu nome?" Grita tentando se fazer ouvir. Fernando o abraça e responde num
tom de voz bem sexy...
"Fernando e o seu?"
"Bruno. Cara, você é muito gostoso".
"Não. Você que é. Posso te fazer uma pergunta?"
"Claro".
"Qual a sua idade?"
"Tenho dezoito anos. Por que?"
"Você tem cara de dezesseis".
"Todo mundo diz isso... E você, quantos anos tem?" Pergunta ainda sem acreditar
que está com um cara tão lindo.
"Vinte".
"Nossa! Que delícia. Escuta, você não quer ir até ali fora pra gente conversar
um pouco?"
"Claro" responde Fernando muito empolgado com o convite.
Bruno pega de leve na mão de Fernando e o vai puxando para a parte externa da
boate. A Apollo é também famosa pelo tamanho... Além da pista e o darkroom, tem
ainda uma parte externa com umas mesinhas e uns sofás para quem quer dar uma
relaxadinha. E é para lá que os dois vão. Eles avistam uma mesa mais ao fundo,
onde não há muita gente e se encaminham para lá. Puxam duas cadeiras e sentam-se
um em frente ao outro. Ficam se olhando sem nada a dizer, apenas mexendo em suas
mãos. Fernando acaricia a mão de Bruno, fazendo seus lindos olhos azuis
brilharem.
"Que foi?" Pergunta Fernando.
"Nada, é que eu to meio bobo, sabe? Eu quase nunca fico com ninguém quando venho
pra cá... Bom, se bem que essa é só a terceira vez que venho".
"É? Mas por que nunca fica com ninguém? Não curte muito?"
"Não é isso. É que eu normalmente não gosto de chegar em ninguém, sabe?"
"Entendo. Mas não entendo como nunca chegaram em você. Você é uma graça".
Fernando diz isso com toda sua sinceridade. O que ele sentiu com Bruno não foi
exatamente o mesmo que sentiu com Gabriel.
"Você que é lindo. Cara, eu não acredito que eu fiquei com você"
"Você não ficou, você está ficando"
Dizendo isso, Fernando o puxa para mais um longo e molhado beijo de língua.
Bruno o toca suavemente no rosto, sentindo sua pele macia. Fernando pega sua mão
e a leva até a nuca do menino, puxando-o para sentar-se em sua perna,
possibilitando um beijo mais cômodo e um contato maior. Bruno envolve Fernando
com seus braços, dando-lhe um abraço quente e confortante.
Amanda e Juca, cansados de dançar e a procura de algum lugar mais calmo, saem de
dentro da boate indo aonde Fernando e seu "rolo" estão ficando. Se deparam com a
cena do maravilhoso beijo dos dois. Amanda disfarça e tenta não chamar atenção
para não atrapalha-los, mas Juca, que nunca foi discreto, vai direto até eles...
"Ê Fernando! Não vai apresentar seu amiguinho?"
Os dois param o beijo e olham meio que de lado para ver se aquilo realmente
estava acontecendo. Fernando pede que Bruno saia de seu colo e levanta-se. Meio
sem graça, apresenta o gatinho para seus amigos.
"Gente, esse é o Bruno. Bruno esses são Amanda e Juca, meus amigos. Eles sempre
vêm comigo aqui".
"Oi".
Fernando olha para Amanda, que entende o recado na hora.
"Juca, acho que eu estou com sede. Vamos entrar?"
"Mas você acabou de beber, Amanda".
"Juca, se liga!" diz Amanda dando-lhe um beliscão no ombro e puxando-o para sair
dali.
"Desculpe, Bruno".
"Não tem problema. Senta aí, porque eu ainda não terminei de te beijar" Fala
Bruno fazendo-o sentar novamente, retomando suas posições.
O tempo vai passando e a boate esvaziando. Estranhamente Fernando fica com Bruno
ali fora a noite inteirinha, sem nem se preocupar em procurar outros caras ou
juntar-se aos amigos. Mas chegou a hora da despedida... Os dois amigos de Bruno
estão indo embora e ele tem que ir junto.
"Nando, posso pegar seu telefone?".
"É melhor que você me dê o seu. Eu ligo".
"Tá... Pegue aqui o meu cartão. Tome". Bruno tira de seu bolso um cartãozinho
preto com seu nome, endereço, e-mail e telefone para contato. Dá um último beijo
demorado em Fernando e sai.
Nando fica vendo seu "ficante" sair pela porta da boate e fica ali, sem se
mexer. Busca uma razão para estar daquela maneira. Como aquele garoto de dezoito
anos conseguiu mexer com ele? Essa é a pergunta que ficou em sua cabeça até às
sete e meia da manha - hora que chegou em sua casa para dormir.
Como no Domingo não tem trabalho agendado e nenhum compromisso, o moreno dorme
até uma hora da tarde. É engraçado como já acorda de bom-humor e pronto para
suas tarefas diárias. Antes de qualquer coisa, toma um café-da-manhã reforçado,
com suco de frutas, leite desnatado, cereais e torradas. Depois, vai direto até
a academia do prédio onde mora para começar seus exercícios. É ali onde ele
relaxa e esquece dos problemas. Porém, hoje, algo de diferente está acontecendo
em sua cabeça. Enquanto começa a pedalar, Fernando começa a lembrar de Bruno - o
carinha da noite passada. Apesar de não se lembrar de muitos detalhes, como a
cor dos olhos dele ou mesmo o nome dele, Nando lembra-se dos beijos que recebeu
e dos toques do menino com rosto de criança...
Por pelo menos duas horas, Fernando pedala na bicicleta ergométrica e só para
porque o telefone celular em sua bolsa tocou. Preguiçoso, ele vai até até a
bolsa e a abre na maior calma, deixando o celular "esguelar" o quanto queira.
"Alô" atende num tom de saco cheio.
"Nando, sou eu a Amanda".
"Fala..."
"Que voz é essa?"
"Nada não. É que eu fiz bicicleta por duas horas e fiquei meio cansado. Tudo
bem?"
"Tudo bem e você?"
"Também... Tirando o fato de eu estar meio encanado com aquele carinha de ontem,
está tudo ótimo".
"É sobre isso que eu queria falar com você, meu amigo".
"Sobre o carinha?"
"Não. Sobre ontem! Nando, como você consegue ficar com dois caras, sendo que com
um deles você... bom... você sabe muito bem do que eu estou falando!"
"Meu, eu não estava nem aí! Eu vou pra boate pra me divertir e só... Além do
mais, aquele tal de Gabriel era gostoso, mas muito babaca".
"Babaca? Como é que você pode dizer isso dele? Por quanto tempo você conversou
com ele, hein? Dois.. segundos?!?!"
"Amanda, eu só o achei gostoso, trepei com ele e só".
"Ai, Nando. Quando você vai aprender, hein?"
"O que?"
"AAAAAH!" grita Amanda.
"Que foi Amanda?"
"O que você vai fazer agora, nesse momento?"
"Vou tomar um banho e ia assistir um filme. Quer vir?"
"Que filme?"
"Miss Simpatia. Minha irmã alugou o DVD"
"Tá. Então em uma hora eu to aí pra gente ver esse filme e conversar um pouco.
Eu to preocupada com você"
"Don't worry, be happy, dear"*. (*não se preocupe, seja feliz, querida)
"Tá. Tchau..."
"Tchau". Desliga o telefone.
Fernando volta até seu apartamento para tomar um banho e limpar um pouco o corpo
daquele suor todo. Bom, pelo menos ele conseguiu queimar todas as calorias que
ganhou com as bebidas da noite passada...
Logo após o seu demorado banho, e após escolher uma roupa, Fernando vai
preparando as coisas na sala para assistir ao tal filme que sua irmã alugou.
Enquanto Amanda não chega, ele prepara um suco e corta uns morangos para comerem
na hora do filme.
"Fernando!?!" Grita sua mãe.
"Fala mãe".
"Tem um cartão aqui na sua calça preta da Slâmica... Joga fora ou guarda?"
"É SLAM mãe! E pode jogar fora sim, eu não vou usar isso". Grita da sala.
A campainha toca. Amanda chegou e trouxe junto Juca, Marcelo e Ricardo - o que
já era de se esperar, visto que eles andavam juntos o tempo todos. Eles se
cumprimentam e cada um vai pegando um lugar na frente da televisão.
"Eu adoro vir assistir filme aqui na sua casa, Nando. Essa tv 29 polegadas e
esse home theatre são muito show" comenta Marcelo.
"Também acho". Diz.
"Viu, e aí? O que deu na noite passada?" pergunta Ricardo.
"Ele ficou com um menino chamado Bruno". Diz Juca cortando Fernando
"Ah... Esse era o nome dele... Então, eu fiquei com ele e com aquele carinha da
entrada da boate. Aliás, que cara gostoso! Meu, eu comi ele no dark"
"Você é a pessoa mais sem noção que eu conheço Fernando" diz Ricardo. "E que fim
deu esse Gabriel?"
"Depois do darkroom eu não o vi mais... Mesmo porque eu não o queria mais não.
Ele era besta"
"E o Bruno?"
"Sei lá. Ele pediu pra eu ligar, mas eu não sei se ligo".
"Você gostou dele, Nando?" Pergunta Amanda.
"Ah. Sei lá! Amanda, cê sabe que rolo de boate não serve pra nada e não vai pra
frente".
Todos se entreolham e nada dizem. Detalhe: Juca e Amanda, e também Ricardo e
Marcelo se conheceram na boate e tem namoros de longa data. Fernando continua
dizendo que não acha que Bruno tenha mesmo gostado dele e que não vai correr
atrás de um "pivete qualquer".
"Não foi o que parecia quando eu vi vocês se beijando" Diz Juca.
"O que você quer dizer com isso?"
"Que você gostou dele e está com a mão coçando pra pegar o telefone e ligar, mas
tem medo de admitir isso porque você acha que é sinal de fraqueza correr atrás
de alguém que você gostou, pois morre de medo que o cara pise em você como
aconteceu com o Thiago há dois anos atrás quando só você se dedicava a ele e ele
quase não te dava bola. É isso que ele quer dizer. Pronto, falei" Diz Amanda
perdendo o controle sobre si.
"Não! Não tem nada a ver com o Thiago, Amanda"; Fernando altera-se "Vocês não
entendem! Eu já disse que foi um rolo de boate e pronto. Meu, só porque eu
resolvi ficar com esse carinha o resto da noite significa que eu esteja
apaixonado? Não é bem assim. Eu curti ele sim, mas não quero nada sério,
cacete!"
Amanda fica olhando para o amigo e fica sem saber o que dizer. Desculpa-se por
ter tocado em seu ponto fraco...
O filme começa e os cinco assistem sem abrir a boca para falar um com o outro, a
não ser para dar risadas nas cenas mais engraçadas. Percebendo o clima chato,
eles resolvem sair para dar uma volta logo após o término do filme. Resolvem ir
até o shopping fazer umas compras e esfriar a cabeça. Entram rindo e tirando
sarro um dos outros, ou seja, um clima completamente diferente do que estava
antes.
Andam pelos corredores olhando vitrines, encontrando alguns amigos, conversando.
Meninos e meninas passam por eles e mexem com Fernando dando piscadelas e
assobiando. Ele não está nem aí para nada, quer apenas bater papo com sua
galera. Eles param na praça de alimentação para tomar um suco. Conversam sobre
os programas para a noite.
"Eu acho que a gente podia voltar na Apollo. O que vocês acham?" Sugere Ricardo.
"Pode ser, mas vocês não estão afim de ir a outro lugar não? Sei lá, tem o
Allegro, a SoGo, a Fábrica 5, o Cabral, a Pool... Tem tantos outros lugares!"
diz Juca.
"Meu, se liga, né? Allegro e SoGo só dá ralé" diz Fernando.
"Como é que é, Nando?"
"Marcelo, os caras mais gatos e style estão só na Apollo. Eu concordo que tem
uns caras que valem a pena nesses outros lugares, mas nada se compara aos corpos
que vão na Apollo. Todo mundo que freqüenta lá tem muita grana, se veste bem pra
caralho e são todos lindos".
"Nando, você não sabe ir pra boate com outro intuito a não ser caçar?" Amanda
comenta dando um gole em seu suco.
"Meu, eu sou jovem e to afim de beijar muito hoje".
"Quê? Mas já não bastam os dois de ontem?" diz Ricardo.
"Que nada, Rica. Aqueles foram só aquecimento"
"Gente, eu não reconheço o meu primo"
"E quer saber..."
Fernando ia completar a frase quando sente uma mão em seus ombros. Estranha.
Vira-se devagar e se depara com uma menina baixinha, meio gordinha, cabelos
cacheadinhos, branquinha com alguma sardinhas no rosto, olhos verdes e muito
simpática.
"Oi. Tudo bem? Meu nome é Mariana. Por acaso eu estou atrapalhando alguma
coisa?" Diz a garota, que aparenta uns dezessete anos.
"Na verdade você es..." Novamente Fernando ia dizer algo, mas é interrompido.
Desta vez, por Amanda.
"De jeito nenhum. O que a gente pode fazer por você?"
"Na verdade não é bem por mim..."
"Como assim?"
"Bom, ai... Eu fico até sem graça. Desculpa a ousadia, mas você é gay, moço?"
Pergunta referindo-se a Fernando.
"C-como?"
"Ai! Desculpa perguntar, mas é que meu amigo queria saber".
"Humm... Olha aí, Nando. O amigo dela quer te conhecer" diz Juca.
"É..." Diz Mariana sorrindo.
"Sabia que você é uma graça. Adorei você" diz Amanda.
"Ai, obrigada! Eu fico sem graça..."
"E onde está seu amigo, Mari?" pergunta Juca, sendo super simpático.
"É. Onde está seu amigo?" indaga Fernando, dando mais um gole em seu suco de
frutas vermelhas.
"Aquele ali de camisa vermelha e calça jeans. O Douglas." Diz apontando para um
rapaz de uns dezessete anos, cabelo raspadinho, aparelho nos dentes.
Fernando vira-se para ver quem é o tal do amigo da simpática garota. Ele olha,
recebe um belo sorriso do garoto, vira-se de volta para a mesa, coloca as mãos
no rosto e começa a rir com deboche. Mariana nada entende e pergunta o motivo.
Ainda rindo, Fernando responde:
"Se liga, garota! Vai viver! Você acha que eu vou estar interessado num cara
mirradinho, feio e mal vestido daquele jeito?" Volta a rir.
Todos da mesa olham pra Fernando não acreditando no que acabaram de ouvir.
Mariana pergunta delicadamente:
"Você viu o moço certo? É aquele de..."
"Camisa vermelha podrérrima, calça jeans comprada em camelô, tênis de vinte
reais e um monte de ferro no dente? É, eu olhei o cara certo".
"Olha aqui, seu moleque idiota.... Vê se você cresce um pouco! As pessoas são
mais do que as roupas que vestem. Te garanto que meu amigo, que se veste como um
cara qualquer, tem muito mais caráter e coração do que você que só tem carcaça!"
Dizendo isso, Mariana, furiosa, pega o copo de suco de Fernando e despeja com o
maior gosto todo seu conteúdo na roupa dele. "Gente, vocês parecem ser super
legais, mas esse seu amigo... Pelo amor de Deus! Tchau. Desculpem incomodar".
Mariana sai dali muito puta da vida. Fernando não mais ri, pois está
completamente sujo e molhado de suco. Sua camisa branca, não é mais branca.
Agora quem ri são Mariana e seu amigo ao longe. Amanda, Juca, Ricardo e Marcelo
olham inconformados para Fernando, que muito bravo, diz:
"Eu não acredito que essa vaca fez isso com minha camisa da TNG!"
"Eu não falo mais nada. Aliás, falo sim. Gente, eu já volto" diz Amanda
retirando-se da mesa, enquanto Fernando continua a ter um escândalo por causa da
camisa manchada.
Amanda caminha até Mariana e seu amigo Douglas. De certo modo ela se sente
culpada pelo que aconteceu, embora não tenha feito nada. Se aproxima muito sem
graça e percebe que Douglas não está muito legal.
"Oi Mariana. Oi Douglas. Nessa confusão eu nem tive tempo de me apresentar, né?
Sou Amanda".
"Oi Amanda".
"Gente, eu queria pedir mil desculpas pelo comportamento do meu amigo. Ele foi
um grosso, ridículo, idiota".
"Não precisa pedir desculpas" fala Douglas. "Eu sou mesmo um cara ridículo que
se veste mal".
"Não é assim, Douglas. O Fernando não sabe o que fala... Você é um menino muito
gatinho, viu? Não liga pra ele. Seja mais você. Ele não te merece... E olha que
pra eu falar isso de um amigo meu não é fácil, hein?"
"É, Douglas. Você é tudo! Aquele cara só tem dinheiro. É como eu falei pra ele:
ele pode ter o dinheiro e a roupa que quiser, mas jamais vai ter o coração que
você tem. Tenho certeza que tem um monte de gatos por aí querendo um cara como
você".
"Ah tá..." Fala desanimado.
"É verdade, Mari. E eu conheço um muito legal que está solteiro. Ele é um
modelo, lindo, dos olhos castanhos, cabelo preto e um corpo muito legal. O nome
dele é João Pedro... Se eu não me engano eu tenho o cartão dele aqui".
"P-péraí! Você vai me dar o telefone de um amigo meu que eu nem conheço?"
"Não... Eu vou ligar pra ele mesmo" diz Amanda pegando seu celular e ligando
para o tal amigo. Ao telefone: "JP, será que você pode vir até o shopping? Eu
tenho uma pessoa pra te apresentar. É? Tá... Tá... Beijo". Desliga. Com um
sorriso no rosto, continua: "Adivinha, só. O João tá aqui no shopping".
"Por que você tá fazendo isso, Amanda? Você nem me conhece" diz Douglas.
"Isso é para ver se eu consigo te animar um pouco... Eu sei como o Fernando
derruba uma pessoa com as palavras dele. Ah! Olha lá o João... João!!!"
Saindo de dentro de uma lojas de perfume, João Paulo, amigo de Amanda desde os
quinze anos, a vê e corre em sua direção. Eles se abraçam e se beijam, matando a
saudade que sentem, afinal fazem dois ou três meses que não se vêem, só se falam
por telefone.
"E aí. Quem você vai me apresentar?"
"Ele, o Douglas. Douglas esse é o João Paulo. João, esse é o Douglas, meu
amigo".
"O-oi!" Diz João Paulo todo sem graça. Ele vai ao ouvido de Amanda e sussurra:
"Meu Deus! De onde você tirou esse gatinho?"
"Eu o conheci aqui no shopping. Bom, eu acho que vocês têm muito o que
conversar, né? Mariana, você não quer dar uma volta com a gente?"
"Bom, acho que é o jeito, né? Pelo que eu to vendo eu vou ficar sozinha. Vamos
lá".
Amanda pega na mão de Mariana e elas saem dali de fininho, pois realmente rolou
uma troca de olhares muito forte entre seus amigos. Fernando está com Ricardo e
Marcelo numa loja comprando uma camisa nova para vestir. Juca espera por Amanda
do lado de fora.
"Meu, o Nando tá muito estranho" comenta Juca.
"Está mesmo, Ju. Eu não sei o que está acontecendo".
"Eu sei" diz Mariana. "É falta de p... Vocês sabem".
Eles riem.
"É bem por aí mesmo. Oops! Lá vem ele".
Fernando sai com três sacolas de roupas da loja, acompanhado pelos dois amigos
que estão visivelmente de saco cheio dele. Quando vê Mariana, pára, a olha e
diz:
"O que você está fazendo aqui?"
"Eu estou com meus amigos".
"Onde? Cadê o feinho?"
"Ela está com a gente!" diz Amanda. "E o Douglas tá ali com o JP".
Fernando olha e não acredita no que vê.
"O JP tá conversando com ele? Bem que disseram que ele tem mal gosto".
Ninguém abre a boca para fazer comentário nenhum. Os seis saem para dar umas
voltas pelo shopping e acabam entrando no cinema para assistir a um filme que
estavam querendo, assim poderiam juntar o útil (deixar João Paulo e Douglas a
sós) ao agradável.
Fernando e companhia saem do shopping por volta das nove horas da noite. Antes
de saírem recebem a notícia de que os dois (JP e Douglas) ficaram e trocam
telefones com Mariana. Ela parece ser uma pessoa realmente muito legal. Entram
no carro e vão direto para a Apollo, já que estão todos bem vestidos.
"Será que eu vou arranjar algum gato hoje?" diz Fernando.
Ninguém responde. Ele pergunta novamente em tom mais alto. Nada de resposta.
"Qual é galera? O que foi?"
"Fernando hoje você está um saco! Você não tem noção de como. E eu to muito puta
com o que você fez lá no shopping".
"O que? Chamar o feinho de feinho?"
"Cala a boca Fernando" dizem Marcelo e Ricardo, que também parecem bem chateados
com ele.
"Xiii... Meu, na boa, o cara era feio memso. Você acha que eu vou sair com um
cara desses? De jeito nenhum... Homem pra mim tem que se vestir bem, acima de
tudo, e ser muito lindo de tirar o ar".
"Vai ver que é por isso que você tem toda a propensão pra acabar sozinho, né?"
diz Juca.
"Como é que é?"
"Como você consegue ser tão superficial?"
"Pô, eu não sou superficial... Eu sou seletivo".
"Uh! Muito" diz Amanda com um tom bem irônico.
"Acho que vocês está com o cu virado hoje, hein? Que idéia é essa de pegar no
meu pé agora?"
"A gente não quer pegar no pé de ninguém. A gente só quer mostrar que o que você
faz com as pessoas não está certo. Você tem noção de como o Douglas se sentiu?"
explica.
"Sabe o que eu não entendo? Por que vocês estão tão preocupados com um cara que
vocês mal conhecem?"
"Não é isso, sua anta! A gente está preocupado é com você mesmo... Você vai
acabar se ferrando grandão e eu só quero ver" diz Ricardo, perdendo a paciência
com o primo.
Durante os próximos quinze minutos até a boate, ninguém fala com ninguém. A
única coisa que se ouve no carro é a música e algumas buzinas do povo da rua.
Novamente, a galera está de volta ao point. Apesar de ser Domingo, a Apollo está
lotada! Tem uma fila enorme na entrada. Fernando não perde tempo e já vai
analisando os caras que esperam para entrar. Em cinco minutos de fila, ele já
está de trocas de olhares com um negro maravilhoso que viu.
Entrando na boate, ele vai direto para o bar pegar um energético e depois volta
para a pista, onde dá de cara com o negro que secava.
"Oi'. Diz aproximando-se.
"Oi. E aí?" diz.
"Beleza. Sou o Fernando, e você?"
"Eduardo. Tá afim do quê?"
"Que tal uns beijos?"
Eduardo nem responde, apenas o puxa pelos braços e tasca-lhe um beijo na boca.
Fernando adora sentir aquela boca carnuda e quente junto a sua e começa a chupar
a língua daquele negro lindo. Amanda, que passa por ali, só olha e balança a
cabeça demonstrando indignação.
Os dois se atracam naquele beijo por longos quinze minutos. Enquanto se beijam,
um outro rapaz, sem que Fernando perceba, está alisando seu "ficante", passando
a mão em sua bunda, suas costas e seu pau. Então, do nada, Eduardo para de
beija-lo. Fernando o olha maravilhado com o beijo. Quando vai para beija-lo
novamente, o negro afasta com um empurrão no peito e começa a beijar o outro que
o estava alisando, sem nem se preocupar em dar satisfação. Nando olha e não
acredita na cena que vê. Como era possível um cara dispensá-lo? Os amigos dele,
que assistem de longe, riem muito, pois vêem o jogo virando.
Fernando volta até o bar, pede um vinho tinto, bebe tudo de uma vez e, sem se
deixar abalar, retorna à pista, onde vê um loiro muito gostoso dançando sozinho.
O cara o olha e quando percebe que está sendo secado, para de dançar na hora,
dando um sorriso safado para Fernando e chamando-o com movimentos de dedos.
Fernando vai e o segura pela cintura. Sem nem perguntar seu nome, começa a
beijá-lo, já passando as mãos por todo seu corpo. Em seguida, desce sua mão
pelas costas do rapaz e a coloca dentro da calça dele por trás. O cara continua
a beijá-lo, agora mais selvagemente, alisando o pau do moreno com uma das mãos
enquanto esse começa a massagear a entrada de seu ânus com dois de seus dedos,
pressionando de leve. Os dedos de Fernando entram no loirinho, que começa a dar
leves gemidas e mexe o quadril, de modo a fazê-lo entrar ainda mais.
"Tá afim de ir até minha casa?" pergunta o loiro.
"Onde fica?"
"A duas quadras daqui"
"Vamos, porque eu tô louco".
Eles se recompõe e se encaminham para a saída da boate, onde encontram Juca.
Fernando diz que vai sair e que não o esperem, pois vai passar a noite toda
fora.
"Onde você vai?" pergunta Juca, preocupado.
"Na casa dele".
"Dele quem?"
"Desse cara, meu. Tchau"
Sem mais explicações, Fernando paga a conta e sai com o cara, caminhando até sua
casa. Eles param pelo menos duas vezes no meio do caminho para se beijar. A
excitação toma conta deles, que sequer sabem o nome um do outro...
Chegando na casa de Rubens - esse é o nome dele - vão direto para o quarto, sem
nunca desgrudar suas bocas. Fernando vai despindo o parceiro, que faz o mesmo
por ele. Em pouco tempo encontram-se nus na cama, se agarrando, se esfregando e
se beijando. Rubens está sobre Fernando e passa suas mãos por seu peito
definido, sua barriga, suas pernas, seu pau... Fernando o beija e sente todos os
músculos de suas costas, sua bunda e também um pau bem avantajado: uns 21cm -
maior e mais grosso que o do próprio Fernando.
O clima entre os dois começa a pegar fogo cada vez mais. Rubens começa a descer,
beijando todo o corpo de Nando, que se contorce de tanto tesão. Começa a gemer
quando Rubens coloca seu pau na boca e chupa com força e muita habilidade. Ele
sobe e desce naquele pau gostoso variando a velocidade, hora forte, hora fraco,
fazendo com que Fernando quase suba pelas paredes.
Ficam nessa posição por muito tempo, até que viram num 69. Com dificuldade,
Fernando vai chupando o imenso pau do gostoso loiro, mas quase o coloca inteiro
na boca, engasgando às vezes. Como está por baixo, vai chupando e também
enfiando o dedo naquela bundinha apertada de Rubens, que rebola pra ele. Então,
com jeito, Nando começa a chupar o cuzinho do parceiro, que vai ao delírio.
Enfia sua língua, chupa gostoso, enfia o dedo, lambe bastante, enquanto tem o
pau engolido com muito gosto. Ele está louco para meter a vara naquele
buraquinho tão lisinho quanto o resto do corpo de Rubens.
Saindo do 69, Rubens coloca-se de quatro, ficando de joelhos no chão e
apoiando-se na cama. Fernando retira uma camisinha de sua carteira, coloca em
seu pau, o umedece com um pouco de saliva e prepara-se para foder o loirão. Com
calma, vai colocando na entradinha e vai pressionando lentamente, fazendo-o
deslizar com cuidado para dentro. Vai sentindo cada centímetro penetrando
naquele quentinho. Fecha seus olhos para sentir ainda mais o tesão. Rubens quase
vê estrelas de tanto tesão que sente ao perceber que os dezoito centímetros de
Nando já entraram nele. Começa a mexer a bunda, enquanto Fernando bombeia
devagarinho, segurando-o pela cintura.
Em meio a todo aquele clima de sexo, e toda aquela excitação, não se pensa em
problemas. As únicas coisas que vêem é um ao outro. A única coisa que sentem é
um prazer quase incontrolável. Seus corpos suados se tocam e se acariciam
maliciosamente, querendo arrancar os últimos suspiros e os últimos gemidos.
Mudam de posição. Agora num frango assado, eles se beijam ardentemente, enquanto
o fogo aumenta. Fernando mete em Rubens num ritmo acelerado, entrando tudo,
batendo suas bolas com força em suas nádegas. Rubens se masturba enquanto é
fodido por aquele deus grego. Fernando, para ajuda-lo, chupa seus mamilos,
mamando neles com força. Rubens geme muito.
Estão molhados de suor e queimando de prazer. Não querem parar. Continuam até
que, não conseguindo mais segurar, o loiro goza abundantemente em seu peito.
Aquela visão faz com que Fernando também esteja próximo do gozo. Ele tira o pau
de dentro de Rubens, arranca a camisinha e, se masturbando, goza.. goza muito,
molhando ainda mais o peito de seu rapaz. Deita-se sobre ele e, beijando-o,
acaba adormecendo... Os dois dormem. Fernando está exausto, não tem forças para
sair dali. Aquela transa o tinha feito muito bem, pois tinha aliviado todo o
stress que passou e também conseguiu esquecer que seus amigos estavam chateados
com ele, o que já era um bom peso a menos em suas costas.
Fernando nem se toca do que se passou na noite passada. Quando acorda na manhã
seguinte, por volta das sete da manhã, não reconhece o local, fica perdido, até
que lentamente suas memórias vão voltando. Ele está todo grudento de gozo.
Percebe que está sozinho na cama e ouve o som do chuveiro ligado. Sem pensar
duas vezes, vai até o banheiro e se depara com Rubens tomando um bom banho, todo
ensaboado. Ao vê-lo, Rubens o convida para entrar no chuveiro e ele prontamente
aceita o convite. Ao fechar o box é surpreendido por um delicioso beijo de
língua, que demora a corresponder por ainda estar acordando. Depois de beijar,
entra embaixo do chuveiro para limpar-se.
A água cai por seu corpo e parecem alfinetes. Sua pele está muito sensível...
Provavelmente era resultado de uma leve ressaca, pois lembra-se que bebeu ainda
mais três ou quatro taças de vinho do Porto ali na casa de seu rolo.
"Gostou da noite passada?" pergunta Rubens.
"É... Gostei? Acho que gostei. Nossa, eu to acabado".
"Quer que eu te prepare alguma coisa pra comer, guri?"
"Não sei. Eu ainda to meio grog".
"Termina teu banho aí que eu já venho, tá bem?"
"Aham" concorda.
Nando fica ali embaixo do chuveiro enquanto Rubens vai até a cozinha onde
prepara um senhor café-da-manhã para o gatinho, que chega todo pingando
perguntando onde pode encontrar uma toalha.
Já seco e vestido, Fernando senta-se à mesa. Seu cérebro já está voltando a
funcionar...
"Seu nome é...?"
"Rubens. É esquecidinho, né não guri?"
"Você veio do Sul, é?"
"É. De Floripa, conhece?" Fala com seu típico sotaque catarinense.
"Conheço. Já fui pra lá várias vezes..."
"Quantos anos tu tens?"
"Vinte. Tenho vinte".
"Pra um guri de vinte anos tu é bem experiente na cama. Acabasse comigo".
Fernando ri.
"Queres passar o dia aqui comigo?"
"Não, não! De jeito nenhum. Eu tenho aula hoje. Vou ter que pegar a segunda
aula. Valeu pelo convite".
"Posso pegar teu telefone? Tipo assim, eu sei que vocês não podem se envolver
com outros caras, mas eu queria te ver mais vezes".
"Vocês?"
"É... Tu não é mixê?"
Quando ouve aquilo, Fernando olha para a cara de Rubens e sem dizer nada
levanta-se, pega sua carteira e sai do apartamento dele. Rubens, enrolado numa
toalha, vai atrás dele e o pega no corredor, esperando o elevador.
"Que foi, guri? Não gosta que te chame de mixê?"
"Em primeiro lugar, eu não sou mixê. E em segundo... vai se foder!" Diz entrando
no elevador.
"Mas eu posso te ver?"
"Pode... Em uma outra vida talvez".
Fernando mostra-lhe o dedo do meio, a porta do elevador fecha e ele desce. Ele
está inconformado com o que acaba de ouvir. Ser chamado de mixe foi a maior
ofensa de sua vida. E para completar, quando vai conferir sua carteira, encontra
vinte reais a mais do que ele tinha e um bilhete: "Obrigado pela noite, seja lá
quem for". A porta do elevador se abre e ele sai pisando duro do prédio, pegando
o primeiro táxi que vê na frente, indo direto para a faculdade, mesmo sem seu
material. Está puto da vida! Não existe outra palavra para descrever seu estado
de espírito. Como o cara foi pensar isso dele?
Durante a corrida do táxi, Nando vai reavaliando seu comportamento e começa a
ficar confuso sobre si mesmo. Chega na faculdade e corre para sua classe, onde
pega uns papeis e canetas emprestados com seus colegas. Não fica meia-hora na
sala de aula e volta para sua casa para dormir, pois não está se agüentando.
Também pudera, foi dormir às quatro e meia, acordou às sete e meia, foi chamado
de garoto de programa e ainda queria assistir aula? Não tinha como.
***
CAPÍTULO II
Alguma coisa está acontecendo...
O dia inteirinho já passou e nem sinal de Fernando. Ele ficou dormindo o tempo
todo para recuperar o sono perdido na noite passada e para se recuperar dela.
Acordou meio atordoado por volta de sete da noite e agora está sentado em frente
ao seu computador no site da UOL, vestido apenas com uma cueca samba-canção
azul, procurando alguém. Estranho? Não, não é! Sempre que se sente mal ele "voa"
para o computador, arranja um gatinho, trepa bastante e esquece as coisas ruins.
Perfeita forma de escapismo!
O cara com quem tecla, BiggyBoy21a, já está no papo. E parece ser um rapaz
interessante - pelo menos no que diz em sua descrição: alto, moreno, lábios
carnudos, corpo definido e louco por sexo. É bem isso mesmo que Nando está
procurando. Com certeza essa noite promete...
Conversa vai, conversa vem, e eles começam a ficar loucos um pelo outro sem nem
mesmo se verem. "Isso tem que dar em alguma coisa!" pensa Fernando, dando o
número de seu telefone celular para que possam entrar em contato. Não demora
muito, aquele barulho irritante começa. Fernando, meio nervoso, o pega em sua
mesa e aperta o botão.
"A-alô?"
"Fernando?"
"Sim, sou eu".
"Oi. Aqui é o BiggyBoy. Beleza, cara?"
"Beleza. E então?"
"Pois é... Tá afim mesmo?"
"Pra caramba! E você?"
"Tô morrendo de tesão. Meu pau tá queimando aqui".
"E qual é seu nome?"
"Henrique. Quando posso te conhecer?"
"Que tal daqui a uns quarenta minutos lá no shopping Iguatemi?"
"Beleza. Como sei que é você?"
"Me encontra na frente do McDonald's. Tô de camisa preta, calça jeans e um
sapato preto. Você vai saber quem sou".
"Falou. Eu tô de camisa vermelha e calça branca. A gente se fala".
"Beleza. Até mais".
"Até".
Desligando o telefone, Fernando corre para seu quarto vestir-se o mais rápido
que pode. Está muito nervoso, apesar de sempre ter marcado encontros por
internet. Fica só imaginando como poderia ser o tal do Henrique... Pensa em tudo
quanto é cara que já conheceu ou conhece, tentando montar em sua cabeça o cara
perfeito.
Veste rapidamente uma roupa já pré-selecionada para tal ocasião e sai de casa na
maior pressa. A ansiedade é tão forte que dá até uma leve dor de barriga nele.
Para ajudar, os carros nas ruas parecem que só querem atrapalhar, entrando na
frente toda hora. Ele tenta desestressar ligando o som. É em vão. A hora está
passando. Ele tem apenas dez minutos para chegar.
Felizmente o trânsito resolve fluir. Fernando chega ao shopping, guarda seu
carro no estacionamento e segue com passo acelerado para o McDonald's, pois por
causa do tráfego acaba chegando um pouco atrasado ao encontro. Começa a apertar
ainda mais seus passos, esbarrando em todo mundo, chegando até o local marcado.
Olha a sua volta procurando um rapaz com as descrições da Internet. Não encontra
nada. Olha mais uma vez, dá uma volta ali por perto e se vê sozinho. Henrique
não apareceu... Começa a desanimar. Ele detesta se sentir esquecido. Bravo,
senta-se num banco e fica pensando. Pra que continuar ali? Nando resolve ir
embora.
Quando levanta-se, percebe alguém atrás dele. Começa a andar e nota que está
sendo seguido, mas sem nunca olhar para trás. Logo, sente uma mão em seu ombro.
Meio assustado, vira-se lentamente, deparando-se com um rapaz loiro, alto, de
olhos tão azuis quanto o céu e lábios rosados e grossos.
"Você se chama Fernando, certo?"
"É, por quê?"
"Prazer. Sou eu, o Henrique".
"Aham... Tá. Vai nessa!". Diz com deboche, afinal o cara não tem nada a ver com
o descrito pelo "verdadeiro" Henrique da internet.
"Sério, meu, sou eu... BiggyBoy21a".
"Mas... Não. Você tá me zoando".
"Não tô não. Se decepcionou?"
"Claro que não. Você é puta gostoso!".
"Eu achei que seria mais legal fazer uma surpresa... Vamos nessa?"
"Para onde?"
"Um motel. Que acha?".
"Beleza".
Sem mais nenhuma palavra, Nando acompanhou Henrique até seu quarto no
estacionamento. Ele ainda está nervoso, e ainda mais pelo fato do gato ser ainda
mais gato do que ele imaginava. O peito dele é maravilhoso, mesmo coberto por
aquela roupa. A vontade dele é joga-lo no chão, arrancar toda aquela roupa e
transar "horrores" com aquele garanhão puro-sangue.
Eles se dirigem a um motel meio afastado dali. A conversa que rola no carro não
é das mais descontraídas, porém ambos estão loucos de tesão. Henrique apenas
observa faminto cada detalhe de Fernando, sem nem elogia-lo nem nada. Já Nando
aproveita e observa ainda mais descaradamente o loirão, enchendo sua bola com
elogios. Até o próprio Fernando estranha essa reação, pois ele não é de ficar
falando isso nem para sua melhor amiga... Mas, enfim, o que importa nessa hora é
apenas que ele está indo trepar - termo que usa com freqüência.
Chegam no motel, e vão direto para o quarto onde Henrique, ao trancar a porta,
já começa a arrancar a roupa. Quando ele tira a camisa, Fernando, sentado na
cama, fica boquiaberto com aquele peito aberto e largo que tem. Já completamente
nu, o loiro caminha em direção a Nando e, ajoelhando-se bem a sua frente,
ajuda-o a despir-se para ficarem mais a vontade. Isso tudo sem trocar uma
palavra.
Estão nus, de paus duros e se tocando ainda meio inibidos. Fernando arrisca um
beijo, mas esse é recusado pelo rapaz, que retruca:
"Cara, não beijo homem".
Sem saber o que dizer ou fazer, Nando fica quieto, puxando-o para cima da cama.
Deita-se deixando com que seu pau fique duríssimo apontando para o teto. Espera
que Henrique o chupe. Aliás, espera isso desde o momento em que viu aquela boca
carnuda dele. Henrique fica deitado e não diz nada, apenas respira. Um tempo
depois, diz grosseiramente com sua voz máscula:
"Cara, você vai me chupar ou o quê?".
Fernando realmente não esperava por essa. Por um momento se sente desconfortável
por estar ali, mas logo o tesão toma conta dele, que resolve chupar o pau -
diga-se de passagem, imenso - do loiraço gostoso. Se posiciona entre as fortes
pernas do cara e começa a dar beijos no pau dele, segurando com uma de suas
mãos, enquanto a outra acariciava seus músculos peitorais. Começa a chupar pela
cabeça, colocando-a todinha na boca, sugando com força. Henrique geme, dizendo
em seguida:
"Cara, que boca quente. Continua a me chupar, vai! Coloca essa pica toda na tua
boca, vai".
Fernando, que de pouco em pouco vai se acostumando com a idéia de estar
novamente chupando um pau, continua chupando com vontade e vai ficando cada vez
mais excitado com aquilo. Logo começa a chupar com força, deixando o loirão
sarado completamente louco. Henrique leva sua mão até a cabeça de Nando e começa
a forçá-la mais em seu pau, como que fodendo a boca dele. Nando engasga algumas
vezes e pára.
"Agora a sua vez". Diz Fernando.
"Eu não vou por minha boca no seu pau, brother. Quero te comer".
"Me comer? Eu não falei que sou ativo, cara?"
"Falou, e é exatamente por isso que eu tô louco pra meter esse meu pauzão na tua
bunda. Vem aí".
Fernando olha para ele com uma cara de interrogação enorme.
"Que cara é essa? Pega a camisinha e senta no meu pau".
"Não! Sem essa, meu".
"Ah! Vai! Tô sabendo que você é louco pra sentar num desses. Todo mundo da sua
agência fala isso, garoto. Vem logo e não enrola que eu tô com tesão". Diz de
modo debochado e estúpido.
"Como é que é?"
"Eu tô com tesão".
"O que você disse da agência? Como você sabe que sou modelo?".
"Eu sou modelo também. E eu tenho uns camaradas na sua agência... Todo mundo
fala que o Fernando Superficial é o maior cu quente da parada".
"Fernando o quê?"
"Superficial".
"Por quê?"
"Todo mundo sabe, cara, que você é um puta cara interesseiro. É por isso que tá
sozinho até hoje. Só quer ficar com carinhas gatos. Por isso sabia que tinha
chance contigo. Agora, me diz uma coisa, pra que a gente tá conversando? Vira
essa bundinha pra cá".
Fernando fica parado por um tempo olhando para Henrique sem entender o que ele
está falando. Está indignado com o que acabara de ouvir. Perde completamente o
tesão. Levanta-se e começa a se vestir. Henrique senta-se na cama, ainda de pau
duro,
"Qual é? Pra onde você vai?"
"Vou embora".
"Broxou?" Pergunta tirando sarro.
Puto da vida, Nando responde seco: "É. Broxei! Fica aí na punheta, falou?"
Terminando de se vestir Nando vai até a porta. Antes de sair para, olha para
Henrique na cama e diz:
"Que perfume você usa?"
"SeaWind".
"Ah! Já imaginei... "
"Bom, né?"
"Lembra brisa do mar... fede a peixe!".
Bate a porta e sai do quarto.
Ele está muito chateado com o que ouviu de Henrique. Fernando Superficial?!
Sente um aperto forte no peito enquanto caminha até o ponto de táxi no meio da
noite paulista, longe de sua casa. Está se sentindo só. Precisa muito de um
apoio. Pega seu celular na bolsa e liga para Amanda. O telefone toca até não
poder mais e nada dela atender. Desanima. Fernando vê um táxi se aproximando e o
chama. Entra. Diz ao taxista o destino dele e segue viagem. O aperto em seu
peito é mais forte agora. Uma raiva estranhíssima começa a tomar conta dele. A
primeira coisa que vai fazer assim que pegar seu carro no shopping é ir direto à
agência para tirar satisfações.
Uma hora depois, Fernando está na porta da agência. Apesar de já ser dez e meia
da noite, ainda tem gente trabalhando, pois o expediente vai, às vezes, até as
onze. Estaciona o carro na primeira vaga que vê e entra puto da vida. Todos
olham estranhamente para ele, pois nunca o viram daquela maneira.
"Ivonete, cadê o Jair?" Pergunta à recepcionista.
"Na sala dele. Vou anun..."
"Não precisa! Deixa que eu vou pra lá sozinho".
Pisando duro, vai andando até a sala de Jair Karlson, um dos diretores da
agências. Entra na sala com tudo, dando de cara com Jair e Amanda, que estão
acertando alguns detalhes de um desfile que estão organizando para a Triton.
"Sobre o palco eu...."
"Jair! Eu quero falar agora com você!" Diz muito bravo, interrompendo a
conversa.
"Nando? O que você está fazendo aqui?".
"Ah! Amanda. Você também está aqui? Ótimo! Eu preciso esclarecer umas coisas....
Algum de vocês conhece um tal de Henrique? Ele é modelo também".
"Fica difícil assim, mas aqui não tem Henrique".
"Ele é alto, loiro, olhos azuis, peito largo...".
"Eu conheço um. Henrique Lagos, da 2001 Models. Por quê?". Diz Jair.
"Isso não vem ao caso. O fato é que esse cara me disse umas coisas que eu não
gostei e eu quero saber isso agora... Que história é essa de eu ser o Fernando
Superficial e adorar sentar num pau??".
"O quê? Que absurdo!" Diz Amanda sentando-se novamente de tão chocada.
"Pode me dizer, Jair?! Porque ele me disse que todo mundo tá comentando isso. Me
fala!"
Jair fica quieto por um segundo. Seu rosto fica todo vermelho, o que acaba
denunciando que ele realmente sabe de algo. Pede que Fernando se sente, mas ele
reluta e continua em pé. Gaguejando, o diretor tenta explicar:
"Isso é... é... uma...."
"Fala de uma vez, cacete!" Grita Fernando perdendo a paciência, batendo forte na
mesa.
"É verdade, Nando. Aqui e em pelo menos mais três agências daqui de Sampa você
tá queimadaço. Tá todo mundo falando do Fernando Superficial ou o Fernando
Descartável, aquele de uma vez só. Sua reputação não está nem um pouco legal,
mocinho. Todo mundo tá comentando dos foras que você tem dado, dos caras com
quem tem ficado e as coisas que tem feito. Todo mundo tá comentando do Fernando
Liandris, o cara que só liga para roupas maravilhosas e carros importados, sem
sequer saber o que se passa na cabeça dos outros. Você tá fodido, meu amigo".
Fernando fica para olhando para os dois. Amanda não diz nada.
"Amanda, isso é verdade?"
"Gente, eu não tô sabendo disso não".
"Claro que ela não está sabendo, Nando. Você acha que a galera ia ser idiota de
falar mal de você pra sua melhor amiga? Agora, se você quer um conselho, muda
esse teu jeito logo, porque senão...."
"Senão o quê?"
"Senão eu vou ter que te transferir. Porque, acredite se quiser, veio gente de
fora reclamar de você. Gente de FO-RA! Você tem noção do que isso pode fazer pra
agência? Ou pior... Do que isso pode fazer pra você? Você já pensou o porquê de
você estar sem namorado? O amor não se resumo em roupinhas, carros e dinheiro,
Fernando. Amor é confiança, sinceridade, transparência e bom caráter. Quem vai
querer se envolver com um cara que só pensa em dinheiro? Quem vai querer um cara
que despreza outras pessoas que não têm ou não podem comprar roupas Triton, TNG
ou Fórum? Sinceramente, ninguém...".
Ele fica sem reação, sem fala. Vira-se e sai sem dizer nada. Passa pelos
corredores e conforme vai se aproximando da saída, escuta um burburinho vindo de
um dos estúdios".
"....aquele Fernando". Ouve. Se aproxima devagar e fica na porta.
"Eu o acho muito gato. Queria muito sair com ele" Diz um dos modelos que está
posando para umas fotos da Ellus.
"Esquece, Marco. Esse cara é um porre! Meu, ele só pensa em sexo e se você
aparece com uma camiseta Hering, ele acaba com você".
"Como assim?".
"Pra ele, gente só é gente se veste de TNG pra cima. Menos que isso é merda".
"Pelo amor de Deus. Isso é exagero, vai".
"Acho que não, viu?"
Não afins daquela conversa, sai da agência, entra em seu carro, liga o som e se
dirige à sua casa. Está atordoado com as coisas que ouviu. Sente aquele aperto
no peito de novo. As palavras começam a se repetir em sua cabeça, deixando-o
louco. Quer sumir do mundo! Explodir!
Chegando em sua casa, Fernando vai direto a seu quarto, onde se tranca e se joga
na cama. Fica um tempão olhando para o teto, como que buscando uma resposta para
tudo o que estava acontecendo. Apesar de não concordar muito com as críticas a
seu respeito, está pensativo, avaliando muita coisa. Memórias começam a
atormenta-lo... Thiago, seu primeiro e último namorado, está em quase todas.
Nando começa a lembra-se do tempo em que estava com ele, e como gostava de
Thiago, como o amava. Mas logo, as doces memórias se tornam sombrias... As
lembranças de como terminou o namoro começam a aparecer também. Thiago tinha
pisado muito em Fernando. Sempre dizia que o amava, que o queria, que sempre
ficariam juntos, mas na verdade só estava alimentando a ilusão do rapaz, que
estava mais apaixonado do que jamais tinha ficado. Num belo dia, Thiago resolve
dizer pra Nando que não mais o amava e que estava indo embora com seu namorado,
com quem já estava fazia sete meses, ou seja, dois meses a mais do tempo que
estava com Nando. Aquilo foi como uma bomba para o menino que, depois disso, não
mais conseguiu ter outros relacionamentos.
Por horas aqueles e outros pensamentos passam por sua cabeça. Está se sentindo
muito mal, muito só. Novamente sente um aperto no peito. Então, pela primeira
vez em muito tempo, Fernando chora. Tenta lutar contra o choro, mas acaba
cedendo, pois está profundamente magoado.
Nando adormece enquanto chora, acordando apenas no dia seguinte, já se sentindo
uma outra pessoa. Levanta-se. Está atrasado para a faculdade. Veste-se
apressadamente e corre para ainda pegar a primeira aula. Sai sem nem mesmo tomar
seu café-da-manhã - coisa que pode fazer na faculdade mesmo.
Guarda seu carro no estacionamento. Enquanto pega suas coisas, não percebe que
Amanda e Juca se aproximam dele. Se assusta com eles.
"Nando, ce tá bem?" Pergunta Amanda.
"Tô, por quê?"
"Fala, Nando! A Amanda me contou as coisas que rolaram ontem na agência. Que
foda, cara!".
"Ah! Aquilo? Não foi nada. Eu sei que tem gente que morre de inveja de mim e
fica falando esse monte de coisas sem nexo. E, outra, eu não ligo para o que os
outros pensam. Eu nem os conheço. O que importa é que vocês não pensam assim,
né?" Diz super tranqüilo.
Amanda e Juca se entreolham e nada dizem. Fernando os olha e sente que querem
dizer algo.
"Vocês pensam assim?".
"Nando, você realmente tem agido mal ultimamente. Você viu como você tratou
aquele menino no shopping?" Diz Amanda.
"Fora que você anda muito promíscuo Nando. A vida não é feita só de sexo..."
"E muito menos de roupas bonitas. As pessoas tem sentimentos, amigo".
"Espera! Eu mal cheguei na faculdade e sou esfaqueado pelos meus melhores
amigos? É isso que está acontecendo?"
"Não é isso. Nando, a gente só está dizendo que você tá precisando de ajuda".
Diz Juca.
"Ajuda?! Vocês acham que eu preciso de ajuda? Vão viver, vocês dois" Diz
Fernando muito chateado com o que ouviu. Ele se vira e sai andando. Nunca pensou
que fosse ouvir o que ouviu de quem ouviu.
Ele entra em sua sala de aula, onde é recebido por Juliana, uma de suas colegas
de sala. Ela parece preocupada. Aproveitando que o professor vai chegar atrasado
para a primeira aula, Ju pede que Nando a acompanhe até um canto para conversar
um pouco.
"Hei, você tá bem?" Pergunta.
"Por que não estaria?"
"Nando, tá todo mundo comentando que você deu o maior escândalo na agência
ontem..."
"Puta que pariu! Até na faculdade eu tenho que escutar isso?!?! Pelo amor de
Deus!".
"O que está acontecendo, Fer?"
"O que está acontecendo é que esse povo invejoso fica falando um monte de merda
sobre mim e fica esperando que eu fique quieto. Só que eu não vou ficar quieto!
Se eu não quero ter um namorado é porque eu não quero. E se eu gosto de transar
é porque eu quero aproveitar a vida, cacete! Esse povo não entende. Se eu gosto
de caras que se vestem bem é porque eu não quero nenhum pé rapado que se
aproveite de mim mais pra frente, entende? Eu gosto de cara bem vestido mesmo,
porque eles têm futuro. Ai que ódio!" Diz Fernando, ficando cada vez mais bravo
conforme vai falando.
Juliana fica quieta apenas olhando Fernando desabafar. Assim que ele termina ela
continua em silêncio. Ele espera uma resposta, uma reação, alguma coisa. Juliana
respira fundo e, olhando no fundo de seus olhos, diz:
"Ai ai, meu amigo. Quer saber?"
"O quê?"
"Não que eu esteja defendendo o que os outros dizem, mas você já pensou que essa
sua concepção de "aproveitar a vida" tem um outro nome?"
"Que nome?"
"Promiscuidade".
"Promiscuidade?"
"Isso mesmo! Você já parou pra pensar o que você tá fazendo com você mesmo?" Diz
Juliana acendendo um cigarro que tirou de seu bolso.
"Como assim?"
"Nando, você ta esquecendo de você. Sexo é bom, mas não enche a barriga".
"Como é que é?"
"Ah! Não é bem isso, mas você entendeu".
"Não, sinceramente eu não entendi".
"Nando, percebe o que você está se fazendo, cara. Você ta se metendo com um
monte de gente, se tornando uma pessoa promíscua, que sai com qualquer um, vive
transando, mas você está esquecendo de alimentar seu coração".
"Alimentar o coração?"
"Viu, não adianta você dizer pra mim que você não sente falta de alguém ao seu
lado, te beijando, abraçando e falando coisas bonitas, porque eu sei que não é
bem assim. Todo mundo precisa de alguém pra amar e ser amado".
"Bom, eu não sou assim"
Fernando levanta-se e deixa sua amiga sozinha. O sinal para a primeira aula
bate. A sala está cheia. Diferente de todos os dias, ele se dirige ao fundão, lá
no canto, onde fica isolado do resto da sala. Algumas pessoas o olham com
olhares curiosos e ficam cochichando. Fernando só observa sem nada dizer.
A aula começa. Ele abre seu caderno e começa a anotar as coisas que o professor
fala. O tempo inteiro tenta escrever tudo da aula, sem se deixar alterar com o
que ouvia ao seu redor. Percebe, porém, que dois de seus colegas de classe,
Mário e Marcel, estão de segredinhos e ficam a todo momento olhando para ele no
fundo da sala. Isso começa a irritá-lo, mas ele se segura, pois essa é uma de
suas aulas favoritas.
Hora do intervalo. Todos estão saindo da sala, mas Fernando continua em seu
canto. Juliana vem chamá-lo, mas ele pede que o espere do lado de fora pois tem
algo a fazer. Finalmente, ele consegue o que conseguia: ficar na sala com Mário
e Marcel, que ainda estavam pegando algo em suas mochilas. Fernando se levanta e
vai até os dois.
"Vocês dois, qual é a de vocês?"
"Como assim?" Pergunta Mário.
"Qual a de vocês?"
"Ei, a gente não curte viado não. Se liga!" Diz Marcel.
"Não é isso que eu tô dizendo, seu otário. Onde vocês querem chegar falando de
mim, hein? Posso saber?"
"Pode sim. Nós só estamos falando as coisas que estão rolando por aí. E, na boa,
eu sei que é tudo verdade".
"É mesmo Marcel? O quê, por exemplo?"
"Que você é um cara metido... E que..."
"Cala a boca, Marcel" Diz Mário.
"Não cale, não. Continua, Marcel" Pede Fernando.
"É... Que você dá pra qualquer um e que seu dinheiro é tudo das drogas que você
repassa".
Fernando realmente não esperava aquela resposta. Drogas? Ele nem sequer havia
experimentado drogas em sua vida e estão dizendo que ele está vendendo drogas?
Está chocado com o que acaba de ouvir. Suas intenções eram as piores possíveis,
mas depois dessa acabou perdendo a reação... Fernando sai da sala e vai andar
pela universidade.
Nesse momento, milhões de pensamentos estão passando por sua cabeça. Ele anda
sem rumo, pensando nas coisas que falam sobre ele. Na verdade, tenta ao máximo
não dar ouvidos às fofocas, pois sabe que existe muita inveja. Mas o que o está
deixando confuso é que até seus amigos estão dizendo coisas que ele jamais
pensou que fosse ouvir. Nunca em sua vida achou que fosse ouvir que é
superficial ou promíscuo ou insensível... De onde as pessoas estavam tirando
todas aquelas histórias? E por quê? Isso é uma coisa que não dá pra saber tão
cedo...
Fernando passa o intervalo inteiro sozinho, apenas refletindo. Está, pela
primeira vez, se auto-avaliando, vendo as coisas que ele ache que estejam
erradas nele próprio.
"Sexo... Eu gosto de transar. Se eu saio com muitos caras é porque eu posso. O
povo fica falando que eu sou promíscuo, mas eu acho que é inveja, porque eu só
cato cara gostoso..." Pensa. "Acho que não tem nada a ver. Agora, todo mundo
fica falando de namorado. Eu não tenho porque eu não quero mesmo, ué? Desde
quando um cara é obrigado a namorar. Eu sou jovem, não tenho que me prender a
ninguém. E eu não me sinto sozinho não... Sei lá. Roupas... Eu gosto de quem se
veste bem. Se um cara se veste com uma roupa legal, ele se torna mais
interessante, mais bonito, mais charmoso. E eu acho, sim, que roupa é
importante, pois a roupa mostra a personalidade da pessoa..."
Pára de pensar por um segundo. Olha em volta. Observa as pessoas. E continua seu
raciocínio:
"Bom, não é bem assim. O Juca hoje não ta vestido legal e mesmo assim ele é
gente fina. Ah! Quer saber, foda-se o que os outros pensam..."
Nessa hora, passam dois casais em sua frente de mãos dadas, ou abraçados. Ele os
observa atentamente. Um dos casais pára num cantinho e, abraçados, começam a
conversar bem pertinho um do outro. A menina coloca seus braços em volta do
pescoço do cara, que coloca suas mãos em volta de sua cintura. Ficam falando
quase tocando os lábios e os narizes. Não dá pra ouvir o que eles falam. Ela dá
um sorriso bonito. Seu olhar é bem apaixonado, parece que seus olhos brilham.
Ele também a olha de maneira doce - um olhar que há muito Fernando não via.
Então, o casal se olha um pouco mais e dão um beijo tão apaixonado que parecem
transbordar amor pelos poros. Fernando os observa e começa a sentir alguma coisa
em seu peito...
"Bom... acho que... é.... namorar deve ser legal..."
Parece estar mudando de idéia em relação à questão do namorado. Continua
observando o casal, agora imaginando como seria estar no lugar de um deles,
beijando um cara que ele gostasse, e que gostasse dele da mesma maneira. Voa
longe nos pensamentos, mas logo volta ao seu mundo quando começa a lembrar de
Thiago, aquele que o fez sofrer profundamente.
"Não! Eu não vou namorar. Não vou deixar que outro filho da mãe pise em mim e me
faça sofrer de novo. Prometi a mim mesmo e não vou quebrar a promessa: não vou
mais me envolver com ninguém. Meu coração não agüenta! Drogaaa!" Pensa. Sente
seus olhos se encherem de lágrimas. Uma lágrima vai rolando de seu olho direito.
Ele sente o quentinho da gota em seu rosto, descendo. Seu peito dói. Fecha os
olhos. Mais algumas lágrimas rolam.
"Nando?!" Grita alguém ao longe. Ele rapidamente seca as lágrimas, dá um sorriso
bem grande e vira-se.
"Nando? Onde você estava o intervalo inteiro? A sua aula já vai começar...."
"Eu tava andando por aí, Amanda. Não tava me sentindo muito bem e resolvi dar
uma volta só pra relaxar".
"Me disseram que você estava meio mal, o que aconteceu?"
"Nada. Só novas fofocas".
"É... A das drogas, né?"
"É" Diz, dando uma respirada bem profunda. "Mas fazer o quê, né? Deixa o povo
falar. Enquanto ficar só na fofoca tá bem, né?"
"Com certeza! Viu, que horas você sai hoje?"
"Acho que umas onze, por que?"
"Eu estava pensando em te chamar pra ir almoçar comigo lá no Habib's hoje. O que
você acha?"
"Não sei, Amanda. Eu tava pensando em sair da "facul" e ir direto pra academia.
Tô precisando malhar um pouco".
"Malhar de barriga vazia? Sei, sei. Às onze eu passo na sua sala".
"Mas..."
"Sem mas, Fernando. Você vai. Tchau".
Amanda tem de sair porque sua aula já está preste a começar. Fernando também tem
de se apressar para sua classe.
Onze horas em ponto. Amanda está na frente da sala de aula de seu amigo,
esperando que ele saia. O sinal bate. Logo, começam a sair desesperados os
alunos, correndo, se estapeando. No meio dessa multidão, sai Nando, com a maior
cara de cansado. Com sua mochila nas costas, cheia de novos livros emprestados
por seu amigo Luis, vai até Amanda e logo saem para almoçar. Como o carro de
Amanda está mais perto, deixa o seu na universidade e vão com o dela.
No meio do caminho para o Habib's, Fernando percebe que sua amiga não está indo
exatamente onde disse que ia.
"Amanda onde você tá indo?"
"Eu tô te levando até o Parque Ibirapuera".
"Pra quê?"
"Porque eu quero conversar com você".
"E por quê você vai me levar até lá sendo que a gente pode conversar aqui ou em
qualquer lugar?"
"Porque eu sei que lá você se sente bem, oras... E porque lá tem um sorvete que
eu adoro". Diz Amanda. Fernando sorri.
Chegando no Parque, eles começam a caminhas. Por alguns minutos, Amanda não fala
nada, deixando Nando esperando.
"O que aconteceu hoje?"
"Como assim?"
"Nando, você pode ser capaz de muita coisa, mas a única coisa que você jamais
vai conseguir fazer em sua vida é mentir pra mim. Eu sei o que aconteceu no
intervalo".
"O que já foram fofocar pra você, hein?"
"Ninguém foi fofocar nada, homem!".
"Então do quê você tá falando, mulher?"
"Eu sei que você tava chorando".
Fernando pára de andar. Amanda continua... "Eu vi você olhando aquele casal e vi
você chorando também. Que foi?".
"Não foi nada. Não se preocupa".
"Nada? Você acha que eu acredito? Fala..."
"Não foi nada mesmo..." Diz meio desanimado.
Amanda pára, olha pra ele, e diz brava:
"Olha aqui! Ou você me fala, ou você me fala. Não tem escolha! Cacete de menino,
viu?"
"Calma! Que menina estressada... Tá, eu falo. Eu estava chorando porque eu me
senti muito sozinho naquela hora. Eu queria estar com alguém... Sabe?"
"Sei. E sei que você fica aí se fazendo de rocha, de super seguro, mas por
dentro é um super bebezão em busca de amor... E também sei que você não vai
atrás de namorado porque você tem medo que eles façam a mesma coisa que aquele
idiota do Thiago fez com você... E sei que você está super triste com tudo o que
estão falando de você, embora viva dizendo que não tem nada a ver. Pensa que eu
não conheço o meu melhor amigo?".
Os olhos de Nando novamente se enchem de lágrimas. Ele se segura ao máximo para
não chorar na frente de Amanda, que, docemente, pegando em suas mãos, diz:
"Pode chorar... Eu tô aqui".
Fernando abraça fortemente a amiga e, silenciosamente, chora as mágoas que há
muito segura. As lágrimas caem em abundância e ele sente uma forte dor dentro de
si. Amanda passa suas mãos nos cabelos dele, como que tentando acalma-lo. Fica
em silêncio, deixando que o outro chore e desabafe tudo o que guarda. Às vezes,
o silêncio é a melhor resposta ou o melhor conforto.
Por alguns minutos, Fernando fica ali, abraçado com a amiga. Já se sentindo
melhor, diz:
"Desculpa, Amanda".
"Desculpar do quê? Eu sabia que estava precisando fazer isso, amigo. Quer me
contar o que acontece?"
Ele balança a cabeça dizendo que "sim". Se dirigem a um banco que vêem ali
perto, para que possam conversar um pouco melhor.
"Eu tenho medo. Ao mesmo tempo que eu quero muito ter um namorado, ter alguém ao
meu lado, eu me sinto meio bloqueado, meio preso. Eu tenho medo do cara me fazer
sofrer e... eu não quero sofrer, Amanda. Não de novo".
"Fê, você já parou pra pensar uma coisa?"
"Você disse a mesma frase que a Juliana... Hehe".
"Então... Meu, quando alguém parte o coração da gente, a tendência é mesmo
generalizar, pensar que todo mundo vai fazer igual, que só nos quer ver sofrer.
É normal isso. Mas, é nessas horas que a gente tem que ver que as coisas não são
bem por aí. Eu, por exemplo, antes de te conhecer namorei o Marcos. O cara me
fez sofrer pra caralho, eu até pensei em me matar... Depois dele, achei que
jamais poderia amar de novo. Então, do nada, quando fui pra boate com você e os
meninos, quem eu conheci? O Juca... E agora eu estou amando de novo. Aliás, eu
tô amando mais e melhor. Entende o que eu quero dizer?"
"Mais ou menos...".
"Pra ser mais explícita, mais direta: se dê uma chance, Fê. Tem tantos caras por
aí que são super gente fina, super carinhosos e estão procurando por um amor.
Você é lindo, doce, inteligentíssimo, sensível... Todo mundo quer um cara assim.
Por que você não dá um tempo nessas suas ficadinhas, nessas suas transas
malucas, e pensa em você? Vai pra boate, se diverte, mas dá um tempo pra sua
cabeça. Não fica com ninguém agora".
"É... Você tá certa. Mas... Então eu devo procurar um amor?"
"Não. Amor não se procura... Se acha!"
***
CAPÍTULO III
O Estranho
Fernando está mudado. Ultimamente, tem ido bastante à boate, mas ao contrário do
que costuma fazer, vai apenas para se divertir com seus amigos e esquecer um
pouco dos problemas. Com todo o stress que vem rolando por causa da faculdade,
tem estado meio afastado do pessoal. Está cheio de trabalhos e projetos que tem
que resolver, e passa a maior parte do tempo em sua casa com dois de seus
colegas de sala, que fazem parte de seu grupo. Coisa que parece ter se
"re-acostumado" é escrever. Toda noite se senta na frente de seu computador e
redige páginas e mais páginas de contos ou histórias que lhe vêm à cabeça. Esses
dias, terminou de escrever um roteiro para um filme que pretende produzir assim
que se formar.
Apesar de toda essa mudanças - visivelmente notada por todos os amigos, que
comentam o tempo inteiro - ele se sente muito só. Pela primeira vez, depois do
traumática relacionamento com Thiago, ele sente que precisa de alguém ao seu
lado, e de preferência que preencha todos os pré-requisitos: bonito, chique e
descolado. Por sinal, já tem alguém em vista... É Victor. Um loirinho que faz
Publicidade na FAAP. Já faz um tempinho estão trocando olhares sempre que se
encontram e, pelo que ouviu de Amanda, também está caidinho por ele. Mas, dessa
vez, Nando quer esperar que o gato tome a iniciativa de vir puxar conversa.
O frio está começando a apertar nessa época do ano. Já não tem como sair de casa
sem um casaco, pelo menos de manhã e à noite. E junto com o frio, está se
aproximando o aniversário de Ana, irmã de Amanda. Juntos, Amanda, Nando,
Ricardo, Marcelo e a mãe de Amanda estão tramando uma super festa surpresa no
salão de festas do prédio. E a coisa está ficando grande. A decoração será toda
feita por uma equipe de som e iluminação e será contratado um bufê. Mal sabe
Ana...
É sexta-feira. A festa está bem perto, é no Sábado. Amanda e Nando combinaram
que vão direto para o shopping depois das aulas para poderem comprar o presente
da menina. E não vai ser fácil, pois Ana tem gostos peculiares e muito difíceis
de acertar. Tendenciosa, nunca que se sabe o que está na moda para ela. A única
coisa que é certa é sua adoração e devoção pela banda inglesa Oasis. Mas essa
informação não ajuda em muito, afinal de contas ela já tem tudo o que foi
lançado deles. O trabalho não vai ser brincadeira.
Por horas e horas os dois amigos vão caminhando pelo shopping entrando em
praticamente todas as lojas à procura de alguma coisa que lhes chame atenção.
Entram aqui, ali, em lojas de música, lojas de roupas... E a cada loja de roupa
que entram, os dois babam. Como são consumistas natos, quem disse que saem de
mãos vazias? Saem com pelo menos duas sacolas nas mãos. Só na TNG saíram com
três sacolas cada um... E na loja da Triton, gastaram horrores. E o presente de
Ana ficou de lado...
Mais de três horas se passaram e os dois ainda estão fechados na loja da M.
Officer. Fernando está sentado num banquinho enquanto Amanda é atendida por um
moço lindo e muito simpático, que lhe mostra cada vez mais roupas. Olhando o
movimento lá fora, Nando vê uma pessoa que reconhece. Fica tentando lembrar-se
de onde seria a tal pessoa. Olha mais um pouco e se toca que é ninguém mais,
ninguém menos do que a própria Ana. É só aí que ele lembra que o objetivo de
estarem ali é o presente da irmã de Amanda. Rapidamente, ele se levanta e
interrompe a compra da amiga.
"Quê isso, Nando!?"
"Quê isso?!?! Amanda, você esqueceu o motivo de estarmos aqui?"
"Não. A gente veio fazer umas comprinhas...".
"Não, invertebrada mental! A gente veio comprar o presente da sua irmã".
"Ah meu Deus!" Diz Amanda lembrando. "O presente. Ai, moço, deixa quieto. Depois
eu compro com você, tá?"
"Vamos?"
"Claro. Claro".
Amanda, toda atrapalhada e afobada, pegas as várias sacolas que deixou num
cantinho no chão, se despede dos vendedores e sai de passo apertado com seu
amigo ao lado. Eles se dirigem à uma loja de eletrônicos, que pensam ser o lugar
certo. Ana é meio molecona, adora computadores e videogames. Os dois olham um
pouco mais, e acabam achando num pedestal como promoção o novo console da
Microsoft, o X-Box.
"Isso ela não tem" Diz Amanda.
"É esse mesmo que eu vou levar".
"E eu?!?!!?" Se desespera.
"Calma, mulher. Você leva uns jogos, né?".
"É verdade. É verdade".
Resolvidos, pegam o tal console e levam ao caixa. Enquanto o moço do balcão vai
passando o produto e os jogos que Amanda comprou, ela e Nando batem um papo meio
descontraído, até Amanda, do nada, dar um puxão na camisa de Fernando, tentando
chamar atenção dele para alguma coisa.
"Quêêêê?"
"Olha lá. Olha lá!".
"O quê?"
"O Victor. O Victor de PP. Olha ele lá" Diz Amanda apontando descaradamente,
praticamente fazendo um escândalo.
"Eu vi".
Com o escândalo de Amanda, Victor acaba olhando para dentro da loja e a vê
apontando para ele e comentando alguma coisa com Fernando, que fica
completamente sem graça.
"Vai falar com ele" Diz Amanda.
Nando fica sem fala, de tão sem jeito. Victor olha e faz cara de bravo.
Fernando, então, lê seus lábios e o vê dizendo: "Que cara idiota". Fica muito
desanimado, mas também bem chateado com Amanda. Se não fosse por ela...
Eles já saíram da loja. Amanda anda na frente de Fernando tentando pedir
desculpas. Tropeça em seus próprios pés, deixa cair algumas sacolas, mas tenta
ser perdoada pelo que fez. Fernando quase não olha para sua cara, até chegarem
no carro, onde ele entra, senta-se na direção e fica olhando para o nada.
"Desculpa, Nando!".
"Você é foda, Amanda. Poxa, precisava fazer aquele escândalo? Minhas chances com
o Victor se foram..."
"Desculpa, Nando".
"Tá. Deixa quieto. Vamos embora que eu tô com fome".
Liga o carro e sai.
Fernando deixa Amanda e volta direto para sua casa, onde pretende ficar horas
deitado na banheira com hidromassagem de seu banheiro. Ele precisa relaxar.
Coloca o CD da Enya de fundo e fica deitado ali, só descansando. Está pensando
na vida, sentindo-se só novamente.
"O que eu daria agora por um cara gostoso e uma transa...". Pensa alto.
Leva sua mão até seu membro e o segura, começando a apertá-lo e acariciá-lo. Vai
ficando excitado com o estímulo. Já com o pau a ponto de bala, começa a se
masturbar com o pênis submerso. Fecha seus olhos e continua os movimentos, de
cima para baixo, lentamente. Para excitar-se ainda mais, tenta imaginar Victor
nu. Em sua imaginação, o rapaz vem e passa a beijá-lo. Fernando quase pode
sentir o calor dos lábios do moreno sobre os seus. Aumenta os movimentos de suas
mãos. Agora, Victor se ajoelha e coloca o membro rijo de Nando em sua boca,
começando uma felação nervosa, com força. O chupa com vontade, como se o
quisesse engolir por inteiro. Nando está mais do que excitado. Então, pela falta
de sexo, e a imaginação fértil, goza um gozo gostoso, denso e abundante que sobe
na água e fica flutuando ali. Ainda de olhos fechados, Fernando descansa a
cabeça na beira da banheira e ali fica por uma hora.
Sábado de manhã. Sorte que não tem aula. Fernando levantou cedo. Está sentado em
sua cama assistindo um de seus DVDs. Não está nem um pouco afim de sair do
quarto. Mas o telefone toca. É Amanda.
"Bom dia, Amanda".
"Bom dia. Nando, eu preciso de você".
"Pra quê? São onze da manhã".
"Eu sei, mas você lembra que a festa da minha irmã começa às três? E eu preciso
de você para os toques finais".
"Ai! É mesmo! Começa às três. Você vem me pegar daqui a meia-hora?".
"Tá".
Nando toma um banho rápido e já trata de pegar uma boa roupa para a festa. Ele
realmente tinha esquecido o fato da festa ser tão cedo, pois o prédio tem
aquelas regras de poder ter barulho só até as dez. Como o combinado, Amanda
passa na hora certa e eles vão direto para o salão, onde Nando fica besta com o
que vê. Marcelo e Ricardo, que estão super bem vestidos, estão dando os últimos
acertos no som e na decoração. O salão está parecendo uma boate. Com certeza,
Ana vai adorar a surpresa.
Por volta de duas horas da tarde, alguns amigos de Ana começam a chegar e entrar
no salão. A aniversariante está sendo despistada por sua mãe, que usou a
desculpa de levá-la ao cabeleireiro. Os amigos parecem não acabar mais. Não são
nem três horas ainda e já tem mais de 20 pessoas, todos na idade entre 15 e 17
anos, com exceção de algumas pessoas da família de Amanda, como duas primas
delas que tem 20 e uma tia de 34, mas que é tão louca quanto qualquer um dali. A
música já toca, porém bem baixinho para não dar na cara. O sinal que estão
esperando é o telefonema da mãe de Amanda, dona Lucia.
Mais gente começa a chegar, e parece que a lista de convidados está quase
completa. As duas únicas pessoas que estão faltando são dona Lucia e um tal de
Alexandre, que Fernando - que ficou responsável pela parte de receber o pessoal
na porta - não conhece.
"Tudo certo aí, Nando?"
"Tudo certo. Amanda, quem é esse Alexandre?"
"Ai, lembra que eu te falei que tenho um primo que é maravilhoso? É ele".
"Ah... Ta... Ele é gay?"
"Ahahahah!" Amanda ri sarcasticamente. "Em seus sonhos, Nando. Aquele cara é
mais hétero que sei lá o quê".
"Tá, eu só perguntei".
"Mas se você quer um gay, ta vendo aquele moreninho magrinho ali, o Jorge, ele
tem 15 anos, nunca ficou com ninguém e é gay".
"E eu tenho cara de berçário?"
Amanda voltou para junto dos outros enquanto Nando esperava na porta. Então,
finalmente, chegou mais um convidado: Alexandre. Mas ele não está sozinho, está
acompanhado de sua namorada Cecília.
"Oi. Sou o Alexandre, primo da Amanda e da Ana. Essa é a Cecília".
"Oi. Sou o Fernando. Prazer".
Nando aperta a mão do primo de sua amiga, um moreno, baixinho (1,78m de altura),
olhos castanhos, um corpo legalzinho mas meio magro, e uma boca até que bonita,
vestindo apenas uma calça jeans e uma blusa moleton azul.Apesar disso, Nando
sente uma coisa estranha correndo por todo seu corpo. Seus joelhos ficam fracos,
e ele dá uma leve inclinada, pois perde um pouco a força. Alexandre não é tão
lindo quanto Amanda descreveu, mas tem alguma coisa nele que mexeu com Fernando.
Mas mexeu mesmo! Nando está sem ar. Cecília está de mãos estendidas esperando
que ele a cumprimente, mas Nando não tira os olhos do cara. Só volta à Terra
quando Amanda chega, aí sim ele cumprimenta Cecília, a linda loira que o
acompanha - o que deixa não deixa Fernando muito feliz.
Assim que Alexandre entra e junta-se aos outros convidados, Fernando sai do
salão. Logo em seguida, sai Amanda.
"Que foi Nando? Cê tá bem, amigo?".
"Não... Tô... Não... É... Tô. Tô bem".
"Mesmo?"
"Mesmo. Eu só preciso de um pouco de ar".
O celular de Amanda toca. É o sinal que estavam esperando. Eles voltam para o
salão e ficam à espera. A música pára, a iluminação também. Já dá para ver a
sombra das duas se aproximando da porta.
"Que bosta, mãe! Me larga! Eu quero dormir". Grita a irmã de Amanda do outro
lado da porta.
"Deixa eu te mostrar uma coisa?".
Assim que a mãe das meninas abre a porta, as luzes e a música são ligadas e
todos gritam "Surpresa!". Ana fica perplexa. Seus olhinhos enchem de lágrimas ao
ver que todos os seus amigos estão ali e que fizeram uma surpresa tão linda. O
primeiro a se manifestar da turma toda é Gregory, o namorado da garota. Ele anda
até ela com uma caixa na mão e diz:
"Parabéns Ana. Esse é meu presente material".
Eles se abraçam.
"Como assim presente material? Tem presente de outro tipo?".
"Tem. EU TE AMO".
Na hora que o rapaz diz isso, ela o abraça com força e chora emocionada. Todos
batem palmas. A festa começa. A música é de primeira qualidade e deixa todo
mundo animado. Até mesmo Fernando não fica parado e se junta no meio da
"criançada" - como ele se refere aos amigos de Ana.
A festa vai passando e parece ser um arraso. Durante o tempo todo, Nando procura
ficar perto de Alexandre e o seca muito, tentando sempre puxar assunto com ele,
que não desgruda de Cecília. Fernando começa a ficar triste. Não consegue
explicar o que está sentindo. De algum modo, aquele desconhecido mexeu com ele
de um modo que há muito ele não sentia. Vê-lo com aquela menina só deixava
Fernando mais pra baixo, e embora tentasse não demonstrar, as pessoas perceberam
que estava diferente, inclusive Alexandre.
No meio da festa, Fernando sai até a varanda. Ele quer ficar sozinho. Fica
pensando. Não consegue entender o que está acontecendo com ele.
"Fernando? Tudo bem?".
"Amanda?! Oi..."
"Quê foi? Você tá tão pra baixo".
"Nada não. Amanda, tem certeza que seu primo não é gay ou bi ou algo assim?"
"Absoluta. Você não viu a menina linda que tá com ele. Espera... Deixa eu
adivinhar .Você tá afim dele".
"Acho que sim. Desculpa".
"Desculpa do quê? Se liga, Nando. Só que... Meu, na boa, desencana".
"Tá. Me deixa sozinho agora?"
"Como você quiser.... Ah! Daqui a pouco, às nove, a gente vai dar uma volta e
acho que vamos naquele barzinho que cê gosta. Quer? Eu combinei com todo mundo.
O Má e o Ri tão embora agora e vão nos encontrar lá".
"Tá. Pode ser".
Fernando passa mais ou menos uma hora ali fora. Nesse tempo a festa vai rolando
e as pessoas saindo. Para não ficar mais chato, ele volta para aproveitar o
final da festa, mas quando vê só estão ele, Amanda, Alexandre, Cecília e mais
duas amigas de Ana ali. A festa acabou. Como o combinado, eles começam a arrumar
a bagunça. Fernando fica para pegar o lixo do chão. Começa a catar os papéis e
copos plásticos. Alexandre se aproxima com um saco de lixo nas mãos.
"Põe aqui".
Nando se assusta.
"Pode pôr aqui. Sua mão tá bem cheia já"
"Obrigado".
"Você tá bem, cara? Percebi que você até saiu da festa"
"Eu só tô meio cansado".
"Ah tá".
Alexandre sai dali. Fernando respira fundo e continua a pegar as coisas.
Depois de tudo limpo, eles resolvem sair. Amanda e Nando vão no carro de Amanda,
enquanto Alexandre e Cecília vão no Audi do primo de Amanda. Ricardo, Marcelo e
Juca já estão no bar esperando por eles.
Já de humor bem mudado, Fernando começa até a fazer piadas com a galera. Eles
riem de tudo, principalmente de coisas que aconteceram no meio da festa. O
pessoal que bebia já tomou umas então estão mais bestas ainda. Nando, que não
bebe nada, procura sempre estar perto de Alexandre, embora o gatinho não lhe dê
a menor bola e só fique de cochichos com a namoradinha.
O papo rola solto e eles parecem estar se divertindo muito. Por meia-hora Xande
e Cecília somem. Isso deixa Fernando meio mal. O pessoal sacou tudo o que está
acontecendo e tenta animá-lo. Mais tarde, os dois voltam à mesa com a maior cara
de "já terminamos" e sentam-se entrando na conversa. Fernando permanece ali por
mais alguns minutos, até não mais agüentar. Como Amanda e Juca foram dar uma
volta, ele se levanta e diz:
"Pessoa, tô vazando"
"Já, Fer?" Diz Ricardo.
"Já".
"Não vai nem esperar a Amanda? Ela ta com a chave do carro dela e o Juca levou a
chave dele, e como viemos com ele..." Tenta explicar Marcelo.
"Não tem problema. Eu vou a pé".
"Eu te levo, cara. Sem zica". Alexandre se oferece.
"Deixa que eu vou sozinho, obrigado. Minha casa é aqui perto". Recusa, mentindo.
A casa de Nando é a dois quilômetros dali.
"Fica quieto. Eu te levo, bobo. Tá frio".
"Não!" Diz nervoso.
Fernando pega seu casado, vira as costas para a mesa e sai andando em direção a
sua casa. Está muito nervoso. Está muito chateado. A vontade dele era voltar,
aceitar a carona e pronto. Mas tem medo de não agüentar e fazer bobagens... Se
pergunta repetidas vezes "O que está acontecendo comigo?", mas nunca encontra
resposta.
Quatro quarteirões pra frente, numa rua praticamente vazia, Fernando nota faróis
de carro se aproximando. Como é São Paulo, ele nem pensa em virar para ver se é
Alexandre. Logo, percebe o carro diminuindo a velocidade. Sente um frio na
barriga, com medo de que seja um assalto. Mas logo, ouve uma voz familiar:
"Hei!".
Nem pára. Ouve o carro sendo desligado, o barulho do freio de mão e a porta
batendo. Percebe alguém vindo atrás dele.
"Fernando, espera!" Grita Alexandre.
"O que?" Diz Fernando, parando finalmente.
"Qual é, cara? Qual o grilo?"
"Não tem grilo nenhum. Eu to indo pra casa, não tá vendo?!".
"Mas eu já disse pra você que te levava".
"E eu já disse que não precisa, não disse?"
"Você é uma pessoa muito estranha, sabia? O que eu te fiz pra você ser tão
grosso comigo?"
"O que você fez? Nada! Esse é o problema". Retoma a caminhada.
Alexandre fica parado. Mais dois quarteirões na frente, o carro passa novamente,
dessa vez bem devagarinho, sem parar, acompanhando os passos de Nando...
"Entra".
"Deixa quieto, Alexandre".
"Entra, meu!"
Ele pára. Olha pra frente, só escuridão. Olha pra trás, mais escuridão. Está bem
frio. Meio que sem escolha, Nando entra no carro.
"Que sacrifício! Tava difícil, hein?"
"Pois é... Me diz uma coisa, você é sempre assim ou só de vez em quando?"
"Como assim?"
"Há quanto tempo cê tá com a Cecília?"
"Você diz... aquela Cecília?"
"Não. A Maria Joanita!!" Diz bravo.
Alexandre começa a rir.
"Ah! É isso então... Você é bobo eu come bosta? Eu e a Cecília somos a-mi-gos!".

"Ah, claro! E você acha que eu vou acreditar nisso? Eu vi a cara de vocês depois
de vocês desaparecerem por meia-hora".
Xande fica em silêncio e logo depois começa a rir novamente. Fernando não ri,
pelo contrário, está mais sério do que nunca. Pergunta qual o motivo da risada.
Alexandre vai parando o riso devagar.
"Você é muito bobão".
"Quer levar um murro no meio da fuça, é?" Diz, já fechando a mão.
"Acho que quem quer é você. Se liga, cara... Será que você não notou nada não?"
"Não!"
"Ai Deus!".
"Quê?"
"Garoto, se liga: eu to afim de você!"
Fernando não esperava ouvir o que ouviu, embora tivesse fantasiado com aquilo
desde o momento em que Alexandre passou pela porta. Alexandre fica olhando meio
que esperando alguma resposta do rapaz. Agora é Fernando quem ri.
"Acho que você não queria ouvir isso, não é?" Diz.
"Cala a boca, vai!"
Dizendo isso, Fernando puxa Alexandre pela camiseta e dá-lhe um beijo
desesperado. Só de sentir os lábios do outro sobre os seus, Nando quase derrete.
Sente seu coração bater mais forte, suas pernas ficarem mais fracas e começa a
suar frio. Vai beijando Xande desejando que aquele momento nunca mais acabe. As
mãos do gatinho vão até os cabelos de Nando acariciando-os. Ele começa a fazer
carinhos. Nunca ninguém tinha feito isso... Suas mãos agora vão para o rosto de
Nando, acariciando levemente. Alguns carros passam na rua com os faróis ligados.
Alguns engraçadinhos dando buzinadinhas e gritam coisas, outro apenas passam e
olham. Os dois não estão nem aí para os outros. Naquele momento são apenas eles
dois.
O beijo parece ser o beijo mais apaixonado. Eles se abraçam com carinho,
querendo ficar cada vez mais perto um do outro. O celular de Alexandre começa a
tocar. Sem parar o beijo, ele leva a mão até o celular e o desliga, não
permitindo que aquele momento seja interrompido.
Nando está completamente fora de si. Está sem noção, sem rumo. Sente que, de
algum modo, é um vitorioso. Sente como se tivesse conquistado o maior prêmio.
Para ele, aqueles beijos estão significando muito mais do que apenas uma ficada.
Ele, estranhamente, sente coisas que pensou que jamais fosse sentir outra vez.
Mas além de despertar esse estranho quentinho no peito, o gatinho da boca
adocicada deixa-o muito excitado. E parece que é recíproco, pois agora ele pega
a mão de Fernando e leva lentamente até sue membro, que se encontra duro feito
rocha. Nando interrompe o beijo e o fica olhando. Alexandre sorri.
"Posso?"
"O quê?"
"Chupar você".
"Aqui?!"
"É. Aqui".
"No carro? No meio da rua?"
"É".
"Não sei... E se..."
Alexandre interrompe a fala de Fernando dando uma lambida safada nos lábios
dele. Nando se cala, enquanto vê o outro abrindo seu zíper e tirando seu pau
para fora.
"Nossa! Que meninão!". Espanta-se Alexandre.
Sem graça, Fernando dá um sorrisinho e não se mexe. Alexandre abaixa-se e, com
cuidado, vai colocando o pau em sua boca quente. A sensação é incrível! Parece
que aquela boca foi feita exatamente para o membro de Fernando. Assim que ele
começa a chupá-lo, Nando vai à loucura. Ninguém o havia chupado daquela maneira
antes... Seu pau parece crescer cada vez mais naquela boca tão pequena, mas
deliciosa. É um tesão quase incontrolável.
Alexandre fica nessa por um bom tempo. Enquanto chupa, tem seu pau acariciado
pela mão de Nando, que também se espanta com o tamanho da "criança". O clima já
está pegando fogo.
"Ei, gatinho... Pare. Pare". Pede Fernando.
"Que foi? Não gostou?".
"Ao contrário. Eu amei. Tô amando. Mas se você não parar eu vou gozar... E eu
não quero fazer isso. Não agora".
"Você quer ir pra algum lugar?"
"Você quer?"
"Mais do que qualquer coisa".
"Tudo bem. Podemos ir até minha casa".
"Beleza. Mas antes eu posso te dizer uma coisa?"
"Claro. Claro. Mas eu tenho que falar uma coisa antes".
"Fale".
"Você é diferente dos outros. Não sei o que é, mas eu fico extremamente sem
graça com você".
"Bom, era mais ou menos o que eu ia dizer. Tipo assim... Parece que eu te
conheço há séculos. Me sinto tão bem com você".
Fernando fica enrubescido e timidamente diz:
"Eu também. Cara, eu nunca fiquei tão sem graça na frente de alguém! Você é
perigoso, viu?"
"Ahaha. Eu? Perigoso? Não.. Só um pouco.."
Eles se beijam novamente e logo seguem para a casa de Fernando. O tempo todo
ficam de mãos dadas e se olhando com olhares bobos. Percebe-se facilmente o
envolvimento que está rolando entre os dois.
Chegando ao prédio, eles entram no elevador. Como não há câmeras por perto e
eles têm 24 andares para subir até a cobertura - casa de Fernando - aproveitam
para trocarem mais uns beijos intensos e apaixonados. Chegam. Entram em
silêncio. Alexandre fica até sem ar ao ver o "pequeno" apartamento de Nando.
Eles vão até o quarto, fecham a porta. Nando pega uma Coca no frigobar embaixo
da tevê e oferece a Xande, que senta-se na cama.
"Isso tudo é seu?" Pergunta Xande.
Fernando balança a cabeça dizendo que sim.
"Uau! Tô besta".
Nando lhe entrega o copo de Coca e liga o som num volume razoável. Xande dá um
ou dois goles e deixa o copo na mesa de cabeceira. Nando gatinha até a cama e
senta-se no chão, pegando nas mãos de Xande, que as segura com força. Fernando
se ajoelha e fica olhando para seu "ficante". Ele se inclina um pouco e beija a
boca de Nando suavemente. Mas logo esse beijo acaba tornando-se um super beijo,
mas que não dura muito tempo, pois é interrompido por Nando.
"Que foi?"
"Agora é minha vez".
"De quê?"
"Não fale. Apenas sinta".
Fernando bate as mãos uma na outra apagando as luzes de seu quarto. Esticando um
pouco seu braço, ele acende um abajur com uma luz bem fraquinha.
"Nossa!"
"Não fale nada, moço" Pede Nando.
Ele se levanta um pouco e volta a beijar Xande ao mesmo tempo em que começa a
tirar seus sapatos, deixando o gatinho descalço. Ainda beijando-o, vai
desabotoando sua própria camisa, ficando com o dorso nu. Alexandre leva sua mão
até seu peito e fica ainda mais excitado em sentir o corpo gostoso de Nando.
Agora Nando pausa o beijo e tira a blusa de Xande, deixando-o sem camisa. Quem
se espanta agora é Fernando... Apesar de mais magro, Xande tem o corpo todo
definido. Começa a beijar seu peito, sua barriga e vai descendo para fazer algo
que não é de seu costume fazer: chupar o pau de Alexandre. Com cuidado, Nando
tira a calça do gato deixando-o só de cueca na cama. A respiração de Xande fica
mais ofegante. Fernando começa a dar beijos no pau do outro ainda, sobre a
cueca. Lentamente, ele tira a cueca liberando um enorme cacete de 23cm, e
grosso. Se aproxima ainda mais e coloca só a cabeça na boca, começando a
chupá-lo com vontade. Xande solta um gemido.
Apesar de não estar muito acostumado com sexo oral, logo Nando pega o jeito e
começa a chupá-lo com a maior destreza, arrancando vários elogios do moreninho.
Não demora muito para que os dois fiquem deitados no chão num perfeito 69.
Enquanto Alexandre devora o membro de Fernando, este, com dificuldade, tenta
chupar sem se engasgar. Mas os dois não permanecem muito nessa posição.
Agora, Fernando está sobre Xande. Está penetrando nele. Já estão de camisinha e
tudo, e na posição frango assado fazem sexo louco. Não desgrudam a boca e Nando
vai bombeando seu pau no cuzinho apertado de Xande. Ele geme e adora! Nando
delira. Sente as mãos do gatinho acariciando seu rosto, suas costas. Está sendo
uma transa diferente. Nela, Nando está mais preocupado em dar prazer do que
receber, ao contrário do que sempre faz.
Mudam de posição. Para deixar Xande mais confortável, Nando deita-se na cama e o
outro vem por cima, cavalgando lentamente, enquanto se masturba e faz com que o
membro de Nando o penetre cada vez mais. O calor aumenta.
Não demora muito para que os dois explodam o gozo ao mesmo tempo. Enquanto Xande
esporra por todo o peito de Fernando, este enche a camisinha com um porra grossa
e intensa. Deitam-se exaustos.
Depois de um certo tempo, eles se levantam e vão ao banheiro limpar-se. Passam
mais tempo beijando-se do que se lavando. Logo voltam para o quarto e ficam na
cama abraçadinhos e em silêncio.
"Você é lindo, sabia?".
Xande ri. "Eu? Você deve estar meio bêbado".
"Eu não bebo. Tô falando sério".
"Na verdade eu tô me perguntando desde o momento em que te beijei... quer
dizer... que você me beijou, o que você viu em mim. O que foi?".
"Primeiro de tudo... Você é lindo! E depois quando eu te vi eu tremi na base,
fiquei sem ar, passei mal. Isso nunca aconteceu comigo".
"Nunca?!"
"É que eu acho que nunca me apaixonei de verdade".
Xande fica em silêncio por um tempo. Olha fixamente nos olhos de Fernando e diz:

"E nem eu".
Eles se beijam apaixonadamente e logo adormecem do mesmo jeito em que estão.
Pela manhã, Nando acorda mais cedo e, aproveitando que sua família foi para a
casa de sua avó - como fazem todos os Domingos - e prepara um café da manhã bem
farto para seu gatinho.
"Bom dia!" Diz Xande vindo até a cozinha enrolado no lençol.
"Bom dia, gato".
Eles se beijam.
"Dormiu bem?"
"Eu dormi com você".
"E o que isso quer dizer?"
"Eu dormi maravilhosamente bem".
Nando sorri e puxa uma cadeira para Xande, ajudando-o a sentar-se. Puxa também
uma cadeira e senta-se ao seu lado.
"Nossa! Você quem preparou tudo isso?"
"Foi. Espero que goste".
Depois desse farto café da manhã, Fernando leva Alexandre até sua casa para que
possa trocar de roupa. Já têm planos para o dia inteiro, e os cumprem
direitinho. Só naquele Domingo eles foram passear no shopping, no parque
Ibirapuera, comer no Habib's... Para terminar o dia, o programa foi bem simples:
uma seção de vídeo na casa de Amanda.
"Oi gente! Vocês sumiram ontem" Diz Amanda convidando-os para entrar.
"Oi Juca".
"Oi Fernando. Oi Alexandre. Onde vocês foram?"
"Bom... A tia Lucia tá aí, Mani?" Pergunta Alexandre.
"Não, Xande. Por quê?"
"É que... Bom, eu e o Fernando passamos uma noite maravilhosa... juntos... na
casa dele e eu não queria que ela ficasse sabendo".
Amanda pára e fica boquiaberta".
"Gente, tô boba. Você também é? Ah Xande! Por que você nunca me disse, meu?"
"Eu nunca tive a chance, Amanda. Mas agora..."
"Agora ele tá comigo, que sou seu amigo e ele pode dizer" Diz Fernando.
"Gente, que legal! Ai que tudo! Tô feliz. Mas vocês estão namorando?".
Silêncio total. Eles se entreolham, mas não sabem o que responder.
"Então, gente, vamos ver um filme?" Diz Juca quebrando o silêncio.
Durante toda a tarde o pessoal fica vendo alguns filmes que foram locados.
Fernando não queria que o tempo passasse, pois ele sabe que pela manhã Xande
terá que ir embora para o Rio de Janeiro - visto que ele veio apenas para
visitar Ana. As horas vão passando e Nando vai ficando cada vez mais triste,
pois sente que dessa vez ele encontrou uma pessoa diferente de todas as outras
com quem tinha se relacionado... Dessa vez ele sente que as coisas mudaram.
Claro, estranha um pouco, afinal já tem um bom tempo que não sabe o que é se
apaixonar.
Dez horas da noite. Alexandre e Fernando estão dentro do carro, bem em frente ao
prédio de Nando. Eles se olham. Nando segura bem forte as mãos de Xande...
"Quando eu vou te ver?" Pergunta.
"Não sei, Fê. Não tenho previsão de volta".
"Por quê?"
"Não sei. Por que, você tinha planos?"
Nando fica quieto por alguns instantes, sentindo uma dorzinha no coração.
"Só imaginei que...".
"Que talvez a gente pudesse ter um namoro?"
"É..."
"Você não acha que tá muito cedo pra isso?".
"Não sei. Eu só sei que eu quero muito te ver logo".
"Calma, moço. Vamos com calma nisso".
Por um momento, Nando se sente que perdeu uma grande chance. Porém, logo lhe vem
à memória um pequeno detalhe...
"Ei! Já sei!"
"Nossa... Calma. Que foi?"
"Eu já sei. No final de semana que vem eu tô indo pro Rio fazer uns trabalhos
para a Slam. A gente vai fazer umas fotos por lá. Vai ser na Quinta-feira, e vai
acabar pegando a Sexta. O que você acha de eu passar o final de semana contigo?"

"Tudo! Eu acho tudo de bom! Agora... é melhor você subir, gatinho".
"Você não vai subir?"
"Não. Prefiro ficar por aqui..."
"Até parece. Eu te levo".
"Não precisa. Eu combinei com a Amanda e ela já vem vindo".
"Mesmo? Eu te levo, na boa..."
"Pode deixar. Sobe que o povo deve estar te esperando. Depois eu te ligo,
gatinho".
Eles se beijam apaixonadamente se despedindo. Algo dentro de Fernando o diz que
aquela história ainda vai muito longe. Ele sabe, de algum modo, que o sentimento
é recíproco e que o que sente por Alexandre não é apenas uma simples atração.
Atração ele já sentiu por muitos outros... Mas Alexandre o pega em outro
sentido. Ele se sente completamente enfeitiçado apenas com sua presença. É
paixão. E ele sabe que pode virar amor. E quer que vire amor. Talvez, um trauma superado.

Fim













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José de Alencar







CINCO MINUTOS




Texto proveniente de:
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A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.

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Texto scanneado e passado por processo de reconhecimento óptico de caracteres (OCR) por Renato Lima <rlima@elogica.com.br>, graças a doação a partir da Cognitive Software do seu excelente Cuneiform <http://www.orcr.com>.

Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para <bibvirt@futuro.usp.br>.

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SINOPSE

No ônibus, ele tocou sem querer a mão de sua vizinha. E a surpresa: não houve resistência ao seu gosto. Do rosto oculto por um véu, nada se conseguia ver. Quem seria aquela misteriosa mulher? Depois do encontro, ainda ressoavam em sua memória as últimas palavras de moça: "Não te esqueças de mim". Até que um dia, num baile...

Cinco Minutos
José de Alencar

A D...

I

É uma história curiosa a que lhe vou contar, minha prima. Mas é uma história e não um romance.
Há mais de dois anos, seriam seis horas da tarde, dirigime ao Rocio para tomar o ônibus de Andaraí.
Sabe que sou o homem menos pontual que há neste mundo; entre os meus imensos defeitos e as minhas poucas qualidades, não conto a pontualidade, essa virtude dos reis e esse mau costume dos ingleses.
Entusiasta da liberdade, não posso admitir de modo algum que um homem se escravize ao seu relógio e regule as suas ações pelo movimento de uma pequena agulha de aço ou pelas oscilações de uma pêndula.
Tudo isto quer dizer que, chegando ao Rocio, não vi mais ônibus algum ; o empregado a quem me dirigi respondeu :
— Partiu há cinco minutos.
Resigneime e esperei pelo ônibus de sete horas. Anoiteceu.
Fazia uma noite de inverno fresca e úmida; o céu estava calmo, mas sem estrelas.
A hora marcada chegou o ônibus e apresseime a ir tomar o meu lugar.
Procurei, como costumo, o fundo do carro, a fim de ficar livre das conversas monótonas dos recebedores, que de ordinário têm sempre uma anedota insípida a contar ou uma queixa a fazer sobre o mau estado dos caminhos.
O canto já estava ocupado por um monte de sedas, que deixou escaparse um ligeiro farfalhar, conchegandose para darme lugar.
Senteime; prefiro sempre o contato da seda à vizinhança da casimira ou do pano.
O meu primeiro cuidado foi ver se conseguia descobrir o rosto e as formas que se escondiam nessas nuvens de seda e de rendas.
Era impossível.
Além de a noite estar escura, um maldito véu que caía de um chapeuzinho de palha não me deixava a menor esperança.
Resigneime e assentei que o melhor era cuidar de outra coisa.
Já o meu pensamento tinhase lançado a galope pelo mundo da fantasia, quando de repente fui obrigado a voltar por uma circunstância bem simples.
Senti no meu braço o contato suave de um outro braço, que me parecia macio e aveludado como uma folha de rosa.
Quis recuar, mas não tive ânimo; deixeime ficar na mesma posição e cismei que estava sentado perto de uma mulher que me amava e que se apoiava sobre mim.
Pouco a pouco fui cedendo àquela atração irresistível e reclinandome insensivelmente; a pressão tornouse mais forte; senti o seu ombro tocar de leve o meu peito; e a minha mão impaciente encontrou uma mãozinha delicada e mimosa, que se deixou apertar a medo.
Assim, fascinado ao mesmo tempo pela minha ilusão e por este contato voluptuoso, esquecime, a ponto que, sem saber o que fazia, inclinei a cabeça e colei os meus lábios ardentes nesse ombro, que estremecia de emoção.
Ela soltou um grito, que foi tomado naturalmente como susto causado pelos solavancos do ônibus, e refugiouse no canto.
Meio arrependido do que tinha feito, volteime como para olhar pela portinhola do carro, e, aproximandome dela, disselhe quase ao ouvido :
— Perdão!
Não respondeu; conchegouse ainda mais ao canto.
Tomei uma resolução heróica.
— Vou descer, não a incomodarei mais.
Ditas estas palavras rapidamente, de modo que só ela ouvisse, inclineime para mandar parar.
Mas senti outra vez a sua mãozinha, que apertava docemente a minha, como para impedirme de sair.
Está entendido que não resisti e que me deixei ficar; ela conservavase sempre longe de mim, mas tinhame abandonado a mão, que eu beijava respeitosamente.
De repente veiome uma idéia. Se fosse feia! se fosse velha! se fosse uma e outra coisa!
Fiquei frio e comecei a refletir.
Esta mulher, que sem me conhecer me permitia o que só se permite ao homem que se ama, não podia deixar com efeito de ser feia e muito feia.
Não lhe sendo fácil achar um namorado de dia, ao menos agarravase a este, que de noite e às cegas lhe proporcionara o acaso.
É verdade que essa mão delicada, essa espádua aveludada... Ilusão! Era a disposição em que eu estava!
A imaginação é capaz de maiores esforços ainda.
Nesta marcha, o meu espírito em alguns instantes tinha chegado a uma convicção inabalável sobre a fealdade de minha vizinha.
Para adquirir a certeza renovei o exame que tentara a princípio: porém, ainda desta vez, foi baldado; estava tão bem envolvida no seu mantelete e no seu véu, que nem um traço do rosto traía o seu incógnito.
Mais uma prova! Uma mulher bonita deixase admirar e não se esconde como uma pérola dentro da sua ostra.
Decididamente era feia, enormemente feia!
Nisto ela fez um movimento, entreabrindo o seu mantelete, e um bafejo suave de aroma de sândalo exalouse.
Aspirei voluptuosamente essa onda de perfume, que se infiltrou em minha alma como um eflúvio celeste.
Não se admire, minha prima; tenho uma teoria a respeito dos perfumes.
A mulher é uma flor que se estuda, como a flor do campo, pelas suas cores, pelas suas folhas e sobretudo pelo seu perfume.
Dada a cor predileta de uma mulher desconhecida, o seu modo de trajar e o seu perfume favorito, vou descobrir com a mesma exatidão de um problema algébrico se ela é bonita ou feia.
De todos estes indícios, porém, o mais seguro é o perfume; e isto por um segredo da natureza, por uma lei misteriosa da criação, que não sei explicar.
Por que é que Deus deu o aroma mais delicado à rosa, ao heliotrópio, à violeta, ao jasmim, e não a essas flores sem graça e sem beleza, que só servem para realçar as suas irmãs?
É decerto por esta mesma razão que Deus só dá à mulher linda esse tato delicado e sutil, esse gosto apurado, que sabe distinguir o aroma mais perfeito...
Já vê, minha prima, porque esse odor de sândalo foi para mim como uma revelação.
Só uma mulher distinta, uma mulher de sentimento, sabe compreender toda a poesia desse perfume oriental, desse hatchiss do olfato, que nos embala nos sonhos brilhantes das Mil e uma Noites (1), que nos fala da Índia, da China, da Pérsia, dos esplendores da Ásia e dos mistérios do berço do sol.
O sândalo é o perfume das odaliscas de Stambul e das huris do profeta; como as borboletas que se alimentam de mel, a mulher do Oriente vive com as gotas dessa essência divina.
_________________
(1) Mil e uma Noites: coleção de contos da Literatura Oriental, estruturados da seguinte forma: diz a lenda que o Rei Shahryar, descobrindo que uma mulher lhe fora infiel, mata-a, bem como a todas as outras que lhe servem de esposa. Uma delas, entretanto, Sherezade, concebe um plano para escapar da morte: todas as noites conta ao rei metade de uma estória. Curioso por saber seu final, o soberano vai indefinidamente adiando a execução de Sherezade que, assim, salva sua vida. Os contos de Mil e uma Noites reproduzem as estórias que Sherezade contou ao rei.
Seu berço é de sândalo ; seus colares, suas pulseiras, o seu leque, são de sândalo; e, quando a morte vem quebrar o fio dessa existência feliz, é ainda em uma urna de sândalo que o amor guarda as suas cinzas queridas.
Tudo isto me passou pelo pensamento como um sonho, enquanto eu aspirava ardentemente essa exalação fascinadora, que foi a pouco e pouco desvanecendose.
Era bela!
Tinha toda a certeza; desta vez era uma convicção profunda e inabalável.
Com efeito, uma mulher de distinção, uma mulher de alma elevada, se fosse feia, não dava sua mão a beijar a um homem que podia repelila quando a conhecesse; não se expunha ao escárnio e ao desprezo.
Era bela!
Mas não a podia ver, por mais esforços que fizesse.
O ônibus parou; uma outra senhora ergueuse e saiu.
Senti a sua mão apertar a minha mais estreitamente; vi uma sombra passar diante de meus olhos no meio do rugeruge de um vestido, e quando dei acordo de mim, o carro rodava e eu tinha perdido a minha visão.
Ressoavame ainda ao ouvido uma palavra murmurada, ou antes suspirada quase imperceptivelmente:
— Non ti scordar di me! (1)...
Lanceime fora do ônibus; caminhei à direita e à esquerda; andei como um louco até nove horas da noite.
Nada!




II

QUINZE dias se passaram depois de minha aventura.
Durante este tempo é escusado dizerlhe as extravagâncias que fiz.
Fui todos os dias a Andaraí no ônibus das sete horas, para ver se encontrava a minha desconhecida; indaguei de todos os passageiros se a conheciam e não obtive a menor informação.
Estava a braços com uma paixão, minha prima, e com uma paixão de primeira força e de alta pressão, capaz de fazer vinte milhas por hora.
Quando saía, não via ao longe um vestido de seda preta e um chapéu de palha que não lhe desse caça, até fazêlo chegar à abordagem.
_____________
(1) "Non ti scordar di me!" — Não te esqueças de mim!: verso extraído da ópera Il Trovatore, composta por G. Verdi em 1853.
No fim descobria alguma velha ou alguma costureira desjeitosa e continuava tristemente o meu caminho, atrás dessa sombra impalpável, que eu procurava havia quinze longos dias, isto é, um século para o pensamento de um amante.
Um dia estava em um baile, triste e pensativo, como um homem que ama uma mulher e que não conhece a mulher que ama.
Recosteime a uma porta e dai via passar diante de mim uma miríade brilhante e esplêndida, pedindo a todos aqueles rostos indiferentes um olhar, um sorriso, que me desse a conhecer aquela que eu procurava.
Assim preocupado, quase não dava fé do que se passava junto de mim, quando senti um leque tocar meu braço, e uma voz que vivia no meu coração, uma voz que cantava dentro de minha alma, murmurou :
— Non ti scordar di me!...
Volteime.
Corri um olhar pelas pessoas que estavam junto de mim, e apenas vi uma velha que passeava pelo braço de seu cavalheiro, abanandose com um leque.
— Será ela, meu Deus? pensei horrorizado
E, por mais que fizesse, os meus olhos não se podiam destacar daquele rosto cheio de rugas.
A velha tinha uma expressão de bondade e de sentimento que devia atrair a simpatia; mas naquele momento essa beleza moral, que iluminava aquela fisionomia inteligente, pareceume horrível e até repugnante.
Amar quinze dias uma sombra, sonhála bela como um anjo, e por fim encontrar uma velha de cabelos brancos, uma velha coquette e namoradeira!
Não, era impossível! Naturalmente a minha desconhecida tinha fugido antes que eu tivesse tempo de vêla.
Essa esperança consoloume ; mas durou apenas um segundo.
A velha falou e na sua voz eu reconheci, apesar de tudo, apesar de mim mesmo, o timbre doce e aveludado que ouvira duas vezes.
Em face da evidência não havia mais que duvidar. Eu tinha amado uma velha, tinha beijado a sua mão enrugada com delírio, tinha vivido quinze dias de sua lembrança.
Era para fazerme enlouquecer ou rir; não me ri nem enlouqueci, mas fiquei com um tal tédio e um aborrecimento de mim mesmo que não posso exprimir.
Que peripécias, que lances, porém, não me reservava ainda esse drama, tão simples e obscuro!
Não distingui as primeiras palavras da velha logo que ouvi a sua voz; foi só passado o primeiro espanto que percebi o que dizia.
— Ela não gosta de bailes.
— Pois admira, replicou o cavalheiro ; na sua idade!
— Que quer! não acha prazer nestas festas ruidosas e nisto mostra bem que é minha filha.
A velha tinha uma filha e isto podia explicar a semelhança extraordinária da voz. Agarreime a esta sombra, como um homem que caminha no escuro.
Resolvime a seguir a velha toda à noite, até que ela se encontrasse com sua filha : desde este momento era o meu fanal, a minha estrela polar.
A senhora e o seu cavalheiro entraram na saleta da escada. Separado dela um instante pela multidão, ia seguila.
Nisto ouço uma voz alegre dizer da saleta:
— Vamos, mamã!
Corri, e apenas tive tempo de perceber os folhos de um vestido preto, envolto num largo burnous (1) de seda branca, que desapareceu ligeiramente na escada.
Atravessei a saleta tão depressa como me permitiu a multidão, e, pisando calos, dando encontrões à direita e à esquerda, cheguei enfim à porta da saída,
O meu vestido preto sumiuse pela portinhola de um cupê, que partiu a trote largo.
Voltei ao baile desanimado; a minha única esperança era a velha; por ela podia tomar informações, saber quem era a minha desconhecida, indagar o seu nome e a sua morada, acabar enfim com este enigma, que me matava de emoções violentas e contrárias.
Indaguei dela.
Mas como era possível designar uma velha da qual eu só sabia pouco mais ou menos a idade?
Todos os meus amigos tinham visto muitas velhas, porém não tinham olhado para elas.
Retireime triste e abatido, como um homem que se vê em luta contra o impossível.
De duas vezes que a minha visão me tinha aparecido, só me restavam uma lembrança, um perfume e uma palavra!
Nem sequer um nome!
A todo momento pareciame ouvir na brisa da noite essa frase do Trovador, tão cheia de melancolia e de sentimento, que resumia para mim toda uma história.
Desde então não se representava uma só vez esta ópera que eu não fosse ao teatro, ao menos para ter o prazer de ouvila repetir.
A princípio, por uma intuição natural, julguei que ela devia, como eu, admirar essa sublime harmonia de Verdi, que devia também ir sempre ao teatro.
O meu binóculo examinava todos os camarotes com uma atenção meticulosa; via moças bonitas ou feias, mas nenhuma delas me fazia palpitar o coração.
_____________________
(1) burnous: agasalho muito amplo, semelhante à vestimenta usada pelos árabes.
Entrando uma vez no teatro e passando a minha revista costumada, descobri finalmente na terceira ordem sua mãe, a minha estrela, o fio de Ariadne (1) que me podia guiar neste labirinto de dúvidas.
A velha estava só, na frente do camarote, e de vez em quando voltavase para trocar uma palavra com alguém sentado no fundo.
Senti uma alegria inefável.
O camarote próximo estava vazio; perdi quase todo o espetáculo a procurar o cambista incumbido de vendêlo. Por fim acheio e subi de um pulo as três escadas.
O coração queria saltarme quando abri a porta do camarote e entrei.
Não me tinha enganado; junto da velha vi um chapeuzinho de palha com um véu preto rocegado, que não me deixava ver o rosto da pessoa a quem pertencia.
Mas eu tinha adivinhado que era ela; e sentia um prazer indefinível em olhar aquelas rendas e fitas, que me impediam de conhecêla, mas que ao menos lhe pertenciam.
Uma das fitas do chapéu tinha caído do lado do meu camarote, e, em risco de ser visto, não pude susterme e beijeia a furto.
Representavase a Traviata (2) e era o último ato; o espetáculo ia acabar, e eu ficaria no mesmo estado de incerteza.
Arrastei as cadeiras do camarote, tossi, deixei cair o binóculo, fiz um barulho insuportável, para ver se ela voltava o rosto.
A platéia pediu silêncio; todos os olhos procuraram conhecer a causa. do rumor; porém ela não se moveu; com a cabeça meio inclinada sobre a coluna, em uma lânguida inflexão, parecia toda entregue ao encanto da música.
Tomei um partido.
Encosteime à mesma coluna e, em voz baixa, balbuciei estas palavras :
— Não me esqueço!
Estremeceu e, baixando rapidamente o véu, conchegou ainda mais o largo burnous de cetim branco.
Cuidei que ia voltarse, mas enganeime ; esperei muito tempo, e debalde.
Tive então um movimento de despeito e quase de raiva; depois de um mês que eu amava sem esperança, que eu guardava a maior fidelidade à sua sombra, ela me recebia friamente.
Revolteime.
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(1) Fio de Ariadne: com esta expressão, Alencar indica que a mãe da moça servia de pista para o encontro da filha. A metáfora origina-se na Mitologia grega, onde Ariadne fornece a Teseu um fio de jóias com o qual o herói escapa do labirinto do Minotauro.

(2) Traviata: opera composta em 1853 por G. Verdi, compositor italiano que, nesta peça, adaptou para o palco o romance de Alexandre Dumas Filho A Dama das Camélias.

— Compreendo agora, disse eu em voz baixa e como falando a um amigo que estivesse a meu lado, compreendo por que ela me foge, por que conserva esse mistério ; tudo isto não passa de uma zombaria cruel, de uma comédia, em que eu faço o papel de amante ridículo. Realmente é uma lembrança engenhosa! Lançar em um coração o germe de um amor profundo ; alimentálo de tempos a tempos com uma palavra, excitar a imaginação pelo mistério; e depois, quando esse namorado de uma sombra, de um sonho, de uma ilusão, passear pelo salão a sua figura triste e abatida, mostrálo a suas amigas como uma vítima imolada aos seus caprichos e escarnecer do louco! É espirituoso! O orgulho da mais vaidosa mulher deve ficar satisfeito!
Enquanto eu proferia estas palavras, repassadas de todo o fel que tinha no coração, a Charton (1) modulava com a sua voz sentimental essa linda ária final da Traviata, interrompida por ligeiros acessos de uma tosse seca.
Ela tinha curvado a cabeça e não sei se ouvia o que eu lhe dizia ou o que a Charton cantava; de vez em quando as suas espáduas se agitavam com um tremor convulsivo, que eu tomei injustamente por um movimento de impaciência.
O espetáculo terminou, as pessoas do camarote saíram e ela, levantando sobre o chapéu o capuz de seu manto, acompanhouas lentamente.
Depois, fingindo que se tinha esquecido de alguma coisa, tornou a entrar no camarote e estendeume a mão.
— Não saberá nunca o que me fez sofrer, disseme com a voz trêmula.
Não pude verlhe o rosto; fugiu, deixandome o seu lenço impregnado desse mesmo perfume de sândalo e todo molhado de lágrimas ainda quentes.
Quis seguila; mas ela fez um gesto tão suplicante que não tive ânimo de desobedecerlhe.
Estava como dantes; não a conhecia, não sabia nada a seu respeito; porém ao menos possuía alguma coisa dela; o seu lenço era para mim uma relíquia sagrada.
Mas as lágrimas? Aquele sofrimento de que ela falava? O que queria dizer tudo isto?
Não compreendia; se eu tinha sido injusto, era uma razão para não continuar a esconderse de mim. Que queria dizer este mistério, que parecia obrigada a conservar?
Todas estas perguntas e as conjeturas a que elas davam lugar não me deixaram dormir.
Passei uma noite de vigília a fazer suposições, cada qual mais desarrazoada.

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(1) Charton: cantora lírica do século passado que, na apresentação da Traviata, representava a personagem feminina central, a cortesã Marguerite Gautier, acometida de tuberculose.


III

RECOLHENDOME no dia seguinte, achei em casa uma carta.
Antes de abrila conheci que era dela, porque lhe tinha imprimido esse suave perfume que a cercava como uma auréola.
Eis o que dizia :
"Julga mal de mim, meu amigo ; nenhuma mulher pode escarnecer de um nobre coração como o seu.
Se me oculto, se fujo, é porque há uma fatalidade que a isto me obriga. E só Deus sabe quanto me custa este sacrifício, porque o amo!
Mas não devo ser egoísta e trocar sua felicidade por um amor desgraçado.
Esqueçame."
Reli não sei quantas vezes esta carta, e, apesar da delicadeza de sentimento que parecia ter ditado suas palavras, o que para mim se tornava bem claro é que ela continuava a fugirme.
Essa assinatura era a mesma letra que marcava o seu lenço e à qual eu, desde a véspera, pedia debalde um nome!
Fosse qual fosse esse motivo que ela chamava uma fatalidade e que eu supunha ser apenas escrúpulo, senão uma zombaria, o melhor era aceitar o seu conselho e fazer por esquecêla.
Refleti então friamente sobre a extravagância da minha paixão e assentei que com efeito precisava tomar uma resolução decidida.
Não era possível que continuasse a correr atrás de um fantasma que se esvaecia quando ia tocálo.
Aos grandes males os grandes remédios, como diz Hipócrates (1). Resolvi fazer uma viagem.
Mandei selar o meu cavalo, meti alguma roupa em um saco de viagem, embrulheime no meu capote e saí, sem me importar com a manhã de chuva que fazia.
Não sabia para onde iria. O meu cavalo levoume para o EngenhoVelho e eu daí me encaminhei para a Tijuca, onde cheguei ao meiodia, todo molhado e fatigado pelos maus caminhos.
Se algum dia se apaixonar, minha prima, aconselholhe as viagens como um remédio soberano e talvez o único eficaz.
Deramme um excelente almoço no hotel; fumei um charuto e dormi doze horas, sem ter um sonho, sem mudar de lugar.
_________________
(1) Hipócrates: personagem grego considerado "Pai da Medicina" pela quantidade e qualidade dos escritos que deixou sobre a arte médica.
Quando acordei, o dia despontava sobre as montanhas da Tijuca.
Uma bela manhã, fresca e rociada das gotas de orvalho, desdobrava o seu manto de azul por entre a cerração, que se desvanecia aos raios do sol.
O aspecto desta natureza quase virgem, esse céu brilhante, essa luz esplêndida, caindo em cascatas de ouro sobre as encostas dos rochedos, serenoume completamente o espírito.
Fiquei alegre, o que havia muito tempo não me sucedia.
O meu hóspede, um inglês franco e cavalheiro, convidoume para acompanhálo à caça; gastamos todo o dia a correr atrás de duas ou três marrecas e a bater as margens da Restinga.
Assim passei nove dias na Tijuca, vivendo uma vida estúpida quanto pode ser: dormindo, caçando e jogando bilhar.
Na tarde do décimo dia, quando já me supunha perfeitamente curado e estava contemplando o sol, que se escondia por detrás dos montes, e a lua, que derramava no espaço a sua luz doce e acetinada, fiquei triste de repente.
Não sei que caminho tomavam as minhas idéias; o caso é que daí a pouco descia a serra no meu cavalo, lamentando esses nove dias, que talvez me tivessem feito perder para sempre a minha desconhecida.
Acusavame de infidelidade, de traição; a minha fatuidade diziame que eu devia ao menos terlhe dado o prazer de verme.
Que importava que ela me ordenasse que a esquecesse? Não me tinha confessado que me amava, e não devia eu resistir e vencer essa fatalidade, contra a qual ela, fraca mulher, não podia lutar?
Tinha vergonha de mim mesmo; achava-me egoísta, covarde, irrefletido, e revoltavame contra tudo, contra o meu cavalo que me levara à Tijuca, e o meu hóspede, cuja amabilidade ali me havia demorado.
Com esta disposição de espírito cheguei à cidade, mudei de traje e ia sair, quando o meu moleque me deu uma carta.
Era dela.
Causoume uma surpresa misturada de alegria e de remorso :

"Meu amigo.
Sintome com coragem de sacrificar o meu amor à sua felicidade; mas ao menos deixeme o consolo de amálo.
Há dois dias que espero debalde vêlo passar e acompanhálo de longe com um olhar! Não me queixo; não sabe nem deve saber em que ponto de seu caminho o som de seus passos faz palpitar um coração amigo.
Parto hoje para Petrópolis, donde voltarei breve; não lhe peço que me acompanhe, porque devo serlhe sempre uma desconhecida, uma sombra escura que passou um dia pelos sonhos dourados de sua vida.
Entretanto eu desejava vêlo ainda uma vez, apertar a sua mão e dizerlhe adeus para sempre."

"C."

A carta tinha a data de 3; nós estávamos a 10; havia oito dias que ela partira para Petrópolis e que me esperava.
No dia seguinte embarquei na Prainha e fiz essa viagem da baía, tão pitoresca, tão agradável e ainda tão pouco apreciada.
Mas então a majestade dessas montanhas de granito, a poesia desse vasto seio de mar, sempre alisado como um espelho, os grupos de ilhotas graciosas que bordam a baía, nada disto me preocupava.
Só tinha uma idéia... chegar; e o vapor caminhava menos rápido do que meu pensamento.
Durante a viagem pensava nessa circunstância que a sua carta me revelara, e faziame por lembrar de todas as ruas por onde costumava passar, para ver se adivinhava aquela onde ela morava e donde todos os dias me via sem que eu suspeitasse.
Para um homem como eu, que andava todo o dia desde a manhã até a noite, a ponto de merecer que a senhora, minha prima, me apelidasse de Judeu Errante, este trabalho era improfícuo.
Quando cheguei a Petrópolis, eram cinco horas da tarde; estava quase noite.
Entrei nesse hotel suíço, ao qual nunca mais voltei, e enquanto me serviam um magro jantar, que era o meu almoço, tomei informações.
— Têm subido estes dias muitas famílias? perguntei eu ao criado.
— Não, senhor.
— Mas, há coisa de oito dias não vieram da cidade duas senhoras?
— Não estou certo.
— Pois indague, que preciso saber e já ; isto o ajudará a obter informações.
A fisionomia sisuda do criado expandiuse ao tinir da moeda e a língua adquiriu a sua elasticidade natural.
— Talvez o senhor queira falar de uma senhora já idosa que veio acompanhada de sua filha?
— É isso mesmo.
— A moça pareceme doente; nunca a vejo sair.
— Onde está morando?
— Aqui perto, na rua de...
— Não conheço as ruas de Petrópolis; o melhor é acompanharme e vir mostrarme a casa,
— Sim senhor.
O criado seguiume e tomamos por uma das ruas agrestes da cidade alemã.




IV

A noite estava escura.
Era uma dessas noites de Petrópolis, envoltas em nevoeiro e cerração.
Caminhávamos mais pelo tato do que pela vista, dificilmente distinguíamos os objetos a uma pequena distância; e muitas vezes, quando o meu guia se apressava, o seu vulto perdiase nas trevas.
Em alguns minutos chegamos em face de um pequeno edifício construído a alguns passos do alinhamento, e cujas janelas estavam esclarecidas por uma luz interior.
É ali.
— Obrigado.
O criado voltou e eu fiquei junto dessa casa, sem saber o que ia fazer.
A idéia de que estava perto dela, que via a luz que a esclarecia, que tocava a relva que ela pisara, faziame feliz.
É coisa singular, minha prima! O amor que é insaciável e exigente e não se satisfaz com tudo quanto uma mulher pode dar, que deseja o impossível, às vezes contentase com um simples gozo d'alma, com uma dessas emoções delicadas, com um desses nadas, dos quais o coração faz um mundo novo e desconhecido.
Não pense, porém, que eu fui a Petrópolis só para contemplar com enlevo as janelas de um chalé; não; ao passo que sentia esse prazer, refletia no meio de vêla e falarlhe.
Mas como?...
Se soubesse todos os expedientes, cada qual mais extravagante, que inventou a minha imaginação! Se visse a elaboração tenaz a que se entregava o meu espírito para descobrir um meio de dizerlhe que eu estava ali e a esperava!
Por fim achei um; se não era o melhor, era o mais pronto.
Desde que chegara, tinha ouvido uns prelúdios de piano, mas tão débeis que pareciam antes tirados por uma mão distraída que roçava o teclado, do que por uma pessoa que tocasse.
Isto me fez lembrar que ao meu amor se prendia a recordação de uma bela música de Verdi; e foi quanto bastou.
Cantei, minha prima, ou antes assassinei aquela linda romanza; os que me ouvissem tomarmeiam por algum furioso; mas ela me compreenderia.
E de fato, quando eu acabei de estropiar esse trecho magnífico de harmonia e sentimento, o piano, que havia emudecido, soltou um trilo brilhante e sonoro, que acordou os ecos adormecidos no silêncio da noite.
Depois daquela cascata de sons majestosos, que se precipitavam em ondas de harmonia do seio daquele turbilhão de notas que se cruzavam, deslizou plangente, suave e melancólica uma voz que sentia e palpitava, exprimindo todo o amor que respira a melodia sublime de Verdi.
Era ela que cantava!
Oh! não posso pintarlhe, minha prima, a expressão profundamente triste, a angústia de que ela repassou aquela frase de despedida :
Non ti scordar di me.
Addio!...

Partiame a alma.
Apenas acabou de cantar, vi desenharse uma sombra em uma das janelas; saltei a grade do jardim; mas as venezianas descidas não me permitiam ver o que se passava na sala.
Senteime sobre uma pedra e esperei.
Não se ria, D... ; estava resolvido a passar ali a noite ao relento, olhando para aquela casa e alimentando a esperança de que ela viria ao menos com uma palavra compensar o meu sacrifício.
Não me enganei.
Havia meia hora que a luz da sala tinha desaparecido e que toda a casa parecia dormir, quando se abriu uma das portas do jardim e eu vi ou antes pressenti a sua sombra na sala.
Recebeume com surpresa, sem temor, naturalmente, e como se eu fosse seu irmão ou seu marido. É porque o amor puro tem bastante delicadeza e bastante confiança para dispensar o falso pejo, o pudor de convenção de que às vezes costumam cercálo.
— Eu sabia que sempre havias de vir, disseme ela.
— Oh! não me culpes! se soubesses!
— Eu culparte? Quando mesmo não viesses, não tinha o direito de queixarme.
— Por que não me amas!
— Pensas isto? disseme com uma voz cheia de lágrimas.
— Não! não!... Perdoa!
— Perdôote, meu amigo, como já te perdoei uma vez; julgas que te fujo, que me oculto de ti, porque não te amo e, entretanto, não sabes que a maior felicidade para mim seria poder darte a minha vida.
— Mas então por que esse mistério?
— Esse mistério, bem sabes, não é uma coisa criada por mim e sim pelo acaso ; se o conservo, é porque, meu amigo..., tu não me deves amar.
— Não te devo amar! Mas eu amote!...
Ela recostou a cabeça ao meu ombro e eu senti uma lágrima cair sobre meu seio.
Estava tão perturbado, tão comovido dessa situação incompreensível, que me senti vacilar e deixeime cair sobre o sofá.
Ela sentouse junto de mim; e, tomandome as duas mãos, disseme um pouco mais calma:
— Tu dizes que me amas!
— Jurote!
— Não te iludes talvez?
— Se a vida não é uma ilusão, respondi, penso que não, porque a minha vida agora és tu, ou antes, a tua sombra.
— Muitas vezes tomase um capricho por amor; tu não conheces de mim, como dizes, senão a minha sombra!...
— Que me importa? ..
— E se eu fosse feia? disse ela, rindo.
— Tu és bela como um anjo! Tenho toda a certeza.
— Quem sabe?
— Pois bem; convenceme, disse eu, passandolhe o braço pela cintura e procurando levála para uma sala vizinha, donde filtravam os raios de uma luz.
Ela desprendeuse do meu braço.
A sua voz tornouse grave e triste.
— Escuta, meu amigo ; falemos seriamente. Tu dizes que me amas ; eu o creio, eu o sabia antes mesmo que me dissesses. As almas como as nossas quando se encontram, se reconhecem e se compreendem. Mas ainda é tempo; não julgas que mais vale conservar uma doce recordação do que entregarse a um amor sem esperança e sem futuro?...
— Não, mil vezes não! Não entendo o que queres dizer; o meu amor, o meu, não precisa de futuro e de esperança, porque o tem em si, porque viverá sempre!...
— Eis o que eu temia; e, entretanto, eu sabia que assim havia de acontecer; quando se tem a tua alma, amase uma só vez.
— Então por que exiges de mim um sacrifício que sabes ser impossível?
— Porque, disse ela com exaltação, porque, se há uma felicidade indefinível em duas almas que ligam sua vida, que se confundem na mesma existência, que só têm um passado e um futuro para ambas, que desde a flor da idade até à velhice caminham juntas para o mesmo horizonte, partilhando os seus prazeres e as suas mágoas, revendose uma na outra até o momento em que batem as asas e vão abrigarse no seio de Deus, deve ser cruel, bem cruel, meu amigo, quando, tendose apenas encontrado, uma dessas duas almas irmãs fugir deste mundo, e a outra, viúva e triste, for condenada a levar sempre no seu seio uma idéia de morte, a trazer essa recordação, que, como um crepe de luto, envolverá a sua bela mocidade, a fazer do seu coração, cheio de vida e de amor, um túmulo para guardar as cinzas do passado! Oh! deve ser horrível!...
A exaltação com que falava tinhase tornado uma espécie de delírio; sua voz, sempre tão doce e aveludada, parecia alquebrada pelo cansaço da respiração.
Ela caiu sobre o meu seio, agitandose convulsivamente em um acesso de tosse.




V

ASSIM ficamos muito tempo imóveis, ela, com a fronte apoiada sobre o meu peito, eu, sob a impressão triste de suas palavras.
Por fim ergueu a cabeça; e, recobrando a sua serenidade disseme com um tom doce e melancólico:
— Não pensas que melhor é esquecer do que amar assim?
— Não! Amar, sentirse amado, é sempre um gozo imenso e um grande consolo para a desgraça. O que é triste, o que é cruel, não é essa viuvez da alma separada de sua irmã, não; aí há um sentimento que vive, apesar da morte, apesar do tempo. É, sim, esse vácuo do coração que não tem uma afeição no mundo e que passa como um estranho por entre os prazeres que o cercam.
— Que santo amor, meu Deus! Era assim que eu sonhava ser amada! ...
— E me pedias que te esquecesse!...
— Não! não! Amame; quero que me ames ao menos...
— Não me fugirás mais?
— Não.
— E me deixarás ver aquela que eu amo e que não conheço? perguntei, sorrindo.
— Desejas?
— Suplicote!
— Não sou eu tua?...
Lanceime para a saleta onde havia luz e coloquei o lampião sobre a mesa do gabinete em que estávamos.
Para mim, minha prima, era um momento solene; toda essa paixão violenta, incompreensível, todo esse amor ardente por um vulto de mulher, ia depender talvez de um olhar.
E tinha medo de ver esvaecerse, como um fantasma em face da realidade, essa visão poética de minha imaginação, essa criação que resumia todos os tipos.
Foi, portanto, com uma emoção extraordinária que, depois de colocar a luz, volteime.
Ah!...
Eu sabia que era bela; mas a minha imaginação apenas tinha esboçado o que Deus criara.
Ela olhavame e sorria.
Era um ligeiro sorriso, uma flor que se desfolhava nos seus lábios, um reflexo que iluminava o seu lindo rosto.
Seus grandes olhos negros fitavam em mim um desses olhares lânguidos e aveludados que afagam os seios d'alma.
Um anel de cabelos negros brincavalhe sobre o ombro, fazendo sobressair a alvura diáfana de seu colo gracioso.
Tudo quanto a arte tem sonhado de belo e de voluptuoso desenhavase naquelas formas soberbas, naqueles contornos harmoniosos que se destacavam entre as ondas de cambraia de seu roupão branco.
Vi tudo isto de um só olhar, rápido, ardente e fascinado! Depois fui ajoelharme diante dela e esquecime a contemplála.
Ela me sorria sempre e se deixava admirar.
Por fim tomoume a cabeça entre as mãos e seus lábios fecharamme os olhos com um beijo.
— Amame, disse.
O sonho esvaeceuse.
A porta da sala fechouse sobre ela, tinhame fugido.
Voltei ao hotel.
Abri a minha janela e senteime ao relento.
A brisa da noite traziame de vez em quando um aroma de plantas agrestes que me causava íntimo prazer.
Fazia lembrarme da vida campestre, dessa existência doce e tranqüila que se passa longe das cidades, quase no seio da natureza.
Pensava como seria feliz, vivendo com ela em algum canto isolado, onde pudéssemos abrigar o nosso amor em um leito de flores e de relva.
Fazia na imaginação um idílio encantador e sentiame tão feliz que não trocaria a minha cabana pelo mais rico palácio da terra.
Ela me amava.
Só essa idéia embelezava tudo para mim; a noite escura de Petrópolis pareciame poética e o murmurejar triste das águas do canal tornavaseme agradável.
Uma coisa, porém, perturbava essa felicidade; era um ponto negro, uma nuvem escura que toldava o céu da minha noite de amor.
Lembravame daquelas palavras tão cheias de angústia e tão sentidas, que pareciam explicar a causa de sua reserva para comigo: havia nisto um quer que seja que eu não compreendia.
Mas esta lembrança desaparecia logo sob a impressão de seu sorriso, que eu tinha em minh'alma, de seu olhar, que eu guardava no coração, e de seus lábios, cujo contato ainda sentia.
Dormi embalado por estes sonhos e só acordei quando um raio de sol, alegre e travesso, veio baterme nas pálpebras e darme o bom dia.
O meu primeiro pensamento foi ir saudar a minha casinha; estava fechada.
Eram oito horas.
Resolvi dar um passeio para disfarçar a minha impaciência; voltando ao hotel, o criado disseme terem trazido um objeto que recomendaram me fosse entregue logo.
Em Petrópolis não conhecia ninguém; devia ser dela.
Corri ao meu quarto e achei sobre a mesa uma caixinha de paucetim; na tampa havia duas letras de tartaruga incrustadas : C. L.
A chave estava fechada em uma sobrecarta com endereço a mim; dispusme a abrir a caixa com a mão trêmula e tomado por um triste pressentimento.
Pareciame que naquele cofre perfumado estava encerrada a minha vida, o meu amor, toda a minha felicidade.
Abri.
Continha o seu retrato, alguns fios de cabelos e duas folhas de papel escritas por ela e que li de surpresa em surpresa.




VI


EIS o que ela me dizia:
"Devote uma explicação, meu amigo.
Esta explicação é a história da minha vida, breve história, da qual escreveste a mais bela página.
Cinco meses antes do nosso primeiro encontro completava eu os meus dezesseis anos, a vida começava a sorrirme.
A educação rigorosa que me dera minha mãe, me conservara menina até àquela idade, e foi só quando ela julgou dever correr o véu que ocultava o mundo aos meus olhos, que eu perdi as minhas idéias de infância e as minhas inocentes ilusões.
A primeira vez que fui a um baile, fiquei deslumbrada no meio daquele turbilhão de cavalheiros e damas, que girava em torno de mim sob uma atmosfera de luz, de música, de perfumes.
Tudo me causava admiração; esse abandono com que as mulheres se entregavam ao seu par de valsa, esse sorriso constante e sem expressão que uma moça parece tomar na porta da entrada para só deixálo à saída, esses galanteios sempre os mesmos e sempre sobre um tema banal, ao passo que me excitavam a curiosidade, faziam desvanecer o entusiasmo com que tinha acolhido a notícia que minha mãe me dera da minha entrada nos salões.
Estavas nesse baile; foi a primeira vez que te vi.
Reparei que nessa multidão alegre e ruidosa tu só não dançavas nem galanteavas, e passeavas pelo salão como um espectador mudo e indiferente, ou talvez como um homem que procurava uma mulher e só via toilettes.
Compreendite e, durante muito tempo, seguite com os olhos; ainda hoje me lembro dos teus menores gestos, da expressão do teu rosto e do sorriso de fina ironia que às vezes fugiate pelos lábios.
Foi a única recordação que trouxe dessa noite, e quando adormeci, os meus doces sonhos de infância, que, apesar do baile, vieram de novo pousar nas alvas cortinas de meu leito, apenas foram interrompidos um instante pela tua imagem, que me sorria.
No dia seguinte reatei o fio de minha existência, feliz, tranqüila e descuidosa, como costuma ser a existência de uma moça aos dezesseis anos.
Algum tempo depois fui a outros bailes e ao teatro, porque minha mãe, que guardara a minha infância, como um avaro esconde o seu tesouro, queria fazer brilhar a minha mocidade.
Quando cedia ao seu pedido e me ia aprontar, enquanto preparava o meu simples traje, murmurava: — Talvez ele esteja.
E esta lembrança, não só me tornava alegre, mas fazia com que procurasse parecer bela, para te merecer um primeiro olhar.
Ultimamente era eu quem, cedendo a um sentimento que não sabia explicar, pedia a minha mãe para irmos a um divertimento, só na esperança de encontrarte.
Nem suspeitavas então que, entre todos aqueles vultos indiferentes, havia um olhar que te seguia sempre e um coração que adivinhava os teus pensamentos, que se expandia quando te via sorrir e contraíase quando uma sombra de melancolia anuviava o teu semblante.
Se pronunciavam o teu nome diante de mim, corava e na minha perturbação julgava que tinham lido esse nome nos meus olhos ou dentro de minh'alma, onde eu bem sabia que ele estava escrito.
E, entretanto, nem sequer ainda me tinhas visto; se teus olhos haviam passado alguma vez por mim, tinha sido em um desses momentos em que a luz se volta para o íntimo, e se olha, mas não se vê.
Consolavame, porém, que algum dia o acaso nos reuniria, e então não sei o que me dizia que era impossível não me amares.
O acaso deuse, mas quando a minha existência já se tinha completamente transformado.
Ao sair de um desses bailes, apanhei uma pequena constipação, de que não fiz caso. Minha mãe teimava que eu estava doente, e eu achavame apenas um pouco pálida e sentia às vezes um ligeiro calafrio, que eu curava, sentandome ao piano e tocando alguma música de bravura.
Um dia, porém, acheime mais abatida; tinha as mãos e os lábios ardentes, a respiração era difícil, e ao menor esforço umedeciaseme a pele com uma transpiração que me parecia gelada.
Atireime sobre um sofá e, com a cabeça recostada ao colo de minha mãe, caí em um letargo que não sei quanto tempo durou. Lembrome somente que, no momento mesmo em que ia despertando dessa sonolência que se apoderara de mim, vi minha mãe, sentada à cabeceira de meu leito, chorando, e um homem dizialhe algumas palavras de consolo, que eu ouvi como em sonho:
— Não desespere, minha senhora; a ciência não é infalível, nem os meus diagnósticos são sentenças irrevogáveis.
Pode ser que a natureza e as viagens a salvem. Mas é preciso não perder tempo.
O homem partiu.
Não tinha compreendido as suas palavras, às quais não ligava o menor sentido.
Passando um instante, ergui tranqüilamente os olhos para minha mãe, que escondeu o lenço e tragou em silêncio o seu pranto e os seus soluços.
— Tu choras, mamãe?
— Não, minha filha... não... não é nada.
— Mas tu estás com os olhos cheios de lágrimas!... disse eu assustada.
— Ah! sim!... uma notícia triste que me contaram há pouco... sobre uma pessoa... que tu não conheces.
— Quem é este senhor que estava aqui?
— É o Dr. Valadão, que te veio visitar.
— Então eu estou muito doente, boa mamãe?
— Não, minha filha, ele assegurou que não tens nada; é apenas um incômodo nervoso.
E minha querida mãe, não podendo mais conter as lágrimas que saltavam dos olhos, fugiu, pretextando uma ordem a dar.
Então, à medida que a minha inteligência ia saindo do letargo, comecei a refletir sobre o que se tinha passado.
Aquele desmaio tão longo, aquelas palavras que eu ouvira ainda entre as névoas de um sono agitado, as lágrimas de minha mãe e a sua repentina aflição, o tom condoído com que o médico lhe falara.
Um raio de luz esclareceu de repente o meu espírito.
Estava desenganada.
O poder da ciência, o olhar profundo, seguro, infalível, desse homem que lê no corpo humano como em um livro aberto, tinha visto no meu seio um átomo imperceptível.
E esse átomo era o verme que devia destruir as fontes da vida, apesar dos meus dezesseis anos, apesar de minha organização, apesar de minha beleza e dos meus sonhos de felicidade!"
Aqui terminava a primeira folha, que eu acabei de ler entre as lágrimas que me inundavam as faces e caíam sobre o papel.
Era este o segredo de sua estranha reserva; era a razão por que me fugia, por que se ocultava, por que ainda na véspera dizia que se tinha imposto o sacrifício de nunca ser amada por mim.
Que sublime abnegação, minha prima! E, como eu me sentia pequeno e mesquinho à vista desse amor tão nobre!



VII


CONTINUEI a ler :
"Sim, meu amigo!...
Estava condenada a morrer; estava atacada dessa moléstia fatal e traiçoeira, cujo dedo descarnado nos toca no meio dos prazeres e dos risos, nos arrasta ao leito, e do leito ao túmulo, depois de ter escarnecido da natureza, transfigurando as suas belas criações em múmias animadas.
É impossível descreverte o que se passou então em mim; foi um desespero mudo e concentrado, mas que me prostrou em uma atonia profunda; foi uma angústia pungente e cruel.
As rosas da minha vida apenas se entreabriam e já eram bafejadas por um hálito infetado; já tinham no seio o germe de morte que devia fazêlas murchar!
Meus sonhos de futuro, minhas tão risonhas esperanças, meu puro amor, que nem sequer ainda tinha colhido o primeiro sorriso, este horizonte, que há pouco me parecia tão brilhante, tudo isto era uma visão que ia sumirse, uma luz que lampejava prestes a extinguirse.
Foi preciso um esforço sobrehumano para esconder de minha mãe a certeza que eu tinha sobre o meu estado e para gracejar dos seus temores, que eu chamava imaginários.
Boa mãe! Desde então só viveu para consagrarse exclusivamente à sua filha, para envolvêla com esse desvelo e essa proteção que Deus deu ao coração materno, para abrigarme com suas preces, sua solicitude e seus carinhos, para lutar à força de amor e de dedicação contra o destino.
Logo no dia seguinte fomos para Andaraí, onde ela alugara uma chácara, e aí, graças a seus cuidados, adquiri tanta saúde, tanta força, que me julgaria boa se não fosse a sentença fatal que pesava sobre mim.
Que tesouro de sentimento e de delicadeza que é um coração de mãe, meu amigo! Que tato delicado, que sensibilidade apurada, possui esse amor sublime!
Nos primeiros dias, quando ainda estava muito abatida e era obrigada a agasalharme, se visses como ela pressentia as rajadas de um vento frio antes que ele agitasse os renovos dos cedros do jardim, como adivinhava a menor neblina antes que a primeira gota umedecesse a laje do nosso terraço!
Fazia tudo por distrairme; brincava comigo como uma camarada de colégio; achava prazer nas menores coisas para excitarme a imitála; tornavase menina e obrigavame a ter caprichos.
Enfim, meu amigo, se fosse a dizerte tudo, escreveria um livro e esse livro deves ter lido no coração de tua mãe, porque todas as mães se parecem.
Ao cabo de um mês tinha recobrado a saúde para todos, exceto para mim, que às vezes sentia um quer que seja como uma contração, que não era dor, mas que me dizia que o mal estava ali, e dormia apenas.
Foi nesta ocasião que te encontrei no ônibus de Andaraí; quando entravas, a luz do lampião iluminoute o rosto e eu te reconheci.
Faze idéia que emoção sentira quando te sentaste junto de mim.
O mais tu sabes; eu te amava e era tão feliz de terte ao meu lado, de apertar a tua mão, que nem me lembrava como te devia parecer ridícula uma mulher que, sem te conhecer, te permitia tanto.
Quando nos separamos, arrependime do que tinha feito.
Com que direito ia eu perturbar a tua felicidade, condenarte a um amor infeliz e obrigarte a associar tua vida a uma existência triste, que talvez não te pudesse dar senão os tormentos de seu longo martírio?!
Eu te amava; mas, já que Deus não me tinha concedido a graça de ser tua companheira neste mundo, não devia ir roubar ao teu lado e no teu coração o lugar que outra mais feliz, porém menos dedicada, teria de ocupar.
Continuei a amarte, mas impusme a mim mesma o sacrifício de nunca ser amada, por ti.
Vês, meu amigo, que não era egoísta e preferia a tua à minha felicidade. Tu farias o mesmo, estou certa.
Aproveitei o mistério do nosso primeiro encontro e esperei que alguns dias te fizessem esquecer essa aventura e quebrassem o único e bem frágil laço que te prendia a mim.
Deus não quis que acontecesse assim; vendote só em um baile, tão triste, tão pensativo, procurando um ser invisível, uma sombra e querendo descobrir os seus vestígios em algum dos rostos que passavam diante de ti, senti um prazer imenso.
Conheci que tu me amavas; e, perdoa, fiquei orgulhosa dessa paixão ardente, que uma só palavra minha havia criado, desse poder do meu amor, que, por uma força de atração inexplicável, tinhate ligado à minha sombra.
Não pude resistir.
Aproximeime, dissete uma palavra sem que tivesses tempo de verme; foi essa mesma palavra que resume todo o poema do nosso amor e que, depois do primeiro encontro, era, como ainda hoje, a minha prece de todas as noites.
Sempre que me ajoelho diante do meu crucifixo de marfim, depois de minha oração, ainda com os olhos na cruz e o pensamento em Deus, chamo a tua imagem para pedirte que não te esqueças de mim.
Quando tu te voltaste ao som da minha voz, eu tinha entrado no toilette; e pouco depois saí desse baile, onde apenas acabava de entrar, tremendo da minha imprudência, mas alegre e feliz por te ter visto ainda uma vez.
Deves agora compreender o que me fizeste sofrer no teatro quando me dirigias aquela acusação tão injusta, no momento mesmo em que a Charton cantava a ária da Traviata.
Não sei como não me traí naquele momento e não te disse tudo; o teu futuro, porém, era sagrado para mim, e eu não devia destruílo para satisfação de meu amor próprio ofendido.
No dia seguinte escrevite; e assim, sem me trair, pude ao menos reabilitarme na tua estima; doíame muito que, ainda mesmo não me conhecendo, tivesses sobre mim uma idéia tão injusta e tão falsa.
Aqui é preciso dizerte que no dia seguinte ao do nosso primeiro encontro, tínhamos voltado à cidade, e eu te via passar todos os dias diante de minha janela, quando fazias o teu passeio costumado à Glória.
Por detrás das cortinas, seguiate com o olhar, até que desaparecias no fim da rua, e este prazer, rápido como era, alimentava o meu amor, habituado a viver de tão pouco.
Depois da minha carta tu deixaste de passar dois dias, estava eu a partir para aqui, donde devia voltar unicamente para embarcar no paquete inglês.
Minha mãe, incansável nos seus desvelos, quer levarme à Europa e fazerme viajar pela Itália, pela Grécia, por todos os países de um clima doce.
Ela diz que é para mostrarme os grandes modelos de arte e cultivar o meu espírito, mas eu sei que essa viagem é a sua única esperança, que não podendo nada contra a minha enfermidade, quer ao menos disputarlhe a sua vítima durante mais algum tempo.
Julga que fazendome viajar, sempre me dará mais alguns dias de existência, como se estes sobejos de vida valessem alguma coisa para quem já perdeu a sua mocidade e o seu futuro.
Quando ia embarcar para aqui, lembreime de que talvez não te visse mais e, diante dessa derradeira provança, sucumbi. Ao menos o consolo de dizerte adeus!...
Era o último!
Escrevite segunda vez; admiravame da tua demora, mas tinha uma quase certeza de que havias de vir.
Não me enganei.
Vieste, e toda a minha resolução, toda a minha coragem cedeu, porque, sombra ou mulher, conheci que me amavas como eu te amo.
O mal estava feito.
Agora, meu amigo, peçote por mim, pelo amor que me tens, que reflitas no que te vou dizer, mas que reflitas com calma e tranqüilidade.
Para isto parti hoje de Petrópolis, sem prevenirte, e coloquei entre nós o espaço de vinte e quatro horas e uma distância de muitas léguas.
Desejo que não procedas precipitadamente e que, antes de dizerme uma palavra, tenhas medido todo o alcance que ela deve ter sobre o teu futuro.
Sabes o meu destino, sabes que sou uma vítima, cuja hora está marcada, e que todo o meu amor, imenso, profundo, não te pode dar talvez dentro em bem pouco senão o sorriso contraído pela tosse, o olhar desvairado pela febre e carícias roubadas aos sofrimentos.
É triste; e não deves imolar assim a tua bela mocidade, que ainda te reserva tantas venturas e talvez um amor como o que eu te consagro.
Deixote, pois, meu retrato, meus cabelos e minha história; guardaos como uma lembrança e pensa algumas vezes em mim: beija esta folha muda, onde os meus lábios deixaramte o adeus extremo.
Entretanto, meu amigo, se, como tu dizias ontem, a felicidade é amar e sentirse amado; se te achas com forças de partilhar essa curta existência, esses poucos dias que me restam a passar sobre a terra, se me queres dar esse consolo supremo, único que ainda embelezaria minha vida, vem!
Sim, vem! iremos pedir ao belo céu da Itália mais alguns dias de vida para nosso amor; iremos aonde tu quiseres, ou aonde nos levar a Providência.
Errantes pelas vastas solidões dos mares ou pelos cimos elevados das montanhas, longe do mundo, sob o olhar protetor de Deus, à sombra dos cuidados de nossa mãe, viveremos tanto um como outro, encheremos de tanta afeição os nossos dias, as nossas horas, os nossos instantes, que, por curta que seja a minha existência, teremos vivido por cada minuto séculos de amor e de felicidade.
Eu espero; mas temo.
Esperote como a flor desfalecida espera o raio de sol que deve aquecêla, a gota de orvalho que pode animála, o hálito da brisa que vem bafejála. Porque para mim o único céu que hoje me sorri, são teus olhos; o calor que pode me fazer viver, é o do teu seio.
Entretanto temo, temo por ti, e quase peço a Deus que te inspire e te salve de um sacrifício talvez inútil!
Adeus para sempre, ou até amanhã!"

CARLOTA



VIII


DEVOREI toda esta carta de um lanço de olhos. Minha vista corria sobre o papel como o meu pensamento, sem parar, sem hesitar, poderia até dizer sem respirar.
Quando acabei de ler, só tinha um desejo: era o de ir ajoelharme a seus pés e receber como uma bênção do céu esse amor sublime e santo.
Como sua mãe, lutaria contra o destino, cercálaia de tanto afeto e de tanta adoração, tornaria sua vida tão bela e tão tranqüila, prenderia tanto sua alma à terra, que lhe seria impossível deixála.
Criaria para ela com o meu coração um mundo novo, sem as misérias e as lágrimas deste mundo em que vivemos; um mundo só de ventura, onde a dor e o sofrimento não pudessem penetrar.
Pensava que devia haver no universo algum lugar desconhecido, algum canto de terra ainda puro do hálito do homem, onde a natureza virgem conservaria o perfume dos primeiros tempos da criação e o contato das mãos de Deus quando a formara.
Aí era impossível que o ar não desse vida; que o raio do sol não viesse impregnado de um átomo de fogo celeste; que a água, as árvores, a terra, cheia de tanta seiva e de tanto vigor, não inoculassem na criatura essa vitalidade poderosa da natureza no seu primitivo esplendor.
Iríamos, pois, a uma dessas solidões desconhecidas; o mundo abriase diante de nós e eu sentiame com bastante força e bastante coragem para levar o meu tesouro além dos mares e das montanhas, até achar um retiro onde esconder a nossa felicidade.
Nesses desertos, tão vastos, tão extensos, não haveria sequer vida bastante para duas criaturas que apenas pediam um palmo de terra e um sopro de ar, a fim de poderem elevar a Deus, como uma prece constante, o seu amor tão puro?
Ela davame vinte e quatro horas para refletir e eu não queria nem um minuto, nem um segundo.
Que me importavam o meu futuro e a minha existência se eu os sacrificaria de bom grado para darlhe mais um dia de vida?
Todas estas idéias, minha prima, cruzavamse no meu espírito, rápidas e confusas, enquanto eu fechava na caixinha de paucetim os objetos preciosos que ela encerrava, copiava na minha carteira a sua morada, escrita no fim da carta, e atravessava o espaço que me separava da porta do hotel.
Aí encontrei o criado da véspera.
— A que horas parte a barca da Estrela?
— Ao meiodia.
Eram onze horas; no espaço de uma hora eu faria as quatro léguas que me separavam daquele porto.
Lancei os olhos em torno de mim com uma espécie de desvario.
Não tinha um trono, como Ricardo III (1), para oferecer em troca de um cavalo; mas tinha a realeza do nosso século, tinha dinheiro.
A dois passos da porta do hotel estava um cavalo, que o seu dono tinha pela rédea.
— Comprolhe este cavalo, disse eu, caminhando para ele, sem mesmo perder tempo em cumprimentálo.
— Não pretendia vendêlo, respondeume o homem cortesmente; mas, se o senhor está disposto a dar o preço que ele vale.
— Não questiono sobre o preço; comprolhe o cavalo arreado como está.
O sujeito olhoume admirado; porque, a falar a verdade,os seus arreios nada valiam.
________________
(1) Ricardo III: rei da Inglaterra a quem se atribui a frase: "Meu reino por um cavalo!"
Quanto a mim, já lhe tinha tomado as rédeas da mão; e, sentado no selim, esperava que me dissesse quanto tinha de pagarlhe.
— Não repare, fiz uma aposta e preciso de um cavalo para ganhála.
Isto deulhe a compreender a singularidade do meu ato e a pressa que eu tinha; recebeu sorrindo o preço do seu animal e disse, saudandome com a mão, de longe, porque já eu dobrava a rua:
— Estimo que ganhe a aposta; o animal é excelente!
Na verdade era uma aposta que eu tinha feito comigo mesmo, ou antes com a minha razão, a qual me dizia que era impossível apanhar a barca, e que eu fazia uma extravagância sem necessidade, pois bastava ter paciência por vinte e quatro horas.
Mas o amor não compreende esses cálculos e esses raciocínios próprios da fraqueza humana; criado com uma partícula do fogo divino, ele eleva o homem acima da terra, desprendeo da argila que o envolve e dálhe força para dominar todos os obstáculos, para querer o impossível.
Esperar tranqüilamente um dia para dizerlhe que eu a amava e queria amála com todo o culto e admiração que me inspirava a sua nobre abnegação, me parecia quase uma infâmia.
Seria dizerlhe que tinha refletido friamente, que tinha pesado todos os prós e os contras do passo que ia dar, que havia calculado como um egoísta a felicidade que ela me oferecia.
Não só a minha alma se revoltava contra esta idéia; mas pareciame que ela, com a sua extrema delicadeza de sentimento, embora não se queixasse, sentiria verse o objeto de um cálculo e o alvo de um projeto de futuro.
A minha viagem foi uma corrida louca, desvairada, delirante. Novo Mazzeppa (1), passava por entre a cerração da manhã, que cobria os píncaros da serrania, como uma sombra que fugia rápida e veloz.
Dirseia que alguma rocha colocada em um dos cabeços da montanha tinhase despreendido de seu alvéolo secular e, precipitandose com todo o peso, rolava surdamente pelas encostas.
O galopar do meu cavalo formava um único som, que ia reboando pelas grutas e cavernas e confundiase com o rumor das torrentes.
As árvores, cercadas de névoa, fugiam diante de mim como fantasmas; o chão desaparecia sob os pés do animal; às vezes pareciame que a terra ia faltarme e que o cavalo e cavaleiro rolavam por algum desses abismos imensos e profundos, que devem ter servido de túmulos titânicos.
_____________
(1) Mazzeppa: personagem de Byron, poeta romântica inglês, inspirado no chefe dos cossacos. Segundo a lenda, em sua juventude, Mazzeppa foi amarrado a um cavalo selvagem como punição por ter raptado uma mulher. Como sobreviveu ao castigo, passou a simbolizar o cavaleiro perito e arrojado.
Mas, de repente, entre uma aberta de nevoeiro, eu via a linha azulada do mar e fechava os olhos e atiravame sobre o meu cavalo, gritandolhe ao ouvido a palavra de Byron: — Away! (1)
Ele parecia entenderme e precipitava essa corrida desesperada; não galopava, voava; seus pés, como impelidos por quatro molas de aço, nem tocavam a terra.
Assim, minha prima, devorando o espaço e a distância, foi ele, o nobre animal, abaterse a alguns passos apenas da praia; a coragem e as forças só o tinham abandonado com a vida e no termo da viagem.
Em pé, ainda sobre o cadáver desse companheiro leal, via a coisa de uma milha o vapor que singrava ligeiramente para a cidade.
Aí fiquei, perto de uma hora, seguindo com os olhos essa barca que a conduzia; e quando o casco desapareceu, olhei os frocos de fumaça do vapor, que se enovelaram no ar e que o vento desfazia a pouco e pouco.
Por fim, quando tudo desapareceu e que nada me falava dela, olhei ainda o mar por onde havia passado e o horizonte que a ocultava aos meus olhos.
O sol dardejava raios de fogo; mas eu nem me importava com o sol; todo o meu espírito e os meus sentidos se concentravam em um único pensamento; vêla, vêla em uma hora, em um momento, se possível fosse.
Um velho pescador arrastava nesse momento a sua canoa à praia.
Aproximeime e disselhe :
— Meu amigo, preciso ir à cidade, perdi a barca e desejava que você me conduzisse na sua canoa.
— Mas se eu agora mesmo é que chego!
— Não importa; pagarei o seu trabalho, também o incômodo que isto lhe causa.
— Não posso, não, senhor, não é lá pela paga que eu digo que estou chegando; mas é que passar a noite no mar sem dormir não é lá das melhores coisas; e estou caindo de sono.
— Escute, meu amigo...
— Não se canse, senhor; quando eu digo não, é não; e está dito.
E o velho continuou a arrastar a sua canoa.
— Bem, não falemos mais nisto; mas conversemos.
— Lá isto como o senhor quiser.
— A sua pesca rendelhe bastante?
— Qual! rende nada!...
— Ora digame! Se houvesse um meio de fazerlhe ganhar em um só dia o que pode ganhar em um mês, não enjeitaria decerto?
___________________
(1) Away!: adiante!
— Isto é coisa que se pergunte?
— Quando mesmo fosse preciso embarcar depois de passar uma noite em claro no mar?
— Ainda que devesse remar três dias com três noites, sem dormir nem comer.
— Nesse caso, meu amigo, preparese, que vai ganhar o seu mês de pescaria; leveme à cidade.
— Ah! isto já é outro falar; por que não disse logo?...
— Era preciso explicarme?!
— Bem diz o ditado que é falando que a gente se entende.
— Assim, é negócio decidido. Vamos embarcar?
— Com licença; preciso de um instantinho para prevenir a mulher; mas é um passo lá e outro cá.
— Olhe, não se demore; tenho muita pressa.
— É em um fechar de olhos, disse ele, correndo na direção da vila.
Mal tinha feito vinte passos, parou, hesitou, e por fim voltou lentamente pelo mesmo caminho.
Eu tremia; julgava que se tinha arrependido, que vinha apresentarme alguma nova dificuldade. Chegouse para mim de olhos baixos e coçando a cabeça.
— O que temos, meu amigo? pergunteilhe com uma voz que esforçava por ter calma.
— É que... o senhor disse que pagava um mês...
— Decerto; e, se duvida, disse, levando a mão ao bolso.
— Não, senhor, Deus me defenda de desconfiar do senhor! Mas é que... sim, não vê, o mês agora tem menos um dia que os outros!
Não pude deixar de sorrirme do temor do velho; nós estávamos com efeito, no mês de fevereiro.
— Não se importe com isto; está entendido que, quando eu digo um mês, é um mês de trinta e um dias; os outros são meses aleijados, e não se contam.
— É isso mesmo, disse o velho, rindose da minha idéia; assim como quem diz, um homem sem um braço. Ah!... ah!...
E, continuando a rirse, tomou o caminho de casa e desapareceu.
Quanto a mim, estava tão contente com a idéia de chegar à cidade em algumas horas, que não pude deixar também de rirme do caráter original do pescador.
Contolhe estas cenas e as outras que se lhe seguiram com todas as suas circunstâncias por duas razões, minha prima.
A primeira é porque desejo que compreenda bem o drama simples que me propus traçarlhe ; a segunda é porque tenho tantas vezes repassado na memória as menores particularidades dessa história, tenho ligado de tal maneira o meu pensamento a essas reminiscências, que não me animo a destacar delas a mais insignificante circunstância; pareceme que se o fizesse, separaria uma parcela de minha vida.
Depois de duas horas de espera e de impaciência, embarquei nessa casquinha de noz, que saltou sobre as ondas, impelida pelo braço ainda forte e ágil do velho pescador.
Antes de partir fiz enterrar o meu pobre cavalo; não podia deixar assim exposto às aves de rapina o corpo desse nobre animal, que eu tinha roubado à afeição do seu dono, para imolálo à satisfação de um capricho meu.
Talvez lhe pareça isto uma puerilidade; mas a senhora é mulher, minha prima, e deve saber que, quando se ama como eu amava, temse o coração tão cheio de afeição, que espalha uma atmosfera de sentimento em torno de nós e inunda até os objetos inanimados, quanto mais as criaturas, ainda irracionais, que um momento se ligaram à nossa existência para realização de um desejo.



IX

ERAM seis horas da tarde.
O sol declinava rapidamente e a noite, descendo do céu, envolvia a terra nas sombras desmaiadas que acompanhavam o ocaso.
Soprava uma forte viração de sudoeste, que desde o momento da partida retardava a nossa viagem; lutávamos contra o mar e o vento.
O velho pescador, morto de fadiga e de sono, estava exausto de forças; a sua pá, que a princípio fazia saltar sobre as ondas como um peixe o frágil barquinho, apenas feria agora a flor da água.
Eu, recostado na popa, e com os olhos fitos na linha azulada do horizonte, esperando a cada momento ver desenharse o perfil do meu belo Rio de Janeiro, começava seriamente a inquietarme na minha extravagância e loucura.
À proporção que declinava o dia e que as sombras cobriam o céu, esse vago inexprimível da noite no meio das ondas, a tristeza e melancolia que infunde o sentimento da fraqueza do homem em face dessa solidão imensa de água e de céu, se apoderavam do meu espírito.
Pensava então que teria sido mais prudente esperar o dia seguinte e fazer uma viagem breve e rápida, do que sujeitarme a mil contratempos e mil embaraços, que no fim de contas nada adiantavam.
Com efeito já tinha anoitecido; e, ainda que conseguíssemos chegar à cidade por volta de nove ou dez horas, só no dia seguinte poderia ver Carlota e falarlhe.
De que havia servido, pois, todo o meu arrebatamento, toda a minha impaciência? Tinha morto um animal, tinha incomodado um pobre velho, tinha atirado às mãos cheias dinheiro, que poderia melhor empregar socorrendo algum infortúnio e cobrindo esta obra de caridade com o nome e a lembrança dela.
Concebia uma triste idéia de mim; no meu modo de ver então as coisas, pareciame que eu tinha feito do amor, que é uma sublime paixão, apenas uma estúpida mania; e dizia interiormente que o homem que não domina os seus sentimentos, é um escravo, que não tem o menor merecimento quando pratica um ato de dedicação.
Tinhame tornado filósofo, minha prima, e decerto compreenderá a razão.
No meio da baía, metido em uma canoa, à mercê do vento e do mar, não podendo dar largas à minha impaciência de chegar, não havia senão um modo de sair desta situação, e este era arrependerme do que tinha feito.
Se eu pudesse fazer alguma nova loucura, creio piamente que adiaria o arrependimento para mais tarde, porém era impossível.
Tive um momento a idéia de atirarme à água e procurar vencer a nado a distância que me separava dela; mas era noite, não tinha a luz de Hero (1) para guiarme, e me perderia nesse novo Helesponto.
Foi decerto uma inspiração do céu ou o meu anjo da guarda que me veio advertir que naquela ocasião eu nem sabia mesmo de que lado ficava a cidade.
Resigneime, pois, e arrependime sinceramente.
Dividi com o meu companheiro algumas provisões que tínhamos trazido; e fizemos uma verdadeira colação de contrabandistas ou piratas.
Caí na asneira de obrigálo a beber uma garrafa de vinho do Porto, bebendo eu outra para acompanhálo e fazerlhe as honras da hospitalidade. Julgava que deste modo ele restabeleceria as forças e chegaríamos mais depressa.
Tinhame esquecido de que a sabedoria das nações, ou a ciência dos provérbios, consagra o princípio de que devagar se vai ao longe.
Acabada a nossa magra colação, o pescador começou a remar com uma força e um vigor que me reanimaram a esperança.
Assim, docemente embalado pela idéia de vêla e pelo marulho das ondas, com os olhos fitos na estrela da tarde, que se ia sumindo no horizonte e me sorria como para consolarme, senti a pouco e pouco fecharemseme as pálpebras, e dormi.
Quando acordei, minha prima, o sol derramava seus raios de ouro sobre o manto azulado das ondas: era dia claro.
__________________
(1) Hero: o texto faz alusão a uma lenda grega, segundo a qual Leandro, apaixonado por Hero, todas as noites atravessava a nado o helesponto, guiado por uma fogueira que sua amada acendia.
Não sei onde estávamos; via ao longe algumas ilhas; o pescador dormia na proa, e ressonava como um boto.
A canoa tinha vogado à mercê da corrente; e o remo, que caira naturalmente das mãos do velho, no momento em que ele cedera à força invencível do sono, tinha desaparecido.
Estávamos no meio da baía, sem poder dar um passo, sem poder movernos.
Aposto, minha prima, que a senhora acaba de dar uma risada, pensando na cômica posição em que me achava; mas seria uma injustiça zombar de uma dor profunda, de uma angústia cruel como a que sofri então.
Os instantes, as horas, corriam de decepção em decepção; alguns barcos que passaram perto, apesar dos nossos gritos, seguiram o seu caminho, não podendo supor que com o tempo calmo e sereno que fazia, houvesse sombra de perigo para uma canoa que boiava tão levemente sobre as ondas.
O velho, que tinha acordado, nem se desculpava; mas a sua aflição era tão grande que quase me comoveu; o pobre homem arrancava os cabelos e mordia os beiços de raiva.
As horas correram assim nessa atonia do desespero. Sentidos em face um do outro, talvez culpandonos mutuamente do que sucedia, não proferíamos uma palavra, não fazíamos um gesto.
Por fim veio a noite. Não sei como não fiquei louco, lembrandome de que estávamos a 13, e que o paquete devia partir no dia seguinte.
Não era unicamente a idéia de uma ausência que me afligia; era também a lembrança do mal que ia causarlhe, a ela, que, ignorando o que se passava, me julgaria egoísta, suporia que a havia abandonado e que ficara em Petrópolis, divertindome.
Aterravame com as conseqüências que poderia ter esse fato sobre a sua saúde tão frágil, sobre a sua vida, e me condenava já como assassino.
Lancei um olhar alucinado sobre o pescador e tive ímpetos de abraçálo e atirarme com ele ao mar.
Oh! como sentia então o nada do homem e a fraqueza da nossa raça, tão orgulhosa de sua superioridade e do seu poder!
De que me serviam a inteligência, a vontade e essa força invencível do amor, que me impelia e me dava coragem para arrostar vinte vezes a morte?
Algumas braças d'água e uma pequena distância me retinham e me encadeavam naquele lugar como a um poste; a falta de um remo, isto é, de três palmos de madeira, criava para mim o impossível; um círculo de ferro me cingia, e para quebrar essa prisão, contra a qual toda a minha razão era impotente, bastavame que fosse um ente irracional.
A gaivota, que frisava as ondas com a ponta de suas asas brancas; o peixe, que fazia cintilar um momento seu dorso de escamas à luz das estrelas; o inseto, que vivia no seio das águas e plantas marinhas, eram reis dessa solidão, na qual o homem não podia sequer dar um passo.
Assim, blasfemando contra Deus e sua obra, sem saber o que fazia nem o que pensava, entregueime à Providência; embrulheime no meu capote, deiteime e fechei os olhos, para não ver a noite adiantarse, as estrelas empalidecerem e o dia raiar.
Tudo estava sereno e tranqüilo; as águas nem se moviam; apenas sobre a face lisa do mar passava, uma aragem tênue, que se diria hálito das ondas adormecidas.
De repente, pareceume sentir que a canoa deixara de boiar à discrição e singrava lentamente; julgando que fosse ilusão minha, não me importei, até que um movimento contínuo e regular convenceume.
Afastei a aba do capote e olhei, receando ainda iludirme; não vi o pescador; mas a alguns passos da proa percebi os rolos de espuma que formavam um corpo, agitandose nas ondas.
Aproximeime e distingui o velho pescador, que nadava, puxando a canoa por meio de uma corda que amarrara à cintura, para deixarlhe os movimentos livres.
Admirei essa dedicação do pobre velho, que procurava remediar a sua falta por um sacrifício que eu supunha inútil: não era possível que um homem nadasse assim por muito tempo.
Com efeito, passados alguns instantes, vio parar e saltar ligeiramente na canoa como temendo acordarme; a sua respiração fazia uma espécie de burburinho no seu peito largo e forte.
Bebeu um trago de vinho e com o mesmo cuidado deixouse cair n'água e continuou a puxar a canoa.
Era alta noite quando nesta marcha chegamos a uma espécie de praia, que teria quando muito duas braças. O velho saltou e desapareceu.
Fitando a vista nas trevas, vi uma claridade, que não pude distinguir se era fogo, se luz, senão quando uma porta, abrindose, deixoume ver o interior de uma cabana.
O velho voltou com um outro homem, sentaramse sobre uma pedra e começaram a falar em voz baixa. Senti uma grande inquietação; na verdade, minha prima, só me faltava, para completar a minha aventura, uma história de ladrões.
A minha suspeita, porém, era injusta; os dois pescadores estavam à espera de dois remos que lhes trouxe uma mulher, e imediatamente embarcaram e começaram a remar com uma força espantosa.
A canoa resvalou sobre as ondas, ágil e veloz como um desses peixes de que havia pouco invejava a rapidez.
Erguime para agradecer a Deus, ao céu, às estrelas, às águas, a toda a natureza enfim, o raio de esperança que me enviavam.
Uma faixa escarlate já se desenhava no horizonte; o oriente foise esclarecendo de gradação em gradação, até que deixou ver o disco luminoso do sol.
A cidade começou a erguerse do seio das ondas, linda e graciosa, como uma donzela que, recostada sobre um monte de relva, banhasse os pés na corrente límpida de um rio.
A cada movimento de impaciência que eu fazia, os dois pescadores dobravamse sobre os remos e a canoa voava. Assim nos aproximamos da cidade, passamos entre os navios, e nos dirigimos à Glória, onde pretendia desembarcar, para ficar mais próximo de sua casa.
Em um segundo tinha tomado a minha resolução; chegar, vêla, dizerlhe que a seguia, e embarcarme nesse mesmo paquete em que ela ia partir.
Não sabia que horas eram; mas há pouco havia amanhecido; tinha tempo para tudo, tanto mais que eu só precisava de uma hora. Um crédito sobre Londres e a minha mala de viagem eram todos os meus preparativos; podia acompanhála ao fim do mundo.
Já via tudo corderosa, sorria à minha ventura e gozava da alegre surpresa que ia causarlhe, a ela que já não me esperava.
A surpresa, porém, foi minha.
Quando passava diante de Villegaignon, descobri de repente o paquete inglês: as pás se moviam indolentemente e imprimiam ao navio essa marcha vagarosa do vapor, que parece experimentar as suas forças, para precipitarse a toda a carreira.
Carlota estava sentada sob a tolda, com a cabeça encostada ao ombro de sua mãe e com os olhos engolfados no horizonte, que ocultava o lugar onde tínhamos passado a primeira e última hora de felicidade.
Quando me viu, fez um movimento como se quisesse lançarse para mim; mas contevese, sorriuse para sua mãe, e, cruzando as mãos no peito, ergueu os olhos ao céu, como para agradecer a Deus, ou para dirigirlhe uma prece.
Trocamos um longo olhar, um desses olhares que levam toda a nossa alma e a trazem ainda palpitante das emoções que sentiu noutro coração; uma dessas correntes elétricas que ligam duas vidas em um só fio.
O vapor soltou um gemido surdo; as rodas fenderam as águas; e o monstro marinho, rugindo como uma cratera, vomitando fumo e devorando o espaço com os seus flancos negros, lançouse.
Por muito tempo ainda vi o seu lenço branco agitarse ao longe, como as asas brancas do meu amor, que fugia e voava ao céu.
O paquete sumiuse no horizonte.

X

O resto desta história, minha prima, a senhora conhece, com exceção de algumas particularidades.
Vivi um mês, contando os dias, as horas e os minutos; e tempo corria vagarosamente para mim, que desejava poder devorálo.
Quando tinha durante uma manhã inteira olhado o seu retrato, conversado com ele, e lhe contado a minha impaciência e o meu sofrimento, começava a calcular as horas que faltavam para acabar o dia, os dias que faltavam para acabar a semana e as semanas que ainda faltavam para acabar o mês.
No meio da tristeza que me causara a sua ausência, o que me deu um grande consolo foi uma carta que ela me havia deixado e que me foi entregue no dia seguinte ao da sua partida.
"Bem vês, meu amigo, dizia-me ela, que Deus não quer aceitar o teu sacrifício. Apesar de todo o teu amor, apesar de tua alma, ele impediu a nossa união; poupou-te um sofrimento e a mim talvez um remorso.
Sei tudo quanto fizeste por minha causa e adivinho o resto; parto triste por não te ver, mas bem feliz por sentirme amada, como nenhuma mulher talvez o seja neste mundo."
Esta carta tinha sido escrita na véspera da saída do paquete; um criado que viera de Petrópolis e a quem ela incumbira de entregarme a caixinha com o seu retrato, contoulhe metade das extravagâncias que eu praticara para chegar à cidade no mesmo dia.
Disselhe que me tinha visto partir para a Estrela, depois de perguntar a hora da saída do vapor; e que embaixo da serra referiramlhe como eu tinha morto um cavalo para alcançar a barca e como me embarcara em uma canoa.
Não me vendo chegar, ela adivinhara que alguma dificuldade invencível me retinha, e atribuía isto à vontade de Deus, que não consentia no meu amor.
Entretanto, lendo e relendo a sua carta, uma coisa me admirou; ela não me dizia um adeus, apesar de sua ausência e apesar da moléstia, que podia tornar essa ausência eterna.
Tinhame adivinhado! Ao mesmo tempo que fazia por me dissuadir, estava convencida de que a acompanharia.
Com efeito parti no paquete seguinte para a Europa.
Há de ter ouvido falar, minha prima, se é que ainda não o sentiu, da força dos pressentimentos do amor, ou da segunda vista que tem a alma nas suas grandes afeições.
Vou contarlhe uma circunstância que confirma este fato.
No primeiro lugar onde desembarquei, não sei que instinto, que revelação, me fez correr imediatamente ao correio; pareciame impossível que ela não tivesse deixado alguma lembrança para mim.
E de fato em todos os portos da escala do vapor havia, uma carta que continha duas palavras apenas:
"Sei que tu me segues. Até logo."
Enfim cheguei à Europa e via. Todas as minhas loucuras e os meus sofrimentos foram compensados pelo sorriso de inexprimível gozo com que me acolheu.
Sua mãe dizialhe que eu ficaria no Rio de Janeiro, mas ela nunca duvidara de mim! Esperavame como se a tivesse deixado na véspera, prometendo voltar.
Encontreia muito abatida da viagem; não sofria, mas estava pálida e branca como uma dessas Madonas de Rafael (1), que vi depois em Roma.
Às vezes uma languidez invencível a prostrava; nesses momentos um quer que seja de celeste e vaporoso a cercava, como se a alma exalandose envolvesse o seu corpo.
Sentado ao seu lado, ou de joelhos a seus pés, passava os dias a contemplar essa agonia lenta; sentiame morrer gradualmente, à semelhança de um homem que vê os últimos clarões da luz que vai extinguirse e deixálo nas trevas.
Uma tarde em que ela estava ainda mais fraca, tínhamonos chegado para a varanda.
A nossa casa em Nápoles dava sobre o mar; o sol, transmontando, escondiase nas ondas; um raio pálido e descorado veio enfiarse pela nossa janela e brincar sobre o rosto de Carlota, sentada ou antes deitada em uma conversadeira.
Ela abriu os olhos um momento e quis sorrir ; seus lábios nem tinham força para desfolhar o sorriso.
As lágrimas saltaramme dos olhos; havia muito que eu tinha perdido a fé, mas conservava ainda a esperança; esta desvaneceuse com aquele reflexo do ocaso, que me parecia o seu adeus à vida.
Sentindo as minhas lágrimas molharem as suas mãos, que eu beijava, ela voltouse e fixoume com os seus grandes olhos lânguidos.
Depois, fazendo um esforço, reclinouse para mim e apoiou as mãos sobre o meu ombro.
— Meu amigo, disse ela com voz débil, vou pedirte uma coisa, a última; tu me prometes cumprir?
— Juro, respondilhe eu, com a voz cortada pelos soluços.
— Daqui a bem pouco tempo... daqui a algumas horas talvez... Sim! sinto faltarme o ar!...
_____________________
(1) Madonas de Rafael: quadros de Nossa Senhora, pintados por Rafael, artista da Renascença italiana.
— Carlota!...
— Sofres, meu amigo! Ah! se não fosse isto eu morreria feliz.
— Não fales em morrer!
— Pobre amigo, em que deverei falar então? Na vida?... Mas não vês que a minha vida é apenas um sopro... um instante que breve terá passado?
— Tu te iludes, minha Carlota.
Ela sorriu tristemente.
— Escuta; quando sentires a minha mão gelada, quando as palpitações do meu coração cessarem, prometes receber nos lábios a minha alma?
— Meu Deus!...
— Prometes? sim?...
— Sim.
Ela tornouse lívida; sua voz suspirou apenas:
— Agora!
Aperteia ao peito e colei os meus lábios aos seus. Era o primeiro beijo de nosso amor, beijo casto e puro, que a morte ia santificar.
Sua fronte se tinha gelado, não sentia a sua respiração nem as pulsações de seu seio.
De repente ela ergueu a cabeça. Se visse, minha prima, que reflexo de felicidade e alegria iluminava nesse momento o seu rosto pálido!
— Oh! quero viver! exclamou ela.
E com os lábios entreabertos aspirou com delícia a aura impregnada de perfumes que nos enviava o golfo de Ischia.
Desde esse dia foi pouco a pouco restabelecendose, ganhando as forças e a saúde; sua beleza. reanimavase e expandiase como um botão que por muito tempo privado de sol, se abre em flor viçosa.
Esse milagre, que ela, sorrindo e corando, atribuía ao meu amor, foinos um dia explicado bem prosaicamente por um médico alemão que nos fez uma longa dissertação a respeito da medicina.
Segundo ele dizia, a viagem tinha sido o único remédio e o que nós tomávamos por um estado mortal não era senão a crise que se operava, crise perigosa, que podia matála, mas que felizmente a salvou.
Casamonos em Florença na igreja de Santa Maria Novella.
Percorremos a Alemanha, a França, a Itália e a Grécia; passamos um ano nessa vida errante e nômade, vivendo do nosso amor e alimentandonos de música, de recordações históricas, de contemplações de arte.
Criamos assim um pequeno mundo, unicamente nosso; depositamos nele todas as belas reminiscências de nossas viagens, toda a poesia dessas ruínas seculares em que as gerações que morreram, falam ao futuro pela voz do silêncio; todo o enlevo dessas vastas e imensas solidões do mar, em que a alma, dilatandose no infinito, sentese mais perto de Deus.
Trouxemos das nossas peregrinações um raio de sol do Oriente, um reflexo de lua de Nápoles, uma nesga do céu da Grécia, algumas flores, alguns perfumes, e com isto enchemos o nosso pequeno universo.
Depois, como as andorinhas que voltam com a primavera para fabricar o seu ninho no campanário da capelinha em que nasceram, apenas ela recobrou a saúde e as suas belas cores, viemos procurar em nossa terra um cantinho para esconder esse mundo que havíamos criado.
Achamos na quebrada de uma montanha um lindo retiro, um verdadeiro berço de relva suspenso entre o céu e a terra por uma ponta de rochedo.
Aí abrigamos o nosso amor e vivemos tão felizes que só pedimos a Deus que nos conserve o que nos deu; a nossa existência é um longo dia, calmo e tranqüilo, que começou ontem, mas que não tem amanhã.
Uma linda casa, toda alva e louçã, um pequeno rio saltitando entre as pedras, algumas braças de terra, sol, ar puro, árvores, sombras, ...eis toda a nossa riqueza.
Quando nos sentimos fatigados de tanta felicidade, ela arvorase em dona de casa ou vai cuidar de suas flores; eu fechome com os meus livros e passo o dia a trabalhar. São os únicos momentos em que não nos vemos.
Assim, minha prima, como parece que neste mundo não pode haver um amor sem o seu receio e a sua inquietação, nós não estamos isentos dessa fraqueza.
Ela tem ciúmes de meus livros, como eu tenho de suas flores. Ela diz que a esqueço para trabalhar; eu queixome de que ela ama as suas violetas mais do que a mim.
Isto dura quando muito um dia; depois vem sentarse ao meu lado e dizerme ao ouvido a primeira palavra que balbuciou o nosso amor: — Non ti scordar di me.
Olhamonos, sorrimos e recomeçamos esta história que lhe acabo de contar e que é ao mesmo tempo o nosso romance, o nosso drama e o nosso poema.
Eis, minha prima, a resposta à sua pergunta; eis por que esse moço elegante, como teve a bondade de chamarme, fezse provinciano e retirouse da sociedade, depois de ter passado um ano na Europa.
Podia darlhe outra resposta mais breve e dizerlhe simplesmente que tudo isto sucedeu porque me atrasei cinco minutos.
Desta pequena causa, desse grão de areia, nasceu a minha felicidade; dele podia resultar a minha desgraça. Se tivesse sido pontual como um inglês, não teria tido uma paixão nem feito uma viagem; mas ainda hoje estaria perdendo o meu tempo a passear pela rua do Ouvidor e a ouvir falar de política e teatro.
Isto prova que a pontualidade é uma excelente virtude para uma máquina; mas um grave defeito para um homem.
Adeus, minha prima. Carlota impacientase, porque há muitas horas que lhe escrevo; não quero que ela tenha ciúmes desta carta e que me prive de enviála.

Minas, 12 de agosto.

Abaixo da assinatura havia um pequeno postscriptum de uma letra fina e delicada :
"P. S. — Tudo isto é verdade, D..., menos uma coisa.
Ele não tem ciúmes de minhas flores, nem podia ter, porque sabe que só quando seus olhos não me procuram é que vou visitálas e pedirlhes que me ensinem a fazerme bela para agradálo.
Nisto enganoua; mas eu vingome, roubandolhe um dos meus beijos, que lhe envio nesta carta.
"Não o deixe fugir, prima; iria talvez revelar a nossa felicidade ao mundo invejoso."
CARLOTA





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Macbeth - William Shakespeare
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Macbeth
William Shakespeare

Edição
Ridendo Castigat Mores
Fonte Digital
http://www.jahr.org

Versão para eBook
eBooksBrasil.com

MACBETH

William Shakespeare

ÍNDICE

ATO I
Cena I
Cena II
Cena III
Cena IV
Cena V
Cena VI
Cena VII

ATO II
Cena I
Cena II
Cena III
Cena IV

ATO III
Cena I
Cena II
Cena III
Cena IV
Cena V
Cena VI

ATO IV
Cena I
Cena II
Cena III

ATO V
Cena I
Cena II
Cena III
Cena IV
Cena V
Cena VI
Cena VII

Personagens

DUNCAN, rei da Escócia.
MALCOLM, seu filho
DONALBAIN, seu filho.
MACHBETH, General do exército do rei
BANQUO, General do exército do rei.
MACDUFF, Nobre da Escócia.
ROSS, Nobre da Escócia.
MENTEITH, Nobre da Escócia.
ANGUS, Nobre da Escócia.
CAITHNESS, Nobre da Escócia.
FLEANCE, filho de Banquo.
SIWARD, duque de Northumberland, general do exército inglês.
O jovem Siward, seu filho.
SEYTON, oficial ligado a Macbeth.
Menino, filho de Macduff.
Um médico inglês.
Um médico escocês.
Um sargento.
Um porteiro.
Um velho.
Lady Macbeth
Lady Macduff
Criado de quarto de Lady Macbeth.
Hécate e três bruxas.
Nobres, gentis-homens, oficiais, soldados, assassinos, criados e mensageiros. O fantasma de Banquo e outras aparições.

ATO I
Cena I

Lugar deserto. Trovões e relâmpagos. Entram três bruxas.

PRIMEIRA BRUXA - Quando estaremos à mão com chuva, raio e trovão?
SEGUNDA BRUXA - Depois de calma a baralha e vencida esta batalha.
TERCEIRA BRUXA - Hoje mesmo, então, sem falha.
PRIMEIRA BRUXA - Onde?
SEGUNDA BRUXA - Da charneca ao pé.
TERCEIRA BRUXA - Para encontrarmos Macbeth
PRIMEIRA BRUXA - Graymalkin, não faltarei.
SEGUNDA BRUXA - Paddock chama.
TERCEIRA BRUXA - Depressa!
TODAS - São iguais o belo e o feio; andemos da névoa em meio.
(Saem).

Cena II

Um campo perto de Forres. Alarma dentro. Entram o rei Duncan, Malcolm, Donalbain, Lennox e pessoas do séquito. Encontram um sargento ferido.

DUNCAN - Quem é esse indivíduo ensangüentado? Pelo que mostra, pode dizer algo sobre o estado recente da revolta.
MALCOLM - É o sargento que, como bom e intrépido soldado, me livrou do cativeiro. Salve, valente amigo! Ao rei relata quanto sabes da luta até ao momento
em que saíste dela.
SARGENTO - Duvidoso era o desfecho, como dois cansados nadadores que um no outro se embaraçam, a arte prejudicando mutuamente. O impiedoso Macdonwald,
digno em tudo de ser mesmo um rebelde - que as inúmeras vilanias do mundo em torno dele como enxames esvoaçam - suprimentos das ilhas do oeste recebeu
de quernes e galowglasses; e a fortuna, rindo para sua querela amaldiçoada, mostrou-se prostituta de um rebelde. Mas tudo isso foi fraco em demasia, porque
o bravo Macbeth - merece o título - desdenhando a fortuna, de aço em punho, a fumegar da execução sangrenta, tal como o favorito da bravura, soube um caminho
abrir até postar-se bem na frente do escravo, não lhe tendo apertado a mão nem dito nenhum adeus, enquanto de alto a baixo não o descoseu e em nossos parapeitos
pendurou-lhe a cabeça.
DUNCAN - Oh bravo primo! Que digno gentil-homem!
SARGENTO - Como nascem tempestades terríveis e arrebentam pavorosos trovões do mesmo lado em que o sol principia a levantar-se: da mesma fonte, assim,
de onde o socorro parecia manar, surgiu o alarma. Presta atenção agora, rei da Escócia: mal havia a justiça, redobrada pelo valor, forçado os ágeis quernes
a confiar nos próprios calcanhares, quando o senhor dos noruegueses, tendo percebido a vantagem, com polidas armas e gente fresca de reforço, recomeçou
o assalto.
DUNCAN - E porventura temor não causou isso em nossos cabos Banquo e Macbeth?
SARGENTO - Como os pardais às águias ou a lebre ao leão. Para dizer o que houve, terei de relatar que pareciam canhões com dupla carga reforçados.
Assim eles redobravam no imigo duplos golpes. Se queriam banhar-se em fumegantes feridas, se dar fama a um outro Gólgota, não sei dizê-lo. Mas temo desmaiar;
minhas feridas reclamam por socorro.
DUNCAN - Teu relato te orna tão bem como esses ferimentos; lídimo sabor de honra eles revelam. Ide buscar um cirurgião para ele. (Sai o sargento, acompanhado.)
(Entra Ross.) Quem vem aí?
MALCOLM - O muito digno thane de Ross. Nos olhos dele, quanta pressa! O olhar assim teria quem nos viesse dar notícias de fatos muito estranhos.
ROSS - Que Deus proteja o rei.
DUNCAN - Mui digno thane, de onde vens?
ROSS - Grande rei, venho de Fife, onde as bandeiras norueguesas zombam do céu e deixam fria nossa gente com sua agitação. O soberano norueguês em pessoa,
com terrível número, reforçado pelo thane de Cawdor o traidor desleal e pérfido, deu início a um conflito pavoroso, até que o forte noivo de Belona, à
prova de valor, veio com ele defrontar-se em combate singular, espada contra espada, braço contra braço rebelde, e fez que seu espírito altivo se curvasse.
Em conclusão: a vitória pendeu do nosso lado.
DUNCAN - Grande felicidade!
ROSS - De tal medo que Sweno, o norueguês, paz nos implora. Mas não o deixamos sepultar os mortos sem que, antes, em Saint Colme, dez mil dólares houvesse
pago para nossa caixa.
DUNCAN - Jamais de novo há de trair o thane de Cawdor nosso afeto. Sem delongas o condenai à morte e com seu título saudai Macbeth.
ROSS - A mim tomo esse encargo.
DUNCAN - Folga Macbeth com o que para ele é amargo.
(Saem).

Cena III

A charneca. Trovões. Entram as três bruxas.

PRIMEIRA BRUXA - Onde estiveste, irmã?
SEGUNDA BRUXA - Matando porco.
TERCEIRA BRUXA - E tu, irmã?
PRIMEIRA BRUXA - Cheio o regaço tinha de castanhas a mulher de um marujo, e mastigava, mascava, mastigava. "Cede-me uma", lhe disse. "Vai-te embora,
bruxa!" grita-me a gorda comedora de babugem. Em caminho de Alepo está o marido, como chefe do "Tigre". Mas como rato cotó numa peneira vou só. E roque,
roque, roque!
SEGUNDA BRUXA - Vou dar-te um bom vento.
PRIMEIRA BRUXA - Vem a meu contento.
TERCEIRA BRUXA - Com mais um podes contar.
PRIMEIRA BRUXA - Saberei outros achar e os portos de mais zunidos e os pontos deles sabidos na carta dos marinheiros. Vou deixá-lo como enguia, sem
que o sono, noite e dia, lhe baixe aos olhos um nada. Vai ser vida amaldiçoada. Semanas noventa e nove, fraco e magro, nem se move; e embora não perca
o barco, de tufões não será parco. Vê o que eu trouxe!
SEGUNDA BRUXA - Mostra-me! Mostra-me!
PRIMEIRA BRUXA - O dedo de um marinheiro que naufragou no roteiro.
(Barulho de tambor, dentro.)
TERCEIRA BRUXA - Tambor! Tambor! Eis Macbeth, o vencedor!
TODAS - As três bruxas, mãos unidas, por estradas não batidas, por mar e terra se vão. Três para ti, três a mim. três para nove no fim. Silêncio! O
encanto está pronto.
(Entram Macbeth e Banquo.)
MACBETH - Nunca vi dia assim, tão feio e belo.
BANQUO - A que distância ainda se encontra Forres? Quem são essas criaturas tão mirradas e de vestes selvagens, que habitantes não parecem da terra
e, no entretanto, nela se movem? Acaso tendes vida? Sois algo a que perguntas dirijamos? Pareceis compreender-me, pois a um tempo levais os dedos ósseos
a esses lábios encarquilhados. Quase vos tomara por mulheres; no entanto vossas barbas não me permitem dar-vos esse nome.
MACBETH - Respondei, se puderdes: quem sois vós?
PRIMEIRA BRUXA - Viva, viva Macbeth! Nós te saudamos, thane de Glamis!
SEGUNDA BRUXA - Viva, viva Macbeth! Nós te saudamos, thane de Cawdor!
TERCEIRA BRUXA - Viva Macbeth, que há de ser rei mais tarde!
BANQUO - Meu bondoso senhor, por que motivo vos mostrais assustado, parecendo recear o que de ouvir é assim tão belo? Em nome da verdade, imaginárias
sereis realmente, ou o que mostrais por fora? Meu nobre companheiro foi saudado com títulos, por vós, de atual valia e grande predição de haveres nobres
e de real esperança, que parece deixá-lo arrebatado. Porém nada me dissestes. Se podeis ver a seara do tempo e predizer quais as sementes que hão de brotar,
quais não, falai comigo, que não procuro nem receio vosso ódio ou vosso favor.
PRIMEIRA BRUXA - Salve!
SEGUNDA BRUXA - Salve!
TERCEIRA BRUXA - Salve!
PRIMEIRA BRUXA - Menor do que Macbeth, porém maior!
SEGUNDA BRUXA - Não tão feliz, mas muito mais feliz!
TERCEIRA BRUXA - Gerarás reis, embora rei não sejas! Assim, viva Macbeth e viva Banquo!
PRIMEIRA BRUXA - Viva Banquo e Macbeth! A todos, viva!
MACBETH - Um momento, oradoras imperfeitas. Falai-me mais um pouco. Pela morte de Sinel eu fiquei thane de Glamis. Mas, Cawdor, de que jeito? Vive
o thane de Cawdor, gentil-homem muito próspero; e ser rei ultrapassa os horizontes da crença tanto ou mais do que ser Cawdor. Dizei de onde tirastes tão
insólita notícia e por que causa nos fizestes parar nesta charneca desolada, com saudações proféticas? Intimo-vos a me falar.
(As bruxas desaparecem.)
BANQUO - A terra tem borbulhas, tal como a água. Elas são justamente isso. Mas para onde sumiram?
MACBETH - No ar; e tudo quanto nos parecia ser corpóreo se fundiu como ao vento nosso anélito. Oh! se tivessem demorado um pouco!
BANQUO - Aqui estiveram, mesmo, essas criaturas sobre que conversamos, ou teríamos comido da raiz malsã que deixa prisioneira a razão?
MACBETH - Reis, vossos filhos?
BANQUO - Chegareis a rei.
MACBETH - E assim, thane de Cawdor. Não foi isso?
BANQUO - Esse, o tom e as palavras. Quem vem vindo?
(Entram Ross e Angus.)
ROSS - Macbeth, com alegria o rei as novas recebeu da vitória que obtiveste, e quando ouve falar que aventuraste tua pessoa contra esses rebeldes,
põem-se nele a lutar os elogios e a admiração sobre que parte fora justo te reservar, qual a ele próprio. Se sobre isso não fala, compendiando quanto houve
neste dia extraordinário, descobre-te na fila dos intrépidos noruegueses, impávido ante as formas da morte estranhas por ti próprio criadas. Bastos como
granizo, os mensageiros se sucediam, todos portadores de encômios para ti nesta grandiosa defesa de seu reino, derramando-lhe aos pés os elogios.
ANGUS - Aqui estamos para trazer-te os agradecimentos de nosso real senhor e te levarmos à sua frente, não para pagar-te.
ROSS - E como arras de uma honra de mais vulto, por ele devo te chamar de thane de Cawdor. Salve, pois, mui digno thane, por essa promoção, pois teu
é o título.
BANQUO - Como! Falou o diabo, então, verdade?
MACBETH - Vive o thane de Cawdor; qual a causa de me vestirdes com a roupagem de outrem?
ANGUS - O que foi thane ainda está com vida: mas sob pesado juízo a vida se acha que ele malbaratou. Ou mantivesse combinação com os próprios noruegueses,
ou por meios secretos os rebeldes procurasse auxiliar, ou dos dois lados se empenhasse na ruína de sua pátria, não sei dizê-lo; mas o certo é que altas
traições, já confessadas e provadas, o fizeram cair.
MACBETH (à parte) - Glamis e thane de Cawdor... O maior virá a seu tempo. (A Ross e Angus.) Agradeço o trabalho. (A Banquo.) Esperançado não ficais
de que venham vossos filhos a ser reis, uma vez que as que de thane de Cawdor me chamaram, não menores coisas lhes prometeram?
BANQUO - Uma grande confiança na promessa poderia vos inflamar para chegar ao trono, mais que thane de Cawdor. Mas é estranho; por vezes, para nos
perdermos, contam-nos os agentes das trevas alguns fatos verídicos, seduzem-nos com coisas inocentes, porém de pouca monta, para nos arrastar a conseqüências
incalculáveis. Primo, uma palavrinha, por obséquio.
MACBETH (à parte) - Duas verdades foram ditas, prólogo feliz do ato elevado, cujo tema é simplesmente real. - Muito obrigado. senhores. (À parte.)
Essa solicitação tão sobrenatural pode ser boa, como pode ser má... Se não for boa, por que me deu as arras de bom êxito, relatando a verdade? Sou o thane
de Cawdor. Sendo boa, por que causa ceder à sugestão, cuja figura pavorosa os cabelos me arripia, fazendo que me bata nas costelas o coração tão firme,
contra as normas da natureza? O medo que sentimos é menos de temer que as mais terríveis mas fictícias criações. Meu pensamento no qual o crime por enquanto
é apenas um fantasma, a tal ponto o pobre reino de minha alma sacode, que esmagada se torna a vida pela fantasia, sem que haja nada além do que não é.
BANQUO - Como ficou absorto nosso amigo!
MACBETH (à parte) - Se o acaso quer que eu seja rei, o acaso me poderá coroar sem que eu me mexa.
BANQUO - As honras mais recentes caem nele como em nós roupa nova, que somente com o uso vêm a se ajeitar no corpo.
MACBETH (à parte) - Venha o que vier, que a hora da alegria chega depois do mais cansado dia.
BANQUO - Digno Macbeth, por vós é que esperamos.
MACBETH - Desculpai-me; mas meu pesado cérebro se ocupava com coisas esquecidas. Vosso trabalhos, dignos cavalheiros, gravados ficam onde diariamente
virar eu possa as folhas para lê-los. Procuremos o rei. (A Banquo.) Pensai no que houve, que mais tarde, depois de refletirmos, com o coração aberto falaremos.
BANQUO - Pois não.
MACBETH - Por hoje basta. Amigos, vamos!
(Saem.)

Cena IV

Forres. Um quarto no palácio. Fanfarra. Entram Duncan, Malcolm, Donalbain, Lennox e pessoas do séqüito.

DUNCAN - Cawdor já foi executado? Os homens incumbidos do feito já voltaram?
MALCOLM - Meu suserano, ainda não vieram; mas falei com alguém que o viu morrer, que me disse haver ele confessado francamente as traições, pedido
a Vossa Grandeza lhe perdoasse e revelado grande arrependimento. Nada em vida tanto o ornou como o modo de deixá-la. Morreu tal como se estudado houvesse
como na hora da morte desfazer-se do mais precioso bem, como se fosse de somenos valor.
DUNCAN - Não existe arte que ensine a ler no rosto as feições da alma. Era um fidalgo em quem depositava absoluta confiança. (Entram Macbeth, Banquo,
Ross e Angus.) Ó digno primo! Neste instante pesava-me o pecado de minha ingratidão. Tão na dianteira te achas agora, que as mais lestes asas da recompensa
se revelam tardas demais para alcançar-te. Quem me dera que teus méritos fossem mais modestos, porque estivesse em mim a conta certa dos agradecimentos
e da paga! Só me resta dizer-te que mereces mais, muito mais do que as mais ricas messes.
MACBETH - O serviço e a lealdade que vos devo por si mesmos se pagam, competindo tão-somente a Vossa Honra contar sempre com nossa obrigação, consistindo
esta em bem servir o trono, o Estado, os filhos e os servidores, que só fazem quanto devem fazendo tudo quanto podem com relação a vosso amor e glória.
DUNCAN - Sê bem-vindo. A plantar-te comecei; hei de esforçar-me, assim, para que alcances crescimento completo. Nobre Banquo, que menos não fizeste
e cujos feitos ficar não devem menos conhecidos: permite que te abrace e aperte muito de encontro ao coração.
BANQUO - Se em tal terreno eu me der bem, vossa será a colheita.
DUNCAN - As minhas abundantes alegrias, ébrias de plenitude, ora procuram ocultar-se nas togas da tristeza. Filhos, parentes, thanes, e vós outros
que vos achais mais próximos: sabei que reforçar queremos nosso Estado em nosso primogênito Malcolm a quem nomeamos doravante príncipe de Cumberlândia.
Mas não há de essa honra a ele somente ornar. Não; como estrelas, títulos brilharão de alta nobreza sobre quem merecer. (A Macbeth.) Daqui sigamos para
Inverness, a fim de que se dobrem minhas obrigações para convosco.
MACBETH - Trabalho será o ócio que em proveito vosso não for usado. Eu mesmo quero ser o aposentador de Vossa Alteza, para que jubilosos os ouvidos
deixe de minha esposa com a notícia de que em breve estareis em nossa casa. Assim, despeço-me.
DUNCAN - Meu digno Cawdor!
MACBETH (à parte) - Já príncipe de Cumberlândia! É escolho que ao mar me joga, se eu não abrir o olho. Estrelas, escondei a luz jucunda, para que a
escuridão não veja funda de meus negros anseios! Que na frente da mão o olho se feche prestesmente; mas que se concretize o que, acabado, faça o olho estremecer
de horrorizado. (Sai.)
DUNCAN - É certo, digno Banquo; é mui valente. Dos elogios dele me alimento; são para mim banquete. Acompanhemo-lo. O zelo dele vai na nossa frente
para nos preparar o acolhimento. Não há parente igual.
(Fanfarras. Saem.)

Cena V

Inverness. Castelo de Macbeth. Entra lady Macbeth, lendo uma carta.

LADY MACBETH - "Elas me encontraram no dia da vitória e pude verificar, pela mais exata confirmação, que são dotadas de saber mais do que humano. Quando
eu ardia em desejos de continuar a interrogá-las, desfizeram-se em ar, no qual se dissiparam. Enquanto eu me encontrava tomado de estupor com o que acontecera,
chegaram mensageiros do rei, que me cumprimentaram a uma voz como "Thane de Cawdor", título com que, antes, me haviam saudado as irmãs feiticeiras, referindo-se
ao meu futuro por este modo: "Salve! Ainda virás a ser rei!". Pareceu-me bem comunicar-te o que se passou, companheira querida de minha grandeza, para
que não viesses a perder a parte que te cabe dessa felicidade, com ignorares o futuro que te está prometido. Guarda isto no coração e adeus."
Glamis já és e Cawdor, e em futuro virás a ser o que te prometeram. Temo, porém, a tua natureza cheia de leite da bondade humana, que entrar não te
consente pela estrada que vai direito à meta. Desejaras ser grande, e não te encontras destituído, de todo, de ambição; porém careces da inerente maldade.
O que desejas com fervor, desejaras santamente; não queres jogo ilícito, ruas queres ganhar mal. Desejaras, grande Glamis, possuir o que te grita: "Desse
modo precisarás fazer, para que o tenhas!" Mas antes medo tens de fazer isso do que desejas que não fique feito. Vem para cá, para que meus espíritos nos
ouvidos te deite e com a ousadia de minha língua chicoteie quantos obstác'los te separam do áureo círculo com que o destino e o auxílio metafísico como
que desde já te coroaram. (Entra um mensageiro.) Quais são as novidades?
MENSAGEIRO - Hoje à noite o rei chegará aqui.
LADY MACBETH - Como! Estás louco? Acaso teu senhor não está com ele? Não deixaria de instruções mandar-me, para os preparativos.
MENSAGEIRO - Com licença. mas é verdade. Vai chegar o thane. Um dos meus camaradas a dianteira dele tomou, de estafa quase morto, mal lhe restando
o fôlego preciso para dar o recado.
LADY MACBETH - Cuidem dele com carinho; traz grandes novidades. (Sai o mensageiro.) Rouco está o próprio corvo que crocita a chegada fatídica de Duncan
à minha fortaleza. Vinde, espíritos que os pensamentos espreitais de morte, tirai-me o sexo, cheia me deixando, da cabeça até aos pés, da mais terrível
crueldade! Espessai-me todo o sangue; obstruí os acessos da consciência, porque batida alguma compungida da natureza sacudir não venha minha hórrida vontade,
promovendo acordo entre ela e o ato. Ao feminino peito baixai-me, e fel bebei por leite, auxiliares do crime, de onde as vossas substâncias incorpóreas
sempre se acham à espreita de desgraças deste mundo. Vem, noite espessa, e embuça-te no manto dos vapores do inferno mais sombrios, porque as feridas meu
punhal agudo não veja que fizer, nem o céu possa espreitar através do escuro manto e gritar: "Pára! Pára!" (Entra Macbeth.) Grande Glamis, digno Cawdor,
maior do que ambos, ainda, pela futura saudação. Tua carta além me pôs deste presente néscio, sentindo eu futuro neste instante.
MACBETH - Duncan, meu caro amor, chega esta noite.
LADY MACBETH - E quando vai embora?
MACBETH - Amanhã mesmo, segundo pensa.
LADY MACBETH - O sol, oh! nunca, nunca verá esse amanhã. Vosso rosto, meu thane, é um livro aberto em que podemos ler coisas estranhas. Para o mundo
enganardes, a aparência tomai do mundo; tende boas-vindas nas mãos, nos olhos e na própria língua; a todos parecei flor inocente, mas sede a serpe que
na flor se esconde. Cuidemos do hóspede que chega, sendo que a meu cargo deveis deixar o grande negócio desta noite, que nos há de legar dias e noites
de alegria, de mando soberano e de valia.
MACBETH - Depois conversaremos.
LADY MACBETH - Só te digo que a voz mudar é revelar perigo. Deixa o resto comigo.
(Saem.)

Cena VI

O mesmo. Diante do castelo. Oboés e tochas. Entram Duncan, Malcolm, Donalbain, Banquo, Lennox, Macduff, Ross, Angus e pessoas do séquito.

DUNCAN - É bela a posição deste castelo. O ar afaga os sentidos delicados por maneira agradável e serena. Os hóspedes do estio, as andorinhas, dos
templos familiares, bem demonstram com seus ninhos mimosos que o celeste hálito aqui cativa com o perfume. Não há sacada, friso, arcobotante, ou favorável
canto em que esses pássaros não suspendam seu leito e o berço fértil. Onde eles gostam de viver, notei-o, o ar é mui delicado. (Entra lady Macbeth.) Vede!
Vede! Nossa hospedeira ilustre! O amor que segue nossos passos, por vezes nos perturba. Mas, sendo amor, agradecemos sempre. Com isso vos ensino a dirigir-nos
um "Deus vos recompense" pelos muitos trabalhos que vos damos, e a os incômodos ainda agradecer-nos.
LADY MACBETH - Fossem duplos nossos trabalhos, sob qualquer aspecto, e depois redobrados, ainda foram coisinhas sem valor, se comparados com as honrarias
grandes e profundas com que sobrecarrega nossa casa vossa alta majestade. Pelos velhos benefícios e as honras mais recentes que lhe acrescentastes, confessamo-nos
como vossos devotos.
DUNCAN - E onde o thane de Cawdor se meteu? No encalço dele corremos até aqui, pensando mesmo que de aposentador lhe serviríamos. Mas ele monta muito
bem, e o grande afeto que nos vota, agudo como suas esporas, à sua própria casa o trouxe antes de nós. Formosa e digna hospedeira, esta noite ficaremos
aqui como vosso hóspede.
LADY MACBETH - A existência tiveram sempre os servos, eles próprios e seus haveres todos como simples depósito ao dispor de Vossa Alteza, pronto a
ser devolvido.
DUNCAN - A mão vos tomo; para o meu hospedeiro conduzi-me. Temos-lhe grande amor e mostrar-lhe-emos provas ainda mais de nossa graça. Permiti-me, hospedeira.
(Saem.)

Cena VII

O mesmo. Um quarto no castelo. Oboés e tochas. Um trinchante atravessa o palco com diversos criados, que carregam pratos e acessórios da mesa. Depois entra
Macbeth.

MACBETH - Se feito fosse quanto fosse feito, seria bom fazermo-lo de pronto. Se o assassínio enredasse as conseqüências e alcançasse, com o fim, êxito
pleno; se este golpe aqui fosse tudo, e tudo terminasse aqui em baixo, aqui somente, neste banco de areia da existência, a vida de após morte arriscaríamos.
Mas é aqui mesmo nosso julgamento em semelhantes casos; só fazemos ensinar as sentenças sanguinárias que, uma vez aprendidas, em tormento se viram do inventor.
Essa justiça serena e equilibrada a nossos lábios apresenta o conteúdo envenenado da taça que nós mesmos preparáramos. Ele está aqui sob dupla salvaguarda.
De início, sou parente dele e súdito, duas razões de força contra esse ato; depois, sou o hospedeiro, que devera fechar a porta a seus assaltadores, não
levantar contra ele minha faca. Esse Duncan, por fim, tem revelado tão brandas qualidades de regente, seu alto ofício tem exercitado por maneira tão pura
que suas claras virtudes hão de reclamar, sem dúvida, contra o crime infernal de sua morte. E a piedade, tal como um recém-nado despido, cavalgando a tempestade,
ou querubim celeste que montasse nos corcéis invisíveis das rajadas, há de atirar esse ato inominável contra os olhos de todas as pessoas, até que o vento
as lágrimas afoguem. Esporas não possuo, para os flancos picar do meu projeto, mas somente a empolada ambição que, ultrapassando no salto a sela, vai cair
sobre outrem. (Entra lady Macbeth.) Que há de novo?
LADY MACBETH - Já está no fim da ceia. Por que saístes?
MACBETH - Perguntou por mim?
LADY MACBETH - Pois ainda me fazeis essa pergunta?
MACBETH - Não iremos mais longe neste assunto. Muitas honras me fez ultimamente, havendo eu conquistado áureo conceito junto de toda gente, que desejo
mostrar com o novo brilho, não de lado jogar sem mais nem menos.
LADY MACBETH - Encontra-se embriagada a esperança que até há pouco vos revestia? Adormeceu, decerto, desde então e acordou agora, pálida e verde a
contemplar o que ela própria começara tão bem? Desde este instante para mim teu amor vale isso mesmo. Tens medo de nos atos e coragem mostrar-te igual
ao que és em teus anelos? Queres vir a possuir o que avalias como ornamento máximo da vida, mas qual poltrão viver em tua estima, deixando que um "Não
ouso" vá no rasto de um "Desejara", como o pobre gato de que fala o provérbio?
MACBETH - Paz, te peço. Ouso fazer tudo o que faz um homem; quem fizer mais, é que deixou de sê-lo.
LADY MACBETH - Que animal foi, então, que teve a idéia de me participar esse projeto? Quando ousastes fazê-lo éreis um homem, e querendo ser mais do
que então éreis tanto mais homem a ficar viríeis. Lugar e tempo então não concordavam; no entanto desejáveis ajeitá-los; e ora que se acomodam por si mesmos,
essa boa vontade vos abate! Já amamentei e sei como é inefável amar a criança que meu leite mama; mas no momento em que me olhasse, rindo, o seio lhe tirara
da boquinha desdentada e a cabeça lhe partira, se tivesse jurado, como o havíeis em relação a isso.
MACBETH - Se falharmos...
LADY MACBETH - Falharmos? Bastará aparafusardes vossa coragem até o ponto máximo, para que não falhemos. Quando Duncan se puser a dormir - e a rude
viagem de hoje o convidará para isso mesmo - ambos os camareiros de tal modo dominarei com vinho, que a memória, essa guarda do cérebro, fumaça tão-somente
será e o receptáculo da razão, alambique. E quando os corpos nesse sono de porco se encontrarem, como se mortos fossem, que de coisas não faremos em Duncan
indefeso, que culpas não imputaremos a esses servidores-esponjas, porque fiquem responsáveis por nosso grande crime?
MACBETH - Só deves dar à luz a filhos homens, pois teu vigor indômito só pode filhos homens nutrir. Será aceitável, quando de sangue besuntado houvermos
os dois homens que dormem no seu quarto, e seus próprios punhais também usado, que foram eles os autores disso?
LADY MACBETH - Quem ousará pensar de outra maneira, quando rugirmos nossa dor e os altos clamores rimbombarem sobre o morto?
MACBETH - Preparado me encontro e deixo tensos todos os nervos para esse ato horrível. Vamos! Recomponhamo-nos primeiro; coração falso e rosto lisonjeiro.
(Saem.)

ATO II
Cena I

Inverness. Pátio no interior do castelo. Entram Banquo e Fleance, precedidos de um criado com uma tocha.

BANQUO - Quanto da noite já será, menino?
FLEANCE - Não ouvi bater horas, mas a lua já se escondeu.
BANQUO - Ela se esconde às doze.
FLEANCE - Penso, senhor, que será mais do que isso.
BANQUO - Toma aqui minha espada. Há economia no céu; todas as luzes se apagaram. Fica também com isto. Em mim se exerce uma pressão pesada como chumbo.
No entretanto, quisera não dormir. Detende em mim, poderes criadores, os pensamentos maus que a natureza permite aos que repousam. (Entra Macbeth, acompanhado
de criado, com uma tocha.) Quem vem lá?
MACBETH - Um amigo.
BANQUO - Como, senhor! Ainda estais de pé? O rei já foi deitar-se; revelava insólita alegria, tendo enchido de grossos cabedais vossos celeiros. Saúda
vossa esposa, oferecendo-lhe este diamante, como à mais bondosa das hospedeiras. Foi-se para o quarto com um contentamento sem limites.
MACBETH - Tomada de surpresa, nossa boa vontade se mostrou serva da falta. Se não, teria inteira liberdade.
BANQUO - Tudo vai bem. Sonhei na última noite com as três irmãs fatais. Muito verídicas com relação a vós se revelaram.
MACBETH - Não penso nelas; no entretanto, quando tivermos alguma hora favorável dedicaremos a isso umas palavras, se o tempo vos sobrar.
BANQUO - Com todo o gosto.
MACBETH - Se no tempo oportuno concordardes com meu modo de ver, ganhareis honra.
BANQUO - Se não vier a perdê-la no propósito de fazê-la aumentar, puro deixando-me o coração e límpida a obediência, ouvir-vos-ei de grado.
MACBETH - Bom repouso até esse dia.
BANQUO - Muito agradecido, meu senhor; iguais votos vos dirijo.
(Saem Banquo e Fleance.)
MACBETH - Vai dizer à senhora que me faça sinal com o sino, quando estiver pronta minha bebida. Depois disso, deita-te. (Sai o criado.) Será um punhal
que vejo em minha frente com o cabo a oferecer-se-me? Peguemo-lo. Não te apanhei ainda; no entretanto, vejo-te sempre. Não serás sensível, visão funesta,
ao tato como à vista? Ou de um punhal não passas, simplesmente, do pensamento, uma criação fictícia, procedente do cérebro escaldante? Percebo-te, no entanto,
e tão palpável como este que ora empunho. Mostras-me a estrada que seguir eu devo e o instrumento que a usar serei forçado. Se meus olhos joguete não se
mostram de meus outros sentidos, sobrepujam todos eles. Ainda te percebo, manchado o cabo e a lâmina de gotas de sangue que antes não estava neles. Não
existe tal coisa; é o sanguinário projeto que a meus olhos toma forma. Em metade do mundo, neste instante, parece estar sem vida a natureza; os sonhos
maus iludem sob as pálpebras o sono bem velado; feiticeiras o rito exercem singular da pálida Hécate; o esquálido assassino, posto de alerta pela sua sentinela,
o lobo, cujo uivar lhe serve de horas, com passo de ladrão e o andar furtivo de Tarquínio, da meta se aproxima, tal qual fantasma. Ó terra forte e sólida,
não ouças o barulho de meus passos, seja qual for a direção que tomem, porque as próprias pedrinhas não propalem para onde eu vou e dissipar não façam
o horror desta hora que tão bem lhe fica. Eu ameaço; ele vive; congelada pelo meu sopro a ação se torna em nada. (O sino soa.) Já vou; está feito. O sino
me convida. Duncan, não ouças; é um chamado eterno que para o céu te leva ou para o inferno. (Sai.)

Cena II

O mesmo. Entra lady Macbeth.

LADY MACBETH - O que os embebedou me deu coragem: fogo me deu o que os deixou extintos. Ouvi! Silêncio! É o pio da coruja, sentinela fatal que augura
a mais sinistra noite. Vai dar o golpe; a porta se acha aberta; o ressonar dos guardas embriagados zomba do ofício deles. Pus mistura na bebida de todos,
de tal forma que a morte e a natureza neles lutam sobre se vão morrer ou ficar vivos.
MACBETH (dentro) - Quem está aí? Olá!
LADY MACBETH - Que pena! Temo, que acordassem e nada esteja feito. O que nos atrapalha é a tentativa, somente, não a ação. Ouvi! De jeito deixei os
punhais deles; não podiam ficar despercebidos. Se não fosse parecer-se no sono com meu pai, eu própria o realizara. - Meu marido!
(Entra Macbeth.)
MACBETH - Realizei o ato. Ouviste algum barulho?
LADY MACBETH - O pio, apenas, da coruja, e o grito do grilo. Não falastes?
MACBETH - Quando?
LADY MACBETH - Agora.
MACBETH - Quando eu descia?
LADY MACBETH - Sim.
MACBETH - Escuta um pouco. Quem é que está naquele quarto ao lado?
LADY MACBETH - Donalbain.
MACBETH (Contemplando as mãos) - Oh, que vista lastimável!
LADY MACBETH - É um pensamento néscio dizer isso: "Que vista lastimável!"
MACBETH - Um, no sono, sorriu, e o outro gritou: "Ai! Assassínio!" E, com isso, acordaram. Escutando-os, me detive. Mas eles murmuraram orações, tão-somente,
e dispuseram-se a dormir outra vez.
LADY MACBETH - No mesmo quarto se acham dois.
MACBETH - Um gritou: "Deus nos ampare!" E "Amém" disse o outro, como se tivessem percebido as mãos sujas do carrasco. Ao escutar-lhe o temor, não pude
dizer "Amém", quando eles murmuraram "Deus nos ampare".
LADY MACBETH - Não será prudente pensar tanto sobre isso.
MACBETH - Por que causa não pude, então, dizer "Amém?" De bênção tinha necessidade mui premente; mas na garganta o "Amém" ficou pegado.
LADY MACBETH - Essas coisas não devem ser pensadas dessa maneira. É de deixar-nos loucos.
MACBETH - Uma voz pareceu-me ouvir, aos gritos de: "Não durmais! Macbeth matou o sono!" o meigo sono, o sono que desata a emaranhada teia dos cuidados,
que é o sepulcro da vida cotidiana, banho das lides dolorosas, bálsamo dos corações feridos, a outra forma da grande natureza, o mais possante pábulo do
banquete da existência.
LADY MACBETH - Que pretendeis dizer?
MACBETH - Por toda a casa continuava a gritar: "Basta de sono! Não durmais! Glamis destruiu o sono! Por isso Cawdor já dormir não pode, Macbeth dormir
não pode!"
LADY MACBETH - Quem gritava por esse modo? Ora, meu digno thane, relaxais vossas nobres energias considerando as coisas por maneira tão doentia. Arranjai
um pouco de água, para das mãos tirardes todas essas testemunhas manchadas. Por que causa trouxestes os punhais de onde se achavam? Precisam ficar lá.
Tomai a pô-los em seus lugares e sujai de sangue os criados que ainda dormem.
MACBETH - Não; não volto. Tenho pavor só de pensar no feito; voltar a contemplá-lo me é impossível.
LADY MACBETH - Oh! que vontade fraca! Dai-me as armas. Os mortos e os que dormem são pinturas, nada mais. É somente o olho da criança que tem medo
do diabo desenhado. Se estiver a sangrar, deixarei tintos com isso o rosto de seus próprios criados, pois é preciso que pareça que eles o crime cometeram.
(Sai. Pancadas dentro.)
MACBETH - Onde batem? Que se passa comigo, para um simples ruído apavorar-me? E aquelas mãos, ai! que os olhos me arrancam? Todo o oceano do potente
Netuno poderia de tanto sangue a mão deixar-me limpa? Não; antes minha mão faria púrpura do mar universal, tornando rubro o que em si mesmo é verde.
(Volta lady Macbeth.)
LADY MACBETH - De vossa cor as mãos agora tenho; mas de possuir ficara envergonhada um coração tão branco. (Pancadas dentro.) Ouvi! Novas batidas.
Ide logo vestir vosso roupão; se nos chamarem, não devemos mostrar que não dormimos. Não deveis entregar-vos a essas cismas tão miseravelmente.
MACBETH - Conhecer o que fiz... Melhor me fora se não me conhecesse. (Pancadas dentro.) Acordam Duncan batendo desse modo. Ah! se acordasses!
(Saem.)

Cena III

O mesmo. Pancadas dentro. Entra o porteiro.

PORTEIRO - Isso, sim, é que é bater! Quem fosse porteiro no inferno não faria outra coisa senão virar a chave. (Pancadas dentro.) Bate, bate, bate!
Quem está aí, em nome de Belzebu? Eis que chega um lavrador que se enforcou, na expectativa de uma boa colheita. Chegais na hora. Trazei boa carga de lenços,
por isso que tereis de suar aqui a valer. (Pancadas dentro.) Bate, bate, bate! Quem está aí, em nome do outro diabo? Por minha fé, é um sujeito de língua
equívoca, que poderia jurar em qualquer um dos pratos da balança, contra o outro prato, que cometeu bastantes traições por amor de Deus, mas não pôde equivocar
o céu. Oh! entrai, meu equivocador! (Pancadas dentro.) Bate, bate, bate! Quem está ai? Por minha fé, é um alfaiate inglês que vem para cá por ter roubado
uns calções franceses. Entrai, senhor alfaiate! Aqui podereis aquecer à vontade vosso ferro de engomar. (Pancadas dentro.) Bate, bate! Não há sossego de
jeito nenhum. Quem sois? Mas, para inferno, este lugar é muito frio. Não continuarei nele por mais tempo como porteiro do diabo. Tinha pensado em deixar
entrar gente de todas as profissões, que vai para os fogos eternos pela estrada semeada de rosas. (Pancadas dentro.) Um momento! Um momento! Por obséquio,
não vos esqueçais do porteiro. (Abre o portão.)
(Entram Macduff e Lennox.)
MACDUFF - Fostes, amigo, vos deitar tão tarde para demorar tanto a levantar-vos?
PORTEIRO - Em verdade, senhor, ficamos a beber até ao segundo canto do galo, e a bebida, senhor, é um grande provocador de três coisas.
MACDUFF - Quais são as três coisas que a bebida provoca especial mente?
PORTEIRO - Ora, senhor, nariz vermelho, sono e urinas. A lascívia, senhor, ela provoca e deixa sem efeito; provoca o desejo, mas impede a execução.
Por isso pode-se dizer que a bebida usa de subterfúgios com a lascívia: ela a cria e a destrói; anima-a e desencoraja-a; fá-la ficar de pé e depois a obriga
a não ficar de pé. Em resumo: leva-a a dormir com muita lábia e, lançando-lhe o desmentido, abandona-a a si mesma.
MACDUFF - Penso que a bebida te lançou o desmentido esta noite.
PORTEIRO - Foi isso mesmo, senhor, que ela fez comigo, pela garganta a dentro. Mas eu lhe dei o troco do desmentido; porque sendo, como penso ser,
mais forte do que ela, embora por vezes ela me quisesse passar rasteira, acabei por jogá-la ao solo.
MACDUFF - Teu senhor já se levantou? (Entra Macbeth.) O barulho acordou-o. Ei-lo que chega.
LENNOX - Nobre senhor, bom dia.
MACBETH - Para todos também bom dia.
MACDUFF - O rei, mui digno thane, já terá acordado?
MACBETH - Não, ainda.
MACDUFF - Pediu-me que o chamasse bem cedinho. Por pouco perdi a hora.
MACBETH - Vou levar-vos até onde ele se encontra.
MACDUFF - Sei que alegre vos deixa esse trabalho. Porém sempre será trabalho.
MACBETH - O trabalho agradável é remédio da canseira. Eis a porta.
MACDUFF - A liberdade vou tomar de bater, pois a incumbência que recebi foi essa. (Sai.)
LENNOX - O rei parte hoje?
MACBETH - Parte; assim decidiu.
LENNOX - A noite toda foi desassossegada. Onde dormimos o vento derrubou a chaminé. Dizem que no ar se ouviram muitos prantos, gritos de morte estranhos,
profecias, em terríveis acentos, de horrorosas devastações, confusos acidentes, ninhada destes tempos ominosos. Durante toda a noite a ave das trevas não
deixou de piar. Dizem que a terra teve febre e tremeu.
MACBETH - Foi uma noite muito rude, em verdade.
LENNOX - Minha jovem memória não se lembra de outra igual.
(Volta Macduff.)
MACDUFF - Horror, horror, horror! Não pode a língua, não pode o coração nem conceber-te nem dar-te nome algum.
MACBETH e LENNOX - Que aconteceu?
MACDUFF - A destruição concluiu sua obra-prima. Arrombou o sacrílego assassínio o templo ungido do Senhor, e a vida roubou do próprio altar.
MACBETH - Como dissestes? A vida?
LENNOX - Pretendeis dizer que é a vida de Sua Majestade?
MACDUFF - Ide até o quarto e a vista destruí ante outra Górgona. Quero ficar calado. Ide vós mesmos, para depois falardes. (Saem Macbeth e Lennox.)
Despertai! Despertai! Traição e morte! Malcolm, Banquo, Donalbain, depressa, sacudi esse sono de penugem, simulacro da morte, e vinde a própria morte encarar.
De pé! A imagem vede do grande julgamento. Malcolm! Banquo! Vinde como das tumbas, como espíritos, para ver este horror. Tocai o sino!
(Soa o sino.)
(Entra lady Macbeth.)
LADY MACBETH - Que aconteceu aqui, para que, tão medonha, uma trombeta desperte os moradores desta casa, para parlamentar? Falai! Falai!
MACDUFF - Ó gentil dama, não deveis ouvir-me no que tenho a dizer. Esse relato, repetido ao ouvido de uma dama, produziria a morte. (Entra Banquo.)
Ó Banquo! Banquo! assassinado foi nosso real amo.
LADY MACBETH - Ai! como? Em nossa casa?
BANQUO - Oh! muito cruel, pouco importa onde fosse. Caro Duff, desmente-te a ti próprio, por obséquio, e dize que houve engano.
(Voltam Macbeth e Lennox.)
MACBETH - Se eu tivesse morrido uma hora, apenas, antes de isto se dar, teria tido uma vida abençoada. Doravante nada mais há de sério no universo.
Tudo é farandolagem; a honra e a glória já não existem. Esgotado se acha o vinho da existência, só restando simples borra no fundo desta adega com que
possa jactar-se.
(Entram Malcolm e Donalbain.)
DONALBAIN - Que foi que aconteceu?
MACBETH - Como! Estais vivos e não sabeis o que houve? A fonte, a origem, o princípio secou de vosso sangue, a própria origem já parou de todo.
MACDUFF - Vosso real pai se encontra assassinado.
MALCOLM - Oh! E por quem?
LENNOX - Ao que parece, foram seus próprios camareiros que o mataram. De sangue o rosto e as mãos tinham manchados, como os punhais que sem bainha
achamos sobre seus travesseiros. De olhar fixo se achavam, como alheados. Não deviam ter-lhes confiado a vida de ninguém.
MACBETH - Agora me arrependo de os ter morto na minha indignação.
MACDUFF - Por que o fizestes?
MACBETH - Quem sábio pode ser e estupefacto, moderado e furioso, leal e neutro na mesma hora? Ninguém. A diligência do meu amor violento deixou longe
a razão vagarosa. Neste ponto se achava Duncan, com sua cute branca acairelada pelo sangue de ouro; as feridas abertas pareciam brechas da natureza, adrede
feitas para a entrada da ruína vastadora; além, os assassinos, embebidos da cor da profissão, monstruosamente recobertas de sangue as próprias armas...
Quem poderia reprimir-se, tendo coração para amar e, nele, o brio de tornar conhecidos seus pendores?
LADY MACBETH - Oh! Tirai-me daqui!
MACDUFF - Vede a senhora.
MALCOLM - (à parte, a Donalbain) - Por que ficamos mudos, se este caso de perto nos atinge mais que a todos?
DONALBAIN (à parte, a Malcolm) - Por que falar aqui, onde o destino, a espiar de algum buraco, poderia lançar-se sobre nós? Fujamos; nossas lágrimas
não estão bem preparadas.
MALCOLM (à parte, a Donalbain) - Nem nossa grande dor para a vingança.
BANQUO - Socorrei a senhora. (Lady Macbeth é levada para fora.) E após agasalharmos a fraqueza, muito sensível a este tempo frio, reunamo-nos a fim
de interrogarmos esta obra enormemente sanguinária, para com mais vagar a conhecermos. A dúvida e o receio nos abalam. Na grande mão de Deus ora me encontro,
disposto a combater as não sabidas intenções da malícia criminosa.
MACDUFF - Como eu.
TODOS - Como nós todos.
MACBETH - Com presteza viril nos aprontemos para em pouco nos reunirmos na sala.
TODOS - Bem pensado.
(Saem todos, com exceção de Malcolm e Donalbain.)
MALCOLM - Que pretendeis fazer? Não nos unamos com essa gente. É muito fácil para o homem fingido aparentar tristeza. Irei para a Inglaterra.
DONALBAIN - E eu para a Irlanda. Separados, assim, nossos destinos cuidarão de nós dois com maior zelo. Os sorrisos aqui punhais escondem. Quanto mais
perto o sangue dos parentes, maior é a afinidade sanguinária.
MALCOLM - A mortífera flecha disparada ainda não caiu; nosso caminho mas seguro é evitar-lhe a trajetória. A cavalo, portanto, sem perdermos tempo
com despedidas delicadas. Saiamos de mansinho. Condenável não pode ser o roubo da prudência, quando não há nem rasto de demência.
(Saem.)

Cena IV

O mesmo. Do lado de fora do castelo. Entram Ross e um velho.

O VELHO - Posso lembrar-me bem de setenta anos; nesse espaço de tempo vi terríveis horas e coisas por demais estranhas; mas esta noite triste deixa
longe tudo quanto até agora eu conhecia.
ROSS - Ó meu bom pai! O céu, como estás vendo, indignado com o jogo dos humanos, comina ameaças ao sanguíneo palco. Pelo relógio, é dia; no entretanto,
atrasa a lâmpada ambulante a noite caliginosa. E tão potente a noite? É a vergonha do dia que permite que a treva cubra o rosto, assim, da terra, a que
beijar devera a luz radiosa?
O VELHO - É contra a natureza, tal como o ato que aqui foi perpetrado. Na passada terça-feira um falcão que se gloriava no remígio habitual, preado
e morto foi por uma coruja caça-ratos.
ROSS - E os cavalos de Duncan - fato estranho por demais, porém certo - tão velozes e formosos, ornatos de sua raça, tornaram-se selvagens, as cocheiras
arrebentaram, contra as ordens todas, puseram-se a correr, como querendo guerrear a humanidade.
O VELHO - Dizem que eles se devoraram mutuamente.
ROSS - É certo; para perplexidade destes olhos, que tudo presenciaram. Aí vem vindo o bondoso Macduff. (Entra Macduff) Então, senhor, como vai indo
o mundo?
MACDUFF - Então não vedes?
ROSS - Já se conhece o autor desse atentado mais do que sanguinário?
MACDUFF - Os camareiros apunhalados por Macbeth.
ROSS - Oh dia! E acaso a que vantagens aspiravam?
MACDUFF - Estavam subornados; os dois filhos do rei, Malcolm e Donalbain, fugiram, o que faz cair neles a suspeita.
ROSS - Sempre contrário à natureza! Ó fútil ambição que destróis as próprias fontes de tua vida! Assim, é bem possível que Macbeth suba ao trono.
MACDUFF - Proclamado já foi, tendo ido agora para Scone, a fim de ser coroado.
ROSS - E que fizeram do cadáver de Duncan?
MACDUFF - Foi levado para Kolmekill, sacra sepultura de seus antepassados e guarida de seus restos mortais.
ROSS - Ireis a Scone?
MACDUFF - Não, primo; vou a Fife.
ROSS - Pois eu vou.
MACDUFF - Que tenhais festa alegre e sem fadiga, não vindo a lastimar a roupa antiga.
ROSS - Adeus, pai.
O VELHO - Deus vos proteja e a quantos sabem a arte de trazer o inimigo à boa parte.
(Saem.)

ATO III
Cena I

Forres. Um quarto no palácio. Entra Banquo.

BANQUO - Tens tudo agora: és rei, Cawdor e Glamis, como as bruxas proféticas disseram. Mas temo que roubado ao jogo houvésseis. Mas foi dito também
que não havia de ficar isso em tua descendência e que viria a ser raiz e tronco de numerosos reis. Se falam certo, como se deu, Macbeth, a teu respeito,
por que - se tudo quanto te auguraram se tornou realidade - não hão de elas ser-me o mesmo que oráculo, deixando-me também esperançado? Mas, silêncio!
(Fanfarra. Entram Macbeth, como rei; lady Macbeth, como rainha; Lennox, Ross, nobres, damas e pessoas do séqüito.)
MACBETH - Eis nosso convidado principal.
LADY MACBETH - Se olvidado ele houvesse sido, fora como um vazio em nossa grande festa, vindo tudo a falhar.
MACBETH - Uma solene ceia, senhor, daremos esta noite, esperando que nela tomeis parte.
BANQUO - Bastará que mo ordene Vossa Alteza, a quem me liga minha obediência, para sempre, por laços inquebráveis.
MACBETH - Viajareis esta tarde?
BANQUO - Sim, milorde.
MACBETH - Se não, pedira vossos bons conselhos - que de peso são sempre e proveitosos - para a reunião que vamos ter agora. Nesse caso, amanhã vos
ouviremos. Ides longe?
BANQUO - O suficiente, meu senhor, apenas para o tempo ocupar de agora à ceia. Se não se esforçar muito meu cavalo, à noite poderei pedir de empréstimo
uma ou duas de suas horas foscas.
MACBETH - Vinde sem falta para nossa festa.
BANQUO - Não faltarei, milorde.
MACBETH - Notícia já tivemos de que nossos sanguinários parentes se passaram para a Inglaterra e Irlanda, e que ainda negam o parricídio cruel, enchendo
as ouças de todos com estranhas fantasias. Mas sobre isso, amanhã, já que teremos de tratar de um negócio de importância relativo ao Estado. Levais Fleance?
BANQUO - Sim, meu senhor; o tempo nos reclama.
MACBETH - Desejo-vos cavalos de pés firmes e bem velozes, e ao costado deles vos recomendo. Adeus. (Sai Banquo.) Todos agora o tempo gastem como lhes
parecer melhor, até às sete horas. Porque depois nos seja a sociedade muito mais agradável, até à ceia iremos ficar só. Até esse instante, que Deus seja
convosco. (Saem todos, com exceção de Macbeth e um criado.) Olá, maroto, uma palavra! Aguardam nossas ordens aqueles indivíduos?
CRIADO - Sim, milorde, no portão do palácio.
MACBETH - Ide buscá-los. (Sai o criado.) Ser rei assim, é nada; é necessário sê-lo com segurança. É muito grande nosso medo de Banquo; em sua postura
soberana domina qualquer coisa que deve ser temido. E corajoso como poucos e à têmpera indomável do espírito une uma sabedoria que faz o valor no alvo
acertar sempre. Tirante ele, não há pessoa alguma de quem eu tenha medo, e junto dele meu gênio se intimida, como dizem que com o de Marco Antônio acontecia,
quando junto de César. Dirigiu-se corajoso às irmãs, interpelando-as quando o nome de rei elas me deram, forçando-as a falar-lhe a seu respeito, ao que
elas, quais videntes, o saudaram como pai de uma série de monarcas. Na cabeça puseram-me a coroa sem frutos e nas mãos o cetro estéril, para que mo arrebate
um punho estranho, pois para herdeiro nenhum filho tenho. Se for assim, para a posteridade de Banquo, tão-somente, sujei a alma; matei para eles o gracioso
Duncan; por causa deles ódio pus no vaso da minha paz, havendo entregue a minha jóia eterna ao comum imigo do homem, para fazê-los reis, para dos filhos
de Banquo fazer reis! Antes que venha isso a se dar, que à liça baixe o fado, para o combate eterno. Quem vem lá? (Entra o criado, com dois assassinos.)
Fica na porta e espera até que eu chame.
(Sai o criado.) Não foi ontem que juntos conversamos?
PRIMEIRO ASSASSINO - Sim, com vossa licença, majestade.
MACBETH - Muito bem; refletistes no que eu disse? Sabeis, pois, que foi ele quem, até hoje, vos tem deixado em posição precária, o que pensáveis que
era culpa minha. Tudo isso vos expus à farta em nossa última conferência; apresentei-vos as provas da maneira por que tendes sido prejudicados e burlados,
os instrumentos, quem os manejava, e tudo o mais, que proclamar faria até mesmo meia alma ou tipo idiota: "Eis o que Banquo fez!"
PRIMEIRO ASSASSINO - Sim, explicastes-nos.
MACBETH - Sim; mas fiz mais ainda, o que é o objeto desta nossa segunda conferência. Porventura a paciência predomina tanto em vós, que deixeis passar
tudo isso? Tão religiosos sois, que poderíeis rezar pela prosperidade deste bom homem e dos seus, sendo verdade que sua mão pesada à sepultura vos fez
vergar e para todo o sempre vos arruinou a casa?
PRIMEIRO ASSASSINO - Somos homens, meu suserano.
MACBETH - Sim, passais por homens no catálogo, como os perdigueiros, os galgos e os mastins, alãos e gosos, molossos, braços, dogues e rafeiros também
de cães, por junto, são chamados; mas distingue o registo o vagaroso, o veloz, o guardião, o de bom faro, cada um conforme as próprias qualidades que lhe
haja dado a liberal natura e que um título à parte lhes granjeia na lista em que se encontram conglobados. Com os homens dá-se o mesmo. Assim, se tendes
um lugar no registo, não sendo ele o mais mesquinho e vil da humanidade, falai, que então vos confiarei ao peito certo assunto, de cujo cumprimento resultará
ficar vosso inimigo supresso para sempre e vós mais presos à nossa gratidão e nosso afeto, pois também se ressente nosso estado da vida dele, e só se refará
se vier a falecer.
SEGUNDO ASSASSINO - Meu suserano, sou um indivíduo que os maldosos golpes do mundo e seus embates irritado de tal modo deixaram, que faria não importa
o que for para vexá-lo.
PRIMEIRO ASSASSINO - E eu sou outro tão lasso de desastres, tão amassado pelo vil destino, que a vida arriscaria em qualquer lance, para de vez perdê-la
ou endireitá-la.
MACBETH - Sabeis que Banquo foi vosso inimigo.
SEGUNDO ASSASSINO - É certo, meu senhor.
MACBETH - E meu é ainda, em conflito a tal ponto sanguinário, que os minutos de toda a sua vida ferem de perto o coração da minha. É bem verdade que
eu podia, às claras, varrê-lo para longe, reportando-me tão-só ao meu querer. Mas me contenho por causa de comuns amigos, cuja afeição não desejo ver perdida.
Terei de lastimar, assim, a morte de quem eu derrubei. Esse o motivo de recorrer agora a vosso auxílio, pois me forçam razões de muito peso a evitar que
se vulgue esse negócio.
SEGUNDO ASSASSINO - Senhor, faremos quanto nos mandardes.
PRIMEIRO ASSASSINO - Embora nossas vidas...
MACBETH - A coragem transparece de vós. Dentro de uma hora, no máximo, hei de vos mostrar o ponto em que deveis ficar e a par vos ponho da ocasião
mais propícia para a coisa, do momento adequado, pois que tudo precisará ser feito ainda esta noite, a uma certa distância do palácio, sem que vos esqueçais
de que preciso ficar sem mancha nisso. Juntamente com ele - para que o trabalho saia sem o menor senão - Fleance, seu filho, que com ele também saiu de
viagem e cujo afastamento não me importa menos do que o do pai, compartir deve também dessa hora negra. Tomai vossas resoluções à parte; já vos sigo.
SEGUNDO ASSASSINO - Já resolvemos, meu senhor.
MACBETH - Em pouco vos chamarei; ficai dentro de casa. (Saem os assassinos.) Está feito. Se há ponto em que se acoite, Banquo, tua alma no céu, será
esta noite. (Sai.)

Cena II

O mesmo. Outro quarto no palácio. Entram Lady Macbeth e um criado.

LADY MACBETH - Banquo deixou o pátio?
CRIADO - Deixou, senhora; mas retorna à noite.
LADY MACBETH - Vai, dize ao rei que eu quero ter com ele uma conversa rápida.
CRIADO - Isso mesmo, senhora, lhe direi. (Sai.)
LADY MACBETH - Tudo é perdido, quando o desejo fica repartido. Toca ao morto decerto melhor sorte que a de alegrar-se assim quem lhe deu morte. (Entra
Macbeth.) Então, marido, por que só ficardes, tendo por companhia as fantasias mais desconsoladoras e ocupando-vos com pensamentos que já deveriam ter
morrido com quem se relacionam? O que não tem remédio, não devera ser pensado sequer. O que está feito, não está por fazer.
MACBETH - Nós só talhamos a serpe, sem matá-la. Em pouco tempo se refará e volta a ser o que era, ficando o nosso miserável ódio de novo exposto ao
seu antigo dente. Que a estalar venham todas as junturas das coisas e a gemer ambos os mundos, antes de termos de tomar os nossos alimentos com medo e
de dormirmos na aflição desses sonhos pavorosos que nos têm abalado as noites todas. Muito melhor nos fora estar com o morto que, para nossa própria paz,
mandamos para o seio da paz, do que vivermos no banco de tormento de nossa alma, numa angústia sem fim. Duncan descansa no sepulcro; tranqüilo dorme, agora,
depois das convulsões febris da vida. A traição lhe fez tudo o que podia; a perfídia doméstica, o veneno, o aço, a invasão de fora, nada pode, doravante,
atingi-lo.
LADY MACBETH - Caro esposo, saiamos. Alisai esse olhar crespo; sede claro e jovial com todos hoje.
MACBETH - Sê-lo-ei, amor; o mesmo vos desejo. A Banquo dedicai todas as vossas atenções, distinguindo-o dentre todos com palavras e olhares. Pouco
firme é nossa situação, enquanto for preciso lavar nossas honras nessa corrente aduladora e as feições empregarmos como máscara do coração, que os traços
lhe disfarce.
LADY MACBETH - Precisais deixar isso.
MACBETH - Oh! tenho o espírito cheio de escorpiões, querida esposa! Sabeis que vivem Banquo e seu Fleance.
LADY MACBETH - Mas eterna não é neles a cópia da natureza.
MACBETH - É o que consola a gente; são vulneráveis. Fica, pois, alegre. Antes de completar o vôo em torno do convento o morcego e Hécate negra ter
ordenado que o besouro córneo com seu zumbido surdo dê o toque sonolento da noite, será feito algo aqui de memória pavorosa.
LADY MACBETH - O que é que vai ser feito?
MACBETH - Não macules tua inocência com saberes isso, minha pombinha, até saudares o ato. Vem, noite cega, tapa os olhos ternos do dia compassivo,
e com sangrentas mãos e invisíveis rasga o grande pacto que me deixa tão pálido! Escurece; para a mata sombria voa a gralha. Vacila o claro agente, de
fraqueza; mas a noite se atira para a presa. Admiras-te; mas fica sossegada, que o mal reforça a ação mal começada. Por favor, acompanha-me.
(Saem.)

Cena III

O mesmo. Um parque com uma estrada que vai ter ao palácio. Entram três assassinos.

PRIMEIRO ASSASSINO - Quem te disse que viesses ter conosco?
SEGUNDO ASSASSINO - Não há razão de desconfiarmos, porque ele se acha a par de tudo quanto nos incumbiram, repetindo ponto por ponto as instruções.
PRIMEIRO ASSASSINO - Fica conosco. Ainda brilham no poente algumas riscas da luz solar. É a hora em que o viajante retardado esporeia a montaria para
alcançar o desejado albergue, e de nós se aproxima o que esperamos.
TERCEIRO ASSASSINO - Silêncio! Ouço cavalos.
BANQUO (dentro) - Uma luz, Aí! Tragam-nos luz! Olá!
SEGUNDO ASSASSINO - É ele, não há dúvida. Os outros convidados já se encontram no pátio.
PRIMEIRO ASSASSINO - Seu cavalo fez um desvio.
TERCEIRO ASSASSINO - Quase de uma milha. Mas, como todos, ele comumente vai a pé deste ponto até o palácio.
SEGUNDO ASSASSINO - Uma luz! Uma luz!
TERCEIRO ASSASSINO - É ele.
PRIMEIRO ASSASSINO - É agora
(Entram Banquo e Pleance, com uma tocha.)
BANQUO - Vai chover hoje à noite.
PRIMEIRO ASSASSINO - Então que caia. (Atiram-se sobre Banquo.)
BANQUO - Oh! traição! Foge, foge, bom Fleance! Podes vingar-me. Foge! Que bandido! (Morre.)
TERCEIRO ASSASSINO - Quem apagou a luz?
PRIMEIRO ASSASSINO - Não era o certo?
TERCEIRO ASSASSINO - Um, somente, caiu, o filho foi-se.
SEGUNDO ASSASSINO - Metade, então, perdemos do trabalho.
PRIMEIRO ASSASSINO - Bem; mas vamos contar quanto foi feito.
(Saem.)

Cena IV

Um salão do palácio. Mesa posta para banquete. Entram Macbeth, lady Macbeth, Ross, Lennox, nobres e pessoas do séqüito.

MACBETH - Conheceis vossos postos; assentai-vos. E de uma vez por todas: sois bem-vindos de todo coração.
NOBRES - Agradecemos a Vossa Majestade.
MACBETH - Desejamos misturar-nos em vossa companhia, na qualidade de hóspede modesto. Nossa hospedeira fica no seu posto; mas no momento certo lhe
daremos as boas-vindas.
LADY MACBETH - Dai-a em meu nome, caro marido, a todos os amigos; pois diz-me o coração que são bem-vindos.
(O primeiro assassino aparece à porta.)
MACBETH - Vê, todos eles agradecimentos de coração te enviam. Os dois lados estão iguais; sentar-me-ei no centro. Ficai alegres; logo beberemos uma
rodada. (Aproxima-se da porta.) Sangue tens no rosto.
ASSASSINO - Nesse caso, é de Banquo.
MACBETH - Antes por fora de ti que dentro dele. Liquidados?
ASSASSINO - A garganta, senhor, tem ele aberta. Fiz-lhe isso.
MACBETH - És o melhor dos cortadores de garganta. Porém será tão hábil quem tiver feito a Fleance a mesma coisa.
ASSASSINO - Meu muito real senhor, Fleance escapou.
MACBETH - Volta-me, então, o acesso. Não fora isso, e eu estaria bom, firme qual rocha, inteiro como o mármore, tão largo, tão vasto e universal como
o ar ambiente. Mas agora estou preso, barricado, metido num curral, atado ao poste do medo das angústias insolentes. Mas Banquo está seguro?
ASSASSINO - Sim, milorde; no fundo de uma vala, tendo vinte feridas na cabeça, das quais uma qualquer já fora mais que suficiente.
MACBETH - Obrigado por isso. A velha serpe já se encontra vencida; o vermezinho que conseguiu fugir tem natureza para mais tarde produzir veneno, mas
carece de dentes por enquanto. Vai-te logo; amanhã conversaremos.
(Sai o assassino.)
LADY MACBETH - Meu real senhor, não animais os hóspedes. Fica estragada a festa, quando muitas e muitas vezes, enquanto ela dura, não afirmamos quanto
nos é grata. Para comer, têm todos suas casas; o tempero melhor em casa alheia é sempre a cortesia, parecendo sem ela as reuniões lugar deserto.
MACBETH - Galante conselheira! Que à alegria da mesa a digestão venha associar-se. À saúde das duas!
LENNOX - Vossa Alteza não quererá sentar-se?
(Entra o fantasma de Banquo e se senta no lugar de Macbeth.)
MACBETH - Nosso teto abrigaria agora as honras todas da nação, se a pessoa primorosa de Banquo aqui estivesse, a quem desejo antes ter de ralhar por
faltazinha que lastimar qualquer desastre grave.
ROSS - Sua ausência, senhor, manchou a promessa por ele feita. Queira Vossa Graça distinguir-nos com vossa real presença.
MACBETH - A mesa está completa.
LENNOX - Aqui, milorde, há um lugar reservado.
MACBETH - Onde?
LENNOX - Aqui mesmo, meu bom senhor. Que é que vos abala dessa maneira?
MACBETH - Qual de vós fez isso?
NOBRES - Fez quê, meu bom senhor?
MACBETH - Dizer não podes que fui eu que fiz isso. Não sacudas para mim teu cabelo ensangüentado.
ROSS - Levantai-vos, senhores; Sua Alteza está passando mal.
LADY MACBETH - Ficai, amigos; meu marido é assim mesmo desde criança. Sentai-vos, por obséquio; o acesso passa. Se atenção lhe prestardes, insistente,
podereis ofendê-lo, contribuindo para agravar o mal. Comei, portanto, sem olhardes para ele. - Não sois homem?
MACBETH - Sim, corajoso, que se atreveria a encarar o que espanta o próprio diabo.
LADY MACBETH - Que matéria admirável! É o produto do medo, apenas; é o punhal aéreo que - dissestes - a Duncan vos levara. Esse olhar espantado, esses
tremores que o verdadeiro medo parodiam, muito bem estariam numa história que uma mulher contasse ao pé do fogo com a aprovação da avó. Envergonhai-vos!
Por que tantas caretas? Feita a conta, só olhais uma cadeira.
MACBETH - Vede ali, por favor! Olhai! Olhai! Que me dissestes? Ora, que me importa. Se sacudir consegues a cabeça, é que podes falar. Se as sepulturas
e as carneiras os mortos nos reenviam que nelas enterramos, das entranhas dos abutres faremos nossos túmulos.
(O fantasma desaparece.)
LADY MACBETH - Quê! Desvirilizou-vos a loucura?
MACBETH - Tão certo como achar-me aqui, eu o vi.
LADY MACBETH - Fora, fora! Que opróbrio!
MACBETH - Derramado muito sangue já foi, nos velhos tempos, antes que a humana lei limpado houvesse o mundo dos pagãos, sim, e até mesmo depois têm
sido perpetrados crimes terríveis de se ouvir. Já houve tempo em que, saltado o cérebro, morria de vez alguém e... tudo estava feito. Mas os mortos, agora,
se levantam com vinte fatais golpes na cabeça e de nossas cadeiras nos empurram. E mais estranho do que o próprio crime.
LADY MACBETH - Vossos nobres amigos, caro esposo, já sentem vossa a ausência.
MACBETH - É que o esquecera... Caros amigos, não fiqueis pasmados. pois sofro há muito de uma doença estranha, que nada significa para quantos me conhecem
de perto. Vinde; a todos, amizade e saúde. Vou sentar-me. Dai-me vinho. Bem cheio; beber quero à saúde e à alegria dos presentes e à do nosso querido amigo
Banquo, que não está conosco. Oh! se estivesse! A todos! Ao ausente! Tudo a todos!
TODOS - Com lealdade homenagem vos prestamos.
(Volta ao fantasma.)
MACBETH - Fora, fora de minha vista! Esconda-te a terra! Os ossos tens sem vida alguma; enregelado o sangue. Não tens vista nesses olhos que tanto
resplandecem.
LADY MACBETH - Não vejais, nobres pares, em tudo isso senão algo habitual. Não é outra coisa. Apenas nos estraga a festa de hoje.
MACBETH - O que o homem ousa eu ouso. Tal qual híspido urso da Rússia vem para o meu lado, rinoceronte encouraçado, tigre da Hircânia. Assume qualquer
forma, menos essa; nenhuma os nervos firmes conseguirá abalar-me. Ou torna à vida e, de espada na mão, me lança um repto para um lugar deserto. Acontecendo
que a tremer eu me mostre, de menino me acoima ou rapariga. Pavorosa sombra, fora daqui! Caricatura fingida, fora! fora! (O fantasma desaparece.) Bem,
agora que sumiste, me sinto outra vez homem. Por obséquio, sentai-vos.
LADY MACBETH - Expulsastes a alegria, estragastes o convívio com esse desarranjo mais que insólito.
MACBETH - Podem dar-se tais coisas e envolver-nos como nuvem de Outono, sem que o espanto mais alto nos provoque? Assim, fazeis-me duvidar de mim próprio,
quando vejo que encarais tais visões, sem que das faces se vos altere o natural rosado, enquanto eu fico pálido de medo.
ROSS - Que visões, meu senhor?
LADY MACBETH - Não, por obséquio, não lhe faleis. Está piorando muito. As perguntas o deixam mais furioso. Boa noite para todos. A saída não vos preocupe
a ordem. Ide logo, sem outras cerimônias.
LENNOX - Boa noite; muitas melhoras para Sua Alteza.
LADY MACBETH - Uma noite tranqüila para todos
(Saem os nobres e as pessoas do séqüito.)
MACBETH - Afirmam todos que isso chama sangue; o sangue chama sangue. As pedras podem mover-se, já foi visto, e falar a árvore. Os áugures e ocultas
relações já conseguiram pela voz das gralhas, pegas e corvos descobrir os crimes de sangue mais ocultos. Em que ponto se encontra a noite?
LADY MACBETH - A competir com o dia, sem que se saiba qual vantagens tenha.
MACBETH - Que dizes de Macduff ter recusado nosso invite solene?
LADY MACBETH - Acaso enviastes-lhe, senhor, algum recado?
MACBETH - Casualmente soube disso; mas vou mandar-lhe um próprio. Não há ninguém em cuja casa eu deixe de ter algum espia. Amanhã mesmo, bem cedinho,
vou ver as irmãs bruxas. Terão de falar mais alguma coisa, pois estou decidido a saber tudo pelos piores meios. Para minha salvação tudo tem de abrir caminho.
A tal ponto atolado estou no sangue que, esteja onde estiver, tão imprudente será recuar como seguir à frente. Tenho em mente uma idéia pervertida, que
urge concretizar numa investida.
LADY MACBETH - Careceis do que à vida é grato: sono.
MACBETH - Vamos dormir; minha ilusão selvagem é muito nova; falta-lhe coragem. Somos moços demais.
(Saem.)

Cena V

A charneca. Trovão. Entram as três bruxas, que encontram Hécate.

PRIMEIRA BRUXA - Hécate, que houve? Pareceis zangada.
HÉCATE - Causa não tenho, feiticeiras? Qual a razão, bisbilhoteiras, de ser Macbeth neste negócio de morte e enigmas vosso sócio, enquanto eu, dona
de vós todas, que apresto sempre as negras bodas, não fui chamada a tomar parte no brilho e glória de nossa arte? E o que é pior: quanto fizestes a tudo
vos mostrando prestes, foi para um tipo truculento de mui grosseiro acabamento. que não vos tem nenhuma estima e só de egoísmo em tudo prima. Mas emendai-vos;
e defronte do fundo charco do Aqueronte amanhã cedo ide encontrar-me, que ele em estado está de alarme, e para lá, quase sem tino, irá saber de seu destino.
Vasos e encantos tende à mão; de tudo basta provisão. Para o ar me vou; na noite escura farei bem cedo uma ação dura. De uma grande obra a fantasia será
completa enquanto é dia. Ora uma gota espessa e crua dos cornos pende ali da lua. Vou apanhá-la antes que caia, pois, destilada, de atalaia gênios porá
de tanto alcance que, por sua força, ele se lance na destruição, à morte e ao fado a resistir qual renegado, pondo a esperança acima em tudo da própria
graça e o medo agudo. Para os mortais a segurança é o imigo mor, que jamais cansa. (Canção dentro: "Vinde, vinde," etc.) Chamam-me; é meu espírito travesso
que me aguarda das nuvens num cabeço. (Sai.)
PRIMEIRA BRUXA - Apressemo-nos; ela volta logo.
(Saem.)

Cena VI

Forres. Um quarto no palácio. Entram Lennox e outro nobre.

LENNOX - Meu discurso anterior só mui de leve tocou em vossos pensamentos, sendo-vos agora facultado interpretá-lo como vos aprouver. Direi somente
que tudo se passou por modo estranho. Por Macbeth foi chorado o meigo Duncan. Que pena! Estava morto. Muito tarde saiu de casa o nosso bravo Banquo, que,
podereis dizer, se assim quiserdes, Fleance matou, pois Fleance fugiu logo. É perigoso passear de noite. A quem não ocorreu o pensamento de quão monstruoso
foi haver Malcolm e Donalbain o pai assassinado? Que ação maldita! E como entristecido deixou Macbeth! Pois ele, na mesma hora, arrebatado de um furor
piedoso, em pedaços não fez os dois facínoras, servos do sono e escravos da bebida? Não foi nobre tudo isso? E foi prudente. Pais qualquer coração se tornaria
por demais irritado, quando os homens negar ouvisse o fato. Assim, vos digo, soube fazer a coisa, como penso que se ele vier a ter sob chave os filhos
de Duncan - o que nunca, Deus louvado, chegará a conseguir - hão de ver ambos o que é matar o pai. E o mesmo, Fleance. Mas, silêncio! Por causa de palavras
um tanto livres e por ter faltado à festa do tirano, soube há pouco que em desgraça Macduff agora vive. Caro senhor, dizer-me poderíeis em que lugar ele
encontrou abrigo?
NOBRE - Na corte da Inglaterra vive o filho de Duncan, cuja herança verdadeira o tirano retém, e é recebido pelo piedoso Eduardo com tal graça que
a má vontade da fortuna em nada do alto respeito merecido o priva. Para lá foi Macduff, a fim de ao santo rei suplicar auxílio, no sentido de estimular
Northumberland e o bravo Siward, e assim, com a ajuda desses nobres - confirmando lá do alto Deus tudo isso - possamos restituir a nossas mesas os alimentos,
sono a nossas noites, livrar nossos festejos e banquetes das facas sanguinárias, homenagens da lei prestar e receber as honras a que temos direito, coisas
essas que nos faltam de todo. Essa notícia exasperou o rei de tal maneira que aprontando se está para uma guerra.
LENNOX - Mandou ele a Macduff algum recado?
NOBRE - Mandou; porém o mensageiro turvo com um resoluto "Eu não, senhor!" as costas voltou-me decidido, resmungando, como quem diz: "Haveis de arrepender-vos
do tempo que me impõe essa resposta".
LENNOX - Que isso o ensine a ser cauto, conservando-se a distância que possa aconselhá-lo sua sabedoria. Se um santo anjo fosse à Inglaterra e desse
o seu recado antes de ele chegar, para que pronta bênção se espalhe logo em nossa pátria que geme ao peso dessa mão maldita!
NOBRE - Mandaria com ele minhas preces.
(Saem.)

ATO IV
Cena I

Uma caverna. No meio, um caldeirão a ferver. Trovão. Entram as três bruxas.

PRIMEIRA BRUXA - Gato malhado já miou três vezes.
SEGUNDA BRUXA - Três e mais uma já guinchou o ouriço.
TERCEIRA BRUXA - A harpia já gritou: "É hora! É hora!
PRIMEIRA BRUXA - Atirai no caldeirão entranhas em podridão. Os sapos das pedras frias que durante trinta e um dias suaram seu bom bocado, jogai no
pote encantado.
TODAS - Mais dores para a barrela. mais fogo para a panela.
SEGUNDA BRUXA - Lombo de cobra novinha atirai no pote asinha, pé de sapo e lagartixa, de cão a língua que espicha, pêlos brandos de morcego, asa de
bufo-sossego, de lagarto a perna fina, acúleo de colubrina jogai na sopa do mal nesta mistura infernal.
TODAS - Mais dores para a barrela, mais fogo para a panela.
TERCEIRA BRUXA - Três escamas de dragão, com bucho de tubarão que os mareantes intimida; cicuta à noite colhida, bofes de um judeu malvado, ramo de
teixo tirado em noite de muito escuro; beiço de tártaro, o duro nariz de turco, o dedinho de uma criança sem linho que matado a mãe houvesse sem dizer
nenhuma prece. Deixai bem forte a mistura; juntai do tigre a fressura, porque nosso caldeirão tenha caldo em profusão.
TODAS - Mais dores para a barrela, mais fogo para a panela.
SEGUNDA BRUXA - Esfriai com sangue de mico que o encanto ficará rico.
(Entra Hécate.)
HÉCATE - Muito bem feito; seu quinhão todas por isto ainda terão. Agora como elfos e fadas cantai à volta, de mãos dadas, para que o encanto se complete.
(Música e a canção "Espíritos negros' etc.)
SEGUNDA BRUXA - Meu dedão está coçando. Vem algum patife andando. Ferrolhos, fora! Estamos na hora.
(Entra Macbeth)
MACBETH - Que fazeis, misteriosas e sombrias bruxas de meia-noite?
TODAS - Algo sem nome.
MACBETH - Conjuro-vos por vosso próprio ofício, seja qual for sua origem: respondei-me. Mesmo que os ventos a soltar viésseis, jogando-os contra as
torres das igrejas; mesmo que as ondas escumantes venham a destruir os navios e a tragá-los; ainda que o trigo verde caia todo e as árvores se vejam derrubadas;
embora o cimo dos castelos caia na cabeça dos guardas, e as pirâmides e os palácios os picos altanados nivelem com suas bases; muito embora venha a desmoronar
todo o tesouro dos germes da natura, de tal modo que a própria destruição se mostre farta: respondei às perguntas que vos faço.
PRIMEIRA BRUXA - Fala.
SEGUNDA BRUXA - Pergunta.
TERCEIRA BRUXA - Vamos responder-te.
PRIMEIRA BRUXA - Que preferes: ouvir de nossas bocas ou da de nossos mestres?
MACBETH - Invocai-os; desejo vê-los.
PRIMEIRA BRUXA - Sangue de porca, então, nesse fogo atira, que comesse seus nove filhos, gordura de uma corda bem segura, de que pendesse, enforcado,
um suicida amaldiçoado.
TODAS - Mostra agora que és ousado.
(Trovão. Primeira aparição: uma cabeça, armada de capacete.)
MACBETH - Ouve-me, força ignota...
PRIMEIRA BRUXA - Não prossigas. Sabe o que pensas. Ouve e nada digas.
PRIMEIRA APARIÇÃO - Macbeth, Macbeth, Macbeth! Toma cuidado com Macduff, acautela-te com o thane de Fife! Desobriga-me; é o bastante.
(Desce.)
MACBETH - Quem quer que sejas, fico-te obrigado pela boa advertência. Isso concorda com meus receios. Mais uma palavra...
PRIMEIRA BRUXA - Não aceita injunções. Eis que vem outro ainda mais forte que ele.
(Trovões. Segunda aparição: uma criança ensangüentada.)
SEGUNDA APARIÇÃO - Macbeth, Macbeth, Macbeth!
MACBETH - Se três ouvidos tivesse, te ouviria.
SEGUNDA APARIÇÃO - Sanguinário sê sempre, ousado e resoluto, e aprende a rir do homem, porque ninguém nascido de mulher poderá, em nenhum tempo, fazer
mal a Macbeth.
MACBETH - Então, Macduff, podes viver. Por que de ti recear-me? Contudo, quero a segurança em dobro segurar, e penhor obter do fado. Vivo não ficarás,
para que eu possa dizer que mente o medo de alma pálida e, apesar dos trovões, dormir tranqüilo. (Trovão. Terceira aparição: uma criança coroada, com uma
árvore na mão.) Quem é que surge como descendente de um soberano e na infantil cabeça traz o fecho e diadema do comando?
TODAS - Escuta só; não fales.
TERCEIRA APARIÇÃO - Veste a força do leão, sê orgulhoso e não te importes com quem quer que resmungue ou se rebele, ou contra ti conspire, pois vencido
não há de ser Macbeth, enquanto o grande bosque de Birnam não subir contra ele ao alto Dunsinane. (Desce.)
MACBETH - Jamais isso poderá dar-se, pois quem tem poderes para a floresta armar e dizer à árvore que liberte a raiz fixa na terra? Ótimo indício!
Belo! Não eleves, rebelião, a cabeça sem que o bosque de Birnam se levante, e assim o nosso grande Macbeth há de chegar ao termo da natureza até ao alento
extremo, segundo o mortal uso. Mas agita-me o coração esta fatal pergunta: Dizei-me - se vossa arte chega a tanto - alcançarão um dia os descendentes de
Banquo o trono e o cetro deste reino?
TODAS - Não queiras saber mais.
MACBETH - Não; é preciso satisfazer-me. Se não me fizerdes esta vontade, apenas, que uma eterna maldição vos destrua. Saber quero. Par que este caldeirão
está afundando? E que barulho é esse?
PRIMEIRA BRUXA - Vê!
SEGUNDA BRUXA - Vê!
TERCEIRA BRUXA - Vê!
TODAS - Mostrai-vos como visão, angustiai-lhe o coração, aparecendo qual sombra, para sumir pela alfombra.
(Aparece uma seqüência de oito reis, tendo o último um espelho na mão; segue-o o fantasma de Banquo.)
MACBETH - Pareces muito o espírito de Banquo. Desce! Tua coroa cauteriza-me os olhos; teus cabelos - tu, uma outra fronte de ouro cingida - se parecem
com os do primeiro, tal como o terceiro que se lhe segue. Bruxas repugnantes, por que me mostrais isto? Outro! É o quarto! Olhos, estarrecei. Como! esta
linha se estenderá até ao fim do mundo? Mais um, ainda? o sétimo? Não quero ver mais nada; porém eis que surge o último com um espelho na mão, que muitos
outros, ainda, me revelam. Uns distingo com duplo globo e cetro triplicado. Pavorosa visão! Agora vejo que é verdade, pois Banquo, recoberto de sangue,
me sorri e mos indica, como se filhos dele fossem todos. (As visões desaparecem.) Como! É assim!
PRIMEIRA BRUXA - É assim mesmo. Mas por que Macbeth treme do que vê? Manas, ele desvaria; infundamos-lhe alegria, revelando de nossa arte a mais sedutora
parte. No ar porei muitos encantos. enchendo-o de sons e cantos, enquanto vós a rodada deixareis bem acabada, para que este rei potente conosco fique contente.
(Música. As bruxas dançam, desaparecendo depois, com Hécate.)
MACBETH - Onde estão? Já se foram? Que maldita se torne sempre esta hora perniciosa no calendário. - Entrai! Quem está aí?
(Entra Lennox.)
LENNOX - Que quer Vossa Grandeza?
MACBETH - Acaso vistes as irmãs feiticeiras?
LENNOX - Não, milorde.
MACBETH - Infectado seja o ar em que cavalgam e maldito quem quer que lhes dê crédito. Há pouco ouvi barulho de cavalo. Chegou alguém?
LENNOX - Sim; dois ou três correios, milorde, que a notícia vos trouxeram de que Macduff fugiu para a Inglaterra.
MACBETH - Para a Inglaterra!
LENNOX - Sim, senhor bondoso.
MACBETH - Ó tempo! antecipaste-te a meus atos assustadores! Nunca alcançaremos a intenção fugitiva, se com ela não fizemos seguir o ato expedito. Doravante
ser-me-ão os primogênitos do coração também os primogênitos do braço. E agora mesmo, porque fiquem coroadas as ações com os pensamentos, em prática ponhamos
essa idéia. Vou surpreender o burgo de Macduff, de Fife apoderar-me, sua esposa passar à espada, os filhos e, assim, todas as almas desgraçadas de sua
raça. Ameaças não farei qual um demente; dobra-se o ferro enquanto ele está quente. Basta de aparições. É os tais senhores, onde se encontram? Conduzi-me
a eles.
(Saem.)

Cena II

Fife. Castelo de Macduff. Entram lady Macduff, seu filho e Ross.

LADY MACDUFF - Que fez, para exilar-se assim de súbito?
ROSS - Precisais ser paciente, nobre dama.
LADY MACDUFF - Ele o não foi. Loucura foi a fuga; quando não pelos atos, pelo medo nos mostramos traidores.
ROSS - Não sabemos se o medo há nisso parte ou só prudência.
LADY MACDUFF - Prudência? Abandonar a esposa e os filhos, a casa, as dignidades, numa parte de onde ele mesmo foge? Não nos ama; não possui coração.
A carricinha - dos passarinhos o de menor porte - em defesa da prole no seu ninho briga com a coruja. O medo é tudo, nada o amor, e a prudência é coisa
alguma numa fuga assim fora de propósito.
ROSS - Querida prima, sede moderada, por obséquio, pois vosso esposo é sábio, nobre, sensato e, mais do que nós todos, conhece as injunções do nosso
tempo. Não me atrevo a falar mais claramente, mas cruel é o tempo em que traidores somos sem o sabermos, quando ouvimos boatos sobre o que receamos, sem
sabermos o que nos faz ter medo, desgarrados vamos num mar violento e tempestuoso, sem direção alguma. Bem, despeço-me. Dentro de pouco aqui estarei de
volta. As coisas, quando o ponto pior atingem, ou aí param, ou de novo sobem para onde antes estavam. Lindo primo, que Deus vos abençoe.
LADY MACDUFF - Ainda tem pai; no entanto, é como se já não tivesse.
ROSS - Revelo-me insensato; se mais tempo ficasse aqui, podia desgraçar-me, sobre prejudicar-vos. Bem, despeço-me definitivamente.
(Sai.)
LADY MACDUFF - Olá, menino, vosso pai está morto. Que destino tereis agora? Como vivereis?
O FILHO - Como os pássaros, mãe.
LADY MACDUFF - Como! De vermes e de mosquitos?
O FILHO - Não; do que encontrar, foi o que eu quis dizer; como eles fazem.
LADY MACDUFF - Pobre bichinho! Nunca terás medo de laço, máquina e armadilha.
O FILHO - Medo por quê? Não foi tudo isso feito para os pássaros pobres. Ainda vive meu paizinho, apesar do que dissestes.
LADY MACDUFF - Não, morreu. Como vais fazer agora para arranjar um pai?
O FILHO - De que maneira fareis, também, para arranjar marido?
LADY MACDUFF - Ora, em qualquer mercado compro vinte.
O FILHO - Então os comprareis para vendê-los?
LADY MACDUFF - Falas com muito espírito e, de fato, bastante para a idade.
O FILHO - Mãe, meu pai foi um traidor?
LADY MACDUFF - Sim, é o que ele foi.
O FILHO - Que é um traidor?
LADY MACDUFF - Ora, é toda pessoa que jura e mente.
O FILHO - Todos os que fazem isso são traidores?
LADY MACDUFF - Quem quer que assim proceda, é traidor e merece ser enforcado.
O FILHO - E precisam ser enforcadas todas as pessoas que juram e mentem?
LADY MACDUFF - Todas.
O FILHO - E quem é que as enforca?
LADY MACDUFF - Ora, os homens de bem.
O FILHO - Então os mentirosos e os que juram não passarão de grande tolos, pois há mentirosos e jurados bastantes para darem nos homens de bem e para
os enforcarem.
LADY MACDUFF - Que Deus te ajude agora, macaquinho. Mas, como farás para arranjar outro pai?
O FILHO - Se ele tivesse morrido, haveríeis de chorar a morte dele. Se o não fizésseis, seria sinal certo de que eu logo iria ter novo pai.
LADY MACDUFF - Pobre tagarela, como sabes falar!
(Entra um mensageiro.)
MENSAGEIRO - Formosa dama, Deus vos abençoe. Não sabeis quem eu sou, conquanto eu saiba tudo o que se refere ao vosso estado. Temo que algum perigo
esteja prestes a vos tocar. No caso de aceitardes o conselho de um homem tão singelo, não vos deixeis ser encontrada aqui. Fugi com vossos filhos. Estou
certo de que, atemorizando-vos, procedo como selvagem; mas ser mais explícito fora crueldade bárbara, que muito perto de vós já se acha. O céu vos guarde.
Não me atrevo a ficar aqui mais tempo. (Sai.)
LADY MACDUFF - Para onde hei de fugir? Nunca fiz mal. Mas agora me ocorre que me encontro neste mundo terreno, onde é louvável fazer o mal, às vezes,
e, por vezes, o bem fazer é insânia perigosa. Par que valer-me, então, dessa defesa feminina, dizendo simplesmente que não fiz mal? (Entram assassinos.)
Que caras serão essas?
ASSASSINO - Onde está vosso esposo?
LADY MACDUFF - Não há de estar, espero-o, em nenhum ponto tão profano que possa ser achado por tipos como tu.
ASSASSINO - É um traidor.
O FILHO - Mentes, peludo!
ASSASSINO - Como, espécie de Ovo? Filhinho da traição! (Apunhala-o.)
O FILHO - Ele matou-me, mãe. Fugi, sem demora. (Morre.)
(Lady Macduff sai gritando "Assassínio!" perseguida pelos assassinos.)

Cena III

Inglaterra. Diante do palácio do rei. Entram Malcolm e Macduff

MALCOLM - Busquemos uma sombra desolada para desafogar os tristes peitos, chorando seus pesares.
MACDUFF - Não! Saquemos da espada cortadora e, como bravos, amparar procuremos nossa pátria que ameaça desabar. Novas viúvas, cada manhã, ululam; novos
órfãos soluçam; novas dores no céu batem, que ressoa tal como se sofresse juntamente com a Escócia e as mesmas sílabas emitisse de dor.
MALCOLM - Chorar só hei de sobre o que creio; creio o que conheço, e assim que o tempo se mostrar amigo, estando em mim fazer alguma coisa tornando-se-me
o tempo favorável, farei o que puder. O que dissestes, talvez seja verdade. Esse tirano, cujo nome, tão-só, nos deixa a língua coberta de feridas, como
honesto já foi considerado. Vós o amastes. Atingido por ele ainda não fostes. Sou moço; mas por mim talvez pudésseis torná-lo vosso devedor. A astúcia
manda sacrificar um cordeirinho pobre, inocente e fraco, para a cólera propiciar de um deus.
MACDUFF - Não sou traidor.
MALCOLM - Mas traidor é Macbeth. Pode dobrar-se uma leal natureza e em tudo boa ante uma imperial ordem. Mas preciso que me perdoeis; modificar não
posso com o pensamento o que realmente sois. Os anjos ainda brilham, muito embora tenha caído o mais brilhante deles. Se as feições da virtude os vícios
todos a assumir viessem, ela nem por isso deixaria de ter o mesmo aspecto.
MACDUFF - Já perdi a esperança.
MALCOLM - Porventura no mesmo ponto em que achar fui a dúvida. Par que razão deixastes, tão de súbito e sem vos despedir, a esposa e os filhos, esses
caros penhores, elos fortes do verdadeiro amo? Nessas suspeitas não vejais, por obséquio, mancha alguma que vos possa atingir, mas tão-somente minha tranqüilidade.
Mui sincero podereis ser, pense eu o que pensar.
MACDUFF - Sangra, então, grande pátria. Poderosa tirania, reforça tua base, porque a virtude contra ti não se alça. Carrega o roubo, pois o teu direito
já viste confirmado. Adeus, milorde; ser não quero o vilão que ora imaginas, nem por todas as terras que nas garras se encontram do tirano, acrescentadas
das riquezas do Oriente.
MALCOLM - Ofensa alguma desejara fazer-vos. Não por medo absoluto de vós assim me exprimo penso que nossa pátria sob o jugo sucumbe do tirano; chora
e sangra, vendo aumentar-lhe cada dia as chagas uma ferida nova. Sei que muitas mãos se levantariam na defesa de meus direitos, e aqui mesmo acaba de ofertar-me
a Inglaterra generosa alguns milhares delas. Mas, ao cabo, depois de haver pisado na cabeça do tirano, ou de tê-la em minha espada, ficará minha pátria
desditosa com mais vícios do que antes, padecendo muito mais, por maneiras mais variadas do que nunca, debaixo do domínio de quem lhe suceder.
MACDUFF - Quem será esse?
MALCOLM - Eu mesmo, é claro, em quem percebo vícios enxertados tão bem que, se algum dia a pegar vierem, até mesmo o negro Macbeth parecerá nitente
neve, considerando-o nossa pobre pátria como um cordeiro, quando comparado com minha enormidade de defeitos.
MACDUFF - Nem mesmo nas legiões do hórrido inferno poder-se-ia encontrar um mais completo demônio que a Macbeth no mal se iguale.
MALCOLM - Concedo que ele seja sanguinário, lúbrico, falso, enganador, avaro, violento, malicioso e com os sentidos sempre vivos a todos os pecados
que possam ser nomeados; porém fundo não tem, não pode ter, minha lascívia. Vossas esposas, vossas filhas, vossas matronas, vossas virgens jamais hão de
deixar plena a cisterna de meus vícios, vindo a vencer minha avidez os óbices que ao meu desejo, acaso, se opuserem. Antes Macbeth que um rei com tais
defeitos.
MACDUFF - A licenciosidade é tirania da própria natureza, que bastantes tronos felizes já deixou vazios antes do tempo e ocasionou a queda de muitos
reis. Mas não tenhais receio de vos apoderar do que já é vosso. Podereis expansão dar aos prazeres em toda plenitude, parecendo, no entanto, frio e, assim,
burlando o mundo. Damas condescendentes não nos faltam. Não é possível que abrigueis abutre no íntimo, que devore quantas forem entregar-se à grandeza
que pendida para elas perceberem.
MALCOLM - Além disso, de minha natureza mal formada nasce avareza tão descomedida que, vindo eu a reinar, darei a morte a muitos nobres, para despojá-los
de suas propriedades; os tesouros deste cobiçarei; deste outro, a casa. Todo aumento de bens ser-me-á tempero para excitar-me a fome, de tal modo que farei
suscitar brigas injustas entre os melhores e mais leais vassalos, para destruí-los e ficar com tudo.
MACDUFF - A avareza penetra mais, emite raízes mais nocivas que a luxúria transitória do estio; foi o gládio que matou nossos reis. Mas pouco importa:
nada temais; a Escócia tem recursos para saciar-vos só com o que for vosso. Tudo isso é suportável, que as virtudes contrabalançam tudo.
MALCOLM - Mas é o que eu não possuo! As qualidades próprias de um rei: justiça, temperança, perseverança, devoção, piedade, coragem, destemor, magnificiência
me são de todo estranhas, e eu me alegro com dividir os vícios em diversas variedades, a fim de praticá-los de todas as maneiras. Se estivesse em meu poder,
atiraria logo no inferno o doce leite da concórdia, a paz universal deixara esfeita e confundira toda segurança que no mundo existisse.
MACDUFF - Oh Escócia! Escócia!
MALCOLM - Se é digno de reinar um homem desses, falai, pois sou tudo isso que vos disse.
MACDUFF - Se é digno de reinar? Nem de viver. Ó povo miserável, governado por um monstro ilegítimo, de cetro cheio de sangue! Quando novamente poderás
ver teus dias de saúde, se o herdeiro mais autêntico do trono, maldito se declara, blasfemando contra sua própria raça? Teu virtuoso pai foi um santo rei;
a soberana que à luz te deu, vivendo mais de joelhos do que de pé, matava os dias todos de sua própria vida. Meus; os males que em tua própria cabeça despejaste
me baniram da Escócia. Ó coração! tua esperança acaba neste ponto!
MALCOLM - Macduff, essa emoção em tudo nobre, nascida da pureza, a negra dúvida me tirou da alma e, alfim, meus pensamentos reconciliou com tua fé
sem jaça e tua probidade. O demoníaco Macbeth tem procurando por enredos desse gênero pôr-me ao seu alcance, ensinando-me, assim, a mais modesta sabedoria
a desconfiar da pressa crédula por demais. Mas que lá do alto juiz Deus seja entre nós dois agora, pois desde este momento sob a tua direção me coloco.
Aqui renego minha autodetração e abjuro todos os vícios e defeitos que em mim próprio lançara há pouco, como incompatíveis com minha natureza. Nunca tive
contacto com mulher, não fui perjuro mal cobicei aquilo que é meu mesmo, jamais quebrei qualquer promessa feita, demônio algum traí para seus próprios
companheiros do inferno. Como à vida, tenho amor à verdade. Minha estréia na mentira foi esta a meu respeito. O que eu realmente sou se encontra à tua
disposição e do meu pobre povo. Para auxiliá-lo aqui se achava há pouco, no instante de chegares, o ancião Siward com dez mil aguerridos combatentes, no
ponto de partirem. Vamos juntos; que o favor da vitória corresponda à justiça de nossa discordância. Por que ficais calado?
MACDUFF - É mui difícil reconciliar eventos a um só tempo não gratos e agradáveis.
(Entra um médico.)
MALCOLM - Bem; voltaremos a falar sobre isso. Dizei-me, por obséquio: o rei vem vindo?
O MÉDICO - Sim, senhor; numerosos desgraçados o auxílio dele aguardam, pois a doença de que padecem tem zombado da arte. Mas sua mão - tal é a santidade
com que o céu a dotou - vai sãos deixá-los no instante de os tocar.
MALCOLM - Agradecido, doutor, vos fico.
(Sai o médico.)
MADCUFF - De que doença fala?
MALCOLM - Chamam-lhe o mal. Miraculoso feito realiza este bom rei, já presenciado várias vezes por mim, desde que me acho no reino da Inglaterra. De
que modo consegue o céu mover, só ele sabe. Mas pessoas tocadas de moléstias estranhas, cheias de úlceras, tristíssimo espetáculo a todos, desespero da
medicina, sãs ele tem posto com lhes pôr ao pescoço uma áurea estampa, ao tempo em que murmura santas preces. Dizem também que aos reis seus sucessores
transmitirá esse poder bendito de curas realizar. Mas além dessa virtude estranha, o dom possui celeste da profecia, sobre lhe cercarem o trono várias
bênçãos que o declaram cheio de graças.
MACDUFF - Olhai quem vem chegando!
MALCOLM - Um dos meus compatriotas; mas ainda não o conheço.
(Entra Ross.)
MACDUFF - Sede aqui bem-vindo, meu sempre gentil primo.
MALCOLM - Reconheço-o agora. Ó Deus bondoso, afasta em tempo tudo quanto estrangeiros nos tem feito.
ROSS - Amém, senhor.
MACDUFF - A Escócia continua no mesmo lugar de antes?
ROSS - Pobre pátria, revela medo até de conhecer-se. De nossa mãe não pode ser chamada, mas nossa sepultura, porque nela só ri ainda quem ignora tudo;
os gritos e suspiros, os gemidos que os ares dilaceram, emitidos apenas são, sem serem percebidos. As mais violentas dores assemelham-se a emoção cotidiana;
os dobres fúnebres passam despercebidos e as pessoas de bem fenecem antes de murcharem as flores do chapéu e a vida perdem sem virem a adoecer.
MACDUFF - Oh! relação muito precisa e, no entretanto certa!
MALCOLM - Qual é a última dor?
ROSS - A que de vida tem uma hora faria ser vaiado quem viesse relatá-la; a cada instante nasce uma nova dor.
MACDUFF - E minha esposa, como ficou?
ROSS - Ora, essa ficou bem.
MACDUFF - E meus filhos?
ROSS - Também.
MACDUFF - A paz de todos não havia o tirano ainda assaltado?
ROSS - Não; deixei-os em paz ao despedir-me.
MACDUFF - Sede menos avaro de palavras. Que aconteceu?
ROSS - No instante em que eu trazia para aqui essas novas que tão fundo pesavam sobre mim, soube do boato de que bastantes homens valorosos se tinham
posto em campo, o de que logo me convenci ao ver os contingentes do tirano aprestados para a luta. Eis o momento de intervirmos. Vossos olhares, lá na
Escócia, aprestariam soldados, levariam para a luta nossas mulheres, para porem termo à desgraça indizível.
MALCOLM - Sirva a todos de consolo saber que já me encontro a caminho da Escócia. Dez mil homens cedeu-nos a Inglaterra, comandados pelo bondoso Siward.
Mais completo guerreiro e mais idoso não se encontra em toda a Cristandade.
ROSS - Ah! se eu pudesse dar-vos notícia tão reconfortante! Mas trouxe-vos palavras para serem uivadas no ar deserto, onde não possam ser percebidas
por nenhum ouvido.
MACDUFF - A que dizem respeito? À causa pública? Ou trata-se, talvez, de sofrimento particular, que a um peito, apenas, toca?
ROSS - Todas as almas nobres têm sua parte; mas a maior, decerto, vos pertence.
MACDUFF - Se me pertence, não me priveis dela. Vamos; dai-ma depressa.
ROSS - Que não fiquem vossos ouvidos para sempre odiando minha língua, por ter de molestá-los com os sons mais tristes que jamais ouviram.
MACDUFF - Hum! Presumo o que seja.
ROSS - Vosso burgo foi assaltado; vossa esposa e os filhos, mortos selvagemente. Relatar-vos como se deu, o mesmo fora ao monte de caças abatidas vosso
corpo sem vida acrescentar.
MALCOLM - Oh céu piedoso! Não, homem! Levantai vosso chapéu! Dai palavras à dor. Quando a tristeza perde a fala, sibila ao coração, provocando de pronto
uma explosão.
MACDUFF - Meus filhinhos também?
ROSS - Esposa, filhos, criados, tudo o que acharam.
MACDUFF - E eu, ausente! Também minha mulher?
ROSS - Já vo-lo disse.
MALCOLM - Coragem! Aprestemos o remédio para essa dor mortal com prepararmos nossa vingança.
MACDUFF - Ah! Ele não tem filhos! Todos os meus pequenos tão graciosos? Dissestes "todos?" Oh infernal abutre! Como! Todos? Os lindos pequerruchos
juntamente com a mãe, num só mergulho?
MALCOLM - Como homem, resisti.
MACDUFF - É o que farei; mas preciso também sentir como homem. Não consigo esquecer que hajam vivido essas pessoas que tão caras me eram. O céu viu
isso, sem que os amparasse? Depravado Macduff Por tua causa assassinados todos eles foram; por mim, que nada valho. Não por culpas próprias, mas pelas
minhas, tão-somente, caiu a morte sobre as almas deles. Que o céu lhes dê sossego.
MALCOLM - Que seja isso a pedra de amolar de vossa espada. Fazei que a dor se vos transforme em cólera; não emboteis o peito: enraivecei-o.
MACDUFF - Como mulher, agora, poderia representar com os olhos e mostrar-me valente só com a língua. Ó céu bondoso! põe termo às dilações e, face a
face com o demônio da Escócia me coloca, ficando ele ao alcance de meu gládio: vindo a escapar, que lhe perdoe o céu.
MALCOLM - Viril é essa cantiga. Vamos, vamos procurar logo o rei. Prestes se encontram nossas forças; só falta despedirmo-nos. Macbeth está maduro
para a queda, já tendo prestes os poderes do alto os instrumentos que hão de sacudi-lo. Criai coragem; não há noite fria, por mais longa que seja, sem
seu dia.
(Saem.)

ATO V
Cena I

Dunsinane. Um quarto no castelo. Entram um médico e uma camareira.

O MÉDICO - Estive de vigília convosco durante duas noites consecutivas, mas não posso descobrir indício de verdade em tudo o que dissestes. Quando
foi que ela andou como sonâmbula pela última vez?
A CAMAREIRA - Desde que Sua Majestade foi para a campanha eu a tenho visto levantar-se da cama, atirar sobre si o roupão de dormir, abrir a escrivaninha,
tira uma folha de papel, dobrá-la, escrever alguma coisa, ler o que escreveu, selar depois a folha e voltar em seguida para a cama, fazendo tudo isso,
no entanto, no mais profundo sono.
O MÉDICO - É indício de uma grande perturbação da natureza receber os benefícios do sono e executar, simultaneamente, os atos de vigília. Nessa inquietação
do sono, além desses passeios e de ocupações concretas, não percebestes se, por vezes, ela dizia alguma coisa?
A CAMAREIRA - Ouvi coisas, senhor, que não me atrevo a repetir.
O MÉDICO - A mim podereis dizer o que ouvistes, sendo mesmo de vantagem que o façais.
A CAMAREIRA - Nem a vós nem a ninguém, uma vez que não tenha testemunha para confirmar o que disser. (Entra Lady Macbeth, com uma vela.) Vede! Aí vem
ela! É assim mesmo que sempre faz, e, por minha vida, a dormir profundamente. Observai-a; aproximai-vos dela um pouco.
O MÉDICO - Como conseguiu essa luz?
A CAMAREIRA - Ora, estava perto dela. Tem sempre luz ao pé de si; são ordens expressas.
O MÉDICO - Como vedes, está com os olhos bem abertos.
A CAMAREIRA - É certo; mas os sentidos estão fechados.
O MÉDICO - Que faz ela agora? Vede como esfrega as mãos.
A CAMAREIRA - É um gesto habitual nela, fazer como quem lava as mãos. Já a vi continuar desse jeito durante um quarto de hora.
LADY MACBETH - Aqui ainda há uma mancha.
O MÉDICO - Atenção! Está falando. Vou tomar nota do que ela disser, para reforçar a memória.
LADY MACBETH - Sai, mancha amaldiçoada! Sai! Estou mandando. Um dois... Sim, já é tempo de fazê-lo. O inferno é sombrio... Ora, marido! Ora! Um soldado
ter modo? Por que termos medo de que alguém o venha a saber, se ninguém poderá pedir contas a nosso poder? Mas quem poderia imaginar que o velho tivesse
tanto sangue no corpo?
O MÉDICO - Ouvistes o que ela disse?
LADY MACBETH - O thane de Fife tinha uma mulher. Onde se encontra ela agora? Como! Estas mãos nunca ficarão limpas? Basta, senhor; não falemos mais
nisso. Estragais tudo com essa vacilação.
O MÉDICO - Ide, ide! Ficastes sabendo mais do que seria conveniente.
A CAMAREIRA - Ela falou o que não devia, tenho certeza. Só Deus sabe o que ela sabe.
LADY MACBETH - Aqui ainda há odor de sangue. Todo o perfume da Arábia não conseguiria deixar cheirosa esta mãozinha. Oh! Oh! Oh!
O MÉDICO - Que suspiro! Tem o coração por demais opresso.
A CAMAREIRA - Eu não quisera ter no peito um coração assim, nem pelas dignidades de todo o corpo.
O MÉDICO - Bem, bem, bem.
A CAMAREIRA - Rogai a Deus, senhor, para que seja assim.
O MÉDICO - Esta doença ultrapassa minha arte. No entanto, conheci sonâmbulos que morreram santamente em suas camas.
LADY MACBETH - Ide lavar as mãos; vesti vosso roupão de dormir. Não fiqueis assim tão pálido. Torno a dizer-vos que Banquo está enterrado; não poderá
sair da sepultura.
O MÉDICO - Também isso?
LADY MACBETH - Para o leito! Para o leito! Estão batendo no por tão. Vinde, vinde! Dai-me a mão. O que está feito não está por fazer. Para o leito,
para o leito, para o leito! (Sai.)
O MÉDICO - E agora, ela vai para o leito?
A CAMAREIRA - Diretamente.
O MÉDICO - Circulam por aí terríveis boatos. feitos contra a natura sempre engendram conseqüências doentias. As consciências manchadas descarregam
seus segredos nos surdos travesseiros. Mais de padre tem ela precisão do que de médico. Deus, Deus que nos perdoe! Acompanhai-a. Deixai bem longe dela
quanto possa causar-lhe qualquer dano. E ora, boa noite. Ela deixou-me o espírito confuso e a vista absorta com tamanho abuso. Penso, mas não me atrevo
a dizer nada.
A CAMAREIRA - Boa noite, bom doutor.
(Saem.)

Cena II

Planície perto de Dunsinane. Entram com bandeiras e tambores Menteith, Caithness, Angus, Lennox e soldados

MENTEITH - As forças da Inglaterra já estão perto. Trá-las Malcolm, seu velho tio Siward e o valente Macduff. Arde a vingança neles todos, pois uma
causa dessas fará os próprios mortos levantarem-se para o combate atroz e sanguinário.
ANGUS - Decerto vamos encontrá-los perto da floresta de Birnam; vêm por lá.
CAITHNESS - Alguém sabe informar se Donalbain vem com o irmão?
LENNOX - Decerto não, senhor. Possuo a lista da nobreza toda; nela o filho se encontra do bom Siward e muitos outros moços ainda imberbes, que como
homens estréiam.
MENTEITH - E, o tirano, que está fazendo?
CAITHNESS - Alenta a resistência do grande Dunsinane. Alguns murmuram que ele está louco; outros, que o odeiam menos, o nome dão de fúria valorosa.
Mas certo é que ele sua natureza desmanchada abarcar já não consegue no cinturão da regra.
ANGUS - Ele ora sente como as mãos se lhe envisgam com seus crimes secretos. A toda hora uma revolta lhe exprobra a deslealdade. Seus soldados não
os move o amor; ordens somente cumprem. Começou a notar que a dignidade do título de rei lhe envolve o corpo como faria a roupa de um gigante a um anão
que a roubasse.
MENTEITH - Quem pudera censurar-lhe os sentidos, exaltados por tantos sobressaltos e recuos, quando tudo o que há nele se envergonha por nele se encontrar?
CAITHNESS - Então sigamos para a frente; prestemos a obediência pelo dever imposta. Dirijamo-nos para o médico desta terra doente, e, para restaurarmos
nossa pátria, derramemos com ele todo o sangue de nossas veias.
LENNOX - Ou somente quanto bastar para orvalhar a flor bendita e afogar a cizânia parasita. Marchemos para Birnam.
(Saem marchando.)

Cena III

Dunsinane. Um quarto no castelo. Entram Macbeth, o médico e pessoas do séqüito.

MACBETH - Deixai de me trazer essas notícias. Que fujam todos, pois enquanto a mata de Birnam não chegar a Dunsinane, não poderá manchar-me o frio
medo. Que é o pequeno Malcolm? Porventura não nasceu de mulher? Ora, os espíritos que os processos mortais mui bem conhecem, a meu respeito assim se pronunciaram:
"Nada temas, Macbeth, pois nenhum homem nascido de mulher pode vencer-te". Fugi, portanto, miseráveis thanes, e ide associar-vos aos ingleses lúbricos.
Jamais se dobrará meu forte espírito sob o peso da dúvida, nem há de mostrar meu coração menor vontade. (Entra um criado.) Que o diabo te condene em negro,
biltre de cara de coalhada. Onde encontraste essas feições de ganso?
CRIADO - É que há dez mil...
MACBETH - Gansos, vilão?
CRIADO - Soldados, meu senhor.
MACBETH - Vai esfregar o rosto e de vermelho pintar o medo, fígado de lírio! Que soldados, poltrão? Morte de tua alma! Essas bochechas brancas como
linho são ministro do medo. Que soldados, cara de leite?
CRIADO - Não vos desagrade, os soldados ingleses.
MACBETH - Tira a tua cara daqui. Depressa! (Sai o criado.) Seyton! Dói-me demais o coração, quando contemplo... Seyton! torno a chamar... Essa batalha
vai-me dar alegria para sempre ou tirar-me do trono neste instante. Já vivi muito; minha vida inclina-se para o Outono de folhas amarelas, e a nada do
que deve vir no rasto da velhice: amor, honras, obediência, amigos, poderei eu aspirar. Em lugar disso, maldições, não ditas em voz alta, mas fundas; homenagens
à flor da boca apenas, que, de grado o pobre coração contestaria, conquanto não se atreva... Seyton! digo.
SEYTON - Que é o vosso prazer gracioso agora?
MACBETH - Quais são as outras novidades?
SEYTON - Quanto vos disseram, senhor, foi confirmado.
MACBETH - Hei de lutar até que me retalhem toda a carne dos ossos. Dai-me logo minha armadura. Vamos!
SEYTON - Ainda é cedo.
MACBETH - Quero vesti-la já. Mais cavaleiros mandai já limpar a redondeza. Dai-me a armadura. Como vai passando vossa doente, doutor?
O MÉDICO - Não se acha doente, propriamente, senhor, mas perseguida por freqüentes visões que do repouso de todo a têm privado.
MACBETH - Cura-a disso. Não podes encontrar nenhum remédio para um cérebro doente, da memória tirar uma tristeza enraizada, delir da mente as dores
aí escritas e com algum antídoto de oblívio doce e agradável aliviar o peito que opresso geme ao peso da matéria maldosa que comprime o coração?
O MÉDICO - Para isso deve o doente achar os meios.
MACBETH - Então atira aos cães a medicina. Não quero saber dela. Vamos logo! Minha armadura! Dai-me o meu bastão. Seyton, manda sair... Doutor, os
thanes fogem de mim. - Vamos! Mais pressa nisso! - Se examinar, doutor, pudesses a água do meu reino, encontrar a doença dele, restituir-lhe por meio de
uma purga a saúde primeira, tão notória, aplaudir-te-ia que os próprios ecos aplaudissem de novo. - Fora! digo - Que ruibarbo, que sene ou droga drástica
nos limpará desses ingleses todos? Já ouviste falar deles?
O MÉDICO - Sim, bondoso senhor; vossos reais preparativos nos forçam a ouvir algo.
MACBETH - Não hei de ter da morte medo inane, se Birnam não vier a Dunsinane.
O MÉDICO (à parte) - E eu se longe estivesse neste dia, nenhum lucro a voltar me obrigaria.
(Saem.)

Cena IV

Planície perto da mata de Dunsinane. Entram com tambores e bandeiras Malcolm, o velho Siward e seu filho, Macduff, Menteith, Caithness, Angus, Lennox, Ross
e soldados, marchando.

MALCOLM - Primos, creio que o dia se aproxima de ficarem seguras nossas casas.
MENTEITH - Não o duvidamos.
SIWARD - Que floresta é esta?
MENTEITH - É a floresta de Birnam.
MALCOLM - Que cada homem corte um galho e o carregue, pois, com isso, não só faremos sombra para as tropas, como a erro induziremos o inimigo no cômputo
dos nossos.
SOLDADOS - Será feito.
SIWARD - Só o que ouvimos dizer é que o tirano, confiante sempre, em Dunsinane se acha, onde vai resistir ao nosso cerco.
MALCOLM - É nisso que depõe toda a esperança, pois sempre que ocasião se tem mostrado, todos o deixam, grandes e pequenos, só à força o servindo os
que ainda restam, mas sem que o coração influa nisso.
MACDUFF - Que nosso justo juízo aguarde a marcha dos acontecimentos. Enquanto isso, em prática ponhamos toda a nossa ciência de bons soldados.
SIWARD - Está na hora de ficarmos sabendo com certeza quem tem a haver, quem fez maior despesa. Da mente nasce uma esperança inglória; mas dos golpes
certeiros, a vitória, que é para onde marchamos.
(Saem marchando.)

Cena V

Dunsinane. No interior do castelo. Entram com tambores e bandeiras Macbeth, Seyton e soldados.

MACBETH - Desfraldai as bandeiras nas muralhas de fora. A senha é sempre: "Aí vêm eles!" Nosso forte castelo ri de um cerco de brinquedo como este.
Que aí fiquem, até que a fome e a peste os extermine. Se eles não se tivessem reforçado com os que do nosso lado estar deviam, barba com barba nós os enfrentáramos
sem receio nenhum e os tocaríamos, vencidos, para casa.
(Ouve-se dentro um grito de mulher.)
SEYTON - Um grito de mulher, meu bom senhor. (Sai.)
MACBETH - Quase esqueci que gosto tem o medo. Já houve tempo em que um só grito, à noite, gelados os sentidos me deixava, e a relação de qualquer fato
horrendo eriçar os cabelos me fazia, como se vivos fossem. Entupi-me de tal modo com coisas pavorosas, que o horror, já agora familiar das minhas cogitações
de morte, não consegue abalar-me no mínimo. (Volta Seyton.) Que houve?
SEYTON - A rainha morreu, senhor.
MACBETH - Devia ter morrido mais tarde; então, houvera ocasião certa para tal palavra. O amanhã, o amanhã. Outro amanhã, dia a dia se escoam de mansinho,
até que chegue, alfim, a última sílaba do livro da memória. Nossos ontens para os tolos a estrada deixam clara da empoeirada morte. Fora! apaga-te, candeia
transitória! A vida é apenas uma sombra ambulante, um pobre cômico que se empavona e agita por uma hora no palco, sem que seja, após, ouvido; é uma história
contada por idiotas, cheia de fúria e muita barulheira, que nada significa. (Entra um mensageiro.) Vens para usar a língua; fala logo.
MENSAGEIRO - Meu gracioso senhor, desejara dizer-vos o que penso ter visto, mas não sei como expressar-me.
MACBETH - Muito bem; pois falai, caro senhor.
MENSAGEIRO - Quando estava de guarda na colina, olhei naturalmente para Birnam, tendo-me parecido que a floresta começava a mover-se.
MACBETH - Mentiroso lacaio!
MENSAGEIRO - Que em mim caia vossa cólera, se não for mesmo assim, pois à distância de três milhas podeis vê-la avançando: uma floresta em movimento.
É isso.
MACBETH - Se estiveres mentindo, no mais próximo galho serás dependurado vivo, até que a fome venha ressecar-te; se a verdade falaste, não me importa
que comigo procedas de igual modo. De coragem revisto-me e começo a suspeitar do equívoco do demo que mente sob a capa da verdade. "Nada temas até que
a Dunsinane chegue a mata de Birnam." E ora acontece que uma floresta vem a Dunsinane! Às armas, logo! Às armas! Para fora! Se o que ele disse é certo,
é indiferente fugir daqui ou combater na frente. Começo a achar a luz do sol enjoada. Ah! se este mundo se acabasse em nada! Tocai o alarma! Abri-vos,
sepultura! Posso morrer, mas dentro da armadura.
(Saem.)

Cena VI

O mesmo. Uma planície diante do castelo. Entram com tambores e bandeiras Malcolm, o velho Siward, Macduff etc. e seu exército, com galhos de árvores.

MALCOLM - Eis-nos bastante perto; jogai fora vosso amparo de folhas e mostrai-vos como sois mesmo. Vós, meu digno tio, com vosso nobre filho, meu bom
primo, comandareis nosso primeiro corpo. Nós e o digno Macduff encarregados ficaremos do mais, de acordo em tudo com nossas próprias ordens.
SIWARD - Passai bem. Se hoje eu achar as forças do tirano, que a morrer venha, se não causar dano.
MACDUFF - Tocai logo os clarins; soprai bem forte nesses arautos de sangueira e morte.
(Saem.)

Cena VII

O mesmo. Outra parte da planície. Alarma. Entra Macbeth.

MACBETH - Amarraram-me ao poste; é-me impossível fugir, sendo preciso que, como urso, agüente o ataque deles. Onde se acha quem não houvesse de mulher
nascido? Esse é que eu temer devo; mais ninguém.
(Entra o jovem Siward.)
O JOVEM SIWARD - Teu nome?
MACBETH - Terás medo só de ouvi-lo.
O JOVEM SIWARD - Não; ainda mesmo que mais quente fosse do que o de todos que no inferno se acham.
MACBETH - Então, Macbeth me chamo.
O JOVEM SIWARD - O próprio diabo não poderia pronunciar um título que mais odioso fosse a meus ouvidos.
MACBETH - Não; nem mais de temer.
O JOVEM SIWARD - Mentes, tirano detestável. Com a ponta desta espada vou provar que mentiste.
(Batem-se; o jovem Siward é morto.)
MACBETH - Tu nasceste de mulher. Para mim são como o vento golpes de quem teve esse nascimento. (Sai.)
(Alarma. Entra Macduff)
MACDUFF - Deste lado é o barulho. Mostra o rosto, tirano! Se não cais por minha espada, perseguido serei eternamente pelo fantasma de minha esposa
e pelos de meus filhinhos caros. Impossível me será atacar esses coitados que trazem armas só pelo salário. Ou te encontro, Macbeth, ou na bainha reponho
a espada, intacta e sem trabalho. Deves estar ali. Aquele estrépito quer anunciar alguém de grande fama. Faze que o encontre, ó Fado! Mais não peço. (Sai.
Alarma.)
(Entram Malcolm e o velho Siward.)
SIWARD - Por aqui, meu senhor; sem resistência entregou-se o castelo. Estão lutando dos dois lados os homens do tirano. Os nobres thanes nesta guerra
deram provas de alto valor. O próprio dia está a vosso favor; já quase nada resta para fazer.
MALCOLM - Vimos de perto como o imigo lutava.
SIWARD - Eis o castelo, caro senhor, entrai.
(Saem. Alarma.)
(Volta Macbeth.)
MACBETH - Por que fazer como o romano bobo e o corpo atravessar com a própria espada? Enquanto vidas eu achar, os golpes serão para elas, não para
o meu corpo.
(Volta Macduff)
MACDUFF - Volta-te, cão do inferno!
MACBETH -Dentre todos os homens só a ti tenho evitado. Retira-te; tenho a alma carregada por demais de teu sangue.
MACDUFF - Não me sobram palavras; minha voz é minha espada, monstro mais sanguinário do que possa expressar a linguagem.
(Batem-se.)
MACBETH - É trabalho perdido o teu. Com mais facilidade poderias fender o ar impalpável com tua espada aguda do que sangue do meu corpo arrancar. Deixa
que a lâmina caia sobre cimeiras vulneráveis. Ampara-me um encanto; a vida tenho assegurada contra qualquer homem nascido de mulher.
MACDUFF - Perde a confiança em tal encantamento, e que o mau anjo a que serviste até hoje te declare que do ventre materno foi Macduff tirado antes
do tempo.
MACBETH - Maldita seja a língua que diz isso, pois com medo deixou a melhor parte de minha intrepidez, e que não sejam cridos jamais esses demônios
falsos que nos enganam com palavras dobres e sustenta a promessa feita a nossos ouvidos, sem que a nossas esperanças intacta a deixem nunca. Não pretendo
cruzar armas contigo.
MACDUFF - Então, entrega-te, covarde, e vive para te tornares espetáculo e assombro do universo. Como fazemos com esses monstros raros, teu retrato
será posto num mastro, tendo em baixo a inscrição: "Eis o tirano!"
MACBETH - Não me rendo; beijar não hei de a terra diante dos pés do juvenil Malcolm, nem de isca servirei para a canalha. Embora Birnam viesse a Dunsinane
e tu, que me resistes, não tivesses nascido de mulher, vou tentar o último recurso. Ponho assim, em frente ao corpo, meu escudo guerreiro. Vem, Macduff!
E que por todos seja amaldiçoado quem primeiro gritar: "Estou cansado!"
(Saem, lutando.)
(Retirada. Voltam, com tambores e bandeiras, Malcolm, o velho Siward, Ross, thanes e soldados.)
MALCOLM - Desejara que salvos estivessem os amigos que faltam.
SIWARD - E forçoso que alguém pereça. Mas, por quanto vejo, custou barato um dia tão glorioso.
MALCOLM - Falta Macduff e vosso nobre filho.
ROSS - Vosso filho, senhor, pagou a dívida de soldado. Viveu até ser homem; logo que pôde comprovar a força no posto em que, sem vacilar, lutava, como
homem pereceu.
SIWARD - Então, morreu?
ROSS - Sim; seu corpo, também, já foi trazido do campo de batalha. Não podemos medir a causa de vosso alto luto pelo mérito dele, o que seria deixá-la
sem limites.
SIWARD - Foi ferido na frente?
ROSS - Sim, na frente.
SIWARD - Que soldado de Deus, então, se torne. Se tantos filhos eu tivesse quantos cabelos, não quisera mais bonita morte para nenhum. Esse é o seu
dobre de finados.
MALCOLM - Merece maior luto; disso me incumbirei.
SIWARD - Não; não merece. Dizem que morreu bem; pagou o escote. Assim, Deus o acompanhe. Mas diviso novo conforto que nos chega a tempo.
(Volta Macduff, com a cabeça de Macbeth.)
MACDUFF - Salve, rei! pois que o és. Olha onde se acha a cabeça maldita do tirano. O mundo já está livre. Ora te vejo cercado pelas jóias de teu reino,
que saudação te enviam do imo peito e a cujas vozes associo a minha: sê feliz, Rei da Escócia!
TODOS - Sê feliz, Rei da Escócia!
(Fanfarras.)
MALCOLM - Não deixaremos que se passe o tempo sem que com vosso amor justemos contas e, assim, fiquemos quites com vós todos. Meu thanes e parentes,
sede condes de hoje em diante, os primeiros que na Escócia tal título recebem. Quanto resta para fazer e que será plantado, segundo as próprias condições
do tempo: como o repatriamento dos amigos que para longe foram, porque às malhas fugissem da astuciosa tirania; o julgamento dos cruéis ministros do carniceiro
morto e sua esposa tão infernal quanto ele e que, segundo consta, pôs termo à vida com violência, por suas próprias mãos: tudo isso e quanto mais ainda
for preciso, pela graça da Graça a cabo havemos de levar na medida do tempo e do lugar. Convido-vos, assim, de mui bom grado, para que em Scone me vejais
coroado.
(Fanfarras. Saem.)

Ridendo Castigat Mores
www.jahr.org

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__________________
Junho 2000
OS DEZ MANDAMENTOS
Tradução - Mariangela Amorim
Você encontrou seu caminho através do labirinto da www até a Christians.org. Você pode estar se perguntando o quê é o cristianismo afinal de contas. Com certeza é um conjunto de crenças sobre Deus e o mundo, como está escrito no credo dos apóstolos e confirmado por todas as igrejas cristãs. Mas é também um estilo de vida que se encontra nos Dez Mandamentos e exemplificado na vida de Cristo.
Nenhum conjunto de leis governou o comportamento humano tão abrangentemente e por tanto tempo como essas. Mesmo os que não acreditam em Deus tem honrado os Dez Mandamentos, as tábuas da ética por mais de 3.000 anos.
Os Dez Mandamentos começam com uma importante palavra do seu patrocinador: "Eu sou o Senhor vosso Deus, que os tirou do Egito, da terra das escravidão" (Êxodo 20:2). Antes de Deus entregar as leis à Israel, ele os lembrou de sua prisão debaixo do domínio de faraó. Pelo poder e graça de Deus, eles agora eram livres da escravidão do Egito, mas sujeitos à Lei. Nós encaramos a mesma alternativa hoje. Ou nós seremos governados pela palavra dos nossos governadores ou pela palavra de Deus, diante do qual todos os reis, faraós, presidentes e primeiro ministros se dobrarão.

Essa leis são mais fundamentais do que a Constituição. Você pode inventar as leis morais de Deus, tanto quanto você pode inventar as leis naturais da física. O mesmo Deus que fez ambas as leis, as deu a você. Não se pode emendar ou repelir nenhuma delas. Você nem mesmo pode quebrar as leis. Eu estou falando que saltar de um avião sem para quedas talvez desafie a lei da natureza, mas não a quebre. Da mesma maneira, você pode desafiar a lei moral de Deus, mas não quebrá-la. Você só pode ser quebrado por ela. O Deus que te deu vida, também forneceu os mandamentos para vive-la.
Para começar.........
ADORAR O DEUS CERTO

O primeiro mandamento é: "Não adorarás outro deus além de mim" (Êxodo 20:3). Parece bem fácil. Qual foi a última vez que você ficou seriamente tentado em adorar baal ou oferecer incenso à Júpiter ou beber em homenagem à Bacus, ou ainda oferecer sacrifícios à Zeus? Para onde foram todos os ídolos? O grande Jeová engoliu todos os seus competidores? As pessoas só precisam de nove mandamentos hoje em dia?
Certamente os tempos mudaram desde que Moisés trouxe as tábuas do monte Sinai. Parece que o mundo mudou do politeísmo para o monoteísmo, e do monoteísmo para o ateísmo - da adoração de muitos deuses para a adora de um Deu, para a adoração de nenhum. Os pagãos da velha guarda tiveram que escolher entre um universo caótico com deuses sem lei ou um universo ordenado por um Deus e suas leis morais. Os pagãos modernos escolheram entre esta ordem divina e o plano fortuito, fatalístico do universo ateísta. Essa escolha é geralmente feita inconscientemente, não por clara convicção, mas por devaneio, não pela negação de Deus, mas por perder interesse nele. Pessoas que dizem: "eu acredito em Deus" e não ligam, são ateístas de coração.
Nós poderíamos esperar que o primeiro mandamento dissesse: "Acreditarás em Deus", um mandamento contra o ateísmo. Mas Deus já se incumbiu disso na criação. Eles nos criou com um vazio em nossas almas que só pode ser preenchido por Ele. Ninguém precisa ensinar um bebê a ter fome ou sede. Nós só temos que mostrar ao bebê como satisfazer sua sede ou fome. Embora nada além de Deus possa satisfazer a fome da nossa alma, muitas pessoas gastam suas vidas tolamente procurando ídolos substitutos. Idolatria são as porcarias que alimentam a alma.
Adorar qualquer outro deus que não seja o verdadeiro Deus, nos leva a subnutrição espiritual e escravidão. Nenhum substituto de Deus é grande o suficiente para sustentar o compromisso de sua vida. As páginas da História estão cheias de tristes histórias de vítimas que renderam lealdade de primeira à causas de segunda que os decepcionaram.
Qualquer coisa que você adore, independente do seu nome, é o seu deus. Adorar alguma coisa é tratá-la como a melhor coisa na sua vida, o centro de todos os seus interesses.
Se sua vida está centrada em algo muito pequeno, você se encontrará girando em círculos ao invés de explorar o maravilhoso universo que Deus criou e do qual ele mesmo é o centro e eixo. A adoração do Deus verdadeiro, por outro lado, amplia sua vida e te capacita a experimentar e gozar o seu todo. Adorar qualquer coisa menor do que Deus, sufoca e escraviza sua vida.
A bíblia nos lembrar uma vez após a outra que Deus é um Deus ciumento, que não dividirá sua afeição com outro (Êxodo 34:14; Deuteronômio 4:24; 5-9; Josué 24:19). Ele ama muito você para ficar simplesmente de lado enquanto você vai se prostituir após outros deuses que só te desapontarão e destruirão. (Êxodo 34:15-16; Ezequiel 16: 1-43; Oseias 4: 12; 9:1)
Deuses substitutos possuem muitos nomes. Considere apenas três dos mais comuns: ego, sexo e segurança.
O deus do ego
Os idolatras do deus moderno do ego, estão em maior necessidade do primeiro mandamento do que seus companheiros da antigüidade que adoravam outro deus que não a si mesmos - um poder maior que eles. Os politeístas primitivos tinham a intenção de servir a Deus. Os monoteístas modernos, no entanto, constantemente confundem suas próprias imagens com a divindade. Ao invés de dizer: "por mim, um pecador, Deus falou", eles dizem implicitamente: "Quando eu falo, Deus concorda". Eles se adoram com todo seu coração, força , alma e mente, e servem somente a si mesmos (ver Marcos 12:29-30). O apóstolo Paulo os descreve como pessoas "cujo deus é o seu estômago" (Filipenses 3:19).
"Ego", como todos os ídolos, faz promessas que não pode cumprir. Embora pareça satisfazer no momento, no final desaponta. "Coma, beba e se regale", diz a si mesmo, "porque amanhã morreremos" (Lucas 12:19; I Cor. 15:32). Mas como você consegue se regalar se sua mente está perseguida pelo fatal amanhã? Viver para seu próprio prazer é a ato menos prazeroso que você pode praticar. Se teus próximos não o matarem por estarem enojados, você morrerá vagamente pelo tédio e solidão. Adorar a si mesmo é a única religião onde quanto mais devotado você for, menos seguidores você conquista.
Se o deus do ego não consegue satisfazer, considere o segundo deus da trindade profana.
O deus do sexo
O deus do sexo tem "marcado presença". Os antigos cananitas chamavam este deus de Astarote; os gregos o chamavam de Afrodite; os romanos de Vênus. O seu nome e figuram mudam, mas a mesma luxúria que movia os antigos à adorarem o deus do sexo, ainda move o coração das pessoas hoje. O problema de se falar qualquer palavra de aviso a respeito deste deus, no entanto, é que possui tantas qualidades atrativas e admiráveis, que seus devotos pensam que estamos sendo baixos. Vamos deixar claro que o deus do sexo, como qualquer outro deus falso, é um anjo caído. Começa como algo bom que perdeu a forma. O sexo foi criado por Deus para nosso prazer. Mas quando usamos de forma errada, quando sacrificamos outros valores por causa dele, quando o adoramos supremamente, traz miséria e deboche. Sexualidade não é algo intrinsecamente mal; é algo bom. E por essa razão somos tentados a idolatra-la, dando a ela a devoção que pertence somente a Deus.
Nenhum ídolo traí seus adoradores tão rápido quanto o deus do sexo. Nenhum outro deus faz promessas tão grandes e falha tão dolorosamente. A revolução sexual do século XX, que prometia curar nossa reprimida vida sexual vitoriana, criou, na verdade, uma condição pior. Ela deixou no seu despertar mais gravides indesejadas, mais doenças, e mais lares destruídos, corações machucados e vidas devassadas, do que praguejaram os nossos antepassados tolerantes e reprimidos.
Se o deus do sexo não consegue satisfazer, considere o terceiro deus da trindade profana.
O deus da segurança.
Devotos do deus da segurança acreditam que a fé é um substituto muito pobre para o dinheiro ou depósito bancário. Seu objetivo é adquirir bens materiais suficiente para que eles não tenham que mais que confiar em Deus para o seu "pão diário".
Jesus chamou o deus da segurança "Mamom" (Mateus 6:24). A raiz da palavra é "confiar". É uma boa palavra. Originalmente se refere ao que nós confiamos a um amigo ou um banco. Mais tarde veio a significar "aquilo onde alguém coloca sua confiança". E finalmente Mamom foi considerado como ídolo, que recebe confiança no lugar de Deus.
Se considerarmos todos os nossos bens materiais como simples bens a nós confiados pelo Verdadeiro Dono, somos apenas administradores responsáveis. Mas no momento que colocarmos nossa confiança em bens ao invés Daquele que os deu, nos tornamos idólatras.
Se for oferecida uma alternativa em que, ou desistirmos de Deus, ou de nossas possessões, a maioria de nós, eu espero, escolheria Deus. Mas a escolha raramente é colocada de maneira abrupta. No subconsciente tomamos decisões que mostram que nosso compromisso é com coisas, não com Deus. Segurança (pessoal ou nacional) é a base das nossas decisões, o ponto pivô da nossa dedicação. Quando o barco afunda, nós preferimos ter ouro no lugar de Deus. Arão deixou os israelitas derreterem seus brincos de ouro para fazer um bezerro . Nos nossos dias, nós adoramos o ouro sem derrete-lo. Ainda que nas nossas moedas tenha a frase: "Em Deus nós confiamos", nós queremos dizer "Neste Deus nós confiamos".
Jesus não disse que devemos servir mais á Deus do que ao dinheiro, mas ele disse que nós temos que servir ou à Deus ou ao dinheiro (Lucas 16:13). È Deus ou Mamom; faça sua escolha! Você ou irá servir a Deus e usar o dinheiro, ou servir o dinheiro e usar a Deus.
O deus da segurança é enganador e sua cadeia sutil. È como o papel de pegar moscas e a mosca: a mosca posa na substância grudenta e pensa: meu papel; apenas para descobrir que o papel está dizendo: minha mosca. Tenha cuidado se acaso suas possessões o possuem. Aqueles que buscam o deus da segurança, estão condenados a perpétua insegurança. Algum dia, mesmo o mais seguro e rico vai ouvir de Deus: "Tolo! Esta noite pedirão a tua alma; e quem irá gozar de todas as coisas que juntou para si? " (Lucas 12:20)
A humanidade é incuravelmente religiosa. Você tem necessidade de adorar algo. Você não consegue não adorar. Sua única escolha é escolher qual deus irá adorar. Você é livre para decidir qual deus controlará sua vida. È livre para escolher se sua veias terão o sangue vermelho de Deus ou o tóxico pus dos ídolos. Parafraseando o grande Josué:
Escolham neste dia quem vocês servirão, o verdadeiro e vivo Deus de seus pais ou os deuses do ego, sexo e segurança, os deuses daqueles os quais entrais para conquistar a terra. Porém eu e minha casa, serviremos ao Senhor. (Josué 24:15)


ADORAR A DEUS DA MANEIRA CERTA
Adoração é comumente considerada como uma atividade inofensiva. Algumas pessoas acham que é tão brando quanto um sanduíche de purê de batata. Considere, no entanto, a possibilidade da adoração ser altamente perigosa. Certamente, na mente daqueles que desenharam o primeiro código moral bíblico, adoração errada está no mesmo páreo com vícios, tais como homicídio, roubo e adultério. Os primeiros dois dos Dez Mandamentos tratam com adoração.
Hoje em dia, as pessoas se sentem menos culpadas em quebrar esse mandamento do que os outros. Você se surpreenderia em saber que a bíblia diz mais sobre o segundo mandamento do que os restantes? Eis o que Deus disse por Moisés: "Não farás imagens para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma que há encima nos céus ou embaixo na terra, nem nas águas embaixo na terra. Não te encurvarás a elas nem as servirás, pois eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a maldade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração, daqueles que me odeiam, mas faço misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos." (Êxodo 20: 4-6).
O segundo mandamento tem duas partes: não faça imagens e não as adore. Quando você diz para os seus filhos não fazerem algo e eles perguntam porquê? Você responde: porque sim?
Nove dos dez mandamentos Deus nos manda cumprir porque sim. Mas o segundo nos dá três motivos:
1 Deus não tolera rivais;
2 punirá aqueles que o odeiam;
3 recompensará aqueles que o amam e o obedecem.
Em outras palavras, a forma como adoramos é importante, porque o Deus que adoramos faz diferença. Se Deus não amasse ou odiasse, punisse ou recompensasse, então quem se importaria como ou quando alguém o adora? A adoração foi trivializada porque pessoas sabem o quanto ela é importante. É importante para você e é importante para Deus.
O segundo mandamento refuta a idéia popular de que desde que alguém seja sincero, Deus está satisfeito com qualquer tipo de adoração. Especificamente, sem imagens.
Imagens do Deus verdadeiro são proibidas tanto quanto de deuses falsos. Foi assim que Arão se meteu em encrenca. Enquanto seu irmão Moisés, estava no alto da montanha recebendo as leis, Arão estava no vale fazendo um bezerro de ouro dos brincos que os israelitas ganharam dos egípcios (Êxodo 12:35) Eles dedicaram o bezerro de ouro especificamente para o Deus de Israel. Arão e seus contemporâneos ficariam chocados se alguém sugerisse que eles estavam adorando um deus estrangeiro. As pessoas disseram: "Esse é o nosso deus, que nos tirou do Egito", e eles fizeram uma festa para honrar o Senhor (Yahweh)" (Êxodo 32:1-5). Eles eram sinceros, mas Deus não estava contente. Ele disse que as pessoas pecaram e o rejeitaram. A imagem possuía seu nome, mas ele sabia que não era realmente ele que as pessoas estavam adorando.
Relíquias religiosas tornam-se ídolos quando tiram a atenção de Deus. A serpente de bronze, pôr exemplo, era um tesouro nacional. Deus disse a Moisés para faze-la e usá-la para curar o povo israelita das picadas de cobra no deserto. (Números 21:9). É um símbolo do poder salvador de Cristo. Mas quando foi adorado como um ídolo deve de ser destruída pelo rei Ezequias (II Reis 18:4). Figuras do Santo facilmente se tornam imagens santas - imagens que as pessoas adoram por si mesmas.
Eu creio que pela misericórdia de Deus nós não temos um único manuscrito original assinado pelos apóstolos ou profetas. Nossa bíblia é traduzida de cópias antigas do original. Se tivéssemos uma cópia autografada por Pedro, Paulo ou João, nós com certeza a transformaríamos num ídolo, não focalizando o que diz, mas no objeto em si mesmo.
Recentemente um grande interesse cresceu em torno do Santo Sudário, como sendo os panos que envolveram Jesus no seu sepultamento. Francamente, mesmo que seja o tecido original, eu espero que não possa ser provado. A tentação seria esmagadora para as pessoas darem mais atenção as vestimentas que Jesus usou, do que no Ressurrecto Salvador. Somos afortunados de não termos a Arca de Noé, nem a Arca da Aliança, nem as genuínas relíquias de Jesus e dos Apóstolos. Nossa adoração deve estar focalizada somente em Deus e não nas coisas que Deus usou através da História para se fazer conhecido.
Para driblarmos a tentação crônica em transformar os meios de adoração na sua finalidade, corrompendo o ato da adoração, Deus ordenou: "Não farás esculturas de nenhum ser......." No século VIII uma guerra começou entre os cristãos por causa do segundo mandamento. Os Iconoclastas ("quebradores de imagens"), exigiram que todas as imagens de adoração fossem destruídas. A partir deste dia, a Igreja Ortodoxa do Oeste restringiu imagens à figuras coloridas numa superfície plana enquanto a Igreja Católica Romana do Oeste permitiu imagens de escultura. Nenhuma medida, obviamente, chegou ao cerne da questão: a atitude e intenção da adoração. A imagem nada mais é do que uma sólida metáfora. Qualquer metáfora -esculpida, pintada escrita ou falada - pode se tornar um ídolo quando é tratada como santa por si mesma.
Metáforas e imagens são inevitáveis. A esposa de um prisioneiro de guerra guarda uma imagem, fotografia, do seu marido num lugar de destaque em sua casa. Serve como uma lembrança da ausência do seu esposo. Mas quando ele retorna, ela coloca a foto de lado e dá toda atenção à ele. E, o que é mais importante, ela permite que ele seja diferente da sua memória e da foto no porta retrato.
A igreja, que é a noiva de Cristo, precisa do mesmo bom senso sobre todas as suas imagens. Com muita freqüência, através da História, a igreja tem substituído a Presença Real por figuras. Aí, quando Deus arromba nosso mundo de tempos em tempos, a igreja se encontra tolamente agarrada a suas imagens inadequadas. Uma cena tão sem sentido poderia ser desfeita com uma boa risada se não tivesse conseqüências tão ameaçadoras.
Imagens confeccionadas despersonificam à Deus. Transformam o Grande Eu Sou numa coisa. Porque, você pode se perguntar, alguém faria isso? Porque isso mantém Deus "no seu lugar". Se Deus é uma coisa ao invés de um ser, as pessoas podem pensar a seu respeito, pregar, estudar, escrever, provar sua existência e usa-lo para satisfazer seus desejos. Esse é um conveniente tipo de deus de se ter por perto - um mordomo cósmico para quem as pessoas dão 10% de gorjeta se fizer um bom serviço!
Mas Deus não é uma coisa. Ele é uma pessoa. E uma pessoa só se satisfaz com relacionamentos de amor. Você gostaria que seu marido ou esposa, ou melhor amigo o tratasse da mesma forma que as imagens de escultura tratam Deus? Você ficaria lisonjeado se provassem sua existência, falassem, pensassem, e estudassem você? Uma pessoa você pode conhecer; uma coisa só se tem conhecimento a seu respeito. Não é suficiente saber que existe um Deus. Você sabia que o Deus que você conhece é um ser? Você pode dizer como o apóstolo Paulo: " Tudo que eu quero é conhecer a Cristo e experimentar o poder da sua ressurreição" (Filipenses 3:10)?
Imagens de escultura tentam controlar Deus. È constrangedor adorar um deus que não se padroniza a nossa compreensão e não faz o que esperamos dele. Através da História nós temos tentado domesticar a Divindade, em o manso Todo Poderoso. Nossos esforços tem sempre resultado em alguma forma de imagem de idolatria Todo empenho em conhecer a Deus como um fato objetivo "lá longe" ou um exaltado ideal "aqui" tenta trazer Deus para nossa possessão. Nós fazemos isso confeccionando ídolos, tanto os de metal como os mentais. Ídolo não é só a falsa imagem que seguramos em nossas mãos, mas também a idéia falsa que nutrimos em nosso coração.
Mas Deus transcende tudo o que podemos pegar ou conter. Quando pensamos que temos Deus, a verdade é que ele escorregou pelos nossos dedos, e somos deixados apegados a alguma imagem medíocre que nós mesmos fizemos. Nós nunca conheceremos a Deus tentando segura-lo, mas sim permitindo que ele nos segure. Nós não conhecemos a Deus tornando-o uma de nossas posses, que é absurdo e blasfemo, mas nos deixando ser possuídos por ele e nos tornando abertos ao seu ser que é infinito, o qual está dentro de nós, ao nosso redor e sobre nós (Efésios 4:6)
Imagens de escultura destroem a personalidade humana e sua liberdade. Idólatras fazem deuses como a si mesmos, mas com uma exceção: seus deuses não tem personalidade nem liberdade. Não importa se são uma boneca de trapo de uma tribo selvagem ou um sangrento conceito filosófico, eles nunca alcançam a personalidade e liberdade de quem os fez. Os fazedores de escultura são mais vivos do que suas imagens. Thomas Carlyle observou que as pessoas se tornam como os deuses que adoram. Em vão se tornando gradualmente como os deuses que servem, os idolatras, consequentemente perdem personalidade e liberdade. Eles se tornam menos pessoas e mais um objeto - um objeto que não pode agir, apenas reagir as condições ao seu redor. Ralph Waldo Emerson nos alerta: "Os deuses que adoramos escrevem seus nomes em nosso rosto, tenha certeza disso. E o homem adorará algo - não tenha dúvida disso também. Ele pode achar que o seu tributo é pago em secreto, no escuro esconderijo do seu coração - mas virá para fora. Aquele que domina, determinará sua vida e caráter. Portanto, é melhor termos cuidado com o que adoramos, porque aquilo que estamos adorando é o que estamos nos transformando'.
O velho salmista disse com sabedoria: "Nosso Deus está nos céus; e faz tudo conforme lhe agrada. Os deuses das nações são prata e ouro, trabalho de mãos humanas. Têm boca mas não falam, olhos mas não vêem; têm ouvidos mas não ouvem, nariz mas não cheiram. Têm mãos mas não sentem; pés, mas não andam, e nenhum som saí de sua garganta. Sejam como eles os que os fazem e depositam neles sua confiança" (Salmos 115: 2-8)
A adoração de Deus, na verdade, é um negócio perigoso quando distraído ou distorcido por falsas imagens. Insulta a Deus, despersonifica e controla sua pessoa. Além disso, desumaniza os adoradores destruindo sua personalidade e liberdade. Adore o Deus verdadeiro da maneira certa.

NÃO TOMARÁS O NOME DE DEUS EM VÃO
Eu ouvi alguém dizer: "Você nunca aprende a xingar até tirar a carteira de motorista". O corolário é: Você nunca aprende a orar até que seus filhos aprendam a dirigir! Amaldiçoar e orar são as duas formas mais comuns de usar o nome de Deus.
A pequena Susie de 7 anos, virou para seu pai perguntou: "Porque o Tommy não fala?"
"Ele não consegue", seu pai respondeu. Bebes do tamanho dele nunca falam".
Ah, falam sim, Susie respondeu. "Na escola dominical da semana passada nosso professor disse que Jó amaldiçoou o dia que ele nasceu"!
Embora Susie tenha entendido errado a história bíblica, ela não estava longe da verdade. As pessoas aprendem o hábito do linguajar baixo na mais tenra idade. Mesmo que algumas pessoas não se importem com palavrões, Deus leva o que as pessoas dizem mais a sério do que a censura da mídia. Na verdade, ele dedicou um dos dez mandamentos para esse assunto: "Não use meu nome para o mal, porque eu, o Senhor vosso Deus, punirei qualquer que tomar meu nome em vão"
Antes de considerar o significado desse mandamento, vamos entender o que ele não significa.
O QUE NÃO SIGNIFICA ESTE MANDAMENTO
Obscenidade
Embora eu não goste de obscenidades, esse não é o alvo do terceiro mandamento. Eu me oponho a perda de tempo verbal no fundamento da ética e modos sociais e não nas bases da sagrada escritura. Eu não me utilizo de palavrões pelo mesmo motivo que não limpo meu nariz em público ou falo de boca aberta durante as refeições. Os costumes, e não a bíblia, dizem que aquela palavra de quatro letras de origem anglo - saxônica é obscena. Eu acho algumas palavras pessoalmente ofensivas, mas o ato delas me ofenderem não significa que ofendem à Deus. A violação de padrões culturais e do bom gosto não é necessariamente violação da lei divina.
Palavras
O mal referido no terceiro mandamento não diz respeito a palavra em si mesma, mas na idéia e na intenção por traz dela.
"Isso é o que eu gosto em você", o diácono disse para o pregador.
"Quando suas tacadas de golfe são péssimas, você não amaldiçoa como outras pessoas."
"Pode ser, o pregador confessou, mas quando eu pigarreio, a grama morre!"
O humorista Grady Nutt sugeriu que alguém teve a audácia de inventar palavrões para os pastores. Quando os pastores dão uma martelada no dedão eles podem dizer: " Ai, ai", mas isso não é suficiente para tirar a dor.
Deixando a brincadeira de lado, pessoas debaixo de grande pressão se expressão com linguajar pesado. As palavras, no entanto, podem não ter nenhum sentido literal. Jó reclamou: "Você pensa que pode reprovar palavras, quando o discurso de um homem desesperado é vento?" (Jó 6:26). A maioria do profano é vazio de significado como o vento. Considere o absurdo de pessoas que, se de um lado, protestam em auto e bom som contra guerra nuclear, por outro lado, entregam os outros ao fogo do inferno! Mais absurdo ainda, embora menos ameaçador, é o fato de pessoas amaldiçoarem sinais de trânsito, ferramentas que não conseguem encontrar e unhas quebradas. O sobrenome de Deus não é "maldição"!
(Nota: em inglês, existe uma palavrão muito usado que é God demnet, que significa Deus te amaldiçoe, mas é bem pejorativo)
A malícia não está nas palavras em si mesmas, mas na intenção pensada por trás delas. Mark Tawain estava certo quando disse: " O espírito da ira - não as palavras - é pecado; e o espirito da ira é amaldiçoar. Nós começamos a amaldiçoar antes de aprendermos a andar. As pessoas se enganam se acham que falar droga, porcaria, coco, caracas, orra, os afasta de pecar quando o pensamento e intenção dos seus corações é a mesma que está por trás das palavras de baixo escalão. Você pode imaginar o General Sherman dizer: "A guerra é uma droga!"?
O terceiro mandamento não é apenas um esconderijo puritano contra linguajar baixo, mas se parece mais com um aviso colocado numa usina de energia: "Perigo - Alta Voltagem". Quando Uzias tocou acidentalmente a arca da aliança, ele foi fulminado. (II Samuel 6:7). A palavra se espalhou com rapidez: "Tenha cuidado com a forma que tocas em Deus, você pode se machucar!" Aqueles antigos judeus entenderam o que muitos modernos esquecem: Deus é uma rede elétrica viva. Trate-o com seriedade.
O s judeus levaram o nome de Deus tão a sério que eles se privaram de pronunciá-lo. Mesmo quando liam as Sagradas Escrituras, eles substituíam a Adonai, que significa Senhor, pelo nome escrito no texto. Era tão comum essa prática, que quando as vogais foram acrescentadas no texto, as vogais de Adonai, foram inseridas nas consoantes do nome impronunciável de Deus. Portanto, Jehovah é uma palavra híbrida. Tem as consoantes de Yahwe ( o nome impronunciavel de Deus) e as vogais de Adonai. Se parece confuso, entenda que os antigos judeus reverenciavam tanto o nome de Deus que eles esqueceram como pronunciá-lo: o nome Yahweh é uma descoberta lingüística recente.
Uma vez que entendemos o que não significa o terceiro mandamento, vamos dar atenção agora para o que ele significa.
Tomar o nome de Deus em vão significa.......
NÃO LEVAR DEUS A SÉRIO
As pessoas falham em não levar o nome de Deus á sério, negligenciando juramentos. Quebram promessas feitas em nome de Deus e prevaricam em fazer o que prometeram. Um sinal de maturidade é a fidelidade com que pessoas cumprem seus compromissos. Alguns compromissos são mais importantes que outros. Se as pessoas não conseguem cumprir o que disseram que fariam, então eles tem que fazer uma escolha, e isso exige uma escala de prioridades.
O compromisso do cristão com Jesus Cristo, obviamente, vem em primeiro lugar. Em seguida, pela ordem de importância, estão os votos do casamento. Quando prometemos "amar, honrar e cuidar, até que a morte nos separe", deixa o divórcio, como pelo menos, uma violação do terceiro mandamento. Não é um pecado imperdoável, mas que fique claro: divórcio é pecado. Tendo dado sua palavra de honra, cristãos não devem negligenciar em mante-la.
Negligenciar um juramento, diz respeito a casos futuros, mas juramentos enganosos, dizem respeito a problemas do passado. Podem haver algumas desculpas por se quebrar uma promessa, mas não existe desculpa por se mentir sobre algo que já se sabia de antemão. Pessoas que deliberadamente enganam outras sob juramento, sofrem um julgamento muito mais rígido da mão de Deus do que da justiça dos homens.
Algumas pessoas tentam evitar um juramento negligente e decepcionante, através de um voto evasivo. Jesus alertou seus conterrâneos que achavam que se o nome de Deus não fosse especificamente invocado, Deus não seria parte da transação. Jesus disse: "Aí de vós, condutores cegos, que dizeis: aquele que jurar pelo templo, isso nada é; mas o que jurar pelo ouro do templo, esse é devedor. Insensatos e cegos! Qual é maior o ouro ou o templo? Também dizeis: Aquele que jurar pelo altar, isso nada é; mas aquele que jurar pela oferta que está sobre o altar, esse é devedor. Insensatos e cegos! Qual é maior: a oferta ou o altar que santifica a oferta? Portanto, o que jurar pelo altar jura por ele e por tudo que sobre ele está. E o que jurar pelo templo, jura por ele e por aquele que nele habita. E o que jurar pelo céu, jura pelo trono de Deus, e por aquele que está assentado no trono." (Mateus 23: 16-22).
Jesus deixou claro: Você não pode deixar Deus fora de nada. Toda declaração e promessa, e toda transação humana é feita em sua presença e está sujeita a sua aprovação. Como os cristãos nunca são dispensados de seus juramentos solenes e da honestidade, seu simples sim ou não, não deveria requerer mais nada do que seu cumprimento. Juramentos são supérfluos. Jesus colocou dessa forma: "Ouvistes também o que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas cumprirás teus juramentos ao Senhor. Eu porém vos digo: De maneira nenhuma jureis: nem pelo céu por ser o trono de Deus, nem pela terra por ser o estrado de seus pés; nem por Jerusalém por ser a cidade do grande Rei. Não jures pela tua cabeça pois não podes tornar um cabelo branco ou preto. Seja, porém o vosso sim, sim, e o vosso não, não; o que passar disso vem do maligno." (Mateus 5: 33-37)
Juramentos são uma concessão temporária à condições malignas, e Jesus ensinou que isso é completamente desnecessário entre cristãos. Mas, uma vez que os cristãos não vivem em um mundo ideal, juramentos são necessários em algumas situações legais. Jesus mesmo testemunhou sob juramento em seu julgamento (Mateus 26:63). E mesmo Deus fez um juramento. O autor do livro aos Hebreus diz: "Quando uma pessoa faz um juramento ele usa o nome de alguém maior que si mesmo, e o juramento acalma todos os argumentos. (Hebreus 6: 16-17)
Pelo fato de nem todos terem uma consciência clara do envolvimento de Deus em todos os feitos e palavras, votos são comumente acrescentados à promessas. Especialmente no sistema jurídico. "Você jura em dizer a verdade, somente a verdade, e nada mais do que a verdade, e que Deus o ajude?" é perguntado a testemunha. Uma testemunha que levou a pergunta a sério respondeu: "Se eu soubesse a verdade, toda verdade e nada mais do que a verdade, eu seria Deus!"
Com conhecimento limitado e uma resolução fraca, cristãos, apesar de tudo, sabem que toda sua vida é um juramento vivo sujeito a misericórdia e julgamento de Deus. Fazer um juramento não acrescenta nada a nossa firme intenção de dizer a verdade, porque sabemos que Deus nos considera responsáveis por cada palavra e atitude. Longe de tomar o nome de Deus em vão, nós o santificamos, não somente em oração, mas em toda conversa e comportamento.
Pedro disse: "Não há outro nome abaixo dos céus, dado entre os homens, o qual importa que sejamos salvos" (Atos 4:12). João disse: "Estes, porém, foram escritos, para que creiais que Jesus é o Cristo, o filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome." (João 20:31). Paulo disse: "Pelo que Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão no céu, na terra e embaixo da terra, e toda língua confesse que Cristo Jesus é o Senhor, para a glória de Deus Pai." (Filipenses 2:9-11). O que se pode dizer?
Talvez, como o profeta Isaías, você diga: "Pobre de mim!....porque sou homem de lábios impuros, e habito no meio de um povo de impuros lábio" (Isaías 6:5). Você fala besteira? Você já se amoldou aos hábitos daqueles com que você se associa? Talvez, como Isaías, você precisa que um anjo toque seus lábios com brasas de fogo, para que possa dizer a verdade em amor.
7 DIAS DE TRABALHO FAZEM 1 SEMANA
"Você tem trabalho antes de brincar". Essa é uma das primeiras lições que a maioria das pessoas aprendem - ou deveriam aprender desde cedo. Antes mesmo que possa expressar isso em palavras, você sabe que há uma grande diferença entre lazer e trabalho. A diferença é mais difícil de definir do que muitos supõe. Com certeza não tem nada haver com o fato de ser pago pela atividade. Muitas pessoas são pagas para ter lazer, para fazer coisas que você faria prontamente de graça. E há os outros, pobres escravos, que não recebem nada por seu trabalho pesado.
Uma maneira de distinguir trabalho de lazer, é definir a palavra "lazer" como: "trabalho que você não tem que fazer". Então porque faze-lo? Porque você quer faze-lo. E você o deseja porque a atividade está de acordo com que você é. Tem a ver com seus interesses, dons e talentos. Trabalho, por outro lado, é uma atividade que entra em conflito com sua personalidade. Independente do seu interesse, talento ou dom, terá que faze-lo.
TRABALHE SEIS DIAS
"Trabalharás seis dias e fará toda tua obra....." (Êxodo 20:9). Muito antes de Deus falar com Moisés no monte Sinai, ele revelou o valor do trabalho. Em Gênesis 2, antes dos humanos pecarem, Deus mandou Adão cultivar o jardim do Éden. O trabalho não era um fardo, mas uma atividade nobre.
Alan Richardson, na Doutrina Bíblica do Trabalho, escreveu: "Diferente dos gregos, que achavam que trabalhar para viver está aquém da dignidade de um cavalheiro, os hebreus consideravam a labuta diária como parte normal da divina ordem do mundo, e nenhum homem estava fora disso." O escritor de I Samuel não vê como problema o fato de mostrar que o rei Saul era um trabalhador (I Samuel 11:5). O título "servo de Deus" era um título de prestígio (Gênesis 26:24; Êxodo 14:31).
Embora o trabalho tenha sido ordenado por Deus como uma atividade nobre, logo foi corrompido pelo pecado. Uma das conseqüências da queda de Adão é que seus descendentes tem que trabalhar ao invés de fazer o que desejam. "Pôr causa do que você fez", Deus disse, "maldita é a terra; em fadiga comerás dela todos os dias da tua vida. Ela produzirá cardos e abrolhos, e terás que comer ervas do campo. Trabalharás e do suor do teu rosto, farás com que o solo produza" (Gênesis 3:17-19).
Alguns podem presumir desse texto que a diferença da maldição pelo pecado está na quantidade de exercício que humanidade teria que fazer. Ainda assim é muito pouco provável supor que os músculos de Adão antes da queda eram flácidos pelo desuso. Melhor, a diferença está no fato de que antes do pecado, o que ele fazia estava mais em harmonia com quem ele era, lazer. Depois do pecado, o que ele fazia estava em conflito com quem ele era, seu trabalho se tornou árduo e compulsivo. Talvez, antes do pecado, Adão encarava seu trabalho como o caçador entusiasmado que chega na madrugada sedento por um dia de caça, e volta para casa suado, feliz e exausto no fim do dia. Mas depois de pecar, seu trabalho se transformou na tortura diária do arrancador de cardos que se obriga a sair da cama contrariamente a sua natureza interior.
O trabalho se tornou não somente preocupante, mas também compulsivo. Fornece uma estrutura melancólica para uma vida que de outra forma, seria sem sentido. Durante a recessão de 1982, Daiane Sawyer disse no noticiário matutino da CBS, que para 1% do crescimento do desemprego, existe uma média de 4% de suicídio. Sua sobrevivência depende exclusivamente em fazer algo que você preferiria não fazer. Não é de estranhar tanta infelicidade e insatisfação neste mundo!
Pode haver tanta intemperança no trabalho como na bebida. Os "viciados em trabalho" sacrificam suas esposas, maridos, filhos e mesmo sua alma no altar da realização profissional.
O fato de uma atividade ser trabalho ou lazer, nem depende tanto no que você faz, mas da sua atitude. O trabalho de um pescador pode ser o lazer de um jardineiro e vice-versa. Trabalho é qualquer coisa que você faz, preferindo fazer outra coisa. Lazer é a "outra coisa". Ela brota espontaneamente pelo tipo de pessoa que você é.
Lazer é uma parte importante da adoração. A irmã de Moisés, Miriã, liderou as mulheres de Israel a celebrar com dança, a miraculosa libertação do Egito pelo Mar Vermelho (Êxodo 15:20). Quando a arca da aliança foi trazida à Jerusalém, as escrituras nos falam que Davi "dançou com todas suas forças para honrar a Deus" (II. Samuel 6:14). Em seu ponto mais alto, adoração não pode ser traduzida em palavras. Quando as palavras falham, pessoas cantam e dançam. Mesmo o profeta chorão Jeremias, descreveu a nova geração como se em lazer: "Te adornarás com enfeites, e dançarás a dança de núpcias" (Jeremias 31:4).
Adoração que é um trabalho obrigatório, não é adoração, mas sacrilégio. A verdadeira adoração, como lazer, brota de seu coração. Jesus disse: "Aquele que crê em mim, rios de água viva jorrarão do seu interior" (João 7:38).
DESCANÇE UM DIA
"Lembra-te do dia do Sábado para o santificar. Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra, mas no sétimo dia é o Sábado do Senhor teu Deus. Não farás nenhum trabalho." (Êxodo 20:8-10).
Para nossa geração compulsiva, o Senhor, com efeito diz: "Não façam apenas alguma coisa Se posicione. Se posicione com regularidade suficiente para descobrir e reafirmar quem é você em relação ao seu Criador."
Lazer significa liberdade para fazer algo. Também significa liberdade para não fazer nada. Numa sociedade dirigida pela compulsão do trabalho, liberdade para não fazer nada talvez seja a mais rara e preciosa de todas.
È um mandamento importante. Embora o Sábado seja apenas um sétimo da semana, é o único dia que Deus abençoou e santificou. Isso implica que o chefe da humanidade não é o trabalho, ao contrário, descanso e adoração. Jesus escolheu este tema na casa de Maria e Marta quando ele disse que Maria havia escolhido a melhor parte, ou seja, estar desfrutando dele, ao invés de trabalhar na cozinha com sua irmã. (Lucas 10:38-42).
Existem 3 considerações envolvidas no descanso verdadeiro. Descanso não é somente inatividade. Nos tempos modernos a maioria do trabalho não exige esforço físico, e consequentemente, não necessita de descanso físico. Descanso é o contraste da atividade agradável, com o que você faz o resto do tempo. Descanso é algo que você faz porque gosta da atividade por si só, sem buscar somente os resultados. O golfe pode se tornar trabalho se seu único interesse é em aumentar os pontos.
O escritor de Hebreus descreve a vida cristã como um perpétuo Sábado. Ele começa citando Gênesis "Deus descansou no sétimo dia de todo seu trabalho" (Hebreus 4:4). Ele relembra seus leitores: " Os que primeiro receberam as boas novas, não receberam esse descanso, porque não acreditaram" (4:6). Então ele argumenta: "Há, porém, os que podem receber...que ainda há descanso para o povo de Deus, o descanso como o que Deus descansou no sétimo dia" (4:9). Finalmente ele concluí: "Façamos, portanto, o nosso melhor para receber esse descanso (4:11). Em nenhuma dessas referências o Sábado significa um dia do calendário, nem o descanso mera inatividade.
Descanso não é desistir
Da carreira ocupada
Descanso é encaixar
A si mesmo em sua esfera
Ama-lo e servi-lo
O Altíssimo e o melhor!
Seu progressivo encontro
Este é o verdadeiro descanso. (John Sullivan Dwuight)
O Sábado não é somente um dia da semana, mas um estilo de vida. É como a vida funciona. Deus descansou não porque estava cansado ou não conseguia pensar em nada melhor para fazer. Ele criou você e o mundo para funcionar em harmonia. Do mesmo jeito que o compasso das peças deve estar correto para que o motor trabalhe em harmonia, existem tempos que devem ser observados, se você e o universo querem funcionar da maneira devida. O ciclo fundamental que Deus construiu nas coisas, se alterna entre fazer e ser, trabalho e descanso. O quarto mandamento diz que até os animais precisam e merecem descanso. (Êxodo 20:10).
O professor de Oxford/ Cambirdge, C. S. Lewis, escreveu: "Você deve ter notado, eu espero, que a humanidade é o único animal amador; todos os outros são profissionais. Eles não tem lazer e não o desejam. O leão não para de caçar e o castor de construir açudes ou a abelha de fazer mel. Quando Deus fez as bestas sem entendimento ele salvou o mundo de infinito tédio, porque se eles pudessem falar, todos eles não fariam nada o dia todo, não teriam outro assunto além de compras."
O Sábado era originalmente o sétimo dia da semana. Mas foi modificado pela igreja primitiva para o primeiro dia da semana, Domingo. Essa mudança não veio de nenhum mandamento específico, mas por circunstâncias históricas. Domingo foi o dia que Jesus ressuscitou e começou uma nova criação. Até sua ressurreição, os crentes trabalhavam até o Sábado. Depois de sua ressurreição, os crentes trabalham a partir do Sábado. A vida de fé - descanso dos cristãos é o ponto inicial, não o fim. Consequentemente, o Sábado é celebrado no Domingo ao invés de Sábado.
Negligenciar o Sábado (descanso) faz da vida uma tarefa, um emprego, um trabalho. Deus não precisa de um dia santificado; você sim. "O Sábado foi instituído para o homem reto", disse Jesus (Marcos 2:27). Ele "perseverou em fazer o bem" (Atos 10:38). Sem o Sábado as pessoas apenas perseveram. Eles precisam aprender a parar e deixar suas almas se atualizarem com o seus corpos. Pessoas que não guardam o descanso, são como estradas sem retorno.
Não confunda ocupação com bênçãos. Ativismo não deve passar por espiritualismo. O que você é, é mais importante do que você faz. Preenchendo sua vida com atividades sem fim, você a esvazia de significado.. Você acaba se desgastando até os ossos!
Nós até fazemos piada sobres as regras extremistas do Sábado guardada pelos puritanos, mas a piada somos nós. Eles não viveram numa era de euforia como a nossa. Eles não foram vexados como nós com doenças mentais, alcoolismo, colapsos nervosos e suicídio. Nós somos as pessoas com mais entretenimento e mais infelizes da terra. O fato é que não podemos quebrar o Sábado (descanso); nós só podemos ser quebrados por ele.
Guardar o Sábado é fazer da vida um lazer. Lembrar que somos filhos de Deus empurra os limites da vida infinitamente além da maçante, monótona rotina do labor e a transforma. Perguntaram a dois pedreiros: "O que vocês estão fazendo?" O primeiro respondeu: "assentando tijolos!". O segundo respondeu: "construindo uma catedral." Para algumas pessoas a vida é apenas assentar um tijolo após o outro - muito trabalho! Mas para outros é a construção de uma catedral, ou seja, lazer. Antes de conseguir construir uma catedral, você tem que saber quem você é, e qual seu lugar no plano do Mestre. O Sábado é o momento onde você descobre essas coisas.
Anos atrás, um locutor da rádio NBC, recebeu uma carta de um criador de ovelhas de Idaho. "Eu gosto dos seus programas", ele escreveu, "mas eu quero te pedir um favor. È bem solitário aqui nas montanhas a não ser pelo rádio. Eu costumava tocar o meu violino, mas ele desafinou terrivelmente. Você faria a gentileza de parar durante o seu próximo programa para tocar "A" para que eu possa afinar meu violino e aproveitar seu som novamente?"
A sua vida está desafinada sem Deus? Quanto tempo faz que você não escuta "A"? Não faça apenas alguma coisa. Permaneça até que escute um "A". Então afine sua vida para tocar em harmonia com o grande coral cósmico de Deus.
HONRAR A PAI E MÃE
Embora a bíblia diga que os dez mandamentos foram escrito em duas tábuas de pedras (Êxodo 24:12; 34:1) não nos fala como eles foram divididos nas tábuas. Cinco em um e cinco na outra parece o mais razoável, mas é uma divisão errada se forem considerados os temas dos mandamentos. Desde os tempos remotos, estudiosos da bíblia notaram que os primeiros quatro mandamentos dizem respeito ao nosso relacionamento com Deus, e os últimos seis, concernem nosso relacionamento com o próximo.
Não tem realmente importância em como os mandamentos foram organizados nas tábuas de pedra, mas é importante notar os temas idênticos. O judaísmo foi a primeira religião do mundo a combinar adoração (responsabilidades referentes à Deus) com ética (responsabilidades referentes à humanidade). Os deuses do monte Olimpo não eram nem éticos em seu comportamento, nem faziam exigências éticas aos seus adoradores. Essa fé barata ainda tem seus fãs. Os neo-paganistas tem todo o conforto e excitação da sua religião sem nenhum dos inconvenientes de um Deus que pega no seu pé quando querem fazer alguma coisa.
Na religião da bíblia, no entanto, Deus é o instituidor da lei. Ética é teologia na prática.; os dez mandamentos são adoração na finalidade. Os mandamentos falam das duas, teologia (nosso relacionamento com Deus) e ética (nosso relacionamento com o próximo).
O quinto mandamento começa com a segunda "tábua da lei": nossa responsabilidade uns para com os outros. Nessa parte Deus nos fala de como nos tornarmos mais humanos controlando certos impulsos que compartilhamos com os animais irracionais - como ira, raiva e luxúria. Esses comportamentos são naturais. Na verdade, são essenciais a nossa sobrevivência. Mas Deus nos chama para fazermos algo maior e mais nobre. Ele nos comanda a controlar o que vem naturalmente, para que não matemos nem roubemos e não forniquemos simplesmente porque acontece para nossa vantagem imediata. Ira, raiva e sexo são necessidades fortes dentro de todos nós. Como fogo, são bons presentes de Deus. Também como fogo, se tornam perigosos quando perdem o controle. Por isso temos os dez mandamentos, para nos dizer como controlar nossas inclinações naturais para que ninguém se machuque.
Qual inclinação você acha que é controlada pelo quinto mandamento? A maioria dos animais instintivamente se preocupam com seus filhotes. Ursos e leoas o atacarão se você mexer com seus filhotes. Embora a maioria das espécies cuidem de suas crias, nenhuma cuida dos seus velhos, a não ser os humanos. O quinto mandamento nos convida a nos colocarmos acima de nossa natureza animal. Deus espera mais de mim e de você do que dos gatos e cachorros. Ele ordena que os filhos cuidem dos pais da mesma forma que os pais instintivamente cuidam dos filhos. "Honra teu pai e tua mãe". Honrando os idosos nós nos colocamos acima do resto da natureza e nos tornamos verdadeiramente o que somos. Nós precisamos ouvir novamente o quinto mandamento. Nossa geração moderna não dá ao idoso o lugar de honra que eles tinham antigamente e tão ricamente merecem hoje. Bertrand Russell reclamou: "Eu nasci na geração errada. Quando eu era jovem, ninguém tinha respeito pela juventude. Agora eu sou um homem velho e ninguém respeita os idosos."
Quase todos, da Avenida Madison, até a igreja local, honram os jovens. Agora, isso não é uma idéia má, mas lembre-se que a juventude não é a época que a bíblia dá a maior honra. Moisés disse: "Mostre respeito pelos velhos e os honre" (Levítico 19:32). E Pedro acrescentou: "Jovens sede submissos aos mais velhos" (I Pedro 5:5).
Eu me ressinto do fato de que chamar alguém de velho seja um insulto. Nossa cultura distorceu o valor da tradição da terceira idade, fazendo algo honroso parecer uma desgraça. Na bíblia a velhice não é um problema. É uma benção (Isaías 65:20; Zacarias 8: 4-5). Por milhares de anos, ser chamado de "velho" foi uma grande honra. Hoje em dia, é um insulto. O que foi que aconteceu com nossos valores?
Uma cultura centrada no jovem, é uma cultura olhando do avesso. È uma sociedade onde pessoas honram o que eles costumavam ser, ao invés do que eles serão.
Idade é como dinheiro. Não é o quanto você já gastou que conta, mas o quanto você ainda tem para gastar. Se nós verdadeiramente acreditamos no que dizemos sobre a vida eterna, o que temos para gastar é a eternidade. Cada aniversário nos leva um ano mais longe do dia do nosso nascimento, e um ano mais perto da casa de nosso Pai eterno.
A raiz da palavra em hebraico para honra significa "pesar bastante". As pessoas que me consideram bastante, são as que mais contribuem para meu peso (valor): meus pais, minha esposa e meus filhos - a eles eu devo grande respeito e honra.
O quinto mandamento é primeiramente endereçado aos adultos. Não é um clube de faturamento que pais frustrados podem usar para bater em seus filhos rebeldes com respeito a submissão. Os pais que tentam conseguir respeito dos filhos citando as escrituras, terão tanto sucesso quanto manobrar o carro tocando a buzina.
O quinto mandamento tem mais a ver com cuidado da saúde, pensão para idosos, e casas de repouso, do que com menores desobedientes. Significa, pura e simplesmente quando seu pai e mãe precisar de você, não os abandone. Honre seu pai e sua mãe.
Embora o INSS, plano de saúde, e asilos, tenham tomado para si esse tipo de responsabilidade exigida nesse mandamento, nenhum sistema organizacional pode honrar seus pais por você. Muitas organizações são terrivelmente impessoais e até desumanas.
Quando os pais não são mais membros produtivos da sociedade, eles necessitam mais do que nunca, serem honrados e estar conscientes do seu valor. O quinto mandamento ordena honra aos pais, mas não honra somente. Ele não diz: "Honra somente teu pai e tua mãe. Esse é só o começo. O apóstolo Pedro disse: " respeite a todos" (I Pedro 2:17). Não somente as crianças devem respeitar seus pais, mas pais devem honrar seus filhos. O rico deve honrar o pobre, e o pobre honrar o rico. O fraco deve honrar o forte, e o forte honrar o fraco.
Jesus deu a esse mandamento sua maior aplicação quando declarou: "Verdadeiramente vos digo, o que fizeres a esse menor entre vós, a mim o fazeis" (Mateus 25:40). Você honra os outros os tratando com a mesma consideração que você tem com a pessoa de Jesus Cristo? Se você trata os outros, da maneira que trata Jesus, você honrará não somente seus pais, mas toda alma vivente.
A honra existe de formas diferentes. È muito mais do que cartão, bombons ou flores no dia das mães. A forma como os pais honram os filhos, por exemplo, é diferente de como os filhos honram os pais. È uma desonra tratar todos da mesma maneira sem respeitar as diferentes necessidades de cada um e suas responsabilidades. A verdadeira honra leva em conta a idade e situação das pessoas envolvidas, e a natureza do relacionamento. Você é jovem apenas uma vez, mas pode ficar imaturo pelo esto de sua vida. Uma das razões que o espaço entre as gerações é um problema, é porque não é largo o suficiente. Muitos adultos tentam agir como se fossem adolescentes, e muitos adolescentes como se fossem adultos. Com todos os atores lendo as falas de outro personagem, não é de se estranhar que a peça seja confusa. Filhos não podem honrar seus pais se não aceitarem o seu papel de dependentes. E pais não podem honrar seus filhos enquanto fogem de suas responsabilidades de pais.
Para complicar ainda mais as coisas, os papeis continuam mudando. Para uma criança, honra significa obediência. Para um adolescente, significa respeito. Conforme a criança se torna adulta significa bondade, consideração e cuidado com os pais.
Um menino nunca se tornará um homem, e a menina nunca será uma mulher, se sempre tiverem que obedecer seus pais. Embora as crianças desenvolvam a necessidade de obedecer seus pais, eles nunca desenvolverão seu dever de honrar seus pais. Chegará o tempo em que pais idosos terão que obedecer seus filhos, mas mesmo assim, e especialmente nessa hora, os filhos devem encontrar uma forma de honrar seus pais , para reafirmar sua dignidade e valor.
O apóstolo Paulo nos lembra que o quinto mandamento é o primeiro mandamento com promessa: " Para que tudo te vá bem, e tenhas abundância de dias" (Efésios 6:3). Quando um professor de escola dominical perguntou a um menino o que isso significava, sua interpretação foi: "É melhor eu fazer o que meus pais dizem ou eles me matarão". Embora existam pais que concordem com essa versão, eu não creio que era isso que Moisés ou Paulo tinham em mente. "Para.......que tenhas abundância de dias sobre a terra", não é uma garantia de anos extras de vida para os indivíduos que honram seus pais. È uma promessa para preservar a ordem social que respeita gerações precedentes. Lembre-se que os mandamentos foram dados depois que o povo de Israel saiu do Egito, e antes de entrarem e ocuparem a terra prometida. Eles eram uma nação novinha em folha. Então Deus deu a eles leis e mandamentos para mostra-los como funcionar. Bons cidadãos podem morrer cedo, mas culturas onde as pessoas honram os mais velhos duram com estabilidade.
Uma das razões porque a cultura chinesa tem sobrevivido por milhares de anos através de revoluções políticas e sociais, é que, em meio a tudo isso, eles obedeceram o quinto mandamento - não porque Deus falou para Moisés, mas porque é sábio. "(Para) que tenhas abundância de dias sobre a terra", não é um suborno tentador a boa conduta, mas uma afirmação de fato, sobre tribos, nações e famílias, nas quais honra é achada.
Lembre-se, a bíblia não ensina quem deve te honrar, mas quem você deve honrar - seus pais, seus filhos e todas as outras pessoas. Você obedece o quinto mandamento não exigindo que os outros te honrem, mas tomando a iniciativa em honra-los.
ASSASSINATO MISTO
Agora chegamos no mais controvertido mandamento de todos. Se perguntado para citar os dez mandamentos, muitas pessoas começariam com "Não matarás", porque ele classifica a maldade mais óbvia que Deus proibiu. Embora esteja claro que a proibição do mandamento seja para todas as culturas - bíblicas e não bíblicas - as pessoas hoje em dias não estão todas em concordância com seu escopo e intenção.
O sexto mandamento não é uma interdição vazia contra matanças, mas, ao contrário, uma proibição específica sobre o homicídio, a intenção em tirar a vida humana. Os defensores dos Direitos Animais vão muito longe em aplicar esse mandamento a morte de vacas, galinhas e porcos. Assim como nem todo sexo é adultério, nem todo assassinato é homicídio. A história do Velho Testamento deixa claro que os antigos hebreus não aplicavam esse mandamento para guerras fora da lei ou punição capital, mas para vingança pessoal de sangue.
Em seu senso limitado, é o mandamento menos complicado dos dez. "Não matarás". Irmãos, muitos de nós está tão apto a isto como se Deus tivesse ordenado: "Não cuspirás na lua"! Nós nunca matamos ninguém e não temos a intenção. Adultério, roubo, mentira....Ah, são questões diferentes. Mas falaremos mais sobre eles depois.
Muitas pessoas, quando perguntadas se aprovam o sexo e violência, responderiam: "Sim e não!" Independente de toda violência em nosso mundo, poucas pessoas a aprovam. Somente uma pessoa entre mil quebra o sexto mandamento, em seu sentido estrito de homicídio. E muitos assassinos são psicopatas incapazes de sentir culpa por sua má conduta. Portanto, para homicidas e não homicidas, o sexto mandamento é o menos complicado deles.
Conquanto que nos apeguemos a referência primária do sexto mandamento, estamos a salvo num terreno sem controvérsias. Mas nós não temos que comprar um livro ou olhar um site na Internet para descobrir que Deus desaprova a matança de pessoas. Nós, portanto, deixaremos a fortaleza segura do óbvio, para explorar as florestas profundas e cavernas escuras que circundam este mandamento. Antes de nos adiantarmos em nossa jornada, eu te aviso que há atiradores de tocaia espreitando no escuro ao longo do caminho, prontos para atacar se transgredirmos seus códigos de comportamento. Eu tentarei ser um guia confiável, mas confesso que outros guias, os quais a sabedoria e compromisso cristão eu respeito grandemente, te levariam por uma estrada diferente.
A referência primária do sexto mandamento é o homicídio, tirar a vida humana, que é tão sagrada quanto o sopro de Deus que a deu. (Gênesis 2:7). Mas existem outras maneiras de acabar com uma vida além do "homicídio mais abominável". Vamos considerar alguns atos mistos que violam a santidade da vida de maneiras diferentes.
Suicídio
Toda forma de vida é sagrada, incluindo a sua. Você não escolhe a hora e as circunstâncias do seu nascimento, e nem da sua morte. Essas questões pertencem exclusivamente ao Criador. "Vocês não pertencem a si mesmos mas à Deus" (I Coríntios 6:19). Tirar sua vida destroi o que pertence à Deus, e mais ainda, priva os outros do amor e ajuda que você poderia ter dedicado à eles. Suicídio quebra o sexto mandamento.
Existem outras maneiras de encurtar sua vida que podem ser menos violentas, mas tão eficientes quanto. Pôr exemplo..........
Drogas, Álcool, Cigarros e Glutonaria
Álcool é a droga número um em morte nos Estados Unidos. Mata muito mais pessoas do que cocaína ou heroína. Cinqüenta por cento de todos os acidentes de carro fatais envolve motoristas bêbados. Se houvessem motoristas bêbados no tempo de Moisés, provavelmente existiriam onze mandamentos. Alcoolismo não leva as pessoas à morte tão somente, mas as mata enquanto estão vivas, o que é ainda pior! Nove milhões de alcoólatras, sofrem o inferno em vida nos EUA. Eles estão quebrando o sexto mandamento matando a si mesmos e aos outros.
È tão sério o problema do alcoolismo nos nossos dias, que muitos cristãos defendem total abstinência como a única solução responsável. A bíblia ordena claramente a temperança. (I Timóteo 3:8; Tito 2:3) e condena a bebedice (Provérbios 23:29-35; I Coríntios 6:9-10; Efésios 5:18), mas não insiste em total abstinência. Jesus mesmo transformou a água em vinho e era largamente conhecido como beberrão de vinho (João 2:1-11); Mateus 11:19; Lucas 7:34). Embora abstinência completa de toda bebida alcóolica não seja um comportamento esperado dos cristãos, talvez seja necessário para aqueles cuja o ambiente ou o biótipo leva ao alcoolismo, um pecado capital.
Álcool não é o único assassino "não violento". Cigarros também são uma substância letal. O Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, prevê que um milhão de crianças agora na escola, irão morrer de câncer no pulmão antes de atingirem a idade de 70 anos. Pode ser que fumar não te deixe fora do céu. Na verdade, pode te levar para lá mais rápido! 390,000 americanos morrem todos os anos por causa do efeito tóxico do tabaco. È a mesma fatalidade de três jumbos 747, lotados de passageiros, caíssem todos os dias, durante um ano inteiro. Se essa jornada no território do homicídio misto não conseguiu deixar você nervoso ainda, segure o seu chapéu. Na esquina existe outro assassino que se parece com um velho amigo.
Comida mata pessoas de duas maneiras: ou não se tem o suficiente, ou se tem demais. Alguns dos filhos de Deus morrem de fome, enquanto outros "cavam" sua própria cova com seus garfos. Eles encurtam suas próprias vidas comendo em excesso, e a dos outros se recusando a não repartir o excedente alimentar. Aqueles que se entregam às drogas, álcool, cigarro e glutonaria, cometem suicídio a prestação. É um ato misto de homicídio, uma violação do sexto mandamento.
Aborto
Desde 1973, mais de 30 milhões de vidas humanas foram legalmente mortas nos EUA antes de nascer. Enquanto os defensores do pró- vida e pró- escolha debatem o assunto, a carnificina continua. Ao invés de ficarmos discutindo entre nós mesmos, porque não encontrar formas de diminuir as mortes? O Presidente Clinton disse repetidamente: "Aborto deveria ser legalizado, seguro e raro". Nós gastamos todo nosso dinheiro e energia discutindo sua legalidade e segurança. Eu creio que é tempo de trabalharmos juntos para torna-lo raro. Militantes do pró- vida e pró- escolha poderiam concordar em uma coisa: vamos fazer o aborto raro. Como? Uma forma seria exigir que toda clínica de aborto desse o nome de pais adotivos a suas clientes. Oferecer a elas cuidado pré o pós parto e uma lar cheio de amor para seu bebê que está prestes a ser abortado. Pense nas vidas que seriam salvas! Isso pode acontecer? Não exatamente, porque as pessoas preferem mais defender sua opinião do que encontrar uma solução. Portanto, a matança continua.
O que a bíblia fala sobre aborto? Não muito. Não existe uma afirmação direta no Novo Testamento e somente uma referência incidental no Velho Testamento. Embora matar uma criança no útero, não recebesse a mesma consideração do homicídio pela lei Mosaica, é considerado crime (Êxodo 21:22-25). Os cristãs de hoje podem ter diferentes visões políticas no tocante a forma com que o governo deve se envolver nesse assunto, mas todos os cristãos devem concordar na santidade da vida. A vida não é mero acidente. È um Dom divino. Pessoas não deveria ousar em destruir o que Deus tem nos dado.
O sexto mandamento fica mais e mais controverso quando nós desviamos da santidade da vida embrionária, para a santidade da vida criminal. Isso nos trás a uma área onde estudiosos da bíblia diferem.
Pena de Morte
Agora, nós entramos num território que passou por muitas mudanças desde os dias de Moisés. Longe de proibir a pena capital, o Velho Testamento, na verdade, o ordena para crimes como o adultério, não cumprimento do Sábado, desonrar pai e mãe (Levítico 20:10; Números 15:32-36); Deuteronômio 21:18-21) e, meu favorito, discutir com o pastor (Deuteronômio 17:12). Graças à Deus essa não é a lei de hoje, ou você não teria condições de ler isso a não ser que estivesse escrito em amianto!
Sim, os tempos mudaram. As leis do velho testamento governaram um sociedade primária. Aquelas leis foram modificadas através dos anos por uma gradual redução dos tipos crimes onde as penas capitais são determinadas. Existem crimes em nossa sociedade moderna para os quais a pena de morte seja a pena adequada? Alguns cristãos responderiam que sim, e alguns que não. O não arrependido Tim McVey certamente merece morrer por matar um homem inocente, mulheres e crianças, quando explodiu o prédio da Justiça Federal Americana em Tulsa. Igual ao divórcio e escravidão, talvez a pena capital seja uma daquelas infrações da vontade divina, que a bíblia não eliminou imediatamente.
Algumas coisas eu tenho certeza, algumas não. Eu não sei se a sociedade estaria melhor, com ou sem pena de morte. Eu sei que eu preferiria mais viver num país onde ela é rara, do que em um onde ela é comum. E eu tenho certeza que Deus ama todos os pecadores, até os assassinos, e oferece salvação através do sangue derramado de seu filho Jesus Cristo, e tenho certeza que esse deveria ser nosso maior recado a um mundo perdido e condenado.
Guerra
Novamente nós nos aprofundamos em um território que modificou-se desde os dias de Moisés. Por outro lado, os antigos hebreus foram ensinados a não matar. Mesmo assim, eles eram comandados a travar guerras "santas" contra os pagãos - não era qualquer guerra, para seu conhecimento, mas somente as que eram determinadas por Deus.
Cristãos tem discutido entre si através dos séculos, sobre quais condições pode-se, conscientemente, iniciar uma guerra. E, em nossa geração, outra grande oportunidade aconteceu neste campo. Nossa geração é a única que tem o poder e a habilidade de ser a última geração. Os especialistas são quase unânimes: guerra global nuclear, seria suicídio global. Consequentemente, quase todo mundo parece estar a favor de um desarmamento nuclear global. Mas o problema é que nenhuma nação que ser a primeira a começar o desarmamento. Então as nações continuam como doidas, estocando incríveis arsenais de armas que pode matar os dois lados por muitas vezes.
Para focalizar a questão mais de perto, aqui vai um desafio. Dois homens estão num porão. Um forte cheiro de gás está no ar. Um tem quinze fósforos. O outro tem vinte. A pergunta é qual dos dois ganha o jogo ou é mais esperto que o outro? Se puder responder essa pergunta, poderá responder a questão de quem ganha quanto ao armamento nuclear.
O armamento nuclear, pode destruir a raça humana. Parece mais claro do que nunca que, a única esperança para este mundo sobreviver no século XXI, é que as nações confiem em Deus ao invés de armamentos (Salmos 44:3-8; Zacarias 4:6).
Ódio
Nós avanços muito no território que circunda o sexto mandamento, mas nenhum é tão "extrapolado" quanto o mandamento de Jesus: "Ame os seu inimigos" (Mateus 5:44). João aplica isso diretamente ao sexto mandamento: "Qualquer que odiar seu irmão, é assassino..." (I João 3:15). Agora todos nós fomos pegos. O que começou como o mandamento pouco implicador, nos pegou.
Embora nós nunca tenhamos matado ninguém, temos de confessar que, algumas vezes, lemos os avisos fúnebres com prazer. Enquanto a lei de Moisés restringe o fim da violência, a lei de Jesus restringe a causa inicial da violência. Ele impede não somente a mão que está prestes a atacar, mas também o coração que está prestes a odiar.
Quase todos são culpados de algum homicídio misto. Essas são as más notícias. Mas a boa notícia é que Deus nos ama a ainda tem um plano maravilhoso para nossas vidas. Moisés, Davi e Paulo eram todos assassinos que Deus resgatou e restaurou para grandes bênçãos e ministério. O mesmo que Deus fez por eles, pode fazer por nós.
ADULTÉRIO
Jesus chamou a geração em que ele viveu: "geração adúltera e pecadora" (Marcos 8:38) Quais palavras você acha que ele usaria para descrever a nossa?
As novelas podem não melhorar o que ocorre na vida real, mas demonstram o que as pessoas reais acham apropriado para se distrair. Entretenimento reflete a sociedade, e é um dos fatos que forma o comportamento do público. A Universidade de Pensilvânia, Annemberg Escola de Comunicação, publicaram os resultados de uma pesquisa sobre o comportamento sexual mostrado nas novelas. Quarenta e nove por cento dos relacionamentos acontecia entre pessoas não casadas entre si. Vinte e nove por cento entre desconhecidos e seis por cento um casal casado. "Devido a crescente audiência desses seriados" a reportagem concluí, "novelas tem uma grande força de transmitir valores, estilo de vida e informação sexual à juventude telespectadora".
Alguns já desistiram da batalha por valores morais. Eles jogaram a toalha e disseram estar quites. Ann Landers que tem dado conselhos a mais pessoas do que qualquer pastor disse: "Com relação a padrões de moralidade, eu sinto muito dizer, mas esqueça. Esse trem já partiu a muito tempo atrás" (LA Times, 12/7/91). Dr. Ruth Westheimer , renomada terapeuta sexóloga disse na NBC Today Show (7/5/88): "As gerações passadas não conversavam sobre sexo; a nossa não conversa sobre moralidade".
A nossa geração é uma geração pecadora e adúltera. Eu gostaria de estar me referindo somente aos pagãos. Mas mesmo cristãos são pegos no clima sexual. Ao invés de serem termostatos eles são termômetros. Ao invés de mudar seu ambiente moral, eles refletem os atos de uma sociedade decadente. O ponto de referência dos cristãos não deveria ser o índice Gallup, mas a eterna Palavra de Deus, que declarou no monte Sinai e através da bíblia: "Não adulterarás".
Adultério Adultera
Porque as pessoas devem afastar-se do adultério? Porque Deus mandou! E ele mandou por várias razões óbvias. Primeiro de tudo, adultério adultera. Sexo é essencialmente puro. É parte da criação que Deus declarou boa. Mas, porque é puro, deve ser protegido de ser adulterado. Nós precisamos da lei do sexo puro de Deus, da mesma forma que precisamos de comida sem contaminação e leis contra drogas. As leis nos protegem de elementos que contaminam, que distroem nossa saúde e felicidade. A bíblia não é contra o sexo, ao contrário, ela o valoriza ao ponto de resgata-lo do adultério.
O primeiro mandamento (adorarás somente o Senhor teu Deus) deixou claro que há coisas boas na vida que facilmente se tornam ídolos. Nós somos tentados a dar a elas a devoção que pertence somente à Deus. Adorar Afrodite, ou seja, sensação sexual, diminui ao invés de aumentar o prazer sexual. O casa - separa de Holywood é uma demonstração pública que promiscuidade sexual mata a felicidade do matrimônio. Rev. Glynn "Scotty" Wolfe está no livro Guines dos Recordes como o homem mais casado do mundo. Após 29 casamentos, ele morreu sozinho na idade de 88, num asilo. Por duas semanas ninguém se pronunciou para pedir seu corpo. A solidão de Scotty Wolfe demonstra a derrota de muitos que não conseguem manter um relacionamento estável por muito tempo. O mundo não está pronto para voltar ao puritanismo exacerbado, mas não pode mais sobreviver o moderno papel de lixo que faz do sexo uma distração, das mulheres meras atrizes e moralidade uma piada.
Contrária a opinião popular, não é a presença do amor que faz o sexo casto e não é sua ausência que faz dele um pecado. A diferença entre adultério e castidade não depende de como alguém está sentindo no momento. O ato sexual, como outros atos, é justificado por um critério mais amplo: pelo cumprimento de promessas, pela caridade, pela obediência. Quando esses critérios se encontram, a união sexual se transforma em um compromisso completo.
Moisés declarou e Jesus confirmou que no ato matrimonial "os dois se tornam um" (Gênesis 2:24; Marcos 10:8; I Coríntios 6:16). Casamento não é somente uma união, mas uma profunda reunião. A questão da mulher ter sido formada da costela de Adão, é que a unidade de Adão, que foi desmembrada com a criação de Eva, é restaurada no casamento. A união marital, simboliza outro tipo de união - a reunião das almas com Deus - e requer um nível de renúncia própria segundo deve ser renunciado apenas à Deus (Efésios 5:28-33). Quando a união matrimonial é apenas parcial, o sexo dificilmente vale a pena - um prazer momentâneo e uma solidão permanente.
Existem várias formas de adulterar o sexo. A lei sexual pura da bíblia especifica um número determinados de praticas que não são seguras e eficientes. Nesta lista de proibições, está o sexo antes do casamento (Deuteronômio 22:13-21; I Coríntios 6:9; I Tessalonicenses 4:1-8), sexo extra conjugal (Provérbios 2:16-19; 5:15-22; 30:20), incesto (Levítico 18: 6-18), sodomismo (Levítico 20:15-16), prostituição (Provérbios 6:24-33; 7:6-27), estupro (Deuteronômio 22:25-29) e divórcio (Marcos 10:2-12). Essas práticas sexuais são claramente destrutivas do bem estar da sociedade e indivíduos, por isso são proibidos até por alguns governos como a República Popular da China, que não crê em Moisés ou Jesus.
Deus não proíbe ou impede só para ser mandão. Pela compaixão pelas pessoas, Deus avisa sobre o perigo em adulterar o sexo. Pessoas não podem melhorar sua vida sexual através dessas práticas proibidas. Elas somente destruirão algo precioso.
Deus quer libertar as pessoas para gozarem o sexo na sua plenitude. Um livro inteiro da bíblia foi escrito para celebrar a alegria do amor romântico. Você supõe que existe qualquer significado na sua iniciação? S O S! A despeito de todos os livros modernos e informação, a vida amorosa das pessoas está clamando por socorro, como nunca antes. Respondendo aquela súplica está o Livro de Cantares e os Dez Mandamentos. Definindo os limites do comportamento sexual, Deus protege o sexo de ser adulterado.
Adultério fascina
Jesus redefiniu a lei d Moisés: "Você ouviram o que foi dito, 'Não adulteraras', mas eu vos digo: não se preocupe, seja feliz!" È isso que diz a sua bíblia? Não! Jesus disse: "qualquer que olhar uma mulher com desejo, já cometeu adultério" (Mateus 5:27-28). Jesus condenou não somente o ato do homicídio, mas a ira que leva ao ato. Da mesma forma, ele condenou não somente o ato do adultério, mas também a motivação mental que leva a isso.
Essa geração tem sofrido uma exploração sexual por tanto tempo, que perdeu sua habilidade de destinguir claramente entre luxúria e amor.
Lascívia é mostrada numa grande tela com violinos tocando. Pessoas chamam isso amor, mas não é. A diferença se encontra nos pronomes. A lascívia quer a coisa em si mesma. Amor quer ele ou ela, o ser amado. A coisa é um sensor que ocorre dentro do corpo de alguém. È comum as pessoas dizerem que um homem lascivo deseja uma mulher. Mas isso não é o que ele realmente quer. Ele quer o prazer, do qual a mulher é um conveniente aparato. Lascívia é o que faz alguém querer o sexo, mesmo que não queira estar com a outra pessoa. Amor é o que faz alguém querer estar com o outro, mesmo que não exista desejo sexual. Moisés disse: "Não faça", Jesus disse: "Nem pense em fazer". Agora, para ser perfeitamente honesto, 97% das pessoas não chegou até a proposta de Moisés, quanto mais a de Jesus. Muitos quebraram o sétimo mandamento, tanto em ato quanto em pensamento. O fato importante para notar aqui é que Deus se preocupa com todos os pecadores. Jesus diz aos que se acham retos: "Antes que vocês condenem os adúlteros, olhe seu próprio coração." Se os pensamentos deixassem o rosto vermelho, seriamos vermelhos!
A imprensa secular riu muito da confissão do presidente Carter há alguns anos atrás, de que ele havia cometido adultério no coração. O fato é que, com certeza, ele falou a verdade, não somente sobre si, mas sobre todos nós. A diferença é que o Presidente Carter foi humano o suficiente para admitir. E nós?
Partindo do ponto que somos todos adúlteros em pensamento, mesmo que não em atos, o que devemos fazer a esse respeito? Jesus oferece alguns conselhos bem práticos em termos metafóricos bem fortes:
"Se teu olho direito te faz pecar, arranca-o fora! È melhor perderes teu olho direito do que ter seu corpo inteiro atirado no inferno. Se sua mão direita te faz pecar, arranca-a fora! È melhor perder um de teus membros do que ter o corpo inteiro atirado no inferno" (Mateus 5:29-30)
O conselho de Jesus é para ser levado a sério, mas não literalmente. Muitas pessoas podem ver tanto com o olho direito quanto com o esquerdo, e fazer tanto com a mão direita, tanto quanto com a esquerda. O pecado não se encontra na mão ou no olho, mas no coração. Jesus e o bom senso ordenam que as pessoas eliminem qualquer coisa que as faz tropeçar.
O princípio de Jesus não impõe um código uniforme para todos. O que leva alguém a pecar pode não fazer nada para outro. Em dezembro de 1975, o chefe de Israel, Oavdaih Yosef declarou que judeus ortodoxos só poderiam ouvir uma mulher cantando no rádio se não a conhecessem pessoalmente. "De acordo com algumas autoridades religiosas, pode levar os pensamentos longe de serem espirituais......mas se um homem nunca viu a cantora, existe um perigo pequeno em ser seduzido". Sem argumentos sobre isso! Mas não ria tanto por ter perdido o fio da meada. Poucos cristãos serão tão extremistas para evitar cair em adultério, mas todos os cristãos precisam saber seus limites. Todo cristão é responsável por si mesmo. Se algo te faz pecar, se livre dele! Mas lembre-se que é uma cirurgia feita por si mesmo. Ninguém tem o direito de amputar o braço ou olho de seu irmão ou irmã.
Tarde da noite um pastor recebeu um telefonema de um de seus fiéis que perguntou: "Deus perdoará uma pessoa por cometer adultério?" O pastor respondeu: "Isso depende. Já fez, ou está prestes a fazer?"
Adultério em ato ou pensamento é um pecado que nenhum filho de Deus devia cometer deliberadamente, mas não é um pecado imperdoável. O rei Davi, a mulher Samaritana, e a mulher pega em adultério, quebraram o sétimo mandamento e foram perdoados e restaurados em santidade. Não importa o que já tenha feito, e o quanto se sinta culpado, você pode confessa-lo agora mesmo e ouvir Jesus dizer: "Nem eu te condeno: vá e não peques mais" (João 8:11). Você pode recomeçar com uma vida sexual pura e sem adulteração com Jesus.
VOCÊ DIZ PARA OS OUTROS NÃO ROUBAREM
--- VÔCE ROUBA?
Durante a greve dos trabalhadores em New York, alguns anos atrás, um desesperado pai de família encontrou uma forma esperta de se livrar do seu lixo. Ele embrulhou para presente e deixou no assento de seu carro sem trancar. A tardinha já era!
Deveria ser mais fácil de clamar contra o roubo. Afinal, até ladrões são roubados. "Não roubarás", parece ser tão obvio que Deus está desperdiçando seu fôlego em dar o oitavo mandamento. Mesmo que ele não tivesse dito isso, nós certamente diríamos: "Não roubarás (de mim)." Todos, religiosos ou não, concordam que roubar é errado.
O apóstolo Paulo disse algo que chamou minha atenção: "Vocês dizem aos outros para não roubar - você rouba?" (Romanos 2:21 Versão atualizada). Sua pergunta nos força a olhar para o roubo de uma perspectiva diferente. A bíblia não nos permite ser os acusadores, mas ao contrário, ser os defensores da justiça. A palavra de Deus nos força a reexaminar nossas convicções básicas sobre pessoas e propriedades.
Convicção
Claro, os tempos são outros. Mudanças desde os tempos de Moisés facilitaram a consciência pesada. A mudança de uma cultura basicamente agrícola para uma era industrial, tem dado a muitos ladrões a desculpa do lucro. "Afinal", "ele dizem", "não estou prejudicando ninguém em particular". Alguém que nunca pensaria em roubar o martelo do seu vizinho, talvez roube sem punição, corporações, companhias de seguro ou governos.
Existe uma nova ética pessoal que diz: "Eu mereço o tanto que eu conseguir". O Reverendo John Papwoth , um pastor da igreja inglesa, disse a sua congregação que, como supermercados distroem a vida da comunidade, não tem problema em rouba-los. "Eu não reconheço isso como roubo", ele disse. "Eu reconheço essa atitude como muito necessária para a melhor distribuição de recursos econômicos". Ele foi denunciado pela Igreja da Inglaterra, mas o que ele disse é o que muitos ladrões acreditam.
A sociedade moderna se desviou completamente dos padrões de conduta. Ao invés de uma ética de culpa (restrita pela consciência), nós temos uma ética de vergonha (restrita pelo medo de ser pego). "Não serás pego" é grandemente conhecido como o décimo primeiro mandamento.
Os criminais de sucesso recebem admiração e aprovação. Nossa sociedade recompensa grandeza e sucesso. Se alguém mata uma pessoa, é um homicida. Se alguém matar vinte e cinco pessoas, é um psicopata; se alguém matar um a milhão de pessoas, é um herói nacional. Se alguém roubar mil reais, a sociedade o manda para a prisão; mas se roubar um milhão de dólares, a sociedade manda ele para o congresso! Muitos filantropos doam, aquilo que na verdade estão devolvendo.
As pessoas encontraram uma forma respeitável de quebrar o oitavo mandamento. Um anúncio de página inteira numa revista conhecida, oferece um livro intitulado "Como roubar legalmente sua riqueza". Existem tantas formas legais de "roubar", de que é uma interrogação como alguém recorre ao crime. A bíblia condena o desonesto rico, mais do que o pobre desesperado que rouba. "Pessoas não desprezam um ladrão se ele roubar comida quando está com fome..." (Provérbios 6:30). Mas o profeta Miqueias trovejou:
A voz do Senhor clama a cidade; temer-lhe o nome é sabedoria escutai a vara, e quem a ordenou.
Ainda há na casa do ímpio tesouros de impiedade, e efa pequeno, que é detestável?
Poderei eu inocentar balanças falsa, com um saco de pesos enganosos?
Os seus ricos estão cheios de violência , os seus habitantes falam mentiras, e a sua língua
É enganosa na sua boca. Assim eu também te enfraquecerei, ferindo-te
E assolando-te por causa dos teus pecados. (Miquéias 6:9-13)
Jesus avisou severamente os escribas que "tiravam vantagem das viúvas e as roubava em suas casas, e davam um show fazendo longas orações. A sua punição, ele declarou, "será tudo o de pior!" (Marcos 12:40). Perto do fim de sua vida ele expulsou os "respeitáveis" cambistas do templo, dizendo que eles o tinham transformado em "cova de salteadores" (Mateus 21:13), mas por outro lado, ele recebeu o ladrão arrependido no paraíso. Todos eles eram ladrões, mas que diferença na forma como o Salvador os considera! Que tipo de ladrão é você?
Convenção
O tipo de ladrões que Jesus considerava mais responsáveis, era os que não viviam por suas convicções, mas por suas convenções. Fraude nos negócios, é roubo convencional. Quando perguntado por seus padrões éticos de negócios, um homem deu esse exemplo: "Se alguém comprar um pneu por dez reais, mas por engano me dá uma nota de cem, ética de negócios é se eu devo ou não comunicar meu sócio".
Lucros excessivos e honorários profissionais se tornam roubo, quando exigem mais do que é justo, dos bens de outra pessoa. Aí vem um ponto onde o lucro não é somente obsceno; ele constituí roubo de imediato. Lucros sem limite tem sido justificados pela teoria "trickle-down"(pingar para baixo). Essa teoria prevê que os pobres ficarão melhor se, ao invés de dar o dinheiro diretamente à eles, o dinheiro deve ser dado aos ricos que irão "pingar, repassar", para os pobres. O resultado atual dessa teoria pode ser visto em muitos países pobres de terceiro mundo, que são dominados por um pequeno número de políticos multimilionários, latifundiários e industriais, enquanto o resto das pessoas sofrem da esmagadora pobreza. Mobuto, pôr exemplo, se tornou um dos homens mais ricos do mundo, enquanto a nação do Zaire (agora Congo), permaneceu desesperadamente pobre. E foi tudo feito dentro da lei. Acontece na África, Ásia, América Latina, e mesmo nos Estados Unidos: os ricos ficam mais ricos e os pobres mais pobres. Desde que seja feito dentro da lei, ninguém se sente responsável.
Reter um salário justo à um trabalhador é roubar. A bíblia diz: "Não explorarás assalariado pobre e necessitado , seja ele teu irmão, seja ele estrangeiro que mora na tua terra e nas tuas cidades. No mesmo dia lhe pagarás o seu salário, para que o sol não se ponha sobre a dívida, pois ele é pobre, e disso depende a sua vida; para que não clame contra ti ao Senhor, e haja em ti pecado". (Deuteronômio 24: 14-15).
"Ouçam! O salário dos trabalhadores que ceifam os vossos campos, e que por vós foi retido com fraude, está clamando. Os clamores dos ceifeiros chegam aos ouvidos do Senhor Todo - Poderoso". ( Tiago 5:4.). Se você pensa que é duro encarar a ira dos sindicatos, tente encarar a ira de Deus. Isso o deixa bravo, quando trabalhadores não recebem um salário digno.
Não roubarás, significa que os empregados devem receber uma diária justa, por um justo dia de trabalho, e os trabalhadores darem um dia justo de trabalho por um salário justo. Funciona dos dois lados. Dar 30 horas de salário, por 40 horas de trabalho, é roubo. E ganhar 40 horas de salário, por 30 horas de trabalho também é roubar.
Outro tipo de roubo convencional, se encontra na dificuldade comum das pessoas pagarem suas contas. Cristãos, logicamente, devem ser compassivos com pessoas pobres que não tem como pagar suas contas (Mateus 18: 21-35). Mesmo assim, qualquer que gasta desenfreadamente, mais do que ganha, em coisas que não suas necessidades básicas, é um ladrão.
Suborno alcança não só o alto escalão político, mas também o mais simples escritório de igreja. Cartas chegam a minha mesa dizendo: "Escolha qualquer presente". È de graça com seu pedido". Me oferecem transistores de rádio, bandejas térmicas e abajures se eu comprar o papel ou os suprimentos da igreja de determinado fornecedor. Mas para gastar o dinheiro da igreja de maneira que me beneficia pessoalmente, é roubo. Nações, tanto quanto indivíduos, podem quebrar o oitavo mandamento.
Exploração internacional é outra forma de roubo convencional. Colombo, por exemplo, não descobriu a América. Colombo encontrou a América, e quando isso aconteceu, já tinha um dono. Colombo tinha tanto direito de possuí-la para a Espanha, quanto eu tenho de "descobrir" seu carro, e possuí-lo. Os ladrões mais velhacos, são os que conseguem outra pessoa para roubar por eles.
Jesus não foi crucificado porque disse: "Veja os lírios do campo, como crescem...", mas porque ele disse sobre olhar para os ladrões e como eles roubam. Ele expôs o engano daqueles que tem uma consciência de conveniência, ao invés de uma consciência de convicção. "Você diz aos outros para não roubar - você rouba?" Essa é a pergunta incomoda que nos condena todos por nossos roubos convencionais.
Conversão
O que faremos sobre roubo? Primeiro de tudo, vamos considerar o pecado do roubo. Jesus disse: "Do coração procedem os maus pensamentos, que levam ao.....roubo...." (Mateus 15:19). Todo roubo, legal ou ilegal, envolve o mesmo pensamento sujo: Desprezo por outras pessoas.
Nós somos convidados de Deus na terra. Presumir em sua hospitalidade, de que sua criação é nossa incondicionalmente, é roubo. O apóstolo Paulo não somente ordena que o ladrão pare de roubar, mas também que vá trabalhar para que comece a ofertar aos outros. Todo aquele que não oferta, rouba alguém de alguma coisa. O profeta Miquéias retrata pessoas que provavelmente não teriam roubado um centavo do cofrinho, como os ladrões cósmicos roubando o cofre dos céus!" "Vocês tem me roubado, diz o Senhor"....nos dízimos e ofertas...vocês tem me roubado, até esta nação" (Miquéias 3:8-9).
Salvação da prática do roubo começa com arrependimento e restituição. Zaqueu, é o modelo. Ele disse: "Darei metade dos meus bens aos pobres, e se tenho enganado à alguém, pagarei de volta quatro vezes mais. Jesus disse à ele: 'Hoje ouve salvação nesta casa'". (Lucas 19:8-9)
A boa notícia é que Deus ama tanto os ladrões que Jesus morreu por eles. Através da sua expiação, eles podem ser perdoados. Jesus morreu entre dois ladrões para salvar todos eles.
O ladrão morrendo se regozijou ao ver
A fonte neste dia;
E talvez eu possa, mesmo vil como ele,
Lavar todos meus pecados......(William Cowper)

SETE VEZES MAIS ABOMINÁVEL
Peço licença a David Letterman e vos dou a lista das 10 maiores mentiras: (David Letterman é um apresentador de talk show nos EUA e apresenta como um dos quadros a lista dos 10 mais)
10. Vamos ficar só cinco minutos
9. Está reunião será bem rápida
8. Nós teremos consideração por você pela manhã.
7. O cheque já foi depositado
6. Eu sou do governo e estou aqui para ajudar
5. Dói mais em min do que em você
4. Seu dinheiro será reembolsado
3. Eu vou estar lá domingo, eu prometo!
2. Nós teremos um pequeno intervalo para nossos patrocinadores.
1. Finalmente, para concluir, meu último argumento é......
Dois irmãos aterrorizaram um cidadezinha por décadas. Eles eram infiéis a suas esposas, maltratavam os filhos e eram desonestos nos negócios. Quando o mais novo morreu, o mais velho disse ao pastor da igreja local: "Quero que o senhor faça o enterro do meu irmão, mas quero pedir um favor, durante o velório, quero que diga a todos que ele era um santo!"
"Não posso fazer isso", falou o pastor. "Todos sabem que isso não é verdade".
O rico irmão sacou o talão de cheque. "Reverendo, estou pronto a dar US$ 100.000,00 a sua igreja. Tudo que peço é que declare publicamente que meu irmão era um santo".
No dia do enterro, o pastor começou sua pregação. "Todo mundo aqui sabe que o falecido era um homem iníquo, um mulherengo e um bêbado. Ele maltratava seus empregados e sonegava impostos." Aí, ele fez uma pausa. "Mas, mesmo sendo mal e pecador, comparado com seu irmão mais velho, ele era um santo!" Você pode imaginar se ele levou o dinheiro.
Uma testemunha estava mentindo no seu depoimento na justiça. O juiz disse para ele: "Tião, lembre-se do que a bíblia diz: "Não darás falso testemunho contra teu vizinho'". A testemunha respondeu: "Meritíssimo, eu não estou dando falso testemunho contra meu vizinho. Eu estou dando falso testemunho pelo o meu vizinho".
Embora a referência primária do nono mandamento, diz respeito a um testemunho formal diante da justiça, o mandamento ilustra o princípio da honestidade, que se aplica em tudo na vida. Calúnia diante de um juiz de direito, ou sussurrada a um vizinho, é diferente somente em que o primeiro tem uma culpa extra por estar debaixo de juramento. Eu nunca foi intimado para testemunhar numa corte, mas o nono mandamento ainda me serve de uma forma mais pessoal: "Dizer a verdade".
Mentir, é uma abominação sete vezes pior. A antiga sabedoria Hebraica declara:
Há sete coisas que o Senhor odeia e não pode tolerar:
O olhar altivo,
A língua mentirosa,
Mãos que matam gente inocente,
a mente que planeja o mal,
Pés que se apressam em fazer o mal,
A testemunha que diz uma mentira após outra,
O homem que suscita contenda entre amigos.
Provérbios 6:16-19
Todos os sete maus hábitos se encontram na pessoa que quebra o nono mandamento. Todo ser da pessoa, língua, mãos, mente e pés - estão infectados com a doença da desonestidade. Não somente Deus acha esse tipo de pessoa intolerável, mas ninguém os suporta.
Dizer a verdade
"O amor cobre uma multidão de pecados", afirma a bíblia (I Pedro 4:8). Mas é muito mais fácil encontrar pessoas que agem como o ditado: "Mentira cobre uma multidão de pecados". Porque, a mentira os cobre - temporariamente! As pessoas mentem para evitar as conseqüências de algo errado que fizeram.
È fácil mandar alguém mentir, mas é difícil ficar somente numa. Uma pessoa não consegue comer só um bis, e uma pessoa não conseguem mentir somente uma vez. Uma mentira leva a outra, e a outra, e a outra, até que alguém se encontre numa teia de desonestidade. E os que começam dizendo "mentiras brancas", logo se tornam "cegos coloridos".
"A mentira é uma abominação para Deus...........e sempre presente em dias de problemas". Essa afirmação é uma confusão de passagens bíblicas, mas uma reflexão verdadeira da vida. Quando as pessoas estão encrencadas, a mentira sempre parece mais uma virtude do que uma sujeição. Mas se apegar a ela em defesa própria, é como segurar um raio numa tempestade.
Tanto funciona para indivíduos, como com o governo: quanto mais eles se afundam em problemas, mais apto eles estão em encontrar uma saída na mentira. Verdade é a primeira morte em qualquer guerra. Governos acham que é seu dever patriótico enganar o inimigo, e acidentalmente, sue próprio povo. Embora cada governo inflame as perdas do inimigo no campo de batalha, e diminua as suas, a "Segurança Nacional" se torna o detergente prático com o qual um governo lava a sujeira de toda mentira de seus oficiais. As coisas não mudaram muito nos últimos quatrocentos anos desde que Henry Wotton descreveu um embaixador como "um homem honesto enviado para mentir no exterior em favor do bem comum."
Embora muitas pessoas possam detestar mentiras oficiais, bradar contra tal decepção não é de muita ajuda nem mesmo muito cristão. Existe, logicamente, um precedente bíblico para denunciar o engano no alto escalão do governo, mas está em sua maioria no Velho Testamento, quando o reino de Israel era um reino teocratico. O próprio rei foi arrancado da comunidade da fé e sujeito a disciplina. No Novo Testamento, Jesus e os apóstolos viviam debaixo do corrupto império romano, mas tinham muito pouco a dizer sobre desonestidade dos lideres políticos como Herodes, Pilatos, César e outros. Por outro lado, Jesus tinha muito a dizer sobre o engano dos lideres religiosos. (Mateus 23)
O que parece ser um padrão duplo, é na verdade a única aproximação sensível. Toda mentira - governamental ou individual - é errada. Mas atacar as mentiras das pessoas em postos de autoridade, desvia a atenção das nossas próprias tentações de enganar. O ataque não é capaz de mudar nada na vida política, mas nos tira da responsabilidade. Se olharmos mais de perto, seremos aptos a encontrar em nós mesmos as mesmas sementes de engano que vemos nos outros.
Nas palavras de Paulo: "Cada um de vós deixe a mentira e fale a verdade com seu irmão, pois somos todos membros do mesmo corpo". (Efésios 4:25). Perceba que o motivo que ele nos dá para dizer a verdade, não é que você será pego e punido por mentir, mas que somos membros do mesmo corpo. Uma vez que você entende a unidade do Corpo de Cristo, você percebe o quanto absurdo é mentir. Faz tanto sentido quanto se o seu pé direito, diz para seu umbigo que a água do mar está morna. Somos todos membros do mesmo corpo, portanto, diga a verdade.
Aqueles que vem a Ele que é o Caminho, a Verdade e a Vida (João 14:6) devem portanto dizer a verdade - e não somente a verdade, mas .........
Diga Toda a Verdade
O melhor mentiroso é o que está capaz de fazer a menor mentira ir bem longe. Verdadeiros profissionais conseguem mentir sem dizer nenhuma inverdade. Pôr exemplo, todas as vezes que Satanás citou a bíblia foi verdade (Marcos 1:23-34; 3:11; 5:6-7), mas como mestre do engano, os demônios usam a verdade para seus fins dissimulados. O resto de nós, mentirosos amadores, os imitamos.
Após uma viagem de pescaria, o pescador parou num mercado de peixes. Vá daquele lado e jogue-me as cinco maiores trutas que tiver.
"Joga-las?" perguntou o vendedor confuso. "Para quê?"
"Para que eu possa dizer a minha esposa que os peguei. Eu posso ser um pescador meia boca, mas não sou um mentiroso".
Isso é o que ele pensa. Ele disse a verdade, mas não toda a verdade. Ele é como o fazendeiro que sendo incomodado pela consciência pesada, foi a seu vizinho e confessou: "Eu sinto muito, eu roubei uma corda sua no ano passado."
"uma corda? Deixa para lá, vizinho. Vamos esquecer e ser amigos".
Mas o fazendeiro não ficou em paz, porque ele ocultou do vizinho que havia uma vaca na ponta da corda que ele roubou. Diga a verdade, mas certifica-se de dizer toda a verdade.
Uma verdade inteira é facilmente destruída, mas meias mentiras tem nove vidas. È muito mais enganadora, porque é mais fácil de engolir. Benjamim Disrael disse: "Existem três tipos de mentiras: mentiras, mentiras amaldiçoadas e estatísticas." São os fatos estatísticos, cuidadosamente escolhidos e ardilmente arranjados para enganar, que constituem a pior forma de desonestidade.
"A verdade dita com más intenções
vence todas as mentiras que você possa inventar." (Blake)
Diga toda a verdade mas se lembre sempre de......
Dizer Toda a Verdade em Amor
Paulo junta dois princípios importantes em sua carta aos éfesos. "Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é o cabeça, Cristo" (Efésios 4:15). Sempre que houver um conflito entre amor e verdade, o amor deve vencer.
A família de um pregador ganhou um a torta de natal de uma senhora que tinha um bom coração, mas não era boa cozinheira. A torta estava tão dura e super temperada, que teve que ser jogada fora. Encarando a difícil tarefa de ser ambos, verdadeiro e gentil, o pregador disse: "Nós gostamos muito do seu presente. E deixe eu garantir que uma torta como a sua nunca dura muito tempo em nossa casa."
Essa foi, logicamente, uma mentira bem engenhosa, mas presumivelmente, o motivo por trás a torna um apouco mais aceitável. A maioria das mentiras brancas, não são ditas, no entanto, por amor, mas para evitar vergonha pública. Raabe nos dá o melhor exemplo de mentira branca. Ele deu falso testemunho contra seus vizinhos em Jericó, quando eles exigiram os espias de Israel (Josué 2:1-7). Embora seu comportamento, fosse condenável, manteve a lei maior do amor. Todas as vezes que amor e a verdade estiverem em conflito, é melhor estar do lado do amor.
Os cristãos vão muito além do requerimento mínimo de honestidade para falar a verdade em amor.
Sem verdade, o amor se torna barato "ágape vagabundo". Desintegra-se em mero sentimento emocional.
Sem amor, a verdade se torna dura, fatos frios que congelam a alma. Fale a verdade em amor.
PECADO DURO DE SE CONVIVER
Moisés desceu do monte Sinai com dez mandamentos, o mais honrado código de moral do comportamento humano da história. Há um mandamento, no entanto, que não é observado, o último. Ninguém o leva a sério. Você já ouviu alguém ser punido por quebrar o décimo mandamento? Pessoas já foram enforcadas por quebrar o sexto (homicídio), desonrados por quebrar o sétimo (adultério) e processados por quebrar o nono (perjúrio), mas ninguém nunca pagou uma multa ou foi para a cadeia por cobiçar. Nenhuma lei humana se interessa em dirigir atitudes humanas, mas Deus sim. Mesmo que houvesse uma lei criminal contra a cobiça, nenhum detetive humano poderia descobrir sua violação, mas Deus pode.
Nem mesmo a igreja leva o pecado da cobiça a sério. A Convenção Batista do Sul foi convocada para boicotar a Disney por causa de sua política favorável aos gays e lésbicas. Mas nenhuma indústria de entretenimento foi boicotada por sua política favorável a riquezas e opulência. Igrejas passaram por revoluções contra o pecado da intoxicação pelo espírito da bebida, mas onde estão as revoluções contra a intoxicação pelo espírito da avareza? Muitas igreja não permitem que alguém seja se voluntário no escritório da igreja, porque o amor por outra mulher o levou a se divorciar de sua esposa, mas qual igreja que desqualifica alguém nos termos que o amor pelo dinheiro o tornou muito ambicioso? O jovem rico é bem vindo e convidado a servir no comitê do orçamento.
No entanto, o mandamento diz: "Não cobiçarás". E aí fica bem específico: Não cobiçarás os bens do seu vizinho, esposa, escravo, gado ou jumento. Eu estou feliz em dizer que eu nunca cobicei o escravo do meu vizinho, gado ou jumento, embora eu deva confessar que as vezes eu dou uma olhadela nas novas casas que vão surgindo, como margaridas em nossa cidade. Elas não são bonitas? Você não gostaria de trocar a sua pela deles? Mas a palavra de Deus diz: "Não cobiçarás a morada do teu próximo.....nem sua esposa".
Cobiçar a mulher do meu próximo, me faz lembrar do que Deus disse no sétimo mandamento: "Não adulterarás". O décimo mandamento via um passo mais adiante dizendo: nem pense nisso! Caso você ainda não esteja se sentindo culpado, o último mandamento adiciona uma pegadinha final: "Não cobiçarás nada que pertence ao teu vizinho." Eu creio que o alvo de Deus com este mandamento era nossos dias, muito mais do que no tempo em que foi instituído. Ganância é com certeza, um problema muito maior para nós, do que para Moisés e seus ambulantes seguidores, 1400 anos A C. Não havia muitas coisas para um hebreu possuir, que os outros hebreus também não tivessem. Um poderia ter dez cabritos, e o outro vinte, mas cabritos são cabritos, e não é um caso tão sério de cobiça. Com poucas exceções, toda a comunidade hebraica compartilhava dos mesmos padrões de vida, e desfrutavam de oportunidades semelhantes.
Ah, mas hoje somos abençoados com uma grande abundância de bens que alimentam nossa ganância. Nós temos a tecnologia para criar uma infinita variedade de coisas que as pessoas desejam, e temos a indústria da propaganda, que faz com que as pessoas os queiram. Adicione esses dois juntos, e nós temos as bases da cobiça, o sustentáculo da nossa economia. Pessoas tem tudo que podem e podem tudo que tem.
O economista John Maynard escreveu: "Por pelo menos mais cem anos, nós devemos fingir para nós mesmos e para os outros que o justo é abominável e o abominável é justo, porque o abominável é útil e o justo não. Avareza, usura e precaução devem ser nossos deuses, por um pouco mais de tempo." Ivam F. Boesky disse aos formandos da Escola de Negócios e Administração de UC Berkley: "Ganância é legal....eu acho que ganância é saudável. Você pode ser ganancioso e continuar se sentindo bem sobre si mesmo." Isso foi antes de Boesky ser condenado por violações internas da corporação, e ter pago US$ 100.000.000,00 de multas por seus ganhos ilícitos.
A Ganância Torna Mais Difícil de Conviver Conosco
Nosso moderno estilo de vida tem sido tão impregnado pela ganância, que es pessoas acham difícil de conviver consigo mesmos. A raça humana é a única espécie do reino animal, que tem o desejo ampliado enquanto se alimenta. Fido, o cão da família, não quer mais do que os seus ancestrais que viviam nas cavernas. O boi suspira hoje em dia, tanto quanto seus antecessores que primeiro puxavam carroças pelos prados do oeste. Mas a espécie humana está insatisfeita com o básico que satisfazia as gerações passadas.
Não seria interessante ouvir os adolescentes de hoje dizer a seus filhos o que eles não tiveram? Os luxos de ontem se tornaram as conveniências de hoje e as necessidades de amanhã. È banal, mas é verdade: quanto mais nós temos, mais nós queremos. O Presidente Lyndon Johnson falou por todos os insatisfeitos quando disse: "Tudo que eu quero, é tudo que existe." A fome humana para bens materiais é insaciável. Cobiça é uma ferida que quanto mais você coça, mais incha.
"Satisfação garantida" é uma promessa vã para aqueles que entregaram seus corações aos bens, poder e status. As pessoas gananciosas jogam o jogo da vida como Pac-Man; eles engolem tudo que podem, mas inevitavelmente são vencidos e engolidos. Elas não podem vencer perdendo. Se elas não conseguirem o que querem, ficam frustradas; mas se conseguem o que desejam, ficam rapidamente entediadas. As pessoas mais entediadas da terra não são os destituídos, mas os muito privilegiados. Eles possuem de tudo para se viver, mas muito pouco pelo que se viver.
A bíblia nos dá um intrigante conjunto de paradoxos, que dizem respeito a bens materiais. Eles são coisas boas (Lucas 16:25), mas não devemos almeja-los (Colossenses 3:5-7). Eles são para ser desfrutados, mas não devemos fazer desse desfrute o nosso objetivo. Eles são coisas que precisamos (Tiago 2:16), mas não devemos dedicar nossas vidas em sua conquista (Mateus 6:25).
Esses paradoxos se tornam um pouco mais fácil de entender se distinguirmos, cuidadosamente entre, meios e fins. Jesus disse: "Buscai em primeiro lugar o reino de Deus...e todas essas coisas vos serão acrescentadas" (Mateus 6:33). O seu reino é nosso objetivo; todo o resto é somente um meio de consegui-lo. Os bens materiais são valorados pela foram que contribuem com o reino de Deus. Se eles construem o reino de Deus, eles são bons. Se não, são inúteis ou pior.
Bens materiais podem ser uma moeda de amor - os meios através dos quais nós compartilhamos amor uns com os outros, e pelos quais descobrimos o amor de Deus. Nós demos desejar aquilo que conseguimos de maneira reta, usar de maneira sábia, distribuir com alegria e viver satisfeito. A bíblia não diz: "Dinheiro é a raiz de todos os males". Ela diz: "O amor ao dinheiro é a raiz de todos os males". (I Timóteo 6:10).
Os que são cobiçosos, estão atolados em meio a fartura, como Tantalus com água até o queixo, e continua com sede. Ganância torna mais difícil de conviver conosco e ........
Ganância torna mais difícil de conviver com os outros
Pessoas gananciosas não desfrutam, verdadeiramente, o que possuem. O que dá prazer, é ter mais do que os outros. Pobreza é um estado de espírito, induzido pelo carro novo do nosso vizinho, seu barco ou piscina.
Existe uma profunda sabedoria na parábola de Aesop sobre o homem ganancioso. Zeus prometeu conceder a ele qualquer desejo, conquanto que seu vizinho recebesse o dobro. Ele pedia uma mansão, e seu vizinho ganhava um castelo. Ele pedia vinte vacas, e seu vizinho recebia quarenta. A história termina com o homem pedindo para ficar cego de um olho!
Roland Diller, um dos vizinhos de Abrão Lincon, em Springfeild, escreveu sobre um incidente que ocorreu no começo de sua carreira. Levado até sua porta pelo choro de crianças na rua, ele viu Lincon passando com seus dois meninos que gritando e choramingavam. "O que aconteceu com os meninos, senhor Lincon?" ele perguntou.
"O mesmo que acontece com o mundo inteiro", ele respondeu. "Eu tenho três nozes e cada um quer duas".
Isso é, na verdade, o que está errado com o mundo. A ganância torna difícil a convivência com outros, porque a pessoa cheia de ganância vê os outros como competidores, ao invés de parceiros. Ou seja, ganância destroí a solidariedade. Cria uma espécie de inferno na terra - sem satisfação, sem segurança, sem paz, somente o constante descontentamento de um desejo egoísta incompleto.
Por pior que seja uma pessoa generosa, alguém vai gostar dela. (Robin Hood a Jesse James são honrados no folclore americano). Por outro lado, por melhor que seja uma pessoa gananciosa, todos vão detestá-la. Generosidade cobre uma multidão de vícios, mas ganância cancela uma multidão de virtudes. Um sovina pode ser valorizado como parente, mas não como vizinho. A ganância faz com que seja intolerante conviver com os outros e........
Ganância torna difícil a convivência com Deus
Ganância torna difícil a convivência com Deus, porque a ganância é completamente contrária a natureza de Deus. Deus é infinitamente generoso. "Ele dá chuva aos bons e aos maus" (Mateus 5:45). Não pode existir relacionamento entre Deus, cujo coração queima de amor, e pessoas que tem o coração congelado pela ganância.
Quando pessoas gananciosas oram, não é para buscar a vontade de Deus, mas para listar sua ajuda para suprir seus desejos egoístas. Eles não buscam Deus por si mesmo, mas para que possam contratá-lo de guarda costa para Mamom.
Nessa altura você pode concordar que a ganância dificulta conviver consigo mesmo, com os outros e com Deus. Mas você pode perguntar onde pode-se encontrar contentamento que domina a cobiça? Certamente não na simples confirmação que você não precisa de tudo que quer. A fortaleza do desejo é muito forte para isso. Somente um amor maior pode deslocar o desejo mortal da cobiça. Paulo adverte os Coríntios a "Cobiçar os melhores dons" (I Cor. 12:31). Os melhores presentes não são o carro do seu vizinho, ou esposa. Os melhores dons são sabedoria, bondade, cortesia e honestidade. Paulo disse: "Almeje o vosso coração as coisas celestes...mantenha sua mente nas coisas de lá, não nas coisas aqui do mundo....Portanto, despoje-se dos desejos da carne que atuam em você, como prostituição, indecência, luxúria, paixões carnais e avareza que é idolatria" (Colossenses 3:1-5). A única coisa que pode conquistar o forte desejo da ganância, é o desejo por coisas melhores. "Pensai em tudo que é bom, e merece honra: coisas verdadeiras, nobres, justas, puras amáveis e honráveis" (Filipenses 4:8-9)
Davi disse: " Agradai-vos do Senhor, e ele te satisfará os desejos do seu coração" (Salmos 37:4). Isso não significa que o Senhor dará o que você quer, mas vai controlar o seu "desejo". O segredo de dominar a cobiça é desejar tanto à Deus, que você não pode ser mais incomodado por uma ganância desregrada por outra coisa.

O DEZ PERFEITO
Geralmente se dá crédito à Moisés por nos ter dado os dez mandamentos. Se ele estivesse aqui, eu creio que ele dispensaria a honra. Ele introduziu os mandamentos no livro de Êxodo dizendo: "Disse Deus, e essa são suas palavras...." (Êxodos 20:1). Estas não são somente as leis de Moisés, são as leis de Deus.
DEUS TEM FALADO, NÃO TEMOS OUVIDO
Nós sofremos de uma doença moral chamada Falta e Falha em Ouvir (FFO). A crise de ética dos nossos tempos, não é somente a disseminação da dificuldade em aceitar padrões morais, mas em negar que exista qualquer padrão que seja universal e absoluto. A noção de um código moral, não tem significado para muitos homens e mulheres. Quebrar os padrões, enquanto tem-se conhecimento de sua autoridade é uma coisa, mas perder todo o senso de obrigação e repudiar toda autoridade moral é algo muito mais sério. Estar perdido na estrada é muito ruim, mas jogar o mapa pela janela é bem pior. E discutir que o mapa não existe é a pior condição imaginável. Nós precisamos de um Guia Quatro Rodas para a pisque humana.
Algumas pessoas tentam desenhar seu próprio mapa moral. Eles pensam que moralidade é um projeto auto executável. Para eles é simplesmente um problema individual, privado, de opinião pessoal. Negando que existe um Fazedor de leis, ao qual eles devem dar crédito, preferem criar suas próprias regras. Eles dizem coisas como: "Eu acho que adultério é errado, mas sexo antes do casamento é normal se você acha que está pronto. Eu acho que aborto é homicídio, mas nem tanto quanto a eutanásia. Eu acho....eu acho....eu acho....." Seus padrões morais, são seus sentimentos. Dizer "eu tenho a obrigação" significa tanto para eles quanto dizer "eu coço". É somente a forma como sentem.
As vezes, quando um pai diz ao filho que é hora de por o quarto em ordem, o filho responde; "Eu não estou com vontade".
"Eu não perguntei se você está com vontade. Eu pedi para você limpá-lo."
"Porque ?"
"Porque eu disse que sim."
A mesma conversa acontece entre nós e nosso Pai Celeste. Deus tem falado, mas nós não temos ouvido.
Outros são tentados a evitar as ordens da lei de Deus, buscando provas bíblicas em textos que parecem ter abolido a lei. Eles podem citar Romanos 6:14 " Pois não estais mais debaixo da lei, mas debaixo da graça, "mas eles falham em continuar no próximo versículo, 'Que então? Devemos pecar, porque não estamos debaixo da lei mas debaixo da graça? De maneira nenhuma1" Paulo argumenta que a graça não nos dá licença para pecar; graça nos dá poder para dominar o pecado e quebrar o seu julgo.
Dietrich Bonhoeffer disse: "Você não pode ouvir a última palavra, até que escute a penúltima palavra." Você não pode conhecer o evangelho até que conheça a lei. Você não consegue entender o Novo Testamento, até que esteja debaixo do Velho Testamento.
Jesus disse: "Não penseis que vim para destruir a lei ou os profetas; não vim para destruí-los, mas para cumpri-los". (Mateus 5: 17). Paulo pergunta: "Anulamos pois a lei pela fé? E ele responde: "De maneira nenhuma! Antes confirmamos a lei" (Romanos 3:31). Depois ele diz: "A lei por si é santa, e o mandamento santo, justo e bom". (Romanos 7:12).
Tudo bem, a lei é boa, mas...........
PARA QUE SERVE A LEI?
Para esta pergunta, existem três respostas, três boas utilidades para a lei. A primeira função da lei é social. Ela restringe o mal da sociedade. Paulo disse a Timóteo: "Nós sabemos que a lei é boa se dela faz-se uso legitimamente. Tendo em vista que a lei não é feita para o justo, mas para os transgressores e rebeldes, os irreverentes e pecadores, os ímpios e profanos, para os parricidas, matricidas e homicidas." (I Timóteo 1:8-9).
A lei não o salva dos seus pecados, mas pode salvar os outros dos seus pecados. Seu propósito é evitar a desintegração da sociedade. Moisés subiu o monte Sinai como o absoluto governador de Israel. Ele desceu da montanha debaixo da lei. Dali por diante, Moisés não podia dizer nada sem alguém perguntar: "Onde isso está escrito na lei?"
O rei Davi quase se tornou o absoluto governador de Israel, mas mesmo ele foi derrubado pela lei dita através da boca do profeta Natã. Havia lei em Israel, e nem mesmo o rei Davi pode se esquivar.
A lei se aplica igualmente a todos - ao rico e pobre, ao forte e ao fraco. E ainda é assim. Leis contra beber embriagado, e alta velocidade se aplicam a princesa e o plebeu. Princesa Diana e seu companheiro, pagaram um terrível preço por quebrar essa lei. Pena de morte parece severa demais para a lei de trânsito, mas a lei foi feita para prevenir o que aconteceu num túnel em Paris. As leis de Deus funcionam da mesma maneira. Está designada para restringir o mal na sociedade.
A Segunda função da lei é teológica. Ela revela nossa condição pecadora e nos leva a Cristo. "De maneira que a lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo, a fim de que pela fé fossemos justificados." (Gálatas 3:24). Outra palavra para aio, é cicerone. Na antiga Grécia e Roma, o aio era uma escravo que acompanhava a criança de ida e vinda da escola. Ele não tinha autoridade para controlar o comportamento da criança, nem autoridade para castigar, e nem autoridade para instruir; ele tinha somente a autoridade para transmitir a mal conduta da criança. A função teológica da lei é transmitir nossa mal conduta. É uma visão mais alta da lei do que sua mera função social. A pequena visão social leva ao legalismo da religião, mas a visão teológica leva o transgressor a buscar a graça divina. Como disse John Newton: "Graça que ensinou meu coração a temer, e graça que aliviou meus temores".
A Terceira função da lei é didática. Ela guia aqueles que correspondem a graça de Deus. Lembre-se, somos salvos pela graça, não pelas obras (Tito 3:5). Os mandamentos foram endereçados especificamente para os que pela graça são filhos de Deus. Eles começam com a declaração: "Eu sou o Senhor vosso Deus, que os tirou da terra do Egito, da casa da servidão" (Êxodo 20:2). Os mandamentos não foram dados aos pagãos, mas para o povo que foi salvo pela poderosa mão de Deus - povo que entrou em aliança com Deus e prometeu ama-lo e servi-lo.
Paulo escreveu aos colossenses: " Por esta razão, nós também, desde o dia em que o ouvimos, não cessamos de orar por vós, e de pedir que sejais cheios do pleno conhecimento da sua vontade, em toda sabedoria e entendimento espiritual. E oramos para que possais andar dignamente diante do Senhor, agradando-lhe em tudo, frutificando em toda boa obra, e crescendo no conhecimento de Deus". (Colossenses 1:9-10). O amor motiva o comportamento cristão. Horácio Bonar, escritor do querido hino 'Eu Ouvi a Voz de Jesus Dizer", escreveu: "Nos dirão eles o que regula o serviço senão a lei? Amor, eles dizem. Isso é puro sofisma. Amor não é uma norma, mas uma razão.
O amor não me diz o que fazer; ele me diz como fazer. O amor me constrange a fazer a vontade do ser amado, mas para saber qual é essa vontade eu devo ir à outro lugar. A lei de Deus é o desejo do ser amado".
Jesus disse: "Aquele que me ama, guarda os meus mandamentos". (João 14:15)
A LEI DE DEUS É A VONTADE AMOROSA DE DEUS
Embora os cristãos sejam remidos pela graça através da fé, eles permanecem pecadores (I João 1:8) e, portanto, continuam a ouvir as acusações da lei. Mas agora enxergam a lei numa diferente perspectiva, como a vontade amorosa de Deus. Como a antiga Israel: "Antes tem o prazer na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite". (Salmos 1:2). Pois para eles os mandamentos não são barras de uma prisão, mas vigas de um teto que os abriga das tempestades da vida.
Contrário a opinião popular, pecado não é o que você quer fazer, mas o que não pode fazer. Pecado é o que você não deveria fazer porque irá te machucar - e te machucar feio. Deus não é um policial cósmico. Ele é o Pai Celeste que ama e protege seus filhos. Quando uma criança quer brincar numa rua movimentada, um pai amoroso dirá: "Não deve.....", ou algo parecido. A criança pode achar o pai um chato e mandão. Mas é o maior que dá as ordens. Como disse o apóstolo João: "E o amor de Deus é esse, que cumpramos os seus mandamentos. E seus mandamentos não são pesados" (I João 5:3).
O decálogo e a mesa da multiplicação vão longe na história, mas nenhum é antiquado ou fora de moda.. Nenhum outro código de lei conseguiu alcançar a mente humana e influenciar seu comportamento tão amplamente e por tanto tempo como os Dez Mandamentos - o perfeito 10.
"Quando todo resto falhar, tente ler as instruções." Esse é um bom conselho, seja para fazer funcionar um cortador de grama ou sua vida. Existem instruções para organizar a vida, de forma que tudo se encaixe sem sobrar nenhuma peça? Existem um manual d manutenção do fabricante para a psique humana? Sim! A maior lista básica de instruções nos foi dada por Deus nas sagradas escrituras.
A o moderador de televisão noturna, Ted Koppel, da TV ABC, disse na Universidade de Duke; "Nossa sociedade acha a verdade um medicamento muito forte para digerir . O que Moisés trouxe do monte Sinai não foram as 'Dez Sugestões'. Eles eram os Dez Mandamentos. Não eram, são. A grandeza dos Dez Mandamentos é que eles codificam de uma forma simplificada o comportamento humano aceitável, não somente aqui e ali, mas para toda vida."
Nas palavras de Moisés: "Ora, este mandamento que hoje te ordeno, não te é difícil demais , nem está longe de ti. Não está nos céus para dizeres: Quem subirá por nós aos céus para, que no-lo traga e no-lo faça ouvir, para que o cumpramos?" Nem está do outro lado do mar para dizeres: Quem atravessará por nós o mar para que no-lo traga , e no-lo faça ouvir, para que o cumpramos?" Pois esta palavra está mui perto de ti, na sua boca e no seu coração para a cumprires." (Deuteronômio 30:11-14)
Por mais de três mil anos essas leis fundamentais tem servido como chave para o comportamento Judeu - Cristão. Não significa que os judeus e cristãos sempre o tenham obedecido. Nossa mútua história e a triste história de desobediência crônica. Mas descobrimos que elas continuam suprindo as únicas chaves que funcionam para destrancar a vida e nos libertar para viver plenamente. Eles proporcionam sabedoria antiga para a vida de hoje.
Oxiayala holado, od zodirome O coraxo das zodiladare raasyo. Od vabezodire cameliaxa od bahala: NIISO! salamanu telocahe!
Casaremanu hoel-qo, od ti ta zod cahisa soba coremefa i ga. NIISA! bagile aberameji nonucape. Zodacare eca od Zodameranu! odo cicale Qaa! Zodoreje, lape zodiredo Noco Mada, hoathahe I A I D A!
Oxiayala holado, od zodirome O coraxo das zodiladare raasyo. Od vabezodire cameliaxa od bahala: NIISO! salamanu telocahe! Casaremanu hoel-qo, od ti ta zod cahisa soba coremefa i ga. NIISA! bagile aberameji nonucape. Zodacare eca od Zodameranu! odo cicale Qaa! Zodoreje, lape zodiredo Noco Mada, hoathahe I A I D A!


RELATÓRIO SEXUAL
L. P. BAÇAN
VISITE A CASA DO MAGO DAS LETRAS

RELATÓRIO SEXUAL

L P BAÇAN

Copyright (c) 1998

L P B Edições
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AVISO IMPORTANTE

Os relatos aqui apresentados foram extraídos de anotações do livro da
psiquiatra Norah Tompkins, autora do célebre livro A Vida Sexual de
Machos e Fêmeas. Por conterem indiscrições protegidas por lei, os
nomes dos pacientes, bem como das localidades onde se passaram os
fatos e das pessoas envolvidas foram alterados, de modo a proteger
totalmente suas identificações.

Da mesma forma, não foram apresentados diagnósticos nem tratamentos,
limitando-se a presente obra a simplesmente narrar as diferentes
manifestações do apetite sexual, sem entrar no mérito de um ou de
outro.

Cabe ao leitor analisar os comportamentos e conhecer as diferentes
formas de manifestação sexual, adaptando-a ou não a sua vida pessoal e
privada, sob sua inteira responsabilidade.

A linguagem utilizada foi baseada, sempre que possível, nos
comentários e narrativas dos próprios pacientes, evitando-se a
inserção de termos técnicos ou arrazoados científicos que se tornariam
maçantes aos leigos.

Para maiores detalhes ou a compreensão científica do fato sexual,
recomendamos a leitura do livro A Vida Sexual de Machos e Fêmeas, onde
a totalidade desses casos são analisados sob um enfoque científico. E
maçante, por sinal.

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Capítulo 1


Consulta Inicial de Oliver Dexter, Médico.

Síntese do caso: Fixação em uma paciente.

Narrativa do paciente: Naquela noite, eu precisava de Minha namorada.
Estava cansado após um dia de trabalho pesado no hospital, mas estava
também estranhamente excitado.

Ainda tinha diante de mim a imagem daquelas formas perfeitas,
iluminadas pelas lâmpadas do centro cirúrgico, enquanto eu trabalhava,
operando o corte logo acima do umbigo.

Tentava me concentrar em meu trabalho, mas distraía-me olhando aquelas
coxas cobertas por uma penugem delicada, que prendiam minha atenç
ão.

No momento seguinte eu deslizava os olhos pelo ventre achatado e
perfeito, indo até o monte-de-vênus deliciosamente raspado, bem como
toda a penugem que deveria subir até próximo do umbigo.

Ficava imaginando o roçar das m
ãos, dos dedos e do próprio caralho naquela xoxota barbeada e pelada,
enquanto tentava suturar o ferimento profundo e perigoso.

Segundo ela informara, fora um acidente com uma faca. Eu já vira
acidentes com faca antes. Em nenhum a trajetória seguia a linha que o
ferimento indicava. Alguém, a quem ela tentava proteger, a havia
ferido.

A enfermeira enxugava minha testa, depois aplicava compressas no
ferimento. Meu olhar fixava-se nos seios, de medidas perfeitas, num
formato que parecia talhado para encaixar-se em minhas m
ãos.

Eu tocava a pele dela, enfiava meu dedo no ferimento e olhava seu
rosto adormecido tranqüilamente, imaginando-a a minha disposiç

ão, esperando-me numa cama com lençóis vermelhos de cetim e meu
caralho latejava de tanto tesão.

Eu jamais havia experimentado algo assim antes. Jamais uma paciente
provocara em mim uma reaç
ão tão forte e inesperada, a ponto de me fazer ficar de pau duro na
sala de cirurgia.

Tive de fazer um esforço enorme para conseguir chegar ao fim daquela
operaç
ão com sucesso, inclusive dando pontos tão perfeitos que poderia jurar
que nem uma cicatriz restaria ali para denunciar o ferimento

Quando dei por terminado meu trabalho, estava t
ão excitado que não pude esperar mais. Precisava desabafar meu tesão
de algum modo, por isso fui ao encontro de Minha namorada, em sua
casa.

Eu tinha livre trânsito na ampla cobertura da família, na Quinta
Avenida, no Edifício Dallas, em frente ao Central Park. Era uma das
vistas mais lindas de Nova Iorque.

Os pais dela n
ão estavam, como sempre. Viajavam muito. Eu já era velho conhecido dos
empregados. Muitas vezes dormira ali, com minha namorada e acordara
com Susy, a camareira, levando-nos o café na cama.

-- Sua namorada está no quarto dela -- informou-me Susy, com aquele
seu jeitinho todo especial de me olhar.

N
ão fosse meu respeito por Minha namorada e pela família dela, já tinha
metida a vara naquela garota oferecida e deliciosa. Tinha grandes
seios e uma bunda empinada. Seu ar fogoso e sempre aceso denunciavam
uma mulher ardente e sensual.

Fui até o quarto de Minha namorada e me despi, enfiando-me debaixo do
lençol de cetim que deslizou deliciosamente sobre meu corpo. Meu
caralho já estava duro, espetando o tecido, armando um circo à espera
da domadora para o ato principal.

Minha namorada estava no banho e eu podia ouvir o barulho da água.
Imaginei-a nua, com a pele molhada, os cabelos escorridos, a espuma
lubrificando providencialmente os locais corretos e a excitaç
ão chegou a um ponto brutal.

Aquela espera poderia se tornar insuportável, se ela se demorasse
muito. Felizmente ela surgiu logo depois, enrolada com uma toalha, os
cabelos ainda úmidos, a pele fresca e perfumada.

Sorriu, agradavelmente surpresa ao me ver. Depois, notando minhas
roupas espalhadas pelo quarto, seu rosto se encheu de malícia. Ela
soltou a toalha e exibiu seu corpo escultural.

Os seios pontudos e perfeitos mal se moviam, enquanto ela caminhava na
minha direç
ão com os movimentos felinos de uma pantera.

Devorei-a com os olhos, como havia devorado aquela paciente na sala de
cirurgia. Das coxas aos lábios carnudos, passando pelos seios e pelo
ventre, descendo, acompanhando o triângulo peludo que descia rumo a
sua vulva, tudo nela era desejável e tentador.

Apoiou um dos joelhos na cama. Seu perfume veio até mim, envolvendo-se
e embriagando-me.

-- Estou surpresa! -- murmurou ela, passando a língua pelos lábios,
tornando-os brilhantes e tentadores.

As mãos subiram pelo próprio corpo, deslizando cintura acima, até
juntarem-se sobre os seios. Sua pele estava arrepiada. Os biquinhos de
seus seios estavam durinhos, demonstrando como ela se excitava
rapidamente com a minha presença ali, em seu quarto, nu em sua cama.

-- Estou tão cheio de tes
ão que mal posso esperar... -- murmurei, contraindo meu pinto e
fazendo-o mover-se sob o lençol, como se acenasse para ela,
convidando-a.

Minha namorada levantou a beirada do lençol e fez um biquinho de
satisfaç
ão ao ver meu cacete em pé.

-- O que houve?

-- N
ão sei... Estava operando uma garota e pensei em você...

Ela riu, olhando-me com desconfiança. Eu falara a verdade.

-- Quem era ela?

-- O nome é Muriel qualquer coisa...

-- Bonita? -- indagou ela, agora com um acento de ciúme na voz.

-- N
ão tanto quanto você...

-- Seu mentiroso safado! -- rugiu ela, saltando furiosamente sobre
mim.

Abri os braços para recebê-la e apertá-la com força, fazendo-a sentir
todo o meu tes
ão. Beijei seu rosto e seus lábios carnudos, enquanto minhas mãos
deslizavam pelo seu corpo, tocando sua pele macia, descendo por suas
costas e indo apertar com luxúria sua bunda empinada e tentadora.

Nossas línguas encontraram-se, trocando carícias loucas. Deitei-a ao
meu lado, empurrando o lençol para o lado, puxando-a para mim,
enfiando minha pica entre suas coxas, sentindo o calor e a umidade de
sua chana.

-- Ela garota deve ser um vulc
ão... -- murmurou ela, enquanto eu a apertava e sugava seus lábios.

-- Todo o tempo em pensava em você...

-- E agora, em quem está pensando?

-- Continuo pensando em você, em sua xoxota apertadinha e gostosa, em
sua bunda deliciosa, em sua boca insaciável... --

menti eu, pois todo o tempo eu mantinha em minha mente a imagem
daquela garota estendida, nua e indefesa, na mesa do centro cirúrgico.

-- Você n
ão sabe mentir -- observou ela.

-- Ela me despertou apenas... Comecei a sentir sua falta e a
desejá-la, Minha namorada... Um desejo irresistível que me fez correr
para cá para trepar com você, fodê-la até meu pau esfolar e todo o
fogo que arde dentro de mim transbordar em porra na sua buceta... --
disse ela, fazendo-a arrepiar.

Minha namorada adorava quando eu falava no ouvido dela. Quando eu
falava e fazia, enfiando o dedo em sua chana, mordiscando suas tetas,
penetrando em seu ânus.

-- Oh, querido! -- murmurou ela, totalmente acesa agora, virando-se
sobre mim, esfregando seu corpo sobre o meu e beijando-me como uma
alucinada.

Minhas m
ãos ficaram livres para percorrer as formas perfeitas de seu corpo.
Fechando os olhos, no entanto, eu pensava em minha paciente, em seu
corpo, em sua chana peladinha, lisinha, onde eu poderia deslizar a mão
e sentir o cetim de sua pele.

Desejou ter podido descobrir mais sobre ela, mas isso podia esperar.
Teria muito tempo para isso nos próximos dias. Com aquele ferimento,
ela teria de ficar três ou quatro dias no hospital, antes de ser
mandada para casa.

Ent
ão saberia mais sobre ela, com certeza. E enquanto isso não aconteça,
eu deixava Minha namorada conduzir minha fantasia.

Ela foi deslizando o corpo para baixo, com a boca deixando uma trilha
de saliva em minha pele. Ela ia fazer o que mais gostava de fazer e
que me levava à loucura.

Sua boca faminta desceu, roçando meus pêlos, até a base de meu cacete
e iniciou uma inesquecível escalada rumo ao topo.

Sua língua enroscava-se na pele retesada, subindo, subindo, até que
seus lábios roçassem a glande intumescida e sensível. Sugou-me para
dentro de sua boca com avidez e aquela sensaç
ão de me sentir chupado por sua boca morna foi eletrizante.

Conservou meu pênis em sua boca, mamando-o provocantemente por um
longo tempo, tornando-o mais rijo ainda, fazendo-me estremecer quando
o deixava escorregar para fora para chupá-lo para dentro novamente e
ficar movendo a língua ao redor da glande.

-- Você me derrete... -- murmurei, entregue às artimanhas daquela
mulher em fogo.

-- Ainda n
ão viu nada, seu tarado... Vai aprender a não ficar seduzindo pobres
pacientes...

-- Ei m
ão faço isso... Você sabe...

-- Mas fica com tes
ão, enquanto as opera... Fica passando a mão nelas, não... Alisando
suas tetinhas... Brincando com suas bucetinhas, não? Vamos, seu
tarado... Confesse...

-- Quer que eu faça o mesmo com você? Quer brincar de médico?

-- Vou lhe mostrar o que é brincar de médico -- respondeu ela,
continuando a me sugar loucamente.

Eu enfiei a m
ão por baixo dela, ajoelhada entre minhas pernas, e busquei sua xoxota
molhada. Esfreguei-a delicadamente, passando o dedo por toda a sua
extensão, sentindo seu calor ardente.

Minha namorada ofegou, quase mordendo minha pica de tanto tes
ão. Eu insisti na carícia, buscando o botãozinho saliente de seu
clitóris para acariciá-lo com a ponta do dedo.

-- Miserável! Sabe como me fazer ficar assim, n
ão? -- desabafou ela.

-- Gosto de sentí-la assim t
ão molhada...

-- Gosto de sua xoxota assim...

-- Bandido! -- arrematou ela, girando a boca ao redor de minha glande,
quase me fazendo gozar.

Estremeci e senti meu pinto latejar. Espertamente ela parou de me
sugar e deitou-se ao meu lado. Sabia que eu havia chegado próximo de
meu limite. Era perita nisso.

Pus-me de lado para olhar seu corpo. Seus olhos brilhavam de paix
ão. Seu peito arfava deliciosamente. Seu ventre se contraía
ritmadamente. Tudo nela indicava o grau de excitação que atingira.

-- Vou lhe mostrar o que é ficar molhada -- falei eu, debruçando-me
sobre ela.

Primeiro lambi e mordisquei seus seios pontudos, prendendo entre meus
dentes os biquinhos rijos e salientes, como se fossem uvas tenras que
eu pudesse morder e sugar o néctar contido neles.

Sua pele fresca e perfumada, ainda úmida em alguns pontos, tinha um
sabor todo especial. A excitaç
ão me fazia trêmulo e ansioso. Eu gostava daquilo. Gostava de chegar
naquele ponto onde todos os pensamentos falham e quando o ato começa
torna-se impossível parar.

É como uma febre, que enche o corpo de calor e pressa, que exige a
penetraç
ão, que se transforma em movimentos e explode em prazer e satisfação.

Beijei o pescoço dela, seus ombros, retornando aos seios para
lambê-los e mascar os biquinhos. Minha namorada suspirava de tes
ão, o corpo abandonado na cama, as pernas abertas, de onde vinha o
perfume intenso e perturbador de sua xoxota.

Aquilo provocava em mim reações selvagens e primitivas. Eu queria
comer aquela mulher, lambê-la, penetrá-la, gozá-la de todas as formas.

Escorreguei pela cama, lambendo seu ventre, brincando com seu umbigo,
afundando o rosto nos pêlos de sua vulva. A fonte daquele perfume
estava cada vez mais próxima, deixando-me febril.

Encaixei-me entre suas pernas. Fiz com que ela flexionasse os joelhos,
deixando-os penderem para os lados. A fenda tentadora e orvalhada, a
fonte do perfume mais original e sutil do corpo de uma mulher, estava
ali, diante de meus olhos, oferecida e convidativa.

Estremeci de tes
ão, olhando-a. Minha namorada tinha uma xoxota incomparável, estreita,
com lábios rosados e delicados.

-- Como gosto desta bucetinha! -- murmurei ele, a boca bem próxima
dela para que meu hálito a acariciasse e fizesse Minha namorada gozar
de tanto prazer.

Ela ofegou, estremecendo-se toda. Pendi a cabeça, atraído
inapelavelmente pelo perfume intenso. Minha namorada arqueou o corpo,
deixando escapar um gemido. A ponta de minha língua tocou seu bot
ãozinho delicado e sensível, pressionando-o.

-- Oh, querido... Que... tes
ão... -- murmurou ela, com a voz entrecortada e rouca, apertando minha
cabeça contra seu corpo.

Minha língua passeou por toda a sua vulva e ela gemeu roucamente, com
o corpo todo abalado por espasmos contínuos.

-- Está gozando antes de mim... -- observei.

-- Sim, estou... E vou gozar mais... Quero gozar mais... antes de
ter... sua pica em minha chana...

Seu desejo era uma ordem para mim. Eu adorava ver como ela gozava,
estremecendo, murmurando, gemendo, gritando às vezes, arranhando-me e
beliscando-me.

Minha língua ficou brincando com seu clitóris, pressionando,
esfregando, lambendo, provocando. Sua xoxota tornou-se ainda mais
molhada, juntando minha saliva com seu néctar.

Eu lambia aquele líquido precioso, sugando e beijando sua chana.
Minhas m
ãos estendiam-se sobre seu corpo, buscando os seios para apertá-los
com volúpia e tesão. Minha língua brincava continuamente à porta de
sua vagina estreita e deliciosa.

Arrepios cobriam a pele dela. Minha namorada se contorcia. Ondas de
prazer percorriam seu corpo. Suas reações me faziam insistir naquelas
carícias que a punham num estado de orgasmo permanente.

Mordisquei-lhe o clitóris, prendendo-o entre meus dentes. Depois lambi
incessantemente sua xoxota, esfregando minha língua nos lábios
rosados. Ela se contorcia e suspirava sem parar.

Eu sentia seu perfume se acentuar, à medida que a excitaç
ão se transformava em satisfação. Minha namorada já tivera vários
orgasmos. Eu acompanhava suas reações, bebendo o suco de sua buceta,
onde meus lábios continuavam colados.

Suas pernas tremiam. Seus dedos enterravam-se em meus cabelos,
apertando-me com força na xoxota, onde, finalmente, eu enterrei minha
língua o mais profundo que consegui, brincando lá dentro com seus
pontos sensíveis, com suas dobras que em breve se dilatariam para
receber toda a grossura rija e viril de minha vara.

-- Oh, querido... É demais... Estou desfalecendo... Mas n
ão pare... Continue... Assim... Quero gozar tudo... Quero gozar pela
mulher que você desejou... Quero gozar por mim e por ela... --
rouquejou ela, entre gemidos e espasmos incontroláveis.

Minha namorada reforçou em mim a lembrança de minha paciente. Eu a
desejei duplamente, ent
ão. Desejei por ser ela, uma mulher fogosa com quem eu só tinha prazer
e por representar aquela que não pude ter, mas que desejei, enquanto,
como um deus, eu lhe restituía a vida.

Entreguei-me ao corpo de Minha namorada.

Ele representava, naquele momento, a fonte dupla de prazer e desabafo
para aquele tes
ão que nascera com outra mulher e que explodiria todo dentro dela.

Como uma cobra insinuante, minha língua se movia dentro da buceta em
fogo de Minha namorada, sorvendo seu néctar, misturando-o com minha
saliva, lambendo-a em todas as direções e fodendo-a.

Orgasmos mais intensos punham Minha namorada prostrada agora, mas
minha língua n
ão parava. Eu queria trepar nela, cavalgá-la, enterrar-lhe minha pica,
mas, ao mesmo tempo, queria compensá-la por ter desejado outra. Era
uma sensação estranha, que me fazia dar-lhe tudo que seu corpo pudesse
experimentar.

-- Vem... vem... quero seu caralho... Agora... Vem... -- pediu ela,
totalmente fora de s.

Eu sentia que n
ão poderia esperar mais também. Meu orgasmo estava às portas. Meu
pênis doía. Meus testículos pareciam querer explodir.

Meu corpo subiu pelo dela, lambendo a pele, chegando aos seios, onde
me detive para lamber, beijar e sugar.

Uma de minhas m
ãos ficou entre as coxas dela, esfregando continuamente seu clitóris e
a entrada de sua xoxota inundada. Os orgasmos foram mais intensos e
contínuos agora. O corpo de Minha namorada não parava de estremecer.

-- Eu derreto... de... tanto... gozar... -- confessou ela, quase sem
voz.

-- Continue gozando, minha putinha... minha biscate... minha
vagabunda... Goze... Goze que vou me enterrar em sua buceta agora...
Vou rasgá-la com meu caralho... Vou enchê-la de porra... -- fui
murmurando, enquanto subia por ela e encaixava meu pinto na entrada de
sua chana.

Empurrei só a pontinha, só para sentí-la.

Depois comecei a deslizar suavemente por entre os lábios rosados e
lubrificados, mas ela n
ão esperou.

Minha namorada jogou o quadril contra o meu, enterrando-me
profundamente dentro dela.

Fiquei pensando na minha paciente, enquanto avançava dentro de Minha
namorada. Ficaria ali eternamente, apenas sentindo as contrações dos
músculos vaginais, pressionando meu caralho na bucetinha estreita,
buscando sutilmente um prazer que vinha lá de dentro de meu ventre
como uma manada de cavalos selvagens em disparada.

-- Como é gostoso sentir sua bucetinha... N
ão pare... Aperte assim... Hum! -- murmurei, sentindo que meu controle
chegava ao seu limite máximo.

Comecei a me mover, fodendo uma chana e duas mulheres ao mesmo tempo.
A que se acabava em suspiros e gemidos sob mim e a que estava em minha
mentes, desfalecida n
ão em função da anestesia, mas de minhas carícias.

Foi um dos orgasmos mais intenso de toda a minha vida. O cheiro de
esperma misturou-se ao da xoxota de Minha namorada, perfumando
intensamente o quarto.



Capítulo 2



Consulta inicial.

Paciente: Pennie Sommers.

Síntese: Origem do problema.

Diagnóstico: Fixação de caráter sexual.

Quando eu era pequena, tínhamos um vizinho chamado Antony, que era
motoqueiro. Eu tinha um fascínio por ele, com seus braços musculosos,
seu peito cabeludo, seu blusão de couro e sua barba comprida.

Aquela minha fixação acabou se tornando uma obsessão, enquanto eu
crescia. Quando fui para a universidade, ficava pensando em
motoqueiros, principalmente depois que vira um, num posto de gasolina,
com a calça bem justa, a bunda redonda e dura, a camisa sem mangas, os
braços musculosos e peludos de fora, fazendo-me lembrar de Anthony.

Eu saía muito à noite e ia às lanchonetes. Tinha uma predileção por
aquelas que funcionavam junto aos postos de gasolina e nunca fechavam.

Havia máquinas de jogos eletrônicos e eu fingia que brincava, mas na
verdade observava os motoqueiros que iam e vinham na estrada, parando
no posto, entrando na lanchonete. Cada um deles era uma fonte de
inspiração para me masturbar depois.

Às vezes eu pedia um refrigerante e me sentava numa das mesas. Enfiava
uma das mãos entre as pernas e ficava brincando com o grelinho,
gozando e olhando aqueles homens maravilhosos.

Não usava sutiã. Apenas uma calcinha minúscula e transparente sob o
vestido, com meus ombros de fora e um palmo de coxa acima do joelho.

Eu me excitava, vendo aqueles homens me olhando com desejo. Eu me
sentia agarrada, lambida, chupada, penetrada, fodida de todas as
formas possíveis e imaginárias. Para mim era um delírio. Eu queria
comer todos eles, ser de todos eles.

Via o brilho do desejo nos olhos daqueles homens e queria trepar com
todos. Mas estava esperando alguém em especial, um motoqueiro que
viria e me arrebataria. E foi o que aconteceu.

Numa sexta-feira, pouco depois das dez, ele entrou na lanchonete, com
uma camiseta sem mangas realçando seus músculos, os cabelos compridos
e um ar de cansaço no rosto.

Foi até o balcão e pediu uma cerveja. Eu esperava ansiosamente pelo
seu olhar. Tremia. Molhava-me de tesão. Queria que ele me olhasse e me
visse.

Então ele se virou e me viu. Eu fiquei em pé, instintivamente. Ele
sorriu. Eu sorri em resposta. Ah, deliciosos e intermináveis momentos
de espera, naquela paquera à distância. Minha pele se arrepiava, a
cada vez que ele levava a garrafa de cerveja aos lábios e sugava a
bebida.

Fiquei imaginando aquele corpo nu, sua pica endurecida, sua bunda
gostosa. Desejei sentir seus pêlos roçando a minha pele e suas mãos
fortes passeando pelos meus seios, tocando os biquinhos, alisando meu
ventre, massageando meu clitóris, enfiando-se em minha bucetinha.

Ele comentou alguma coisa com o garçom, depois caminhou na minha
direção. Rebolava ligeiramente, como um gato caminhando, cheio de
sensualidade e tesão.

Junto da mesa ele me olhou nos olhos e sorriu. Era lindo, realmente
lindo. A camiseta justa e sem mangas deixava à mostra seus braços
fortes, seu peito cabeludo e másculo.

-- Olá! -- disse-lhe eu, num sopro de voz cheio de emoção, sentindo
minha calcinha melecar-se de tanto tesão.

-- Olá! Já a vi aqui antes -- comentou ele. -- Tem hora para voltar
para casa?

Fiz um sinal negativo com a cabeça, enquanto passava a ponta da língua
por entre os lábios, numa proposta provocante.

-- Ótimo! Costumo não ter pressa -- disse ele, sentando-se ao meu
lado.

Mediu-me com o olhar atento e sedutor.

-- Você é muito bonita -- disse ele e senti sua perna esfregando-se na
minha.

-- Já trepou antes, garota?

-- Trepar? O que é isso? -- retruquei, fazendo cara de ingênua e ele
riu.

-- Sabe fazer coisas?

-- Algumas coisinhas...

-- Como o quê, por exemplo?

-- Vai preferir que eu demonstre ou que só fale? -- indaguei,
provocante.

-- Ele manteve seu olhar cravado em mim, avaliando-me. Acho que
percebeu que compensaria, pois ali ele segurou o meu queixo e
inclinou-se, lambendo meus lábios.

Não me beijou. Apenas lambeu os meus lábios, passando a língua de um
lado para outro.

-- Também sei fazer umas coisinhas -- disse. -- Como passar a língua
assim em sua bucetinha -- acrescentou.

Eu me arrepiei inteira e já imaginei aquela língua esperta corrente
pela minha preciosa.

Não me fiz de rogada. Minha mão avançou sobre a coxa dele, apertando o
volume entre suas pernas. Foi um apertão bem sutil, suave, mas
provocante.

No momento seguinte senti aquela coisa gostosa crescer rapidamente
entre meus dedos.

-- Muito bom! -- elogiou-me ele, pousando a mão no cetim de minha
coxa, subindo, até tocar a calcinha molhada.

Sorriu com satisfação.

-- Vejo que é rápida no gatilho, queridinha... Está toda molhada...
Gosto disso -- continuou, os dedos roçando a minha vulva, subindo e
descendo, provocando arrepios e tremores.

O que me excitava brutalmente era estarmos fazendo isso em público, de
uma forma tão natural que as pessoas nem percebiam. Eu continuei
massageando seu caralho, até sentí-lo em toda a sua potência.

-- Estou com fome e gostaria de comer alguma coisa -- disse ele.

-- Não tenho pressa -- respondi. -- Como eu lhe disse, não tenho
horário para voltar para casa.

-- Janta comigo?

-- Com prazer!

Ele sorriu. Tinha um sorriso gostoso, cativante e promissor. Fiquei
olhando seu bigode, imaginando-o roçar a minha pele e isso me excitou
ainda mais.

Quando terminamos o jantar, ele comprou chicletes e cerveja. Fomos
para o motel ao lado do posto. Ele me ajudou a entrar, empurrando-me
pela bunda.

O quarto era agradável. Havia uma cama no fundo. Fui me sentar nela.
Ele fechou as cortinas. A luz varava palidamente o tecido grosso,
iluminando gostosamente o aposento.

-- Como é seu nome? -- indagou.

-- Samantha.

-- Belo nome! O meu é All. Acho que vamos nos dar muito bem, Samantha
-- disse ele, começando a se despir.

Ele se sentou na cama para tirar as botas. Depois tirou a calça. O
tempo todo ele olhava para mim e sorria. Finalmente ele tirou a
camiseta. Não usava cueca. Estava nu diante de mim e era lindo.

Seu caralho era grosso e longo. Ele se sentou ao meu lado. Repuxou meu
vestido, tirando-o por cima. Suspirou ao ver meus peitinhos. Cobriu-os
com as mãos, enquanto me beijava os ombros e o pescoço. Seu bigode
provocava uma sensação nova, deliciosa e arrepiante.

Empurrou-se delicadamente para trás, fazendo-me deitar. Retirou minha
calcinha. Abriu minhas pernas. Alojou ali sua cabeça. Seu hálito e sua
língua me levaram à loucura.

Ela entrava e saia, subia e descia, girava e se movia em todos os
sentidos. O bigode esfregava-se no meu clitóris e era uma coisa
alucinante.

Eu gemi de prazer e logo gozei, me contorcendo na cama do caminhão,
com ele entre as minhas pernas, fungando e se deliciando com minha
bucetinha.

-- Isto é melhor que uísque, cerveja, vinho ou qualquer outra bebida
-- disse ele, levantando finalmente a cabeça, com os olhos brilhantes
de tesão.

Lambeu os lábios deliciado, depois me beijou e eu senti o gosto de
minha buceta em sua boca. Ele me soltou em seguida e voltou para me
lamber a chana.

Depois começou a me beijar a partir das virilhas, subindo pelo meu
ventre, depois dominando meus seios. Lambia e beijava, mordiscando e
salivando, suspirando de tesão.

Senti seu cacete roçar minhas coxas e estremeci com o calor e a
rigidez dele.

-- Quero brincar um pouco com ele -- murmurei e meu motoqueiro se
deitou de costas, com aquele esplêndido caralho levantado, firme como
um mastro cravado na terra.

Segurei-o e apertei-o. Descobri o quanto adorava fazer isso. Apertava
com um prazer enorme. Esfregava meus dedos na glande intumescida,
provocando tremores no corpo dele.

Um calor enorme invadia meu corpo, entrando pela minha xoxota e
subindo pelo meu ventre, deixando-me sem fôlego. Fiquei afogueada, com
a boca seca, de tanto tesão.

Estava molhada e excitada o bastante para receber logo seu caralho em
minha buceta, mas sabia que não adiantava ter pressa nessas coisas.

Quanto mais a gente demora, mais prazer a gente tem. Por isso brinquei
à vontade com o caralho de All.

Provoquei-o ao extremo. Masturbei-o lentamente, deixando minha mão
escorregar gostosamente pelo pinto dele. All gemia e estremecia, a
cada vez que eu baixava a mão, arregaçando ao máximo seu belo cacete,
expondo totalmente aquela flecha de carne ardente e gostosa que
vararia minha xoxota em breve.

-- Venha cá -- convidou ele, rouco e tenso. -- Quero chupá-la de novo.

Girei meu corpo rapidamente num sessenta e nove e esfreguei minha
chana em seus lábios. Senti sua língua avançar para dentro de mim.

Suas mãos fortes alisaram minha bunda. Um dedo maroto foi brincar com
as preguinhas do meu cu.

Eu gemi de prazer, rebolando as nádegas. A língua entrava e saía. O
dedo já se afundara em meu rabo.

Eu chupei o caralho dele com voracidade, lambendo, sugando, deixando-o
avançar apertadamente por entre meus lábios carnudos e famintos.

Os biquinhos estavam tão duros que ameaçavam arrebentar-se. Percebi
que All gozaria em breve, se eu continuasse excitando-o daquela forma.

-- Não goze ainda, querido -- pedi-lhe.-- Não se preocupe, queridinha.
Minha primeira gozada será em sua bucetinha...

-- A primeira? Então teremos muitas?

-- Pode apostar nisso -- garantiu ele e não mentia para mim,
realmente.

Continuei brincando com aquela coisa grossa e gostosa, lambendo e
beijando, esfregando-a em meu rosto com adoração. Lambi seus
testículos, chupei suas bolas, enfiando-as todas em minha boca. All se
torcia de tanto prazer.

Em seguida enrolei minha língua no caralho dele e fui subindo. Lambi a
glande exposta novamente. Depois fechei os lábios sobre a ponta da
flecha e deixei minha cabeça pender para baixo. Ele penetrou,
esfregando-se no céu de minha boca.

All gemeu, suspirando de tesão. Seu bigode arranhava gostosamente
minha chana. Ele prendeu meu clitóris entre seus lábios e ficou
alisando-o, numa fricção que me levou ao delírio, de tão gostoso.

Foi o máximo para mim. Gozei de novo, arqueando o corpo, gemendo com o
caralho dele em minha boca. Apertei suas coxas, depois suas nádegas.
Massageei sua bunda.

Toquei seu ânus e enfiei nele meu dedo, fazendo All rebolar e aceitar
a brincadeira, retribuindo na mesma medida.

Seu dedo roçava minhas pregas anais, indo e vindo. Eu rebolava. Ele
acompanhava meus movimentos com o bigode e com a língua, lambendo,
entrando e saindo.

-- Está gozando? -- indagou ele, percebendo como o meu corpo tremia.

-- Sim... Muito... Bastante... -- respondi, girando a língua ao redor
do cacete dele.

All coordenou os movimentos de sua língua com os do dedo. Fodeu meu cu
e minha buceta ao mesmo tempo, indo e vindo, alucinando-me, apertando
meus seios com a mão livre.

Eu apertei minhas coxas contra a sua cabeça, tremendo e gozando,
gemendo e gozando, suspirando e gozando como uma louca.

-- Você é toda cheia de tesão... -- disse ele. -- Na chaninha... Nas
tetinhas... Na bundinha... Vou me acabar com você esta noite, menina,
mas quero fazê-la se arrebentar de tanto gozar -- murmurou ele,
girando-me na cama e ajoelhando-se entre as minhas coxas.

Ergueu minhas pernas, pondo-as em seus ombros. Depois inclinou-se.
Meus quadris se ergueram. Minha xoxota escancarou-se à investida
fulminante daquele pau grosso e duro.

-- Vou fazê-la gozar de novo agora -- disse ele, o membro roçando a
minha vulva.

-- Põe devagar... Bem devagar... Quero sentí-lo entrando... Até o
fim... Até as bolas...

Ele me atendeu. Sua chapeleta alargou a entrada de minha preciosa
florzinha. Senti-o se contrair, depois afundar-se gostosamente,
avançando sem pressa, pouco a pouco, devagarinho, enterrando-se em
mim.

Eu perdi o fôlego. Vertigem e delírio me assaltaram. Continuei
gozando.

-- Não se mova... Fique assim... -- pedi-lhe, contraindo meus músculos
vaginais, apertando o pinto dele como se quisesse espremê-lo dentro de
mim e tirar-lhe o precioso sumo.

Ele ficou sobre mim, naquela posição, totalmente enterrado em minha
bucetinha, sem se mover.

Eu fiquei contraindo, fazendo aumentar o tesão dele.

-- Você é demais...

-- Pode gozar assim?

-- Claro... Sua bucetinha está mamando meu caralho...

-- Então goze, gostosão... Goze em minha chana... Encha-a de porra...
Quero tudo agora...

-- Então vou lhe dar o que quer...

Aí eu perdi mesmo o fôlego e a noção de tudo, totalmente contagiada
por aquela sensação desenfreada de prazer que se tem, quando um macho
pintudo começa a mover seu caralho dentro da gente. Ele ia e vinha,
beijando-me e fodendo-me.

Meu ventre pegou fogo. Fechei os olhos, abri a boa ao máximo, tentando
aspirar todo o ar que me faltava.

Girei, subi e desci, flutuei, caí, tudo ao mesmo tempo, num amontoado
de sensações que me deixaram atônita e gratificada.

-- Ah, bucetinha apertada... gostosa... molhada... tesuda... -- ficou
ele murmurando, enquanto me fodia, golpeando-me virilmente.

Eu sentia o caralho dele tocar lá no fundo, depois se retrair, até
quase escapar de minha vagina, depois retornar. Ao fazer isso,
roçava-me por dentro e por fora, forçando a pele contra o clitóris,
fazendo-me subir pelas paredes.

Ele gemeu alto e se imobilizou. Senti as contrações de seu corpo e de
seu pênis, enquanto ele ejaculava, inundando-me de porra.

Levei alguns minutos, até voltar à realidade, alucinada com as
sensações todas que ele havia provocado em meu corpo.

Ele tombou, finalmente, para o lado. Eu estendi minhas pernas trêmulas
e preguiçosas. O esperma dele escorria de minha chana. Limpei-me com a
camiseta dele.

-- Você é demais, garota... Não acredito que tenha feito tudo isso com
você... -- murmurou ele, ainda rouco de tesão.

-- Vai ter que acreditar...

-- O que mais sabe fazer?

-- Está pronto para outra? -- indaguei, surpresa.

-- Garota, quando eu começo, meu pau só desaba quando eu quiser.

-- Não acredito -- murmurei, tocando o caralho dele, lambuzado de
esperma.

Para minha surpresa, estava duro como no início. Fiquei alucinada. Ele
riu divertido, quando avancei sobre ele, montando-o.

Esfreguei o caralho em minha xoxota. Depois ergui-me. Apontei-o com a
mão, posicionando-o à entrada de meu cu. O motorista gemeu e levantou
os braços, tocando meus seios e alisando-os com tesão e delicadeza.

-- Na bundinha, assim em seguida? -- indagou ele, surpreso.

-- Sim... Não quer?

-- Claro que sim... Estou apenas admirado com seu fogo...

-- Eu tenho fogo e você tem um caralho que não amolece... Que dupla
formamos, não? -- afirmei, sentando-me no caralho dele.

Fui empurrando a bunda. O ânus relaxado aceitou logo aquele pau
lubrificado de porra. A glande se contraiu toda. Minhas pregas se
dilataram. Ele entrou. Apenas a ponta. Macia e maciça. Fiquei piscando
o cu, contraindo os músculos, provocando-o ainda mais.

-- É demais... Você é demais... -- sussurrou ele, acariciando-me o
corpo todo.

Fui soltando o corpo lentamente, deixando aquela pica enorme e grossa
enterrar-se em meu cu. Ah, que sensação diferente e boa. Eu o tive
inteiro dentro de mim, pulsando quente e gostoso.

-- Deixe que eu faço tudo -- ordenei-lhe, iniciando lentamente meus
movimentos de subida e descida, controlando o prazer daquela trepada.

Uma das mãos dele desceu pelo meu ventre e foi buscar meu clitóris.
Massageou. Apertou. Espremeu. Eu tremia. Movia-me mais depressa. A
ansiedade crescia. O tesão também.

O prazer começou a fluir. O pau dele entrava e saía. O fogo correndo
nas veias... A vertigem de novo... O desmaio... O esperma dele
novamente inundando meu corpo.

Fiquei ali, sentada nele, com o pau dentro de mim, apertando-o em meu
rabo, enquanto o mundo real voltava a se materializar ao nosso redor.

Tombei sobre ele, beijando-o alucinadamente, acariciando seu corpo
másculo e viril.

Foi quando comecei a sentir um terrível complexo de culpa, do qual não
consigo me livrar. É pior ainda do que a minha obsessão por
motoqueiros. O que posso fazer a respeito, doutora?



Capítulo 3



Segunda consulta

Paciente: Oliver Dexter.

Síntese: Início do processo de fixação.

Diagnóstico inicial: Complexo de culpa juvenil e fixação.

Naquela noite, aconteceu algo interessante comigo. Aliás, isso sempre
acontece quando uma mulher me atrai muito. Eu sonho com ela. A mulher
é diferente, mas o sonho é igual.

Apesar de ter feito amor com minha namorada até a exaustão, adormeci e
sonhei com a minha paciente. Aquele mesmo sonho que me remetia de
volta à juventude e a algo que eu fizera com uma antiga namorada.

Quando tive de deixar minha cidade para fazer meu curso, fui me
despedir dela. Em meu inconsciente ficou gravada aquela cena de
despedida, talvez pela sua sensibilidade, quiçá pela emoção presente
naquele momento.

E lá estava minha adorável paciente, na janela, olhando-me com seus
olhos molhados de lágrimas e pedindo-me:

-- Fique, por favor! Fique comigo! -- repetia ela, num tom de voz que
me cortava o coração.

Eu me debrucei na janela, com o rosto bem perto do dela, olhando-a sem
saber o que dizer. A lua refletia-se nas lágrimas que escorriam pelo
seu rosto.

Muriel, minha paciente, me abraçou, então, com força, colando seu
rosto ao meu.

-- Fique comigo... Por favor! -- repetiu ela, ao meu ouvido, enquanto
seus braços apertavam meu pescoço e seu hálito ardente e entrecortado
pelos soluços fizeram-me arrepiar dos pés à cabeça.

Ainda não estávamos prontos para a separação, eu sentia isso.

-- Vamos até o celeiro! -- convidei-a, num sussurro.

Ajudei-a a pular a janela e corremos para o celeiro. Assim que
entramos, ela me abraçou de novo, o corpo trêmulo apertando-se contra
o meu. Sua cabeça apoiou-se em meu peito. Ela ficou um longo tempo
assim.

Depois ergueu o rosto, olhando-me. O luar penetrava pelas frestas da
madeira e iluminava suas faces. Havia lágrimas nela ainda. Os lábios
entreabertos deixavam escapar soluços.

Senti um grande tesão por ela. Um tesão maior que o maior que eu já
havia sentido na vida. As formas tentadoras de seu corpo jovem
comprimiam-se contra o meu. Os seios redondos e pontudos espetavam meu
peito. O hálito morno e perfumado era uma provocação adicional.

Suas coxas tremiam, apoiadas nas minhas. Aquele rosto iluminado pelo
luar era lindo.

Afaguei seus cabelos demoradamente, enquanto sentia meu caralho subir
firmemente, roçando as pernas dela. Segurei-a pela nuca, fazendo-a
inclinar a cabeça para trás. Rocei meus lábios nos dela. Lambi-os
lentamente.

Muriel suspirou e senti a ponta de sua língua estender-se e buscar a
minha. A volúpia tomou conta de nós. O desejo nos contagiou e nós nos
beijamos sofregamente, quase que desesperadamente.

Nossas línguas se enroscaram, trocando saliva. Nossos corpos se
espremeram com luxúria e tentação. A excitação foi brutal. Minha pica
ameaçava rasgar sunga e calça, atrás da chana dela.

-- Sei que será nossa última vez... -- disse ela. -- Quero gozar seu
corpo ao máximo para gravá-lo em minha lembrança. Venha, marque meu
corpo -- pediu ela, roçando o ventre contra meu caralho endurecido.

-- Meu amor! -- murmurei, enquanto minhas mãos buscavam os seios dela,
comprimindo-os apaixonadamente, deslizando os dedos ao longo de seu
corpo tentador, indo até as coxas, depois nas nádegas, desejando
sentí-la por inteiro.

-- Faça amor comigo -- pediu ela com a voz embargada de emoção e
desejo. -- Quero sentí-lo dentro de mim... Inteiro... Quero trepar com
você... Quero fodê-lo... Quero comê-lo...

Febrilmente suas mãos arrancaram minha camiseta. Havia ansiedade e
paixão em seus movimentos frenéticos, buscando meu corpo, tocando meu
peito, apertando meus músculos, beliscando meus mamilos.

Ela colou a língua em minha pele, lambendo-se o pescoço, depois
descendo, até um dos mamilos. Mordiscou-o e sugou-o, fazendo-me
arrepiar intensamente. Eu me contagiei pelo fogo que ardia
incontrolavelmente no corpo dela.

-- Sim, meu amor, vamos fazer amor... Vou lhe dar tudo... Tudo que
você quiser... -- falei, apertando os seios dela com as mãos, alisando
seu ventre, buscando o fecho de sua calça para soltá-la e enfiar minha
mão até tocar a xoxota já molhada e perfumada.

Havia uma pilha de sacos de milho atrás de nós e subimos nela,
deixando nossas roupas para trás. Nua, ela se deitou, oferecendo-me o
corpo desejável, com seus seios tentadores, os lábios molhados e
provocantes, as coxas que se esfregavam uma na outra, demonstrando
toda a impaciência que dominava seu corpo e contagiava o meu.

O perfume de sua buceta enlouqueceu-me. Eu a contemplei com o desejo
de gravar em minha mente aquela imagem de total entrega. Acho que o
consegui, realmente. A cena permanece em minha mente, ano após ano,
mulher após mulher.

Meu caralho doía de tanto tesão. Eu queria enfiá-lo logo naquela
bucetinha apertada e perfumada.

Deitei-me lentamente sobre ela, sentindo a maciez de seu corpo sob o
meu. Estremeci de desejo. Os seios dela comprimiram-se contra meu
peito. Nossas coxas se entrelaçaram.

Colei meus lábios nos dela, sugando-os, enfiando minha língua entre
eles, buscando aquele sabor escondido no fundo de sua garganta.

-- Coma minha bucetinha - pediu ela, com a voz rouca.

-- Sim...

-- Minha bunda também...

-- Tudo, querida.

-- Quero ser lambida...

-- Tudo que quiser...

-- Chupada também...

-- Será.

-- Mordida...

-- Inteiramente...

-- Mascada...

-- Como uma uva delicada.

-- Fodida.

-- Como uma puta.

-- Quero sua pica em mim...

-- Até os bagos.

-- Bem lá dentro, enchendo-me de porra...

-- Todinha, até a última gota.

Enquanto falava, ela me beijava, me arranhava, esfregando-se em mim
numa excitação voraz, num desejo arrebatador e incontrolável.

Senti suas mãos movendo-se entre nossos corpos. Seus dedos enlaçaram
meu pinto, acariciando-o, alisando-o, apertando-o com luxúria,
movendo-se em vaivém e fazendo-me estremecer.

-- Quero chupar seu pau... -- pediu ela.

-- Sim, tudo que desejar -- respondi.

-- Quero sentí-lo por inteiro em minha boca...

-- Sim, claro -- concordei, girando o corpo sobre a sacaria,
trazendo-a para cima de mim.

Ela deslizou como uma cobra, indo se encaixar entre minhas pernas.
Debruçou-se sobre mim, lambendo meu saco, enquanto as duas mãos
enlaçavam meu caralho endurecido.

Seus lábios carnudos e vorazes se aproximaram. A língua se estendeu,
provocante e insinuante, roçando a glande avermelhada, molhando-a de
saliva.

Eu estremeci, fascinado pelo desejo de Muriel. Senti seu hálito
ardente cobrir meu cacete e, logo depois, seus lábios envolverem a
pele retesada e deslizarem ao longo dela, até os pêlos. Senti-me
penetrando num paraíso ardente e prazeroso.

Espasmos de puro prazer estremeceram meu corpo. A língua e a boca de
Muriel brindaram-me com carícias indescritíveis e vorazes.

Eu acariciava possessivamente sua nuca, seus ombros e seus cabelos,
apertando-a contra mim, enterrando fundo meu caralho em sua garganta.
Ela apertava os lábios e os dentes contra meu pinto, mamando e
mordendo ao mesmo tempo.

-- Vem... Chupa também... - pediu ela, com meu caralho em sua boca.

A princípio não entendi.

-- Minha buceta... Chupa... -- repetiu ela.

-- Quer que eu chupe sua chana? -- indaguei.

-- Sim... Sim... -- respondeu ela, já girando o corpo sobre o meu,
pondo os joelhos um de cada lado de minha cabeça, posicionando sua
xoxota perfumada e gotejante acima de minha boca.

Agarrei-a pela bunda e puxei-a de encontro a minha boca. Minha língua
se estendeu e se enfiou dentro dela, afundando nas carnes saborosas e
lubrificadas.

Fiquei ali, esquecido de tudo, sentindo o sabor e o calor de sua chana
apertada, enquanto ela mamava meu caralho, sugando de uma forma toda
especial.

Ela gemia de prazer, quando a língua entrava nela e meu lábio tocava
seu grelinho, fazendo-a estremecer. Ela arqueava o corpo e rebolava os
quadris de pura satisfação.

-- Que tesão você é! -- murmurou ela, chupando-me sempre, enquanto eu
me deliciava com sua chaninha, tão molhada que seu néctar e minha
saliva se misturavam em abundância, escorrendo-me pelo queixo.

O cheiro era inesquecível e perturbava meus sentidos. Eu mantive minha
cabeça enterrada entre as coxas dela, bebendo o néctar direto na
fonte, na própria taça inebriante onde ele era produzido.

Comecei a deslizar minha língua para cima e para baixo, fazendo-a
estremecer a cada movimento. Minha atenção estava toda concentrada no
seu botãozinho delicado, indo e vindo, roçando e esfregando, girando,
fazendo-a delirar.

Aquela carícia devastadora teve logo sua resposta. Ela começou a sugar
meu pinto sofregamente, movendo a cabeça de um lado para outro,
proporcionando-me um prazer estonteante.

Nossos gemidos e suspiros se confundiam no celeiro vazio. A excitação
crescia em nossos corpos. Eu sentia um desejo violento de fodê-la logo
e sentir sua chana apertando meu cacete.

Essa volúpia me fez deslizar os dedos pela bunda dela, buscando as
preguinhas de seu cu. Pus um dedo no botãozinho, apertando.

-- Com saliva... -- pediu ela.

-- Sim, querida -- concordei, lambendo o dedo, enfiando-o algumas
vezes na xoxota cheia molhada.

Ela ofegava, rebolando, totalmente fora de si. Delicadamente fui
pressionando e girando o dedo em seu cu, sentindo as preguinhas irem
se relaxando gradativamente, enquanto ela se abria para mim.

Meu dedo se introduziu pela passagem apertada, afundando-se no buraco
ardente. Ela gemeu e suspirou.

-- Dói? - perguntei.

-- Não... Põe mais...

-- Assim?

-- Mais...

-- Está bom...

-- Assim... Continue lambendo minha chana... O dedo e a chana...
Juntos... Sim...

Enquanto ela gemia, eu coordenava os movimentos de minha língua em sua
vagina e os do dedo em seu ânus com os de meu pau em sua boca,
vibrando com o calor intenso que encontrava nos orifícios do corpo
dela.

Muriel parecia possuída. Chupava, lambia, mascava, esfregava, sugava,
mordiscava e brincava com meu pênis, deixando-o às portas do gozo.

A qualquer momento eu poderia descuidar e gozar.

-- É bom demais! -- exclamou ela, o corpo arqueando e estremecendo ao
mesmo tempo.

Senti sua xoxota pulsar e os músculos de sua bunda se contraírem,
enquanto ela gozava seguidamente.

Seu corpo continuou estremecendo em espasmos prolongados. Ela soltou
meu pinto e ficou arando, quase sem fôlego, enquanto minha língua ia e
vinha dentro de sua buceta e meu dedo continuava brincando com o cu
dela.

-- Quero tudo... Tudo mesmo... -- soluçou ela, com voz trêmula e o
corpo convulsionado.

-- O que é tudo para você? -- indaguei.

-- Quero na bunda primeiro...

Arrepiei-me de tesão.

-- Tudo? -- quis eu saber.

-- Tudo -- exigiu ela.

Somente em sonhos uma mulher poderia ser tão perfeita para um homem.
Somente em sonho, talvez, aquela namorada minha, deixada há tanto
tempo tão longe me dera aquilo.

Mas eu estava com Muriel, a paciente que eu desejara na mesa de
operação. Ela me pedia e eu queria. Não havia como hesitar ou não
fazer tudo quanto fizera com minha namorada esquecida.

Ela se debruçou contra uma saca de milho, arrebitando a bunda perfeita
e tentadora. Seu corpo cheirava a sexo, a xoxota, a bunda, a suor e
tentação.

Firmei-me de joelhos atrás dela, pincelando meu caralho por sua bunda,
antes de brincar um pouco à entrada de sua xoxota, para lubrificá-lo.

Ela continuava rebolando, estremecendo a cada vez que meu pênis tocava
seu corpo. Eu aponte, então, minha pica contra seu buraquinho
apertado.

-- Posso? -- indaguei.

-- Sim, põe...

Forcei um pouco, sentindo a glande comprimir-se contra seu cu.

-- Vou ter que forçar - avise.

-- Põe saliva...

Atendi-a, pondo saliva na palma da mão, depois untado a ponta de meu
caralho e o ânus dela.

Voltei ao ataque. Senti a ponta da glande achar seu caminho,
comprimindo-se dolorosamente.

-- Relaxe um pouco -- pedi.

-- Assim...

-- Mais...Está entrando... Mais... -- fui dizendo, enquanto a
resistência diminuía e eu avançava.

-- Vem... Vem, querido...

-- Não dói?

-- Não... -- ofegou ela. -- Está dando um tesão incrível...
Continue... -- insistiu, com a voz trêmula e entrecortada.

Segurei-a pelos quadris e continuei empurrando, enquanto a puxava para
mim.

-- Tudo... Com força... - pediu ela.

-- Tem certeza?

-- Sim... Vem... Eu quero... Quero sentí-lo... Já estou gozando...
Quero mais... Mais... -- disse ela, frenética, possessiva, alucinada.

Metade da glande há havia entrado em seu rabo, mas ela tinha pressa,
ela queria tudo e depressa.

-- Deixe-me fazer isso -- pediu ela, levantando-se e fazendo-me
deitar.

Sem perda de tempo ela se sentou em minhas coxas.

-- Quero logo, amor... Não agüento esperar -- falou ela, inclinando-se
para cuspir saliva sobre a ponta de meu cacete.

No momento seguinte, acomodou-se, espetando meu caralho em seu cu
novamente. Sentada em meu pau ela foi soltando o corpo, rebolando,
conseguindo a penetração.

Tonto de prazer, deixei que ela tomasse toda a iniciativa. Senti seu
buraco ceder rapidamente à pressão e minha glande ir se comprimindo e
avançando, conquistando o ocupando espaços.

-- Que tesão! -- suspirei, ofegando.

-- Eu o sinto em mim... É gostoso -- falou ela, fogosa.

Toquei seus seios, acariciando-os, enquanto ela rebolava em meu
cacete. A cada movimento, eu me sentia penetrar um pouco mais em seu
corpo.

-- Oh! Sim! -- gemeu ela, quando a cabeça do membro entrou toda em seu
ânus..

O calor intenso de suas entranhas provocou-me um prazer inesperado.
Sentir o pau no cu de uma mulher sempre foi uma sensação arrepiante
para mim.

-- Gosta? -- perguntei.

-- Sim, é demais!

-- Quer pôr mais?

-- Sim... Vou pôr tudo...

-- Sim, tudo...

Rebolado sempre, com uma pressa contida, ela foi empurrando a bunda
contra o meu cacete, que lentamente foi se afundando dentro dela,
penetrando-a.

-- Oh, querido! Que delícia! -- explodiu ela, quando meu caralho
finalmente se enterrou todo dentro dela.

Ficamos os dois imóveis, apenas sentindo o prazer da posse. Eu me
relaxei sob ela, à espera de seu próximo movimento.

Muriel soluçava, com lágrimas de tesão nos olhos, o corpo
estremecendo, os músculos da bunda se contraindo ritmadamente,
apertando meu caralho.

-- Está gozando? -- indaguei.

-- Sim, por todos os buracos de meu corpo... -- disse ela, erguendo-se
lentamente.

Meu pau deslizou por suas pregas, até que a glande quase escapasse.
Muriel voltou a sentar-se na minha vara e ela se introduziu totalmente
no buraquinho faminto.

-- É uma loucura... Um tesão... Uma delícia -- repetia ela, voltando a
fazer o mesmo movimento, subindo e descendo.

Um movimento que foi ganhando ritmo e velocidade, até que ela
cavalgou-me, entre gemidos e murmúrios. Eu me senti próximo do
orgasmo, com as torneiras de porra prestes a se abrirem para jorrar no
interior de Muriel todo o meu tesão.

Nesse momento acordei, com o coração aos pulos, o caralho doendo de
tanto tesão, as mãos tateando a cama em busca do corpo de Muriel.

Minha namorada acendeu a luz e olhou-me sonolenta.

-- O que houve? -- indagou, assustada.

Eu fiquei imóvel por algum tempo, parado, ofegante, voltando à
realidade. O sonho com Muriel parecera tão real que eu ainda podia
sentir e minhas mãos o contato com sua chana raspada e sem pêlos.

-- Foi um pesadelo? -- insistiu ela, encostando-se em mim e sentindo
meu caralho endurecido. -- Um pesadelo erótico? -- acrescentou,
jogando o lençol para o lado e escorregando pela cama para ir esfregar
meu pau em seu rosto.

-- Mais ou menos...

-- Quem estava com você em seu sonho? Era eu?

Hesitei para responder. Ela percebeu que não fora com ela.

-- Com quem foi? -- indagou.

Olhei para o meu caralho duro que latejava de tesão, depois para o
corpo nu de Minha namorada. Por momentos julguei ver ali, em minha
frente, o corpo tentador de Muriel.

-- Não vai me contar? -- continuou ela, subindo em mim e sentando-se
em minhas coxas.

Suas nádegas roliças e firmes me fizeram lembrar do sonho e eu desejei
aquele rabo tentador. Ela segurou meu pinto e ficou esfregando-o
contra sua xoxota, molhando-o e lubrificando-o.

Inesperadamente, ela enfiou meu pau em sua buceta. Debruçou-se sobre
mim, rebolando os quadris, enquanto os erguia e abaixava. Eu me
afundava e saía de sua chana ardente.

-- Já que não quer me contar, quero que faça comigo o que estava
fazendo com ela, seu puto! -- ordenou ela.

Abracei-a. Fechei os olhos e me concentrei nos seus movimentos e em
sua xoxota, engolindo e soltando meu membro, pressionando-o,
massageando-o com deliberadas contrações musculares.

-- O que estava fazendo com ela? -- continuou Minha namorada.

Deslizei as mãos pelo corpo dela.

-- Quer mesmo saber?

-- Sim, o que era? -- apressou-se ela em perguntar.

-- Eu estava enrabando uma de minhas pacientes...

-- Filho de uma cadela. É isso que quer? Foder o meu rabo?

-- Sim, quero comer o seu rabo... Não sabe quanto eu quero isso...

Ela me beijou e lambeu provocantemente, enquanto erguia os quadris e
deixava meu pau escapar de chana. No momento seguinte o sonho se
tornou realidade. Rebolando e se agitando, minha namorada encontrou o
melhor ângulo de penetração e, sentou-se em minha vara. Fechei os
olhos e me concentrei na penetração.

-- Era isso que você queria? -- indagou ela, começando a se mover,
subindo e descendo.

Toquei os seios dela, apertando-os em minhas mãos, beliscando os
biquinhos eriçados. Ela se movia com ritmo, devorando meu caralho.
Arrepios invadiram meu corpo.

Eu me abracei ao seu corpo, beijando seu pescoço, enfiando minha
língua em seu ouvido. O prazer aproximava-se rapidamente

-- Vou gozar... É tesão demais... -- murmurei, com a voz sumida, quase
desmaiando de tanto desejo.

Minha namorada não quis ficar para trás. Seus movimentos se tornaram
frenéticos. Ela saltava sobre mim. Meu caralho entrava e saía com
força de seu rabo. Ela gemia alto. Sua respiração era entrecortada.

Abracei-a com força e coordenei meus movimentos aos dela. Meu caralho
pareceu inchar-se dentro dela, antes de começar a pulsar
espasmodicamente, injetando porra dentro dela.

Abri os braços e mordi a ponta do travesseiro para não urrar, de tanto
prazer. Acho que desfaleci ao gozar, tamanha foi a sensação que me
dominou.

Dessa noite em diante, jamais consegui outra ereção.



Capítulo 4



Consulta inicial

Paciente: Samantha Jones.

Síntese: Obsessão de caráter sexual.

Diagnóstico: Desejo reprimido.

Eu estava interessada naquele homem. Era empregada na casa, cuidava de
seu filho, já que sua esposa havia falecido na parto, mas isso não me
impedia de ter desejo. Eu sentia tesão por ele e não conseguia evitar.
Isso foi se tornando uma obsessão para mim. Acho que tudo se
precipitou naquele sábado.

Pela manhã, quando ele saiu para o clube, fui até o quarto dele,
enorme, com um armário cheio de roupas, um banheiro imenso, com
hidromassagem, aparelhos de ginástica e muitas plantas.

Cheirei as toalhas, procurando o cheiro dele. Depois vasculhei a
gaveta de roupas sujas. Encontrei uma cueca usada. Apertei-a contra o
rosto, cheirando o perfume mais íntimo daquele homem.

Fiquei alucinada. Ali mesmo, no banheiro dele, esfregando a cueca no
rosto, nos seios e nas coxas, bati uma inesquecível punheta. Pensei
que tivesse jogado fora todas as minhas chances com ele, mas me
enganara. À tarde, Jones, o mordomo, me procurou, assim que o bebê
dormiu a sesta da tarde.

-- O patrão pediu que lhe levasse uma garrafa de champanhe até o
quarto. Não tenho nenhuma copeira disponível. Pode fazer isso, por
favor? -- indagou ele, pondo a bandeja em minhas mãos, antes que eu
fizesse qualquer coisa.

Olhei-o com atenção. Havia um ar de cumplicidade e malícia no seu
rosto sério, quase impenetrável. Examinei a bandeja. Uma garrafa de
champanhe, num balde de gelo, e duas taças. Eu sabia que ele estaria
sozinho. Por que duas taças?

Antes de ir para o quarto dele, fui até o meu e, diante do espelho,
retoquei os cabelos, arrumei o uniforme, enrolando um pouco mais o cós
da saia para ela ficar mais curta, adotei meu ar mais ingênuo e fui
para lá.

Quando entrei no aposento, ouvi o barulho da hidromassagem. Pé ante pé
fui até a porta. Ele estava deitado, coberto de espuma, na água
agitada. Seu olhar cravou-se em mim e, confesso, arrepiei-me toda.
Havia desejo naquele olhar. Eu sabia que ele ia me comer naquela
tarde, se eu deixasse, e isso me excitou muito. Minha xoxota melecou
toda naquela arrepio.

Continuei, porém, com meu ar de virgem desamparada e assustada.
Depositei a bandeja junto à banheira, ao alcance dele.

-- Por favor, sirva-me uma taça -- pediu ele, com voz tranqüila, mas
arrepiante.

Fiz o que ele pedira. Hesitou. Depois, resolvida, estendi até a mão
dele. Ele segurou a taça e minha mão, tudo junto. Ficou segurando-me.
Pensei que fosse me puxar para dentro da banheira.

-- Não quer experimentar? -- convidou ele.

-- Não, nunca bebo quando trabalho.

-- Eu não me referia ao champanhe.

-- A que, então?

-- À banheira.

Recuei, deixando a taça na mão dele. Eu era mesmo perfeita. A minha
reação deixou-o encantado. Fiquei olhando aquela espuma e imaginando o
corpo dele nu.

Ele sorriu, seguro de si, mas excitado.

-- Relaxe, Samantha. Acho que precisa de um pouco de champanhe
também... Vamos, beba! Não lhe fará mal...

-- Preciso ir... O bebê poderá acordar...

-- O pequeno All dormiu há pouco, só vai acordar daqui a duas ou três
horas.

-- Mesmo assim, não posso... -- insisti, fazendo menção de me retirar.

-- Espere! -- ordenou ele e não pude resistir ao seu comando.

Voltei-me e encarei-o. Ele mantinha a calma, mas me olhava
devorando-me com os olhos.

-- Tenho observado você todas as noites, quando está adormecida em sua
cama. Tem lindos seios, belas coxas, bunda arrebitada. Vou comer você,
Samantha. E nada que me diga impedirá isso.

Acho que corei naquele momento. Corei de prazer, de desejo, de tesão,
de gozo mesmo. Pude sentir no tom da voz dele o quanto ele me queria e
isso me agradou muito.

Apoiei-me no batente da porta, entontecida. Um calor intenso invadiu
meu corpo. Minha xoxota ardia. Eu queria me despir e correr para a
banheira, atirando-me sobre ele, caçando seu caralho no meio daquela
espuma para brincar com ele e ter muito prazer.

Mas alguma coisa perversa e maldosamente esperta dentro de mim me
mandou resistir. Eu sabia que a estratégia era correta. Vi que ele
tremia de tesão também.

-- Fico louco de vontade de tocá-la, de acariciá-la, de me deitar
junto ao seu corpo e possuí-la. Fico doido de vontade de foder sua
bucetinha, seu cuzinho, sua boca, tudo em você...

Eu tremia cada vez mais, sentindo minha xoxota derreter-se, como se
fosse gelo ao sol, fazendo escorregar a umidade por minhas coxas.

-- Acho que você quer o mesmo. Não gostaria de ver o que tenho a
oferecer? -- falou ele, erguendo-se.

Fiquei sem fala. A espuma que cobria seu corpo foi deslizando pouco a
pouco, revelando músculos sólidos, um peito másculo e cabeludo, um
pênis grosso e longo, que pulsava, duro, apontado para mim, como uma
promessa de longas e loucas horas de prazer.

Ele segurou o cacete com uma das mãos e arregaçou-o para trás,
exibindo a cabeça maciça e avermelhada.

-- Quero enfiar tudo isto dentro de sua buceta, Samantha -- murmurou
ele, rouco de tesão.

Eu quase implorei para que ele fizesse aquilo naquele mesmo momento,
mas fingi estar assustada e corri dali, levando aquela imagem
maravilhosa gravada em minha mente.

Que dia! Como me sufoquei naquela tarde, masturbando-me como uma
louca, pensando naquele corpo, naquele homem, naquele caralho
arregaçado, duro, pronto para mim.

Estava resolvida, no entanto. Enquanto pudesse, eu me satisfaria com
minhas siriricas, esperando o momento certo de dar o bote. Percebia
que poderia acertar a minha vida. Não queria depender o resto de minha
vida de um trabalho, de me sujeitar a horários ou de depender de um
homem qualquer.

Eu queria mais. Achava que poderia ter mais. Aquela mansão me ensinara
o gosto pelo luxo e pela riqueza. Eu aprendera que era possível entrar
numa loja e comprar o que me desse vontade, sem me preocupar com
trocados que fariam falta.

Arthur era o caminho para isso. Eu precisava, porém, dar-lhe o golpe
de misericórdia, levando-o ao cúmulo do tesão, pronto para aceitar
negociar nas minhas bases.

No domingo eu teria a minha primeira folga quinzenal. Combinei com um
amigo para que apanhar em frente à mansão.

Quando ele chegou, buzinou seu carro indiscretamente, chamando a
atenção de todo mundo.

Quando fui ao encontro dele, olhei para trás. Vi Arthur na janela do
quarto, olhando na minha direção. Estava imóvel. Meu amigo veio ao meu
encontro e eu o surpreendi. Lancei-me nos braços dele e beijei-o como
nunca o havia beijado antes, esfregando-me nele.

Ele adorou aquela minha manifestação. Desceu as mãos pelo meu corpo,
até minhas nádegas e coxas. Eu torcia para que Arthur estivesse lá,
assistindo a isso.

Passei o dia na casa de minha mãe, contando-lhe como em breve eu teria
uma promoção e ela não precisaria mais trabalhar como uma louca.

Voltei tarde da noite. Quando cheguei, entrei pela porta dos fundos,
de onde tinha a chave. Passei pela cozinha, pelo living, na direção da
escadaria que me levaria ao andar superior e ao meu quarto.

Antes de subir, notei que a biblioteca estava com a luz acesa e a
porta entreaberta. Estranhei, pois ninguém ficava até tarde ali,
principalmente no domingo.

Imaginei que Jones tivesse esquecido de desligar a luz e fui fazer
isso para ele. Empurrei a porta. Arthur estava em sua escrivaninha e
levantou os olhos para mim. Estava ligeiramente transtornado e entendi
logo. Havia uma garrafa de uísque e um copo diante dele.

Olhamo-nos. Ele me desejando, me comendo com os olhos e eu não
querendo outra coisa senão as pica dele no meio de minha racha.

-- É tarde -- disse ele, num tom de censura.

-- Meu dia de folga -- respondi, apoiando o corpo na porta.

Com as mãos nas costas, fiquei brincando com a chave, até fazê-la
girar. Estávamos trancados ali. Ele reclinou-se em sua poltrona.
Vestia um roupão de seda sobre o peito nu, onde eu percebia os cabelos
negros e enovelados.

-- Vi quando saiu...

-- Verdade?

-- Vi como se atirou para cima daquele sujeito, sua putinha!

Quando ele falou isso, naquele tom, eu me derreti toda. Ele estava
bravo, furioso comigo e isso me encantou, pois demonstrava seu ciúme.
Continuei, porém, olhando-o com surpresa e ingenuidade.

-- Não sei do que está falando, Arthur...

-- Vi quando ele passou a mão na sua bunda e nas suas coxas... E você
beijou-o daquele jeito... Não entendo... Uma garota linda e gostosa
como você, que poderia ter tudo... Com um sujeito como aqueles... Não
dá para entender! E ainda diz que é virgem...

-- Mas eu sou virgem -- protestei, com veemência.

-- Está mentindo... Mentindo descaradamente... Uma garota como você
foi feita para alguém que saiba desfrutá-la e valorizá-la...

-- Como quem, por exemplo?

-- Como eu...

-- E o que o faz diferente dos outros? -- continuei, com ar de
desafio.

-- Tenho dinheiro e sou charmoso. Tenho educação, sei apreciar as
coisas finas. Posso lhe dar todo com que jamais sonhou...

-- Como um apartamento de quarto e sala barato e alugado?

-- Eu compro um bom apartamento para você.

-- E como vou mantê-lo com meu salário de babá?

-- Eu a ajudo... Dou-lhe dinheiro... Cartões de crédito... Uma conta
bancária... O que precisar...

-- E para ter tudo isso eu...

-- Só tem que ser boazinha para mim, Samantha. Veja, veja o que vou
fazer -- disse ele, abrindo a gaveta e apanhando seu livro de cheques,
assinando meia dúzia deles, em branco.

Destacou-os e atirou-os sobre a mesa.

-- São seus. Preencha o valor que julgar necessário para satisfazer
seus gostos. Quer um apartamento? Use este cheque -- disse ele. --
Quer um carro? Use este outro. Roupas? Jóias? O que mais? --
finalizou, recolhendo as folhas e abrindo-as como um leque.

Eu teria dado de graça para ele, mas estava começando a ficar esperta
na vida. Precisava me cuidar. Havia acertado com Arthur. Ele estava me
dando a vida que eu sempre pedira.

-- Quem me garante que amanhã cedo você não cancelará estes cheques?
Quer se aproveitar da minha inocência, depois me expulsará daqui como
uma cadela vadia.

-- Oh, Samantha! Será que não entende que estou louco por você? --
murmurou ele, levantando-se e vindo na minha direção.

Apoiei-me na porta. Se ele me tocasse, eu sabia que não resistiria e
me entregaria ali mesmo.

Diante de mim, ele dobrou as folhas de cheques e enfiou-as em meu
decote.

-- Saia amanhã. Compre um apartamento. Decore-o a seu gosto. Tem uma
semana para fazer isso. No domingo nós nos encontraremos de novo e
você provará a sua gratidão. Mas cuidado! Não tente ser mais esperta
do que eu. Nada do que faça a livrará de mim, garota. Posso esperar.
Vou esperar. Mas terei o que paguei para ter e posso ser muito cruel,
se for enganado -- avisou ele.

Eu percebi, pela abertura do roupão, o caralho dele surgindo duro e
gostoso, arrepiando-me.

Ele se encostou em mim. Repuxou meu vestido. Enfiou o pau entre as
minhas coxas. Era quente e delicioso. Arrepios me invadiram. Eu fiquei
imóvel e trêmula, desejando que ele arrancasse a minha calcinha e me
fodesse ali mesmo.

Ao invés disso, ele recuou um passo e começou a se masturbar, olhando
para mim.

Eu sentia aqueles cheques entre meus seios. Via o desejo nos olhos
dele. Achei que seria justo da minha parte dar-lhe uma amostra do meu
potencial.

Avancei até ele. Ajoelhei-me. Segurei seu caralho. Massageei-o com
meus dedos finos e delicados. Lambi a glande exposta. Mordisquei a
carne maciça. Enfiei-o todo em minha boca e Arthur estremeceu,
sufocando um gemido do mais puro prazer.

Deliciei-o com minha língua e meus lábios, sugando seu caralho,
lambendo e arranhando seus bagos, mordiscando sua barriga e beliscando
suas nádegas.

Enfiei um dedo no cu dele, fazendo-o rebolar. E chupei, chupei até que
ele gozasse e enchesse a minha boca de porra. Que delícia! Engoli
aquele néctar com um prazer enorme, depois recuei, batendo em retirada
imediatamente, deixando-o ofegante e surpreso com meu desempenho.

Fui para o meu quarto, despi-me rapidamente e me sentei no bidê. Abri
o jato de água morna direto em meu clitóris e fiquei ali, tremendo e
gozando, pensando em Arthur, pensando nos cheques e no que poderia
fazer com eles.

No dia seguinte não foi difícil convencer Jones a me dar uma nova
licença. Disse que estava doente e que precisava ir a um médico. Ele
apenas sorriu com malícia e cumplicidade.

Procurei na lista telefônica uma imobiliária, a mais conceituada. Fui
até lá. Pedi um apartamento até certo ponto modesto, pois não conhecia
direito o tamanho da fortuna de Arthur e não queria correr o risco de
ter o cheque devolvido.

Eu não precisava mais do que aquela elegante e agradável cobertura de
dois quartos, num modesto, mas privilegiado condomínio na Park Avenue.

Gastei um pouco de dinheiro para completar a mobília e assim foi-se o
meu segundo cheque. Depois comprei roupas e gastei o terceiro. Com o
quarto eu abri uma conta bancária e ganhei um cartão de crédito do
banco.

Quando voltei para casa, naquela tarde, fiquei ansiosa para encontrar
Arthur e demonstrar-lhe toda a minha gratidão. Ele não apareceu, no
entanto, e isso me incomodou de certa forma. Ele não apareceu naquele
dia nem nos outros. Eu não o via mais.

Na sexta-feira pedi demissão. Arthur não aparecera. Jones nem insistiu
para que eu ficasse. Penso que sabia exatamente o que estava
acontecendo. Fui para o meu apartamento e tomei um porre de vinho para
comemorar minha nova vida.

No sábado fui às compras. Tinha meu próprio talão de cheques e um
cartão de crédito, tudo o que uma garota de dezoito anos precisava
numa cidade como Nova Iorque. Senti-me bem, muito bem mesmo. Deitei-me
em minha cama, quando voltei. Apanhei o telefone. Disquei para a
mansão Holly, pedindo para falar com o Sr. Holly.

-- E então, está feliz? -- indagou ele, quando me identifiquei.

-- Oh, Arthur, estou sonhando!

-- Fico feliz com isso, querida.

-- Quando virá me ver?

-- Que tal amanhã, domingo?

-- Eu vou adorar... A que horas virá?

-- Cedo, bem cedo, querida, sua campainha irá tocar.

Eu mal podia esperar por isso.

No domingo, fui esperá-lo na portaria. Quando ele chegou, fomos para o
elevador. Assim que a porta se fechou, ele me agarrou, beijando-me
apaixonadamente.

-- Quero fodê-la, Samantha... Estou louco por você... para enfiar meu
cacete na sua buceta... Ah, como que quero comer você, minha putinha
malvada...

Enquanto ele falava, eu fiquei imaginando-o nu, junto de mim, de mim,
com aquele caralho gostoso e grosso enfiado entre as minhas coxas.

-- Deixa eu sentir sua bucetinha -- disse ele, num suspiro apaixonado,
enfiando a mão pelo elástico da calcinha, roçando meus pêlos e indo
esfregar minha xoxota.

Eu estremeci. Jamais vira alguém com tanto tesão e isso me deixava da
mesma forma, excitada ao máximo.

Ele continuou com aquele dedo enlouquecedor, introduzindo-se
parcialmente em minha xoxota, fazendo movimentos lentos de vaivém,
roçando meu clitóris, provocando uma tensão enorme em meu corpo
virgem.

Em minha mão em comprovava sua excitação. Seu caralho ameaçava romper
o tecido da calça, de tão duro que estava. Apertei-o. Depois fiquei
esfregando a mão por cima.

Arthur suspirava e uma expressão de inegável prazer estampava-se em
seu rosto.

-- O que você fará comigo? -- indaguei, apenas para provocá-lo.

-- Vou despí-la pouco a pouco... depois vou lamber suas tetinhas...
Chupar sua bucetinha... Deixá-la tão excitada que vai suplicar para
que eu a coma...

-- Promete pôr devagarinho?

-- Sim...

-- Com todo carinho?

-- Claro, amor.

-- E se doer?

-- Eu tiro...

-- Promete?

-- Prometo, meu amor. Mas não vai doer, você verá...Já não fez isso
antes?

-- Não, eu juro... Sou mesmo virgem...

-- Eu ponho só a pontinha? Se doer e você não quiser, eu tiro...
Prometo que tiro...

-- Acho que se você me excitar bastante e deixar minha chana bem
lubrificada, não vai doer. Mas você terá de caprichar. Vai me lamber
inteirinha. Vai enfiar sua língua maravilhosa em minha xoxota, não
vai?

-- Vou lamber até o seu cuzinho, meu bem...

-- Também?

-- Sim, quero morder sua bunda, fazer de tudo que for gostoso para
nós...

Eu estava trêmula e meio tonta de tanta excitação. Aquela foda me
parecia promissora, cheia de novos encantos e novas descobertas.

Fiquei com um tesão sem tamanho em meu corpo, pondo-me extremamente
sensível.

Abaixei o zíper da calça dele e puxei o pênis para fora. Fiquei
brincando com ele, enquanto Arthur brincava com minha chana.

-- Diga que vai trepar comigo -- pediu ele, a voz rouca e trêmula de
tesão, alterada pelo desejo e pela paixão. -- Prometo que serei gentil
com você... Prometo que vai sentir coisas que jamais sentiu antes...

-- Sim, eu quero -- respondi, sem esconder o quanto eu também desejava
aquilo.

Continuei masturbando-o suavemente, sentindo a rigidez de sua pica,
enquanto o elevador subia silenciosamente.

Pouco depois chegávamos ao apartamento. Quando eu o abri, ele me tomou
nos braços e me levou direto para o quarto, onde me abraçou e me
beijou ardentemente. Suas mãos envolveram meu corpo com força e
desejo. Senti sua língua brincar em minha boca e, depois, suas mãos
subirem pelo meu corpo, envolvendo meus seios, pressionando-os
carinhosamente.

-- Vou fazê-la feliz... Muito feliz... -- disse ele e eu tremia toda,
de excitação, de expectativa, de desejo, de medo, de tudo, afinal.

Eu empurrei para os lados as alças do meu vestido e me virei de costas
para ele.

-- Ajude-me com o zíper -- pedi-lhe.

Arthur desceu lentamente o fecho, desnudando minhas costas. Beijou-me
ali. Seus beijos eram ardentes, molhados, excitados. Sua língua lambeu
a minha pele, subindo para a minha nuca, enchendo-me de arrepios.

Suas mãos penetraram pela abertura até meu ventre, fazendo-me contrair
o corpo.

As mãos subiram para os seios, empurrando o sutiã. Ele beliscou meus
mamilos durinhos, apertou minhas tetas possessivamente, enquanto seu
hálito arrepiava a minha nuca e meus ombros.

Uma das mãos desceu pelo meu ventre, penetrou pela calcinha e foi se
esfregar em minha xoxota molhada. Uma das mãos em meus seios, a outra
em minha chana, o hálito, a língua e os beijos em minha nuca e ombros
me fizeram gozar rapidamente. Estremeci toda, sentindo espasmos
contínuos no ventre. Minha respiração sumiu e eu fiquei sentindo
aquela coisa gostosa que me deixava mole inteiramente.

Deixei o corpo pender para trás, encostando-me nele. Arthur beijou-me
o pescoço. Sua língua brincou em meu ouvido, acentuando meus arrepios.
Seu hálito apressado, seus murmúrios de tesão, tudo me alucinava.

Eu queria aquele homem. Queria sua pica dentro de mim, sua língua em
meu ânus, seus dedos em meu corpo todo. Queria sua boca me beijando,
me chupando os seios, me sugando a xoxota. Queria tudo dele. Tudo
mesmo.

-- Vou me despir -- falou ele, após uma última lambida em minha nuca.

Meu corpo tremia e ardia de tesão. Despi-me rapidamente. Quando ele
tirou os sapatos e levantou os olhos para mim, percebeu que eu já
estava completamente nua, à espera dele.

-- Oh, Samantha, você é linda -- exclamou ele, quando eu subi na cama.

Deitei-me numa pose bem sensual, olhando-o com olhos apaixonados.
Arthur começou a se despir. Primeiro a camisa, desnudando o tórax
másculo e forte. Depois a calça, exibindo as coxas grossas e peludas
que eu adorava. O volume em sua sunga traía sua excitação.

Ele se livrou desta última peça. A luz do sol, varando as cortinas da
janela, rebrilhou em seu caralho, grosso, duro, longo, cheio de
volúpia e luxúria.

Só de vê-lo totalmente nu, daquela forma, já me fez gozar de novo. Um
gozo intenso, que me fez apertar as coxas e ficar tremendo, enquanto
ele caminhava para mim e se ajoelhava ao meu lado.

-- O que você quer primeiro? -- perguntou.

-- O que você oferece?

-- Tem algo que eu sempre quis fazer quando a via nua, com aquela
rachinha desejada em sua calcinha... -- disse ele, a voz rouca e
trêmula de paixão.

-- O que é?

-- Enfiar a minha língua na xoxotinha da minha virgenzinha... Provar o
sabor de seu cabaço...

-- Seus desejos se tornam realidade -- afirmei, deitando-me,
flexionando as pernas e abrindo-as, oferecendo a minha buceta
orvalhada de tesão.

Ele gemeu de prazer e debruçou-se entre as minhas coxas. Senti seu
hálito forte e quente em minha xoxota. Estremeci. Gozei. Delirei. Gemi
como uma loba, uivando para a lua, quando sua língua ficou brincando
lá dentro de mim.

Agarrei-lhe os cabelos e apertei-o contra mim. A língua morna era uma
serpente viva movendo-se em minha chana, proporcionando-me uma
seqüência inesperada e inesquecível de orgasmos.

-- Oh, Samantha, que deliciosa é sua bucetinha... Que gostoso é o seu
cabacinho... Sinto-o na ponta de minha língua... Não vejo a hora de
arrancá-lo... De enfiar nele meu cacete.... De gozar lá dentro de
você, enchendo de porra sua chaninha apertada e perfumada... --
murmurou ele.

Arthur se movia entre as minhas coxas, as mãos subindo e descendo pelo
meu corpo, cada vez mais possessivas e mais exigentes.

-- Sim, querido... Sim... Enfia tudo... Está bom... Muito bom... É
demais...-- gemia eu, as mãos apertando-o contra a minha vagina,
enquanto aquela língua incansável ia e vinha, lambia, esfregava,
girava, roçava, levando-me à loucura.

Difícil dizer quantas vezes gozei. Gozava cada vez mais, mais forte,
mais prolongado, imaginando o que haveria no final de tudo aquilo.
Essa expectativa me deixava tensa e doida de tesão e desejo.

Ele percebia o quanto eu gozava e insistia com a língua. Minha chana
estava mais do que lubrificada. Eu continuava gozando, mas esperando
pela entrada triunfal daquele cacete. Queria brincar com ele, chupá-lo
também.

-- Posso pôr agora? -- indagou ele e eu percebia o quanto ele estava
excitado.

Eu nunca tinha chegado àquele estado. Estava descobrindo coisas. Não
queria terminar logo. Não tinha pressa. Queria aproveitar tudo.

-- Não, Arthur, ainda não... Quero brincar com sua pica primeiro --
pedi-lhe, emocionada.

-- Não agüento mais de tesão... Posso gozar em sua mão...

-- Não, segure-se, querido... Venha... Deite-se... -- ordenei-lhe e
ele me obedeceu.

Eu nunca vira um caralho tão duro, com a cabeça tão inchada e maciça.
Apertei-o entre meus dedos. Masturbei-o lentamente, para que ele não
gozasse. Eu queria que ele chegasse também ao limite do tesão, que
ficasse à beira de explodir.

Sentei-me sobre suas pernas, segurando-lhe o pênis com as duas mãos.
Inclinei-me.

Lambi a cabeça inchada, umedecendo-a com minha saliva. Enfiei-o em
minha boca, fazendo-o esfregar-se lá dentro. Masquei-o entre meus
dentes. Joguei-o de uma bochecha à outra. Arranhei-lhe o saco com
minhas unhas. Ele gemia e movia instintivamente os quadris, indo e
vindo com seu caralho entre meus lábios.

Eu me excitava cada vez mais com a excitação dele, que às vezes
estremecia e segurava minha cabeça, imobilizando-me. Acho que chegava
à beira do gozo e interrompia meus movimentos. Queria a minha chana.
Queria a minha virgindade. E eu o queria.

Soltei o caralho e fui beijar sua boca, avançando meus quadris, quase
sentando em sua piroca. Ele gemia, com a língua dentro de minha boca,
enroscada na minha. Movi os quadris. Encaixei seu pinto bem no rego de
minha bunda, encima do meu cu. Pressionei, apenas para provocá-lo.

-- Oh, Samantha, assim você me mata -- disse ele, agarrando-me pela
cintura e forçando.

Senti que sua pica alargava as pregas do meu cu, querendo entrar.

-- Não, aí não -- reclamei, batendo em retirada, muito embora o tesão
sentido fosse intenso e diferente.

Antes de mais nada, eu queria cuidar de minha virgindade. A partir
dela, eu aprenderia todo o resto.

-- Samantha... Vem... Não agüento mais... -- pediu ele.

Da forma como eu estava sobre ele, segurei-lhe o pênis e apontei-o
para a minha chana. Forcei, sentindo-o entrar suavemente, deslizando
pelos lábios lubrificados.

Uma deliciosa vertigem me assaltou. Algo que eu nunca tinha
experimentado antes, que me deixou aflita e ansiosa, desejando logo
ter todo ele dentro de mim.

-- Livre-me deste cabaço, meu tesão! -- pedi-lhe.

Ele golpeou inesperadamente, com um movimento de quadril e lá se foi
meu cabaço, quando o caralho dele se enterrou todo em minha buceta.

Fiquei ali, estremecendo e gozando, como os pêlos dele se confundindo
com os meus, roçando a minha bunda. Só aquele prazer intenso e
prolongado já teria sido suficiente para mim. Mas eu ainda não tinha
descoberto nada.

Excitado como estava, Arthur moveu-se sob mim em movimentos potentes.
A cada estocada, era como se ele bombeasse o ar de meus pulmões para
fora.

Fui ficando alucinada, numa vertigem louca. Apertei seus mamilos,
beijei-o e mordi-o, enquanto ele gemia e saltava como um louco, comigo
sobre ele, com a pica enterrada gostosamente em minha buceta.

Acho que experimentei naquele momento a sensação de ser um domador de
potros xucros. Só que eu era o cavaleiro. Aquele cacete me fez arder e
delirar, gemer e gritar de tesão, até que tudo explodiu em minha mente
e eu senti que meu corpo se desfazia, transformado em luar.

Meu cavalinho fodedor imobilizou-se, num gemido profundo e prolongado,
o corpo todo arqueado. Senti, então, aqueles jatos quentes dentro de
mim. Seu esperma inundou minha xoxota, transbordou, escorreu para o
corpo dele, misturando nossos cheiros.

Fiquei imóvel sobre ele, contraindo instintiva e ritmadamente a minha
chana, extraindo até a última gota de porra da pica dele.

Depois tombei sobre seu corpo. Ele me abraçou e me beijou
demoradamente. Eu chorei de felicidade e de gozo.

A partir desse dia, jamais voltei a dormir em paz novamente. O que
posso fazer para me curar dessa terrível insônia?



Capítulo 5



Consulta inicial.

Paciente: Bill Hammond.

Síntese: Confusão mental e fixação.

Diagnóstico: Desejo reprimido e impotência.

Comecei, de repente, a me preocupar com o meu passado. Surpreendi-me
revendo meu álbum do colegial, procurando entre outros rostos o de
Kathy , a minha namorada no último ano.

Senti saudades dela. Comecei a pensar muito em Kathy. Sou segurança
numa firma de computadores. Tudo aconteceu na sexta-feira passada. Era
madrugada e eu fazia uma ronda naquele dia, substituindo um colega.

Passei pela sala das secretárias. Ali estava Kim, uma garota nova. Ao
vê-la, estremeci. Ela se parecia com Kathy. Era a própria Kathy.
Imagine a confusão que se formou em minha cabeça. Era muita
coincidência.

Cumprimentei-a.

-- Fazendo serão? -- indaguei.

-- Sim -- respondeu ela, espreguiçando-se.

Mexeu em sua bolsa e retirou um cigarro. Levantou-se e caminhou na
minha direção.

-- Tem fogo? -- indagou.

-- Sim, claro -- respondi, acendendo-lhe o cigarro.

Kim continuou parada ali na porta, sem se mover. Olhando-a, na
penumbra, eu percebia como era notável sua semelhança com Kathy.
Talvez o formato do cabelo, a mesma altura, não sei.

-- Estou com cólicas -- disse-me ela.

-- Tensão pré-menstrual?

-- Não, menstruei na semana passada. Pode me examinar?

-- Claro -- concordei, sem, malícia alguma.

Antes que eu desse por fé, ela começou a tirar a roupa, recuando até
um sofá. Além da lâmpada acesa em sua mesa, não havia outra
iluminação, a não ser aquela do corredor.

Fiquei constrangido, olhando seu corpo na penumbra.

-- Terei que acender a luz -- eu disse.

-- Sem problema -- concordou ela.

Fiz isso, depois aproximei-me do sofá. Kim olhava-me com olhos
brilhantes e eu não percebi nenhum subentendido em seu modo de agir.

Olhei seu ventre. Vi a marca do elástico da calcinha em sua pele. Ela
estava nua, completamente nua. Isso abalou-me, principalmente por
acontecer naquele momento, em que eu pensava tanto em Kathy.

Deslizei o olhar pelos seios de Kim. Eram redondos, perfeitos, rijos,
com biquinhos salientes. Estavam enrugados e destacados. Eu toquei o
ventre dela, apalpando-o, tentando sentir algum alguma anormalidade na
região do apêndice.

Observei a pele dela quando a toquei. Ela se arrepiou toda. Os
biquinhos de seus seios tornaram-se ainda mais salientes, como
pequenas uvas rosadas.

Isso me incentivou. Fui apalpando e deslizando a mão, subindo até seu
umbigo, depois descendo um pouco mais, até a linha do púbis, onde os
pêlos começavam a enovelar-se.

-- Quando fez seu último exame ginecológico? -- indaguei.

-- Há um seis meses.

-- Alguma coisa?

-- Não -- respondeu ela e sua voz era ofegante.

Ela mantinha os olhos grudado sem mim, perturbando-me. Movia-se de um
modo estranho, traindo a excitação de seu corpo. Baixei os olhos um
pouco mais, vislumbrando os pêlos e o princípio de sua vulva.

O perfume de mulher excitada chegou a minhas narinas, espicaçando-me.
Meu caralho reagiu imediatamente, subindo.

-- Como são as dores? -- indaguei, a ponta do dedo tocando a chana
dela, fazendo-a contrair-se e arrepiar com um suspiro prolongado que
fez tremer todo o seu corpo.

Ela apertou os olhos e os lábios, prendendo a respiração. Ou eu estava
enganado ou ela estava gozando.

-- Como está sua vida sexual? -- indaguei.

-- Uma merda! -- respondeu ela, de olhos fechados ainda. -- Meu
namorado só me excita... me excita... Acho que estou ficando louca...
-- acrescentou, com a voz trêmula.

Desci o dedo um pouco mais, percorrendo toda a extensão de sua vulva.
Ela ofegou e estremeceu mais forte. Toda a sua chana estava molhada,
altamente lubrificada.

-- O diagnóstico é claro, Kim -- disse eu, mantendo meu dedo em sua
chana, indo e vindo numa carícia que a mantinha tremendo e arrepiada.

-- E o que é?

-- Tesão encravado.

Ela ficou uns instantes em silêncio, olhos fechados, lábios apertados,
estremecendo e respirando pesado.

-- E como se cura isso?

-- Com uma boa pica no meu da racha, Kim. Acho que devia exigir mais
de seu namorado -- sugeri.

-- Ele é um bolha... Acho que preciso de quem me dê um remédio de
verdade -- disse ela, a mão tocando a minha coxa e subindo, até pousar
no volume rijo sob minha calça.

Seus olhos se abriram, revelando surpresa.

-- Eu o deixei com tesão? Está com tesão por minha causa? -- indagou
ela, abaixando o zíper da calça e retirando meu cacete para fora.

Ficou apertando-o e masturbando-o com deslumbramento.

-- Ele gosta de ser masturbado apenas... E você?

-- Gosto de gozar numa chana ou num rabo bem apertado.

Ela estremeceu de tesão, apertando meu cacete com força.

-- Posso vê-lo? -- pediu ela.

Eu sorri, concordando e expus aos seus olhos deslumbrados meu caralho,
com a glande descoberta e avermelhada, as grossas veias intumescidas
indicando sua potência.

-- É tão grosso... E tão comprido... Nossa! -- murmurou ela, com a voz
rouca, apertando-o agora com as duas mãos.

-- O de seu namorado não é assim?

-- Não, de jeito nenhum... O seu é melhor... maior... mais grosso...
mais comprido... mais bonito... mais tesudo...

Olhei-a. Estava trêmula e arrepiada. Não havia dúvida. Seu namorado
vinha excitando-a constantemente, sem criar mecanismos de satisfação
para ela.

Kim vinha acumulando tesão em seu ventre que se manifestava na forma
daquelas cólicas. Eu estava certo de que, com uma só aplicação local
eu a curaria.

Primeiro, no entanto, teria de esperar até que o seu deslumbramento
passasse. Ela não cessava de alisar meu pau, de apertar, de passar a
mão e me fazer arrepiar de tesão também.

Ela se posicionou melhor. Esfregou meu caralho em seus cabelos, na
testa, nos olhos, no nariz, nos lábios, na orelha, depois no pescoço,
entre os seios, retornando à boca para beijá-lo e lambê-lo com a
pontinha da língua.

-- Você o quer, Kim?

-- Sim, eu o quero...

-- Onde?

-- Em tudo... De todo jeito...

-- Você é virgem? -- indaguei.

Ela me olhou surpresa, como se tivesse sido pega em flagrante
cometendo um crime, depois virou-se para o lado, pôs o travesseiro na
cabeça e começou a soluçar.

-- Ei, o que foi? -- indaguei.

-- Vocês são todos iguais... -- reclamou ela.

-- Iguais por quê? -- perguntei, segurando-a pelos ombros e
obrigando-a a olhar-me. -- Do que está falando, afinal?

-- Pensei que vocês homens gostassem... -- soluçou ela, chorando.

-- Gostasse do quê?

-- De um cabacinho... É por isso que meu namorado não me come...
Porque sou virgem... E você pensa e age da mesma forma.

Fiquei maravilhado. Havia muito tempo não sabia o que era comer um
cabacinho. Debrucei-me sobre ela para ficar com meu rosto quase colado
ao dela.

-- Você é virgem? Verdade?

-- Sim, por quê?

-- E quer dar seu cabacinho para eu comer? -- continuei, com
deslumbramento.

-- Sim... Você quer? -- falou ela, parando de soluçar.

-- Eu vou adorar isso, querida -- falei eu, beijando-a ardentemente.

Ela se abraçou a mim, enroscando-se toda, demonstrando todo o fogo
apaixonado que ardia em seu corpo.

-- Diga que é verdade, que não está mentindo... -- pediu ela,
desesperada.

-- Não, não estou mentindo...

-- Vai me comer mesmo?

-- Sim, com o maior prazer.

-- Vai me tirar o cabaço?

-- Pode ter certeza disso...

-- Com este pinto gostoso? -- continuou ela, apertando e alisando meu
caralho com as duas mãos, enquanto eu lambia seus seios e chupava os
biquinhos salientes.

Sua pele estava eriçada. Constantes arrepios percorriam-na. Ela não
parava de tremer. Sua voz estava rouca. Seu hálito mais perfumado. De
sua chana subia aquele perfume inconfundível, o mais poderoso dos
afrodisíacos.

Estava tudo na minha mão... E eu não consegui comê-la.



Capítulo 6



Consulta inicial.

Paciente: Gerald Foster.

Síntese: Solidão e angústia.

Diagnóstico: Típico caso de carência emocional.

Minha namorada teve de fazer um viagem à Europa, por isso eu ficaria
sozinho por algum tempo. Estava às voltas com o problema de saúde de
seu pai e eu não tivera mais tempo para mi. Tínhamos uma vida sexual
muito ativa, por isso senti sua ausência, acumulando um tesão enorme
dentro de mim.

Aquele tesão que eu sentia por ela persistia. Bastava olhar para uma
fotografia dela para me lembrar dela e sentir meu caralho formigar de
vontade e revê-la, tocá-la e comê-la.

Certa manhã, meu chefe mandou me chamar.

-- Meu amigo, seu sonho vai se tornar realidade -- disse ele, com
satisfação.

-- Verdade? Vou ganhar um aumento?

-- Deixe isso para lá. Você já ganha mais do que precisa...

-- Mas menos do que mereço...

-- Não discuto isso e você sabe disso. Confio e gosto do seu trabalho.
Pago-lhe bem e deixo-o à vontade em seu trabalho. Mesmo assim, sei que
ninguém é de ferro, por isso você vai ter alguns dias para se preparar
para suas sonhadas... férias!

Quase caí para trás. Eu trabalhava ali havia quase dois anos e jamais
conseguira tirar um final de semana que fosse de licença, quando mais
alguns dias de férias, apesar de ter insistido nisso nos últimos seis
meses quase que diariamente.

Afinal, eu ganhara duas semanas de férias remuneradas e em poucos dias
começaria meu descanso. Eu precisava fazer planos, havia uma porção de
coisas que eu poderia fazer.

Pensei em visitar minha namorada, mas achei que iria incomodá-la
apenas. Estava preocupada demais com a saúde do pai para me dar alguma
atenção.

Assim, resolvi visitar minha cidade natal. Havia alguns amigos de quem
eu gostava muito, principalmente de Jimmy, o Grande, como era
conhecido.

Jimmy fora um de meus melhores amigos, quando estudei o segundo grau.
Era enorme e tinha muita agilidade, força e até velocidade, sendo um
dos ídolos do time de futebol da nossa época.

Jogamos juntos várias vezes. Fomos campeões da Liga Estadual no último
ano do colegial e eu tinha boas recordações daquele safado. Ele
chegara a ir para a Universidade, mas seu pai, que tinha uma rede de
postos de gasolina, morreu inesperada e tragicamente.

Jimmy assumiu os negócios da empresa e se deu muito bem no ramo. Por
isso, quando cheguei à cidade, procurei logo por ele.

Mal pode acreditar quando me viu. Repetimos nossa saudação do tempo do
time de futebol, cantamos algumas canções da torcida da época e nos
abraçamos como dois irmãos.

Estávamos conversando em seu escritório, com uma vista, pela janela
envidraçada, das bombas na parte da frente, quando um carro estacionou
lá fora.

-- Ei, venha comigo! Vamos fazer uma surpresa a uma conhecida -- disse
ele, praticamente arrastando-me para fora da sala.

Aproximamo-nos do carro. Ele me fez ficar um pouco para trás.
Inclinou-se na janela e disse:

-- Olá, Sra. Wilson! Como vai? Gostaria que visse alguém -- disse ele,
abrindo a porta.

Uma mulher desceu. Jimmy apontou na minha direção. Ela se voltou e eu
estremeci. Os olhos dela revelaram incredulidade. Aproximei-me. Era
Heather, minha primeira namorada.

Ela manteve os olhos fixos nos meus. Vestia uma blusa azul, fechada
até o pescoço e uma saia longa, branca. Os cabelos presos no alto da
cabeça não lhe faziam justiça. Eu os conhecera sempre soltos,
emoldurando sua beleza.

Os olhos eram azuis, com leves tons de verde, profundos e serenos, mas
cheios de mistério e calor. Abriu os braços para mim. Eu a abracei,
apertando-a com força contra meu corpo.

-- Heather , querida, você está ótima! -- murmurei ao seu ouvido,
sentindo contra o meu corpo suas formas perfeitas.

Ela nada disse. Apenas ficou me apertando contra o corpo. Percebi que
soluçava, escondendo o rosto em meu ombro.

-- Heather , não fique assim! Sou eu!

Ela foi se afastando devagarinho, com a cabeça baixa. Segurei-a pelo
queixo e a fiz erguer o rosto. De fato ela chorava. Havia lágrimas em
seus olhos e elas os limpou rapidamente.

-- Vou deixá-los a sós, acho que têm muito que conversar -- disse
Jimmy.

-- Não, agora eu não posso, realmente -- falou ela. -- Preciso ir ao
Banco, antes que feche, depois resolver alguns negócios. Mas estarei
livre até a hora do jantar.

-- Vamos jantar juntos? -- convidei-a.

Ela pensou por instantes.

-- Sou uma viúva agora -- disse ela. -- Você conhece o pessoal
daqui... Vão falar...

-- Heather , eles vão falar de qualquer maneira. Eles que se danem,
mulher. A vida é sua -- falou Jimmy, dando-lhe uma dura.

Ela continuou pensativa.

-- Quer que eu vá buscá-la? Poderemos jantar aqui na cidade... --
propus.

-- Não... Jimmy tem razão. Eles que se danem. Espero-o às sete. Moro
na fazenda Wilson, acho que sabe onde é, não?

-- Tom Wilson? Você se casou com ele?

-- Sim... Eu me casei com Tom...

-- E como ele morreu?

-- Caiu do trator... Estava bêbado como um gambá, para variar -- disse
ela, com certo rancor, como se eu tivesse culpa naquela tragédia.

No momento não entendi isso. Ela se foi pouco depois. Jimmy me contou
que ela havia herdado a fazenda do marido e que estava se saindo bem,
apesar de muito trabalho.

-- Está saindo com alguém? -- indaguei.

-- Olhe, para ser sincero com você, meu chapa, só conheci dois homens
que tiveram o privilégio de se deitar com Heather . Um foi você. O
outro foi o velho Tom Wilson. Só que não sei se ele cumpria suas
obrigações de marido, pois deu para beber demais.

-- Tiveram filhos?

-- Não, nenhum.

Fiquei pensando na jovem que eu havia deixado muitos anos antes. Ela
se transformara numa mulher madura e um tanto sofrida, mas eu sabia
que, por debaixo daquela aparência seca, daqueles cabelos presos no
alto da cabeça e daquelas roupas fechadas, havia uma mulher ardente.

Senti arrepios de tesão em pensar que, em breve, eu poderia
redescobrir aquela garota que eu deixara. Estava havia mais de dois
anos. Dava para imaginar o que isso significava para uma mulher como
ela, ardente e fogosa, reprimindo-se, guardando-se para o momento
certo.

Eu torci para que tudo isso aflorasse comigo. Não sabia se aquela
mudança externa que eu notara nela havia se processado também
internamente, o que seria uma pena.

-- Vou procurar um hotel para ficar e... -- ia dizendo eu.

-- Nada feito, meu chapa. Você vai ficar comigo, em minha casa. Tem
mais quartos do que consigo contar -- riu ele. -- Além disso, tenho
duas ou três mulheres trabalhando lá que você precisa conhecê-las.

-- Jimmy, seu safado! Em sua própria casa?

-- E por que não? Pelo menos fica tudo em família.

Ri com ele, apesar de não ter entendido no momento o que significava
tudo aquilo. Um pouco depois, quando fomos para a casa dele, onde
conheci sua encantadora esposa.

Tomei um banho e barbeei-me. Vesti-me esportivamente e usei uma
colônia máscula e sedutora. Eu pretendia jogar pesado com Heather .

Fui um pouco mais cedo, para caminhar com calma e poder observar a
paisagem, matando as saudades que sentia daquele lugar. Fui
reconhecendo os lugares com muita satisfação. Algumas coisas haviam
mudado, outras pareciam ter permanecido congeladas no tempo.

Nos campos, as plantações estendiam-se com regularidade. Eram terras
férteis e produtivas.

Quando me aproximava, tive de reconhecer que era um belo rancho, tudo
muito bem cuidado, com um toque feminino na casa recém-pintada, no
celeiro bem conservado, no silo para guardar o milho, nas máquinas
cobertas com lona para protegê-las da chuva e do sol.

O milharal margeava a pequena estrada que avançava na direção da casa.
Espigas gordas exibiam-se nos pés, prometendo uma boa colheita.

Quando chegava, percebi-a sentada na varanda, numa cadeira de balanço,
olhando para mim. Aproximei-me. Havia no ar um delicioso cheiro de
pernil de porco assado.

-- Pelo menos isso não mudou com o tempo -- disse ela.

-- Isso o quê?

-- Continua um homem pontual.

-- Lembrou-se disso? -- indaguei, subindo a escada até a varanda.

Havia alguns sinais sutis da parte dela, como a colônia insinuante que
usava e o litro de uísque e dois copos na mesinha entre as duas
cadeiras de balanço, junto com alguns salgadinhos.

-- Sirva-se -- disse ela, apontando para a mesinha.

Servi dois copos e estendi um para ela. Quando a deixei, o máximo que
ela bebia era uma cerveja. Mas esta era uma outra mulher. Mais madura.

Examinei-a melhor no lusco-fusco do fim do dia. Vestia uma blusa mais
aberta que a daquela tarde, exibindo agora o colo e o início do vale
perfumado de seus seios.

A saia era longa e rodada, cobrindo até sua canela, enquanto sentada.
Calçava sandálias abertas, deixando ver pés delicados e femininos, com
as unhas pintadas às pressas, mas apresentáveis.

Agora eu podia perceber melhor seu corpo. Em minha mente havia uma
outra imagem, sobrepondo-se e isso me confundia de certa forma.

-- A nós -- brindou ela, tomando todo o conteúdo do copo, para minha
surpresa.

Imitei-a. Ela voltou a encher os copos. Tomou outro trago e repetiu.
Achei estranho.

-- Ei, calma! -- disse-lhe.

-- Como pode me pedir isso, depois do que me fez? -- indagou ela, com
um rancor que parecia ter sido guardado por um longo tempo dentro
dela.

Ela desceu tempestivamente a escada e caminhou pelo pátio da casa, na
direção do milharal. Fui atrás dela, tentando entender por que ela
estava tão brava comigo, após todos aqueles anos.

Alcancei-a logo, segurando-a pelo braço e fazendo-a olhar-me.

-- O que houve, Heather ? O que foi que eu fiz? -- indaguei, aturdido.

-- Não se lembra? -- indagou-me ela, como se eu devesse me lembrar.

-- Não... sinceramente que não...

-- Eu o esperei, sabia?

-- Eu pensei em você, mas... os estudos... a mudança... depois a
residência médica... Eu não tinha tempo para nada...

-- Enquanto isso, eu aqui, esperando por você, confiante em sua
promessa...

-- Que promessa? -- perguntei, intrigado.

-- A promessa que me fez, naquela noite, quando nos despedimos.

-- Sério? E o que eu lhe prometi?

-- Que voltaria para me buscar. Que nada no mundo o impediria. Que
faria o que fosse preciso...

Das trevas do passado, aquelas palavras ecoaram em minha mente e eu me
lembrei de ter feito aquilo. Não apenas prometera, mas havia jurado
que voltaria para ela.

-- Oh, Deus, Heather ! Se eu soubesse...

-- Escrevi-lhe...

-- Nunca recebi suas cartas...

-- Eu sei... Elas voltaram todas. Devo ter errado o endereço e não
quis pedir para sua mãe... Então apareceu o Tom... Eu achei que você
não ia voltar mais mesmo... Tom era um bom homem, trabalhador durante
o dia, mas um beberrão à noite... Nem chegamos a ter filhos... Ele não
conseguia endurecer o pau para trepar comigo -- confessou ela,
escondendo as lágrimas.

Na claridade que vinha da lâmpada acesa na varanda eu pude perceber
nitidamente os detalhes de seu rosto, os lábios carnudos que tremiam,
enquanto ela soluçava.

Segurei-a pelos ombros, trazendo-a gentilmente ao encontro do meu
peito. Ela veio mansamente, encostando-se em mim.

-- Se soubesse quantas vezes sonhei, esperando você voltar...
Masturbando-me para satisfazer-me, enquanto Tom dormia, roncando como
um porco...

Aspirei seu perfume, esfregando meu rosto no dela. Senti-a tremer.
Cheirei seus cabelos, ainda presos no alto da cabeça. Minhas mãos
subiram até o rosto dela. Heather fechou os olhos. Comecei a retirar
os grampos que prendiam seus lindos cabelos.

As mechas, como uma cascata mágica, foram se desenrolando, caindo
atrás de sua cabeça, emoldurando seu rosto. Eram cabelos lisos e
compridos, perfumados e sedosos.

Ela se remexia agora diante de mim e sua respiração era apressada,
fora de controle. Eu podia ouvir seu coração batendo e de dentro de
seu decote subiu aquele perfume de fêmea excitada.

Beijei-lhe o canto da boca. Ela girou lentamente a cabeça, esfregando
seus lábios nos meus. Beijei-a com toda gentileza, mas com muito
tesão. Abracei-a, colando meu corpo ao dela, sentindo o volume de seus
seios, a firmeza de suas coxas e o desenho e sua cintura.

Ela me abraçou em resposta, apertando-se contra mim. Suspirou quando
enfiei minha língua entre seus lábios e provei sua saliva adocicada,
com sabor de uísque.

Meu caralho manifestou-se logo, erguendo-se. Heather sentiu-o subir,
pois estremeceu e apertou o ventre contra mim.

-- Quero você, Heather . Acho que a quero como naquela noite --
murmurei, rouco de tesão.

-- Eu também o quero. Jamais consegui fazer amor com outro homem.
Mesmo após a morte de Tom, eu não conseguia... Sempre me lembrava de
você e... Simplesmente esfriava...

Enquanto ela falava, suas mãos desceram pelas minhas costas e foram
apertar as minhas nádegas com volúpia. Fiz o mesmo, puxando-a ao meu
encontro, para que ela sentisse toda a rigidez de minha pica.

-- Vamos -- propus eu, tomando-a pela mão e levando na direção da
casa.

-- Não, na casa não -- pediu ela.

-- Por quê? Tem medo de fantasmas?

-- Não... É que eu quero no celeiro... Por favor! -- insistiu ela.

-- Que seja -- concordei, levando-a.

Heather se deixou levar mansamente na direção do celeiro. Quando
entramos, eu tateei a parede à procura de um interruptor, já que via
uma fileira de lâmpadas ao longo da construção.

-- Não... Não acenda... -- pediu ela.

-- Por quê? Eu quero vê-la nua...

-- Depois...

-- Está com vergonha de seu corpo?

-- Não... Apenas quero que seja assim...

Confesso que a idéia também me encheu de tesão. Um tesão que cresceu
violentamente

Entramos. A claridade da varanda projetava-se contra a porta do
celeiro, pintada de branco, refletindo-se fracamente no interior. Eu
podia ver o vulto de Heather contra a claridade da porta, mas não via
os detalhes. Isso excitou-me brutalmente.

Acariciei seus cabelos, caídos diante do corpo. Minhas mãos tocaram os
seios dela. Senti-lhes o formato, depois de muito tempo. Eram ainda
redondos e rijos, com biquinhos salientes e desejáveis, espetados
contra o tecido do sutiã e da blusa.

Heather estremeceu. Ofegou. Fechou os olhos e ficou imóvel diante de
mim. Estava carente e frágil. Eu queria tocá-la e sentí-la, imaginando
suas formas voluptuosas, a auréola de seus seios, o formato de seu
monte-de-vênus, os pêlos, a bundinha e as coxas, tudo, enfim.

-- Você é tão gostosa -- murmurei ao seu ouvido.

Ela permaneceu imóvel, trêmula e entregue. Estava se entregando
totalmente a mim.

Minhas mãos buscaram os botes de sua blusa, começando a soltá-los um a
um. Depois enfiei a mão na abertura.

Toquei um dos seios dela. Senti o biquinho eriçado. Ela arrepiava-se.
Eu sentia isso em sua pele. Heather estava excitada, muito excitada
mesmo. O perfume de sua chana melava a calcinha e subia até minhas
narinas.

Fiquei doido de tesão e terminei de soltar os outros botes da blusa,
despindo-a.. A blusa escorregou para trás, caindo no piso. O sutiã foi
junto.

Voltei a tocar seus seios, colhendo cada um em minhas mãos,
amassando-os suavemente, esfregando os biquinhos salientes e
enrugados.

-- São gostosos de tocar, Heather ... Como são... -- murmurei, rouco e
afogueado.

Empurrei os cabelos dela para trás e beijei seu pescoço com
provocação, lambendo sua pele, deixando ali a minha saliva. Fui
descendo, lambendo as encostas tentadoras, em todas as direções. Ela
não parava de se arrepiar.

-- É bom... Muito bom... -- murmurou ela.

-- Como pude deixá-la, Heather ... Você é fantástica... --
respondi-lhe, mordiscando as tetinhas, alisando sua cintura, lambendo
os biquinhos, colhendo-os entre os dentes e mascando-os suavemente.

Ela ofegava, toda inquieta. Busquei o fecho de sua saia, então,
enquanto continuava dando toda a minha atenção aos seus seios.
Momentos depois, a saia farfalhava ao amontoar-se nos pés dela.

O perfume de sua checa era demais agora. Heather deveria estar mais
molhada do que jamais estivera em toda a sua vida.

Desci as mãos pelos quadris ela, sentindo sua pele arrepiada...
Segurei o elástico da calcinha. Comecei e enrolá-la, empurrando-a para
baixo.

Desejei que a luz estivesse acesa para ver toda a beleza de seu corpo.
A silhueta contra a claridade mostrava uma cintura afunilada, coxas
proporcionas e uma bunda tentadora.

Dos seios desci minha boca para seu ventre, beijando, lambendo e
mordiscando. Minhas mãos contornaram o corpo dela e foram massagear
suas nádegas rijas e roliças.

O perfume da xoxota mais e mais me provocava, atraindo-me
inapelavelmente. Eu queria sentí-lo de perto. Queria prová-lo. Queria
resgatar aquele sabor que povoava meus sonhos. Queria beber direto no
gargalo, na fonte, na bica.

-- Oh, não! -- murmurou ela, enquanto eu me ajoelhava diante dela.

-- Abre as pernas um pouco mais -- pedi, empurrando suas coxas para o
lado.

-- Sim... Sim... -- repetiu ela, atendendo-me.

Subi uma de minhas mãos pela parte interna de sua coxa até a vulva.
Ela gemeu e ofegou, abalando-se toda. Estendi minha língua, então, e
lambi sua chana com gosto.

Heather incendiou-se. Gemeu, suspirou, contorceu-se, agarrando-me
pelos cabelos, apertando-me contra o corpo, enquanto eu a brindava com
a delícia das delícias.

Senti em minha boca sua xoxota estreita e seu sabor de fêmea, bebendo
na fonte seu néctar mais precioso. Ela ficou alucinada. Deveria estar
mesmo havia muito tempo sem ter um macho, pois gozou com a minha
língua em sua chana, que senti dilatando-se, enquanto Heather
estremecia e fungava, gemendo sempre.

Insisti naquela carícia que tanto a havia arrebatado. Minha língua não
lhe deu tréguas. Enfiei com gosto. Lambi. Chupei. Descobri o
botãozinho delicado de seu clitóris. Prendi-o entre os dentes. Mordi-o
como havia mordiscado os biquinhos dos seios.

Ela gozava continuamente. Eu pressionava a língua contra o grelinho,
enquanto ela só gemia e soluçava agora de tanto prazer.

As formas roliças de suas nádegas em minhas mãos provocavam-me.
Deslizei um dedo pelo reguinho de suas nádegas, até encontrar as
preguinhas tentadoras de seu cu..

Ela gemeu mais forte, rebolando inesperadamente abunda. Acariciei com
força o buraco. Ela gostou. Insisti na massagem, enquanto ela remexia.

Deixei que meu dedo fosse entrando naturalmente, na medida em que ela
rebolava e jogava a bunda contra ele, quando os espasmos de gozo
agitavam-na.

-- Oh, é bom... Estou ficando tonta de tanto gozar... Mas quero
mais... Tenho o direito a mais... Continue... Mate a minha saudade...
-- suplicou ela, em frenesi.

Minha língua continuava entrando e saindo alucinadamente na sua
buceta. O dedo no ânus iniciou uma nova sessão de carícias. Ali, com
ela de pé na minha frente, no meio do celeiro, eu a fiz gozar
incontáveis vezes, até que os joelhos dela fraquejassem e ela tombasse
sobre mim.

-- O que é isto... Que loucura é esta... O que acontece comigo...
Estou gozando como uma louca... Nunca pensei que voltaria a sentir
isso... -- confessou ela, maravilhada, ofegante, com a voz
entrecortada e rouca.

-- Estamos apenas no começo, minha querida. Ainda a farei gozar muito
muitas... -- prometi, como se fosse ficar lá para sempre

Então pensei em minha namorada... E brochei!

FIM
_________________________________________________________________

VISITE A CASA DO MAGO DAS LETRAS

David HUME
Anthony Quinton

FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP
Presidente do Conselho Curador Antonio Manoel dos Santos Silva
Diretor-Presidente José Castilho Marques Neto
Assessor Editorial Jézio Hernani Bornfirn Gutierre
Conselho Editorial Acadêmico Aguinaldo José Gonçalves, Álvaro Oscar Carnpana, Antonio Celso Wagner Zanin, Carlos Erivany Fantinati, Fausto Foresti, José Aluysio
Reis de Andrade, José Roberto Ferreira, Marco Aurélio Nogueira, Maria Sueli Parreira de Arruda, Roberto Kraenkel e Rosa Maria Feiteiro Cavalari.
Editor Executivo Tulio y, Kawata
Editoras Assistentes Maria Apparecida F. M. Bussolotti e Maria Dolores Prades

Anthony Quinton

HUME

Tradução José Oscar de Almeida Marques
Departamento de Filosofia -Unicamp

Editora Unesp

Copyright @ 1998 by Anthony Quinton
Titulo original em inglês: Hume, publicado em 1998 pela Phoenix, uma divisão da Orion Publishing Group Ltda.
Copyright @ 1999 da tradução brasileira: Fundação Editora da UNESP
Praça da Sé, 108
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E-mail: feu@editora.unesp.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Quinton, Anthony.
Hume / Anthony Quinton; tradução José Oscar de Almeida Marques - São Paulo: Editora UNESP (FEU), 1999. - (Coleção Grandes Filósofos)

Título original: Hume.
ISBN 85-7139-234-4

1. Hume, David, 1711-1776 I. Título. II. Série.

Índice para catálogo sistemático:
I. Filósofos ingleses: Biografia e obra 192

ABREVIAÇÕES DAS OBRAS DE HUME

E Enquiries Concerning Human Understanding and Concerning the Principles of Morais. SELBY -BIGGE, L. A. (Ed.). 2.ed. Oxford, 1902.
D Dialogues Concerning Natural Religion. KEMP SMITH, N. (Ed.). Oxford, 1935.
Ess Essays. Oxford, 1963.
N The Natural History of Religion and Dialogues Concerning Natural Religion. GLYN, A. W., PRICE,J. V. (Ed.). Oxford, 1976.
T Treatise of Human Nature. SELBY -BIGGE, L. A. (Ed.). Oxford, 1888 e posteriores.


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INTRODUÇÃO

Hume é o maior dos filósofos britânicos: o mais profundo, penetrante e abrangente. Seu trabalho é o ponto alto da tradição empirista dominante na filosofia britânica
que começa com Guilherme de Ockham no século XIV, passa por Bacon e Hobbes, Locke e Berkeley, prossegue, depois de Hume, com Bentham e J. S. Mill e culmina na filosofia
analítica do presente século, que Bertrand Russell inaugurou e, postumamente, ainda preside.
Ele não foi um filósofo tão razoável nem - em parte por essa razão - tão influente quanto Locke. Enquanto este recomendava, quanto às crenças, uma atitude cautelosa
ou reservada que era bem-vinda após um século de horríveis conflitos religiosos, Hume parecia comprazer-se em paradoxos e chegar a um ceticismo total que só a frivolidade
podia aliviar. As doutrinas políticas de Locke contribuíram em alguma medida, particularmente pela aprovação entusiástica de Voltaire, para a corrente de pensamento
que inspirou a Revolução Francesa e desempenhou um papel muito maior no projeto da Constituição americana. Os utilitaristas do século XIX fizeram de uma versão simplificada
da teoria moral e política de Hume a base efetiva de uma variedade radical de liberalismo que ele dificilmente teria aprovado. Até o século XX, o principal efeito
de sua filosofia teórica foi negativo, provocando numerosos filósofos ao desafio de refuta-lo. Kant disse que Hume o tinha "despertado de seu sono dogmático". Thomas
Reid, o filósofo escocês do senso comum, viu Hume como tendo demonstrado de maneira brilhante o absurdo implícito da "teoria das idéias" de Locke. T. H. Green escreveu
uma enorme introdução a uma edição das obras de Hume,


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rastreando seus supostos erros com inabalável resolução. Só o século XX o reconheceu como um importante filósofo no sentido construtivo.
Hume era profundamente escocês, pelo nascimento, residência preferencial, lealdade, sotaque e maneiras. Foi o mais notável expoente do Iluminismo escocês do século
XVIII, que também incluiu Adam Smith, o grande economista, Adam Ferguson, o fundador da sociologia, o historiador William Robertson e muitos outros. Esses homens
criaram um ambiente intelectual admiravelmente vivo e estimulante no qual se cultivaram todas as ciências humanas: filosofia, história, política, economia, crítica
e o estudo não-dogmático da religião. O estilo desses escoceses do século XVIII compara-se muito favoravelmente, em seu rigor e generalidade, com os modos de pensamento
mais descuidados de seus contemporâneos ingleses. (Há a exceção de Samuel Johnson, mas ele poderia ter-se beneficiado de um pouco mais de sistematicidade e de pessoas
menos insípidas com quem debater).
Hume compartilhava com seus associados, e, na verdade, com a maioria dos filósofos de sua época, duas qualidades que o distinguiam, e a eles, dos filósofos dos dias
de hoje. Em primeiro lugar, a esfera de seus interesses era extraordinariamente ampla. Não se limitou a escrever sobre filosofia - tanto teórica como moral -, teoria
política, economia e o estudo histórico e doutrinário da religião, mas trouxe, para essas áreas, contribuições de decisiva importância, escrevendo de forma memorável
sobre milagres, sobre a liberdade da vontade, sobre a imortalidade da alma e o suicídio, e devastando ao mesmo tempo o tipo de religião racional ou natural, o deísmo,
que era a posição mais avançada que a maioria dos pensadores das Luzes julgaram razoável atingir em termos práticos ou teóricos.
Ele foi, contudo, muito mais conhecido em sua época como um historiador, e muito mais bem recompensado por essa atividade. Sua obra-prima filosófica de juventude,
o Tratado sobre a natureza humana, embora não tenha, como ele


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tristemente proclamou, "saído do prelo natimorto", levou décadas para esgotar sua pequena primeira edição. Mas sua posterior História da Inglaterra em seis volumes
foi um best-seller.
A outra qualidade que distingue Hume profissionalmente dos filósofos contemporâneos é o caráter literário de suas ambições. Em sua breve Autobiografia ele se refere
à "minha paixão dominante, meu amor pela fama literária". Foi um escritor consciente, elegante, de um tipo Augustino, produzindo sentenças polidas e equilibradas,
coloridas com exemplos e analogias concretas. Samuel Johnson disse "ora, senhor, o estilo dele não é inglês. A estrutura de suas sentenças é francesa". O que não
constitui, evidentemente, um defeito. Hume escreveu o Tratado durante uma longa estada na França, e esse pode ser o trabalho que Johnson tinha em mente. A filosofia
no século XVIII fazia parte das belas letras; e, nas universidades, aparecia apenas como uma tímida auxiliar da teologia e dos estudos clássicos. Hume se dirigia
a leitores providos de uma educação geral, não a acadêmicos, os quais em sua maior parte nunca o apreciaram. Trata-se, de fato, de um escritor despreocupado, demasiado
tolerante para ficar se preocupando em amarrar todas as pontas de seu texto. Em particular, do ponto de vista do estilo, ele está bem abaixo do quase perfeito Berkeley,
mas não se poderia considerar isso uma fraqueza, e é difícil pensar em algum filósofo britânico posterior que tenha escrito tão bem quanto ele, com a possível exceção
de F. H. Bradley.
Há uma importante limitação na bagagem intelectual de Hume. Possuidor de um conhecimento espantoso sobre as humanidades, ele parece não ter sabido quase nada de matemática e ciência natural, nem ter tido qualquer interesse por essas disciplinas. Mas isso não trouxe muito prejuízo. O que ele escreveu sobre matemática está perfeitamente dotado de


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um bom senso mais ou menos leibniziano. Se é verdade que ele supôs erroneamente que toda ciência natural é causal, pelo menos suas partes mais elementares o são.
Onde sua fragilidade matemática o põe a perder é na parte 2 do Tratado, na qual coisas muito estranhas são ditas sobre espaço e tempo. Ele afirma, por exemplo, que
um todo extenso deve ser composto de partes inextensas, que são não obstante finitas em número e dotadas de qualidades perceptíveis, tais como cores. Os comentadores,
quase universalmente, lançam um véu sobre essa parte do trabalho de Hume.


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VIDA

Hume nasceu em Edimburgo em 1711. Originária das Borders, sua família lá viveu a maior parte do tempo, na propriedade que possuía em Ninewells, situada entre Berwick,
a leste, e Duns (onde Duns Escoto pode ter nascido, mas provavelmente não nasceu) a oeste. Seu pai morreu quando ele tinha dois anos, de modo que sua mãe, dedicada
e intensamente calvinista, foi a principal influência em seus primeiros anos. O lar e a religião da família teriam-no tornado profundamente antipático à tentativa
jacobita, em 1715, de instalar no trono o monarca católico legítimo, que teria sido James III.
Hume ingressou na Universidade de Edimburgo com a precoce idade de 12 anos, o que era bastante usual à época, deixando-a três anos mais tarde. Voltou-se então, de
má vontade, para os estudos jurídicos, embora dedicando a maior parte de sua atenção a Cícero e outros autores clássicos. Depois de um tipo de colapso nervoso e
de um breve período no escritório de um comerciante de Bristol, ele isolou-se por dois anos em uma área rural da França, vivendo frugalmente e escrevendo seu Tratado.
Publicou suas duas primeiras partes em 1739, dois anos após seu retorno, e a terceira parte em 1740. Dois volumes de ensaios, publicados em 1741 e 1742, tiveram
sorte um pouco melhor. Candidatou-se sem sucesso a uma cátedra de filosofia em Edimburgo e, necessitando de algum rendimento, tornou-se tutor, por um ano, do insano
marquês de Annandale. Em 1746 acompanhou o general St. Clair em uma invasão da Bretanha, que acabou sendo cancelada, e, um pouco mais tarde, viajou com St. Clair
a Viena e a


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Turim. Nessa época, em 1749, veio à luz sua Investigação sobre o entendimento humano, uma revisão um tanto mutilada do livro 1 do Tratado, e ele retornou a Escócia
para concluir a obra-irmã daquela, a Investigação sobre os princípios da moral, sua favorita entre todas as que produziu.
De 1751 a 1757 Hume administrou a Biblioteca dos advogados em Edimburgo, a melhor biblioteca do país e o ambiente ideal para o projeto de grande envergadura a que
então deu início: os seis volumes de sua História da Inglaterra. Os volumes sobre os Stuarts - que geraram alguma controvérsia pela tentativa de fazer justiça à
família - saíram em 1754 e 1756; em 1759 foram publicados aqueles dedicados aos Tudors, e, em 1772, os volumes sobre as dinastias anteriores, remontando a Júlio
César. Hume visitou Londres em 1758 e 1761, mas, de todas as viagens ao exterior, a mais prazerosa foi sua estada em Paris de 1763 a 1766 como secretário do conde
de Hertford. Ele foi agradavelmente festejado pelos philosophes, teve um sério romance, do qual se desconhece o grau de intimidade, com a condessa de Boufflers e
esteve diversas vezes com Rousseau, que trouxe consigo, como refugiado, em sua volta à Inglaterra. Rousseau logo retomou, disseminando implausíveis fantasias paranóicas
sobre Hume.
Sua carreira pública atingiu o ponto culminante com sua nomeação como subsecretário de Estado da província setentrional entre 1767 e 1769. Essa foi a época dos últimos
estertores políticos de William Pitt senior, idoso, doente e mentalmente perturbado. Hume parece ter desempenhado suas funções a contento. Em 1769 ele retomou a
Edimburgo e a seu círculo de amigos para seus últimos e felizes oito anos de existência. Antes de morrer de câncer de estômago em 1776, ele teve o prazer de irritar
Boswell com seu bem-humorado destemor diante da morte.
Hume era um homem de grande estatura, magro e ossudo quando jovem, mas cada vez mais corpulento e rubicundo à medida que passaram os anos. Simpático e gentil, sociável
e de bom temperamento, era um excelente amigo e um inimigo


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fácil de aplacar. Pôde ver méritos em um oponente sério e honesto como Thomas Reid, e dispensou um néscio presunçoso como James Beattie com o ameno comentário "um
camarada tolo e intolerante".
Nasci no dia 26 de abril, datação antiga, em Edimburgo. Vim de uma boa família, tanto do lado paterno como materno: a família de meu pai descende do conde de Home,
ou Hume, e meus ancestrais foram, por muitas gerações, proprietários das terras que hoje meu irmão possui... Passei com sucesso pelos estágios usuais de educação
e fui desde muito cedo tomado de um amor pela literatura que tem sido a paixão dominante em minha vida, e a grande fonte de meus prazeres. Minha disposição para
os estudos, minha sobriedade e aplicação, deram a minha família a idéia de que o Direito era uma profissão adequada para mim, mas eu sentia uma aversão insuperável
a tudo exceto a ocupar-me da filosofia e da erudição em geral; e enquanto eles imaginavam que eu me debruçava sobre Voet e Vinnius, eram Cícero e Virgílio os autores
que eu estava devorando. (Ess 607-8)

Nunca um empreendimento literário foi mais infortunado que meu Tratado sobre a natureza humana. Ele saiu natimorto do prelo, sem alcançar sequer a distinção de provocar
murmúrios entre os fanáticos. Mas como eu era de temperamento naturalmente animado e otimista, muito pronto recuperei-me do golpe e, tendo ido viver no interior,
retomei com grande ardor meus estudos. Em 1742 fiz imprimir em Edimburgo a primeira parte de meus Ensaios; o trabalho foi favoravelmente recebido e logo me fez esquecer
inteiramente meu desapontamento anterior. Continuei morando no campo com minha mãe e meu irmão e nesse período recuperei o conhecimento da língua grega, que havia
negligenciado demasiadamente em minha juventude. (Ess 608-9)

Mas não obstante essa variedade de intempéries a que meus escritos haviam sido expostos, eles ainda continuaram a fazer tamanho progresso que o dinheiro que me foi
pago pelos livreiros


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excedia em muito qualquer coisa anteriormente vista na Inglaterra; eu tornei-me não apenas independente, mas opulento. (Ess 613)

Aqueles que não conhecem os estranhos efeitos das modas jamais imaginarão a recepção que tive em Paris, por parte de homens e mulheres de todas as posições sociais.
Quanto mais eu me esquivava de suas excessivas cortesias, mais era cumulado delas. Há, entretanto, uma genuína satisfação em morar em Paris, pelo grande número de
pessoas sensatas, instruídas e refinadas que aquela cidade possui, em grau maior que qualquer outro lugar no Universo. Cheguei a pensar em instalar-me ali definitivamente.
(Ess 614)

Para concluir historicamente com meu próprio caráter, sou, ou antes, era (pois esse é o estilo que devo agora usar ao falar de mim mesmo, o qual me encoraja a expressar mais meus sentimentos); eu era, dizia, um homem de disposições brandas, de temperamento controlado, de gênio franco, sociável e bem-humorado, capaz de afeiçoar-se, mas pouco suscetível de inimizades, e de grande moderação em todas as minhas paixões. Mesmo meu amor pela fama literária, minha paixão predominante, nunca amargou meu temperamento, apesar dos desapontamentos freqüentes. Minha companhia não era desagradável para os jovens e despreocupados, nem para os estudiosos e homens de letras; e como eu tinha um prazer especial na companhia de mulheres recatadas, nunca houve razões para sentir-me descontente com a recepção que me concederam. Em
suma, enquanto a maioria dos homens de alguma eminência teve motivos para queixar-se da calúnia, eu nunca fui atingido ou mesmo atacado por suas garras malignas;
e embora tenha me exposto temerariamente à ira das facções civis e religiosas, elas pareceram, em relação a mim, desarmadas de sua fúria costumeira. Meus amigos
nunca precisaram justificar qualquer circunstância de meu caráter ou conduta; não que os fanáticos, como bem podemos supor, não tivessem ficado felizes em inventar
e propagar qualquer história que me prejudicasse, mas jamais puderam encontrar alguma que julgassem capaz de assumir ares de plausibilidade. Não posso dizer que
não haja vaidade nesta oração fúnebre que faço para mim mesmo, mas espero que não seja fora de propósito, essas são questões de fato que podem ser facilmente elucidadas
e verificadas. (Ess 615-6)


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PRESSUPOSIÇÕES FILOSÓFICAS

Hume é um empirista em dois sentidos. Em primeiro lugar, ele considera que a filosofia é uma ciência empírica. Essa é posição anunciada no subtítulo do Tratado:
"uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio em assuntos morais". O método experimental é o que está na base da sublime façanha de Newton (embora
a matemática tenha também muito a ver com isso), de modo que é razoável atribuir a Hume a ambição de ser o Newton das ciências morais (isto é, humanas). Seu procedimento,
em boa medida, concorda com essa declaração de intenções. Ele procura mostrar como o complexo detalhamento de nossa vida intelectual produz-se de acordo com as leis
de associação de seus elementos primitivos, os átomos de pensamento que ele chama impressões e idéias. Mas não é por essa psicologia cognitiva geral, baseada em
princípios associacionistas, que ele é usualmente considerado importante.
Hume é, em segundo lugar, um empirista em uma acepção mais familiar, ao sustentar que toda a matéria-prima de nossos pensamentos e crenças provém da experiência,
sensorial e introspectiva. Ele aplica esse princípio, de fato, como um critério de significação. Nossos pensamentos estão desprovidos de conteúdo, e nossas palavras,
de significado, a menos que estejam conectados com a experiência. Hume também sustenta que a maior parte de nosso conhecimento funda-se na experiência, ou - visto
que o único conhecimento certo de que dispomos é de natureza matemática e diz respeito a relações entre idéias -, que todas as nossas crenças prováveis têm esse
fundamento na experiência. Pode parecer que ele estava comprometido com sua concepção de que a filosofia é uma ciência


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empírica em função de sua idéia de que todas as crenças factuais são empíricas, mas uma coisa não se segue da outra. Em sua maioria, os modernos simpatizantes de Hume
diriam que a filosofia - a "verdadeira" filosofia - é conceitual, não factual, e está, tanto quanto a matemática, dedicada ao exame de relações entre idéias.
Hume afirma ousadamente que a filosofia é a primeira ciência, ou a ciência mestra. Todas as ciências, ou corpos de conhecimento admitido são obra do entendimento
humano. Portanto, o estudo do entendimento humano é anterior a todos os outros. Enquanto Newton, na visão de Hume, havia explicado o universo material por meio da
lei da atração gravitacional, seu objetivo é explicar o funcionamento da mente por uma semelhante lei de associação.
As matérias-primas do pensamento, que é o ofício do entendimento, são as impressões e suas cópias, as idéias, de graus variados de vivacidade. As impressões dividem-se
em impressões de sensação, tais como cores e sons, e de reflexão, tais como emoções e desejos. Elas podem também ser simples -homogêneas e não-analisáveis - ou complexas.
Toda idéia simples pressupõe uma impressão simples correspondente. Isso não é necessário no caso das idéias complexas: todos nós reconheceríamos um dragão se um
deles cruzasse nossa frente.
As idéias se distinguem das impressões por sua vivacidade menor. Se não têm nenhuma vivacidade, são idéias de imaginação. Se são mais vívidas e preservam sua "forma
e ordem", são idéias de memória. Do mesmo grau de vivacidade, parece, são as idéias de expectativa, que são a forma elementar de nossas crenças causais. A crença,
em contraste com o mero exercício da imaginação, é uma característica das idéias de memória e de expectativa. Ela não é uma idéia adicional dado que, se o fosse,
poderia ser adicionada a qualquer outra idéia, por mais fantástica que fosse, produzindo-se a crença nessa idéia. Um ponto relacionado, estabelecido em um estágio
posterior, é que não há idéia de existência. A idéia de uma coisa é o


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mesmo que a idéia dessa coisa enquanto existindo. Hume procuraria estabelecer as credenciais empíricas da existência dizendo que ela está presente em toda impressão,
dado que impressões envolvem a infalível consciência de alguma coisa (mesmo que seja apenas uma mancha colorida no campo visual privado).
Hume admite que seu princípio da dependência universal que as idéias mantêm com as impressões é imperfeito. Alguém poderia reconhecer um tom de azul mesmo que nunca
o tivesse visto antes, apenas seus vizinhos imediatos no espectro. Mas essa é uma admissão desnecessária. O tom faltante poderia ser explicado como uma idéia complexa
produzida a partir do tom de azul próximo a ele, e da idéia, empiricamente bem exemplificada, de "um pouco mais azul que".
Há, na explicação humana das impressões e idéias, equívocos muito mais graves que esse. Uma idéia, para ele, é uma figura ou imagem mental. É verdade que pensamos,
até certo ponto, por meio de imagens, mas pensamos também com palavras, e com diagramas e esquemas que são, de certo modo, similares a imagens, embora não se possa
dizer que sejam cópias. O ponto crucial é que todos esses itens são veículos de conceitos ou significados. É fácil pensar em imaginações (sonhos e alucinações, por
exemplo) que são muito mais vívidas do que a maior parte do que percebemos, para não dizer do que meramente lembramos.
A posição de Hume de que imagens são os veículos primários do pensamento pode ter sido auxiliada por sua adesão à recusa de Berkeley das "idéias abstratas". Uma
impressão é uma impressão de uma coisa particular, inteiramente determinada. Como pensá-la como uma impressão de uma espécie, à qual algum termo geral apropriadamente
se aplicaria? Locke julgou que abstraímos as qualidades comuns a todas as laranjas e usamos a idéia abstrata resultante para reconhecer uma laranja particular como
sendo uma laranja. Berkeley rejeitou isso, dado que diferentes laranjas têm qualidades incompatíveis. Usamos uma imagem particular para "representar"


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todos os membros da espécie, mas uma imagem qualquer pode representar um sem-número de espécies: laranjas, mas também coisas redondas, coisas alaranjadas etc. Hume
enfrentou essa dificuldade dizendo que, quando alocamos algo a uma espécie em razão de sua similaridade com alguma imagem padrão, temos à nossa disposição muitas
outras imagens que podemos trazer à mente para guiar nossa classificação na direção correta.
Finalmente, nessa primeira parte do Tratado, Hume antecipa, com uma recusa geral da legitimidade da idéia de substância, pontos que irá desenvolver mais extensamente
à frente, ao tratar de objetos materiais e pessoas. Não há impressão da qual a idéia de substância possa ser derivada. Tudo que percebemos é uma coleção de qualidades,
persistentemente associadas umas às outras. Se substância for definida como aquilo que é capaz de existência independente, então as únicas substâncias são as impressões
e idéias.
É evidente que todas as ciências têm, em maior ou menor grau, uma relação com a natureza humana, e que por mais que qualquer delas pareça afastar-se, sempre retornam
a ela em uma ou outra passagem. Mesmo a matemática, a filosofia natural e a religião natural são em alguma medida dependentes da ciência do homem, dado que caem
sob a alçada do conhecimento humano e são julgadas pelos poderes e faculdades deste... Se as ciências da matemática, filosofia natural e religião natural exibem
essa dependência do conhecimento do homem, que se pode esperar nas outras ciências, cuja conexão com a natureza humana é ainda mais íntima e profunda? (T XIX)

Não há nenhuma questão importante cuja resolução não esteja compreendida na ciência do homem; e nenhuma que possa ser decidida com alguma certeza antes de nos tornarmos
familiarizados com essa ciência. Ao pretender, portanto, explicar os princípios da natureza humana, estamos com efeito propondo um sistema completo das ciências,
construído sobre uma fundação que é a única sobre a qual elas podem se erguer com alguma segurança. E como a ciência do homem é a única fundação sólida das demais
ciências, a única fundação sólida que ela própria pode receber deve provir da experiência e da observação. (T xix-xx)


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Todas as percepções da mente humana resolvem-se em duas diferentes espécies que chamarei impressões e idéias. A diferença entre elas consiste nos graus de força
e vivacidade com que afetam a mente e abrem seu caminho até nosso pensamento e consciência. As percepções que adentram com maior força e violência podem ser denominadas
impressões, e por esse nome entendo todas as nossas sensações, paixões e emoções, ao aparecerem à alma pela primeira vez. Por idéias entendo as tênues imagens das
anteriores, presentes no pensamento e no raciocínio, assim como o são, por exemplo, todas as percepções excitadas pelo presente discurso, com exceção apenas daquelas
que provêm da visão e do tato, e do prazer ou desconforto imediatos que ele pode provocar. Acredito que não será necessário empregar muitas palavras para explicar
essa distinção. Cada um de nós, por si mesmo, perceberá prontamente a diferença entre sentir e pensar. (T 1)

Para cada idéia simples há uma impressão simples que a ela se assemelha, e para cada impressão simples, uma idéia correspondente. (T 3)

Uma questão muito importante foi levantada em relação a idéias abstratas ou gerais, a saber, se elas são gerais ou particulares na concepção que a mente tem delas.
Um grande filósofo [Berkeley] contestou a opinião corrente quanto a esse ponto e afirmou que todas as idéias gerais nada mais são que idéias particulares anexadas
a um certo termo, que lhes dá uma significação mais abrangente e as faz evocar, quando preciso, outros indivíduos semelhantes a elas. Como considero esta uma das
maiores e mais valiosas descobertas feitas nos últimos anos na república das letras, vou esforçar-me aqui para confirmá-la por meio de alguns argumentos, os quais,
segundo espero, vão colocá-la além de toda dúvida e controvérsia.
É evidente que, ao formar a maioria de nossas idéias gerais, se não mesmo todas elas, fazemos abstração de cada grau particular de qualidade ou quantidade, e que
um objeto não deixa de ser de uma certa espécie particular em virtude de alguma pequena mudança em sua extensão, duração ou outras propriedades. Pode-se pensar,
portanto, que há aqui um claro dilema quanto à natureza dessas idéias abstratas que têm dado aos filósofos tantos motivos de especulação. A idéia abstrata de um
homem representa homens de todos os tamanhos e qualidades, do que se conclui que


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ela só pode fazê-lo seja representando de imediato todos os possíveis tamanhos e qualidades seja não representando nenhum deles em particular. Ora, uma vez que se
considera absurdo defender a primeira alternativa, já que ela implica uma capacidade infinita da mente, tem-se decidido usualmente a questão em favor da segunda,
tomando-se nossas idéias abstratas como não representando nenhum grau particular de quantidade ou qualidade. Tentarei mostrar, porém, que essa inferência é errônea,
provando, em primeiro lugar, que é absolutamente impossível conceber qualquer quantidade ou qualidade sem formar uma noção precisa de seus graus; e, em segundo,
mostrando que, mesmo que a capacidade da mente não seja infinita, podemos formar de imediato uma noção de todas as possíveis qualidades e quantidades, pelo menos
de uma maneira que, embora muito imperfeita, pode servir a todos os propósitos da reflexão e conversação. (T 17-18)

Todos os objetos da razão ou investigação humanas podem ser naturalmente divididos em duas espécies, a saber, relações de idéias e questões de fato. Do primeiro
tipo são as ciências da geometria, álgebra e aritmética, e, em suma, toda afirmação que é ou intuitivamente ou demonstrativamente certa. Que o quadrado da hipotenusa
é igual ao quadrado dos dois lados é uma proposição que expressa uma relação entre essas grandezas. Que três vezes cinco é igual à metade de trinta expressa uma
relação entre esses números. Proposições dessa espécie podem ser descobertas pela simples operação do pensamento, independentemente do que possa existir em qualquer
parte do universo. Mesmo que jamais houvesse existido um círculo ou triângulo na natureza, as verdades demonstradas por Euclides conservariam para sempre sua certeza
e evidência.
Questões de fato, que são o segundo tipo de objetos da razão humana, não são apuradas da mesma maneira, e tampouco nossa evidência de sua verdade, por maior que
seja, é da mesma natureza que a precedente. O contrário de toda questão de fato permanece sendo possível, porque não pode jamais implicar contradição e a mente o
concebe com a mesma facilidade e clareza, como algo perfeitamente ajustável à realidade. Que o sol não nascerá amanhã não é uma proposição menos inteligível nem
implica mais contradição que a afirmação de que ele nascerá. (E 25-26)


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CAUSAÇÃO

A explicação que Hume deu da causação é, com justiça, a parte mais bem conhecida e mais influente de sua filosofia. Enquanto outras de suas principais afirmações
são no máximo interessantemente provocativas, esta continua sendo um forçoso objeto de preocupação para os filósofos. Hume trata a causação como uma relação entre
objetos antes de expor suas desconcertantes opiniões céticas sobre nosso conhecimento dos objetos, mas isso é porque ele considera que todas as nossas crenças sobre
questões de fato - à medida que avançam para além das impressões que estão imediatamente presentes à mente, como o fazem todas exceto as mais elementares - são produto
de inferências causais. Isso, rigorosamente, não é correto. O gosto doce que eu infiro que se pode obter da laranja que vejo não é a causa nem o efeito da laranja
vista. Mas continua sendo uma "existência distinta", que poderia ter deixado de ocorrer mesmo estando a laranja presente. A inferência factual, da qual a inferência
causal é o principal exemplo, é o liame universal entre o observado e o inobservado, entre o que percebemos que acontece e o que deve ter acontecido ou deve vir
a acontecer.
A característica de ser uma causa, ou um efeito, não é uma qualidade das coisas, como ser vermelha ou redonda. Se o fosse, seria uma propriedade de todas as coisas,
assim como a existência, e não teríamos nenhuma impressão dela. Ela é, de forma bastante simples, uma relação: um complexo, tríplice, composto de contigüidade no
espaço e tempo, sucessão e conexão necessária. Nem a contigüidade, nem a sucessão são, de fato, essenciais à causação. Pode haver ação à distância, e causa e efeito
podem ser simultâneos (Hume tem um


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argumento engenhoso porém inválido para provar que não podem). A questão não é importante e, em todo caso, os exemplos mais diretos de relações causais têm termos que
são contíguos e sucessivos. Não é importante porque contigüidade e sucessão são empiricamente não-problemáticas; temos impressões de ambas. A conexão necessária
é o indispensável embora perturbador. Por mais atentamente que examinemos um suposto exemplo de relação causal (a bola branca entrando em contato com a vermelha
e a vermelha partindo em direção à caçapa), não observamos uma conexão necessária entre elas, embora acreditemos que exista.
Hume propõe duas questões. Por que pensamos que todo evento deve ter uma causa e por que pensamos que cada causa particular deve ter o efeito que supomos que tem?
O princípio causal geral não é nem auto-evidente nem demonstrável. Com destreza típica, ele despacha algumas das tentativas de provas. Locke, por exemplo, disse
que se o princípio fosse falso, alguma coisa teria sido causada por nada, mas o nada é muito fraco para causar qualquer coisa. Mostra-se facilmente que essa antecipação
de Lewis Carroll envolve uma petição de princípio. Tampouco se pode provar que um evento particular qualquer é causa daquilo que se toma como seu efeito. Causa e
efeito são existências distintas; não há jamais contradição, portanto, em supor que a primeira ocorra e o segundo não.
Quando acreditamos que dois tipos de eventos estão causalmente relacionados, acreditamos que estão constantemente conjugados em todos os tempos com base em nossa
lembrança de que estiveram constantemente conjugados em nossa experiência. A inferência da conjunção limitada que observamos para a conjunção universal envolvida
em nossa crença causal assume que o inobservado assemelha-se ao observado ou, de forma mais vaga, que a natureza é uniforme. Mas esta suposição, assim como o princípio
geral, não é auto-evidente nem demonstrável. O inobservado é "distinto" do observado; ele pode tomar qualquer forma que seja, e continuar compatível com o observado
ser do jeito que é.


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Tampouco podemos estabelecê-la indutivamente com base na evidência de que até agora, pelo menos, o inobservado tem se assemelhado em larga medida ao observado. Fazer
isso seria argumentar em círculo, assumir a validade da suposição em sua própria prova.
Escondida em meio a uma discussão sobre probabilidade, está uma interessante distinção entre conclusões prováveis baseadas em evidência insuficiente (conheci cinco
holandeses todos eles gostavam de enguia) e aquelas baseadas em evidência contrária (conheci cem holandeses e noventa e cinco deles gostavam de enguia). Em qualquer
dos casos, ao encontrar um novo holandês, concluirei que ele provavelmente gosta de enguia, mas não vou afirmar nada mais que isso. No segundo caso, estou confiando
na proposição geral de que dezenove entre vinte holandeses gostam de enguia, que é o produto de uma inferência indutiva a partir da proporção de apreciadores de
enguia que observei. A crítica de Hume, portanto, não pode ser contornada argumentando-se que a natureza provavelmente é uniforme, ou que o inobservado irá provavelmente
assemelhar-se ao observado, se for este segundo tipo de probabilidade que estiver em questão. Pois essa argumentação só poderia estar baseada na constância das freqüências
ou proporções observadas. Mas o primeiro tipo de probabilidade, que Hume põe de lado como figurando apenas nos primeiros anos de vida, o que é certamente incorreto,
não está sujeito a essa objeção. Tem-se argumentado que a proposição "se todos os As conhecidos são Bs então é provável que (ou seja, há alguma evidência, mesmo
que insuficiente, de que) todos e quaisquer As são Bs" é demonstrável. É por causa do significado da palavra "evidência" que a proposição acima sobre As e Bs é verdadeira;
ela enuncia uma "relação abstrata de idéias", não uma questão de fato.
Convencido, em todo caso, de que a inferência indutiva que está envolvida em nossas crenças causais, e em todas as demais crenças factuais que avançam além das impressões
presentes, não pode ser racionalmente justificada, Hume


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volta-se para o problema de explicar por que recorremos a ela de forma tão inveterada. Sua resposta é que, por influência da associação, nossa experiência de uma conjunção
constante leva-nos, por uma questão de costume ou hábito, a ter uma vívida expectativa de uma vidraça se despedaçando quando vemos um tijolo voando em sua direção.
A impressão da qual se deriva nossa idéia de conexão necessária não é uma impressão de sensação, mas de reflexão, de nos sentirmos compelidos a esperar que a vidraça
se quebre ao perceber o tijolo voando em direção a ela.
Hume conclui sua discussão principal sobre o tema oferecendo duas definições de "causa", que são definições de duas coisas completamente diferentes, ainda que relacionadas.
A primeira é dada em termos da conjunção constante dos dois fatores, a segunda, em termos do fato de que a impressão de um dos fatores determina a mente a formar
uma idéia vívida do outro. A segunda dessas definições parece exprimir o que Hume pensa que ocorre em nossas mentes quando temos ou formamos uma crença causal; a
primeira, o que efetivamente acreditamos. Elas não podem ser ambas corretas. A primeira é o que acreditamos, a segunda explica a crença e exprime, talvez, tudo o
que nos é lícito acreditar.
Até o século XX, a maioria dos comentadores de Hume tomavam-no como, seja a sério, seja frivolamente, um completo cético acerca de crenças causais e indutivas (e
acerca de muitas outras coisas mais). Hume, entretanto, expõe "regras para julgar causas e efeitos", assume claramente como verdadeiro que todo evento tem uma causa
(ao insistir, por exemplo que os eventos frutos do acaso são, na realidade, todos eles efeitos de causas desconhecidas) e, é claro, entrega-se, ele próprio, a um
bom número de inferências indutivas ao aplicar o "método experimental" ao funcionamento da mente humana.

Todos os raciocínios referentes a questões de fato parecem fundar-se na relação de causa e efeito. É somente por meio dessa relação



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que podemos ir além da evidência de nossa memória e nossos sentidos. Se perguntássemos a um homem por que ele acredita em uma questão de fato qualquer que
não está presente - por exemplo, que seu amigo acha-se no interior, ou na França, ele nos daria uma razão, e essa razão seria algum outro fato, como uma carta recebida
desse amigo, ou o conhecimento de seus anteriores compromissos e resoluções. Um homem que encontre um relógio ou qualquer outra máquina em uma ilha deserta concluirá
que homens estiveram anteriormente nessa ilha. Todos os nossos raciocínios relativos a fatos são da mesma natureza. E aqui se supõe invariavelmente que há uma conexão
entre o fato presente e o fato que dele se infere. Se nada houvesse que os ligasse, a inferência seria completamente incerta. (E 26-27)

Assim, se quisermos nos convencer quanto à natureza dessa evidência que nos dá garantias sobre questões de fato, devemos investigar como chegamos ao conhecimento
de causas e efeitos.
Arrisco-me a afirmar, a título de uma proposta geral que não admite exceções, que o conhecimento dessa relação não é em nenhum caso alcançado por meio de raciocínios
a priori, mas provém inteiramente da experiência, quando descobrimos que certos objetos particulares acham-se constantemente conjugados uns aos outros. Apresente-se
um objeto a um homem dotado das mais poderosas capacidades naturais de raciocínio e percepção - se esse objeto for algo de inteiramente novo para ele, mesmo o exame
mais minucioso de suas qualidades sensíveis não lhe permitirá descobrir nenhuma de suas causas ou efeitos. Adão, ainda que supuséssemos que suas faculdades racionais
estivessem inteiramente perfeitas desde o início, não poderia ter inferido da fluidez e transparência da água que ela o sufocaria, nem da luminosidade e calor do
fogo que este iria consumi-lo. Nenhum objeto revela jamais, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, nem as causas que o produziram, nem os efeitos que dele provirão;
e nossa razão tampouco é capaz de extrair, sem auxílio da experiência, qualquer conclusão referente à existência efetiva de coisas ou questões de fato. (E 27)

Lancemos, portanto nosso olhar sobre dois objetos quaisquer, que chamaremos causa e efeito, e viremo-los de todos os lados, a fim de encontrar aquela impressão que produz uma idéia de tão


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grandiosa importância. Percebo, à primeira vista, que não devo procurar por ela em nenhuma das qualidades particulares dos objetos, dado que, para qualquer uma dessas qualidades que eu determine, encontro algum objeto que não a possui e, contudo, cai sob a denominação causa ou efeito. E não há, na verdade, nada que exista, seja internamente ou externamente, que não deva ser considerado ou uma causa ou um efeito, embora seja claro que não há nenhuma qualidade singular que pertença universalmente a todos os seres e lhes dê o direito a essa denominação.
Assim, a idéia de causação deve derivar-se de alguma relação entre objetos, e é essa relação que devemos agora esforçar-nos por descobrir. Vejo, em primeiro lugar, que quaisquer objetos considerados como causas ou efeitos são contíguos, e que nada pode operar em um tempo ou lugar distante, ainda que minimamente, do tempo ou lugar em que existe. Embora objetos distantes possam algumas vezes parecer atuar uns sobre os outros, o exame comumente revela que estão ligados por uma cadeia de
causas que são contíguas umas às outras e aos objetos distantes; e quando em algum caso particular não conseguimos descobrir essa conexão, presumimos ainda assim
que ela existe. Podemos, portanto, considerar a relação de contigüidade como essencial para a relação de causação, ou pelo menos podemos supô-la assim de acordo
com a opinião geral, até que possamos encontrar uma ocasião mais apropriada para esclarecer essa questão, examinando quais objetos são ou não são suscetíveis de
justaposição e conjunção.
A segunda relação que observo como essencial para causas e efeitos não é tão universalmente admitida, estando sujeita a alguma controvérsia. Ela é a de prioridade
no tempo da causa em relação ao efeito. Alguns alegam que não é absolutamente necessário que uma causa deva preceder seu efeito, mas que qualquer objeto ou ação,
no exato primeiro instante de sua existência, pode exercer sua qualidade produtiva e dar origem a outro objeto ou ação perfeitamente contemporâneos consigo mesmo.
Mas, além do - ato de que a experiência na maioria dos casos parece contradizer essa opinião, podemos estabelecer a relação de prioridade por uma espécie de inferência
ou raciocínio. É um principio estabelecido tanto em filosofia natural quanto em filosofia moral que um objeto que exista por um certo tempo em sua plena perfeição
sem produzir um outro, não é sua única causa, mas é assistido por algum outro principio que o desloca de seu estado de inatividade e faz exercer aquela energia que
secretamente possuía. Ora, se alguma causa for perfeitamente contemporânea a seu efeito, é certo,


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de acordo com esse princípio, que todos eles devem sê-lo, dado que qualquer um deles que retarde sua operação por um único momento, não se exerce naquele exato
tempo individual no qual poderia ter operado, e portanto não é propriamente causa. A conseqüência disso seria nada menos que a destruição daquela sucessão de causas
que observamos no mundo, e, na verdade, a completa aniquilação do tempo. Pois se uma causa fosse contemporânea com seu efeito, e esse efeito com seu efeito, e assim
por diante, é claro que não poderia haver nenhuma sucessão, e todos os objetos deveriam ser coexistentes.
Se este argumento parecer satisfatório, está tudo bem. Se não, peço ao leitor permitir-me a mesma liberdade, que usei no caso anterior, de supor que as coisas são
assim. Pois ele descobrirá que o assunto não tem muita importância.
Tendo assim descoberto, ou assumido, que as duas relações de contigüidade e sucessão são essenciais para a existência de causas e efeitos, sinto que cheguei a um
limite e que a consideração de qualquer caso singular de causa e efeito não me permite avançar mais. O movimento de um corpo é tomado, na ocasião do impulso, como
a causa do movimento de outro. Ao considerarmos com a máxima atenção esses objetos, vemos apenas que o primeiro corpo se aproxima do outro, e que seu movimento precede
o movimento do outro, embora sem nenhum intervalo perceptível. É inútil atormentarmo-nos com pensamentos e reflexões adicionais sobre o assunto. Não podemos ir mais
longe a partir da consideração deste caso particular. (T 75-77)

Temos, portanto de proceder como aqueles que, estando à procura de alguma coisa oculta e não a encontrando no lugar em que esperavam, vagueiam por todas as áreas vizinhas, sem nenhum pIano ou propósito definido, na esperança de que sua boa sorte vá finalmente guiá-los para o que procuram. É necessário que abandonemos a inspeção direta dessa questão concernente à natureza da conexão necessária que participa de nossa idéia de causa e efeito, e esforcemo-nos para descobrir algumas outras questões cujo exame pode talvez proporcionar uma pista para esclarecer a presente dificuldade. Dessas questões, há duas que passarei a examinar, a saber:
Primeiro, por que razão declaramos necessário que tudo cuja existência tem um começo deva ter também uma causa?
Segundo, por que concluímos que tais e tais causas particulares devam necessariamente ter tais e tais efeitos particulares, e qual


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é a natureza dessa inferência que fazemos das primeiras aos segundos, e da crença que nela depositamos? (T 77-8)

Não se pode demonstrar que é necessária uma causa para cada nova existência ou nova modificação de existência sem mostrar, ao mesmo tempo, a impossibilidade de que
alguma coisa possa começar a existir sem algum princípio produtivo; e caso esta última proposição não possa ser provada, não poderemos esperar conseguir provar a
primeira. Ora, é possível convencermo-nos de que essa última proposição é totalmente incapaz de receber uma prova demonstrativa observando que, já que todas as idéias
distintas são separáveis umas das outras e já que as idéias de causa e efeito são evidentemente distintas, é fácil para nós conceber um objeto qualquer como inexistente
nesse momento e existente no momento seguinte sem juntar-lhe a idéia distinta de uma causa ou princípio produtivo. Assim, a separação entre a idéia de uma causa
e a de um início de existência é claramente possível para a imaginação, e, conseqüentemente, a separação real desses objetos é possível à medida que não implica
contradição nem absurdo, e é, portanto incapaz de ser refutada por qualquer raciocínio a partir de meras idéias, sem o que é impossível demonstrar a necessidade
de uma causa. (T 79-80)

Só a experiência, portanto, permite-nos inferir a existência de um objeto a partir da existência de um outro. A natureza da experiência é esta: lembramo-nos de ter
observado freqüentes exemplos da existência de uma espécie de objetos, lembramo-nos também de que os indivíduos de uma outra espécie de objetos sempre os acompanharam
e sempre existiram segundo uma ordem regular de contigüidade e sucessão com relação a eles. Lembramo-nos assim de ter visto essa espécie de objeto que denominamos
chama, e de ter sentido essa espécie de sensação que denominamos calor. Temos igualmente a lembrança da constante conjunção desses objetos em todos os casos passados.
E, sem cerimônias, chamamos em causa a um efeito a outro, e, da existência de um, inferimos a existência do outro. Em todos os casos que nos instruem sobre a conjunção
de causas e efeitos particulares, tanto umas como outros foram percebidos pelos sentidos e lembrados, mas nos casos em que raciocinamos acerca deles, apenas um é
percebido ou lembrado, sendo o outro suprido em conformidade com nossa experiência passada.


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Avançando dessa maneira, descobrimos insensivelmente uma nova relação entre causa e efeito lá onde menos a esperávamos, e enquanto estávamos inteiramente ocupados com outro assunto. Essa relação é sua conjunção constante. A contigüidade e a sucessão não são suficientes para fazer-nos julgar que dois objetos quaisquer são causa e efeito, a menos que percebamos que essas duas relações são preservadas em vários casos. Vemos agora a vantagem de ter abandonado o exame direto dessa relação para descobrir a natureza daquela conexão necessária, que forma uma parte tão essencial dela. (T 86-7)

Tendo assim explicado o modo pelo qual raciocinamos para além de nossas impressões imediatas e concluímos que tais e tais causas particulares devem ter tido tais e tais efeitos particulares, devemos agora retroceder sobre nossos passos para examinar a questão que primeiramente nos ocorreu e que abandonamos pelo caminho, a saber: Qual é nossa idéia de necessidade quando dizemos que dois objetos estão necessariamente conectados um ao outro? Sobre esse ponto repito o que já tive freqüentemente ocasião de observar: que, como não temos nenhuma idéia que não seja derivada de uma impressão, devemos encontrar alguma impressão que dê origem a essa idéia de necessidade.
(T 155)

[Devemos] repetir para nós mesmos que a simples observação de dois objetos ou ações quaisquer, por mais relacionados que sejam, jamais nos dá qualquer idéia de poder ou de uma conexão entre eles; que essa idéia surge da repetição de sua união; que a repetição nem revela nem causa coisa alguma nos objetos, mas tem uma influência apenas sobre a mente, pela transição habitual que produz; que essa transição habitual é, portanto, o mesmo que o poder ou a necessidade, que são conseqüentemente qualidades das percepções, não dos objetos, e são sentidas internamente pela alma, não percebidas externamente nos corpos. (T 166)

Podemos definir uma causa como "Um objeto precedente e contíguo a outro, quando todos os objetos semelhantes ao primeiro exibem essas mesmas relações de precedência
e contigüidade com os objetos semelhantes ao segundo". Se essa definição for julgada imperfeita porque recorre a objetos estranhos à causa, podemos substituí-Ia
por esta outra: "Uma causa é um objeto precedente e contíguo a outro, e tão unido a este que a idéia de um leva a mente a formar a idéia do outro, e a impressão
de um, a formar uma idéia mais vívida do outro". (T 170)


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COISAS MATERIAIS

Tendo argumentado que todas as crenças em questões de fato - à parte nossa consciência imediata de nossas presentes impressões e, presumivelmente, as lembranças destas - Fundadas em crenças causais, Hume tentou mostrar que essas crenças não estão justificadas. Não estão justificadas pela experiência, dado que não temos nenhuma impressão de conexão necessária, nem pela razão, dado que o contraditório de qualquer princípio causal ou indutivo geral, ou de qualquer particular crença causal, é sempre possível. Tudo o que se pode esperar fazer é explicar como chegamos a ter as crenças causais que temos, e a fazer as previsões às quais elas nos conduzem; a saber, pela experiência da conjunção constante que instila em nós o hábito da expectativa.
A mesma estratégia é bastante empregada em suas explicações de nossa crença em um mundo externo de coisas materiais, e nossa crença em nós mesmos enquanto existências
continuadas. Ele abre uma discussão das coisas materiais distinguindo duas questões. Uma delas, a questão sobre "se há ou não há corpos" é, ele diz, "fútil levantar".
Contudo, "podemos muito bem perguntar que causas induzem-nos a acreditar na existência de corpos?". Acreditar na existência de corpos ou coisas materiais é acreditar
em algo que tem uma existência distinta e continuada, alguma coisa que existe em ocasiões nas quais não temos impressões dela e que, portanto, existe independentemente
de nós. Supor que os sentidos nos revelam a existência de coisas despercebidas (ou de segmentos despercebidos de sua história) é uma patente contradição. E essa
crença tampouco pode estar baseada em uma inferência causal a partir de nossas impressões, que é o que isso significa


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nessas circunstâncias, como na "filosofia moderna" de Locke. Não podemos experimentar uma conjunção constante entre D percebido e o impercebido, muito menos comparar
um com o outro para descobrir a semelhança (parcial) que Locke declara existir entre eles.
A questão "se há ou não há corpos" resulta "fútil" em dois sentidos. Dado que nem a experiência nem a razão podem respondê-la, não há resposta justificada que pudéssemos
oferecer à questão. Mas Hume também diz que "a natureza não deixou isso à [nossa] escolha e sem dúvida considerou o assunto de demasiada importância para ser confiado
a nossos incertos raciocínios e especulações". Não podemos justificar nossa crença em um mundo de coisas materiais distintas e continuadas, mas tampouco podemos
evitar essa crença. O que podemos fazer é explicar como ela se impõe a nós. A explicação reside na constância e coerência exibidas pelas impressões dos sentidos.
Levantamos da mesa para olhar pela janela e, quando retomamos, coisas exatamente iguais às coisas que antes apareciam sobre a mesa lá aparecem mais uma vez (constância).
O fogo que ardia na lareira quando saímos para fazer um longo telefonema está agora reduzido a brasas, do mesmo modo que outros fogos observados sem interrupção
foram vistos extinguir-se progressivamente em outras ocasiões (coerência).
A concepção ordinária, "vulgar", do assunto imagina ou "finge" percepções não percebidas para preencher as lacunas uniformes ou graduais. Isso é uma contradição,
mas a mente irrefletida passa por cima disso. O "sistema dos filósofos" (isto é, de Locke) é ainda pior, dado que supõe a existência de coisas que não estão causalmente
relacionadas, nem se assemelham, às impressões apresentadas como testemunho de sua existência.

Podemos muito bem perguntar que causas induzem-nos a acreditar na existência de corpos? Mas é fútil perguntar se há ou não há corpos.

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Esse é um ponto que devemos assumir como certo em todos os nossos raciocínios.
O assunto, portanto, de nossa presente investigação, concerne às causas que nos induzem a acreditar na existência dos corpos, e abro minha discussão desse tópico
com uma distinção que à primeira vista pode parecer supérflua, mas que contribuirá em muito para o perfeito entendimento do que segue. Devemos examinar separadamente
estas duas questões que são comumente confundidas, a saber, por que atribuímos uma existência continuada a objetos, mesmo quando não estão presentes à sensação;
e por que supomos que eles têm uma existência distinta da mente e da percepção? Sob esta última rubrica compreendo sua situação bem como suas relações, sua posição
externa bem como a independência de sua existência e operação. (T 186-7)
É evidente que nossos sentidos não nos oferecem suas impressões como imagens de algo distinto, ou independente, e externo; porque o que nos transmitem não é nada
mais que uma percepção singular, e nunca nos dão a menor sugestão de algo além dela. Uma percepção singular não pode jamais produzir a idéia de uma dupla existência,
a não ser por influência da razão ou da imaginação. Quando a mente olha além do que lhe aparece imediatamente, suas conclusões não podem ser creditadas aos sentidos,
e ela está certamente olhando além quando infere, de uma percepção singular, uma existência dupla, e supõe relações de semelhança e causação entre elas. (T 189)

Podemos observar, então, que não é nem em virtude do caráter involuntário de certas impressões, como comumente se supõe, nem de sua grande força e impetuosidade,
que atribuímos a elas uma realidade e uma existência continuada que recusamos a outras que são voluntárias ou tênues. Pois é evidente que nossas dores e prazeres,
nossas paixões e afecções, que nunca supomos como existindo fora de nossa percepção, são tão involuntárias quanto as impressões de figura e extensão, cor e som,
que supomos serem entes permanentes. O calor de uma chama, quando moderado, é tomado como existindo na própria chama, mas a dor que ele causa ao nos aproximarmos
não é considerada como tendo qualquer existência exceto na percepção.
Tendo rejeitado essas opiniões vulgares, devemos procurar alguma outra hipótese que nos permita descobrir quais são as qualidades peculiares de nossas percepções
que nos fazem atribuir-lhes uma existência distinta e continuada.


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Após um breve exame, descobriremos que todos os objetos aos quais atribuímos uma existência continuada têm uma peculiar constância, que os distingue das impressões
cuja existência depende de nossas percepções. Estas montanhas, casas e árvores que caem agora sob meu olhar, sempre apareceram a mim na mesma ordem; e quando deixo
de vê-Ias porque fechei os olhos ou voltei a cabeça, verifico logo em seguida que elas retomam sem a menor alteração. Minha cama e minha mesa, meus livros e papéis,
apresentam-se da mesma maneira uniforme, e não se modificam com a interrupção de minha visão ou percepção deles. O mesmo ocorre com todas as impressões cujos objetos
são tomados como tendo uma existência externa, e não ocorre com nenhuma outra impressão, seja branda ou violenta, voluntária ou involuntária.
Essa constância, entretanto, não é tão perfeita que não admita exceções muito consideráveis. Corpos muitas vezes mudam suas posições e qualidades, e, após uma pequena
ausência ou interrupção, podem tomar-se dificilmente reconhecíveis. Mas aqui se observa que, mesmo nessas mudanças, eles preservam uma coerência, e mantêm uma dependência
regular uns dos outros, que é o Fundamento de uma espécie de raciocínio a partir da causação e produz a opinião de sua existência continuada. Quando retorno à minha
câmara após uma ausência de uma hora, não encontro minha lareira na mesma situação em que a deixei, mas já estou acostumado, em outras ocasiões, a observar uma alteração
semelhante produzida em um período equivalente, quer eu esteja presente ou ausente, próximo ou distante. Esta coerência em suas mudanças é, portanto, uma das características
dos objetos externos, assim como sua constância. (r 194-5)


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O EU

O eu, considerado como algo dotado de uma contínua ao longo do tempo, também é vítima do estilo bidentado de ataque característico de Hume. Sei que estou tendo agora certas experiências e lembro-me de ter tido outras. Mas não tenho nenhuma impressão de um item imutável ao qual todas essas coisas pertençam. Dado que esse teria de ser um conteúdo inalterável e invariante de minha consciência, ele não poderia se fazer sentir, e teria o mesmo caráter empiricamente evasivo que tem a existência.
De fato, argumenta Hume, sempre que olho mais atentamente para mim mesmo, tudo que encontro é uma seqüência mais ou menos caótica de percepções, impressões e idéias
de sensação e de reflexão, sentimentos e pensamentos particulares.
A razão, por sua vez, requer tão pouco quanto a experiência essa suposição de um portador persistente de minha identidade através do tempo, um suporte ao qual inserissem
minhas experiências. Cada experiência ou "percepção" é uma existência distinta, da qual não se segue necessariamente a de nenhuma outra coisa. Esta é, de todas as
ousadas eliminações realizadas por Hume, a que os filósofos têm julgado a mais difícil de engolir. Não está ele refutando a si próprio quando diz "de minha parte,
quando entro no mais profundo disso que chamo eu mesmo, sempre tropeço em uma ou outra percepção particular?" Que é essa coisa que está fazendo a entrada? J.S. Mill
e outros julgaram impossível que uma simples série pudesse ter consciência de si mesma como uma série. Contra isso se poderia argumentar que um estado presente de
consciência poderia conter, ou ser, uma reminiscência de estados anteriores de consciência, a ele de algum modo relacionados.


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E, na verdade, tem parecido a muitos, particularmente a Locke, que a memória, no sentido de uma lembrança pessoal direta, é a relação que conecta um feixe temporalmente
espalhado de experiências ou estados mentais em um eu, mente ou pessoa, contínuo e singular. Hume rejeitou essa teoria, fiando-se no argumento de Butler de que,
como Hume o expõe, a memória não constitui a identidade pessoal, mas a descobre. Não posso julgar que uma certa idéia é uma idéia de memória e não de imaginação
a menos que já tenha descoberto primeiramente que a experiência supostamente lembrada era uma experiência minha.
Hume permaneceu insatisfeito com a explicação que ele ofereceu no Tratado para a relação que une uma série de experiências em um eu, a saber, que ela é um composto
de semelhança e causação. Talvez o argumento de Butler seja um pouco brusco demais. Decidir que alguma experiência passada é minha e que a idéia que tenho dela é
uma idéia de memória não são duas coisas das quais a primeira deva preceder a segunda; parecem muito mais ser uma e a mesma coisa.
Hume tem um longo e intrincado argumento sobre a imaterialidade da alma, uma tese de teólogo que ele maldosamente assimila ao monismo de Espinosa. O argumento depende
da suposição de que a alma é uma substância imaterial. Mas a alma ou o eu, mesmo se não concebidos como uma substância, mas como uma série, podem ser tomados como
não-materiais, como o próprio Hume parece fazer, e isso deixa aberta a possibilidade de sua sobrevivência após a morte do corpo. Ele retoma o problema em um atraente
ensaio. Se nossas mentes são feitas de algum estofo espiritual, por que esse estofo não poderia compor diversas mentes, do mesmo modo que a matéria entra na composição de diversos corpos? Além disso, "a alma, se imortal, existia antes de nosso nascimento, e se essa existência anterior nada teve a ver conosco, tampouco o terá a seguinte".
Há filósofos que imaginam que estamos a todo instante intimamente conscientes disso que chamamos nosso eu; que
sentimos


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sua existência e sua continuidade de existência, e que estamos certos, para além de qualquer comprovação demonstrativa de sua perfeita identidade e simplicidade.
A sensação mais forte, a mais impetuosa paixão, dizem eles, em vez de desviar-nos dessa concepção, apenas a firmam mais intensamente e fazem-nos considerar a influência
que exercem sobre o eu, pela dor ou prazer que produzem. Buscar uma prova adicional disso seria enfraquecer sua evidência, pois nenhuma prova pode ser derivada de
algum fato do qual estejamos tão intimamente conscientes, e nem haveria nada de que pudéssemos estar certos se viéssemos a duvidar disso.
Infelizmente, todas essas confiantes asserções são contrárias à própria experiência que é invocada em seu favor, além de não dispormos de qualquer idéia do eu segundo
a maneira aqui explicada, Pois de que impressão poderia essa idéia ser derivada? É impossível responder a essa questão sem incorrer em patente absurdo e contradição,
e, contudo, é uma questão que deve necessariamente ser respondida se quisermos que a idéia do eu apareça como clara e inteligível. Deve haver uma impressão determinada
para dar origem a cada idéia real; mas o eu, ou pessoa, não é uma impressão determinada, mas aquilo a que nossas diversas impressões e idéias supostamente têm uma
referência. Se há alguma impressão que dá origem à idéia do eu, essa impressão deve continuar invariavelmente a mesma ao longo de todo o curso de nossas vidas, pois
supõe-se que essa é a maneira pela qual o eu existe. Mas não há nenhuma impressão que seja constante e invariável. Dor e prazer, tristeza e alegria, paixões e sensações
sucedem-se umas às outras e nunca existem todas ao mesmo tempo. Portanto, a idéia do eu não pode ser derivada de nenhuma dessas impressões, nem de qualquer outra;
e, conseqüentemente, tal idéia não existe. (T 251-2)

Arrisco-me a afirmar que todas as demais pessoas nada mais são que um feixe ou coleção de diferentes percepções sucedendo-se umas às outras com inconcebível rapidez,
em perpétuo fluxo e movimento. Nossos olhos não podem girar em suas órbitas sem que mudem nossas percepções. Nosso pensamento é ainda mais variável que a visão,
e todos os outros sentidos e faculdades contribuem para essa mudança, não havendo um único poder da alma que permaneça inalteravelmente o mesmo sequer por um instante.
A mente é uma espécie de teatro no qual diversas percepções fazem sucessivamente sua aparição, passam, repassam,


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esvaem-se e misturam-se em uma infinita variedade de posturas e situações. Nela não há, propriamente, nem simplicidade em um mesmo momento nem identidade em momentos
diversos, seja qual for a propensão natural que tivermos para imaginar essa simplicidade e identidade. A comparação com o teatro não nos deve iludir: são as sucessivas
percepções, e só elas, que constituem a mente, e não temos a mais remota noção do lugar em que essas cenas são representadas nem dos materiais que entram em sua
composição. (T 252-3)

Como apenas a memória nos informa da continuidade e extensão dessa sucessão de percepções, ela deve ser considerada, principalmente por essa razão, como a origem
da identidade pessoal. Se não tivéssemos memória, não teríamos qualquer noção de causação, nem, conseqüentemente, dessa cadeia de causas e efeitos que constitui
nosso eu ou nossa pessoa. Mas uma vez que tenhamos adquirido essa noção de causação a partir da memória, podemos estender essa mesma cadeia de causas, e conseqüentemente
a identidade de nossas pessoas, para além de nossa memória, e podemos compreender ocasiões, circunstâncias e ações que esquecemos completamente, mas supomos, em
geral, que existiram. Pois quão poucas, dentre nossas ações, são aquelas das quais temos alguma lembrança? Quem pode dizer-me, por exemplo, quais foram seus pensamentos
e ações em 10 de janeiro de 1715, 11 de março de 1719 e 3 de agosto de 1733? Ou será que ele vai afirmar que, dado que esqueceu-se totalmente dos incidentes ocorridos
nesses dias, seu eu presente não é a mesma pessoa que o eu daquela época, subvertendo com isso todas as concepções mais bem estabelecidas sobre identidade pessoal?
Nesta perspectiva, portanto, não é bem que a memória produza a identidade pessoal, mas sim que a descobre, ao mostrar-nos a relação de causa e efeito entre nossas
diferentes percepções. Cabe àqueles que afirmam que a memória produz inteiramente nossa identidade pessoal explicar como podemos estender desse modo nossa identidade
para além de nossa memória. (T 261-2)


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CETICISMO

Como já mencionado. Hume foi tradicionalmente, como um cético extremado, alguém que solapou as pretensões de validade de todo o corpo de nossas crenças no mundo
exterior, no eu e na causação. Mais recentemente tem ganhado terreno a idéia de que ele estabeleceu ceticamente os limites da justificação racional, que ele voltou
a razão sobre si mesma para mostrar que essas crenças são não obstante naturais, instintivas e inevitáveis. Ao explicar de fato, a ter as crenças que temos, ele
mostra que estamos constituídos de tal modo que não nos é possível evitar ter essas crenças. Afinal, a menos que houvesse algo a dizer em favor delas, que pensa
ele estar fazendo ao explicá-las, dado que explicação consiste em subsumir coisas a leis causais?

A interpretação de Hume é dificultada por uma espécie de oscilação entre duas posturas que ele assume ao contemplar os resultados de sua própria investigação. Em
uma delas, ele se mostra deprimido e sem esperança diante desses resultados, sem saber para onde voltar-se. Em outra, mais bem-humorada, ele observa que, tão pronto
mergulhamos novamente em nossa vida quotidiana, os danos infligidos pela razão a si mesma desvanecem-se e retomamos confortavelmente a nossos hábitos de crença costumeiros
e naturais. Não devemos procurar algum suporte externo para esses hábitos, essa é uma missão fadada a um deprimente fracasso. Devemos perseverar neles com moderação,
conscientes de que não há certeza fora do reino das relações abstratas de idéias, ajustando-os perifericamente pela adesão aos "princípios estabelecidos do entendimento"
e a recusa às formas incultas e supersticiosas de formação de crenças.


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Filósofos analíticos do século XX (antecipados por J. S. Mill) tomaram os aspectos de nossa experiência que Hume usou para explicar nossas crenças acerca de objetos, eus e causas como - apesar das aparências - características definidoras do que essas crenças realmente significam. Esses filósofos definiram objetos como sistemas de impressões, reais e possíveis, cuja estrutura é indicada pelos fragmentos constantes e coerentes efetivamente experimentados (fenomenalismo); os eus como uma série inter-relacionada de eventos mentais (a teoria do "feixe") , e a causalidade como sucessão regular (teoria da regularidade). Isso é menos chocante, enquanto ceticismo, que a posição de Hume. Mas essa estratégia deixa-nos com o que parece ser um resíduo significativamente reduzido daquilo em que originalmente acreditávamos.
E o que é mais: no caso de objetos e causas, dado que a crença nessas entidades, mesmo nesta forma atenuada, é uma inferência aberta e generalizada a partir de uma
evidência parcial, ela permanece exposta à dúvida quanto à indução.
Tem sido sugerido que Hume estava realmente mais interessado nos tópicos práticos, concretos, dos últimos livros do Tratado do que na filosofia teórica do Livro
I; mais interessado em moral, política e psicologia do que na teoria do conhecimento. Como exibição pirotécnica dos limites de nossas mentes enquanto fonte de conhecimento
seguro, seu propósito era neutralizar o dogmatismo naqueles domínios de crença em que as paixões tinham forte participação.

Essa dúvida cética, tanto com respeito à razão como aos sentidos, é uma doença que nunca pode ser radicalmente curada mas sempre irá acometer-nos a cada momento,
por mais que a expulsemos e julguemos, às vezes, estar inteiramente livres dela. Não é possível defender, em nenhum sistema, nem nosso entendimento nem nossos sentidos,
e apenas os desmascaramos ainda mais quando tentamos assim justificá-los. Visto que a dúvida cética surge naturalmente de uma reflexão profunda e intensa sobre esses
assuntos, ela aumenta cada vez mais à medida que levamos mais longe nossas reflexões, quer em oposição, quer em conformidade


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com ela. Só a negligência e a desatenção podem prover-nos de algum remédio. Por essa razão, confio neles inteiramente e tomo como certo, seja qual for a opinião
do leitor no momento presente, que daqui a uma hora ele estará persuadido tanto de que há um mundo externo como um interno. (T 218)

A intensa contemplação dessas múltiplas contradições e imperfeições na razão humana tanto afetou-me e inflamou meu cérebro que estou pronto a rejeitar toda crença e raciocínio, e não posso considerar nenhuma opinião como mais provável ou plausível que qualquer outra. Onde estou eu, ou o que sou? De que causas derivo minha existência e a que condição irei retornar? De quem devo solicitar favores, e de quem devo temer a cólera? Que seres me circundam? Quem posso de algum modo influenciar, ou pode de algum modo influenciar-me? Fico perplexo com todas essas questões e começo a sentir-me na mais deplorável das condições concebíveis, envolto na mais profunda escuridão e totalmente privado do uso de todos os membros e faculdades.
Mas ocorre felizmente que, sendo a razão incapaz de dissipar essas nuvens, a própria Natureza basta para esse propósito e cura-me dessa tristeza e delírio filosóficos,
quer relaxando essa inclinação da mente, quer por meio de alguma ocupação e impressão vívida de meus sentidos que obliteram todas essas quimeras. Faço minha refeição,
jogo uma partida de gamão, converso e divirto-me com meus amigos, e quando, após uma distração de três ou quatro horas, retorno a essas especulações, elas me parecem tão frias, e forçadas, e ridículas, que não me animo a penetrar nelas nOVamente. (T 268-9)


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M0RALIDADE E AS PAIXÕES

Hume dedicou às paixões o segundo dos três livros do Tratado. Nisto ele estava seguindo o exemplo de seus grandes predecessores sistemáticos, Descartes, Hobbes e Espinosa. Mas enquanto o procedimento destes era analítico, quase algébrico, um trabalho de classificação de sentimentos e emoções seguido de uma definição do conjunto deles em termos de itens elementares como prazer, dor e desejo, o de Hume era mais descritivo, e mais explicativo do ponto de vista psicológico. Embora cheia de
idéias brilhantes, sua exposição é em geral aborrecida e tediosa; uma balbúrdia de especulação associacionista, que alguns insights luminosos aliviam ocasionalmente.
Ela nunca provocou o mesmo interesse e discussão que foram estimulados por seus trabalhos sobre o conhecimento e a moralidade.
Há, não obstante, três coisas importantes nessa exposição. A primeira é um conjunto de distinções amplas e gerais no campo que ela cobre. As paixões são divididas
em violentas e calmas (o que mostra que ele não entende por "paixão" o mesmo que nós entendemos, a saber, uma emoção violenta), em diretas (isto é, naturais ou instintivas)
e indiretas, e em fortes e fracas. Uma paixão calma (como a prudência) pode superar uma paixão violenta (como a luxúria) e mostrar-se, assim, como mais forte que
esta. Em segundo lugar, há um tratamento interessante e influente do problema da liberdade da vontade. O terceiro ponto, de maior importância para a subseqüente
teoria da moralidade, é sua insistência de que a razão é "inerte", que ela não pode nunca, por si só e sem o auxílio da paixão, mover-nos à ação.
A aceitação por Hume na prática, apesar de todas as suas dúvidas teóricas, da lei da causação universal, é indicada por


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sua afirmação de que nossas ações são causadas por nossas paixões, da mesma forma e com a mesma abrangência que eventos naturais são o produto de causas naturais.
Isso exclui a "liberdade da indiferença". Mas a inexistência de ações imotivadas não é algo que nos deva preocupar muito. É comum sentirmo-nos livres em nossas ações,
e isso ocorre porque algumas vezes agimos sem coerção ou constrangimento, isto é, agimos de acordo com nossos desejos. Esse é o tipo de liberdade a que devemos dar
atenção, pois só é razoável atribuir-nos responsabilidade por ações que tivermos causado, elas serão suscetíveis das sanções de louvor ou repreensão, recompensa
ou punição.
Hume proclama o caráter inerte da razão em sua notável declaração "a razão é, e só deve ser, a escrava das paixões". "Só deve ser" é um floreio retórico irrelevante.
O mesmo vale para "escrava", que deve ser entendida como "serve como instrumento para a satisfação de", bem-como "paixão", sentido que hoje damos à palavra. Convicções
morais movem-nos à ação; a razão, sozinha, não é capaz de fazê-lo; por tanto, convicções morais não são produto da razão. Um bom número de outros argumentos, bastante
elaborados e não muito persuasivos, são oferecidos para essa conclusão. Mas há um importante argumento de que ele dispõe para mostrar que a moralidade de uma ação
não é uma questão factual. Tomemos qualquer ação considerada viciosa; por mais atentamente que a examinemos jamais encontraremos vício nela. Muito disso está presente
em sua afirmação de que a passagem do é para o deve, que se acha por toda parte no discurso moral, deve ser explicada ou justificada.
A origem da moralidade nas paixões é a simpatia, a inclinação natural de agradarmo-nos com a felicidade dos outros e sentirmos desconforto com seu sofrimento. Isso
explica, associativamente, o impulso natural da benevolência. O interesse próprio também é natural ou instintivo, mas não é nossa forma exclusiva de motivação. A
simpatia subjaz à prática da contemplação desinteressada de ações e caracteres das


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pessoas. Quando o resultado dessa contemplação é agradável, temos a aprovação moral; quando desagradável, a desaprovação. O que é, nos caracteres e ações das pessoas,
que causa essas reações emocionais (que, sendo emoções, não são nem verdadeiras nem falsas)? A resposta de Hume é que reagimos com aprovação ao que é útil ou agradável
ao agente ou a outros. Mas qualidades úteis ou agradáveis ao agente parecem antes virtudes naturais que morais; dotes de caráter como a prudência ou a coragem, mais
que virtudes em sentido estrito. Mas Hume não se prende a essa fórmula demasiado abrangente. Na maior parte das vezes ele explica as virtudes por sua contribuição
à utilidade da sociedade em geral.
Só um pequeno passo separa essa posição - um passo que Hume, entretanto, não dá - da tese de que a aprovação moral não é apenas explicada pela utilidade daquilo
a que é conferida, mas implica e é justificada pela utilidade do que se aprova. Isso abriria um espaço - que Hume não abre - para corrigir como errôneas as aprovações
caso se baseiem em falsos julgamentos de utilidade. Ele parece não pôr em dúvida que a utilidade, o "bem da sociedade", é uma simples questão de fato. Essa é claro,
é a posição dos utilitaristas propriamente ditos, Bentham, sobretudo, e, com algumas restrições, John Stuart Mill.
Hume reconhece que nosso instinto natural de benevolência, embora um princípio independente de ação ao lado do interesse próprio, não tem um alcance tão longo, e
tende a prevalecer apenas em nossas relações com aqueles que nos são próximos. Mas, além da virtude natural da benevolência, há também a virtude artificial da justiça.
Na sociedade humana dependemos crucialmente uns dos outros, muito mais do que outros animais que dependem mais de si próprios. Pela cooperação, porém, podemos aumentar
nossa força, pela divisão do trabalho nossas habilidades, e pela ajuda mútua nossa segurança contra os infortúnios. Para estabelecer esses arranjos desejáveis, criamos
instituições tais como o cumprimento das promessas, a propriedade e o Estado.


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Os deveres de respeito pela propriedade, fidelidade e obediência produzem conseqüências benéficas apenas se recebem uma adesão geral. Um ato isolado de benevolência
pode produzir, por si só, um bem, mas é fútil respeitar uma propriedade ou obedecer a um Estado que ninguém mais respeita ou obedece. Hume, de maneira geral, identifica a justiça com o respeito à propriedade. A escassez dos bens em relação a força do desejo que as pessoas têm por eles leva ao conflito. Regras definidas para a aquisição, posse e transferência de propriedade são necessárias para a paz social. As regras da justiça são úteis apenas como um sistema; deve-se, portanto, obedecer às regras mesmo quando sua aplicação produz excepcionalmente um mau resultado.
A justiça e as outras virtudes artificiais não têm um respaldo direto nas paixões. Todos nós temos um forte motivo, de natureza auto-interessada, para que sejam respeitadas de forma geral auto-interessada para uma aprovação desinteressada, moral, dessas virtudes enquanto benéficas à sociedade; um efeito de simpatia.

Provarei em primeiro lugar pela experiência que nossas ações mantêm uma constante união com nossos motivos, temperamento e circunstâncias, antes de considerar as inferências que retiramos disso.
Para isso, uma apreciação muito geral e superficial do curso comum dos afazeres humanos já será suficiente. Não há perspectiva sob a qual o examinemos que não confirme esse princípio. Quer consideremos a humanidade de acordo com diferenças de sexo, idade, formas de governo, condições ou métodos de educação, são discerníveis a mesma uniformidade e a mesma operação regular dos princípios naturais. Causas semelhantes continuam a produzir efeitos semelhantes, da mesma maneira que na ação mútua dos elementos e poderes da natureza. (T 401)

Depois de termos realizado uma ação qualquer, ainda que admitamos que fomos influenciados por motivos e opiniões particulares, é difícil persuadir-nos que fomos
governados pela necessidade,


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e que era absolutamente impossível para nós ter agido de outro modo, pois a idéia de necessidade parece implicar alguma Força, violência, e coerção que não
sentimos na ocasião. Poucos são capazes de distinguir entre a liberdade da espontaneidade, como é chamada pelos escolásticos, e a liberdade da indiferença; entre a liberdade que se opõe à violência e a que significa uma negação da necessidade e das causas. A primeira é, mesmo, o sentido mais comum da palavra, e como é a única espécie de liberdade que nos interessa preservar, nossos pensamentos têm-se voltado principalmente para ela, e têm-na quase universalmente confundido com a segunda.
(T 410)

Os homens não são censurados pelas ações que realizam na ignorância ou de forma casual, quaisquer que possam ser suas conseqüências. Qual é a razão disso, a não
ser o fato de que os princípios dessas ações são apenas momentâneos, e esgotam-se com as próprias ações? Os homens são menos censurados pelas ações que realizam de forma abrupta e sem premeditação do que por aquelas que procedem da deliberação. E por qual razão, a não ser porque um temperamento precipitado, embora seja uma causa ou princípio constante na mente, opera apenas por intervalos e não contamina o caráter como um todo? Além disso, o arrependimento apaga todos os crimes, se acompanhado por uma reforma da vida e dos costumes. Como explicar isso, a não ser declarando que as ações tornam uma pessoa criminosa meramente por provarem a existência de princípios criminosos na mente; e quando uma alteração desses princípios faz com que deixem de ser provas legítimas, elas deixam igualmente de ser criminosas?
Mas, amenos que se admita a doutrina da necessidade, elas nunca teriam sido provas legítimas, e, conseqüentemente, nunca teriam sido criminosas. (E 98-9)

Nada é mais usual em filosofia, e mesmo na vida comum, do que falar sobre o combate entre a paixão e a razão, dar preferência à razão e asseverar que os homens só
são virtuosos na medida em que se conformem a seus ditames. Toda criatura racional, diz-se, está obrigada a regular suas ações pela razão, e se algum outro motivo
ou princípio desafia a direção de sua conduta, ela deve opor-se a ele, até estar inteiramente submetida ou pelo menos posta de acordo com aquele princípio superior.

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É sobre este modo de pensar que a maior parte da filosofia moral, antiga e moderna, parece estar fundada... A fim de mostrar a falácia de toda essa filosofia, vou procurar provar, primeiro, que a razão, por si só, não pode jamais ser um motivo para qualquer ação voluntária; e segundo, que ela jamais pode fazer frente à paixão no direcionamento da vontade. (T 413)

É óbvio que quando algum objeto nos traz a expectativa de dor ou prazer, sentimos em conseqüência uma emoção de aversão ou propensão, e somos levados a evitar ou
a buscar aquilo que nos trará esse desconforto ou essa satisfação. É também óbvio que essa emoção não se detém aqui, mas, fazendo-nos voltar os olhos para todos
os lados, inclui todos os objetos que estão conectados com o objeto original pela relação de causa e efeito. Aqui, então, entra em cena o raciocínio, para descobrir
essa relação; e conforme varie nosso raciocínio, nossas ações recebem uma variação subseqüente. Mas é evidente neste caso que o impulso não provém da razão, mas
é apenas dirigido por ela. É da expectativa de dor ou prazer que surge a aversão ou propensão em relação a qualquer objeto, e essas emoções se estendem às causas
e efeitos desse objeto, tal como nos são indicados pela razão e experiência. Não teríamos o mínimo interesse em saber que certos objetos são causas e outros são
efeitos, se tanto as causas como os efeitos fossem indiferentes. Quando os próprios objetos não nos afetam, sua conexão não pode dar-Ihes jamais alguma influência,
e é claro que, como a razão nada mais é que a descoberta dessa conexão, não pode ser por seu intermédio que os objetos são capazes de nos afetar.
Dado que a razão, sozinha, não pode jamais produzir nenhuma ação ou dar origem a uma volição, infiro que essa mesma faculdade é incapaz de evitar a volição ou de
disputar a preferência com alguma paixão ou emoção... Parece, assim, que o princípio que se opõe a nossa paixão não pode ser o mesmo que a razão, e é assim chamado
apenas de maneira imprópria. Não falamos de forma rigorosa e filosófica quando nos referimos ao combate entre a razão e a paixão. A razão é, e só deve ser, a escrava
das paixões, e não pode almejar outro ofício que o de servi-Ias e obedecê-las. (T414-5)

Se a moralidade não tivesse naturalmente uma influência sobre as paixões e ações humanas, seria vão empregar tanto esforço


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para inculcá-la, e nada haveria de mais infrutífero que a multidão de regras e preceitos que abundam em todos os moralistas. É comum dividir a filosofia em filosofia
especulativa e filosofia prática, e como a moralidade é sempre incluída nesta última divisão, supõe-se que ela influencie nossas paixões e ações e que vá além dos
julgamentos calmos e indolentes do entendimento. E isso se confirma pela experiência ordinária, que nos informa que os homens são muitas vezes governados por seus
deveres, dissuadidos de algumas ações pela opinião de injustiça e impelidos a outras pela de obrigação.
Dado que a moral, portanto, tem uma influência nas ações e afecções, segue-se que ela não pode ser derivada da razão, e isso porque a razão, por si só, como já provamos,
não pode ter uma tal influência. A moral excita paixões, e produz ou evita ações. A razão, por si só, é completamente impotente a esse respeito. As regras da moralidade,
portanto, não são conclusões de nossa razão. (T 457)

Mas pode haver qualquer dificuldade em provar que o vício e a virtude são questões de fato, cuja existência podemos inferir pela razão? Tome-se qualquer ação considerada
viciosa; um assassinato deliberado, por exemplo. Examinemo-lo de todos os ângulos e vejamos se podemos encontrar qualquer fato ou existência real que pudéssemos
chamar vício. Seja como for que o consideremos, encontraremos apenas certas paixões, motivos, volições e pensamentos. Não há, no caso, nenhum outro fato. O vício
nos escapa inteiramente quando consideramos o objeto. Jamais poderemos encontrá-lo até que voltemos nossa reflexão para nosso próprio peito, encontrando lá um sentimento
de desaprovação, que surge em nós perante essa ação. Eis aqui uma questão de fato, mas ela é objeto do sentimento, não da razão. Ela jaz em nós mesmos, não no objeto.
Assim, quando declaramos que alguma ação ou caráter viciosos, não estamos dizendo nada a não ser que, pela constituição de nossa natureza, temos um sentimento ou
percepção de aprovação diante deles. Vício e virtude podem ser comparados, portanto, a sons, cores, calor e frio, os quais, de acordo com a moderna filosofia, não
são qualidades no objeto mas percepções na mente; e essa descoberta em moral, tal como a anterior em física, deve ser considerada um avanço considerável das ciências
especulativas; embora, como aquela, tenha pouca ou nenhuma influência na prática. Nada pode ser mais real, ou dizer-nos mais


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respeito que nossos próprios sentimentos de prazer e desconforto, e se esses forem favoráveis à virtude e desfavoráveis ao vício, não há mais o que requerer para
a regulação de nossa conduta e comportamento.
Não posso abster-me de acrescentar a estes raciocínios uma observação que se poderia, talvez, julgar de alguma importância. Em todos os sistemas de moralidade que
encontrei até agora, sempre observei que o autor procede durante algum tempo segundo a maneira ordinária de raciocínio, e estabelece a existência de um Deus, ou
faz observações relativas aos assuntos humanos, quando de repente surpreendo-me observando que, ao invés das cópulas proposicionais usuais é e não é, não encontro
mais nenhuma proposição que não esteja articulada por meio de um deve ou um não deve. A mudança é imperceptível, mas é, contudo, de máxima importância. Pois como
esse deve, ou não deve, expressa uma nova relação ou afirmação, é preciso que ele seja indicado e explicado; e, ao mesmo tempo, que se dê uma razão para aquilo que
parece totalmente inconcebível: como derivar essa nova relação de outras que são inteiramente diferentes dela. (T 468-9)

Podemos observar que todas as circunstâncias requeridas para sua operação [da simpatia] encontram-se na maior parte das virtudes, que têm, em sua maioria, uma tendência
a produzir o bem da sociedade ou da pessoa que as possui. Se compararmos todas essas circunstâncias, não teremos dúvidas de que a simpatia é a principal fonte das
distinções morais, especialmente quando refletimos que nenhuma objeção pode ser levantada contra essa hipótese, em um caso, sem que se estenda a todos os outros
casos. A aprovação que a justiça recebe certamente não decorre de outra razão senão a de que ela tem uma tendência a produzir o bem público, e o bem público nos
é indiferente exceto na medida em que a simpatia nos torna interessados nele. Podemos supor o mesmo com relação a todas as outras virtudes que tendem igualmente
ao bem público. Todas elas devem derivar o seu mérito de nossa simpatia para com aqueles que colhem delas alguma vantagem, assim como as virtudes que têm uma tendência
ao bem da pessoa que as possui derivam seu mérito de nossa simpatia para com essa pessoa. (T 618)

A única diferença entre as virtudes naturais e a justiça reside em que o bem que resulta das primeiras decorre de cada ato singular e é objeto de alguma paixão natural,
ao passo que um ato


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isolado de justiça, considerado em si mesmo, pode muitas vezes ser contrário ao bem público, e é apenas a colaboração da humanidade em um esquema ou sistema geral
de ação que é vantajosa. Quando socorro pessoas em situação aflitiva, minha natural humanidade é meu motivo, e terei promovido a felicidade de meus semelhantes até
onde meu auxílio se estender. Mas se examinar- mos todos os litígios que são levados a qualquer tribunal de justiça, descobriremos que, considerando cada caso isoladamente,
seriam igualmente freqüentes as situações em que seria humanitário decidir contrariamente às leis da justiça quanto em conformidade com elas. Juízes tiram de um
homem pobre para dar a um rico, conferem ao dissoluto o trabalho do industrioso, e põem nas mãos dos malévolos os meios para prejudicar tanto a si mesmos quanto
aos outros. O esquema da lei e da justiça como um todo é, contudo, vantajoso para a sociedade, e foi com vistas a essa vantagem que os homens o estabeleceram por
meio de suas convenções arbitrárias. Uma vez estabelecido por meio dessas convenções, ele é naturalmente acompanhado de um forte sentimento de moralidade, que não
pode proceder senão de nossa simpatia para com os interesses da sociedade. Não precisamos de nenhuma outra explicação para aquela estima que acompanha as virtudes
naturais que têm uma tendência a produzir o bem público. (T 579-80)

Para evitar ofensas, devo aqui observar que quando nego que a justiça seja uma virtude natural, uso a palavra natural apenas enquanto oposta a artificial. Em outro
sentido da palavra, como nenhum princípio da mente humana é mais natural que um sentido de virtude, nenhuma virtude, conseqüentemente, é mais natural que a justiça.
A humanidade é uma espécie inventiva, e quando uma invenção é óbvia e absolutamente necessária, ela pode ser dita natural tão apropriadamente quanto qualquer outra
coisa que proceda imediatamente de princípios originais, sem a intervenção do pensamento ou reflexão. Embora as regras da justiça sejam artificiais, elas não são
arbitrárias. E tampouco é inapropriado chamá-las Leis de Natureza, se por natural entendemos o que é comum a uma espécie qualquer, ou mesmo se o limitarmos a designar o que é inseparável da espécie. (T 484)

Em seu conjunto, portanto, temos de considerar essa distinção entre justiça e injustiça como tendo dois diferentes
fundamentos


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a saber: o do interesse, quando os homens observam que é impossível viver em sociedade sem refrear-se por certas regras; e o da
moralidade, logo que esse
interesse é observado e os homens passam a obter prazer da contemplação das ações que tendem à paz da sociedade, e desconforto das que são contrárias a ela. É a
convenção e o artifício voluntários dos homens que levam o primeiro interesse a ter lugar, e nessa medida, portanto, as leis da justiça devem ser consideradas artificiais.
Depois que esse interesse foi estabelecido e reconhecido, o sentido da moralidade na observância dessas regras segue-se naturalmente e por si mesmo, embora seja
certo que ele é aumentado por um novo artifício, e que a instrução pública pelos políticos e a educação privada pelos pais contribuem para nos dar um sentido de
honra e de dever na regulação estrita de nossas ações com relação às propriedades dos demais. (T 533-4)


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POLÍTICA

Hume interessou-se de forma bastante isenta pela política de sua época, bem como pelas generalidades mais amplas da teoria política. Seu principal resultado neste
segundo campo foi sua exemplar demolição da teoria contratual do governo. Em oposição a teorias de obediência passiva e direito divino, Hobbes e Locke, cada qual
a sua maneira muito distinta e peculiar, declararam que o dever de obedecer ao governo era de natureza contratual. A obediência prometida não era incondicional (foi
muito próxima disso em Hobbes, e bem afastada em Locke).
O argumento de Hume contra a teoria contratual acha-se exposto mais ou menos longamente na segunda parte do livro III do Tratado e repetido de forma condensada em
seu texto mais acessível "Do contrato original". Ninguém acredita ter prometido obedecer ao governo. A posição de Locke de que o consentimento é "tácito" é abalada
pelo fato de que pessoas nascidas em uma sociedade têm tão pouco a opção de deixá-la quanto um marinheiro trazido dopado para bordo tem de escapar das ordens do capitão saltando ao mar. Quase todos os governos existentes originaram-se de conquista ou usurpação, embora seja possível que as primeiras sociedades tenham investido seus governantes - que seriam chefes guerreiros - em resultado de um acordo.
Sua objeção decisiva é que, se a resposta à questão "por que obedecer ao governo?" for "porque prometi fazê-lo", surgirá imediatamente a outra questão "por que cumprir promessas?". A resposta é que cumprir as promessas serve ao interesse geral da sociedade. Mas essa resposta já pode ser dada também à questão sobre por que obedecer ao governo. Dizer


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que a obediência está baseada em uma promessa é fazer um "rodeio desnecessário". Cumprimento de promessas e obediência estão em pé de igualdade, juntamente com o
respeito à propriedade. Todos são justificados, enquanto virtudes artificiais ou sistemáticas, pela contribuição que sua observância geral traz ao bem-estar de todos.
Deste princípio utilitarista segue-se que a recusa à obediência ou rebelião estão justificadas se o governo é demasiado fraco para prover proteção e segurança - a função que o define - ou tão opressivo que todos estariam melhor sem ele. Hume, contudo, não era nenhum revolucionário e faz fortes advertências contra isso.

Hume tampouco tem muito de liberal, certamente não em um sentido retórico. "A liberdade é a perfeição da sociedade civil", ele diz, "mas ainda assim a autoridade
deve ser reconhecida como essencial para sua própria existência". Ele não - é de modo algum um democrata, e pensa que uma elite educada, na qual predominam as paixões
calmas, deve governar os ignorantes e imprudentes. Suas concepções conservadoras de cunho cético e racional permeiam os seis volumes de sua História da Inglaterra,
a primeira história razoavelmente imparcial da Inglaterra, que indignou os Whigs doutrinários pelo ataque ao delírio irracional dos puritanos e dos reformistas protestantes
de quem eles derivavam, foi simpática às vicissitudes de Carlos I, e não antipática ao arcebispo Laud. Carlos I, para Hume, não foi iníquo, mas incompetente ao reivindicar prerrogativas às quais tinha pleno direito sem assegurar que teria força para levar a cabo essas reivindicações.

Não se pode negar que todo governo está inicialmente fundado em um contrato e que os mais antigos e rudes grupamentos de seres humanos formaram-se, sobretudo por esse principio. (Ess 454)


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Quase todos os governos que existem no presente, ou dos quais resta algum registro histórico, fundaram-se originalmente, a usurpação ou na conquista, ou em ambas, sem qualquer pretensão a um honesto consentimento ou sujeição voluntária do povo. (Ess 457)

Que necessidade há, portanto, de fundar o dever de lealdade ou obediência a magistrados no de probidade ou consideração pelas promessas, e supor que é o consentimento de cada indivíduo que o sujeita ao governo, quando tanto a lealdade como a probidade aparecem repousando precisamente na mesma fundação, e são ambas respeitadas pela humanidade em vista dos manifestos interesses e necessidades da sociedade humana? Estamos obrigados a obedecer nosso soberano, diz-se, porque fizemos uma promessa tácita nesse sentido. Mas por que estamos obrigados a cumprir nossa promessa? Aqui se insistirá em que o comércio e as "relações sociais da humanidade, que tantas vantagens proporcionam, não teriam nenhuma segurança se as pessoas não se importassem com seus compromissos. De maneira semelhante, é lícito dizer que os homens não poderiam absolutamente viver em sociedade, pelo menos em uma sociedade civilizada, sem leis, magistrados e juízes para impedir que os fortes abusem dos fracos
ou os violentos dos justos e honestos. Como a obrigação de obediência tem a mesma força e autoridade da obrigação de cumprimento das promessas, nada se ganha analisando um em termos da outra. Os interesses ou necessidades gerais da sociedade são suficientes para estabelecer ambas.
Se perguntado pela razão dessa obediência que temos de prestar ao governo, respondo prontamente: porque de outro modo a sociedade não poderia subsistir; e essa resposta é clara e inteligível para todo mundo. A resposta que você propõe é: porque devemos cumprir nossa palavra. Mas, além do fato de que ninguém, até ser treinado em um sistema filosófico, pode compreender ou aceitar essa resposta; além disso, eu digo, você se sentirá embaraçado se lhe perguntarem por que somos obrigados a manter nossa palavra? E não poderá apresentar nenhuma resposta que não venha também a explicar imediatamente, sem nenhum rodeio, nossa obrigação de obediência ao governo.
(Ess 468-9)

Noto que promessas procedem inteiramente das convenções manas, e são inventados com vistas a um certo interesses.


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Procuro, então, algum interesse desse tipo mais imediatamente conectado ao governo, e que possa ser ao mesmo tempo o motivo original de sua instituição e a fonte da obediência que lhe devemos. Descubro que esse interesse consiste da segurança e proteção de que gozamos na sociedade civil e que jamais podemos obter enquanto perfeitamente livres e independentes. Como o interesse, portanto, é a sanção imediata do governo, um não pode ter maior extensão que o outro, e sempre que um magistrado civil leve tão longe sua opressão a ponto de tornar sua autoridade completamente intolerável, não estamos mais obrigados a submeter-nos a ela. A causa cessa, e o efeito também deve cessar. (r 550-1)

Lá onde o bem público não requer visivelmente uma mudança, é certo que a confluência de todos estes títulos: contrato original, posse prolongada, posse presente,
sucessão e leis positivas constituem o mais forte direito à soberania, e é considerada com justiça como sagrada e inviolável. (T 562)

Em todos os governos há uma perpétua luta interna, aberta ou camuflada, entre Autoridade e Liberdade; e nenhuma delas pode jamais ser a vencedora absoluta da disputa.
Um grande sacrifício da liberdade deve necessariamente ser feito em todo governo; contudo, mesmo a autoridade que restringe a liberdade não pode, e talvez nem deva, em nenhuma constituição, tornar-se total e incontrolável. O sultão é senhor da vida e da fortuna de cada indivíduo, mas não lhe é permitido impor novos tributos a seus súditos; um monarca francês pode impor tributos à vontade, mas ser-Ihe-ia perigoso atentar contra a vida e a fortuna dos indivíduos. Também a religião, na maioria dos paises, mostra-se comumente como um princípio intratável, e outros princípios e preconceitos resistem freqüentemente a toda a autoridade do magistrado civil, cujo poder, estando fundado na opinião, não é jamais capaz de subverter outras opiniões tão bem enraizadas quanto seu próprio direito de domínio. O governo que, segundo a denominação comum, é chamado livre, é aquele que admite uma repartição do poder entre diversos membros cuja autoridade não oficial não é menor, ou é comumente maior, que a de qualquer monarca, mas que, no curso habitual da administração, devem agir segundo leis gerais e eqüitativas previamente conhecidas por todos os membros e todos os seus súditos. Nesse sentido, deve-se


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admitir que a liberdade é a perfeição da sociedade civil, mas ainda assim a autoridade deve ser reconhecida como essencial para sua própria existência; e nessas disputas que tão freqüentemente têm lugar entre uma e outra, esta última deve, por essa razão, reivindicar a preferência. A menos, talvez, que se possa dizer (e há alguma razão para dizê-lo) que um fator que é essencial para a existência da sociedade civil sempre será capaz de se sustentar, e precisa ser resguardado com menos dedicação do que outro que contribui para sua perfeição, que a indolência dos homens está tão propensa a negligenciar, ou sua ignorância a desconhecer. (Ess 38-9)


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RELIGIÃO

Os escritos de Hume sobre a religião são tão brilhantes quanto quaisquer outros que ele tenha produzido, e parece razoável supor que formam uma grande parte do objetivo prático (que nunca esteve longe de seus pensamentos) de suas investigações mais teóricas. O menos substancial, mas de modo algum o menos interessante, é a História natural da religião. Seu tema central são as causas e conseqüências do desenvolvimento religioso da humanidade do politeísmo para o monoteísmo. Que houve um tal desenvolvimento está mostrado, ele acredita, pelo politeísmo dos selvagens contemporâneos, aos quais nossos remotos ancestrais primitivos devem ter se assemelhado.
Eles foram impelidos à crença nos deuses por certos acontecimentos terríveis e calamitosos, não por alguma sofisticada reflexão sobre as origens do universo como um todo ordenado. Uma preocupação especial em exaltar e promover um certo deus sobre todos os restantes deu origem ao monoteísmo. Este é menos tolerante que seu predecessor selvagem. Outra deficiência moral do monoteísmo é sua preferência por "virtudes monásticas" tais como a humildade em oposição à coragem e à autoconfiança de nossos ancestrais. A crença em um deus ou em deuses não é natural como a crença em um mundo exterior, dado que há raças nas quais não se encontra essa crença.
Os Diálogos sobre a religião natural, cuja publicação Hume prudentemente deixou para depois de sua morte, é talvez o mais arguto e brilhante de seus trabalhos. Com certeza é o mais irônico, tanto que alguns leitores procuraram identificar o autor não com o mais cético dos participantes, Philo, mas com o devoto, mas não fanático Cleanthes, porta-voz do arcebispo Butler.


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O alvo principal dos Diálogos é o argumento do desígnio, aquele estratagema intelectual tão querido do século XVIII que infere a existência de Deus da evidência de ordem e da adaptação de meios a fins encontradas na natureza. Hume desmonta o argumento com a máxima perseverança. A analogia entre o homem e suas produções, de um lado, e Deus e a natureza, de outro, está mutilada por numerosos defeitos. Já vimos muitos homens construindo edifícios, mas não temos nenhum acesso direto a deuses construindo naturezas. É errôneo atribuir perfeições tais como poder ilimitado, sabedoria e bondade à hipotética causa de alguma coisa tão coberta de imperfeições como o mundo natural. E não se assemelha ele, em todo caso, a um vegetal em crescimento, tanto quanto a um dispositivo mecânico? Talvez, se ele for mesmo produto do artifício divino, ele seja o resultado do trabalho de vários deuses, ou de um deus imaturo, ou de um deus decrépito. Sejam quais forem as qualidades que sua produção nos justifica atribuir ao autor da natureza, elas não podem ter conseqüências para nossa conduta. Nunca uma doutrina tão vasta, tão amplamente acreditada e intelectualmente
respeitada foi reduzida a ruínas de forma tão elegante e devastadora.
Hume recusa as pretensões da revelação, enquanto oposta à razão, em seu ensaio sobre os milagres na primeira Investigação. O argumento central é conciso, mas muito difícil de responder. Confrontados com o testemunho de um suposto milagre, diz Hume, devemos perguntar se é ainda mais miraculoso que o testemunho seja falso. Dado que os supostos milagres do Novo Testamento, observados por pessoas incultas e emocionalmente interessadas em sua aceitação, chegaram até nós através de uma longa cadeia de intermediários de limitada confiabilidade, não é nem um pouco miraculoso que esses relatos sejam errôneos.

Parece-me que, se considerarmos o aprimoramento da sociedade humana, de seus rudes inícios até um estado de maior perfeição, o politeísmo ou idolatria foi, e deve necessariamente ter sido, a primeira e mais antiga religião da humanidade.


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O politeísmo, ou adoração idólatra, estando fundado inteiramente em tradições vulgares, está sujeito ao grande inconveniente de que qualquer prática ou opinião, por mais bárbara ou corrupta que seja, pode ser por ele autorizada, e o campo fica completamente aberto para que a patifaria se aproveite da credulidade, até que a moral e a humanidade sejam expelidas do sistema religioso. Ao mesmo tempo, a idolatria possui a evidente vantagem de que, ao limitar os poderes e funções de suas deidades, ela naturalmente admite que os deuses de outras seitas e nações recebam seu quinhão de divindade, e tornam compatíveis umas com as outras todas as diversas deidades, assim como ritos, cerimônias ou tradições. O teísmo é oposto tanto em suas vantagens como em suas desvantagens. Como esse sistema supõe uma única deidade, a perfeição da razão e bondade, ele deve, se corretamente seguido, banir dos cultos religiosos tudo que é frívolo, não razoável e desumano, e colocar aos olhos da humanidade os exemplos mais ilustres, bem como os mais imperiosos motivos, de justiça e benevolência. Essas poderosas vantagens não são, é certo, contrabalançadas
(pois isso não seria possível), mas um pouco diminuídas por certas inconveniências que provêm dos vícios e preconceitos da humanidade. Quando se admite um único
objeto de devoção, a adoração de outras deidades é considerada ímpia e absurda. Mais ainda, essa unidade de objeto parece naturalmente requerer a unidade de fé e
de cerimônias, e proporciona a homens astuciosos um pretexto para retratar seus adversários como profanos, e alvos da vingança tanto divina quanto humana. Pois como cada seita está convencida de que sua própria fé e culto são totalmente agradáveis à divindade, e como ninguém pode conceber que o mesmo ser deva comprazer-se com ritos e preceitos diferentes e opostos, as diversas seitas criam naturalmente animosidades recíprocas e descarregam umas nas outras aquele zelo e rancor sagrados, a mais furiosa e implacável de todas as paixões humanas. (N 60)

Há um evidente absurdo em pretender demonstrar uma questão de fato, ou prová-la por quaisquer argumentos a priori. Nada é demonstrável, a menos que o contrário implique uma contradição. Tudo que concebemos como existente podemos também conceber como inexistente. Não há nenhum ser, portanto, cuja inexistência implique uma contradição.
Conseqüentemente, não há nenhum ser cuja existência seja demonstrável. Proponho esse


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argumento como inteiramente conclusivo, e estou disposto a basear nele toda a controvérsia. (D 232-3).

Vós, então, que sois meus acusadores, reconhecestes que o principal ou único argumento para uma existência divina (a qual nunca pus em questão) deriva-se da ordem da natureza, que contém tantos e tais indícios de inteligência e desígnio que considerais extravagante apresentar como sua causa quer o acaso quer a força cega e não dirigida da matéria...
Quando inferimos qualquer causa particular de um efeito, devemos guardar a proporção entre eles, não nos sendo jamais permitido atribuir à causa quaisquer qualidades que não sejam aquelas precisamente suficientes para a produção do efeito. Um peso de dez onças que se eleve em um dos pratos de urna balança pode servir como prova de que o contrapeso excede dez onças, mas não provê uma razão para que exceda cem. Se a causa atribuída a algum efeito não for suficiente para produzi-lo, devemos ou rejeitar essa causa ou acrescentar-lhe qualidades tais que a tomem corretamente proporcional ao efeito. Mas se lhe atribuirmos qualidades adicionais, ou a declararmos capaz de produzir outros efeitos, estamos simplesmente entregando-nos à conjetura e supondo arbitrariamente a existência de qualidades ou energias sem qualquer razão
ou autoridade. (E 135-6)

Duvido muito que seja possível conhecer uma causa apenas por seus efeitos (como você supôs o tempo todo), ou que uma causa tenha uma natureza tão única e particular a ponto de não ter paralelo ou similaridade com qualquer outra causa ou objeto que já tenha sido dado a nossa observação. É apenas quando duas espécies de objetos se mostram constantemente conjugadas que podemos inferir uma da outra; e se nos fosse apresentado um efeito inteiramente único, que não pudesse ser subsumido a nenhuma espécie conhecida, não vejo como poderíamos fazer qualquer conjetura ou inferência relativa a sua causa. Se a experiência, observação e analogia forem de fato os únicos guias que pudermos racionalmente seguir em inferências dessa natureza, tanto o efeito quanto a causa devem guardar uma similaridade e semelhança com outros efeitos e causas que conhecemos e que verificamos, em muitos casos, estarem conjugados uns aos outros. (E 148)

Esta contrariedade de evidências no caso presente [milagres] pode ser conseqüência de várias causas distintas: da oposição de


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testemunhos contrários, do caráter ou número dos espectadores, da maneira pela qual prestam seu depoimento, ou da união de todas estas circunstâncias. Alimentamos uma suspeita relativamente a qualquer questão de fato quando as testemunhas se contradizem entre si, quando são muito poucas ou de caráter duvidoso, quando têm um interesse naquilo que afirmam, quando prestam seu depoimento de forma hesitante ou, ao contrário, com afirmações muito exaltadas. Há muitas outras particularidades do mesmo tipo que podem diminuir ou destruir a força de qualquer argumento derivado do testemunho humano. (Ess 522-3; E 112-3)

Suponhamos que o fato que afirmam, em vez de ser apenas admirável, é realmente miraculoso; e suponhamos igualmente que o testemunho, considerado separadamente e em si mesmo, equivale a uma prova cabal. Nesse caso haverá prova contra prova, das quais a mais forte deve prevalecer, embora com uma diminuição de sua força proporcional à força da antagonista.
Um milagre é uma violação das leis da natureza, e como essas leis foram estabelecidas por uma experiência firme e imutável, a prova contra um milagre, pela própria natureza do fato, é tão cabal quanto qualquer argumento a partir da experiência que se possa imaginar. (Ess 524; E 114)

Nada que alguma vez ocorra no curso comum da natureza é considerado um milagre. Não é um milagre que um homem, aparentemente em boa saúde, venha a morrer repentinamente, porque esse tipo de morte, embora menos usual que qualquer outra, tem sido, ainda assim, freqüentemente observada. Mas é um milagre que um homem morto retome à vida, porque isso nunca foi observado em nenhuma época ou lugar. Deve existir, portanto, uma experiência uniforme contra cada acontecimento milagroso, caso contrário ele não mereceria essa denominação. E como uma experiência uniforme equivale a uma prova, temos aqui uma prova direta e cabal contra a existência de qualquer milagre, pela própria natureza do fato; e uma prova como essa não pode ser destruída, nem o milagre tornar-se digno de crédito, a não ser por efeito de uma prova oposta que lhe seja superior.
A conseqüência simples disso tudo (e trata-se aqui de uma máxima geral digna de nossa atenção) é "que nenhum testemunho é suficiente para estabelecer um milagre
a menos que seja de um tipo tal que sua falsidade fosse ainda mais milagrosa que

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O fato que se propõe a estabelecer; e mesmo assim ocorre uma destruição mútua de argumentos, de sorte que o mais forte só nos dá uma confiança apropriada ao grau de força que resta após subtrair-se dele o mais fraco". Se alguém me diz que viu um homem morto ser trazido de volta à vida, de imediato pondero comigo mesmo se é mais provável que essa pessoa esteja enganando-me ou sendo enganada, ou que o fato que ela relata tenha realmente ocorrido. Peso um milagre contra o outro e, de acordo com a superioridade que descubro, enuncio minha decisão, sempre rejeitando o maior milagre. Se a falsidade do testemunho dessa pessoa for mais miraculosa que o acontecimento que ela relata então sim - mas não até então - ela pode pretender contar com minha crença ou assentimento. (Ess 525-6; E 115-6)

Podemos concluir, levando-se tudo em conta, que a religião cristã não apenas esteve acompanhada de milagres em suas origens, mas, mesmo nos dias de hoje, nenhuma pessoa razoável pode dar-lhe crédito sem um deles. (Ess 554; E 131).

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EPÍLOGO

Numa breve revisão como esta não há espaço para mais que uma simples menção a dois outros campos em que Hume esteve ativo: economia e estética. Diversos de seus ensaios tratam de assuntos econômicos. Em sua poderosa defesa do livre comércio e em sua refutação das superstições mercantilistas sobre a medida da riqueza de um país pelo ouro e prata acumulados, ele antecipou, e talvez tenha influenciado, seu dedicado amigo Adam Smith, cuja Riqueza das nações veio à luz no ano da morte de Hume, ainda em tempo de ser lida por ele.
Suas posições sobre o "gosto" são as que se poderia esperar de sua explicação da moralidade. A beleza não é uma propriedade intrínseca das coisas, mas é projetada nelas pelo observador desinteressado que acha agradáveis sua "forma e disposição". A associação nos leva dessas respostas imediatas a outras que têm em conta a utilidade das coisas. Uma coluna afilada nos agrada, pois sua base mais larga sugere maior força e solidez. Ele tenta com grande engenhosidade responder a questão de por que a tragédia nos dá prazer.
Hume foi um homem magnífico. Nele se combinavam dois pares de qualidades que têm uma certa afinidade, mas raramente são encontradas juntas. Do lado cognitivo, ele foi imensamente inteligente e extraordinariamente vivaz, dotes que se excluíam, poder-se-ia sugerir, em Aristóteles e Jean Cocteau. No domínio do caráter e da conduta ele foi moralmente virtuoso (Adam Smith julgava-o o homem mais perfeitamente virtuoso que já havia encontrado) e inesgotavelmente bondoso e sociável (características, respectivamente, de Johnson e Boswell). Ele é ao mesmo tempo o mais admirável e o mais adorável dos filósofos, exceto na opinião de pedantes

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e pretensiosos. E, também, por sua imponente estatura, rubra face e forte sotaque escocês, o menos ridículo deles.
Em sua época ele foi respeitado por sua História, mas sua filosofia foi ignorada, e suas idéias sobre religião vistas com horror. Kant alegou ter sido despertado de seu "sono dogmático" ao lê-lo, mas Hume não teria aceito nenhuma responsabilidade pelo resultado. Bentham também ficou fascinado por Hume, mas de forma mais direta e fiel, ainda que tenha extraído conseqüências socialmente radicais de seus princípios. Ele não foi solene o bastante para atrair John Stuart Mill, cuja teoria do conhecimento é, ainda assim, uma espécie de domesticação de Hume. Russell, tão travesso e espirituoso quanto Hume, considerou sua própria filosofia como uma combinação de Hume com a lógica moderna. Onde quer que a filosofia analítica esteja viva, como ainda está em um bom número de lugares, Hume, mais que qualquer outro grande filósofo do passado, é ainda uma força que se tem de levar em conta.



DOIS AMIGOS



Manuel Tiago



As vidas de uma criança muda, de um cão vadio e
de um marinheiro solitário interligam-se num
encontro de repercussões inolvidáveis. O mundo de
Andy, mudo de nascença, pareceu terminado aos
oito anos, altura em que a mãe o abandonou. E é
então que em Gaymal, pequenina aldeia piscatória
escocesa, para onde a criança é enviada, esta
conhece os seus primeiros amigos: o __Fura-Vidas",
um cão vadio que não necessita de palavras para
entender a dedicação que Andy lhe tributa, e o
patrão Jake, pescador de arénques. Correndo pelos
brejos com o cão, pescando arenque no barco de
Jake, Andy principiou finalmente a compreender o
signifcado do amor e da esperança. E num
momento dramático, simultaneamente doce e
amargo, esse amor quebra as algemas do coração
de Andy e dá-Lhe uma força que ele jamais julgara
possuir.

CAPÍTULO I

QUANDO Joe morreu, Marie Glenn decidiu dizer adeus ao lar, no
pequeno porto pesqueiro de Gaymal, fervilhante de actividade,
e
recomeçar a vida em Glasgow. Tudo quanto deixava para trás era
o cão do marido, o __Fura-Vidas__, animal atarracado de pêlo
cin-
zento-negro que ele trouxera para casa ainda cachorro, anos
atrás. Deram-lhe o nome de __Fura-Vidas__ simplesmente porque
Joe
tinha o costume de descrever qualquer um cuja inteligência não
se revelasse inferior à média geral como __um fura-vidas__.
Assim
que o cão começou a revelar uma notável inteligência, Joe co-
mentara espontaneamente: __Um verdadeiro fura-vidas, este._,
Daí, o __Fura-Vidas__. Apesar do seu hibridismo (Joe costumava
dizer que pelo aspecto do pêlo do animal se poderia imaginar
que
al_uém o teria mergulhado num barril de grude antes de
despejar
sobre ele um colchão de sumaúma), o cão tinha uma auto-
-suficiência assinalada pelo erguer arrogante da cabeça e pela
longa cauda de perdigueiro caída, que, no seu saracoteio, aba-
nava de um lado para o outro com a dignidade de uma capa de
arminho.
Os laços que uniam Joe e o __Fura-Vidas,_ nunca se tinham
transformado em dedicação mútua, porque, embora tivesse reco-
lhido o animal, lhe tivesse tirado a respectiva licença e
cuidasse
da sua alimentação, Joe nutria apenas por ele uma espécie de
afei-
ção distraída. E o __Fura-Vidas__, aceitando ter um dono mas
não
um amo, concedia a Joe a indulgente protecção que podia ter
dado
a uma criança.

302 303
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Dois amigos

Joe trabalhava como carregador de peixe no molhe, aonde o
__Fura-Vidas,_ o acompanhava lealmente seis manhãs por semana.
Quando era necessário recuperar qualquer objecto que tivesse
caído à água, Joe chamava a atenção do __Fura-Vidas__, que
ime-
diatamente mergulhava. O cão salvou uma vez uma criança de
morrer afogada, feito que, segundo a opinião geral, lhe devia
merecer uma medalha; o caso, contudo, em breve foi esquecido.
Além da habilidade demonstrada na recuperação dos objectos
que caíam à água, o __Fura-Vidas__ desempenhava ainda mais
duas importantes tarefas no porto. Primeiro, com a eficiência
do
seu rosnar, não permitia aos cães vadios sujarem as caixas de
peixe à espera de serem carregadas nos camiões. A sua segunda
tarefa consistia em afastar as gaivotas das caixas de peixe
acaba-
das de descarregar, tarefa essa que cumpria acintosa e
ruidosa-
mente, pois odiava as rapaces aves. Quando, por entre a
azáfama
da descarga de um barco, do pesar e da lota, as gaivotas
conver-
giam sobre as caixas de peixe fresco prateado, o
__Fura-Vidas__ lá
estava a saltar, a morder e a cuspir penas, ao mesmo tempo que
se esquivava aos bicos que o atacavam de todos os lados. Era
responsável por muitas asas quebradas das gaivotas locais.
Certa
vez, apanhou, e recusou-se a largar, a asa de uma dessas aves,
que conseguiu puxá-lo para a água e fazê-lo submergir. O cão
não se deu por vencido e continuou a lutar, num agitar
frenético
da água e por entre um coro de gritos das gaivotas
espectadoras,
observado pelos pescadores e carregadores, que haviam
interrom-
pido os seus trabalhos para assistir ao desfecho da contenda.
A batalha prolongou-se por cinco minutos, findos os quais o
__Fura-Vidas", de focinho vermelho do seu próprio sangue, re-
gressou a nado aos degraus do molhe, deixando o cadáver negro
a flutuar na água e a doca semeada de penas brancas.
Após a morte do dono, Joe Glenn, o __Fura-Vidas,_ recolheu-
-se numa espécie de semi-reforma, e, se bem que visitasse o
porto de tempos a tempos, chegava geralmente tarde, quando os
barcos estavam no mar e as gaivotas, ora esfomeadas, ora
fartas,
se tinham entileirado ao longo dos telhados dos barracões
junto
ao molhe, orlando-os de branco. Era quase como se tivesse
esta-
belecido tréguas com as aves. Continuou a regressar
diariamente
a casa, logo que o relógio batia o meio-dia, a fim de se
alimen-
tar, e continuou a dormir no tapete da entrada. Por
consideração
para com a memória de Joe, Marie, que nunca gostara do cão,

colocava-lhe diariamente o alimento à porta. Por nada deste
mundo, porém, o levaria para Glasgow, onde iniciaria uma nova
vida.
Tentou dá-lo, mas, na sua maior parte, os habitantes de Gay-
mal limitavam-se a tolerar os cães como brinquedo, enquanto as
crianças não atingiam a idade escolar, após o que os
considera-
vam um estorvo, de que se libertavam sem compunção.
Effie, uma das vizinhas de Marie, resumira o problema do
__Fura-Vidas__ com crua nitidez. __O quê? Arranjar um lar para
um
animal que é tão pouco importante como um coelho no mato?
Claro que, se uma pessoa se vai incomodar por um cão, então
que seja um que tenha um pedigree decente, para que se saiba
que custou bom dinheiro.__
Marie aceitou a verdade da afirmação de Effie. Os pescadores
de Gaymal eram abastados e gostavam que tudo quanto possuíam
parecesse caro.
- Desfaz-te dele antes de partires - insistiu Effie. - Dá-o
a um dos barcos, e eles que o deitem pela borda fora assim que
estiverem no mar alto.
Na realidade, porém, essa ideia repugnava a Marie.
- Não me parece justo - objectou. - Afinal, ele nunca deu
muito trabalho. Acho que_ o melhor é muito simplesmente deixá-
-lo aqui. O bicho sempre foi independente e aposto que lá se
ar-
ranj a.
- Se o deixas a vaguear por aí, as pessoas depressa se abor-
recem e não tarda muito que um dos barcos o leve para lhe pôr
fim - ponderou Effie. - É melhor dar-lhe um destino e depois
já não pensas mais no assunto.
- Não tenho coragem - balbuciou Marie.
Effie fitou-a.
- Não gosto de cães, mas, segundo o meu modo de pensar,
é menos cruel desfazer-se a gente de um animal do que
abandoná-lo depois de o ter abrigado. - Deu meia volta,
dirigin-
do-se para casa. - Mas para que estou para aqui a gastar pala-
vras? Vocês, gente de coração mole, resolvem os problemas da
maneira mais cómoda - e fechou a porta.
De volta à cozinha, Marie esforçou-se por decidir se pediria
ou não a um dos patrões dos barcos que pusesse fim ao cão. Se
o
deixasse ficar e se as predições de Effie viessem a
concretizar-se,
de qualquer modo o animal acabaria no mar. Mas, pelo menos-
304 305
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Dois amigos

dizia consigo própria -, quando isso acontecesse já ela ali
não
estaria.
O camião da mobília partira. Marie acomodou-se no carro
alugado que a devia levar durante a primeira parte da viagem,
declarando ao motorista que queria partir o mais rapidamente
possível. Com a cabeça acenou para o __Fura-Vidas__, que
corria
em torno do automóvel como que à espera que o convidassem a
entrar. Quando o carro se afastou, Marie voltou-se para dizer
adeus aos vizinhos reunidos para a despedida. O cão ficou a
olhar ó automóvel até este desaparecer. Depois, trepou para o
degrau da casa vazia e deitou-se, fitando a rua, aceitando a
sua
condição. Os vizinhos demoraram-se a trocar alguns comentários
antes de regressarem a suas casas. Apenas o eco dos gritos das
gaivotas, trazido pelo vento, quebrava o silêncio da rua. O
,_Fura-Vidas__ ocultou a cabeça entre as patas estendidas, mas
os
olhos cor de tabaco continuavam abertos e meditabundos, como
os de um homem a cismar em planos futuros.

ENQUANTO Marie Glenn se afastava de Gaymal, outro auto-
móvel seguia em direcção à aldeia. Neste vinha, além do condu-
tor, um rapazinho de oito anos que contemplava a paisagem com
olhos imensos e impenetráveis. O rapaz, de nome Andy, não po-
deria dizer o seu nome a ninguém, pois, embora fosse uma
criança de aspecto saudável, desenvolvida e forte, de cabelos
louros encaracolados e grandes olhos castanho-escuros, era
com-
pletamente mudo. Quando viam Andy pela primeira vez, as pes-
soas exclamavam com admiração: __Que bonita criança!__; porém,
apenas percebiam que não falava, acrescentavam: __Oh, coitadi-
nho, é mudo!__ E Andy, cujas faculdades auditivas eram perfei-
tas, estremecia ante aquela piedade. Desde que começara a com-
preender a fala dos adultos e consciêncializara a sua própria
infe-
licidade, começara a sentir-se excluído até pelos próprios
pais.
O pai, que trabalhava na marinha mercante e passava longos
meses no mar, deixava Andy e a mãe sozinhos. No entanto, o
facto de mãe e filho viverem juntos não os aproximara. Não que
a mãe demonstrasse falta de afeição para com o pequeno; pelo
contrário, por vezes até a manifestava calorosamente. Porém,
apenas Andy, que fora um bebé muito bonito, iniciara os
primei-
ros passos e a sua mudez se revelou, principiou ela a sentir
uma
espécie de vergonha pela imperfeição do filho. Levara-o a mé-
dicos, a especialistas, que haviam todos afirmado que a
falta da
voz não se devia a qualquer defeito de natureza física.
Contudo,
como o tempo decorresse e ele não revelasse sinais de
melhoras,
o ressentimento dela cresceu, intensificando-se quando lhe
foi re-
_ cusada a admissão na escola local.
_ Tentou ela própria ensiná-lo, incentivando-o durante horas
x sem fim e emitindo simples sons para que ele os imitasse,
até
_ _ que lágrimas de frustração lhe enublavam os olhos ante a
contí-
nua falta de resposta da criança. Notando o desânimo que a
pos-
suía, Andy criou horror às lições, sentindo-se interiormente
ge-
lado sempre que a mãe o mandava sentar no banco defronte
dela
e iniciava a repetitiva recitação dos sons.
Era-lhe menos angustiante aprender outras coisas, tais como
escrever, e partilhava do prazer dela quando eventualmente
con-
seguia desenhar as grandes e irregulares maiúsculas que
forma-
vam o seu nome; no entanto, depois de lhe ensinar a escrever
o
nome, a mãe desinteressou-se das lições, instruindo-o apenas
so-
bre qualquer assunto que lhe parecesse de fácil apreensão,
como
as horas e o valor das moedas.
Começara a pô-lo de lado com frequência, e, se ia às com-
pras, deixava-o com uma vizinha. Andy percebia que a sua mu-
dez embaraçava a mãe e que ele representava para ela uma
terrí-
vel desilusão. Tentava desesperadamente não se importar com
a
sua ausência constante, e à noite, quando a mãe estava em
casa,
permanecia sossegado num canto, a desenhar, enquanto ela se
en-
tretinha com amigos.
O interesse que Andy revelava pelo desenho era grato à mãe,
que nunca lhe faltava com material apropriado; porém, embora
ela muitas vezes o felicitasse pela sua habilidade, apenas
os elo-
gios e as críticas do pai contavam para o pequeno. O pai é
que
sabia de embarcações, e Andy quase sempre desenhava barcos e
navios. Grandes transatlânticos, navios de carga, barcos à
vela,
barcaças de pesca, até botes - desenhava-os todos, e, caso
não
desenhasse embarcações, reproduzia o mar caprichoso, bem
como
cais e portos com gaivotas.
Vira transatlânticos e navios de carga quando fora com a mãe
às docas, a fim de se despedir do pai. Vira barcos
pesqueiros e
grande variedade de embarcações ao passar férias em Aberdeen
com a avó. Agora, porém, já não tinha avó em Aberdeen e a
única água mais próxima era a do lago do parque ou o
indolente

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Dois amigos

rio que separava o parque da cidade. Continuava, no entanto, a
desenhar de memória, contente com o seu mundo privado, en-
quanto escutava as animadas conversas à sua volta. Por vezes,
levantando o olhar, pensava como a beleza da mãe ultrapassava
a
de qualquer outra mulher que se encontrasse na sala, e pergun-
tava a si próprio se, por detrás daquela alegria, ela não
estaria,
como ele, ansiosa que o pai regressasse, de férias, para
poderem
viver os três juntos. Chegou, porém, o tempo em que Andy no-
tou que o número de amigos da mãe diminuíra, confinando-se
apenas a dois ou três e, finalmente, a um - um homem por
quem Andy não nutria especial simpatia. Assim que ele
aparecia,
a mãe insistia para que Andy se fosse deitar.
Quando recebeu um telegrama do pai anunciando a sua che-
gada iminente, em vez de agarrar nos braços de Andy e dançar
com ele à volta da sala, a mãe subiu precipitadamente as
escadas
e começou a fazer as malas. Ao descer, declarou, em resposta
ao
olhar admirado de Andy:
- Vou para fora um tempo.
Tensa, a voz dela. Recomendou-Lhe que não saísse sem o pai
chegar e acrescentou que havia um almoço frio na despensa. De-
pois colocou um sobrescrito ao lado do relógio, sobre a
prateleira
do fogão de sala.
- O teu pai que leia isto quando chegar.
Franzia as sobrancelhas com uma expressão abstracta e tinha
os olhos brilhantes. Ao passar junto do pequeno, este
pousou-lhe
uma mão sobre o braço com ar implorativo.
- Não posso ficar, Andy - declarou numa voz tensa.-
Não vale a pena. IVão posso mesmo. - A mão da criança, esten-
dida, deslizou-lhe do braço. - Porta-te bem - e abraçou-o pre-
cipitadamente.
A porta fechou-se e ela correu pelo carreiro do jardim,
direita
ao automóvel onde um homem a esperava. Não olhou para trás
nem acenou adeus ao filho, que ficou, desamparado, a segurar a
cortina da janela e a vê-la partir.
Nem mesmo quando o pai chegou e o envolveu num enorrne
abraço, Andy sentiu a tensão abandoná-lo; limitou-se a apontar
para a carta pousada sobre a prateleira do fogão de sala. Lan-
çando ao filho um ar intrigado, o pai pegou na carta e
sentou-se
a lê-la. Depois de a ler e reler, levantou-se e pousou uma mão
sobre o ombro de Andy.

- A tua mãe foi para fora por um tempo. . . Penso que não
vai demorar. - Desviava o olhar enquanto falava. - Agora vou
lá acima e depois vestimos as nossas roupas melhores e vamos
sair, está bem? - Sentia-se por demais desnorteado para ver o
olhar ansioso do filho a segui-lo.
Andy ficou ali, desolado. Teria querido que o pai falasse
com
ele, que admitisse que a mãe os deixara por alguém que amava
mais. Gostaria que o pai partilhasse com ele esse desgosto mú-
tuo, pois sentia que se poderiam consolar reciprocamente. Os
ombros descaíram-lhe. Parecia-lhe que até nesse momento de
crise a sua mudez constituía uma barreira; que até o pai
supunha
que a incapacidade de falar significava uma igual incapacidade
de
entender, ou sentir, ou partilhar a emoção. Foi à despensa,
olhou
para a comida, mas não sentiu vontade de comer. Não tinha von-
tade de coisa alguma, nem de sair, como o pai lhe prometera,
com medo de que, quando chegassem a casa, todos os outros ob-
jectos familiares tivessem desaparecido. Finalmente, sentou-se
ao
fundo da escada, rodeando os joelhos com os braços e atento a
qualquer sinal de movimento do pai.
Quando, por fim, o pai desceu, determinadamente animado e
falador, saíram, apesar da relutância de Andy, e, durante as
seis
semanas que se seguiram das férias do pai, o número de progra-
mas de que ambos partilharam excedeu todos os precedentes.
Passeios de comboio e de autocarro ou a pé, pelo campo, pesca-
rias, idas a restaurantes, encheram de tal modo os dias de
Andy
com novas experiências que, à noite, a criança se sentia
demasia-
do cansada para meditar sobre a alteração que a sua vida
sofrera.
No dia em que o pai começou a preparar o regresso ao navio,
mais uma vez Andy se sentiu desesperado.
- Amanhã - declarou o pai, em resposta ao olhar interroga-
dor do filho. Ajoelhou e estreitou-o de encontro a si. -
Combi-
nei ires passar um tempo com a tua tia Sarah. Nunca a viste,
mas
ela viu fotografias tuas e já gosta de ti. - Sentiu o corpo do
fi-
lho retesar-se e cingiu-o mais estreitamente. - E o tio Ben.
Vais
gostar dele. Não desenha barcos como tu, mas constrói-os. Vi-
vem em Gaymal, onde há muitos barcos. Podes ir até ao porto e
desenhares os que quiseres. Estás contente, não estás?
Sabendo que o pai desejava que ele mostrasse entusiasmo,
Andy sorriu vagamente. Aterrava-o a ideia de ir viver com pes-
soas estranhas, mesmo parentes.

308 309
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Dois amigos

- Amanhã vem um carro huscar-nos - continuou o pai.-
Queria ir contigo até Gaymal e ver-te instalado, mas interrom-
peram-me as férias. Portanto, o carro leva-nos até às docas
onde
está o meu navio e despedes-te de mim a bordo antes de
seguires
para casa da tia Sarah.
Andy assentiu, esforçando-se novamente por sorrir.
- Vamos então ao teu quarto ver o que queres levar. Mrs.
Peake, a vizinha, vem fazer a tua mala. Mas queres levar o pa-
pel, os lápis e alguns dos teus desenhos, não?
Enquanto Andy subia lentamente as escadas, o pai fitava-o,
perguntando a si próprio se seria mais angustiante ter um
filho
que soubesse traduzir em palavras o medo e a angústia ou um
como Andy, que apenas transmitia esses sentimentos através do
corpo descaído e da aflição do olhar.
Nas docas, Andy viu o pai trepar as escadas do portalõ do
seu
navio, voltar-se e acenar-lhe adeus. Estoicamente, regressou
ao
automóvel. O motorista, que conversava animadamente, na tenta-
tiva de o distrair, reparou contudo que Andy estava tenso da
emoção contida. Temendo pronunciar algo que desencadeasse a
crise reprimida, recaiu no silêncio, sentindo um alívio
quando,
pouco depois das cinco, entraram em Gaymal e pararam defronte
de uma casa, três portas adiante da antiga casa de Marie
Glenn.

O __Fura-Vidas,_ permanecia deitado sobre o degrau superior
da casa vazia, para onde regressara depois de devorar o jantar
que Marie Lhe deixara na tigela junto do depósito de carvão. O
cão esperava sistematicamente que o relógio da igreja batesse
as
doze para começar a comer, excepto quando este se atrasava,
porque tìnha uma aguda percepção do tempo.
Observou o automóvel que chegava, tal como observara tudo
o que se passara na rua desde que Marie partira. Viu a criança
descer do carro e ser recebida por uma mulher roliça e activa
que
usava um avental florido sobre o vestido azul. Andy, que repa-
rara na casa com ar de vazia e no cão para ali deitado
sozinho,
puxou pela manga da tia, ao mesmo tempo que apontava para o
animal. A mulher deteve-se, a fim de lhe fornecer uma explica-
ção, sacudindo a cabeça em sinal de desaprovação na direcção
do
cão. Depois desapareceu no interior da casa, acenando ao pe-
queno para que a seguisse. Andy, porém, deteve-se um momento
a fitar o __Fura-Vidas__, que lhe retribuiu o olhar.

QUANDO Andy entrou na cozinha da tia Sarah, imediatamente
lhe surgiu a ideia de que essa divisão se assemelhava à sua
pro-
prietária: pequena, limpa, brilhante. Havia cortinados brancos
nas
janelas que condiziam com o cabelo de Sarah e, acompanhando o
crepitar do lume na lareira, a mulher tagarelava, enquanto se
ata-
refava de um lado para o outro. A mesa estava posta para o al-
moço.
- Gostas de arenque curado, não gostas, Andy? - pergun-
tou a tia, desembaraçada.
Andy acenou afirmativamente. Embora não tivesse apetite,
não queria arriscar-se a ser interrogado por aquela mulher
palra-
de ira.
- Também o teu tio Ben. São bons os arenques, nestes sí-
tios. E creio que não há melhor peixe no mar do que o arenque.
- Colocou algumas travessas no forno. - O teu tio Ben deve
estar a chegar, portanto vem comigo para eu te mostrar onde
vais
dormir. - Pegou numa das malas e começou a subir as escadas.
Andy pegou na outra mala e seguiu-a.
- Aí tens - disse ela, abrindo a porta de um quarto cheio
de bibelots. - Que tal?
A boca da tia Sarah franzia-se, e a Andy passou despercebido
o sorriso dos seus olhos. Olhou em volta e aprovou com um
sinal
de cabeça, fazendo o possível por parecer grato. Era um quarto
agradável, mas não obstante estranho, facto que quase o fez
ir-
romper em lágrimas. Aliviou-o o facto de a tia se afastar,
depois
de lhe declarar que o tio gostava de comer apenas chegasse,
pelo
que lhe pedia que se limitasse a lavar as mãos e descesse
imedia-
tamente, deixando para mais tarde o desfazer das malas. Andy
dirigiu-se à casa de banho, onde passou o rosto por água fria
até
se sentir mais confortável, após o que desceu.
- Chegou o tio Ben - anunciou a tia Sarah. Quase imedia-
tamente, a porta das traseiras abriu-se e o tio entrou. O tio
Ben
era alto e magro, com cabelo grisalho desalinhado e um rosto
mal barbeado e crestado pelo ar do mar. Ao ver Andy, os olhos
azuis iluminaram-se-lhe, enquanto se adiantava para lhe dar um
caloroso aperto de mão, desejando-lhe as boas-vindas e
afirmando-lhe o prazer que ele e a tia Sarah sentiam em ter
al-
guém jovem em casa. Apenas o tio Ben pareceu ter ternzinado as
boas-vindas, a tia Sarah, que já dispusera os arenques na tra-
vessa, convidou-os a sentarem-se à mesa.

310 311
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Dois amigos

Andy comeu três arenques, ou pelo menos havia os restos de
três arenques no seu prato, uma vez a refeição terminada;
porém,
aproveitando os momentos em que os tios não o observavam,
co-
locara um pouco de arenque entre duas fatias de pão com man-
teiga e guardara a sanduíche no bolso, onde também escondera
dois scones.
Desde que a tia lhe explicara que o __Fura-Vidas__ fora
aban-
donado, decidira tentar cuidar do cão, propósito esse que,
se-
gundo calculava, não teria dificuldades em cumprir, desde
que a
tia servisse sempre reteições tão abundantes como a que
acabara
de saborear.
Depois do almoço, enquanto a tia lavava a loiça,
esgueirou-se
para o exterior, e, ao lusco-fusco, encaminhou-se de
mansinho
para a casa desabitada. O cão viu-o aproximar-se. Ignorando
se o
animal era ou não feroz, Andy cortou um pedaço da sanduíche
de
arenque e estendeu-lho. Como já comera a sua refeição, o
__Fura-Vidas_,, que não sentia fome, mostrou-se
desinteressado,
sem, no entanto, deixar de ficar intrigado. Embora
preferisse
por sistema evitar as crianças, barulhentas e irrequietas,
confundiam-no as insinuações pacientes e mudas daquele
menino,
que se pôs a observar, enquanto apenas um leve agitar da
orelha
quebrava a sua imobilidade. Andy pousou a sanduíche e os
sco-
nes no chão, ao lado do __Fura-Vidas,_, e recuou um passo ou
dois - os alimentos continuavam, porém, a ser ignorados.
Aventurou-se mais perto, estendendo a mão, à espera de que o
cão, cheirando-a e compreendendo que se tratava da mão de um
amigo, eventualmente a lambesse, em sinal de aceitação. O
ani-
; mal olhou para a mão e afastou o olhar. Não tinha o hábito
de
lamber mãos. Andy, a quem se afigurou que o __Fura-Vidas__
des-
denhava a sua oferta de amizade, tombou de joelhos no degrau
inferior da porta, no escuro, a cabeça escondida nos braços,
o
corpo sacudido pelos soluços por tanto tempo reprimidos.
Nessa
altura, o._Fura-Vidas__ desceu até ao degrau inferior e
pousou ca-
rinhosamente a pata no pescoço do rapazinho, olhando em
redor,
I como se receoso de que alguém testemunhasse essa sua
desacos-
tumada exibição de ternura. Não precisava de se preocupar,
po-
rém.
A noite caíra quase por completo, e a rua permanecia imersa
em silêncio, até que uma porta se abriu e Andy ouviu a tia
chamá-lo.

CAPÍTULO II

UM dos mais belos navios da frota pesqueira de Gaymal era o
Crista de Prata, cujo patrão, Jake, dele se orgulhava como se
de
um filho se tratasse.
Quando o filho completou seis semanas, a mulher de Jake
anunciou que o devia levar a casa dos avós, a fim de o mostrar
à
família. A __casa__, para Jeannie, continuava a ser a quinta
que os
pais tinham arrendado nas ilhas distantes, e não a casa onde
vivia
com Jake, em Gaymal. Jeannie proeurava pretextos constantes
para visitar os pais. De facto, a família reclamava tão
insistente-
mente a sua presença que, ao longo de três anos de casados,
Jake
duvidava de que a mulher tivesse vivido com ele mais de seis
meses. A esperança do pescador, a quem magoava a alegria com
que Jeannie dele se afastava tão frequentemente, era que, após
o
nascimento da criança, ela se dedicasse mais, se não a ele, ao
lar
que mantinha à custa de um trabalho tão duro.
Ao vir da copa para a cozinha, onde Jeannie passava a ferro,
o pescador comprimia com uma toalha as faces acabadas de bar-
bear e apenas os olhos lhe traíam a infelicidade. Embora hou-
vesse ocasiões em que pensava em opor-se terminantemente às
frequentes ausências de Jeannie, o aspecto dela, tão loira,
tão
nova e tão frágil, contrastava de tal modo com o dele,
corpulen-
to, tisnado e de voz troante, que temia parecer um tirano a
seus
ólhos. Assim, ia-a desculpando, concedia-lhe tudo quanto elã
lhe
pedia e jamais se queixava da falta de interesse por ele
demons-
trada.
- A criança não será pequena demais para viajar? - pergun-
tou, esforçando-se por suavizar o tom de voz, que se lhe
tornou
quase meiga.
- Claro que não - retorquiu Jeannie, passando o ferro pelas
mangas de um casaquinho. - E para mais ainda não estamos no
Inverno.
Jake dirigiu-se ao berço, ao canto da sala, e, levantando a
coberta, contemplou o filho adormecido. A sua boca apertada
abriu-se num sorriso terno. Seria que ia ver tão poucas vezes
o
filho como via a mulher? - perguntou a si próprio com amargu-
ra. Notara que Jeannie, outrora tímida e sedutora, com a sua
pele
clara e macia e o cabelo farto, perdera toda a timidez
imediata-
mente após o casamento; e embora a pele e o cabelo se man-
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Dois amigos

tivessem tâo atraentes como dantes, raramente a via doutra
ma-
neira senão como estava agora: de pantufas e roupão, o
cabelo
enrolado em bigoudis. E entristecia-o o facto de Jeannie
ocupar
os fins-de-semana que ele passava em casa com limpezas e
arru-
mações, quando, embora apreciasse ter uma casa asseada,
prefe-
riria que esta fosse um local onde pudesse descansar do
constante
baloiço do mar, com uma mulher bem vestida a recebê-lo e a
par-
tilhar com ele o conforto da lareira e onde recebesse alguns
vizi-
nhos no fim do jantar para um trago de aguardente.
Tal como a maior parte dos pescadores, Jake era um homem
! romântico que, quando casara, sonhara com a folga dos
fins-de-
-semana para esquecer os desconfortos do barco, regressar a
casa
e gritar da porta: __Já cheguei, Jeannie__; abraçá-la;
pegar-Lhe ao
colo e levá-la para a cozinha. No entanto, ainda antes de
Lhe to-
car, já ela lhe notava a ansiedade no olhar e o repelia. Não
apre-
ciava uma meiguice que considerava piegas. Agora, aos
fins-de-
-semana, voltava para uma saudação indiferente da mulher e a
azáfama do trabalho doméstico, ou então, com demasiada fre-
quência, para uma casa limpa e asseada, mas fria e vazia,
onde
um bilhete colocado sobre a mesa o informava: __Fui a casa -
a
mãe não está bem. _,
As ausências de Jeannie, a princípio de duas ou três
semanas,
acabaram por prolongar-se por meses, e Jake compreendeu que,
afora o apoio financeiro, pouco mais ela desejava dele. E o
pes-
cador perguntava a si próprio se Jeannie precisaria realmente
da-
quilo que qualquer homem lhe poderia dar, uma vez que as jo-
vens das ilhas tinham fama de serem mais dedicadas aos pais do
que aos maridos.
Carinhosamente, Jake tornou a cobrir o filho. Depois
pigarreou.
- Gostava de ter a criança perto, Jeannie.
- E como o podes ter perto se andas toda a semana a pescar?
- escarneceu a mulher.
- Mas, Jeannie, eu tenho de ganhar para nós, não é verdade?
Precisava de ganhar muito dinheiro para satisfazer os capri-
chos de Jeannie, que se cansava rapidamente das coisas. Jake
calculava que, desde que haviam casado, comprara mobília que
chegaria para três casas. Só ele sabia como detestava reunir a
tri-
pulação com um tempo que levava os outros patrões a comentar:
__É a ganância ou a necessidade que faz com que um homem vá
para o mar num dia destes?__

Jeannie encolheu os ombros.
- Bem, não tenho culpa de gostar de companhia. Estou habi-
tuada a tê-la.
- Não podes arranjar amigas entre as outras mulheres? Se-
riam uma companhia para ti.
- Não são do meu sangue.
-Claro que não - replicou resignadamente Jake. - De
qualquer modo, repito que gostava de ver o meu filho crescer.
Estou a pedir-te que não te demores.
- Depende da saúde do pai - a voz de Jeannie crepitava
como achas no lume acabado de acender. - Na última carta, a
mãe diz-me que ele não está a passar muito bem. - Pousou o
ferro e começou a juntar a pilha de roupa.
Jake olhou para a mulher, desconsolado como sempre pela
indiferença que ela demonstrava para com ele; era, contudo,
de-
masiado orgulhoso para ser capaz de discutir com ela. Abriu,
pois, um armário, de onde retirou algumas ferramentas.
- Qual é a prateleirá que queres que eu fixe? - perguntou-
-lhe com voz fatigada.

ASSIlvt que os primeiros raios de luz acariciaram os cimos
das
colinas, o __Fura-Vidas__, que passara a noite deitado nos
degraus
da sua antiga casa, ergueu-se, espreguiçou-se e começou a
descer
a rua. Quando, após o pequeno-almoço, saiu de casa da tia,
Andy ficou desapontado por não ver o cão e resolveu ir
procurá-
-lo. Como todas as ruas de Gaymal conduziam ao porto, acabou
por se encontrar no molhe.
Deteve-se, estupefacto. Já visitara docas com o pai, mas
agora todas lhe pareciam pouco amplas e tristes em comparação
com o espectáculo que Lhe oferecia a de Gaymal, onde havia
tanto mar, tanto céu, tanta cor e tanto movimento que o
pequeno
se sentiu envolvido pela paisagem, os sons, os cheiros do
porto.
Esqueceu-se de procurar o __Fura-Vidas,_; esqueceu a dor e a
an-
gústia das últimas semanas; esqueceu-se mesmo de que era mu-
do, pois devido à algazarra intensa do porto recorria-se
frequen-
temettte aos gestos, mais do que às palavras.
O número de embarcações era imenso: lanchas com forneci-
mentos, um salva-vidas a baloiçar nas amarras, e ao fundo do
molhe um vapor a levantar âncora, preparando-se para partir.
Carregadores de peixe sorriam-lhe ao passar, e ele
retribuía-lhes

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Dois amigos

o sorriso, extasiado. Esgueirou-se por entre as caixas de
peixe,
as carrinhas movendo-se sobre rolamentos de esferas, os
barris,
as mangueiras e os cabos - os sapatos a pisar carapaças de
ca-
ranguejo ou escorregando em peixe esmagado no lodo pelas
rodas
dos camiões até um carreiro que o levou ao estaleiro onde o
tio
Ben trabalhava.
Tal como o pai profetizara, _ndy afeiçoara-se imediatamente
ao tio Ben. Não nutria pela tia Sarah, que lhe parecia
demasiado
apressada, um se_:imento tão definido. Mas o tio Ben f.álava
de-
vagar e tinhà uns olhos sorridentes; e o pouco que dizia era
num
i tom amável, com palavras reconfortantes. Na sua presença,
Andy
experimentava a mesma sensação de ternura e segurança que na
presença do pai.
O pequeno encontrou o tio a trabalhar num barco de pesca
içado por um guincho, que embatera contra um rochedo e
neces-
sitava de algumas pranchas novas. Segundo o tio lhe
explicou, a
sorte protegera a embarcação, que poderia ter-se afundado,
com
toda a sua tripulação, se tivesse sobrevindo uma tempestade.
E,
enquanto falava, o tio acariciava o costado da embarcação
com
tanto carinho como uma mãe alisando o lençol do berço ao
cobrir
o filho adormecido.
Andy, que jamais vira nada cujas dimensões se equiparassem
às de um barco inteiramente fora de água, estava
impressionado.
! De pé por baixo da embarcação, e percorrendo com o olhar o
casco
e a quilha, admirava-lhe a beleza das linhas. O tio Ben, que
o
observava, retirou o cachimbo da boca e comentou:
- Um barco é uma beleza, rapaz.
Andy compreendeu subitamente que já não se contentaria com
desenhar barcos: queria ir para o mar, num navio igual
àquele.
Ao bater das doze no relógio da igreja, que lhes lembrou a
hora do almoço, o tio Ben, num jeito vagaroso de artífice
dedi-
cado, pousou a ferramenta. Deixaram juntos a doca, treparam
para o cais e seguiram em direcção a casa. Ao virarem a
esquina
da rua onde moravam, deparou-se imediatamente a Andy um
grande camião estacionado defronte da casa desabitada, de
onde
vários homens descarregavam mobília. __Onde está o `Fura-
-Vidas'?__, pensou, alarmado, censurando-se por ter
esquecido a
sua intenção de procurar o cão no porto. Atrasou o passo
para
que o tio lhe passasse à frente. Supunha que o
__Fura-Vidas_, secia
receptível a mais tentativas de aproximação. A chegada de
gente

nova, porém, que eventualmente não gostaria de cães ou teria

um, poderia alterar-lhe os planos. E nesse momento viu o
__Fura-Vidas__.
Impelido pelo hábito, o cão, que passara a manhã passeando
pelo molhe e pelo estaleiro, como usualmente, ao ouvir o
relógio
bater as doze badaladas, retomara a direcção do seu antigo
lar.
Ao ver o camião das mobílias e pessoas estranhas que entravam
e
saíam da casa, dirigiu-se às traseiras, a fim de se certificar
de
que a sua escudela se encontrava no mesmo local, junto do
depó-
sito do carvão. Constatou que a mesma estava vazia, afora
algu-
mas gotas de chuva e o cheiro a comida do dia anterior.
Lambeu-a, mais para defender os seus direitos de propriedade
do
que pela humidade com gosto a carne; porém, enquanto a lambia,
uma mulher de cabelo ruivo apareceu e, com um grito,
atirou-lhe
uma pedra, que caiu a seu lado.
Vexado, mas cheio de dignidade, o __Fura-Vidas,_ retirou-se
para o outro lado da rua, onde se deitou, a observar o que se
passava. Na esquina, a pequena distância, soou um ruído estri-
dente, provocado pela escudela vazia que rolava na calçada. O
__Fura-Vidas_, permanecia no mesmo local, semioculto pelo
enorme camião, quando Andy o descobriu. O pequeno correu
para o cão, sobre cuja cabeça pousou a mão; depois acocorou-se
e deixou o braço deslizar em torno do pescoço do animal. A
res-
posta do __Fura-Vidas,_ foi uma apressada lambidela na orelha.
Notando a escudela vazia na sarjeta e adivinhando o signifi-
cado do facto, Andy perccbeu que teria de providênciar a fim
de
conseguir alimento para o cão. Apanhou a escudela e, com uma
encorajadora palmada na cabeça do animal, entrou em casa para
almoçar. Assim que a refeição terminou e a tia levantou a
mesa,
o pequeno mostrou-lhe a escudela vazia, implorando mudamente
os restos.
- De modo nenhum! - declarou a tia com firmeza. - Não
te vou dar comida para a levares a esse cão. Se tentares
manter o
bicho por aqui, aborreces os vizinhos e acabas por ser tu
mesmo
a causa da sua morte. - Ao ver o ar de consternação da
criança,
insistiu: - A mulher que se mudou para aquela casa esteve aqui
de manhã a tomar uma chávena de chá comigo e disse-me que
detestava cães e que, se o __Fura-Vidas__ continuar a rondar a
ca-
sa, o marido se vai queixar à Polícia. - Dobrou a toalha e
acrescentou: - E então libertam-se dele de qualquer

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Dois amigos

maneira. O melhor que tens a fazer por esse cão, Andy, é
afastares-te dele e evitares que ele te siga. - Olhando de
relance
para o tio Ben, Andy constatou que este confirmava tristemente
com um aceno as palavras da mulher.
Desanimada, a criança ocultou a escudela sob a samarra e
saiu.

No momento em que Andy viu de novo o __Fura-Vidas_,, o
seu desânimo transformou-se em determinação - se pudesse
alimentar o cão e protegê-lo até o pai vir de licença, tinha
a cer-
teza de que este descobriria um processo que lhe permitisse
eon-
servar consigo o animal. E desejou, como tantas vezes
desejara,
; poder corresponder-se com o pai, saber ler e escrever como
as
outras crianças da sua idade.
Aproximando-se do cão e mostrando-lhe a escudela, Andy
instigou-o a segui-lo. Antes de sair de casa certificara-se
do di-
nheiro que tinha no bolso, e, como a mãe Lhe ensinara a
contar,
calculou que a quantia disponível bastaria para prover ao
sustento
do __Fura-Vidas,_ durante três dias; ora, decorridos
exactamente
três dias, receberia mais dinheiro da quantia que o pai
deixara
; para satisfazer as suas necessidades quotidianas.
Dirigiu-se a uma mercearia onde lhe foi relativamente fácil
apontar para uma lata de comida para cães e para um
abre-latas,
'i
entregar o dinheiro necessário e sair. Correu depois com o
__Fura-Vidas__ para uns barracões que se erguiam n_
estaleiro. O
cão espiava-lhe os movimentos. O pequeno pousou a escudela
no
chão, abriu a lata e extraiu-lhe o conteúdo. Os olhos do
__Fura-
-Vidas_, pousaram-se na comida e o focinho estremeceu-lhe.
Ainda não completamente convencido, fitou a criança, que em-
purrou a escudela, aproximando-a mais do animal, o qual só
en-
tão, com um grave abanar da cauda, que Andy supôs significar
__obrigado__, começou a comer. Acocorado, de costas apoiadas
à
parede, Andy sorria.
A próxima démarche consistia em tentar descobrir um lugar
onde o cão pudesse dormir à noite livre de perigos. Embora
con-
siderasse que um dos barracões vazios onde dera de comer ao
cão
poderia eventualmente servir para o efeito, necessitava de
arran-
jar, e ignorava de que modo, sacos ou qualquer trapo para
cobrir
o chão húmido. Toda a tarde o pequeno e o cão vaguearam por
Gaymal, e à hora do chá ainda Andy não descobrira uma alterna-
tiva mais confortável para abrigar o companheiro.

A tarde ca:a, e Andy sabia que chegara a altura de deixar o
__Fura-Vidas__. Batendo as palmas, apontou-lhe o estaleiro,
mas o
cão permaneceu junto dele. Tentou bater com os pés; tentou
esconder-se; o cão não arredava pé. Sentindo-se um traidor,
Andy pegou finalmente numa pedra, atirou-a de modo a não ma-
goar o animal e simulou uma investida ameaçadora na sua direc-
ção. O __Fura-Vidas__ mostrou-se surpreendido, mas não
dissuadi=
do. Andy começava a afligir-se. E foi o tio Ben, que voltava
do
barbeiro, quem resolveu a questão.
- Vai-te embora, cachorro! - ordenou. - Vai!
Obedecendo àquela voz calma e autoritária, o cão desandou
por fim rumo ao estaleiro.
No dia seguinte, domingo, o tio Ben ofereceu-se para mostrar
Gaymal a Andy. Ao dobrarem a esquina da rua, a Andy, encan-
tado, deparou-se-lhe o._Fura-Vidas,_, aparentemente à sua
espera;
porém, como ignorava a atitude que o tio adoptaria para com o
cão, limitou-se a fazer-lhe discretos sinais para que o
seguisse.
Todavia, quando o tio tomou o carreiro que serpenteava até ao
brejo, o __Fura-Vidas", numa certeza que se enraizava de ser
bem
aceite, colocou-se ao lado deles. De tempos a tempos, Andy
olhava ansiosamente para o tio, que, contudo, parecia não se
sen-
tir importunado pela presença do cão, chegando mesmo a obser-
var, a determinada altura, que o animal era __um bonito cão,_
e
que era de lamentar o facto de ninguém tomar conta dele. Quan-
do, porém, chegou a hora do regresso a casa, o tio Ben ordenou
numa voz flrme: __Agora vai-te embora! Vai-te embora!__ Obe-
dientemente, depois de lançar um olhar de censura na direcção
de
Andy, o __Fura-Vidas__ deu meia volta e retomou lentamente a
di-
recção do porto.
Após o almoço, Andy, com os restos do seu prato no bolso e
a escudela sob a samarra, foi procurar o __Fura-Vidas__.
- Volta pelas quatro horas - disse a tia. - Temos de ir à
igreja logo à noite e precisamos de jantar mais cedo.
Andy encontrou o cão a vaguear no molhe entre pilhas rle
caixas de peixe. Quando viu o pequeno, o __Fura-Vidas_, perma-
neceu como que indeciso, hesitando se devia ou não reunir-se-
-lhe. Tendo em vista a maneira como o tratara na noite
anterior e
nesse dia de manhã, Andy não podia censurar o animal pelo seu
comportamento. Colocou na escudela os restos, dos quais o cão
se aproximou lenta e inquisidoramente, mas que acabou por

318 319
#

Dois amigos

devorar com gosto. Andy acariciou-o, lamentando não poder
chila, pensando: __Óptimo! Precisamente o necessário para dois
explicar-lhe a situação, e o _,Fura-Vidas__, por seu turno,
deu-Lhe exploradores.__
uma lambidela na orelha. A amizade parecia novamente
restabe- Alegrou-se ao ver o __Fura-Vidas_, à sua espera. Não
obstante
lecida. A aproximação das quatro horas e a necessidade de
man-
a estranheza do tratamento, o cão compreendera finalmente
que a
dar o cão embora tornou-se motivo de preocupação para a
crían- criança nutria por ele verdadeira amizade. Quando notou
que
ça que esperou até chegarem aos estaleiros, só então se
voltando Andy 5e aproximava, as orelhas estremeceram-Lhe, a
cauda co-
a fim de lhe apontar o caminho, batendo as palmas. Imediata-
meçou a abanar e, para alegria do pequeno, os olhos
mente o __Fura-Vidas__ se deitou, não tenIando mais
segui-lo. iluminaram-se-lhe de boas-vindas. Amor e gratidão
por se sentir
querido enchiam a alma da criança que, curvando-se, deixou
que
EMBORA 5e interrogasse tristemente sobre as probabilidades
de o :_Fura-Vidas__ lhe lambesse a orelha, antes de ambos se
precipi-
o cão voltar a aproximar-se dele, Andy, na manhã seguinte,
acor- tarem, felizes, em direcção ao brejo.
dou com a mente a fervilhar de plano5. Iria explorar o brejo
e as Com o sol de Setembro a quebrar a espada afiada do vento
e
colinas dos arredores da aldeia, onde descobriria talvez uma
ca- a urze a crescer debaixo dos pés, Andy deliciava-se ante a
liber-
verna que pudes5e servir de abrigo seguro para o
__Fura-Vidas__. dade e a largueza do brejo. Sem experimentar
qualquer sensação
Quando desceu do quarto, o pequeno comunicou por gestos à de
medo, na companhia do __Fura-Vidas__, começou a busca da
tia que gostaria de levar consigo o almoço e passar o dia
fora. O caverna, assustando-se apenas quando enfrentava uma
manada de
tio Ben só vinha almoçar a casa aos sábados e domingos, o
que vacas mal encaradas ou um coelho se Lhe atravessava no
cami-
muito agradava à mulher, cujas arrumações e limpezas não
sofriam nho. E caminhou durante muito tempo, até reparar que o
cão o
assim interrupções. Na realidade, a perspectiva de ter Andy
em não acompanhava. Retrocedeu e, acariciando a cabeça do
casa todo o dia preocupara a princípio a tia Sarah. Porém, o
abalo __Fura-Vidas,_, incitou-o a segui-lo. Como essa medida
não surtisse
que sentira ao vê-lo chegar com os seus grandes olhos
atentos, en- efeito, pousou a mochila, resolvido a examinar as
patas do cão.
sombrados pela amargura e o cansaço, fizera-a mudar
instanta- O,_Fura-Vidas__ ergueu-se, farejou o saco e
deitou-se de novo,
neamente de opinião. fitando Andy com um olhar hipnótico,
após o que repetiu os mesmos
Nessa noite, depois de Andy se deitar, a tia Sarah sentou-se
gestos. O pequeno compreendeu que o animal tinha fome. Consul-
junto ao lume, frente ao marido, que Iia o jornal. Ben
levantou a tando o relógio e constatando que passavam cinco
minutos do meio-
cabeça e notou que os olhos de 5ua mulher, de natureza
brusca e -dia, sentou-se numa moita de urze encostado a um
penedo. Abriu
geralmente pouco comunicativa, estavam brilhantes de
lágrimas. então o saco das provisões e, colocando metade das
sanduíches e das
- Imagina uma mãe fazer isto a um filho, Ben. Imagina só. .
. salsichas na escudela, empurrou esta para junto do __
Fura-Vidas__,
E o monossilábico e plácido Ben surpreendeu a mulher com que
começou a abanar a cauda com ar aprovador.
este comentário explosivo: Depois de comerem, o animal
mostrou-se outra vez animado
- Um monstro, essa mulher! Um monstro! a acompanhar o
pequeno, que compreendeu assim que o cão se
Agora a tia Sarah cortava uma pilha de sanduíches para Andy,
recusara a obedecer às suas ordens por sentir fome.
a que juntou meia dúzia de salsichas frias e duas fatias de
bolo, Prosseguindo na sua busca da caverna, Andy chegou final-
f I dirigindo-se em seguida a um armário debaixo das escadas.
mente a uma brecha aberta entre duas rochas que se encostavam
- Aqui tens, Andy - trazia um bornal. Andy observava com
uma à outra formando um V. Rastejando penetrou no buraco,
I prazer a tia a acondicionar no saco os alimentos e um copo.
- Há que constatou ser suficientemente amplo para Lhe permitir
água com fartura nos brejos - acrescentou, ajudando-o a
colocar sentar-se e suficientemente seco para proporcionar ao
__Fura-
a mochila ao ombro. - Pronto. Vai. - Mas mais uma vez Andy
-Vidas,_ um abrigo confortável. Apanhou e amontoou fetos e
erva
notou apenas os lábios apertados, sem reparar no calor do
seu seca, improvisando assim uma cama que em seguida ele
próprio
olhar. Subiu rapidamente as escadas e guardou a escudela na,
mo- experimentou.

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Dois amigos

Considerando-a suficientemente confortável, convidou o cão a
deitar-se a seu lado; contente, embora alerta, o
__Fura-Vidas_4
acomodou-se. Andy escutava o vento e o vago murmúrio do mar,
e os olhos fecharam-se-lhe.
; Ao acordar, o Sol pairava sobre as colinas e no mar os
barcos
pesqueiros entravam no porto. Horas de regressar a casa. No
en-
tanto, antes de partir, precisava de convencer o
_,Fura-Vidas" a
permanecer no seu refúgio.
O cão, a princípio relutante em obedecer e decidido a
acompa-
nhar Andy, subitamente pareceu entender; como recompensa, o
! pequeno retirou da mochila as duas fatias de bolo, que
colocou na
i escudela do animal. Depois afastou-se, olhando de vez em
quando
para trás, a fim de se certificar de que o __Fura-Vidas__
não o se-
guia. A última vez que olhou, viu o perfil do cão, no cimo
de um
; alto rochedo, recortado no último clarão do Sol, como que a
despedir-se dele.

NA manhã seguinte, o __Fura-Vidas__ esperava Andy na rua
principal da aldeia, que se tornara o seu local de encontro
habi-
tual, e novamente os dois caminharam rumo aos brejos. Ao
chega-
rem à caverna, Andy, notando com alívio que o cão se servira
da
cama, apontou para a cova redonda, semelhante a um ninho, e
acariciou o __Fura-Vidas,_, antes de prosseguir nas suas
explora-
ções, trepando os outeiros, parando para beber da água límpida
das fontes, para chapinhar ou atirar pedras aos lagos frios e
som-
breados pelas montanhas. Desta vez não lhe foi difícil
persuadir o
cão a permanecer no local assim que chegou a hora de regressar
a
casa, embora, tal como na véspera, o animal insistisse em
saltar
para o alto de um rochedo a fim de o ver partir.
A amizade entre o pequeno e o cão ganhou raízes. Todas as
manhãs o __Fura-Vidas_, esperava por Andy,' e ambos se
dirigiam
para os brejos, por onde vagueavam, ou desciam até ao porto.
Durante as primeiras semanas que se seguiram à sua chegada a
Gaymal, Andy revistava diariamente o correio, na esperança de
que a mãe lhe tivesse escrito - talvez um postal como os que o
pai lhe mandava, com muitos xis, para que ele soubesse que se
lembrava sempre dele e que sentia saudades suas; todavia, à
me-
dida que as semanas se convertiam em meses e a mãe não dava
sinais de vida, o pequeno começou a aceitar o facto de que ou
ela
o esquecera ou desejava que ele a esquecesse. A verdade é que,
se

" _ z
-5 44, _

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Dois amigos

não conseguia esquecê-la, estava a abrir o coração a um novo
afecto que se lhe oferecia.
A juntar à dedicação do __Fura-Vidas__, tinha o tio Ben, que
não ocultava a ternura que sentia pelo sobrinho; e até a tia
Sarah,
cuja brusquidão aparentemente seca a princípio o perturbara,
prin-
cipiava a revelar uma faceta carinhosa. Comprou-lhe mais
lápis e
papel, velava pela sua saúde; preocupada com as deficiências
da
sua instrução, entrou em litígio com o mestre-escola da
aldeia, que
se recusara a admitir o sobrinho como aluno, resolvendo ela
pró-
pria ensiná-lo a ler e a escrever nas longas noites
outonais. Mau
grado a sua rispidez, revelou não só uma capacidade natural
para
i ensinar, como uma admirável paciência para com o pequeno. E
decorridos três meses, Andy, radiante, pôde dar ao pai a
notícia de
que, se lhe mandasse uma carta, ele era capaz de a ler
sozinho.
; Durante o dia, Andy e o __Fura-Vidas_, passavam horas no mo-
lhe, por entre os carregadores de peixe, observando os
barcos. Os
olhos de Andy tornaram-se peritos em identificar cada um dos
bar-
cos muito antes de estes alcançarem o porto. Conhecia a
maior
parte das tripulações e acostumara-se a que lhe atirassem um
cabo
para que o atasse a um poste de amarração, ou até a que o
chamas-
i sem a bordo para recolher garrafas vazias e levá-las ao mer-
ceeiro, sendo-lhe permitido guardar o valor do depósito, que
apre-
ciava duplamente porque representava uma ajuda para a compra
de
alimentos para o __Fura-Vidas__, tornando-se assim mais
abundan-
tes as refeições do animal, constituídas por restos que
escondia.
Também o tio Ben colaborava, guardando os restos do seu
próprio
prato; e se a tia Sarah alguma vez reparou no total
desapareci-
mento dos alimentos servidos à mesa, no final das refeições,
ja-
mais pronunciou qualquer comentário.
Após um longo Outono, os ventos de Inverno começaram a
soprar, rasgando a pele como um pente de dentes de aço. A
neve,
que cobrira os cimos dos montes, revestia-lhes agora as
encostas,
num manto progressivamente mais espesso, e os pescadores e
car-
regadores cruzavam os braços sobre os fatos de oleado,
tentando
I manter-se quentes durante os momentos de inacção. Andy,
agasa-
lhado com camisolas grossas que a tia lhe tricotara e
envolto no
casaco de oleado, começou a sentir-se de novo seriamente
preo-
! cupado com o __Fura-Vidas__. A caverna era demasiado exposta
para oferecer um abrigo confortável durante o Inverno, e
quando,
! numa manhã fria mas seca, notou a humidade que eriçava o
pêlo

do cão, dirigiu-se até à caverna, a fim de investigar as
condições
do abrigo. Desanimado, notou que a ca:na que improvisara para
o
cão estava húmida e, exercendo pressão sobre ela, verificou
que o
solo da caverna não passava de um pântano. Recolheu mais
fetos,
que contudo se apresentavam molhados da chuva, e ainda que o
local não párecesse desagradar totalmente ao __Fura-Vidas_,,
Andy
não conseguiu dormir nessa noite, preocupado com o problema
do abrigo para o amigo.
Algumas noites depois caiu um pesado nevão, e Andy encon-
trou o __Fura-Vidas,_ à sua espera, enterrado na neve que lhe
che-
gava à barriga; as orelhas pendiam-lhe, e o pêlo
apresentava-se
salpicado de flocos de neve que derretiam. Quando o animal
cam-
baleou ao tentar acompanhá-lo, o pequeno compreendeu que o cão
estava doente. Desesperado, resolveu tentar persuadir o tio
Ben a
ajudá-lo a descobrir um lugar quente e seguro onde o __Fura-
-Vidas,_ pudesse pernoitar. No estaleiro, o tio Ben observou,
com-
preensivo, a expressiva e comovente mímica de Andy, e, depois
de apalpar o focinho quente do cão, conduziu o animal e a
criança
para a extremidade do alpendre onde se empilhavam tábuas e
des-
perdícios de algodão. Andy ergueu para o tio um olhar
agradecido
e começou a arranjar uma cama onde o __Fura-Vidas" se acomodou
antes mesmo que ele desse a tarefa por terminada. Durante três
dias, o animal permaneceu deitado, numa imobilidade quase
total
e numa apatia que o deixava indiferente mesmo perante os
alimen-
tos. Temendo que o amigo lhe morresse, Andy raro deixava o
bar-
racão, senão a insistência do tio.
No quarto dia, o __Fura-Vidas__ levantou-se para saudar
Andy,
que no sexto dia teve a satisfação de encontrar o amigo à sua
es-
pera na estrada, no local habitual. Andy congratulava-se pelo
facto
de o __Fura-Vidas__ ter um novo abrigo, porque agora, no rigor
do
Inverno, a tia Sarah proibira-o de ir sozinho para os brejos.
Tanto
a criança como o cão limitavam os seus passeios ao porto ou
aos
campos que rodeavam a aldeia, e, quando a noite descia, Andy
acompanhava o amigo aos estaleiros e à sua cama quente.



CAPÍTULO III

PARA o patrão Jake e a tripulação do Crista de Prata a época
de
pesca fora desastrosa. A uma avaria no motor, que começara por

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Dois amigos

obrigá-los a permanecer no porto durante quase duas semanas,
seguira-se uma série de contrariedades, tais como estragos
de re-
des e avarias em guinchos e engrenagens em consequência de
uma
tempestade. Finalmente, logo que conseguiram navegar, não
en-
contraram cardumes de arenques, e o Crista de Prata
regressou ao
porto com uma magra colheita, o que obrigou a tripulação a
voltar
ao mar imediatamente após a descarga, consentindo-Lhe apenas
duas horas de descanso em vinte e quatro horas. Tendo sido
um
dos mais rendosos navios do porto, era agora o que auferia
meno-
res lucros, e a sua tripulação vivia obcecada pela
superstição se-
gundo a qual a pouca sorte acabaria por redundar em
catásirofe.
Jake, porém, animava os homens. Não obstante os desconfortos
e
as desilusões, nada afectava a sua ambição, que o levava a
querer
pescar em quantidades progressivamente maiores, a fim de ver
os
, seus lucros aumentarem incessantemente. E visto que Jeannie,
a
sua mulher, se encontrava longe, de visita aos pais, a
solidão
aguilhoava-o - a solidão e a dor de estômago, que só o
trabalho
ou o sono profundo acalmavam.
Antes de conhecer Jeannie, Jake, tal como a maior parte dos
pescadores de Gaymal, era um bebedor inveterado, levando os
i fins-de-semana no bar do hotel local a afogar-se em whiskv,
que
passou a beber ainda em maiores quantidades quando começou a
sentir aquela dor, na esperança de a aliviar. E foi a mesma
dor que
o levara a consultar um médico.
- Tem de deixar de beber - avisou-o o médico, depois de o
examinar. - Posso dar-Lhe um remédio, mas os medicamentos
não o curam dos danos provocados pela bebida.
Jake tencionava seguir o conselho do médico, mas em Gaymal
existiam apenas dois locais onde um homem solteiro podia
encon-
trar companhia e descontrair-se durante os fins-de-semana
passa-
dos em terra: o bar e a área situada nas traseiras dos
estaleiros,
conhecida localmente por China Town, uma zona de
prostituição.
Não sendo por natureza um frequentador de meretrizes, Jake
pre-
feria o bar, tendo continuado a beber até Jeannie entrar na
sua
I vida.
Desde o dia em que a vira pela primeira vez atrás do balcão,
na
tabacaria do sítio, desejara-a para sua mulher. A sua figura
pe-
! quena e delicada encantara-o. E ficou surpreendido e
entusias-
; mado quando Jeannie, com quase metade da idade dele, corres-
pondeu às suas tentativas de aproximação.

A alteração que Jeannie introduzira na vida de Jake fora,
a princípio, radical. Na companhia dela esquecia o hábito da
bebida, e, durante o namoro e as primeiras semanas de casados,
mesmo durante as suas duas ou três primeiras ausências de
casa,
Jake renunciou firmemente às idas ao bar - em consequência do
que não só a dor de estômago minorou, como todo o seu orga-
nismo reagiu com uma nova vitalidade. Quando, porém, as
visitas
de Jeannie aos pais se tornaram mais frequentes e mais
prolonga-
das, Jake, desiludido e desgostoso do vazio da casa aos
fins-de-
-s2mana, regressou gradualmente aos hábitos antigos, retomando
a bebida, numa confusão de ideias que desejava confundir com
felicidade.
' ÀS primeiras horas de uma manhã de segunda-feira, depois de
um desses fins-de-semana; Jake chegou ao Crista de Prata de
rosto terroso e olhos injectados. A tripulação olhou-o,
preocupada,
mas só quando o navio saiu para o mar e Jake se pôs ao leme os
homens começaram a comentar o caso.
- Beber é beber... - explodiu um dos mais novos, indig-
nado. - Mas o patrão está a matar-se com álcool.
- É a mulher que o mata -replicou o outro. - Ela sabe per-
feitamente que ele se embebeda sempre que o deixa. Mesmo
assim,
lá vai.
- Uma vergonha! É um bom patrão e custa-me vê-lo assim
por causa de uma mulher - observou outro, de sobrolho franzi-
do. - Para mais agora que tem um filho.
Foi o mais velho da tripulação quem corrigiu:
- Ela é yue tem o filho. . .
Nesse momento ressoou um estrondo. O motor abrandou e,
por fim, deixou de trabalhar. Os homens acorreram ao convés e
viram o patrão a sair da casa do leme.
- Toma conta do barco! - gritou Jake para o homem que se
encontrava mais próximo. - Esse maldito motor está outra vez
avariado - e desceu a correr para a casa das máquinas.
- Aí temos! - declarou o velho para os companheiros. - O
azar ainda não nos deixou.
Depois de uma hora de luta com o motor, Jake conseguiu
energia suficiente para regressar ao porto, onde um técnico os
esperava.
Inspeccionaram ambos o motor, enquanto a tripulação se in-
terrogava lastimosamente sobre o tempo que iam perder.

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Dois amigos

O técnico subiu ao convés acompanhado de Jake, cuja expres-
são era sombria:
- Antes da meia-noite, não... Não é possível.
Um impulso comum encaminhou os pescadores para o bar.
Também para Andy esse dia começara sob o signo da má sor-
te. A tia Sarah falara-lhe de um novo mestre-escola que viera
para Gaymal e que se mostrara desejoso de ter Andy por aluno;
fora combinado que o pequeno começaria as aulas na semana se-
guinte. O prazer que essa notícia causou a Andy foi imediata-
mente superado pela preocupação: se passaria a frequentar dia-
riamente a escola, o que aconteceria ao __Fura-Vidas__? A sua
tris-
teza aumentou quando, ao chegar ao estaleiro, o tio Ben Lhe
co-
municou, pesaroso, que o patrão insistira em que se fizesse a
limpeza do alpendre onde o __Fura-Vidas" dormia antes do fim-
-de-semana. Deixava de haver abrigo para o cão no estaleiro.
Enquanto errava pelo molhe, meditando nos seus problemas,
Andy assistiu ao inesperado regresso do Crista de Pratu, cujos
motivos pretendeu averiguar, pelo que se aproximou do cais. De
todos os navios que frequentavam o porto, Andy considerava o
Crista de Prata o de formas mais belas. Vazio ou carregado,
cor-
tava as águas rápido como as gaivotas ou sereno como os cisnes
que costumava ver no rio que corria perto de sua casa. Era o
na-
vio onde mais gostaria de entrar. E, não obstante, apesar da
sua
admiração e de ser bem recebido a bordo de qualquer barco,
nunca o pequeno pusera os pés no Crista de Prata. Não só por-
que, devido à baixa rentabilidade da estação de pesca, o
Crista
de Prata raramente estivera no porto mais do que o tempo
estri-
tamente necessário para a descarga, como porque o patrão Jake
e
a sua voz troante infundiam medo a Andy, desde o dia em que,
sentado sobre uma caixa de peixe a desenhar o Crista de Prata
numa carta para o pai, fora abordado por Jake, que, ignorando
o
defeito do pequeno, lhe gritara:
- Fora daqui, e vai dizer ao Bobbie que estou à espera dele.
Sabes quem é o Bobbie? Aquele baixinho de cabelo ruivo.
Andy acenou afirmativamente.
- Despacha-te, rapaz, vai chamá-lo!
Habituado, como as restantes crianças de Gaymal, a fazer re-
cados no porto, Andy foi à procura de Bobbie. Quando, porém, o
homem viu Andy apontar para o Crista de Prata, virou-lhe as
costas.

- Não vou. Tenho de apanhar um comboio dentro de meia
hora e se o Jake me põe a mão em cima bem posso dizer adeus
ao comboio.
Andy regressou ao Crista de Prata.
- Então, encontraste-o? - perguntou-lhe Jake.
Andy assentiu.
- E ele vem?
Andy abanou a cabeça, fitando Jake com ar impotente.
- Que tens, rapaz_? És surdo, idiota ou mudo?
Andy desatou a fugir. Jake trepou para o molhe em busca de
outro mensageiro, notando imediatamente o esboço que o pe-
queno traçara do Crista de Prata. Apanhou o desenho e
examinou-o. Voltando a folha, viu a esmerada letra da criança:
__Querido pai. Este é o barco do porto de que eu mais gosto.
Chama-se Crista de Prata e acho-o muito bonito.__
Arrependido de se ter mostrado tão brusco com o pequeno,
Jake, quando regressou a bordo, colocou cuidadosamente o papel
entre as folhas de uma revista na casa do leme, na intenção de
o
devolver a Andy da próxima vez que o visse e exprimir-lhe si-
multaneamente o seu apreço pela qualidade do desenho.
Decorridas três semanas, um dos tripulantes descobriu o de-
senho e comentou-o.
- Ah, pu-lo aí para o devolver a um miúdo que estava a
fazê-lo no molhe. Mandei-o chamar o Bobbie naquele dia em que
vocês foram todos para terra, mas voltou sem ele e sem
qualquer
explicação - a voz de Jake reflectia o desdém. - Um verda-
deiro basbaque, o rapaz, a olhar para mim, sem uma palavra.
Gritei-Lhe que devia ser mudo ou coisa assim. . .
- Trazia um cão? O cão que era do Joe Glenn? - perguntou
um dos homens.
- Sim, creio que sim.
- Pois é mesmo mudo - e ao ver a expressão consternada
do patrão, o homem desviou o olhar.
Mais tarde, Jake soube, através da tripulação, da história
de
Andy, com quem decidiu estabelecer relações de amizade, com o
objectivo de o compensar da ofensa que inadvertidamente lhe
causara.

A oportunidade surgiu quando o Crista de Prata regressou ao
porto com o motor avariadn e Andy, cuja curiosidade
sobrelevara

328 329
#

Dois nmigos

a prudência, se encontrava no molhe, com o cão ao lado, à es-
pera do navio. Apenas a tripulação se afastou rumo ao bar e o
técnico se despediu, Jake chamou por Andy, brandindo o papel.
A criança aproximou-se com passo lento.
- Foste tu que fizeste este desenho'? - interrogou Jake em
tom amigável. E ante o aceno afirmativo de Andy, o patrão co-
mentou: - Muito bom! Gosto dele. - Virou a folha e acrescen-
tou: - Também li isto. É verdade que pensas que este é o barco
mais bonito do porto'? - Um sorriso nervoso entreabriu os
lábios
da criança. - Pois também eu penso o mesmo, rapaz. Queres vir
a borde>? - convidou. Perante a expressão eloquente do peque-
no, incitou: - Anda dar uma olhadela.
Andy subiu a bordo, seguido pelo __Fura-Vidas__.
- Bem... - objectou Jake. - Eu não convidei o cão. Vai-
-te embora !
Antes de obedecer às ordens do pescador, o __Fura-Vidas__
olhou interrogativamente para o pequeno. No momento seguinte,
Andy encontrava-se em terra, junto do cão.
- Que é isso? - perguntou Jake. - Julguei que estavas in-
teressado no barco. - Andy pousou a mão na cabeça do cão.-
Está bem, está bem, que venha também - concedeu Jake.
Andy e o __Fura-Vidas._ saltaram para bordo e seguiram Jake
até à casa do leme, desceram ao porão, atravessaram a casa das
máquinas e chegaram finalmente ao castelo de proa, onde Jake
pôs a chaleira ao lume.
-Tira daí canecas, pão, manteiga e compota - disse o
arenqueiro, indicando um armário. - Acho que não vais recusar
um lanehe.
Andy retirou do armário o necessário para o lanehe. Assim
que Jake fez o chá e se sentaram os dois a comer e a beber,
com
o barco a baloiçar sobre as ondas, o rapaz, que nunca até
então
tomara uma refeição a borde>, sentiu-se invadido por uma
felici-
dade profunda. Deixara de experimentar qualquer receio por Ja-
ke, que se sentia satisfeito por poder entreter Andy e desse
modo
abreviar as horas que de outro modo a criança passaria a
meditar
sobre os seus infortúnios. Dada, porém, a dificuldade que o
pes-
cador experimentava em sustentar a conversa sozinho, acabaram
por comer em silêncic>. Jake reparava como o pequeno repartia
a
comida com o cão.
- O __Fura-Vidas_. dorme no teu quarto, não?

Andy sacudiu a cabeça.
- Na cozinha'? Numa casc>ta fora de casa? - Andy conti-
nuava a acenar negativamente com a cabeça. - Então ele não
tem um sítio onde dormir?
Andy cobriu os olhos com as mãos, angustiade> pelo reviver
dos seus problemas, mas as lágrimas correram-lhe pelo rosto.
Ac>
vê-las, o pescade>r aprc>ximou-se da criança.
- Sentias muito a falta do __Fura-Vidas__ se eu sugerisse
que
ele se tornasse um cão do mar'?
Andy levantou a cabeça, perplexo.
- Aqui, no Cri.sta de Prutcr - explicou Jake. - Porque
não'? Muitos cães andam a bordo. Ficava comigo e com a
tripula-
ção. Há sempre muita comida a bordo e arranjávamos-Lhe um be-
liche confortável lá em baixo. Mas... - Jake lançou ao pequeno
um olhar de incerteza - talvez te custe separares-te tanto
tempo
dele.
Andy olhou fixamente para Jake. Embora grato pela proposta,
sentia uma profunda tristeza ao pensar como a vida se lhe
torna-
ria solitária sem o _.Fura-Vidas__. Depois recordou-se da
escola,
que o iria impedir de dar a devida assistência ac> cão ao
longo do
dia. Não sabia o que fazer. De momento, não consesuia afastar-
-se do __Fura-Vidas__. Precisavam muito um de> outrc>.
- Via-lo aos fins-de-semana - consolou Jake, enquanto
pensava:._Se eu tiver a sorte de o meu filho, quando crescer,
querer um cào, qualquer cão, há-de tê-lo antes de eu o ver
sofrer
como esta criança.__ E acrescentou em voz alta: - Se quiseres
vir pescar connosco, vem sempre que te apeteça.
Embora soubesse o que devia fazer, Andy não tinha coragem
para tomar a decisão definitiva. Levantando-se, acenou um
agra-
decimento a Jake e começou a subir a escada.
- Pensa no que te propus - insistiu Jake.
O frio era cortante, o vento enregelava as faces do rapaz e
o
focinho do cão, a caminho dos brejos. O Outono alongara-se e
o Inverno seguia-Lhe o exemplo. Ao chegarem à caverna, Andy
sucumbiu. Não era lugar para um cão, com um tempo daqueles.
O telhado de rocha pingava água e o vento desfizera a cama. O
pequeno sentou-se de olhar perdido, enyuanto o __Fura-Vidas__
lhe
lambia o rosto e as lágrimas salgadas. Andy estreitou o cão de
encontro a si e enterrou o rosto no pêlo áspero. Seguidamente
er-
gueu-se e fez um gesto ao animal para que o acompanhasse.

330 33I
#

Dois amigos

Dirigiram-se primeiro ao estaleiro, onde Andy verificou que
no local onde improvisara a cama do __Fura-Vidas_,, agora
desfei-
ta, se empilhavam pranchas de madeira. O tio Ben retirou a es-
cudela do cão de um armário e passou-a ao sobrinho. Andy e o
__Fura-Vidas_, desceram em direcção ao porto.
Jake continuava a bordo do Crista de Prata. Ouvindo passos
no convés, abriu a escotilha.
- De sce, rapaz.
Obedientemente, Andy desceu para o castelo de proa, seguido
do __Fura-Vidas__. Sustendo os soluços, segurou a mão do
pesca-
dor, colocou-a sobre a cabeça do cão e estendeu-lhe a
escudela.
Jake compreendeu. Quando falou, a sua voz era ainda mais
áspera do que habitualmente.
- Eu tomo conta dele, rapaz... E não deixo que ele te es-
queça.
Ajoelhando-se, Andy rodeou com os braços o pescoço do
animal.
- Queres ver onde vai dormir?
Jake desimpediu os dois últimos dos oito beliches existentes
no castelo de proa, que não eram usados pelos tripulantes,
retirou
dois cobertores de um armário e colocou-os sobre o colchão.
- Aqui tens o teu beliche, companheiro - disse, voltando-se
para o __Fura-Vidas_,, que o observava. - É melhor dizeres-lhe
que salte lá para dentro.
Andy fez sinal ao cão, que agora o entendia na perfeição, e,
embora relutantemente, o animal acomodou-se no beliche. Cari-
nhosamente, Andy deu-lhe umas palmadas no lombo. O silêncio
que reinava no castelo de proa era apenas interrompido pelo
ruído da água de encontro ao casco do navio.
- Muito bem. . . - tartamudeou Jake. - Decerto ele vai ter
saudades tuas, mas aposto como se habitua.
Andy pousou a escudela do __Fura-Vidas" ao lado do beliche.
O cão, que se acostumara a aceitar como casa o lugar onde Andy
colocava a escudela, olhou-o com uma expressão de
incredulidade.
A morder os lábios, Andy virou costas, galgando rapidamente as
escadas. O __Fura-Vidas" saltou do beliche, mas Jake
segurou-lhe
a coleira. O animal lutou até que Andy se virou com um gesto
de
repreensão. Assim que Andy alcançou o convés, Jake também
trepou os degraus, permanecendo na escotilha, a bloquear a
saí-
da. Sentindo-se preso, o __Fura-Vidas" ladrou num protesto.

- Até sábado - disse Jake. - E não te esqueças de que, se
os teus tios não se opuserem, podes vir connosco sempre que
quiseres. - Jake lamentava não ter nada mais para oferecer, de
modo a consolar a criança. Ficou a ver Andy correr ao longo do
molhe até desaparecer no lusco-fusco, sem se deter a olhar
para
trás.



CAPÍTULO IV

O __Fura-Vidas,_ e Jake enfrentaram-se durante uns momentos.
Seguidamente, o cão começou a inspeccionar o castelo de proa.
Depois de se ter alojado, às ordens de Andy, na caverna e no
barracão do estaleiro, não podia acreditar que o pequeno o
aban-
donaria. E depois de ter vivido durante tanto tempo com
pescado-
res, sabia instintivamente que podia confiar em Jake. Restava-
-lhe, portanto, acomodar-se até de manhã, altura em que aquele
homem abriria a escotilha e o deixaria sair à procura de Andy.
Aproximou-se do beliche que Andy lhe designara e sentou-se
junto dele. Jake aproximou-se.
- Esse é o teu beliche, companheiro - repetiu. - E lem-
bra-te de que num barco o beliche de um homem Lhe pertence e
não é para ser trocado com ninguém. - Bateu com os dedos no
beliche, para onde, submisso, o __Fura-Vidas__ saltou. - Há
três
coisas que precisas de aprender neste barco, e tens de as
aprender
depressa, porqu_e nenhum de nós tem tempo para tas ensinar.
Es-
tás a ouvir? - O cão retesou as orelhas e inclinou a cabeça.-
A primeira é que, de hoje em diante, esta é a tua casa, até o
teu
companheiro te arranjar um lugar melhor; a segunda é que,
daqui
para o futuro, sou o teu patrão, e a terceira é que, como já
disse,
esta é a tua cama.
Apercebendo-se do tom de camaradagem na voz de Jake, o
__Fura-Vidas_, bateu com a cauda na cama, tendo no olhar uma
expressão de perfeito entendimento. Enterrou depois o nariz
nos
cobertores, e, com um leve rosnar, acomodou-se para dormir.
Uma vez o bar fechado, a tripulação regressou ao Crista de
Pra ta.
- Que está ele a fazer a bordo? - perguntaram os homens
ao verem o __Fura-Vidas".
- É o cão do navio - replicou Jake, lacónico.

332 333
#

Dois amigos

- E o pequeno'? - quis saber o tripulante mais novo, reco-
nhecendo o cão. Logo que Jake lhes deu uma breve explicação
do caso, alguns exprimiram, resmoneando, o desejo de que o
animal lhes não trouxesse outra série de azares.
- Não, não traz - Jake falava com convicção. - Há neste
cão qualq_er coisa que me leva a pensar que ele vai ser a
nossa
mascote.
Eram duas da manhã quando o motor ficou consertado e o
Crista de Pruta pronto a partir para o mar. O patrão, que
orde-
nara que se fechasse o._Fura-Vidas" até se encontrarem
suficien-
temente afastados do porto, logo que considerou a situação se-
gura desceu ao castelo de proa e, atando uma corda à coleira
do
cão, trouxe-o para a coberta. A noite estava escura, e, embora
nunca até então tivesse viajado de barco, o __Fura-Vidas,_
conhe-
cia tão bem o som e o cheiro do mar que não sentiu qualquer
receio de acompanhar Jake ao longo do convés até à casa do le-
me. cuja porta o pescador fechou. sentandó-se, as mãos na roda
do leme, os olhos fitos na proa do navio que fendia a água.
- Talvez venhas a ficar aqui comigo - disse o homem ao
cão. - Temos de nos habituar à companhia um do outro.
Assim, o __Fura-Vidas,_ permaneceu junto de Jake na casa do
leme até à hora em que este foi rendido, altura em que
voltaram
ambos para o castelo de proa e para os seus beliches
individuais.
Quando o dia clareou e foi permitido ao __Fura-Vidas,_
percorrer
livremente o convés, o cão. a quem a distância a que se encon-
travam de terra inquietou, errou da proa à popa, na esperança
de
encontrar Andy'. Cansado de percorrer o convés, regressou ao
be-
liche, onde se deitou, escutando o som das vozes `ios
tripulantes
que conversavam enquanto comiam.
Nessa noite o Cristu de Pratu encontrou um enorme cardume
de arenques, regressando ao porto carregado até à amurada. A
tripulaçào, radiante, constatava que a sorte recomeçara a
bafejá-
-los. Jake lembrou-lhes:
- Não lhes disse que ele era a nossa mascote'?
Nas duas noites seguintes o Cristu de Pruta novamente con-
seguiu peixe em abundância.
- O cão vale o seu peso em bife - observou o cozinheiro,
como se desafiasse alguém a comentar o aumento da conta no
talho.
No sábado seguinte já o `_Fura-Vidas,_ começara a
habituar-se

à vida a bordo, à cama quente, à alimentação substâncial e às
gulodices que os tripulantes, agradecidos, lhe davam; todavia,
apenas o barco atracou e o animal viu Andy à sua espera,
saltou
para terra a cumprimentá-lo, doido de alegria.
- Eu deixo-Lhe jantar - gritou o cozínheiro, enquanto o pe-
queno e o cão se afastavam correndo.
Andy sentiu-se levemente ofendido. O acordo que estabele-
cera com o patrão Jake implicava que, afora o beliche a bordo
do
Crista de Prata, o `_Fura-Vidas__ permaneceria na sua
companhia
e a seu cargo exclusivo durante os fins-de-semana. As palavras
do cozinheiro pareciam implicar que ele poderia esquecer-se de
dar de comer ao animal - quando de facto trazia consigo um
saco cheio de comida para o cão. A tia Sarah, aãora que sabia
que o animal já não tinha probabilidades de lhe rondar a porta
e
incomodar os vizinhos, arranjara, de moto próprio, uma
__panela
para o `Fura-Vidas'", onde não só cozia restos dos alimentos
para a mesa, como lhes juntava nacos de carne comprada mais
barata no talho.
O dia estava húmido, ventoso, mas com uma réstia de sol
perfurando as nuvens baixas; era um daqueles dias em que os
gri-
tos das gaivotas ecoavam nos brejos e os ribeiros, caudalosos
após uma noite de chuva, espumavam, castanhos de turfa, sobre
os rochedos. Andy saltitava, perturbando rebanhos de carneiros
de focinho preto e pcineis das colinas que o olhavam
desconfia-
dos; depois ele e o _`Fura-Vidas" treparam até uma fenda
circular
sobranceira a um abismo onde se amontoavam pedras soltas. Aí,
o pequeno deitou-se de bruços e o cão manteve-se imóvel a seu
lado. Era um local que agradava especialmente a Andy, não só
devido às histórias de assombrações que o tio Ben Lhe contava,
mas também à sua profundidade e desolação, que o impressiona-
vam. E quando por vezes ali permanecia imóvel, acontecia-lhe
ver uma dessas esquivas raposas das colinas que tinham as suas
toeas por entre as rochas, ou uma águia-real, igualmente
esquiva,
empoleirada numa fenda de rocha, precipitar-se nos ares.
O dia passou rápido, e, ao chegar a altura de regressar a
casa,
Andy e o __Fura-Vidas" dirigiram-se para o Crista de Prata.
Es-
tavam já ambos habituados às separações nocturnas, e o cão
acei-
tava já o ter de dormir no barco. Com as duas patas anteriores
apoiadas na amurada, ficou a ver Andy desaparecer, após o que
se esgueirou pela escotilha entreaberta, saltou para o castelo
de

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#

Dois amigos

proa e estendeu-se no beliche. Na manhã seguinte, ao chegar ao
porto, imerso numa paz dominical, onde os barcos descansavam
e as gaivotas, estranhamente caladas, se enfileiravam ao longo
dos telhados - empertigadas como uma congregação eclesiástica
-,
Andy viu que o __Fura-Vidas_, o aguardava exactamente na
mesma posição, como se ali tivesse permanecido a noite
inteira.
Como habitualmente, dirigiram-se ao brejo, o pequeno carre-
gando a mochila cheia. De novo ao cair da tarde, embora mais
cedo por ser domingo e Andy ter de acompanhar os tios à
igreja,
os dois amigos despediram-se a bordo do Crista de Prata. Uma
despedida mais prolongada, contudo, pois Andy sabia que decor-
reria toda uma semana até ao próximo encontro.

MUt'ro antes da madrugada, o patrão Jake e a tripulação
subi-
ram para bordo, e logo o "Fura-Vidas_, ouviu a aproximação de
outras tripulações e o porto se encheu do crepitar dos motores
dos navios, de vozes gritando despedidas, recomendações e avi-
sos, enquanto, um a um, os barcos abriam caminho, rumo ao mar
alto.
O,_Fura-Vidas__, que como membro da tripulação do Crista
de Prata durante a semana e fiel companheiro de fins-de-semana
de Andy sentia uma alegria que jamais experimentara, envidava
todos os esforços para demonstrar o seu apreço. No barco, ao
ver
as redes de arenque serem içadas para bordo, contagiado pela
na-
tural excitação dos homens, corria da proa à popa, cauteloso
para
não incomodar, mas certo de partilhar da actividade geral. An-
sioso por ajudar, em breve passou a agarrar as redes que os
ho-
mens puxavam, unindo os seus aos esforços da tripulação.
- Arranjámos um cão e um ajudante! - comentavam os tri-
pulantes entre si.
Uma noite, após uma série de pescas frutuosas, o Cri.sta de
Prata pareceu ter perdido os cardumes; enquanto os homens in-
vestigavam em vão as águas, o __Fura-Vidas__ corria, inquieto,
pelo convés ou sentava-se à proa, fitando as águas negras com
um olhar atento. Subitamente desatou a ladrar, excitado, o que
surpreendeu Jake, pois era a primeira vez que o fazia a bordo.
Apoiado nas patas traseiras e com as dianteiras sobre a amu-
rada, o cão, cuja cauda abanava incessantemente, perscrutava a
água. Jake abrandou a marcha e o membro mais novo da tripula-
ção apareceu na popa, a vestir o fato de oleado.

- Que aconteceu, patrão?
- Vê o que há com o cão. Está a portar-se de modo estra-
nho, como se visse ou ouvisse alguma coisa.
Quando o homem avançou em direcção à proa, o __Fura-
-Vidas__ agitou vigorosamente a cauda, sem deixar de latir. O
pescador ajoelhou-se a seu lado, concentrando no mar a sua
aten-
ção. Nesse momento o cozinheiro reuniu-se a Jake na popa.
- O que está a excitar o cão? - perguntou.
- Diabos me levem se eu entendo. . . - ripostou Jake.
O homem que se dirigira à proa ergueu-se, voltou-se e acenou
com os braços, num gesto negativo.
- Parece que não vê nada - observou o cozinheiro.
Jake abrandou mais ainda a velocidade e, passando a roda do
leme ao cozinheiro, ordenou-lhe que fosse descrevendo largos
círculos e saiu para o convés, perscrutando e escutando
atenta-
mente. Um minuto depois regressava à casa do leme.
- Vai dizer-lhes que se preparem para lançar as redes. Penso
que o cão está a tentar avisar-nos de que há arenques.
Olhando-o com ar incrédulo, o cozinheiro correu a transmitir
a ordem. Decorrida uma hora, arrastavam as redes cheias, en-
quanto o __Fura-Vidas__ os observava, sobranceiro.
Mais tarde, no castelo de proa, a tripulação entreolhava-se,
estupefacta.
- Como é que o bicho descobriu? Pelo cheiro, pela vista,
pelo ouvido?
- O que interessa é que descobriu - declarou o mais velho
d_s tripulantes. - O que devemos agora perguntar é se ele tor-
nará a fazer o mesmo.
O __Fura-Vidas__ não só repetiu frequentemente a façanha
como se tornou um informador tão seguro da existência de car-
dumes de arenques qué, caso não demonstrasse interesse pela
área que estava a ser explorada, os homens sabiam
imediatamente
que não existiam probabilidades de pesca. Em Gaymal, quando a
história correu, o __Fura-Vidas__ adquiriu uma aura de
sensaciona-
lismo, e, embora alguns pescadores se recusassem de princípio
a
acreditar na capacidade do cão para detectar a presença de
peixe,
os contínuos triunfos de pesca do Crista de Prata eram a prova
evidente das suas aptidões. Em breve até os pescadores mais
cép-
ticos procuravam manter-se no mar perto do navio do patrão
Jake.
Andy delirou ao saber pelo arenqueiro Jake, no sábado à tar-
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#

Dois amigos


de, da faculdade que o __Fura-Vidas,_ possuía de detectar
aren-
ques. Tinham estado os três no castelo de proa do Cristu de
Pra-
ta, onde, para regozijo de Andy, se tornara mais ou menos um
hábito encontrarem-se depois do passeio pelo brejo. Sentados
junto ao fogão a saborear a bebida favorita do pescador - chá
adoçado com leite condensado -, ouviam Jake falar de pescarias
e dos estranhos objectos por vezes recolhidos nas redes. Até o
__Fura-Vidas_, tomava chá, caso lho deitassem na escudela, e
Andy pensava se o cão, tal como ele próprio, não sorveria
aquela
beberagem só para não magoar Jake com uma recusa.
- Bem - disse Jake, acariciando com ternura a cabeça do
cão. - Foi a melhor coisa que me fizeste: deixares-me levar
este
cão a bordo.
E Andy, que não ignorava as bebedeiras de Jake e a sua soli-
dão, olhou para aquela mão forte apoiada sobre a cabeça do
_,Fura-Vidas" e para os olhos do cão pousados no pescador e
sen-
tiu desvanecer-se o último rasto de ressentimento por ter de
parti-
Lhar o amigo.

À medida que os meses decorriam, o __Fura-Vidas" tornava-se
um membro querido e indispensável da tripulação do Crista de
Prata. Além de detectar a presença de arenques, voltara a dar
guerra às gaivotas, correndo ao longo do convés e saltando, de
fauces abertas, a qualquer gaivota que ousasse voar baixo,
prote-
gendo assim a pesca na hora da descarga. E à excepção de ter
caído ao mar numa noite negra como breu, quando o patrão do
barco e os tripulantes se encontravam demasiado ocupados para
notar o acidente, nunca actuara de modo a preocupá-los.
Nessa noite, o __Fura-Vidas_,, embora terrivelmente assustado,
tomou a decisão sensata de lutar contra as ondas, nadando em
torno do navio até ao local onde as redes estavam a ser içadas
e
mantendo-se firmemente agarrado a estas. Só quando a tripula-
ção, incrédula, o viu subir com o peixe, é que compreendeu que
estivera em risco de o perder. Jake, cuja aflição sentida
irrompeu
sob a forma de cólera, increpou o __Fura-Vidas", ordenando-lhe
que se retirasse imediatamente para o castelo de proa. Mais
tar-
de, depois de rir para consigo ao evocar o orgulhoso __Fura-
-Vidas_, a ser ridiculamente içado para bordo juntamente com
uma carga de peixe, Jake chamou de novo o cão para a casa do
leme, onde lhe ralhou enquanto o afagava; desde então, porém,

338

passou a certificar-se de que o animal se encontrava a salvo
no
castelo de proa quando se lançavam as redes, e nunca teve
cora-
gem de falar a Andy do acidente.
Indubitavelmente, a sorte bafejava o Crista de Prata desde
que o __ Fura-Vidas_, se tornara a sua mascote. Jake apreciava
a
sua companhia, bem como a aparente necessidade que o cão ti-
nha da sua presença, que lhe causava prazer e
involuntariamente
lhe fazia recordar a última conversa que tivera com a mulher.
Atracara o Crista de Pruta, dera aos tripulantes uma semana de
férias e fora visitar a mulher a casa dos pais.
Jeannie mostrara-se contente por o ver, mas o filho, que
ini-
ciava agora os primeiros passos, não o reconhecera. Quando, já
no fim-de-semana, Jake abordou o assunto do regresso, Jeannie
começara por se mostrar evasiva e. por fim, impaciente, argu-
mentando que a mãe, demasiado debilitada, precisava de ajuda.
Jake tentou convencê-la da sua própria necessidade dela e das
saudades do filho, mas, se bem que Jeannie prometesse
regressar
em breve a Gaymal e passar mais tempo com ele, o pescador sa-
bia que a promessa era vã. Jeannie nunca o deixaria no verda-
deiro sentido da palavra, porque uma jovem das ilhas jamais
__abandonava,_ o marido; afastar-se-ia dele, lenta mas
inexora-
velmente.
Entretanto, a sua afectividade frustrada manifestava-a Jake
para com o,_Fura-Vidas", cujos sentimentos pelo patrão haviam
ultrapassado a simples confiança para se transformarem em
dedi-
cação, tão profunda como a que sentia por Andy. Porém, en-
quanto este era o seu adorado companheiro, cuja idade
suscitava
70 animal uma atitude protectora, Jake, com a sua força e
sereni-
dade, despertava no __Fura-Vidas,_ a necessidade de protecção.

CERCA de três meses depois de o __Fura-Vidas" se ter juntado
à
tripulação, Andy realizou finalmente a sua ambição de ir para
o
mar no Crista de Prata. Coincidindo as férias escolares com um
período de bom tempo, a tia Sarah, depois de impor várias e
pormenorizadas condições, deu a sua permissão. Como o navio
partia à meia-noite, ficou assente, para grande contentamento
de
Andy, que este iria para o Crista de Prata à hora a que habi-
tualmente se deitava e dormiria a bordo. Assim, numa tranquila
noite de domingo, quando os barcos atracados se recortavam,
ne-
gros, contra o céu estrelado, Andy viu-se a bordo do

339
#

Dois amigos

Crista de Prata, recebido por Jake e pelo surpreendido e entu-
siasmado cão. Desceram ambos para o castelo de proa onde Jake
indicou a Andy um beliche por cima do do "Fura-Vidas_, .
- É o teu - declarou enquanto ensinava o pequeno a entalar
devidamente os cobertores, de modo a proteger-se do frio da
noi-
te. Ensinou-lhe também a acender o fogão da cozinha, onde
fize-
ram chá, que beberam no sossego da cabina, enquanto o __Fura-
-Vidas_, olhava do homem para o rapaz e suspirava de
felicidade.
- Agora, são horas de dormir - declarou Jake. Descalçou
as botas e despiu o casaco, considerando que era a primeira
noite
de domingo, desde há meses, que se deitava lúcido.
Andy subiu para o beliche, descalçou-se e permaneceu deita-
do, saboreando a atmosfera do mundo dos homens, que agora o
incluía, exultando com o baloiço do navio e o murmúrio do mar.
Esforçou-se por não adormecer, mas apenas fechar os olhos ao
clarão da lanterna.
Despertou da sonolência com o ruído de passos na coberta,
sobre a sua cabeça, e deslizou do beliche logo que a escotilha
do
castelo de proa se abriu e, um a um, os tripulantes desceram.
Ainda levemente excitados pelos excessos do fim-de-semana, os
homens prepararam-se para retomar o trabalho. Acordaram Jake e
regressaram à coberta do navio; em breve o motor começava a
trabalhar. Andy calçou as botas e postou-se junto da
escotilha,
vendo os cabos a serem enroscados no convés. Sentiu o Crista
de
Prata arrancar do molhe e ouviu a água a bater de encontro à
proa.
Jake permaneceu na casa do leme enquanto os homens se dirigi-
ram para o castelo de proa, onde o cozinheiro fez chá e a
tripula-
ção acendeu cigarros e cachimbos. Em breve o fumo sobrecarre-
gava a atmosfera no castelo de proa e Andy bocejava de sono.
- Porque não vais para o teu beliche como o teu companhei-
ro? - perguntou o cozinheiro, apontando para o,_Fura-Vidas_,,
que não abandonara o beliche, limitando-se a observar de longe
a actividade em redor. - Quando começarmos a pescar, tens
muito tempo para subires para o convés e ver-nos trabalhar.
Andy, porém, sentia-se demasiado excitado para dormir. Ves-
tindo o casaco de oleado, preparou-se para se reunir a Jake na
coberta do navio, onde, em contraste com o calor que reinava
no
castelo de proa, o frio era cortante. O __Fura-Vidas,_
mantinha-se
fielmente a seu lado. Andy, que sentia dificuldade em equi-
librar-se, viu-se obrigado a agarrar-se ao mastro e às bordas

salientes das escotilhas, a fim de atingir com segurança a
casa do
leme.
Jake abriu a porta.
- Ainda não ganhaste pernas de mar comentou.
Andy teve um sorriso contrafeito.
- Não importa, não leva muito tempo, e é melhor praticares
no escuro para começar.
Deu-lhe lugar a seu lado, e o __Fura-Vidas_, acomodou-se aos
pés dos dois. Olhando através da janela da casa do leme, o
rapaz
ia distinguindo, à medida que os olhos se lhe habituavam à es-
curidão, as luzes de outros navios, entregues à mesma faina da
pesca.
-Então, gostas? - perguntou-lhe Jake. Andy sorriu.-
Queres segurar a roda do leme? - Sem acreditar no que ouvia,
Andy tomou o governo do Crista de Prata, enquanto Jake enro-
lava e acendia um cigarro. O cozinheiro apareceu com canecas
fumegantes de chá e grossas fatias de pão com manteiga e com-
pota. Jake segurou de novo na roda do Ieme, para que Andy pu-
desse comer.
- Devemos estar a encontrar peixe - afirmou Jake decor-
ridas cerca de duas horas. - A semana passada havia arenques
por aqui, e é provável que ainda haja. - Abrandou a velocidade
e abriu a porta da casa do leme.
O _,Fura-Vidas" pôs-se alerta.
- Ele bem sabe o que está para acontecer - explicou o pes-
cador ao pequeno. - E se não se mostrar interessado, não ian-
çamos as redes.
Dirigindo-se à proa do navio, o cão contemplou a água como
se - assim pareceu a Andy - escutasse atentamente. O Crista
de Prata fendia a água, e quando a tripulação subiu, a
afivelar os
anoraks e de chapéu de oleado, uma promessa de madrugada to-
cou o horizonte. De repente, o __Fura-Vidas" começou a abanar
a
cauda e a latir.
- Agora podes meter a cabeça pela escotilha e espreitar, mas
mantém o cão junto de ti - gritou Jake a Andy.
O motor afrouxou. Jake bradou:
- Preparar! - E depois: - Lancem as redes!
Espreitando através da escotilha, Andy, estupefacto, contem-
plava o espectáculo da grande pilha de redes a emergir do
porão
e a escorregar pela amurada, ao mesmo tempo que um dos tripu-
340 341
#

Dois amigos

lantes prendia bóias âs redes. O pequeno interrogava-se sobre
se
conseguiriam içar de novo para bordo o que pareciam quilóme-
tros de redes.
- Pronto - disse Jake, uma vez todas as redes lançadas. Em
breve o ralenti do motor era apenas uma palpitação. E,
decorrido
algum tempo, o patrão transmitia a ordem por que a tripulação
esperava:
- Arrastar!
Se Andy se impressionara ao ver lançar as redes ao mar, a
sua estupefacção não teve limites quando estas começaram a ser
içadas. Boquiaberto, observava os homens a puxarem os cabos,
arrastando e sacudindo as redes, e uma torrente de arenques a
in-
vadir o convés e a cair para o porão.
E saboreava de antemão o prazer com que descreveria ao pai,
na próxima carta, o espectáculo que contemplara. As últimas
re-
des haviam já sido içadas e a tripulação limpara já a coberta
do
navio quando a voz de Jake, anunciando uma hora de descanso,
como que o despertou do sonho em que mergulhara. O pescador
olhou para Andy e perguntou-lhe:
- E tu, rapaz? Não queres dormir um bocado?
Andy acenou negativamente. A alvorada rompia no céu e a
luz metálica dos primeiros raios de sol tentava perfurar a
neblina
da manhã. O pequeno acompanhou Jake à casa do leme, resol-
vido a não desperdiçar com o sono nem um minuto da viagem de
regresso.
O cozinheiro chegou com chá, pão e compota; enquanto co-
mia, Andy observava o mar, que a brisa encrespava e o sol
mati-
zava. Via a espuma à proa irisada de tonalidades coloridas e
ou-
via os gritos das gaivotas, que o cheiro a peixe atraíra. O
__Fura-Vidas_,, que também as ouvira, pôs-se de guarda.
- Elas não se aproximam - afirmou Jake a Andy -, pelo
menos enquanto ele aqui está. Não há nada de que elas mais
gos-
tassem do que derrotar o __Fura-Vidas,_. Repara agora.
Uma das aves voava baixo, rente ao convés. Andy esforçou-
-se por olhar, mas os olhos fechavam-se-lhe. Ao voltar-se para
apreciar o sorriso do pequeno, Jake constatou que este
adormece-
ra, a cabeça encostada a um canto da casa do leme e metade de
uma fatia de pão com compota ainda entre os dedos.
Só nas férias seguintes surgiu nova oportunidade a Andy de
pernoitar a bordo do Crista de Pruta; nessa noite, Jake ficou
a

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8 ;.,










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#

Dois amigos

dever muito à presença tanto de Andy como do cão. Partiram
numa quinta-feira de manhã cedo, rumo aos cardumes, a algumas
horas de distância. O mar, cinzento e agitado, erguia-se em
ondas
alterosas que se quebravam à proa, formando lençóis de es-
puma. Andy congratulava-se por ter já adquirido __pernas de
mar__
e o seu corpo responder facilmente ao baloiço. Chegados ao
local
de pesca, apenas tinham lançado as redes quando uma tempestade
rebentou, obrigando-os a recolhê-las imediatamente e a refu-
giarem-se com o seu magro proveito no porto mais próximo.
_ Como habitualmente quando em terra, Jake e a tripulação
diri-
giram-se ao bar local, deixando o navio entregue a Andy e ao
__Fura-Vidas__. Andy, fatigado pela madrugada desse dia, em
breve
adormeceu. O cão, contudo, sempre desconfiado de portos estra-
nhos, permaneceu no convés. Jake foi o primeiro a regressar a
bordo. Subira cerca de metade dos estreitos degraus do molhe
quando o __Fura-Vidas__, que o esperava, ansioso por o saudar,
o
viu escorregar e cair à água, não longe do Crista de Prata.
Mesmo no porto, o mar era tempestuoso, e Jake, que não sabia
nadar e a quem as pesadas botas e o fato de oleado tolhiam os
movimentos, escassas probabilidades teria de sobreviver se não
conseguisse agarrar-se a um dos resguardos. Imediatamente o
__Fura-Vidas__ começou a evolucionar na coberta, ladrando num
frenesi e acordando Andy, que surgiu cambaleante do castelo de
proa, a fim de averiguar o que se passava, e a quem o animal
mostrou o local onde Jake permanecia firmemente agarrado.
Deitando-se de bruços no convés por detrás da amurada, Andy
estendeu o braço, demasiado curto no entanto para Jake poder
agarrá-lo. Arrastou-se então pela coberta à procura de uma
corda,
mas já o __Fura-Vidas__ decidira agir. Sem deixar de latir
freneti-
camente e ignorando o perigo que corria se não calculasse com
exactidão a distância, saltou do convés do Crista de Prata
para o
de outro barco, onde toda a tripulação subiu à coberta,
interrogan-
do:
- Que tem esse maldito cão?
Felizmente alguns dos homens compreenderam pelo compor-
tamento do animal que algo de anormal se passava e, seguindo-o
de volta ao Crista de Prata, viram os desesperados esforços de
Andy para salvar Jake. Decorridos alguns minutos, Jake
encontrava-se em segurança no seu beliche, embrulhado em
cober-
tores e abundantemente servido de h_hisky para __matar o
frio__.

Assim que os restantes tripulantes regressaram, Andy acendeu o
fogão e fez café. Desfez leite condensado em água quente e
ser-
viu generosamente o __Fura-Vidas_,. Dirigiu-se depois ao
beliche
de Jake e, retirando-Lhe o cobertor da cara, mostrou-Lhe o
café.
Jake ergueu-se, apoiado num cotovelo.
- Não, não. De qualquer modo obrigado, rapaz - murmu-
rou, embaraçado.
Ouvindo a voz do patrão, o __Fura-Vidas_. aproximou-se,
apoiando-se nas patas traseiras, junto ao beliche. Jake
agarrou o
pêlo do cão e olhou para Andy.
- Vocês são realmente dois companheiros! Eu tinha morrido
se não fossem vocês.
Na manhã seguinte a tempestade não amainara, e tanto o pa-
trão como a tripulação dormiram a bordo. Andy olhou pelo fo-
gão, preparou o pequeno-almoço e levou o __Fura-Vidas,_ para
um
passeio pelo porto. Quando regressava ao navio, cruzou-se com
os tripulantes, de olhos ainda ensonados, que iam a terra.
- Vamos ver as lojas - disseram a Andy. - Queres vir
connosco?
Andy acenou negativamente. Sabendo que Jake ficaria sozi-
nho, ânsiava por regressar ao navio.
A bordo do Cri.sta de Prata, Jake, já a pé, enchia uma
caneca
de chá.
- Então já de regresso? Queres uma chávena?
Andy retirou a sua caneca do armário e trouxe a escudela do
cão. Jake encheu ambas e empurrou a lata do leite condensado
_ara junto de Andy.
- Bem, foi uma triste ocorrência, a da noite passada - ad-
mitiu o arenqueiro, com um sorriso envergonhado. - Mas tive
sorte, graças a Deus.
Notando o olhar de Andy fixamente pousado em si, Jake per-
guntou-se se o pequeno não estaria novamente à espera que ele
exprimisse o seu apreço por o terem salvo. E enquanto
procurava
palavras apropriadas, Andy dirigiu-se ao seu beliche,
retirando de
sob o colchão uma pasta bem recheada que pousou na mesa
diante do pescador. Então, cuidadosamente, Jake abriu a pasta,
deparando-se-Lhe numerosos desenhos do Crista de Prata. Algo
na atitude do pequeno fê-lo compreender a gratidão que este
lhe
tributava, e sentiu repentinamente uma emoção profunda ao
consciêncializar a confiança que Andy, nele depositava.

344 345
#

Dois amigos


- Estão óptimos! - disse com tímida admiração. Andy lan-
çou-Lhe um sorriso radioso. Jake ergueu os olhos: - São uma
be-
le za, Andy.
Com a mesma expressão de felicidade, Andy sentou-se no be-
liche do pescador e principiaram a examinar os desenhos
juntos.



CAPITULO V


TRANSCORREU mais um ano, durante o qual o pai de Andy veio
de licença por três vezes, regressando ao mar satisfeito, tão
tran-
quilizadora era a aparência do filho. Embora informasse a tia
Sa-
rah do seu divórcio e do novo casamento da mulher, que partira
para a Austrália, jamais o oficial de marinha mencionou o caso
a
Andy, em parte por não querer estragar os poucos dias de
férias
com o filho e em parte porque esperava que o facto de evitar o
assunto pudesse ajudar o pequeno a esquecê-lo mais
rapídamente.
A princípio, Andy desejara que o pai lhe falasse da mãe; de-
correra, porém. tanto tempo e ela rejeitara-o tão
completamente
que a criança não queria pensar nela. A sua vida, de masiado
cheia, não lhe permitia abandonar-se às suas reminiscências.
Ha-
via a escola, um lar afectuoso com o tio Ben e a tia Sarah, o
__Fura-Vidas,_, o patrão Jake e o Cristu de Prúta. Fora já
aceite
pela tripulação do navio, a quem se reunia sempre que podia.
Uma manhã de sábado, perto das férias da Páscoa, Andy, de-
liciado, ouviu Jake dizer:
- Tencionamos atracar em vários portos na semana que vem,
fazer como que uma espécie de viagem longa. Vou falar com o
teu tio Ben para conseguir que embarques connosco.
A resposta de Andy foi um largo sorriso, que logo se 1'echou
quando o pequeno recordou a chegada do pai na próxima semana.
Todavia, Andy não duvidava da compreensão do pai, que, con-
forme dizia consigo, não quereria que ele perdesse a oportuni-
dade dessa viagem e com quem teria ainda muito tempo para es-
tar, logo que o Crista de Prata regressasse, uma vez que a li-
cença do pai se prolongava habitualmente por um mínimo de três
semanas.
As férias da Páscoa mostraram-se pouco primaveris, com frio
e geada; quando o Crista de Prutu largou, ao amanhecer de
segunda-feira, Andy congratulou-se por poder partilhar o
abrigo

346

da casa do leme com Jake e o __Fura-Vidas_,. Os tripulantes
queixavam-se de dores de cabeça e Jake sentia-se infeliz por
não
ter sabido resistir à bebida e pela violenta dor de estômago
que o
atormentava. Curvado sobre a roda do leme, inerepava o mar
agi-
tado, enquanto avançava, rumo ao horizonte cinzento e pesado.
O cozinheiro apareceu do lado da popa, de cabeça baixa, pro-
tegendo-se contra os salpicos do mar e o granizo.
- Vai procurar um abrigo, patrão? - perguntou ao chegar à
casa do leme.
- Com este tempo, vou. Que te parece essa tua ilha de Rhu-
na, que estás sempre a elogiar por ser resguardada do vento?
Po-
díamos ficar na baía por algum tempo até aliviar. Tu próprio
po-
des pilotar-nos na travessía do canal.
- Está bem, patrão - concordou o cozinheiro.
Diri_indo-se a Andy, Jake prosseguiu:
- E melhor dormires um pouco, rapaz, enquanto podes. Se
pescarmos esta noite, não vais poder fechar os olhos um
minuto.
Obedientemente, Andy desceu para o seu beliche, onde se
deitou, ouvindo os pesados baques do navio na água, o esmagar
das ondas e o do cachão no convés.
Acordou com o ruído das correntes quando o Cristu de Pratn
ancorou na baía de Rhuna. Eseueirou-se então para fora do
beli-
che e subiu ao convés, onde ficou a tremer de frio, fustigado
pelo vento cortante. A baía de Rhuna, protegida por dois
braços
de terra escabrosa, era relativamente sossegada, embora as
vagas
assobiassem por entre as rochas negras e as rajadas de vento
fus-
tigassem ameaçadoramente o cordame do navio. Andy via as ca-
sas baixas de pedra cinzenta que se erguiam junto da praia e,
para além destas, onde a terra se erguia para se encontrar com
as
colinas, divisava manadas de vacas castanhas e pretas a
pastar.
O patrão Jake, que permanecera no convés a dirigir as mano-
bras de ancoragem, deteve-se a olhar para o céu lívido sobre
as
densas nuvens par_as, antes de voltar para o castelo de proa,
onde, de rosto contraído pela dor, se atirou para o beliche.
Andy, esfomeado pelo ar do mar, juntou-se ao resto da tripu-
lação numa refeição de presunto, ovos e salsichas. Estavam já
prestes a terminar quando ouviram um barco atracar ao lado do
Crista de Prata. O tripulante mais novo, que se afastou a fim
de
investigar o que se passava, reeressou decorridos alguns
momen-
tos com dois homens de meia-idade que envergavam o que Andy

347
#

Dois amigos

considerou fatos domingueiros. O cozinheiro, que reconheceu
imediatamente os homens, traduziu as breves palavras que
troca-
ram em gaélico:
- Estão a dizer que hoje há um casamento. Um dos meus pa-
rentes também deve lá ir.
A tripulação, excitada, conversava entre si.
- E estão a convidar-nos para assistir ao casamento, tomar
um copo com eles e desejar aos noivos boa sorte. - O cozi-
nheiro patenteava uma expressão de entusiasmo. - Que dizem a
isto, rapazes? Só por uma hora ou duas.
A ideia de ir a terra por uma hora agradou a todos, e assim
que a tripulação acordou Jake, este não só concordou em que
fossem, como insistiu em que levassem Andy.
- Podes também levar o __Fura-Vidas,_, Andy - disse Jake,
arrastando-se para fora do beliche, a fim de os ver abalar. -
Um
passeio por terra não Lhe há-de fazer mal.
Surpreendentemente, porém, quando deveria saltar para o pe-
queno bote que os levaria a terra, o __Fura-Vidas__
recusou-se.
Mesmo quando Andy bateu no assento a seu lado, num convite,
o,_Fura-Vidas_. permaneceu decidido a não abandonar o navio.
Notando uma tremura percorrer o dorso do cão, Andy,
julgando-o doente, levantou-se com a intenção de regressar a
bordo. O tripulante mais novo, porém, puxou-o para baixo.
- Anda ao casamento em vez de ires passear, Andy. Vais
ver como gostas.
Andy continuava apreensivo, mas entretanto já o bote partia.
Jake congratulou-se por ficar só. Esperava que uma hora de
sossego lhe trouxesse melhoras consideráveis. A âncora era
segu-
ra, o mar apresentava-se calmo na baía e, se bem que a
tripula-
ção tivesse saído, Jake confiava que os homens se manteriam
alerta para o que quer que acontecesse. E caiu de novo na
cama,
torcido de dores. Depois de ter visto o bote chegar a terra, o
__Fura-Vidas__ seguiu o patrão até ao castelo de proa e
estendeu-se
no seu beliche.
Decorrido algum tempo, Jake despertou com o ladrar agudo e
insistente do cão. Saltou do beliche num ápice.
__Que diabo é isto?__, interrogou-se, reconhecendo pelo
movi-
mento do navio que algo de anormal se verificava. __A maldita
âncora está a arrastar,_, murmurou consternado, cambaleando
até
ao convés, onde o cegou uma tempestade de neve.

Ouvia muito próximo o quebrar das ondas, abafado pela neve,
mas não obstante audível. O navio estava quase em terra!
Correu
a ligar o motor. Onde diabo andava a tripulação que não se
aper-
cebia da mudança do tempo? Logo que o motor começou a pul-
sar, surgiu-lhe ao espírito o problema seguinte. A âncora!
Pondo
de parte a possibilidade de tentar ele próprio içá-la para
bordo,
correu a desamarrar a corrente. Um prejuízo que a tripulação
ha-
veria de pagar - pensou, taciturno, correndo de volta à casa
do
leme.
Tentava espiar através da tempestade de neve algum sinal do
bote que traria os tripulantes, mas o nevão, impenetrável,
ocul-
tava tudo para além dos contornos do barco. Cautelosamente,
Jake começou a orientar o Crista de Prata em direcção à
entrada
da baía, increpando-se simultaneamente por ter confiado no
cozi-
nheiro para os pilotar através do estreito canal de Rhuna. O
que é
que o tipo dissera que se devia evitar? Recordava confusamente
fragmentos da conversa havida no castelo de proa e o pânico
assaltava-o ao pensar em dois rochedos submersos na maré alta
e
bastante afastados da costa, a oeste da ilha. Até onde devia
avan-
çar para não chocar com eles?
Praguejava alto, agora. Contra si próprio, contra o
cozinhei-
ro, contra a neve. A que distância estaria da entrada da baía?
Quando poderia arriscar-se a virar? Gradualmente, foi-se tor-
nando consciente de uma ondulação mais agitada e suspirou de
alívio, sabendo que devia estar a aproximar-se do largo. Deci-
dindo virar para oeste para não se arriscar através do
perigoso
canal entre Rhuna e o continente, dirigiu o Crista de Prata
para
o mar alto, aumentando a velocidade, a fim de compensar as
condições, que se agravavam a um ritmo acelerado. Não obstante
o frio, estava alagado em suor; as mãos e os braços
tremiam-lhe
ao manejar a roda do leme e deixara de praguejar para murmurar
orações fervorosas, à medida que o navio ora se empinava, ora
mergulhava nos abismos do oceano.
Quando o Crista de Prata embateu nos rochedos, Jake foi ati-
rado para o convés e o mastro desabou sobre o telhado da casa
do leme. Por um instante, o pescador ficou estendido e eston-
teado - o sangue a brotar-lhe de um grande golpe aberto na
fon-
te; depois esforçou-se desesperadamente por se levantar, a fim
de
tentar fazer recuar o navio. Acelerou o motor inutilmente, en-
quanto o mar continuava a espumar, e viu o Crista de Prata

348 349
#

_ois amigos

ser apanhado pelo meio por dois enormes colmilhos de rocha que
o ergueram acima do nível das águas como um padre a erguer a
hóstia no altar. Jake gemeu. Porque não continuara em frente
em
lugar de virar? Como calculara tão mal a distância a que se
en-
contrava da costa? Maldita neve! Comprimindo com ambas as
mãos o estômago, que lhe ardia de dores, tombou na cOberta.
Cambaleante, curvado para a frente, via agora outra montanha
de mar esmagar-se de encontro às rochas. Em seguida foi o es-
trondear das vagas e o alarido do navio que se despedaçava.
A arquejar, estirado no cOnvés que começava a ruir, o pesca-
dor compreendia enfim que o navio se afundava tão impiedosa-
mente como impiedosamente o gélido mar fustigava o seu corpo
enfraquecido. Por entre a confusão das vagas, divisou de novo
as
rochas, ávidas e vorazes. A respiração saía-lhe sob a forma de
tosse entrecortada de soluços. Tinham-lhe devorado o barco e
iam devorá-lo a ele. Esta ideia, que lhe martelava O cérebro,
fê-
-lo pensar na mulher que não o queria e no filho que dele não
precisava.
Repentinamente, lembrou-se d0 __Fura-Vidas__. Onde estaria?
Ainda lá em baixo, no castel0 de proa`? A tossir, a arfar,
Ja_e
rastejou, apoiando-se ao mastro derrubado, até à escotilha,
que a
água já invadia. E aí estava o cã0.
Quando o mastro caíra, o __Fura-Vidas_, subira prOvavelmente
do castelo de proa para tentar chegar à casa do leme, até
junto
dele; agora não se podia mover, Os quartOs traseiros
esmagados,
a boca aberta, talvez a uivar, embora Jake não conseguisse
ouvir
nenhum som para além do trovejar das águas.
- __Fura-Vidas__! - arquejou.
A resvalar, atravessou penosamènte o convés, conseguindo
finalmente meter o ombro sob o mastro e erguê-lo com toda a
força que lhe restava. Esse esforço bast Ou para libertar o
cão,
que imediatamente foi arrastado pelas ondas. Aliviado, Jake
constatou que o animal conseguia ainda nadar. Talvez tivesse a
sorte de chegar vivo à praia. Sorte de cão. Nada mais. E nesse
momento reparou que o,_Fura-Vidas__ tentava virar-se para
nadar
até junto dele.
-Não, __Fura-Vidas__! Não! - gritou. - Para a praia,
__Fura-Vidas__! Ordens do patrão!
Através de um remoinho de neve, Jake vislumbrou terra. Sen-
tia-se sufocar, e as mãos desprenderam-se-lhe do barco.

350

E'_vt Rhuna, os tripulantes, distraídos com a festa do
casamen-
to, não repararam nas horas nem notaram a tempestade iminente.
O próprio Andy, extasiad0 ante o velho tocador de violino, es-
quecera O __Fura-Vidas__. Embora O pequeno tivesse visto
alguns
flocOs de neve através das vidraças, como a casa onde se
encon-
travam ficava protegida pela colina só quando regressaram ao
barco os tripulantes constataram a violência da borrasca. Ao
che-
garem à praia, deparou-se-Lhes, para sua consternação, um mar
tão bravo que Lhes foi impossível lançar o bote à água.
Andy não ocultava a sua ansiedade; os tripulantes, porém,
com a consciência pesada. tentavam convencer-se de que não
existia razão para preocupações. Apenas a maré baixasse,
lança-
riam o bOte à água. E o nevão não podia durar muito; iria pelo
menos abrandar.
Aceitaram ser recebidos numa cabana junto à praia, onde to-
maram chá e fumaram, enquanto roíam as unhas e observavam a
neve presa aos vidros das janelas. A noite caíra quase
completa-
mente quando a tormenta cessou e o mar se acalmou o bastante
para poderem lançar o bote. Mas o Crista de Pratu não se
encon-
trava na baía.
- A âncora deve ter começado a arrastar e ele achou que era
melhor fazer-se ao largo - sugeriu o tripulante mais jovem.
- Acho que sim - aprovou o cozinheiro.
- Nesse caso, em breve nos há-de vir buscar - observou o
mais velho. E reuniram-se em tOrno do bote, dando pontapés aos
seixos, batendo no solo com os pés gelados, dando palmadas nos
braços, fumando, resmungando, sempre com os olhos fitos na
baía, na esperança de verem aparecer as luzes do Cristu de
Pra-
ta. Ao vendaval sucedeu-se uma calma glacial e a Lua nasceu,
uma lua cheia que iluminava as rochas negras, cujos perfis se
re-
cortavam na garganta gelada da baía; e os hOmens continuavam à
espera na praia, recusando o abrigo quente da cabana. Quando a
alvorada rompeu, como o navio continuasse sem aparecer, alguns
membros da tripulação partiram a investigar o oceano. Ao
depararem-se-lhes os destroços presos nos dentes das rochas,
al-
guns retrocederam a pedir socorros, enquanto outros se
precipita-
vam em direcçã0 à costa rochosa, a fim de a pesquisarem.

QUANDO O mar lançara o _,Fura-Vidas__ para a restinga de
_ areia entre as rochas, na cOsta ocidental de Rhuna, o cão,
depois

351
#

Dois umigos

de rastejar para longe do alcance das águas, então em maré
alta,
permaneceu imóvel. Toda a noite, esquecido do zurzir das vagas
e das dores no corpo esmagado, esperou pela paz que sabia não
havia de tardar.
De madrugada, ergueu a cabeça, como que para um último
olhar, e viu a boiar nas águas, agora tranquilas, o corpo do
pa-
trão. Tentou mover-se enterrando as patas na areia, e, penosa-
mente, contorcido de dores, arrastou-se até junto dele. Ao
chegar
o focinho à mão fria que tantas carícias lhe prodigalizara,
levan-
tou a cauda que a seguir deixou cair, soltando um longo e
derra-
deiro lamento.
O homem e o cão permaneciam ainda juntos quando a equipa
de salvamento os encontrou. Retiraram então com cuidado o
corpo do __Fura-Vidas,_ e colocaram Jake numa maca provisória,
a fim de o levarem para terra. Andy, acompanhado pelo pai,
que,
sabendo em Gaymal da tempestade, reservara lugar no primeiro
navio que partira para Rhuna, chegou ao lugar onde jazia o
__Fura-Vidas__. O pai, que deixou o pequeno descer sozinho à
praia, viu-o curvar-se e pousar ternamente a mão no corpo hú-
mido do cão, viu-o depois dirigir-se para junto do destroçado
Crista de Prata, que o mar trouxera à praia, correr a mão pela
curva da proa, como quem afagasse o pescoço de um cavalo fa-
vorito, regressar para junto do __Fura-Vidas,_ e ajoelhar-se a
seu
lado na areia.
Seguidamente afastou-se, para não assistir ao sofrimento do
filho, acocorando-se por detrás de um penedo a olhar as
gaivotas
que voavam em círculos baixos sobre a praia e a escutar os
seus
gritos roucos. Parecendo-lhe, porém, ter ouvido um grito huma-
no, olhou em redor, procurando detectar a sua proveniência.
Ergueu-se. O berro vinha da praia, onde, porém, apenas
Andy se encontrava. Andy e o cão morto. Observou mais aten-
tamente. O grito humano provinha indubitavelmente da praia.
._Não! Não!__ repetia incessantemente a voz. Andy, sacu-
dindo o punho fechado em direcção às gaivotas, formava com a
boca a palavra __não__, a que o som correspondia.
Estupefacto e incrédulo, o pai viu Andy retirar do bolso uma
corda, uma extremidade da qual atou a uma pedra, amarrando a
outra ao pescoço do __Fura-Vidas__. Viu-o arrastar o cão para
a
água, e, temendo o que pudesse acontecer, precipitou-se para a
praia, chamando-o:

- Andy ! Andy !
Andy, contudo, não lhe prestava atenção. Sabia que tinha de
prestar ao amigo aquele último serviço. Não podia permitir que
as gaivotas inimigas despedaçassem o pobre corpo morto impos-
sibilitado de defesa. Devia conseguir colocar o __Fura-Vidas._
em
águas fundas, fora do alcance das gaivotas, e onde, na próxima
maré, e graças ao pedregulho, o mar o retivesse. O pai entrou
na
água no momento em que o pequeno largavà o cão. Andy agarrou
na mão que o pai lhe estendia.
- Andy! - observou-Lhe o pai ao patinharem na areia.-
Tu falaste. Sabias?
Andy levou a mão à garganta.
- Não! - disse; não em resposta à pergunta do pai, mas
ainda a gritar em direcção às gaivotas.
- Falaste outra vez. Falaste mesmo! - insistiu o pai.
- Sim - respondeu Andy, como quem experimenta uma
nova sensação; e consciente do estranho pulsar que lhe surgira
na
garganta, repetiu as palavras __sim__ e __não_, muitas, muitas
ve-
zes, enquanto trepava o areal com o pai, saindo da baíã e se-
guindo pelo brejo coberto de neve.





















352 353
#

Acerca da autora. . .















Lilliun Natureza.
Beckwith Instalando-se numa das ilhas
menores, Lillian Beckwith tor-
nou-se uma crcifter - rendeira numa peyuena quinta. Ac-
tualmente, ao recordar esses tempos, declara:._Aprendi a
viver com dureza. Se me furtava a cortar turfa na Primavera,
passava frio no Inverno. A terra era tão pobre que se tornava
quase impossível aos rendeiros reunir algumas reservas.
Quando, nos primeiros dias, perguntava ingenuamente se me
podiam vender alguns dos seus produtos, respondiam-me

com generosas ofertas de sacos de turfa, feno ou batatas e
recusando qualquer hipótese de pagamento. Era a sua manei-
ra de tratarem com estrangeicos ignorantes e de se assegura-
rem de que eu não teria coragem de tornac a pedir-lhes o que
quer que fosse. "
Mau grado a dificuldade da vida nas ilhas Hébridas, ha-
via sempre aspectos compensadores: ~a paisagem de uma
beleza indescrítível" e a grande satisfação de viver a um rit-
mo por ela mesma escolhido. Durante esses anos, Lillian
Beckwith conheceu pescadores como os que retrata em Dois
Amigos e escreveu uma série de contos que ilustram a vida
nas ilhas. Actualmente sente que o isolamento representou
um papel preponderante na decisão que tomou de escrever.
Por vezes, simplesmente porque não havia com quem falar,
anotava no papel o que queria dizer.
Em I961, Lillian Beckwith casou com Edward Comber,
um artista; o casal mudou-se para a ilha de Man, menos
remota mas não menos encantadora, tão perto quanto possí-
vel do mar, onde a autora continua a dedicar-se a escrever.

fim do livro.
Drácula 4





Orgia de Sangue (1999) por Lourivaldo Perez Baçan
A Casa do Mago das Letras
(c) Copyright 1999
L P B Edições
LONDRINA - PR
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SELEÇÕES DO DRÁCULA
ORGIA DE SANGUE
Lourivaldo Perez Baçan
ÍNDICE
Capítulo 1
Capítulo 2 Capítulo 3
Capítulo 4 Capítulo 5
Capítulo 6 Capítulo 7
Capítulo 8




CAPÍTULO 1

O rápido da British Railway, com destino a Wolverhampton, passava não
muito longe da casa. Stanley Gardner apanhou seu precioso relógio do colete e
olhou-o.
- Com efeito! Está atrasado! - exclamou, levando-o ao ouvido por
instantes.
Depois com calma, acertou-o pelo horário da passagem do trem: dezoito e
cinqüenta e cinco.
Terminou sua xícara de chá, depois ergueu-se da mesa.
Cora Gardner, sua esposa, virou-se:
- O velho relógio de vovô está atrasado - disse, enquanto caminhava até a
janela.
Respirou fundo o ar úmido e perfumado que vinha do bosque a meio
quilômetro da casa. Seu olhar atravessou o jardim, as sebes desfolhadas pelo
outono, alongando-se até o bosque e, depois, para as muralhas do velho castelo
dos Panter.
Um sentimento de orgulho dominou-o. Seus ancestrais haviam servido
naquele castelo, há muitos anos, antes que o último descendente da nobre
família morresse numa expedição à Índia.
O velho castelo permanecera, vencendo o tempo, descuidado, agora, com o
mato tomando conta dos jardins e a hera subindo pelas pedras dos muros e das
paredes.
Na torre principal ainda se equilibrava o mastro onde, por muitos anos,
estivera hasteada a bandeira dourada com a pantera ao centro, cravando as
garras sobre um javali.
- Cora, lembra-se por que havia uma pantera na bandeira dos Panter? E o
javali?
- Ora, Stan, como vou me lembrar? - descartou ela, retirando as peças de
porcelana da mesa e levando-as para a pia, onde as lavou cuidadosamente.
Escurecia rapidamente no outono. O céu azulado em pouco tempo perdia seu
brilho forte, tornando-se escuro... Stanley foi até seu armário e apanhou um
cachimbo.
Encheu-o cuidadosamente, acendeu-o e voltou à janela. As ameias e
seteiras do castelo começavam a se confundir com a noite.
Atravessando a rua como uma sombra, um cachorro avançou para o bosque. No
momento seguinte, outro o seguiu, mas estacou no meio da estrada, erguendo o
focinho para o ar como se farejasse qualquer coisa.
Um carro vindo pela estrada diminuiu a marcha e o motorista piscou os
faróis. Stanley endireitou-se intrigado. Antes que o animal sumisse na direção
do bosque, teve a nítida impressão de ter visto um lobo ali, no centro da
estrada.
Deveria estar enganado, foi o que concluiu. Não havia lobos em Coventry
há cerca de cinqüenta anos, talvez mais. E depois, de onde poderiam ter vindo?

- Cachorros, com certeza - resmungou, voltando a se debruçar no peitoral
da janela.
- Como? - indagou a mulher, atrás dele.
- Cachorros - afirmou ele. Vi um cachorro, dois, aliás, atravessando a
estrada na direção do bosque.
- Ah! - exclamou ela, continuando seus afazeres.
- Mas me pareceu um lobo - continuou ele, como se o dissesse só para si.
A mulher não o ouviu. Havia deixado a cozinha e ido até a sala, onde
ligara o televisor. Tinha as mãos um precioso bule e enxugava-o, enquanto
cravava os olhos na tela azulada.
- Stanley! Jack fez outra! - quase gritou.
- Diabos! - exclamou ele, deixando a janela e indo até a sala.
O locutor estava dando as últimas informações sobre mais um crime de
Jack, o Estripador. Uma garota fora encontrada num terreno baldio com as
vísceras abertas, após haver sido barbaramente espancada.
Os dois observaram o tempo todo, com atenção. Cenas do local foram
mostradas e, por instantes, surgiu o rosto da garota.
- Tão jovem! - exclamou.
- Alguém precisa fazer alguma coisa... Positivamente! - afirmou Stanley,
pensativo.
- Ela deveria ter a idade de nossa Albertine - acrescentou a mulher...
- Falando nisso... - disse Stanley, sacando o relógio do colete. -
Albertine está cinco minutos atrasada. O trem já chegou há uns dez.
- Deixe-a, homem. Na certa encontrou-se com Chester Blackpool. Eles estão
namorando, sabia? - indagou ela, com um riso matreiro nos lábios finos e
descorados.
- Gosto dos Blackpool. São uma ótima família. Albertine disse se ele já a
pediu em casamento?
- Ora, Stanley! Estão namorando há duas semanas apenas - resmungou ela,
voltando à cozinha.
Ele deu algumas baforadas em seu cachimbo, depois voltou à mesma janela.
Olhou a rua, agora apenas uma sombra mais clara no chão da noite.
Um farol iluminou-a. O veículo avançava em média velocidade mas,
repentinamente, freou. Seus faróis iluminaram um animal no centro da estrada.
Stanley arregalou os olhos.
- Cora, venha cá! - chamou, mas, quando a mulher se aproximou da janela,
o animal havia corrido para o bosque.
- O que foi? É o carro do Chester, não é? Houve alguma coisa?
- Juro que vi um lobo diante dos faróis - afirmou ele.
- Ora, Stanley! - murmurou ela, dando de ombros.
O veículo, na estrada, voltou à velocidade anterior, avançou até a
encruzilhada, onde seus faróis descreveram um quarto de círculo no ar,
iluminando direto o rosto o homem.
Stanley cobriu os olhos. O motorista abaixou as luzes e veio estacionar
diante da casa. Albertine e Chester desceram.
- Boa noite! - cumprimentou Chester, com um aceno.
- Boa noite! - respondeu Stanley e sua mulher veio olhar por sobre seu
ombro.
- É um belo rapaz, não é mesmos? - indagou.
- Sim, um bom partido, não há dúvidas!
Chester e Albertine, de mão dadas, aproximaram-se um pouco mais da
janela.
- Sabe o que vimos, ainda há pouco, na estrada? - indagou a garota.
- Eu estava aqui mesmo e vi a freada. Juro como havia um lobo diante do
carro...
- Sim, isso mesmo! - afirmou Chester. - Não era um cachorro, tenho
certeza.
- Eu não lhe disse? - comentou Stanley, voltando-se para encarar a
esposa.
- Um lobo... Um lobo aqui, em Coventry... - resmungou ela, incrédula.
- Era um lobo sim, mamãe. Correu para o bosque, quando paramos o carro.
Vi seus dentes e seus olhos. Brilhavam como os de um demônio - disse a garota,
entusiasmada.
- Mas por que não entram? - convidou a Sra. Gardner, pondo a cabeça sobre
o ombro do marido.
- Chester já tem que ir embora. Só veio me trazer - falou a garota.
Chester se despediu de todos, apertou com firmeza as mãos de Albertine,
desejando que seus pais não estivessem na janela.
Ela sorriu emocionada e ele caminhou até o carro. Estacou, subitamente,
quando ouviu aquele uivo lancinante, prolongando-se em seguida até morrer como
um eco.
Voltou-se e olhou o Sr. Gardner, na janela.
- Ouviram isso? - indagou.
- Eu fique toda arrepiada! - exclamou Albertine.
- Era um lobo, tenho certeza absoluta! - afirmou Stanley, intrigado e
curioso.
*
Albert Humperdeen acomodou-se melhor em seu assento, olhando com atenção
a estonteante loura, sentada sozinha, algumas mesas além da sua.
Nos últimos minutos, Albert estivera intrigado, julgando que o uísque
estivesse lhe pregando alguma peça. Via a loura na mesa, através do espelho
colocado na parede, à sua frente, após o balcão, no centro das prateleiras de
garrafas...
A loura conversava com alguém. Ria e fazia gestos coquetes, mas não havia
ninguém em sua companhia. Albert ria disso. Pediu um outro uísque duplo.
Quando o garçom veio serví-lo, Albert indagou-lhe, a voz prejudicada pela
bebida.
- Há uma loura sentada duas mesas atrás da minha?
- Sim, ela está lá. Vestido vermelho, não?
- Sim, essa mesma. Você a conhece?
- Nunca a vi antes.
- Ela deve ser louca, não? - indagou Albert, com uma expressão que o
garçom não quis entender.
Conhecia Albert. Quando bêbado, era simplesmente incompreensível. Dizia
as piores asneiras. Em sua última bebedeira, passou meia hora descrevendo as
aranhas negras que subiam pelas prateleiras e se penduravam no teto.
- Louca ou não... é tentadora, não é mesmo? - retrucou, afastando-se.
Albert tomou um gole, depois ergueu o copo até a altura dos olhos.
Através do líquido dourado observou o espelho. Lá estava a loura, novamente
falando sozinha.
Tentou girar a cabeça lentamente, mas sabia seu estado. Por instantes o
salão girou. Ele estacou, os olhos fixos no espelho. Com quem ela falava,
afinal?
Quando o salão se aquietou, continuou virando lentamente a cabeça, até
que a loura entrasse em seu campo de visão. Lá estava ela, em seu vestido
vermelho muito decotado, deixando à mostra seios fartos e provocadores.
Piscou os olhos. Depositou o copo sobre a mesa e com as duas mãos segurou
a cabeça. Havia um homem com a loura. Era alto e magro, feições ligeiramente
pálidas, mas lábios vermelhos e grossos.
Desviou lentamente os olhos para o copo de uísque. Todo o movimento durou
cerca de um minuto. Albert percebeu, então, o quanto estava embriagado.
Durante todo o tempo estivera observando a loura, julgando que ela
estivesse sozinha, mas havia alguém com ela. Era incrível o que a bebida podia
fazer.
Levantou os olhos para o espelho e viu apenas a loura. Piscou os olhos,
esfregou-os e tornou a olhar. Lá estava ela, sozinha na mesa. Podia jurar que
ela estava só. Voltou-se repentinamente, olhando a mesa.
Lá estava o tal sujeito. Por instantes todos os efeitos do álcool se
dissiparam. Ele girou os olhos do espelho para a mesa, incrédulo.
Depois começou a rir, quando o salão girou vertiginosamente e ele se
agarrou com ambas as mão ao tampo da pesada mesa de carvalho.
Rostos se voltaram para olhá-lo com piedade. Albert ria como se tivesse
ouvido a melhor piada de toda a sua vida. Alternou olhares novamente, entre o
espelho e a mesa, incapaz de compreender aquela peça.
Ergueu-se, apoiado à mesa. O bar girou muitas voltas. Os rostos
continuavam fixos no seu, mas a ele isso não mais incomodava.
Firmou o corpo, finalmente, olhando fixamente o homem que acompanhava a
loura. Por momentos pareceu medir a distância e sua capacidade de chegar
intacto até lá.
Depois, soltou-se da mesa e cambaleou, indo parar diante da outra. O
homem e a loura ergueram os olhos para ele. Albert puxou rapidamente uma
cadeira e sentou-se. Apontou o indicador para o rosto do desconhecido e
engasgou-se com as palavras.
Riu em seguida, voltando o corpo para apontar o espelho. Os olhos do
desconhecido brilharam e uma expressão ameaçadora tomou conta de seu rosto,
como se uma fera instintiva despertasse dentro dele.
- Imagine que... Estou bêbado! Deus, como estou bêbado! - balbuciou
Albert.
- Está sendo inconveniente, cavalheiro! - disse o companheiro da loura.
- Sim, por que não dá o fora? - acrescentou a loura, num tom vulgar.
- Eu já vou... Mas você não está! - afirmou o bêbado, encarando o outro.
- Está dizendo asneiras! - comentou ele, incomodado...
- Eu estava observando pelo espelho. Só via essa deliciosa senhorita e
mais ninguém. No espelho você não estava, mas estava aqui - disse Albert,
patético, voltando a rir.
- O que ele está dizendo? - quis saber a garota.
- Como vou saber? Ele está embriagado! - disse o homem, erguendo-se e
tomando Albert por um dos braços.
A pressão daquela mão assustou Albert. Era como se uma garra de gelo
fosse posta ao redor de seu braço, vencendo a barreira da camisa de lã.
- Espere, eu estou bem... - resmungou.
- Você está bêbado. Por que não vai para casa? - disse o homem, mais
ordenando que pedindo.
Seu tom de voz trazia uma ameaça que, apesar da embriaguez, Albert pôde
entender. Olhou-o. Aqueles olhos eram assustadores. Aqueles lábios sugeriam
lembranças grotescas, animais.
- Eu vou... Eu vou sim - afirmou, livrando-se da mão que o segurava. - Já
estou indo. Sei quando chego ao limite - resmungou em seguida, cambaleando por
entre as mesas, esbarrando em algumas.
O homem ficou em pé ao lado da mesa, olhando-o sair pela porta. Voltou-se
para a garota.
- Não me demoro - disse, depois deslizou na direção dos fundos.
Passou pela porta, dos sanitários e foi até uma outra, mais além, no
corredor. Abriu-a e saiu para o estacionamento. Com passos rápidos ele
contornou a construção. Albert vinha vindo pela calçada, apoiando-se ao muro
que acompanhava o estacionamento.
Estacou, arrepiado, ao ver aquele vulto diante de si. Piscou firme os
olhos. A luz cheia, surgindo a suas costas, foi iluminando o rosto do homem
diante de si.
- Eih, você é o homem que não estava no espelho - reconheceu, esboçando
um sorriso.
O outro permaneceu em silêncio. Seus olhos brilharam quando um farol os
iluminou. O veículo passou, mas o brilho persistiu.
Albert cambaleou e se sentou no muro baixo, olhando-o. Ele se aproximou
lentamente, como uma sombra que viesse da única luz que brilhava no
estacionamento vazio. A ruela adiante, que desembocava no Baker Street, estava
às escuras. Albert sentiu medo. Um medo estranho, instintivo, que fez arrepiar
seu corpo.
- Sim, sou o homem que não estava no espelho - murmurou, num tom grave e
metálico ao mesmo tempo, impessoal, sem trair sentimento algum.
- Como pode estar... - ia dizendo Albert, mas calou-se ao perceber a
luminosidade que brotava do corpo diante dele, envolvendo-o gradativamente,
como radiações trêmulas e confusas, como chamas que se desprendessem de uma
acha de lenha e se apagassem no espaço.
Endireitou o corpo, sentindo-se arrepiar inteiramente. Qualquer coisa
gosmenta travou-lhe a boca, grudando sua língua como uma paralisia momentânea.

A luminosidade cresceu, tomou a forma do corpo do outro, depois foi se
transformando, metamorfoseando, encolhendo-se, até que as asas negras de um
enorme morcego fossem agitadas à sua frente.
Não quis acreditar no que via, mas o vento batendo em seu rosto, trazendo
um cheiro fétido de cemitério, dava-lhe a certeza de que a visão era real.
Recuou, cambaleando. O morcego bateu as asas, pairando à sua frente,
depois adiantou as garras como uma ave de rapina e avançou direto para o seu
rosto.
Albert cobriu-o com as mãos e tentou correr, louco de pavor. Suas pernas
embaralharam-se e ele caiu pesadamente, a cabeça batendo contra as pedras do
calçamento. Tentou se levantar mas o mundo girou ao seu redor e suas forças se
foram, quando o coração pareceu explodir.



CAPÍTULO 2

Mary Reading foi até o armário do banheiro, abriu-o e apanhou o vidro de
pílulas para dormir. Deixou cair uma delas sobre a palma de uma das mãos.
Olhou-se no espelho, após fechar a porta do armário. Toda a tensão e o
medo que haviam se instalado nela se refletiam em suas faces.
Profundas olheiras davam-lhe um ar sombrio e cansado. A pele perdera o
brilho, como resultado dos constantes sobressaltos e das noites terríveis que
vivia, desde que deixara Falmouth e viera para Londres.
Não conseguia esquecer os acontecimentos. Duas de suas amigas haviam
morrido tragicamente. Ela mesma passara por uma experiência que jamais alguém
acreditaria.
Tomou uma pílula, desligou a luz e atravessou a sala, rumando para seu
quarto. A velha tia já dormia, no aposento ao lado. Mary entrou e olhou a
porta. Noite após noite lutava contra aquele fantasma que vivia dentro dela.
Fechou-a lentamente, passou o trinco e girou duas vezes a chave. Por
alguns instantes ficou olhando a sólida madeira trabalhada.
Seus pensamentos voltaram atrás no tempo, até uma noite de pesadelo. Vira
aquele monstro ameaçador atravessar a porta. Fosforescente e aterrador, aquele
vulto vivia em sua mente.
Foi para a cama. Olhando o relógio na mesa de cabeceira. Ao seu lado
estava um rosário. A mão da garota se estendeu, tocando-o. Apertou-o
lentamente entre os dedos, fechando os olhos e começando a rezar.
Não sabia até quando poderia suportar aquilo. Seu médico já advertira...
Estava à beira de um colapso nervoso. As pílulas para dormir à noite e os
estimulantes pela manhã estavam criando um círculo-vicioso perigoso que
deveria ser interrompido, antes que se tornasse irreversível.
Mary sabia de tudo aquilo, mas como sair à noite se em suas lembranças
havia um monstro onipresente, cujas garras pairavam sobre ela como a sombra do
próprio demônio?
Talvez devesse sair, divertir-se um pouco, quebrar aquela rotina
perigosa. Teria de criar muita coragem para aquilo. Se ali, em seu quarto,
diante da porta trancada, não se sentia segura, como poderia sair e passear!
Aquele rosário parecia ser sua única arma, a única coisa a dar-lhe um
pouco de confiança. Suspirou, olhando o abajur. Prometera, na noite anterior,
que dormiria com a luz apagada.
Seus dedos se esticaram e brincaram com o interruptor. Bastaria um toque
e a escuridão se faria presente. Tinha de vencer o seu medo, mas seus dedos
tremeram e recuaram.
Gotas de suor brilharam em sua testa. Ela afundou-se sob as cobertas,
cobrindo-se até o queixo. Ficou olhando a porta, o olhar quase demente, a
testa vincada por rugas.
Seu pavor não tinha limites.
*
Vlad Lucard sorriu, mostrando seus dentes brancos e perfeitos. Berta
Wistomer estendeu a mão e tocou-lhe os lábios com o indicador.
- Que belo sorriso você tem! - murmurou ela, apaixonada.
Vlad cravou nela seus olhos penetrantes e sorriu levemente, saboreando a
volúpia que se agitava em seu corpo. Sua mão subiu pelo braço da garota, até o
ombro, onde acariciou. Seu polegar contornou pescoço dela, pousando sobre a
veia principal que palpitava ao compasso das batidas do coração.
Seu olhar brilhou mais forte e seus lábios se contraíram, num riso de
satisfação. A garota estava seduzida.
Seu olhar se desviou para um homem que entrava no bar, ligeiramente
alterado. Foi até o balcão, pediu uma bebida e entornou-a num só gole.
Conversou por instantes com o barman, que se alarmou e deixou seu posto,
após dizer algumas palavras ao garçom. Vlad fez um sinal a este.
- Mais alguma coisa, senhor? - veio indagar-lhe o rapaz.
- Mais um drinque para a garota aqui... Algum problema lá fora? -
indagou, desinteressadamente.
- Sim, parece que acharam Albert Humperdeen caído no calçamento. Era
fatal que acontecesse cedo ou tarde.
- Não está falando daquele bêbado que veio nos incomodar, está? - indagou
Berta.
- Sim, ele mesmo, senhorita.
- Alguma coisa grave?
- Pelo que disse Mike, está morto. Bateu com a cabeça ao cair e...
Desculpe-me! - apressou-se em dizer, ao perceber que impressionara a garota.
- Traga logo aquele drinque - pediu ela. - Sou muito sensível a essas
coisas. Era um bêbado, mas não me pareceu uma má pessoa...
- Garanto que não era - afirmou o garçom, afastando-se.
*
Torg já estava familiarizado com aquelas escadarias escuras e aqueles
enormes salões, cobertos de teias de aranhas e muita poeira.
Avançou coxeando, após galgar as escadas que levavam à torre principal.
Aproximou-se da seteira e olhou adiante, na direção da casa iluminada além do
bosque e da estrada.
Um lobo uivou, lento e agudo. Um outro ajuntou-se a ele e o dueto macabro
incomodou o corcunda.
- Pelos cascos de Belzebu! - murmurou. - De onde surgiram esses lobos?
Debruçou o corpo, olhando na direção do bosque, mas nada podia ver, além
de sombras que vingavam por entre as árvores. Depois, com um brilho de luxúria
nos olhos, voltou a olhar a casa.
Só então desembrulhou avidamente o pacote que trazia nas mãos. Fora à
cidade naquela tarde e comprara aquilo. Estava ansioso para testar seus
efeitos.
Jogou para o lado o papel, depois abriu o estojo. Tomou o potente
binóculo em suas mãos, sorrindo. Assentou-o na direção da casa, observando uma
a uma as janelas iluminadas. Estacou numa delas. Viu o vulto feminino deslizar
de um lado para outro. Era ela, não havia dúvidas. Seus olhos se arregalaram,
quando o vulto parou diante da janela aberta.
Com movimentos lânguidos, ela começou a se despir. O corpo do corcunda se
agitou, inquieto, os olhos grudados às lentes.
Uma de suas mãos foi se estendendo lentamente, como se quisesse tocá-la,
tão perto a sentia. Um fio gosmento escorregou do canto de seus lábios,
entreabertos de gozo.
Albertine Gardner deixou a blusa sobre a cabeceira da cama, depois despiu
a saia. Apenas a anágua transparente ocultava suas pernas esculturais.
Torg grunhiu qualquer coisa, a mão agitando-se diante do binóculo, numa
sanha voluptuosa. Albertine baixou a anágua. Torg fungou, grunhindo sempre, a
mão pousando sobre a pedra e crispando-se como querendo esfacelá-la.
- Bela! - rouquejou, quando ela afrouxou o sutiã, depois tirou-o,
revelando os seios redondos e pequenos, tentadores.
A língua áspera percorreu os lábios de um lado para outro, impaciente.
Albertine escovou os cabelos, depois vestiu a camisola. Foi até a janela e
baixou-a. Depois puxou as cortinas tapando a visão do monstro.
Torg ficou ali, ofegante, olhando ainda, como se esperasse ver, através
da pequena fresta o corpo que o seduzira.
Baixou o binóculo. Os lobos voltaram a uivar. A luz retornou à janela do
quarto e o vulto de Albertine se destacou.
Os lobos a assustavam. Ao perceber isso, uma fúria assassina tomou conta
do corcunda. Ninguém deveria incomodar o sono da garota.
Ele girou o corpo, encontrando algumas pesadas pedras soltas. Urrou ao
erguer uma delas e arremessá-las para baixo. Outro lobo uivou. Torg ergueu
outra pedra, depois mais outra, atirando-as para baixo, até que se esgotassem.

Agarrou-se a uma das ameias, tentando arrancar o bloco. Não o
conseguindo, chutou-a e andou de um lado para outro, como fera enjaulada.
- Malditos! - grunhiu, retornando para a escada e descendo
apressadamente.
Momentos mais tarde deixava a passagem secreta que conduzia ao jardim.
Viu-se, logo em seguida, no bosque. Os lobos estavam silenciosos, mas Torg
podia sentir-lhes a proximidade.
Um deles rosnou a suas costas... Torg se voltou para encará-lo. Os olhos
do animal chamejavam na noite. Torg avançou para ele. O animal saltou no ar e
seus corpos se chocaram, rolando sobre as folhas secas.
Os braços do corcunda fecharam-se ao redor das costelas do animal e seus
dentes cravaram-se no pescoço da fera, que se debateu, uivando e rosnando.
*
O motorista, intrigado, voltou o rosto para olhar seus passageiros. O
homem no banco traseiro olhou-o como que fuzilando-o.
Um arrepio percorreu seu corpo. Ele se endireitou, atento ao volante, uma
sensação estranha e opressiva fazendo-o pisar mais fundo no acelerador.
Arriscou olhar, novamente, pelo retrovisor. Lá estava a loura, apenas
ela, sozinha no banco. Onde estava seu acompanhante?
Já estava habituado aos tipos mais estranhos em seu carro, mas, naquela
noite, não conseguia entender o que se passava. Ao olhar para trás, vira o
homem; pelo retrovisor não conseguia focalizá-lo.
Suspirou aliviado quando chegou ao endereço fornecido pela garota. Era
uma casa de cômodos, numa viela escura de Stevenage.
Recebeu uma nota de dez libras e remexeu seus bolsos à procura de troco.
- Pode ficar! - disse o homem bem vestido que acompanhava a loura.
Seu tom de voz metálico fez o motorista estremecer. Pôs o carro em
movimento e afastou-se rapidamente.
Vlad olhou a garota no fundo dos olhos, depois baixou o olhar até o
pescoço torneado. A volúpia em seu corpo se assanhava, intensa como a lua
cheia que brilhava no céu.
- Vamos entrar? Meu quarto é o primeiro, sob a escada. Não faremos
barulho algum e estaremos a sós - sugeriu ela, com malícia, levemente
embriagada.
Conhecera aquele homem fantástico no começo da noite. Haviam estado em
dois ou três bares, antes do último, onde ela bebera um pouco além da conta.
Sentia-se alegre e excitada. Não era todo dia que se via numa companhia
tão distinta. Pelos modos e pelas roupas, juraria tratar-se de um cavalheiro.
Se assim fosse, poderia cobrar um bom preço e fazer valer a noite.
Seus braços sensuais enlaçaram o pescoço de Vlad.
- O que quer, amorzinho?
Ele sorriu, olhando a lua por instantes. Fechou os olhos e apertou a
garota contra seu corpo. Ela movimentou os quadris sugestiva e
provocantemente, roçando-se nele.
Lábios frios pousaram sobre sua face, depois deslizaram para seu pescoço,
mordiscando gostosamente. Ela encolheu os ombros, arrepiada.
- A noite está tão bonita... Você e tão bonita... - rouquejou ele, a voz
perdendo aquele timbre metálico para adquirir uma tonalidade quente e sensual
que a fez vibrar.
- Minha janela dá para o jardim... Vamos nos amar à luz da lua - propôs,
esfregando-se com volúpia ao corpo dele.
Vlad sorriu, mostrando os dentes. Seus lábios haviam se tornando mais
vermelhos e suas mãos apertavam com volúpia maior as carnes macias daquele
corpo.
- Sim, por que não? - respondeu.
Ela o beijou avidamente, adiantando sua língua. Ele a prendeu ante os
dentes, deixando-a escorregar em seguida.
- É só o tempo de encontrar a chave? - disse ela, soltando-o e
vasculhando sua bolsa.
Adiantou-se até a porta. Abriu-a e acenou convidativamente para ele, que
a seguiu pelo corredor, até uma outra porta, fracamente iluminada por uma
lâmpada no alto da escada.
- É aqui - sussurrou ela, abrindo e deixando-o passar.
Ele avançou até o centro do aposento, olhando ao seu redor em seguida.
Era um quarto vulgar, com uma enorme cama coberta por uma colcha vermelha.
Berta fechou a porta atrás de si, depois foi até a janela e afastou as
cortinas. O luar incidiu sobre o avermelhado da colcha, produzindo um efeito
que agradou aos olhos dele.
- O banheiro á ali - apontou ela.
- Sim - apenas disse ele, sentando-se na cama.
- Vejo que está com pressa - sorriu ela, com malícia, começando a se
despir.
Primeiro os sapatos, depois a saia e, finalmente, a blusa. Apenas de
calcinha e sutiã ela se aproximou, flexionando uma das pernas e repousando-a
sobre os joelhos dele.
As mãos frias subiram por suas coxas, ultrapassaram a linha da cintura,
resvalaram pelos seios e foram acariciar o pescoço dela.
- Não vai se despir! - perguntou ela, debruçando-se sobre ele, fazendo
seus seios roçarem os cabelos dele.
- Tudo em seu devido tempo - murmurou ele, a voz rouca e excitada,
puxando-a para si, esfregando-se a ela como se toda aquela volúpia contida
durante a noite explodisse naquele momento.
Girou o corpo, pesado sobre o dela. A lua brilhava nos olhos de Berta.
Seus lábios entreabertos sugeriam prazeres. Vlad Lucard, o Conde Drácula,
segurou aquele rosto entre suas mãos frias, depois deixou que seus lábios
deslizassem para o pescoço da mulher.
As caricias daqueles dentes provocaram arrepios, excitados no corpo dela.
Os movimentos inquietos e bruscos daquele homem denunciavam um desejo ardente.

- Beije-me! - pediu ela, procurando desabotoar-lhe a camisa.
- Sim, querida - rouquejou ele, quase num grunhido, torcendo a cabeça
dela para um lado e pousando seus lábios sobre a veia jugular.
Por instantes sentiu, apenas o palpitar ritmado da corrente sangüínea.
Estremecimentos abalaram seu corpo. Sua boca se abriu mais e mais. Os caninos
se agigantaram, pontiagudos e mortais.
Berta não entendeu aquela fisgada em seu pescoço, nem os gorgulhos
sôfregos. Algo quente deslizou pelo seu pescoço, sendo perseguido pelo lábios
do vampiro, que retornaram, a seguir, para cima da ferida, sugando-a, sorvendo
o sangue que jorrava incontrolado.
Berta quis gritar, dominada pela dor e pelo medo. Sabia que poderia
fazê-lo, mas havia qualquer coisa ordenando-lhe que se mantivesse calada.
Seus olhos se fixaram na lua, brilhando atrás do vidro sujo da janela,
enquanto Drácula se esfregava a ela com lascívia, apertando suas carnes,
fungando, bebendo seu sangue.
Espasmos agitaram seu corpo, ao mesmo tempo que o dela estremecia
agonizante. Quando a última gota havia sido sorvida, Drácula rolou para o lado
ofegante, lambendo os lábios, os olhos injetados e arregalados, o corpo
saciado do voraz e nojento apetite.
Ergueu-se em seguida. O luar iluminava o cadáver sobre a cama. Drácula
recompôs as roupas, depois foi abrir silenciosamente a janela.
Por momentos fitou o corpo em destaque contra o vermelho da colcha,
depois olhou a noite.
Uma luminosidade cercou seu corpo, tomando seu formato. Depois,
alterou-se até a forma de um morcego enorme, que bateu suas asas e guinchou
através da janela.
Subiu alto, muito alto, onde podia sentir seu domínio sobre a terra e
sobre os mortais. Precisava voltar ao castelo e repousar. Seu fiel criado se
encarregaria do resto.
- Onde ela está, mestre? - indagou-lhe Torg, quando a metamorfose se
operou e o vulto sinistro do vampiro se firmou à sua frente.
- Na Real Cross, em Stevenage. O número da casa é cinco. Se for até o
jardim, ao lado, verá a janela aberta. Livre-se dela como das outras vezes...
- sim, mestre - concordou o corcunda, satisfeito.



CAPÍTULO 3

Coxeando, Torg se encaminhou para a saída que o levaria para fora do
castelo abandonado. Drácula olhou-o fixamente:
- Torg! - chamou, e seu tom de voz continha uma ameaça.
O corcunda se voltou, reconhecendo o tom, e olhou-o com olhos submissos.
- Deixe os lobos em paz, Torg! - ordenou Drácula.
- Eu não gosto deles... Um deles me atacou esta noite... - gaguejou,
torcendo as mãos.
- Deixe-os em paz - voltou a ordenar o mestre das trevas.
Torg abaixou a cabeça, depois se retirou. Algum tempo depois atravessava
o bosque. Ouvia o rugir dos animais, seus passos rápidos sobre as folhas que o
outono fazia cair das árvores.
Quando ganhou a estrada, olhou na direção da casa dos Gardner. Lá estava,
possivelmente adormecida, deliciosa e lânguida sobre os lençóis, aquela bela
garota que o perturbava intensamente.
Era uma sensação há muito esquecida. Algo que tocava seu coração
monstruoso e fazia seu corpo retorcido vibrar uma emoção leve, antiga e jovem
ao mesmo tempo.
Seguia em frente, o mais rápido que podia. Chegou à estação. Comprou um
bilhete e foi para a plataforma esperar.
Sua figura grotesca chamava a atenção. Torg percebia olhares de horror e
piedade, mas não se importava com isso. Acostumara-se àquela aversão natural
que seu corpo provocava nas pessoas.
Um dia voltaria a ser belo. O mestre lhe prometera isso e essa esperança
animava pensamentos como os que tinha a respeito daquela garota.
Algum tempo depois chegava a Stevenage. Torg apreciava aquelas viagens
rápidas de trem. O barulho ritmado, a paisagem diante de seus olhos, a
distância passando como as horas.
Stevenage dormia calmamente. Com uma habilidade que desenvolvera ao longo
dos anos, Torg caminhou pelas sombras como se fosse uma delas.
Localizar o endereço não foi difícil. Um instinto tenebroso parecia
guiá-lo ao encontro das vítimas de Drácula, como se fosse um cão de caça em
busca da presa abatida por seu dono.
Circulou a casa. Ganhou o jardim. Viu a janela aberta. Tremores
espasmódicos abalavam seu corpo, eriçando seu rosto monstruoso.
Com uma agilidade inimaginável em seu corpo retorcido, saltou pela
janela. Sobre a cama, recortada contra o vermelho-vivo da cocha, estava a
garota.
Seu corpo nu assanhou a volúpia do corcunda, que ofegou, aproximando-se.
Havia beleza e maciez à sua disposição. Ele se sentou ao lado da cama. Suas
mãos se estenderam, tocando-a.
Deslizou os dedos pelas carnes inertes da garota, apertando-as,
gozando-as. Depois concentrou sua atenção no rosto deformado pelo terror.
Inclinou-se para ele e o beijou, mordiscando as faces prendendo os lábios
entre seus dentes e alisando-os com a língua obscena.
Deitou-se inteiramente sobre ela, esfregando-se e ofegando, como se um
prazer indescritível e indescritível e inenarrável o fizesse vibrar.
Estacou, porém, quando percebeu a marca roxa, com as duas perfurações
características, no pescoço dela. Ergueu-se. Havia um espelho ao seu lado e
Torg olhou-o.
Um riso sinistro desenhou-se em seu lábios refletindo uma revolta
interior que se transformou no mais puro ódio. Drácula, com sua bela figura e
seus modos cavalheirescos a conquistara. Para Torg, porém, ela jamais olharia,
a não ser com asco.
Estava ali, no espelho, toda a verdade. Era horrendo era monstruoso,
incapaz definitivamente de despertar qualquer outro sentimento no coração de
uma mulher.
- Coração! - murmurou ele, quase num rugido enquanto suas mãos se
crispavam.
- Ele se debruçou sobre o corpo da garota, socou seus seios, seu ventre,
seu sexo, seus lábios pálidos e frios, até que se sentisse acalmar.
- Torg teria te amado... - balbuciou, trêmulo, depois enrolou o corpo da
garota na colcha e levou-a para janela.
Saltou para fora, jogou o fardo macabro sobre os ombros, atravessou o
jardim e foi para a rua. Começou a caminhar, ainda ofegante pelo ódio e pela
revolta.
Ao dobrar a esquina, um policial solitário se aproximava, assobiando e
girando o cassetete numa das mãos. Ao ver Torg com sua carga, indagou,
intrigado.
- O que é isso?
Torg o olhou direto nos olhos. O policial estremeceu.
- Nada. Não está vendo que é nada? - falou Torg passando por ele...
Por instantes o policial ficou estático depois começou a caminhar,
assobiando e girando o cassetete na mão, sem olhar para trás.
Torg encontrou um terreno baldio, onde havia restos de uma construção.
Avançou por ela, até um ponto mais oculto. Deitou o corpo da garota e
descobriu-o. Olhou-o por um longo tempo.
O brilho do luar ressaltava a palidez daquela pele. Ele se inclinou,
então, e suas mãos pousaram logo acima dos seios. Um brilho macabro em seu
olhar, um riso de gozo e suas mãos, como garras afiadas, rasgaram as carnes da
garota e escavaram-nas em busca do coração.
Arrancou-o e ergueu-o diante dos olhos. Ali estava o inicio e o fim de
tudo, receptáculo da maldição, fonte dos sentimentos.
Levou-o à boca e mordeu-o. Seus corpo estremeceu seus olhos se
esgazearam. Como fera faminta e histérica foi devorando-os aos bocados,
crispado pelo gozo, trêmulo pela emoção horrenda, marcando apressado, fungando
esganadamente.
Quando terminou, empurrou o corpo da jovem para um canto e apanhou a
colcha vermelha. Enrolou-a ao pescoço como uma capa, depois saiu coxeando.
*
Albertine entrou no escritório e foi direto para sua mesa. Guardou a
bolsa numa das gavetas, depois olhou a correspondência. Separou-a e foi
distribuir pelas outras mesas.
Mary Reading chegou em seguida, as olheiras marcando seu rosto, um
aspecto horrível para uma garota em sua idade.
- Olá - disse-lhe Albertine. - Como passou a noite?
- Péssima, como sempre.
Albertine terminou de distribuir a correspondência, depois voltou para
junto da mesa de Mary. Outras pessoas chegavam. Dentro em pouco o escritório
seria uma agitação total.
- O que você tem, afinal? - indagou Albertine.
- Eu não sei explicar... Nem sei se me acreditariam... É absurdo demais,
sabe?
- Você está assim desde que voltou. Foram as mortes de Susan e Dora que a
abalaram tanto? O que houve em Falmouth, afinal.
- O que estava no jornal... Apenas o que estava no jornal - afirmou
estremecendo.
Procurou um vidro de pílulas na bolsa. Engoliu uma delas, evitando
encarar a amiga.
- Eu também não dormi muito bem ontem à noite. Imagine que há num bosque
perto de minha casa...
- Lobos? - estranhou Mary.
- Sim, lobos mesmos. Eles uivam toda a noite. Mas o pior não é isso.
Quando fui me deitar, tive a nítida impressão de estar sendo observada. Sabe
como é isso, não? Você está num quarto, no segundo andar de sua casa,
despindo-se diante da janela e vem aquele pressentimento... O pior de tudo era
que a sensação era de ameaça também. Uma ameaça indescritível, mas forte, como
se um fato irreversível estivesse para acontecer. Foi angustiante... -
interrompeu-se, percebendo os olhos arregalados de Mary.
- Nunca ninguém explicou tão bem... É isso, Albertine. É isso o que sinto
noite após noite. Um temor intenso, sobrenatural...
Seu tom de voz era rouco, impressionante, e fez Albertine engolir em seco
e esboçar um sorriso medroso.
Balançou a cabeça de um lado para outro.
- Acho que estamos as duas muito nervosas - disse. - precisamos
urgentemente de um pouco de diversão... Escute, por que não saímos juntas uma
noite dessas? Chester tem muitos amigos, estou certa de que encontrará uma boa
companhia para você... Sim, isso mesmo. Hoje é sexta, poderemos fazer isso
esta noite. Eu falo com Chester, está bem?
- Eu não sei... Eu... - gaguejou Mary, incapaz de expor seus temores à
amiga.
- Está decidido!
- Não, espere. Está noite não. Minha tia recebe as amigas para o
bridge... Eu preciso estar lá para servi-las e...
- Amanhã, então. Isso, amanhã será melhor. Sairemos ao anoitecer,
jantaremos fora. Depois iremos ao teatro... Há um belo espetáculo no Albert
Hall. Terminaremos a noite numa boate... Vamos, está bem assim?
Mary respirou fundo, trêmula e sufocada. A idéia de sair à noite a
assustava tanto quanto ficar em seu quarto, olhando aquela porta, apertando
aquele rosário, esperando que a qualquer momento algo sobrenatural acontecesse
para fazer cumprir aquela ameaça permanente que a punha em constante
sobressalto.
Mas era o que precisava fazer. Tinha de sair, tinha de voltar à sua vida.
Estaria acompanhada, haveria gente ao seu redor. Talvez não fosse tão difícil
assim vencer aquele medo.
Sua cabeça balançou num sinal de aprovação.
*
O Prof. Hilgenstiller desceu do táxi diante daquela estranha loja na
King's Road. Pagou ao motorista, depois olhou as vitrines com os artigos mais
estranhos.
- Quem diria? - balbuciou, intrigado com tudo aquilo.
Avançou pela porta. Uma sineta tocou acima de sua cabeça. Um velho
encarquilhado ergueu-se detrás do balcão, segurando um crânio de gato em seus
dedos esqueléticos. Seu olhar brilhou. Ao longo do tempo aprendera a
reconhecer as pessoas que entravam em sua loja.
Sabia aquelas que o faziam por curiosidade e as que tinham algo em mente
e que vinham, decididas, à procura de alguma coisa que as ajudasse.
No caso do homem magro e alto, de sobretudo cáqui, soube imediatamente
que vinha à procura de algo.
- Sou o Prof. Hilgenstiller. Nós falamos pelo telefone...
- Oh, sim, professor! - respondeu o outro, sorridente. - Sou Abner Banks,
eu me lembro de seu telefonema. Venha por aqui, por favor... ao longo do
tempo, tenho recebido os pedidos mais incríveis... Quando falei com o senhor,
percebi que tinha exatamente o que procurava... Está aqui, no depósito. É
valioso demais para ser exposto - foi dizendo enquanto conduzia o professor
para os fundos da loja.
Ali, num quarto carente de arrumação, estacou diante de uma prateleira,
sondando-a.
- Sim, ali está - disse apontando uma pequena caixa de veludo negro,
puído pelo tempo, com manchas que atestavam sua passagem pelas idades. - Pode
alcançar para mim? Sim, essa mesma.
O professor baixou a pequena e pesada caixa. O velhote tomou-a de suas
mãos e levou-a para uma mesa velha. Acendeu uma lâmpada e dirigiu seu foco
para cima da caixa. Espanou a poeira com suas mãos, depois tocou o fecho.
Antes de abrir, olhou o professor.
- Tenho por princípio jamais indagar, professor, mas esta é uma peça
especial para um pedido especial. Acredita mesmo que ainda existam vampiros?
Pela mente do professor, uma fração de segundo, desfilaram muitas imagens
terríveis. Sim, acreditava porque vira, porque sentira em suas próprias carnes
a influencia maléfica e maldosa daquele ser demoníaco.
Um rastro de vítimas já se formara à passagem do morcego humano. Vítimas
que sofreram, após sua morte, ultrajes infames para que seus corpos se vissem
livres daquela maldição.
- Aí está, professor. O espelho da Transilvânia, o autêntico, o único, a
arma fatal para se destruir um vampiro.
Hilgenstiller olhou a peça que repousava em seu estojo. O espelho oval
tinha uma moldura de prata inteiriça, toda trabalhada com símbolos que
pareciam lembrar, ainda que vagamente, a Via Crucis.
No alto, com pontas semelhantes às de estacas, destacava-se uma cruz. A
prata, em alguns pontos, apresentava as marcas características do tempo.
Olhou, então, o pergaminho. Desdobrou-o diante dos olhos. Era húngaro
arcaico, com elementos turcos, realmente curiosos. Ainda assim, não era
difícil, para um homem com o seu conhecimento, saber o que estava escrito.
- Interessante! - exclamou, começando a decifrar o pergaminho.
- O que diz aí, afinal, professor? - quis saber o velhote.
- Deixe-me ler... Deixe-me ler... - pediu o cientista, debruçando-se
sobre o papel...
A sineta lá fora tocou, anunciando a chegada de um outro comprador.
- Vou deixá-lo sozinho, professor. Fique à vontade - disse.
Hilgenstiller puxou uma velha cadeira e sentou-se. O que lia era
promissor e diversas vezes interrompeu a leitura para olhar com atenção o
espelho.
Quando o Sr. Banks retornou, algum tempo depois, o professor segurava o
espelho em suas mãos, olhando-se na superfície polida.
- E então, professor? - indagou o velhote.
- Fascinante! Realmente fascinante! Quanto custa?
O velhote engasgou. Havia interesse no comprador e não restava a menor
dúvida de que a peça era antiga e autêntica. Seu tino comercial apontava-lhe a
perspectiva de uma boa venda. Seu espírito, porém, fazia-o sentir-se quase
apiedado do olhar sofrido e torturado do professor.
- Cem libras - disse, embora soubesse que se arrependeria.



CAPÍTULO 4

O Prof. Hilgenstiller levantou os olhos para o comerciante.
- Por que apenas cem libras, Sr. Banks?
- Foi o que me custou, professor... Depois, talvez seja exagero meu, mas
creio que o senhor precisa desse espelho... Não o quer como antigüidade. Vê
nele a arma que é, uma arma especial para um fim especial. Se estou certo na
sinceridade que vejo em seus olhos, eu me sentiria um rato se o explorasse.
- É um bom homem, Sr. Banks. Eu pago as cem libras - disse o professor,
sacando sua carteira.
O velhote recebeu o dinheiro, dobrou-o e meteu-o no bolso de seu colete.
Depois olhou o espelho e o pergaminho.
- Conte-me, agora - pediu.
- Está bem, acho que lhe devo isso. Segundo o pergaminho, este espelho é
uma obra de frades de um convento da Transilvânia, estudiosos do fenômenos e
ansiosos pela descoberta de algo que livrasse a região de um terrível mal.
Vampiros não se refletem, são sombras vivas, matéria inexistente que a força
de uma maldição mantém unida e atuante. É difícil entender...
- Estou compreendendo... Continue, por favor!
- Sendo assim, o espelho foi elaborado com prata e uma secreta receita de
polimento. Atrás do vidro, como matéria que produz os reflexos, está uma
porção de água benta. Penso que jamais notou isso...
- Incrível! - exclamou o lojista.
- Estes símbolos aqui - apontou - são todos símbolos máximos do
cristianismo, elementos de bondade, de amor, de salvação. Um espelho comum não
refletiria a imagem de um vampiro. Este, conforme diz o pergaminho, refletirá.
O vampiro verá sua imagem, talvez a primeira vez em séculos, e se sentirá
atraído, cativado, magnetizado, preso. Não conseguirá se afastar do espelho,
nem poderá se aproximar o bastante para destruí-lo, por causa de seus
elementos e da cruz. Lentamente será destruído, portanto. Mesmo que se cubra,
que evite olhar a cruz, estará ali, à espera do golpe de misericórdia, se é
que existe misericórdia para um monstro.
O comerciante ouviu perplexo a exposição do professor. Ouvindo-o, não
tinha a menor dúvida de que ele tinha a arma e, com roda a certeza, o vampiro
em quem a usaria.
Durante todo o tempo ali, em sua loja, habituara-se ao charlatanismo. O
que o professor lhe dizia, no entanto, não lembrava isso.
Sentiu medo. Um medo instintivo, ameaçador, como jamais sentira em toda a
sua vida.
- Estou impressionado, professor. Realmente impressionado. Gostaria de
lhe perguntar mais, mas sinto que isso me assustaria muito. Boa sorte,
professor. Boa sorte mesmo! - finalmente, um calafrio percorrendo seu corpo.
Hilgenstiller dobrou o pergaminho, guardando-o no estojo com o espelho e
ergueu-se da cadeira.
- Quer que o embrulhe? - indagou Banks.
- Não, não será necessário, obrigado! - Agradeceu o professor.
Quando saiu, passou por uma banca de jornais e olhou as manchetes do
mundo. Assinara os principais jornais do globo. Era importante isso. Era
alguns deles, um dia, surgiria uma notícia que o levaria a Drácula novamente.
Suas vítimas eram certas e não poderiam permanecer ocultas por muito
tempo. Seus crimes logo seriam notados, em algum lugar, e denunciados.
Quando isso acontecesse, Hilgenstiller estaria pronto para deixar todas
as suas atividades e rumar para lá, com uma arma eficiente para destruí-lo.
Jurara isso no túmulo de sua filha. As circunstâncias de sua morte jamais
se apagariam de sua lembrança. Isso o torturava e corroía seu coração de pai.
A bela Larah, uma flor de doçura, a alegria de seu coração, destruído,
pela sanha assassina e desumana do vampiro. Suas mãos se crispavam e tremiam
ao se lembrar do momento fatídico, quando enterrara no coração da filha a
estaca que a mataria e salvaria ao mesmo tempo.
Era enlouquecedor.
- Quando vão acabar com ele, afinal? - comentou alguém ao seu lado,
diante dos jornais pendurados.
- Como disse, senhor? - indagou, voltando-se para olhar o outro, um
típico homem de negócios, com chapéu coco e guarda-chuva impecável enrolado.
- Falo de Jack, o Estripador. Está fazendo a Nova Scotland Yard de
palhaço. Comete os crimes impunemente. Nossas mulheres e filhas vivem sob o
regime do medo. A qualquer momento uma delas pode ser abatida pelo seu punhal
implacável...
- Deprimente! - comentou o professor, olhando a manchete.
Jack zombava da polícia, zombava da população, zombava das mulheres,
matando-as friamente. Por instantes, Hilgenstiller comparou-o ao próprio
Drácula. Um monstro sem corpo, vagando pela noite, à procura de vítimas.
Só que Jack, com certeza, era apenas um homem. Um anormal, com instintos
homicidas, que encontrava prazer em mutilar os corpos daquelas que caiam em
suas garras.
Cedo ou tarde acabaria sendo apanhado. Era um mortal, apenas um mortal
simples e comum como todos os outros. Uma bala da polícia o abateria.
Tornava-se, portanto menos assustador que Drácula, cujo corpo poderia ser
crivado de balas, sem que nada lhe acontecesse.
Apertou com firmeza a caixa sob seu braço.
*
Anoitecera.
Do alto do castelo abandonado, Torg observava os arredores com seu
binóculo. Sabia o que procurar, como sabia também que ela ainda não havia
chegado.
Assim que o trem passasse, mais ou menos naquele horário, poderia vê-la
outra vez. Ao longe, o rápido da British Railway se anunciou num apito agudo.
Torg desviou o binóculo para aquela direção acompanhando a marcha do
trem, até que desaparecesse de seu campo de visão. Impacientou-se.
Ela chegaria dentro de pouco. Isso o fazia vibrar estranhamente, como se
seu peito, após um longo sono, se visse despertado para sentimentos
enternecedores e, ao mesmo tempo, voluptuosos.
Esperou com a paciência dos que sabiam esperar. Acompanhava com interesse
cada veículo que cortava a estrada... Rosnava furioso a cada vez que um ruído
qualquer no bosque indicasse a presença dos malditos lobos.
Não precisou pensar muito para entender por que eles vinham. Drácula os
atraia. Na certa haviam farejado a presença do vampiro.
Era sempre assim. Dispostos a disputar a carne das vítimas, os lobos,
movidos por um instinto que Torg não compreendia, rodeavam, à espreita.
Mas eram apenas animais, todos animais. Drácula jamais atacaria alguém
ali por perto. Era esperto o bastante para fazê-lo em outros pontos,
confundindo quem quer que investigasse...
Estremeceu, assentando o binóculo na direção da casa, no outro lado da
estrada, além do bosque. Um veículo deixava a pista para subir a alameda que
levava até a frente da construção.
Torg regulou o aparelho. Podia ver claramente o rapaz, ao volante. Era
belo, com um sorriso fácil nos lábios. A inveja e o ódio cresceram em seu
coração.
Depois, quando o rapaz desceu e contornou o veículo, seu peito pareceu
explodir. Ela surgiu, bela e atraente, enternecendo-o, abalando-o,
perturbando-o.
Por momentos o casal conversou. Depois, o rapaz segurou a garota pelos
ombros e beijou-a. Ela enlaçou-o pelo pescoço e retribuiu.
Torg abaixou o binóculo, rosnando, estremecendo, crispando-se. Uma
gargalhada, sinistra atrás dele, o fez se voltar e encarar a figura horrenda
do vampiro. Encolheu-se, constrangido, tentando esconder o binóculo.
- O que tem aí, Torg? - indagou Drácula.
- Nada mestre. Um brinquedo...
Drácula se aproximou e segurou-o pelo braço. Sua força era descomunal.
Torg cedeu, exibindo o aparelho.
- O que é isso? Ah, sei... O que você olhava com tanto interesse? -
indagou, tomando o binóculo e levantando-o aos olhos.
Vasculhou os arredores, tentando encontrar o que Torg olhava, Viu, então,
Albertine entrando em sua casa, acenando graciosa e amorosamente para Chester
que partia...
Concentrou-se na figura da garota. Esbelta, simpática, bonita, virgem com
certeza. Detalhes como esse o interessavam. Estava cansado daquelas mulheres
da vida, prostitutas cuja falta ninguém sentia e cujas presenças enojavam um
homem de classe.
- Bela! Muito bela! - murmurou, a voz pastosa pelo desejo e pela volúpia.

- Não, mestre, ela não! - pediu Torg, quase suplicando.
- Não sou tolo, Torg. Está muito próximo do castelo... Mas é tentadora...

Torg olhou-o com ódio, com inveja, com rancor, com tudo de ruim que podia
nascer de seu coração. Drácula tinha tudo, Drácula podia se aproximar de uma
garota como aquela sem despertar repulsa.
Isso torturava e angustiava o corcunda.
- Vai sair, mestre? - indagou, tentando desviar-lhe a atenção.
- Possivelmente - respondeu Drácula, observando Albertine entrar em casa
e fechar a porta.
Baixou o binóculo, pensativo. Era tentador realmente tentador. Havia algo
nas virgens que o transformava e perturbava. Elas lhe despertavam o gosto por
prazeres esquecidos. Elas eram capazes de despertar sua sexualidade.
Lembranças antigas, de verdadeiras orgias de sangue e sexo, bailaram em
sua mente. Albertine era a virgem ideal para revivê-las. O gozo sádico do sexo
estava desperto em seu corpo, espicaçando-o terrivelmente.
Pena que aquela virgem morasse tão perto do castelo. Pena mesmo.
Passou o binóculo a Torg, depois gargalhou, percebendo que isso torturava
o corcunda.
- É virgem. Torg. Isso não o afeta? Não desperta instintos brutais e
deliciosos? Não faz girar sua mente com pensamentos de volúpia e lascívia?
Pena que você seja tão repugnante Torg. Ela jamais olharia para você sem asco,
sem desejar vomitar a podridão humana que você é - falou o vampiro com
maldade.
- Sim, mestre... Sei disso, mestre... - murmurou Torg, encolhido contra
as pedras, envergonhado, humilhado, maltratado. - Mestre... Quando terei um
novo corpo?
- Quando eu decidir, meu fiel servo, meu bastardo amaldiçoado - riu
Drácula, recuando e sumindo nas trevas.
Torg ficou só com seu sentimento e sua maldição. Olhou o binóculo,
odiando-o e adorando-o. Voltou-se para a casa e observou, tentando localizar a
figura terna e bela de Albertine, única coisa capaz de acalmar seu coração e
aplacar aquele ódio sombrio e impotente.
Não a viu, porém, mas desejou vê-la, não à distancia, mas tão próximo que
pudesse sentir-lhe o perfume das carnes frescas e tentadoras.
A idéia envolveu-o, dominou-o, assanhou-o. Vê-la de perto, tão de perto
que pudesse tocá-la, acariciá-la, sentir-lhe a maciez virgem da pele morna e
provocante.
Uma idéia lhe ocorreu. Recordou-se do garoto na plataforma da estação,
depois o policial, na rua, quando levava o corpo daquela jovem vitimada por
Drácula...
Sim, podia ser sua solução. Tinha o poder de hipnotizar, sugestionando
mentes, dominando-as, envolvendo-as, confundindo-as.
Por que não?
Desceu as escadarias escuras, esbarrando em teias de aranhas, assustando
enormes ratazanas à sua passagem. No jardim, pouco depois, desprezou o rugir
dos lobos e afundou-se pelo bosque.
Seus passos desiguais sobre folhas secas soavam como um pesadelo
sufocante. Sua respiração apressada traía sua excitação.
Era um ser monstruoso, mas poderia ser diferente, se tivesse a
oportunidade de olhar direto nos olhos da garota, antes que ela fugisse
assustada.
*
Diante do televisor, Albertine acompanhava, com seus pais, o editorial
apresentado pelo locutor da televisão. Falavam de Jack, o Estripador, e de
seus crimes impunes, da impotência da Scotland Yard, do medo que se espalhava
sobre Londres, do clima de insegurança total.
Pensou no terror das vítimas e se lembrou de Mary e de seu problema.
jamais o entendera. Mary evitava falar, mas tudo estava ligado aos crimes de
Falmouth, onde duas garotas haviam sido mortas cruelmente.
Alguma coisa maior deveria haver por detrás de tudo aquilo. Algo capaz de
intranqüilizar Mary, de abalá-la terrivelmente, de martirizá-la noite após
noite.
- Mamãe, Chester virá me apanhar amanhã, ao anoitecer. Vamos jantar

juntos, ir ao teatro e, depois, dançar um pouco... - avisou.
- Espero que se divirta, querida - respondeu a mulher, mais interessada
no que via na televisão.
- Vamos levar Mary Reading conosco. Acho que já falei sobre ela, não?
- Não é aquela que vive tomando pílulas?
- Sim, ela mesma.
- E por que ela toma pílulas? - quis saber Stanley...
- Problemas, papai - respondeu ela, sem saber como explicar.
Calaram-se, enquanto o locutor desfiava o nome das vítimas do Estripador.
As fotos se sucediam na tela. Mulheres jovens, algumas de meia idade, todas
trucidadas ferozmente, impiedosamente.
Albertine remexeu em sua poltrona, inquieta, como se um frio vento
soprasse contra sua nuca. Girou o corpo e olhou ao seu redor, intrigada.
- O que foi, querida? - notou a mãe.
- Parece que há um vento encanado por aqui...
- Devo ter deixado a janela da cozinha aberta...
- Eu vou fechá-la, então - disse Albertine, levantando-se.
Deixou aquele aposento, caminhou pelo curto corredor, até a cozinha.
Olhou ao seu redor. As janelas estavam fechadas. Aquela sensação angustiante
da noite anterior se repetiu. Ela sentia-se observada.
Um calafrio instintivo percorreu seu corpo. Ela tratou de retornar à
sala. Sentou-se diante do televisor. Aquela sensação persistia.
Então, nitidamente, teve aquela impressão novamente. Parecia haver alguém
a suas costas, olhando-a fixamente, quase dominando-a hipnoticamente.
Tudo parecia centralizar-se na janela atrás de si. Temerosa, olhou o pai,
quase suplicante.
- Papai... A janela atrás de mim está fechada? - indagou, ligeiramente
trêmula.
- Não... Não mesmo - afirmou ele, após uma rápida olhada. - algum
problema? Você me parece assustada...
- Nada - sorriu ela, medrosamente. - Acho que o noticiário me
impressionou, apenas isso.
- Com toda certeza - afirmou Stanley.



CAPÍTULO 5

- Querida, positivamente você me parece assustada - observou Stanley
Gardner, olhando a filha se remexer em sua poltrona.
- Não sei... - gaguejou ela, sentindo-se possuída de estranha
perturbação.
- Talvez sejam esses lobos... Eles uivam a noite toda... alguém tem que
fazer alguma coisa, Stanley - disse a Sr. Gardner.
- Fazer o que? Liguei para a polícia, acha que não liguei? Sabe o que me
disseram? Que tivesse mais cuidado com o gim. Eu nem bebo...
- Os jornais... Acho que devemos ir aos jornais. Quem sabe a própria
televisão. Lobos em Coventry, seria uma notícia interessante, não? - opinou a
dona da casa.
- Pode ser... Tenho um amigo no Times. Falarei com ele amanhã cedo. Se
isso não der certo, vou convocar o pessoal do condado. Muitos já estão
inquietos também com esses lobos. Poderemos, então, caçá-los.
- Stanley Gardner, se acha que vou permitir... - começou a mulher.
Albertine se levantou, cumprimentou-os e subiu rapidamente para seu
quarto. Queria escapar àquela sensação intensa e, ao mesmo tempo, deixar os
pais a sós para que discutissem.
Em seu quarto, atirou-se na cama e ficou pensando, tentando definir
exatamente o que sentia. Um lobo uivou lá no bosque, sobressaltando-a.
Levantou-se e foi até a janela. Por instantes qualquer coisa chamou a sua
atenção no jardim.
Julgou ter visto uma sombra disforme e assustadora, mas foi tudo muito
rápido. Outro lobo uivou e ela se encolheu, fechando rapidamente as cortinas.
*
Naquele sábado Hilgenstiller levantou cedo como de costume. Preparou seu
desjejum, comeu-o e depois foi até o jornaleiro, onde recebeu os jornais de
sempre.
Conversaram por instante, depois o cientista retornou ao seu pequeno
apartamento. Fazia aquilo todas as manhãs. Li atentamente aqueles jornais, na
esperança de localizar qualquer notícia que o levasse a Drácula.
Como os outros dias, porém, sua busca se revelou infrutífera. Apanhou o
Times, o último deles, e foi se sentar na sala. Ali estava mais uma manchete a
respeito do Estripador.
Uma garota fora encontrada numa construção em ruínas. Havia sido
barbaramente espancada e dilacerada. Havia uma foto. Hilgenstiller olhou-a e
se apiedou.
Apesar da vulgaridade daquele rosto, havia juventude nele. A juventude,
extirpada daquela forma, sempre tocava fundo seu coração.
Por um motivo qualquer, talvez instintivo, olhou para o pescoço da
vítima. Havia ali uma mancha escura que o fez estremecer febrilmente.
Observou melhor. Lembrava-se de algo como aquilo. Vira-o no pescoço de
sua filha. Podia ter sido de uma pancada violenta ou...
- Não, não poder ser - afirmou, levantando-se e indo apanhar seu
sobretudo.
Saiu para a rua, tomou o ônibus. Sabia onde deveria ir para tirar aquela
dúvida. Levava o jornal consigo. Voltou a abrí-lo. Leu toda a notícia.
Comentavam que, daquela vez, o monstro retirara o coração da vítima. Esse
detalhe ganhou importância. Não vinha acompanhando as notícias sobre Jack,
Estripador. Sua preocupação era Drácula mas havia ali, naquela notícia,
qualquer coisa inquietante.
- Terrível, não? - observou um homem, ao seu lado.
- Refere-se ao Estripador? - retrucou.
- Sim, ele mesmo. Minha mulher não sai de casa por um instante, à noite,
o que tem sido péssimo para todos.
- Tem acompanhando as notícias sobre os crimes?
- Sim, sei tudo sobre todos eles.
- Diga-me uma coisa, então: Jack sempre extirpa o coração de suas
vítimas?
- Não... No princípio não. Depois começou a alterar essa atitude. De
algumas ele rasga as vísceras, mutila. De outras, apenas espanca e retira o
coração...
- É capaz de precisar há quanto tempo ele começou a retirar o coração das
vítímas?
- Penso que... - hesitou o homem por instantes. - penso que desde o
começo do outono. Sim, precisamente. Desde o começo do outono.
Hilgenstiller fechou o jornal. Estava febril, impaciente. Pouco depois
chegava à estação do metrô. Tomou-o em direção ao norte da cidade, onde sabia
ser a morgue municipal.
Uma vez lá, procurou o setor que o interessava. Foi atendido por um rapaz
sardento, metido num avental que lhe dava uma falsa aparência de importância.
- Sou o prof. Hilgenstiller... Gostaria de ver o cadáver da garota que
foi morta...
- Refere-se à vítima do Jack?
- Um instante apenas, professor - disse o rapaz, entrando por uma porta.
No momento seguinte retornou, acompanhando de um outro homem.
Hilgenstiller percebeu que se tratava de um policial.
- Sou o Inspetor Timothy Asbury, da Scotland Yard. Posso ver seus
documentos?
- Sim, claro - respondeu o professor, passando-lhe sua identidade.
O policial o reteve em suas mãos, enquanto examinava o homem à sua
frente.
- Posso saber qual seu interesse no caso, professor?
- Curiosidade científica apenas... Sou professor da Sociologia, o assunto
me interessa...
- Está bem, professor. Espero que não se incomode em deixar seu endereço
anotado naquele livro - apontou.
- Sim, claro - concordou o cientista, indo fazer o que ele pedira.
Depois, o atendente o conduziu pelo corredor até uma porta. O policial os
acompanhou à distancia.
O rapaz adiantou-se e foi até uma das gavetas do imenso congelador, onde
estavam dispostos os cadáveres à espera de sepultamento.
Abriu uma delas e fez um sinal para o professor, que se aproximou. O
policial chegou à porta e ficou observando, com interesse. O rapaz ergueu o
lençol que cobria o rosto da garota. Depois, num movimento brusco, desnudou o
resto do corpo. Uma cicatriz enorme se destacava acima dos seios dela. Muitos
pontos haviam sido dados para reparar o ferimento.
Hilgenstiller, no entanto, olhava para o pescoço da garota. Empalideceu,
engolindo em seco.
- Meu Deus! - exclamou, impressionado, horrorizado, aquele ódio mortal
agigantando-se dentro dele, sufocando-o, torturando-o com as lembranças mais
doloridas de sua vida.
Ao perceber sua reação, o policial adiantou-se.
- Conhecia a garota, professor?
- Não, não a conhecia... - respondeu, encarando o atendente. - Sabe se
há, ainda, mais alguma das vítimas de Jack por aqui?
- Acho que ainda temos duas delas... Quer vê-las?
- Sim, por favor - pediu o professor, transfigurado.
- Qual o seu interesse, afinal, professor? O que o impressionou tanto?
- É só um instante, inspetor - disse, caminhando até a outra gaveta
aberta pelo rapaz.
Observou o corpo. Estava marcado, com remendos em todo o ventre, mas o
coração intacto. Nada havia de anormal em seu pescoço.
- E esta é a última - disse o rapaz, abrindo outra.
Hilgenstiller foi até ela. Observou o corpo e, novamente, aquela revolta
interior se manifestou dentro dele. Apontou para o pescoço da garota.
- Veja isso, inspetor. Tem alguma explicação para as perfurações?
- Perfurações? - intrigou-se o inspetor, debruçando-se sobre o cadáver.
O cheiro forte de formol feriu suas narinas.
- Mas... São idênticas às outras da garota encontrada ontem...
- E desta foi arrancado o coração, assim como da outra. Não lhe parece
uma quebra muito brusca no padrão geral dos crimes?
- Sim, como se fossem duas pessoas diferentes.. Duas pessoas
diferentes... Como não percebemos isso antes? É possível estabelecer dois
estilos aqui. Por isso estivemos tão confusos, andando em círculos. Preciso
informar à Central - disse, caminhando apressado para a porta.
Estacou, porém, e se voltou para o professor.
- O que sabe sobre isso, afinal?
- Não sei se me acreditaria, inspetor.
- No ponto em que estão as coisas, eu acreditaria em qualquer coisa -
afirmou o inspetor, desolado.
*
Quando o jovem ao volante desligou o motor do veículo, Stanley Gardner
surgiu à porta da casa, olhando-o com curiosidade.
- É o Sr. Stanley Gardner? - indagou.
- Sim, ele mesmo.
- Sou Michael Kane, repórter do Times...
- Oh, sim, por favor, Sr. Kane. Vamos entrar - convidou o dono da casa,
conduzindo-o até a sala.
Ali o fez sentar-se. Depois acomodou-se em sua poltrona preferida e
aguardou as perguntas.
- O senhor telefonou ao jornal...
- Sim, ao Doug Flower, um velho amigo...
- Isso mesmo, Sr. Gardner. Mencionou algo a respeito de lobos?
- Sim, lobos, aqui em Coventry. Eu mesmo vi um deles, daquela janela -
apontou. - Minha filha e o namorado quase atropelaram um, na estrada. Qualquer
morador por aqui poderá lhe descrever os uivos horripilantes que cortam a
noite, assustando a todos...
- Tem certeza de que não se trata de cachorros? Pelo que sei, há um canil
da prefeitura aqui perto e...
- Tenho absoluta certeza, rapaz. Não sou tão idiota a ponto de não
diferenciar um lobo de um cachorro - disse Gardner, severamente. - Digo-lhe
que vi um lobo e era um lobo mesmo.
O repórter pigarrou e fez algumas anotações.
- Pode me mostrar o local, Sr. Gardner?
- Sim claro. Só vou avisar minha esposa - avisou, subindo o segundo
pavimento da casa, de onde retornou logo depois.
Deixaram a casa, desceram pela alameda e caminharam pela estrada.
- Foi ali, naquele ponto, que vi o lobo diante dos faróis do carro. Ele
veio e entrou por aquelas moitas, na direção do bosque.
O jornalista acompanhou-lhe o gesto. Depois olhou o bosque e, após ele,
as muralhas escurecidas do castelo. A brisa soprou, trazendo um odor
putrefato.
- Sentiu isso, Sr. Gardner?
- Sim, parece carniça... Possivelmente os lobos fizeram alguma vítima...
Algum animal doméstico com certeza.
- Eu gostaria de entrar no bosque... Acha isso perigoso?
- Não sei... Não se nota sinais dos lobos durante o dia. Eles de
escondem... Está bem, vamos, então.
Atravessaram a cerca e avançaram na direção do bosque. O outono
desfolhava as árvores dando-lhes um aspecto fantasmagórico.
Os dois caminharam com dificuldade. O cheiro de carniça se tornou mais
forte.
- Parece vir daquela direção- apontou Gardner.
- Vamos ver - disse o rapaz, caminhando para lá.
Pouco depois, perceberam, semi-encoberto pelas folhas caídas, os pêlos de
um animal morto. Perecia ser um cão, mas, quando se aproximaram, descobriam.
O corpo mutilado e vermes esbranquiçados pulavam na matéria gosmenta em
putrefação. O repórter apanhou um lenço e cobriu o nariz, aproximando-se ainda
mais.
- É um lobo, sem sombra de dúvidas - afirmou Gardner.
- Um lobo, realmente. Mas isso é incrível... Um lobo, aqui em Coventry...
De onde poderia ter vindo? É realmente intrigante, não?
- É assustador. Precisa ouvir aqueles uivos, Sr. Kane.
O rapaz indireitou o corpo, olhando ao seu redor. Viu, então, as muralhas
do castelo.
- É o castelo dos Panter, uma família muito antiga aqui em Coventry, o
último descendente morreu há algum tempo, numa expedição à Índia. Até agora
não decidiram o que será feito dele, o que é uma pena. Trata-se de um
monumento histórico, devia ser preservado. Fale isso em sua reportagem.
- Pode estar certo que o farei, Sr. Gardner. Vou tirar algumas fotos do
lobo. Ninguém acreditaria...
*
O inspetor-chefe esboçou um sorriso de ironia e incredulidade, depois
ficou batucando com sua caneta sobre o tampo da escrivaninha.
Hilgenstiller o olhou. Sabia que não seria acreditado.
- Escute, professor. Sei que nos prestou uma grande ajuda. vamos
investigar o que nos disse. Se precisarmos de alguma outra explicação, nós o
procuraremos.
O professor percebeu que estava sendo gentilmente despedido.
Exasperou-se. Precisava ser acreditado. Estava convicto de que aquelas garotas
haviam sido vítimas do Drácula.
Não havia outra explicação. Apenas não entendia por que o monstro
extirpara-lhe o coração. Ainda assim, estava certo de que, logo que pudesse
pensar com clareza, chegaria a uma boa conclusão.
- Não acredita em mim, não é? - indagou.
- Professor, vou ser franco. Esse Jack nos tem feito de tolos.
Agradecemos todas as pistas e investigaremos todas elas. A sua, porém, é
impraticável. O que nos contou é fantástico, é incrível, é inacreditável, é
inaceitável nos tempos modernos. Vampiros são lendas, apenas isso. Já pensou o
que diriam os jornais se soubessem que estamos investigando algo assim?
- E já pensou o que dirão os jornais quando descobrirem que não
investigou? Que de alguma forma contribuiu para que crimes monstruosos fossem
perpetrados?
- Eu sinto muito, professor - lamentou o inspetor-chefe, aborrecido pelas
palavras do outro.
- Claro que sente, inspetor-chefe. Claro que sente. - repetiu
Hilgenstiller, caminhando para a porta de saída.
*
Mary apanhou seu melhor vestido e estendeu-o sobre a cama.
Albertine lhe telefonara, confirmando o programa daquela noite. De algum
modo, Mary se sentia eufórica. Era a primeira vez, desde que voltara a
Londres, que fazia aquilo. Seria bom poder quebrar aquele círculo-vicioso de
medo em que se metera.
Foi apanhar um sapato que combinasse com o vestido. Ao fazer isso, deixou
cair, de uma caixa, um recorde de jornal. Apanhou-o raivosa e amassou-o entre
os dedos. Era um jornal de Falmouth, a respeito dos crimes que haviam
acontecidos lá, durante o verão.
Mary jogou longe o papel. Queria esquecer tudo aquilo, precisava. A
figura sinistra daquela noite horrível lhe veio à mente, fazendo-a estremecer.

- Não... Não devo pensar mais - disse a si mesma, olhando o vestido e os
sapatos.
Tinha uma noite agradável pela frente e tencionava aproveitá-la a todo
custo. Seria um esforço tremendo, mas precisava ser feito.
Despiu-se e foi para o banho. Quando retornou, sua velha tia surgia à
porta do quarto. Sorrindo ao perceber o vestido sobre a cama.
- Fico feliz por você, minha filha - disse com carinho.



CAPÍTULO 6

Mary estava se divertindo. Todos os seus temores pareciam, agora,
infundados. Estava livre, cercada de pessoas alegres e atenciosas.
O amigo de Chester era muito interessante e dedicava um carinho todo
especial à garota, fazendo-a participar da noite que prometia ser muito
agradável.
Estavam em um dos bons restaurantes da cidade. A comida fora servida,
acompanhada de excelente vinho. A bebida serviu para deixá-la à vontade,
totalmente solta e desinibida.
-Conheço uma boate que vai surpreender a todos - disse Jonnas, amigo de
Chester.
- Vamos adorar, estou certa - falou Mary, olhando Albertine, que sorria
para ela.
- Estou tão contente por você, Mary - disse a outra.
- Que tola eu estava sendo - desabafou Mary, olhando ao seu redor.
O ambiente discreto e acolhedor a fazia se sentir bem. Um certo requinte
nos serviços e na decoração dava aquele grau exato de distinção que cativava
as pessoas, sem deixar de fazê-las se sentirem à vontade.
Alongou um pouco mais o olhar, até o palco onde uma pequena orquestra se
preparava para mais um número. Suspirou e sorriu.
Foi quando seu olhar se viu atraído pela figura elegante que entrava. Por
momentos o rosto dele se ocultou atrás de algumas plantas que compunham a
decoração do Hall de entrada.
Depois, quando ele deixou o sobretudo na chapelaria e avançou, um
calafrio de mortal pavor percorreu o corpo de Mary, fazendo-a empalidecer...
Seu corpo se enrijeceu, a seguir. Suas mãos crisparam-se sobre a toalha
da mesa, repuxando-a e fazendo entornar seu corpo de vinho.
- Mary, o que houve? - indagou Albertine, levantando-se rapidamente para
evitar que o líquido escorresse para seu vestido.
- Deus! - murmurou Mary, reconhecendo aquela figura.
Seus pensamentos se voltaram para aquele rosário esquecido na gaveta de
sua mesa de cabeceira. Estava lá e era sua única arma, a única coisa capaz de
dar-lhe alguma sensação de proteção.
- Eu preciso ir... Eu preciso ir, pelo amor de Deus! - suplicou,
livrando-se da mão que a segurava pelo braços.
Precipitou-se em direção à porta. Esbarrou numa das mesas e caiu. Todas
as atenções se voltaram para ela. Quando se ergueu, olhou na direção de
Drácula.
Ele a viu, então, reconhecendo-a. Sorriu sinistramente, o que mais a
apavorou. Viu-o mover-se em sua direção e correu para a saída, sentindo o bafo
da morte em seu encalço.
Gritou por um táxi. Quando entrou nele olhou na direção da porta,
Albertine e seus amigos saíam para vê-la, intrigados. Atrás deles, deles,
olhando-a, estava o terror.
Forneceu o endereço ao motorista e pediu-lhe que corresse. Precisava
chegar em casa, precisava apanhar aquele rosário e apertá-lo contra o peito.
Chegou em casa. Pagou o motorista com uma nota de cinco libras e
desprezou o troco. Ao tentar abrir a porta, suas mãos tremiam e a chave
resvalava. Quis chorar, quis gritar, mas se sentia impotente para tudo.
Entrou, finalmente, batendo a porta. Depois correu para seu quarto. Abriu
a gaveta, derrubando-a. Procurou febrilmente entre os objetos, até apanhar o
rosário e desatar num pranto convulsivo.
Sua tia surgiu à porta, sonolenta e curiosa.
- Mary, o que está havendo?
- Eu o vi, tia. Eu vi aquele monstro maldito! - gritou fora de si.
Batidas secas na porta quase a fizeram desfalecer. Seu rosto se tornou
mortalmente pálido.
- Não atenda, tia. Não atenda, pelo amor de Deus!
- Mas Mary... - hesitou a mulher, confusa.
As batidas insistiram. A velha senhora caminhou para lá.
- Não tia - suplicou Mary, mas a mulher já abrira a porta.
A boca da garota se abriu para um grito de horror que permaneceu calado,
enquanto a figura sinistra de Drácula avançava pela sala, em sua direção.
Saltou sobre a cama e empurrou a porta do quarto, trancando-a. Quis se
mover, quis correr para algum lugar, quis gritar, mas tudo estava fora de seu
controle e apenas aquele pavor existia.
Ouvia um baque e um gemido dolorido. Depois outro, como se um corpo
tivesse sido jogado contra a porta, abalando-a. Novas batidas como aquela se
sucederam, até um silencio pesado e opressivo reinar.
Mary ouviu então, nitidamente, o som daquela respiração animalesca do
outro lado da porta. Era como se ouvisse o som da própria morte.
- Mary Reading! - disse uma voz metálica e assustadora do outro lado. -
Nosso encontro era fatal. Deixei algo incompleto da última vez. Não resista,
você não pode.
Os braços dela penderam, imóveis ao longo do corpo. O rosário escapou de
seus dedos, escorregando para o chão. Ela se voltou e abriu a porta.
Uma cena dantesca se exibiu ao seu olhar demente. No chão, banhado em
sangue, jazia o corpo de sua tia. Pelas paredes da sala havia manchas de
sangue. Drácula a jogara de um lado para outro como um boneco.
Ela estremeceu quando as mãos frias tocaram seus ombros. Aquele hálito
infernal banhou seu rosto pálido. Aquela respiração demoníaca gravou-se em
seus ouvidos.
Ele a empurrou lentamente para dentro do quarto, olhando-a nos olhos,
sempre. Fechou a porta atrás de si. Mary recuou até a cama. Drácula levou a
mão à cabeça e cambaleou. Depois urrou, sentindo seu pé em chamas. Pisara no
rosário.
- Tire isso daqui! - ordenou, as feições crispadas.
Mary apanhou mecanicamente o objeto e foi guardá-lo na gaveta de sua
penteadeira. Ao olhar o espelho não viu o monstro atrás de si. Voltou a cabeça
numa vã esperança. Ele estava lá, no entanto, recuperando-se e olhando-a com
volúpia e assanhamento.
Seus olhos injetaram-se e ganharam um brilho infernal. Seus lábios
palpitavam, arreganhando-se lentamente e descobrindo as presas fatídicas.
Ele se aproximou, então. Pousou suas mãos frias sobre o rosto dela e
deslizou-as até o pescoço, pressionando o polegar sobre a veia jugular,
sentindo o fluir ritmado do sangue, ao compasso das batidas assustadas daquele
coração.
- Fique calma... Fique calma... - ordenou, aproximando seus lábios do
pescoço dela, enquanto suas mãos escorregavam para as costas macias e
femininas.
Rosnou ofegante, ao tocar a pele e arranhá-la com suas presas. Arrepios
percorreram o corpo de Mary, mas ela nada mais sentia. O pavor se fora. Estava
calma. Mortalmente calma.
Os dentes rasgaram sua pele e o sangue esguichou para os lábios do
vampiro, que resfolegou. Apertando-se contra ela, em espasmos de puro prazer,
sorvendo a vida que se esvaia do corpo dela.
*
- Acho que devíamos ir à casa dela - dizia Albertine.
- Ora, Al, depois do que ela fez? Sua amiga precisa de cuidados médicos,
não da nossa companhia - descartou Chester, aborrecido pelo vexame que a
conduta imprópria de Mary havia provocado.
- Penso que vocês vão continuar o programa iniciado. Isso me exclui,
portanto. Uma boa noite para vocês - despediu-se Jonnas.
- Eu sinto muito, Jonnas - disse Albertine.
- Esqueça - sorriu o rapaz, afastando-se.
Ela ficou só com Chester, ao lado do carro. Olharam-se. Albertine forçou
um sorriso. A noite estava irremediavelmente perdida.
- Valeu a tentativa, não valeu? - indagou ela.
- Claro que sim, querida. Você fez o possível por ela - disse Chester,
com carinho, tomando-a nos braços e beijando-lhe a testa. - Tem certeza de que
não quer mesmo ver o espetáculo no Albert Hall?
- Prefiro ir para casa. Eu não seria uma boa companhia, querido.
- Como quiser, meu bem - concordou ele, abrindo-lhe a porta do veículo.
*
Torg deixou o castelo para ir cumprir sua macabra missão. Atravessou o
bosque. O rugir dos lobos, seus passos rápidos pelas folhas secas,
incomodavam-no. Aproximava-se da cerca, quando ouviu o carro aproximar-se.
Permaneceu oculto atrás das sebes, observando a passagem do veículo.
Reconheceu-o, assim como a garota do veículo ao lado do motorista.
Era ela e isso fez pulsar seu coração deformado. O desejo de vê-la se fez
maior que a ordem do mestre. Assim que o carro se afastou, ele atravessou a
estrada e subiu pelo jardim da casa dos Gardner.
Viu o veículo parar diante da residência. Albertine e Chester ficaram
conversando. O corcunda se aproximou o mais que pode. A lâmpada do alpendre
iluminava o rosto da garota, mostrando-o em toda a sua beleza.
Procurou ver Chester. Era um belo rapaz. Na certa Albertine o amava e
essa idéia fez Torg odiar o outro. Um ódio profundo, mortal, destruidor.
Ficou ali até que os dois se beijassem e Albertine descesse do veículo.
Havia silêncio na casa. Na certa os pais da garota estavam dormindo. Ela
esperou até que o veículo fizesse o contorno e se afastasse, descendo a
alameda.
Depois procurou a chave em sua bolsa. Torg deixou seu esconderijo, o
coração aos saltos, os lábios disformes entreabertos e úmidos de um desejo
obsceno.
Seus passos desiguais alertaram a garota, que se voltou. Num salto ágil,
Torg ganhou o alpendre. Seus olhos brilhantes se fixaram nos olhos dela.
O terror desapareceu do rosto da jovem. Ela sorriu submetida pela hipnose
maléfica daquele olhar.
- Chester, eu pensei que tivesse ido - sorriu ela.
- Meu carro... Meu carro teve um problema... Sim, isso mesmo - gaguejou
Torg, percebendo-a sob seu domínio.
- Quer usar o telefone? Posso acordar papai e pedir-lhe que o leve...
- Não, não é preciso... - ofegou o corcunda trêmulo de emoção. - Eu só
queria... Só queria... Um beijo seu... Um beijo, querida - balbuciou.
- Oh, meu adorado! - exclamou ela, as mão delicadas subindo pelo peito
dele, enlaçando seu pescoço, escorregando até a corcova horrenda.
Lágrimas brilharam nos olhos dele. Seus lábios se entreabriram, ofegando
de gozo e emoção. A boca tornada e tentadora da garota se aproximou.
Um súbito esvoaçar alertou Torg, que se voltou repentinamente. O grande
morcego pousou diante deles, fosforescente, tomando a forma de Drácula.
Albertine ficou imóvel, como se nada visse e nada sentisse, alheia,
distante, enquanto Torg caía de joelhos diante do mestre.
- Perdoe-me, mestre! Ela é tão bela...
- Você me desobedeceu, Torg. Você me desobedeceu pela primeira vez e
agora vou castigá-lo por isso - murmurou o vampiro, a voz ameaçadora como as
presas que sobressaíam em sua boca.
- Sim, mestre. Eu mereço - concordou Torg abaixando a cabeça e esperando
o castigo.
Drácula apoiou um dos pés em seu peito e empurrou-o para trás. Depois se
aproximou de Albertine. Seu perfume de virgem, sua pele macia, seu pescoço
torneado, tudo despertou uma volúpia intensa, orgíaca, demoníaca.
- Não, mestre, ela não - suplicou Torg, erguendo-se.
Seu tom de voz fez Drácula se voltar para ele, as presas arreganhadas, o
olhar distilando cólera.
Torg olhou a garota, depois recuou, em guarda. Seu rosto se alterou. Seus
dentes rebrilharam. Suas mãos se crisparam como garras.
Drácula entendeu a ameaça. Podia dominar Torg a qualquer momento, menos
naquele. A idéia de ter de medir forças com ele não o agradava. Precisava de
Torg.
- Demônios o levem, seu aborto da natureza, filho de uma víbora
degradada! Farei sua vontade, mas terá seu castigo no momento certo.
Torg estremeceu. O que fizera fora imperdoável, mas não podia permitir
aquilo.
Arrastou-se aos pés do vampiro, tomou-lhe uma das mãos e beijou-a, em
sinal de respeito e submissão.
- Perdoe-me mestre. Perdoe-me.
Drácula escarrou sobre ele, depois desceu os degraus do alpendre e se
perdeu na noite. Torg se ergueu lentamente. Olhou a garota, ainda imóvel.
- Pode entrar, querida! - disse e lágrimas brilharam seu rosto deformado,
dando-lhe, por instantes, um aspecto verdadeiramente humano.
*
Um homem entrou todo nervoso na sala. O inspetor-chefe apontou-lhe uma
cadeira. Ele se sentou, depois encarou o policial.
- Bem, Sr. Sherit. O que tem a me dizer a respeito da última vítima de
Jack?
- Bem inspetor... sou motorista de táxi. Deve compreender que é uma
profissão um tanto quanto... Mas eu gosto dela. Gosto mesmo, apesar das coisas
por que a gente passa.
- Sim, Sr. Sherit. Quanto aquela garota, disse ao telefone que a viu na
noite do crime, não?
- Eu a levei para casa. Mal pode acreditar no susto que levei quando vi
nos jornais. O assassino estava com ela, isto é o que me assusta ainda
agora...
- Sr. Sherit, pode descrevê-lo?
- Aí está o problema, inspetor. Ele estava no carro, mas eu não podia
vê-lo.
Naquele momento, diante das palavras do motorista, o inspetor se lembrou
da conversa que tivera com Prof. Hilgenstiller.
Mal sabia o quão era irônica aquela lembrança.
- Se ele estava no carro, como não podia vê-lo? - indagou o inspetor,
procurando manter a calma.
- Pelo retrovisor, inspetor. eu vi a loura. Ela estava lá, ela conversava
com o sujeito, mas eu não podia vê-lo no retrovisor. Eu me voltei por uns
instantes e só via o olhar dele. Algo que gelou meu sangue...
Impressionante... Não voltei a olhar, embora me mantivesse atento ao
retrovisor. Eu não sei explicar...
- Mas eu entendi tudo, Sr. Sherit. Seu depoimento foi muito útil. Deixe
seu nome e endereço com o oficial de plantão... Nós o procuraremos se
precisarmos de mais alguma coisa.
- Espero que eu tenha ajudado de alguma forma...
- Ajudou sim, obrigado - despediu-o o inspetor, cansado.



CAPÍTULO 7

As notícias sobre Jack, o Estripador, passaram a interessar o inspetor
Hilgenstiller. Naquela manhã apanhou febrilmente o Times. Havia uma nota de
fim de edição, informando de mais um crime. Os detalhes ficavam todos para uma
edição vespertina.
Estacou, porém, quando seus olhos pousaram sobre uma nota curiosa. Havia,
inclusive, uma fotografia. Lobos em Coventry. A população não sabia como
explicar. Um zoológico, consultado pelo jornal, apresentava uma série de
explicações técnicas que, ao fim, não convenciam.
Leu o relatório de um doa moradores da redondeza. Havia um bosque, uma
estrada, um castelo e uivos lancinantes no meio da noite.
Um arrepio percorreu seu corpo, ao mentalizar aquela cena. Ela o fazia
retornar um pouco no tempo, até o Vale de Tisza, onde tudo havia começado.
Depois, qualquer coisa estalou em sua mente. Ele deixou o jornal e correu
para sua biblioteca. Ali vasculhou livros febrilmente, até encontrar o que
procurava. Depositou-o aberto sobre a escrivaninha.
- Há indícios de que os lobos farejam os vampiros e o buscam, na
esperança de que as vítimas do monstro lhes sirvam de repasto. Em mil,
setecentos e... - interrompeu-se, retornando à cozinha e apanhando o jornal.
Deixou tudo e foi vestir seu sobretudo. Tomou um táxi e rumou para a sede
da Nova Scotland Yard. Lá, procurou pelo inspetor-chefe, indo encontrá-lo,
atarantado, em seu gabinete, às voltas com alguns repórteres.
Hilgenstiller se aproximou. Talvez fosse o momento de informar à
população a respeito do mortal e sobrenatural perigo que corria.
Ao vê-lo, porém, uma expressão de desalento tomou conta de seu rosto.
- Está bem, rapazes. O oficial Silvery lhes dará ao outros detalhes.
Agora, por favor - disse, apontando a porta.
A sala se esvaziou. O professor olhou-o como se zombasse dele.
- O que deseja, professor? - indagou o inspetor, com um acento de ironia
na voz.
- Pode me dar detalhes sobre o crime de ontem à noite?
O policial empurrou-lhe uma pasta. Hilgenstiller abriu-a. Havia uma foto
da moça. Ele estremeceu, reconheceu-a. Era Mary Reading, a garota que
conhecera em Falmouth, quando de seu último encontro com Drácula.
Continuou lendo avidamente, todos os detalhes. Não restava dúvidas.
Drácula estava ali mesmo, em Londres. O relato dos amigos da garota vitimada,
narrando a maneira precipitada com que ela deixara o restaurante, como se
tivesse visto o próprio demônio.
- E tenho certeza de que ela viu o próprio - comentou Hilgenstiller.
- Como disse? - indagou o inspetor.
- Acha que foi obra de Jack? - retrucou, ignorando a pergunta do outro.
- E de quem poderia ser, professor?
- Sendo assim, inspetor, por que Jack não mutilou a velha?
- Talvez se satisfizesse em espancá-la, apenas...
- Mas convence a mim, professor - argumentou o policial, aborrecido. -
Não me venha de novo com suas tolices. Basta as que ouvi de um motorista de
táxi ontem...
O inspetor balançou a cabeça, desacorçoado. Depois, com um sorriso de
zombaria nos lábios, narrou ao outro o que lhe contara o motorista, a respeito
do homem que estava no carro mas não estava no espelho retrovisor.
O professor sorriu significativamente. Encarou o policial, disposto a
explicar-lhe todos os detalhes que se juntavam naquela história.
Pela expressão do outro, porém, percebeu que seria pura perda de tempo.
Jamais seria acreditado. Aquele era um trabalho que teria de ser feito apenas
por ele.
- Eu agradeço sua atenção, inspetor. Pode não acreditar, mas ajudou-me
muito.
- Espero, então, que consiga terminar seu trabalho, professor.
- Meu trabalho? - indagou o professor, os olhos brilhando por instantes,
como se, finalmente, o inspetor tivesse compreendido.
- Seu trabalho de sociologia - acrescentou o policial, para desalento do
cientista.
*
Fora uma noite terrível, angustiante, de sobressaltos. Albertine dormia,
agora, após pesados sedativos. Fora acordada no meio da noite, por polícias,
para ser interrogada.
Fora vista em companhia de Mary Reading no restaurante, onde o vexame
causado por esta atraiu sobre si todas as atenções gerais...
Ao saber da morte da amiga, Albertine lamentou, sentindo-se culpada por
não ter ido até lá, após o que acontecera.
Cenas desfilavam por sua mente, algumas nítidas outras vagas. A sensação
era de estar no meio de feras que a disputavam estranhamente.
Um grito avolumou-se em seu peito. Ela se agitou mais e mais. O suor
escorreu pelo seu rosto, marcando o travesseiro. O grito explodiu, finalmente,
como um desafio, enquanto ela se erguia e se debatia, tentando se livrar de
animais invisíveis que rodeavam seu corpo e a empurravam para um ponto negro e
tenebroso.
Seu pais acudiram-na. Albertine desatou um prato convulso, ainda grogue
pelos efeitos da droga que lhe fora ministrada.
- Tudo bem, querida. papai está aqui - dizia Stanley Gardner, abraçando-a
e acariciando-a.
- Tudo vai ficar bem, você verá - ajuntou sua mãe, compartilhando da dor.

Ofegante, Albertine encarou-os. Depois desviou os olhos para a janela,
pousando-os no alto da torre principal do castelo abandonado.
Dali parecia vir aquela influência maléfica que não sabia explicar, mas
que sentia. Seus olhos giraram, a seguir, fora de controle e ela tombou para
trás.
Sua respiração foi se acalmando lentamente e ela voltou a dormir. O ruído
de um carro chegando fez Stanley ir até a janela e olhar.
- É o Chester? - indagou-lhe a esposa.
- Não. Com toda certeza é a polícia de novo...
- Não o deixe incomodá-la novamente, Stan.
- Pode estar certo de que não repetirão a desumanidade de ontem à noite -
afirmou ele, deixando o quarto.
Descia as escadas para o térreo quando soou a campainha. Irritado, foi
abrir a porta.
- Escute, meu senhor. Não vou permitir que a interrogue novamente...
- Perdoe-me, senhor. Deve ter julgado que sou da polícia, não?
- E não é? - retrucou Stanley, patético.
- Sou o prof. Hilgenstiller... Sociologia.
- Queria desculpar-me, professor, mas não posso entender o motivo de sua
visita...
- Li sobre os lobos...
- Ah, os lobos! - suspirou Stanley, tentando pôr-se em ordem. - Espero
que desculpe minha rispidez inicial, professor, mas algo terrível aconteceu
com uma amiga de minha filha e...
- Refere-se a Mary Reading, não?
- Sim, ela mesma. Eram amigas de trabalho... Uma coisa horrível.
Hilgenstiller sentiu-se incomodado em perturbar aquele pobre pai de
família, depois da tragédia. Voltou-se e olhou o castelo.
- Os lobos foram vistos naquele bosque? - apontou.
- Sim, lá mesmo... É um inferno todas as noites...
- Sabe se há algum modo de se entrar no castelo?
- Não creio... Talvez escalando as paredes. A ponte levadiça está alçada.
Além disso há uma porta de grades. As chaves ficaram com um advogado há muito
tempo... Ninguém mais soube nada sobre o que seria feito do castelo.
- Eu agradeço sua atenção, senhor. Desculpe-me tê-lo incomodado - disse o
professor, voltando ao táxi.
Pediu ao motorista que retornasse à estrada e parasse junto ao bosque.
Desceu e observou as árvores que se despiam e as folhas secas que se
amontoavam no chão.
- Vou dar uma olhada por aí. Não me demoro - disse, e atravessou a cerca,
ganhando o bosque.
Quando mais próximo do castelo, mais se sentia envolver por uma sensação
opressiva.
O cheiro de carniça chegou a suas narinas, nauseando-o. Caminhava com
cuidado, mas não via sinal algum da presença de lobos.
Viu, então, a carcaça apodrecida de um animal, mas já era impossível
determinar se era um lobo ou um cachorro. Lembrou-se da fotografia no jornal.
Fora tirada ali.
Avançou mais, até diante do castelo, onde examinou as muralhas
indevassáveis. Não havia como entrar, a não ser escalando.
Sentiu-se impotente. Drácula tinha de estar ali dentro, mas como poderia
entrar? Um ruído, não muito longe dali, chamou sua atenção.
Aproximou-se e ocultou-se atrás de uma das árvores. Procurou localizar o
ruído, quando este se repetiu, num certo ponto á sua frente, junto a um
pequeno muro em ruínas.
No momento seguinte, um alçapão ergueu-se. Hilgenstiller prendeu a
respiração ao ver aquele corcunda surgir, com uma pá em sua mão.
Todo seu corpo estremeceu, em suspense. Lembrava-se daquele estropiado
que agora coxeava pelo bosque, rosnando e resmungando.
Seu desejo foi saltar sobre ele e esganá-lo, livrando o mundo daquela
maldição ambulante. Depois, percebeu o quão arriscado seria fazer isso.
Em sua memória ele reviveu seu primeiro encontro com aquele monstro e
lembrou da sua força descomunal. Ficou ali, estático, observando Torg ir até o
lobo em decomposição e enterrá-lo.
Quando Torg retornou e sumiu pelo alçapão, fechando, o professor deixou
seu posto e foi para lá examinar o local. Junto ao muro, como se fizesse parte
de um calçamento, estava a passagem para o castelo.
Havia uma pequena argola de metal. Hilgenstiller enroscou ali seus dedos
e tentou abrí-lo. Por mais que se esforçasse, porém, não podia obter
resultados.
Era preciso mais que a força de um simples homem para erguer a laje de
pedras. Voltou a olhar o castelo. Agora não restava a menor dúvida. Drácula
estava ali. Era preciso voltar ao seu apartamento e apanhar o espelho, bem
como ferramentas que o ajudassem a abrir aquela passagem.
Voltou para a estrada, no momento em que um carro da Scotland Yard
passava, com o inspetor-chefe, que o reconheceu. Este ordenou que seu
motorista diminuísse a marcha, enquanto observava o professor subir no táxi e
se afastar.
Tomou o rádio e ligou para a Central.
- Silvery, quero que encontre o Prof. Hilgenstiller e o leve para aí para
ser interrogado. Há qualquer coisa suspeita com ele e preciso descobrir. O
endereço dele está em minha mesa. Eu voltou assim que falar novamente com s
Srta. Gardner - ordenou, desligando em seguida.
*
Hilgenstiller caminhou impaciente, de um lado para outro da sala. Estava
se sentindo como uma fera enjaulada, incapaz de levar adiante o trabalho
importante que tinha a fazer.
Tratava-se da sobrevivência da própria humanidade. Tratava-se de livrá-la
de um monstro demoníaco. Essa tarefa só poderia ser feita à luz do dia. As
horas passavam e o inspetor chefe não aparecia.
- Oficial - disse caminhando até o outro. - Quero saber por que estou
aqui... O que querem de mim, afinal? Tenho algo muito importante a fazer e...
- O inspetor está a caminho. Um dos pneus do carro furou. Tiveram de
trocar. O inspetor teve um leve acidente com o macaco hidráulico e foi até o
pronto-socorro para um curativo. Não vai se demorar. Se estiver com fome,
posso mandar vir alguns sanduíches...
- Ao diabo com seus sanduíches, homem - resmungou o professor, procurando
um lugar para se sentar.
Consultou seu relógio. passava das duas da tarde. Escurecia muito cedo no
outono. Tinha de se apressar. Não fazia idéia de quanto tempo mais
permaneceria retido ali. Drácula estava no castelo, exposto, frágil e
destrutível enquanto fosse dia.
Mais algumas horas e tudo ficaria mais difícil. Viu o inspetor e
animou-se.
- Inspetor, por favor! Não pode deixar o que quer queira de mim para mais
tarde? Tenho algo a fazer...
- Eu também tenho um trabalho a fazer, professor. Agora sente-se, por
favor - disse, apontando uma cadeira diante de sua escrivaninha.
Sentou-se atrás dela e encarou o professor.
- Pode me dizer onde esteve ontem à noite?
- Em meu apartamento, inspetor. Estive lá toda a noite.
- Pode comprovar isso?
- Comprovar? Por que comprovar? Está me pondo sob suspeitas, inspetor?
Suspeitas de quê? De ser Jack, o Estripador? Ora, não seja ridículo...
- O que fazia em Coventry esta manhã?
O professor encarou-o. Lembrou-se do carro-patrulha que passava no
momento em que subia no táxi.
- Passeando, inspetor - respondeu com irritação.
- Por que procurou o Sr. Gardner?
- O homem da casa... Está bem, queria informações sobre os lobos...
- Lobos? Lobos, professor? Refere-se àquela nota que saiu no Times?
- Sim, isso mesmo. Não acha interessante, de repente, saídos do não se
sabe de onde, um bando de lobos passe a infestar um bosque antes tranqüilo?
- Estou certo de que tem uma explicação para isso, não?
- Não me acreditaria, inspetor. Assim, não vejo por que tenhamos que
perder tempo com isso.
O inspetor balançou a cabeça de um lado para outro, aborrecido. Percebia
que o professor não estava disposto a colabora e que ambos tinham visões
totalmente opostas sobre os acontecimentos.
Queria, porém, definir qual a ligação e o interesse do outro em tudo
aquilo. Isso o estava deixando intrigado.
- Mas, voltando à minha primeira pergunta, professor. Pode comprovar que
esteve em seu apartamento toda a noite?
- Sim, posso... Claro que posso. Os filhos da Sr. Westend, Billy e
Charity, foram até lá fazer uma pesquisa em minha biblioteca. Ficaram até
perto das onze, quando a mãe deles foi buscá-los.
- E depois disso?
- Fui dormir, inspetor, não praticar crimes - ironizou.



CAPÍTULO 8

A noite chegara.
O calabouço do castelo estava envolto pela escuridão. Um rangido leve,
quase imperceptível. Nas sombras dois olhos animalescos cintilaram, enquanto
Drácula se punha em pé, desperto de seu sono.
Desceu do ataúde. Caminhou pela escuridão, livrando-se gradativamente do
torpor que dominava seu corpo ao acordar. Por instantes estacou num dos salões
do castelo, pensando em Torg.
Fora desafiado em seu poder. Torg receberia seu castigo naquela mesma
noite. Um riso sinistro marcou seus lábios, enquanto deslizava escadas acima,
como uma sombra ou um mau presságio.
Sabia onde encontrar seu servo. Na torre principal do castelo, estacou,
observando. Lá estava Torg, com seu binóculo assentado na direção da casa,
olhando aquela bela virgem, com certeza.
Retornou até uma das janelas abaixo. Ali, metamorfoseou-se no enorme
morcego e voou, havendo traçado seu destino.
Não era nada adequado atacar nas proximidades do castelo, mas a
perspectiva de uma vingança sádica contra Torg o animou.
O morcego macabro rasgou a noite com sua mensagem de morte, indo esvoaçar
ao redor da casa dos Gardner. A janela do quarto de Albertine estava aberta.
Ele entrou direto por ela, pousando diante da jovem, que se ergueu do leito,
presa de indescritível espanto.
Drácula se aproximou dela. Estava certo de que Torg, do alto da torre,
acompanhava seus movimentos. Um riso sádico desenhou-se em seus lábios. Ele se
aproximou e envolveu Albertine em seus braços, roçando suas presas no pescoço
delicado.
Estática, hipnotizada, ela ficou sem reação, à sua mercê. A volúpia que o
dominou o convidava a cravar suas presas na veia palpitante e sugar-lhe o
sangue entre espasmos e suspiros.
Mas ainda seria pouco a vingança. Torg precisava entender para sempre
quem era o mestre, quem dava ordens, quem ditava as normas.
Recuou, dominando seu desejo lúbrico e mortal. Olhou a garota nos olhos e
mentalmente transmitiu-lhe suas ordens. Depois recuou para a janela.
*
Como um possesso, Torg desceu as escadas do castelo, rumando para a
passagem secreta. Estava fora de si, descontrolado, alucinado. Vira Drácula no
quarto da garota, compreendia o que seu mestre lhe preparara.
Fora um louco em desafiá-lo. A vingança seria cruel. Evitá-la seria
impossível mas, ainda assim, algo íntimo e forte o fazia correr em defesa
dela.
Entrou pela passagem e ergueu o pesado alçapão. Deixou-o aberto e coxeou
sobre as folhas secas, caminhando em direção da estrada.
Um bando de lobos, saídos de algum ponto do inferno, rodeou-o, acuando-o
contra alguns troncos. Seus olhos chamejantes, suas bocas abertas de onde
escorria uma baba esbranquiçada e gosmenta, seus rugidos ameaçadores, tudo fez
o corcunda enlouquecer de ódio.
Ele apanhou um galho e avançou contra os lobos, mas estes reagiam e
avançavam, acuando-o sempre, impedindo-o de continuar.
Não longe dali, horrorizado, o Prof. Hilgenstiller acompanhava a cena
macabra. Não entendia o que se passava.
No momento seguinte, tudo se tornou mais confuso. Uma garota, metida numa
camisola esvoaçante, passou entre ele e os lobos, rumando na direção do
castelo.
Era jovem e bonita, mas parecia hipnotizada, caminhando como um robô ao
encontro de seu próprio destino. Ao vê-la, a inquietação de Torg foi maior.
Ele rugiu e avançava contra os lobos, que se desviavam de seus golpes e
voltavam a atacá-lo, mantendo-o encurralado. Como uma fera enraivecida. Torg
tentava afastá-lo, mas seus gestos eram inúteis e mais assanhavam a fúria dos
lobos, que rugiam, mostrando os dentes pontiagudos.
Hilgenstiller tremeu de pavor. O que via era algo dantesco, infernal,
terrível demais para ser acreditado. A garota avançou sobre as folhas secas,
quase sem ruídos.
O professor deixou seu esconderijo e correu, tentando alcançá-la. Ela
desceu pela passagem secreta, sumindo de sua vista.
Hilgenstiller parou, diante da escada escura. Apertou a caixa com o
espelho mágico, depois sacou a arma e engatilhou-a. Desceu, então, lentamente
os degraus, sem saber onde o levaria aquele túnel escuro.
*
Do alto da torre, olhando Torg, Drácula gargalhou alto o bastante para se
fazer ouvido pelo corcunda, que levantou os olhos, as feições crispadas pelo
ódio.
- Não, mestre! Ela não! - suplicou.
Em resposta, Drácula abriu seus braços, como que ditando uma ordem aos
lobos. Um deles avançou sobre Torg, mordendo-o na perna estropiada. O corcunda
agitou-a, mas os dentes cravados sobre suas carnes não cederam, provocando uma
dor aguda que o enfureceu além da imaginação.
Ele agarrou o lobo pelo pescoço e apertou-o com toda sua força
descomunal. Estertorando, o animal não largou sua perna. Torg, então, puxou-o
com força, desgrudando-o de suas carnes.
Urrou de dor e raiva, jogando o corpo do animal contra os troncos, depois
avançando e chutando-o e golpeando-o com um galho, até que o lobo ficasse
imóvel.
Um outro salto sobre suas costas, jogando-o contra uma árvore. Torg
sentiu uma dor forte na cabeça e algo morno escorreu, tapando-lhe a visão de
um dos olhos.
Tentou agarrar aquele lobo também, mas o animal escapou-lhe agilmente.
Todos voltaram a cercá-lo. Enfurecido, Torg atirava-lhes galhos e pedras, mas,
longe de afugentá-los, mais os enfurecia.
Extenuado o corcunda caiu de joelhos e levantou os olhos para a torre.
Drácula estava lá, as roupas esvoaçando à passagem de uma fria brisa de
outono.
As gargalhadas ferinas chegaram aos ouvidos do corcunda, que lamentou sua
ousadia. Lá, no alto, Drácula se sentia satisfeito com a vingança mas não de
todo.
Voltou-se para olhar o último lance da escada, por onde surgia Albertine,
fiel a suas ordens. A volúpia dominou seu corpo monstruoso, agora espicaçado
pelo sádico prazer em torturar seu servo.
Abriu os braços e Albertine caminhou direto para ele. Aquele perfume
virginal entorpeceu os sentidos do monstro, que a estreitou contra o peito,
gozando aqueles contornos jovens e rijos, aquele palpitar compassado de um
coração puro.
Suas mãos frias subiram até os ombros da garota, desfazendo os nós que
prendiam a camisola. O tecido farfalhou suavemente, indo amontoar-se aos pés
dela.
As mãos de Drácula avançaram até as costas, arrebentando o fecho do
sutiã... Aqueles seios rijos e arredondados aguçaram sua lascívia, fazendo-o
desejar estraçalhá-los com suas presas, devorando aquelas carnes tenras e
sangrentas.
Drácula se ajoelhou diante daquele corpo virginal e tentador. O perfume
de fêmea e sexo feriu suas narinas, alucinando-o. Seus lábios frios posaram
entre as coxas da garota. Sua língua viperina avançou fazendo o corpo de
Albertine estremecer.
Drácula enlaçou-a pela cintura e ergueu-se, erguendo-a consigo. Sua boca
colou-se, ávida e obscena, sobre um dos seios, sugando-o e mordiscando-o
cruelmente.
Lá embaixo, Torg soluçava, percebendo sua inutilidade, sofrendo sus
inferioridade. Era o que Drácula pretendia. Sua vitória o assanhou. Um cheiro
de sangue jovem invadiu suas narinas, transtornando-o.
Seus olhos injetaram-se. Seu hálito se alterou, fétido e nauseabundo.
Suas faces se arreganharam, como as de um animal prestes a avançar sobre a
presa indefesa.
Ele tocou os dentes pontiagudos no pescoço delicado, roçando-as no corpo
nu, acariciando-o com suas garras, ferindo-lhe a pele.
Depois, num espasmo agoniado, cravou seus dentes sobre a veia, fazendo o
sangue jorrar. O corpo da garota abalou-se, enfraquecido, enquanto seu sangue
era sugado impiedosamente.
*
Hilgenstiller havia ouvido a gargalhada sinistra vindo de algum ponto, no
alto. Subiu apressadamente, deixando para trás o estojo vazio.
O espelho em suas mãos era a arma para destruir o monstro. Se
funcionasse, a humanidade estaria livre do vampiro definitivamente.
Ao chegar ao topo, mal pôde acreditar no que viam seus olhos. A garota
nua era desonrada pelo monstro, que ainda mantinha em seu pescoço, cravadas
como lâminas mortais, as presas pontiagudas.
- Demônios do inferno! - berrou Hilgenstiller, brandindo o espelho.
Drácula soltou o corpo da garota e se voltou, resfolegando e urrando de
ódio contra aquele que ousara interrompê-lo.
Um baque o fez recuar, como se o espelho emitisse raios contra ele,
enfraquecendo-o. Hilgenstiller avançou até que Drácula visse refletida a sua
imagem. Seu pavor foi indescritível. Os símbolos e a cruz faziam seu corpo
arder em fogo. Sua própria imagem o atraía, numa irônica armadilha de
destruição.
Albertine recuara, enfraquecida, atônita, possuída, até apoiar-se a uma
das ameias da torre.
- Cuidado! - alertou Hilgenstiller, mas era tarde.
O corpo jovem rodopiou ao luar, despencando pela muralha abaixo.
- Maldito filho das trevas, fruto de um ventre pervertido - gritou
Hilgenstiller, deixando o espelho no chão e correndo até a ameia.
Viu, lá embaixo, o corpo estatelado da garota e um bando de lobos
rodeando-o e avançando para devorá-la.
- Oh, Deus! Não! - murmurou, como numa prece e correu para a escada,
sacando seu revólver.
Tinha de impedir aquela barbaridade, afugentando os lobos.
O espelho poderia eliminar o monstro, era visível. O que vira, no
entanto, o deixara alucinado. Pensou na garota como pensara em sua filha,
quando a vira atacada pelo vampiro.
Um instinto protetor o fez descer pela escuridão, em seu socorro. No
caminho, iluminado pelo luar que penetrava por uma das janelas, estacou, vendo
a figura abominável de Torg avançar em sua direção.
Apertou a arma, pronto a se defender, mas o corcunda passou por ele
rosnando como um animal louco, rumando escada acima, na direção da torre.
Não entendeu, mas ouviu o rugir esfomeado dos lobos lá fora. Viu-se
desorientado, incapaz de encontrar a saída. Seu desespero era desmedido. Sua
angústia era sufocante.
*
Ofegante Torg chegou ao alto da torre, disposto a desabafar sua fúria
assassina. Vira o corpo da garota caído, vira os lobos deixando-o para avançar
sobre ela, assanhados pelo cheiro de sangue.
Não compreendia a cena. Drácula estava encolhido num canto, enquanto
aquele espelho parecia refletir os raios da lua direto sobre ele,
enfraquecendo-o, minando suas forças.
Drácula podia ser destruído daquela forma.
- Torg, sua besta humana! Destrua esse maldito espelho! - rugiu Drácula,
a voz alterada, as feições crispadas, o corpo retorcido, tão horrendo quanto o
do próprio Torg.
Um riso zombeteiro e satisfeito desenhou-se nos lábios do corcunda. Seu
mestre se mostrava tão disforme quanto ele. Aquilo lhe deu prazer e ele
permaneceu estático, vendo o vampiro definhar.
- Torg... Excremento da natureza! Bastardo filho de um animal, quebre
esse espelho! - suplicou Drácula.
- Não devia ter feito aquilo com a moça, mestre! Não devia - soluçou o
corcunda.
- Torg, se eu for destruído você também o será... somos complementos um
do outro... Você sabe... Será seu fim também... Destrua, Torg! Destrua! -
ordenou, os olhos fixos nos olhos do outro.
Torg estremeceu, fraquejando. Lágrimas brotaram em seus olhos e ele
agarrou o primeiro objeto ao seu alcance e arremessou-o contra o espelho,
arrebentando-o. Era o binóculo com que adorava Albertine.
Drácula se ergueu, enfraquecido e se aproximou do servo. Olhou-o nos
olhos e gargalhou zombeteiramente.
- Temos de sair daqui, Torg. Apresse-se!
*
O professor ouviu tiros, orientando-o naquele labirinto escuro. Depois o
ganir dolorido dos animais, ordens secas, movimento de pessoas.
Saiu, finalmente. O inspetor-chefe e alguns policiais acabavam de
destruir os lobos. Hilgenstiller se aproximou, trôpego, fora de si, mas
recuou, ao deparar com a horrível visão do corpo mutilado e semi-devorado da
garota.
- Talvez tenha sido melhor assim, Deus! - murmurou, cobrindo os olhos com
as mãos.
O inspetor se aproximou dele, olhando-o intrigado.
- Como explicar sua presença aqui, professor? - indagou.
- E como explicar aquilo, inspetor? - gritou o cientista, apontando o
corpo da garota.
O policial pigarreou, olhou as muralhas do castelo, depois os corpos dos
lobos.
- A garota estava transtornada, sob pesados sedativos... A morte da amiga
a abalou... ela deixou a casa e se perdeu no bosque. Os lobos a encontraram...

- É um tolo, inspetor! É um tolo! - repetiu o professor, enquanto um
policial se aproximava com uma lanterna.
Estendeu a mão e tomou-a do outro, correndo para a passagem secreta.
Tinha de chegar ao alto da torre e destruir o vampiro, se ainda houvesse
tempo.
Alguns policiais o seguiram.
No alto da torre, a desolação e a frustração de mais uma derrota o
esperava. Drácula havia escapado. O monstro continuava vivo e livre!
FIM
_________



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Dezembro - 1999


O Caçador de Yéts
Autor: Luís Giffoni 2º Edição
Coleção Veredas
Editora Moderna

SUMÁRIO

1. Avalanche
2. Diferenças
3. Casa nova 26
4. Devaneios 30
5. No caminho do Sagarmatha ........................... 34
6. Contradições . . 42
7. Namoro ........................................................ 49
8. Túmulo de gelo ............................................... 58
9. Caçada 70
10. Visitas 86
11.O topo do mundo ............................................ 95

1. AVALANCHA

Os pardais trocavam desafios e fingiam brigar nas pontas do beiral do templo. Após a encenação, os adversários comemoravam as vitórias inexistentes com penas eriçadas, tremor de asas, rodopios e canto solto. De repente, voavam juntos e desapareciam no interior de
ninhos sob o telhado. Piados esparsos chegavam.

No pátio, ao relento, os macacos furtavam as oferendas colocadas à volta dos dois
cadáveres. Os mais espertos, em rápidas incursões, pegavam as frutas e as engoliam quase
sem mastigar, entre grunhidos e exibições de caninos para quem pretendesse dividir a
comida. Os mais tímidos, em especial as mães com filhotes às costas, recebiam laranjas e
bananas das mãos do sacerdote. Esses presentes traziam ciúmes aos rejeitados e acabavam
consumidos pelos mais fortes, em meio a protestos barulhentos. Vez ou outra, uma fêmea
cravava os dentes no pescoço de algum atrevido. Os uivos de dor paralisavam o bando, que,
embora atento, não interferia na disputa. Nem bem o alvoroço cessava, a rotina de comer os
piolhos catados entre os pêlos dos companheiros prosseguia.
No espelho do riacho que rolava para o sul, tufos de nuvens pareciam represados entre
os cascalhos do leito. Com frequência, o sol se refletia nas placas de mica sob a água. Pelas
margens, abutres aguardavam com paciência o término do funeral.
Entre uma ponta e outra do horizonte, o Himalaia dominava a paisagem. De tão
íngremes e altas, as montanhas exibiam um ar de onipotência. Talvez pôr isso, dizia-se que
em cada uma habitava um deus.
A temperatura caía.
Phurbu Sherpa fechou os olhos e baixou a cabeça, procurando concentrar-se no culto.
Pôde assim ouvir a oração, na verdade um lamento anasalado, quase um mantra de tão
monótono. Ele, sua irmã Namastê e alguns parentes estavam no pátio do templo desde as
duas da tarde, acompanhando os preparativos da cremação. Como os corpos já haviam
endurecido, o rapaz não entendia o motivo de tanta encomendação. Na sua lógica, os rituais
faziam sentido apenas para quem enxergasse e ouvisse. Afinal, a cerimonia era para os
mortos ou para os vivos?
Phurbu recebeu um puxão no braço. Abriu as pálpebras o suficiente para ver Namastê. A
moça, cujos traços de adolescente se sobrepunham aos de criança, falou em tom de súplica:
- Não dorme não, Phurbu, eu estou com medo.
- Não estou dormindo.
-Está sim.
- Não estou, Namastê.
- Então fica de olho aberto. Quero ver você.
O sacerdote tinha uns trinta anos, no máximo. Vestia apenas uma túnica de linho branco, que
deixava os ombros e as pernas de fora. Estava descalço. Com tão pouca proteção para o frio
crescente da tarde, ele não dava mostras de incomodo. Pegou o pó vermelho - símbolo de
Shiva, o deus que traz a vida e também a destruição -, distribuindo-o com fartura sobre os
defuntos cobertos por um único lençol branco. Olhou para o céu. Com cuidado, enfiou duas
tiras de pano nas bocas enrijecidas. Escolheu numa cesta três varetas de sândalo e colocou-as
entre as brasas de um pote de bronze. Tão logo a tocha de sândalo se acendeu, trouxe-a em
direção ao casal de órfãos. Tentou entregá-la a Phurbu.
O rapaz sentiu um calafrio na nuca. Em questão de minutos, as chamas se multiplicariam na
madeira seca e seus pais seriam consumidos. Até aquele instante, vinha tapeando-se, fugindo
das recordações da noite anterior. Acompanhava o funeral quase como um curioso, meio
anestesiado pela perda, meio distraído com a paisagem. Diante da obrigação de atear fogo às
pessoas que mais amava, deu-se conta da tragédia. Teve vontade de sair correndo, sumir,
eliminar aquela cena, aquele local, aquele instante, aquela dor.
O sacerdote pediu:
- Acenda o fogo.
Num gesto de recusa, Phurbu virou o rosto para o lado. De novo enxergou o Everest - ou o
Sagarmatha, como seu povo, os sheipas, denomina o ponto mais alto da Terra. Pela primeira
vez, encarou a montanha com hostilidade. Ela não se compadecia de seu sofrimento. Soberba
e distante, perdera a familiaridade. Sobrou apenas a indiferença que os eternos dedicam aos
mortais. Um remoinho de neve surgiu no cume e volatilizou-se no céu.

Phurbu compreendeu que estava sozinho. Mal podia cuidar de si mesmo, a gora Namastê
dependia dele. Aos dezesseis anos, virara chefe de família, de uma hora para a outra. Achou
a responsabilidade excessiva, julgou-se perdido. Como iriam sobreviver? Sentiu raiva dos
pais. Haviam partido antes da hora. Pôr que o desastre acontecia justo com ele, que tinha
tantos planos?
O vento aumentou no topo do Sagarmatha, levantando outro torvelinho de neve.
Naquelas escarpas, logo uma avalancha despencaria. Avalancha... Na tela enorme
do Himalaia, Phurbu começou a projetar as imagens que, por defesa, vinha
proibindo-se de rever. De olhos fixos, receoso, abriu a memória.

Era a noite anterior. Estavam os quatro da família ao redor da lareira, ao
mesmo tempo fogão, no centro da casa. Jantavam o dal, unia papa de lentilhas que
Tassidelê, sua mãe, terminara de servir. O vento assobiava nas frestas da porta,
fazia muito frio, nevava.
Numa pilha, ele pegou duas placas de esterco de iaque seco, depositou-as
entre as brasas, soprou forte. Fumaça e milhares de carvõezinhos de grama
encheram o ambiente e grudaram em seu rosto. O calor retornou. No inverno, os
sherpas esquentam água apenas para a comida, devido à raridade dos materiais
combustíveis em sua terra, a região de Khumbu, vizinha ao Everest. Enquanto
retirava a sujeira das faces oleosas de muitos dias sem banho, Phurbu pediu:
- Pai, conta a história do Sagarmatha.
- De novo, filho?
- Sim. Você sabe que eu gosto.
- Pela última vez, então.
Pasang, para valorizar suas aventuras, sempre as narrava pela última vez. Na
noite seguinte, fazendo-se de esquecido, recortava-as acrescidas de detalhes.
Diziam no vilarejo de Tengbochê que ele exagerava os próprios feitos e inventava
os demais. Era, porém, difícil contestá-lo. Seus casos provinham de lugares quase
inacessíveis. Pasang ia aonde poucos se atreviam. Aos trinta e cinco anos, já
visitara vários picos com mais de oito mil metros de altura: Lhotsê, Makalu,
Annapurna, Dhaulagiri. Isso sem falar nos menores, às vezes até mais difíceis de
alcançar.
À frente de excursões nepalesas e estrangeiras, enfrentara ventos de mais de
cento e cinquenta quilómetros por hora, temperaturas abaixo de quarenta graus
negativos, ar rarefeito, delírios, visões e brigas entre os companheiros causadas
pelo cansaço, desgaste e falta de oxigénio, além de muitos acidentes. Numa subida
ao Annapurna - cujo nome significa "aquele que dá a vida " - várias pessoas
morreram quando uma ponte natural desmoronou. Pasang salvou-se por puro
reflexo: cravou a picareta no gelo, evitando o tombo fatal. Nenhuma de suas
aventuras se comparava, no entanto, à conquista do Sagarmatha. A montanha era
cheia de perigos e surpresas. Ele se deliciava em descrever como chegou ao
cume:
"Eu e o Stephen saímos do acampamento junto com o sol, num dia bonito, calmo, sem
nuvens, perfeito para o último as salto. Calculamos que iríamos gastar umas cinco horas. Es-
távamos tensos, cansados, sem dormir; mas, só de pensar que faltava tão pouco, a gente
arrumava ânimo não sei de onde e prosseguia. De repente, no meio do caminho, apareceu um
Yéty. Nunca entendi direito o que eles fazem lá no auto. Já me disseram que buscam um
líquen muito salgado, seu prato predileto. Não acredito. Acho que, feito eu, eles gostam do
horizonte aberto e do prazer de estar lá em cima, cercados de solidão e silêncio nada Mais.
Esse Yéty não era do tipo pequeno e troncudo que adora carne humana, era um dos gran-
dalhões, com mais de dois metros, desses que só atacam quando ameaçados. O Stephen ficou
apavorado. Pedi para ele agir com naturalidade, porque o bicho só queria nos mostrar alguma
coisa, apontando o braço peludo para baixo. De fato. Chegamos à beira da crista e vimos,
numa saliência da rocha, enterrados dentro de um bloco de gelo, os corpos de dois
escaladores de pouca sorte. Podiam estar ali há muitos anos. O Stephen comentou,
economizando as palavras para não desperdiçar a força:
- Mallory e Irvine, creio. Desapareceram em 1924, durante uma tempestade,
quase no topo.
Nesse instante, o Yéty assobiou. Dizem que ele assobia quando vai atacar. O
Stephen perdeu o controle. Sacou o revólver e atirou. Foi uma loucura. Isso não se
faz. Eu nem sabia que o Stephen tinha um revólver. O estrondo fez uma camada de
neve escorregar dos paredões. Não sei como escapamos. Não era nossa hora
ainda, só pode ter sido isso. "
Curiosa, Namastê perguntou:
- O Yéty morreu, pai?
-Acho que não. Na descida do pico, onde ficamos apenas quinze minutos para
não incomodar Shiva e sermos punidos, eu vi um Yéty atrás de uma pedra. Devia
ser o mesmo. Nem comentei com o Stephen. Fiquei com receio de outra loucura.
- E os dois mortos?
- Desapareceram, Namastê. A avalancha carregou-os encosta abaixo.
Dizem que estão numa reentrância de acesso impossível. Muita gente jura que já
os viu de novo. Para mim, é pura fantasia. Muita neve caiu sobre eles. De qualquer
maneira, prefiro que fiquem lá em cima para sempre. As montanhas são o melhor
túmulo para quem as ama.
- Você gostaria de morrer lá em cima, pai? - Phurbu quis saber.
Pasang não respondeu. Um estalido roubou-lhe a cor. Uma expressão de
pavor se instalou em seu rosto. Ato contínuo, a família ouviu ruídos que se uniram a
outros, formando um estrondo maior que o de vários trovões juntos. O perigo estava
próximo, chegando a galope, cada vez mais ameaçador. O chão tremeu.
- É uma avalancha! - berrou Pasang. - Protejam a cabeça.
Phurbu teve tempo apenas para perceber um som similar ao do granizo quando
começa a chover, logo engolido pelo desabamento de uma montanha sobre o
telhado.
Mais tarde, em lampejos de consciência, vieram o murmúrio do vento, a
claridade da lua semi-escondida atrás das nuvens, o peso no peito, o choro de
Namastê, o sufocamento e a certeza de novo desmaio. Acordou a trinta metros do
que havia sobrado de sua casa. Seu tio Pemba sacudia-o:
Não dorme não, Phurbu, abre esse olho, vamos, quero ver você. Olha para
mim.
O rapaz enxergou lanternas ao redor, luzes dolorosas para as retinas.
Puseram-no de pé, procuraram fraturas e cortes. Cobriram-no com mantas de lã de
iaque. Ele cambaleou, mas logo se aprumou. Ao seu lado, gemendo, Namastê
voltava a si. Só então notou os estragos. Duas paredes haviam caído sob o impacto
da neve. Buracos abertos por muitas pás entravam pelo meio do telhado destruído.
Um corpo ensanguentado começava a ser removido. Era o de Tassidelê. O de
Pasang surgiu minutos depois, com a cabeça afundada, inerte.
Phurbu abraçou os pais e, num choque, descobriu que nunca mais comeria um dal tão
saboroso quanto o dos jantares de inverno, tampouco ouviria as histórias das montanhas.
Havia perdido, junto com Pasang, seus grandes sonhos: a conquista do Sargamatha e a
captura, no caminho, de um Yéty. Após essas façanhas, Tengbochê o consideraria homem
feito, pronto para o casamento. Mais, até. Todos se orgulhariam dele. Faltou tão pouco...
Logo que completasse dezoito anos, partiria com seu pai numa expedição organizada por
canadenses. Caso se saísse bem, tanto na resistência quanto na técnica, obedecendo a todas
as regras de segurança, talvez lhe permitissem chegar ao último acampamento, quem sabe
ao cume e ao Yéty.
O sonho a gora havia terminado. Por ironia, o grande desafiador de perigos
morrera na tranquilidade da família, durante um pacato jantar. "Estará feliz? ",
perguntou-se o rapaz, enquanto acariciava o rosto deformado pelas pedras.
Pemba abraçou o sobrinho, arrancando-o da meditação:
- Phurbu, você é um herói.
Ante o silêncio, insistiu:
- Você é um herói, Phurbu. Salvou Namastê.
- Eu não lembro de nada.
- Você retirou sua irmã por aquele buraco ali no telhado. Deve ter sido um
esforço enorme.
Não lembro de nada, tio.
É assim mesmo. Depois de tanta bravura, não sobra força para guardar
lembrança.
- Não tirei Namastê lá de dentro. Eu não lembro, já disse.
- Um dia vai lembrar. Estou muito orgulhoso de você. A vila de Tengbochê
também. Você é um herói.
Phurbu não quis prolongar a conversa. Achou-a sem sentido. Virou-se para o
lado, fez um carinho em Namastê. Ela, ao enxergar os dois corpos, começara a
chorar, Agarra-se ao braço do irmão. Pediu para ir embora dali. Morria de medo:
havia tido visões, mãos enormes a agarravam no escuro.
Pemba carregou os sobrinhos para sua casa. Amanhecia. Continuava nevando.
Os flocos dançavam, no lusco-fusco, um balé de penas brancas sustentadas por
uma brisa quase imperceptível. As botas afundavam a cada passo.

Acenda o fogo, Phurbu, vamos! exigiu o sacerdote.
O rapaz voltou ao funeral aturdido pelas recordações. Pôs de lado o
Sagarmatha, virou o rosto para a frente. Viu de novo a pilha de lenha. Tanto no
pensamento quanto no templo, a realidade incomodou-o. Permaneceu na recusa.
- Não.
- Pegue a tocha, Phurbu. É sua obrigação.
Pemba saiu do grupo de parentes distribuídos em semicírculo à ponta do crematório,
junto ao riacho, e, em meia dúzia de passos, alcançou o sobrinho. Tentou convencê-lo:
- Como filho mais velho, você tem de acender o fogo. É sua obrigação. Os
sherpas não fogem das obrigações.
- Fogem sim. Sei de muitos casos.
- Mas não é o seu caso.
- Não tenho coragem, tio.
- Pois então lhe empresto a minha.
Pemba tomou a tocha de sândalo já consumida pela metade, colocou-a na mão
do rapaz, conduziu-o sem pressa até às cadáveres. Namastê veio junto. Phurbu
examinou os pais por alguns segundos, olhou para a chama, afastou o tio, deu três
as ao redor da fogueira, parou bem atrás das cabeças apontadas com precisão
para o norte. Ergueu o rosto, viu o vale do ribeirão Dudh Kosi que se perdia numa
sequência de gargantas com rochas a prumo. Após uma breve hesitação,
talvez uma despedida, acendeu as línguas de pano que pendiam das bocas dos
pais bem como os gravetos entremeados às toras de madeira.
O sacerdote cobriu os defuntos com muita palha e, tão logo a em de fumaça cedeu
lugar às chamas, colocou por cima galhos bem secos. Em questão de minutos, um
forte cheiro de carne a espalhou-se no pátio do templo.
Afugentados pelo calor, os últimos pardais sumiram do beiral. Os macacos ficaram
imóveis, hipnotizados pelas primeiras das. Após o transe, retomaram a cata de
piolhos. Ouviu-se apenas o crepitar do fogo.
Phurbu e Namastê recuaram até o grupo dos familiares. Compenetrados,
permaneceram de mãos dadas por várias horas. Era o, fim do inverno. Uma tarde
rubra coloriu de rosa a neve do . a. A Lua apareceu em seguida.
Os corpos arderam a noite inteira. De manhã, apenas cinzas m dos ossos. O
sacerdote jogou-as no riacho, junto com as brasas e pedaços de lenha. Os
abutres logo vieram, voando rente à superfície da água, à procura de restos.
Frustrados, retornaram às das margens do Dudh Kosí.
Phurbu varreu o ghat, local da cremação. O funeral estava terminado.
Após o desjejum com tsampa - um mingau de cereais - e chá misturado com
ghee - manteiga de iaque -, os filhos, irmãos e cunhados de Pasang e Tassidelê
tomaram o caminho de casa, o vilarejo de Tengbochê, a algumas horas de marcha
cordilheira acima.
Seguiram rumo ao norte em fila indiana por trilhas à beira de precipícios, num
ritmo que não se alterou nem mesmo nas subidas mais íngremes, verdadeiras
escadas esculpidas nas rochas. Atravessaram passos a mais de quatro mil metros,
uma altitude em que as pessoas desacostumadas ao ar rarefeito mal conseguem
mover-se ou respirar. Quase não falaram.
À medida que avançaram por Khumbu, a região ficou cada vez mais desértica.
Areia, seixos e matacões - restos de morenas - encheram a paisagem, como se a
geleira que os trouxera tivesse evaporado de repente, deixando a desolação por
herança. As encostas permaneceram cobertas de neve em equilíbrio precário. O
gotejamento nos paredões podia significar desastre. No horizonte, bem atrás do
Nuptsê, erguia-se o Sagarmatha, uma pirâmide de pedra e gelo unindo a terra ao
céu. Sem vento, uma única nuvem ficou perdida no meio do azul. Por toda a parte,
dominava o silêncio. Apesar do frio, os caminhantes suavam.
Morar no topo do mundo, mais que uma prova de grande adaptação, é um
capricho do homem, a escolha do desafio como opção de vida. Os sherpas pagam
caro pela ousadia. Quem escapa dos acidentes - avalanchas no inverno,
enxurradas nas monções, terremotos de vez em quando - sucumbe cedo aos
sacrifícios impostos ao corpo. Poucos conseguem ultrapassar os cinquenta anos.
Aos quarenta, têm a aparência de anciões, o que não lhes diminui o amor à vida, à
natureza, à responsabilidade social. No seu código moral, a tolerância é uma
virtude importante. Esbanjam alegria no convívio diário em suas pequenas vilas
dependuradas no Himalaia.
Os dias seguintes foram difíceis para Phurbu e Namastê. Taciturnos,
consumiram as horas na contemplação do fogo da lareira ou no exame prolongado
das montanhas, como se as chamas ou os picos pudessem dissolver sua tristeza.
Com frequência, irrompiam em choro silencioso. Quando as lágrimas escorriam,
eles logo as enxugavam e reassumiam a postura meditativa. Namastê não
abandonou o braço do irmão. Teve o mesmo pesadelo em várias noites: logo após
o acidente, um monstro a retirava dos escombros, arrastando-a pela neve.
Acordava aos berros. Custou a recuperar-se.
Phurbu remoeu os acontecimentos até que, de tão gastos, perderam o impacto
inicial. Convencido de que a seta do tempo aponta para o futuro, começou a pensar
na primavera e no plantio de batata. Planejou expandir a área de cultivo, vender
parte da produção nos acampamentos de turistas, reconstruir a casa num local
mais seguro. Foi além. Alimentou a esperança de, entre maio e junho, ser
contratado como carregador de alguma expedição. O trabalho só lhe traria
vantagens: dinheiro, exercício para os músculos e aprimoramento das técnicas de
escalada. Recuperou os antigos sonhos: subir ao Sagarmatha e capturar um Yéty.
Com tantas ideias a ocupá-lo, a morte dos pais entrou para o rol dos fatos
consumados. Phurbu descobriu que poderia sobreviver sozinho. Tinha idade e
preparo suficientes.
Um mês depois do funeral, os órfãos estavam integrados à nova família. Pemba
Sherpa, irmão mais velho de Pasang, colaborou muito para isso. Com os filhos em
Katmandu, abriu espaço para os sobrinhos em sua casa. Deu-lhes um quarto,
carinho e conforto. Sempre que mergulhavam na tristeza, tentava animá-los com
histórias pitorescas. Seu bom humor, crítico na maioria das vezes, arrancou, a
princípio, sorrisos forçados. Após muita insistência, viu fluir a alegria espontânea.
Com o tempo, longas discussões ao redor do fogo revelaram maneiras diferentes
de encarar a vida.
Pemba não parecia irmão de Pasang. Expansivo, cultivava muitos amigos e
visitava-os mesmo durante as nevascas. De comum, o amor por Khumbu. Para ele,
o ar gelado e rarefeito da região existia para tornar a pele mais resistente, os
pulmões maiores e o caráter mais forte. À tarde, punha um barquinho defronte à
única porta da casa e acompanhava o poente, contando as cores, os tons e as
nuanças produzidas pela luz sobre o horizonte. Falava muito por meio de
provérbios herdados da tradição sherpa, com modificações que introduzia para
adequá-los à necessidade da hora. Seus favoritos:
"Quem vive em meio ao perigo não tem olhos para vê-lo." "O primeiro momento da
realidade é o último do sonho." "As dificuldades atalham o caminho para a sabedoria." "O
vento bate na ore para que as sementes caiam." "A morte reacende o prazer a vida."
Uma vez por dia, rezava quinze minutos pela paz no mundo. Com as pernas
cruzadas, as mãos erguidas e bem afastadas, os polegares tocando os
indicadores, repetia, compenetrado, a mesma prece, dando a impressão de extrair
os sons de toda a face, que vibrava ao final de cada palavra: Om mane padme
hum. (Salve a jóia que está na flor - de lótus).
Ao contrário de Pasang, que praticava uma mistura de hinduísmo com budismo,
Pemba Sherpa, e também Djulê, sua mulher, seguia o budismo tradicional de
Khumbu. Acreditava em reencarnações e não se permitia, portanto, matar qualquer
ser vivo: talvez fosse um parente próximo. Essa crença lhe trazia dificuldades. Por
exemplo, para comer frango - uma raridade, por sinal dependia da boa vontade
alheia. Recorria aos newaris - um povo disperso na região, adepto do hinduísmo -
sempre que desejava abater um animal. A atitude não o livrava da incoerência. Ao
se alimentar da ave, ninguém lhe podia garantir que não ingeria pedaços de
antepassados. Tal questionamento não o incomodava. Pemba incluía a dieta cem
por cento vegetariana entre os radicalismo, e apregoava as virtudes da tolerância.
Também encarava as montanhas de modo diverso de seu irmão. Enquanto Pasang
as via como desafios, símbolos da eternidade e morada de deuses - tanto que, em
respeito às divindades, sempre encerrou as escaladas um metro abaixo do cume -,
Pemba as considerava resultado dos grandes movimentos da crosta terrestre.
Embora as amasse a ponto de defender a proibição de expedições constantes,
discordava da mitologia sherpa segundo a qual elas haviam nascido de
Chomolungma, a deusa - mãe da Terra. Preferia explicar sua origem de acordo
com a teoria científica aprendida em muitas leituras e contatos com geólogos e
turistas de todo o mundo: o Himalaia resultou do choque das placas tectônicas
asiática e indiana. Essa opinião provocava desconforto entre os tradicionalistas de
Tengbochê e ofendia Phurbu, adepto dos pontos de vista paternos. Por isso, numa
das primeiras noites de primavera logo após o dal, uma discussão familiar produziu
consequências inesperadas. Pemba, com a segurança de senhor dos
conhecimentos definitivos, afirmou:
- O Sagarmatha surgiu há milhões de anos e até hoje está crescendo. Aumenta
quase dez centímetros por ano.
Phurbu reagiu no ato:
- As montanhas sempre existiram, tio.
- Você precisa estudar, meu jovem, aprender a verdade. As montanhas não
são eternas.
- O deus Shiva sempre existiu e mora no Sagarmatha. Meu pai o encontrou lá
em cima.
- Pasang tinha olhos demais. Era um grande escalador, porém era melhor
inventor de histórias. Não foi ele que esteve com um Yéty?
- Você fala isso porque nunca subiu a um pico. Quando tentou, morreu de
medo, quase provocou um acidente, fez todo o mundo abandonar o passeio e
voltar para Tengbochê.
A distância se avista melhor o conjunto, Phurbu. A experiência me ensinou
isso.
- Do alto se vê muito mais longe, tio.
- Quem consegue ficar no alto mais de quinze minutos? Ninguém. Toda
escalada é um mero exercício para os limites da força e da coragem, nada mais.
Não, Phurbu, não confunda as coisas. Seu pai lhe ensinou ideias diferentes das
minhas. Foi um grande homem, porém nunca se importou com o mundo além das
fronteiras do Nepal. Preferiu encher a cabeça com lenda e aventura.
É verdade, Phurbu, aceito sua opinião. Gosto da maneira como defende seu
pai. No entanto, continuo com meu próprio horizonte. Admiro as montanhas daqui
de baixo, capto sua beleza em cada estação, acompanho sua luz ao longo do dia e
sei como surgiram. O conhecimento não destrói a emoção.
Mas não traz aventura nem desafio.
- É o que você pensa. Sabe esses fósseis de animais marinhos que a gente
encontra por aqui?
- As conchas?
- Isso. Elas provam que Khumbu foi mar, milhões de anos atrás. Houve praias
por aqui. Para recompor a historia da Terra, muita aventura e desafio são
necessários, diferentes do que sugerem numa escalada. Eu vivo para a realidade,
para o chão firme. Pasang vivia no ar, na fantasia.
- Pois então, eu sou como meu pai. Ainda subo ao Sagarmatha, falo com Shiva e, de
quebra, trago um Yéty. Aí vamos ver qual é a verdadeira realidade, qual é a fantasia.
- Ótimo, Phurbu. Faça isso e todos irão admira-lo. Serei o primeiro. Mas não se
esqueça: o primeiro momento de realidade é o ultimo de fantasia.
Namastê interveio:
- Tio, por que você não acredita em yétis?
- Porque nunca vi um, e olha que já andei muito pelas nossas geleiras. Para
mim esse bicho é conversa de avô para impressionar os netos. Pura conversa
fiada.
- Meu pai nunca foi avô.
- Nas grandes altitudes, Narnastê, as pessoas têm visões.
liam que realmente estão vendo, por causa da falta de oxigênio. Nessas
condições, tudo é possível. Até um Yéty.
Phurbu contestou:
- Se fosse sempre assim, como explicar aquela cabeça de Yéty do monastérío
de Pangbochê? Eu já estive lá e vi. Também sou avô.
- Aquilo é uma farsa, muito malfeita, por sinal. Engana trouxa.
-E as pegadas na neve que aparecem por aqui de vez em quando?
- São as marcas de nossas próprias botas que aumentam com degelo e
ficam estranhas, enormes. A vontade de fazer os yétis existirem é tanta, que alguns
cientistas mais afoitos até lhes deram nome pomposo: Gigantopithecus nepalensis,
macaco-gigante.
- Você não acredita em nada, tio?
- Acredito sim, Phurbu. Acredito em você, em Namastê, em Djulê, em mim, em nossa
gente, em todas as pessoas. Acredito na vida. Acredito nos ensinamentos de Buda, que
evitou os extremos e encontrou a virtude no Caminho do Meio. Acredito em tantas coisas,
que uma vida só não pode contê-las.
Pois, para mim, isso tudo não vale um yéti.
Pemba sorriu, levantou-se, pegou duas tortas de esterco de iaque, jogou-as no
fogo. Ao assentar-se, filosofou com o ar de superioridade que os anos trazem a
muitos adultos:
- Quanto mais se vive menos se enxerga, Phurbu.
- Você está ficando cego, tio?
- Não, apenas realista. Eu vejo a realidade muito bem e ela me basta, pois
oferece beleza e explicações. Você ainda me dará razão e me entenderá. É
questão de tempo.
Namastê interrompeu a discussão:
- Posso falar, tio?
- Claro, fale quanto quiser, senão acaba igual a Djulê, que parece ter engolido a
voz.
A mulher ergueu o rosto, examinou o marido, fez um gesto de descaso e
observou:
- Quem fala muito ouve pouco. Quero ouvir Namastê.
A adolescente prosseguiu:
- Eu acho que foi um yéti que me tirou de dentro de casa depois da avalancha.
Eu não lembro direito, mas tenho certeza de uma coisa: segurei um braço peludo,
senti uma respiração pesada e fedorenta, gritei de medo. Uma hora, a Lua
apareceu e alguém muito alto me puxava. Depois, tudo escureceu outra vez.
- Quem sabe era mesmo um Yéty, Namastê? Quem sabe? O mundo inteiro vai
comentar: dois jovens sherpas foram salvos pelo Abominável Homem das Neves.
Uma história dessas nem Pasang conseguiu inventar.
- Eu não estou inventando, tio.
- Acredito que você diz a sua verdade, Namastê. No entanto, continuo
afirmando que Phurbu a tirou de lá. Vocês levaram pancadas na cabeça, podem
ter falsas lembranças, até mesmo total esquecimento. É comum. Um dia, quem
sabe, talvez a realidade apareça bem clarinha lá dentro do seu miolo. Então você
saberão que confundiu seu irmão com um Yéty.
Pemba pôs-se a rir, enquanto colocava as mãos em cima das orelhas e tentava
imitar as feições e os urros de um macaco. Começou a cantarolar:
Phurbu é um macaco, Phurbu é um macaco, um Gigantopithecus nepalensis.
Phurbu é um Gigantopithecus nepalensis.
Namastê riu, porém seu irmão esboçou um ar de desagrado que contaminou
sua voz:
- Tio, tenho certeza de que não tirei Narnastê. Também fui arrastado. Às vezes,
quase enxergo quem me salvou, às vezes confundo tudo como num sonho.
Pemba abriu os braços e seu sorriso mais incrédulo:
- Em vista dos fatos, declaro que vocês foram salvos por um yéti. Na minha
opinião, é aquele que Pasang encontrou no Sagarmatha. Precisamos contar isso
para o mundo inteiro.
Djulê cansou-se de ouvir:
Pemba, várias vezes você mesmo comentou que não entendia como Phurbu
e Namastê conseguiram escapar. Namastê pode estar se lembrando da verdade.
Impossível, Djulê. Impossível. Haveria pegadas por toda a parte.
Nevou naquela madrugada, não se esqueça. Além disso, .,nossas botas
pisoteariam quaisquer pegadas. Mais importante: ninguém, é óbvio, procurou sinais
de um yéti.
Muito bem, muito bem. Depois desse argumento, a verdade fica definitivamente
estabelecida. O Abominável Homem das Neves salvou de fato dois sherpas. Isso significa
que ele existe e é muito bonzinho. Vai ver, anda rondando nosso quintal. Escutem, escutem.
Esse barulho... Prestem atenção. É ele! A gora, tenta arrombar a nossa porta. Cuidado. Se
entrar, não saiam de perto do fogo. Não se movam, E ele! Sentiu o cheiro de carne humana.
Naniastê grudou-se ao irmão. Djulê consolou-a:
- Querida, não ligue para seu tio. É tudo brincadeira.
- Desculpe, Namastê, desculpe se a assustei. Queria diverti-Ia, só isso. Não
tem yéti lá fora, nem aqui nem em lugar nenhum. Fique tranquila. Fantasia não abre
porta.
O comportamento crítico do tio levou Phurbu a tomar duas decisões. A primeira:
mudar-se com a irmã o mais breve possível. Fez contas rápidas e convenceu-se de
que, se tudo corresse bem, no fim do verão teria dinheiro para construir seu próprio
lar. Pequeno, simples, mas próprio, livre de interferências e ironias. A outra:
vasculhar as ruínas da antiga morada em busca de rastros de yétis. Pressentia que
eles estavam lá. Chegou a uma certeza: fora mesmo salvo pelo Abominável
Homem das Neves. Precisava mostrar a Pemba quão real era a fantasia.
Tão logo amanheceu, saiu em busca da prova. Entrou pelo telhado da casa, ainda em parte
coberto pela neve, mexeu nos destroços, examinou todos os cantos, removeu pedras e
madeiras, evitou apagar vestígios no solo. Encontrou apenas impressões de botas, muitas,
todas cobertas por uma fina camada de gelo. Frustrado, resolveu encerrar a procura.
Assentado no local onde existira a lareira, enquanto ruminava o insucesso, viu, à direita, uma
lajota de ardósia caída sobre uma ripa. Mais por insistência que por esperança, suspendeu a
pedra. Descobriu uma pegada bem maior que a de um homem, com o polegar bastante
afastado dos outros dedos. Havia até sinais de unhas.
Excitado, limpou ao redor, liberando a marca para uma exploração cuidadosa. Fez um
buraco no teto para aumentar a claridade. Não lhe restaram dúvidas.
Deu um grito de alegria. Namastê tinha razão. Seu pai tinha razão. Os yétis existiam. O
raciocínio levou-o além. Concluiu que o Sagarmatha era eterno e Shiva morava no seu topo.
Pemba devia pedir desculpas.
De tanto saborear o achado, ficou com a vista turva. Os detalhes perderam a precisão
inicial. Os contornos das unhas sumiram. Começou a duvidar de si mesmo. Tapou os olhos
com as mãos, beliscou-se. Ao retirar a venda, mirou a pegada outra vez. Lá estava ela, sob
um jorro de luz, perfeita como se tivesse sido gravada na noite anterior.
Phurbu resolveu guardar segredo, porém não conseguiu. Logo na manhã seguinte,
convidou o tio para um exame. A custo, ele aceitou visitar o local. Riu durante todo o trajeto,
fingiu medo e visões. O pior veio mais tarde. Em vez de' prova da existência do yéti,
encontraram apenas uma poça-d'água, resultante do gotejamento da neve do telhado. O
descuido e o aumento de temperatura tinham destruído a evidência. Phurbu não soube o que
dizer. Pemba foi sarcástico:
- Não se preocupe, meu jovem. Todos podemos errar. Para mim, o tal yéti passou por
aqui ontem à noite e apagou suas pegadas. Ele existe de fato. Agora acredito. De verdade.
Phurbu encarou-o, seguro de que seu fiasco logo se espalharia por Tengbochê. Pemba
adivinhou-lhe os sentimentos e ofereceu uma saída honrosa:
- Prometo que não contarei para ninguém, combinado? Erga a cabeça. Você enxerga
demais, mas tem valor. Muito valor, Phurbu.
No caminho de volta, o rapaz contemplou a cordilheira. Em algum lugar no meio
daqueles cumes, o yéti devia estar dando risadas. Mais uma vez, conseguira passar por mera
fantasia.

3 casa nova

As sherpanis, mulheres sherpas, entoam velhas canções para embalar o trabalho no
campo. Para cada época do ano existe um repertório adequado. Entre fins de março e meados
de abril, durante o preparo da terra e o plantio, os versos pedem bom tempo, boa germinação
e boa colheita. A música de poucas notas, muito aguda, mistura o murmúrio do vento ao
ruído dos riachos de degelo que, em pequenas corredeiras, dividem os terraços e os planaltos
de cultivo. As vozes ligam-se umas às outras e formam um coro canalizado pelos paredões
das montanhas, causando a impressão de que Khumbu inteira canta ao mesmo tempo.
Distraídos pelo espetáculo, os corpos parecem cansar-se menos. Apenas parecem: homens e
mulheres retornam da jornada esgotados pelo solo coberto de pedras. Trabalham até a última
claridade.
Na região, poucos vegetais resistem aos rigores do clima. As árvores proliferam apenas nas
partes baixas dos vales, acima das quais a exuberância tropical cede lugar aos pinheiros.
Estes, por sua vez, com o aumento da altitude, são substituídos pela grama de crescimento
rápido na primavera. Nos níveis máximos, nada além de liquens sobrevive. A batata, uma
cultura recente, adaptou-se bem nos patamares intermediários, tomando-se, ao lado do
turismo, a grande fonte de renda dos sherpas.
Phurbu não ouvia as canções do plantio. Estava por demais concentrado no serviço,
mantendo o iaque herdado dos pais no rumo certo para cortar sulcos paralelos no terreno.
Desde o amanhecer, acompanhava o ritmo cadenciado do animal, que perdia a lã protetora
do inverno. O rapaz esbarrava no limite da resistência física nas horas mais quentes. Queria
provar que era adulto, capaz de cuidar de si mesmo e de Namastê. Conseguiu, Todo o
vilarejo o cumprimentou por arar tanto quanto os mais experientes. Previram-lhe bons lucros
na colheita, devido ao aumento da área de cultivo e à qualidade do preparo.
Motivado pelo êxito e reconhecimento, comunicou ao tio a decisão de morar sozinho. Foi
questionado durante uma semana, ouviu um rol de prós e contras - mais contras que
prós - sua firmeza Prevaleceu.
Parentes e amigos reuniram-se para erguer a nova casa. Trabalharam de graça.
Escolheram um local bem mais afastado que o anterior, junto à trilha para o
Sagarmatha, ao abrigo de avalanchas.
A construção ficou pronta em quinze dias. Possuía um único cômodo,
aquecido pela lareira central, também usada como fogão. O piso de terra batida foi
forrado com tábuas e peles com as quais se dormiria . As paredes de pedra não
receberam revestimento. Porta e janelas com visão Panorâmica da cordilheira
ficaram
fora da direção predominante do vento. No Prolongamento do telhado, fez-se um
pequeno estábulo.
No dia da inauguração um Lama vestido de vermelho e amarelo veio abençoar a residência.
Foi tratado com muito respeito, chá com ghee, gur - um prato à base de batatas assadas - e
porções generosas de arroz branco. Após a cerimonia, todos lhe beijaram a mão e pediram
conselhos. O Prelado rememorou os ensinamentos de Buda até o entardecer. Insistiu na
importância do Óctuplo Caminho. Pregou o desprendimento e a humildade, atalhos para o
Nirvana.
Tão logo partiu, os instrumentos musicais, todos muito rústicos, começaram a
soar. Movido a cerveja de fabricação caseira, uma espécie de baile aconteceu. Os
homens exibiram seus talentos para a dança, enquanto as mulheres cuidaram do
coro. Phurbu arrancou aplausos das moças com sua perícia nos saltos e no
nejo de tambores.
Às nove horas, ao longo da trilha para Tengbochê, os bêbados desafinaram
canções para as estrelas e tropeçaram nos próprios calcanhares. As dez, reinou o
silêncio.
Phurbu deitou-se satisfeito. Os planos correram melhor que o esperado:
conseguira a casa antes do verão e fora reconhecido como adulto. Sentiu-se pronto
para a vida, em condição de vencer qualquer obstáculo. Julgou-se o mais forte, o
mais bravo e o mais inteligente dos sherpas. Namastê, ao contrário, padeceu de
insegurança. Acordou o irmão no meio da noite.
- Phurbu, estou ouvindo um barulho lá fora.
- É o iaque, sua boba.
- E se for um yéti?
- E daí, o que tem? Vai ser Ótimo. Eu prendo o bicho e vamos ser os únicos a
ter um.
- Phurbu...
- Fala.
- Quando você casar, vou morar com quem?
- Fica tranquila. Só vou casar depois de você.
- E se demorar muito?
- Eu espero. Mas moça que faz dal, tsampa, ghee, gur e tapete casa cedo.
Aliás, o Dawa ficou hoje o tempo todo de olho em você.
- Tem certeza?
- Claro, conheço o meu amigo. Estava com aquele jeito de idiota que só
apaixonado tem. Por favor, vamos dormir. Nunca vou abandonar minha irmã,
prometo.
- Só queria ouvir isso. Boa noite.
- Boa noite.
Os nativos de Khumbu participam das principais subidas ao Himalaia.
Habitantes de altitudes elevadas, não carecem de adaptações. Além disso, mantêm
uma longa tradição de trabalho honesto e competente. Quando não atuam como
guias, servem na retaguarda. Nas grandes expedições, várias centenas deles
transportam equipamentos e comida cordilheira acima. Colocam a carga em cestos
presos no alto da cabeça e nas costas por um sistema de tiras de fibra ou lonas.
Alguns suportam até cinquenta quilos, um feito notável para quem pesa, em média,
sessenta e não tem mais de um metro e sessenta e cinco centímetros de altura.
Acostumados desde a infância a esse tipo de esforço, já que na região não
existem automóveis ou carroças, alardeiam não se cansar, um orgulho desmentido
pelas bicas de suor e respiração ofegante. Nas trilhas íngremes, param de hora em
hora por dez minutos. Deixam os fardos sobre bancadas de pedra que lhes batem
pela cintura, possibilitando uma cômoda remoção. Liberados, deitam-se nos bancos
ao redor e chegam a cochilar.

4 Devaneios

Entre o plantio e a colheita da batata, os homens de Tengbochê torcem pela
vinda de Lakpa Sherpa, o maior contratador de mão-de-obra para as agências de
turismo. Montanhista famoso, apesar de seus vinte e poucos anos, nascido na
vizinha Narache Bazar, oferece salários que parecem fortunas para os padrões do
Nepal, Por isso, julgam-no quase um Bodhisattva, um santo, um indivíduo dedicado
a ajudar o próximo.
Lakpa Sherpa apareceu em maio, apressado como de cos tume, em busca de
gente para expedições ao Santuário do Annapurna, no oeste do país, e também ao
Sagarmatha. Phurbu procurou-o no seu pequeno escritório. Lakpa recebeu o rapaz
com alegria.
- Salve o filho do grande Pasang.
- Obrigado.
- Você tem um nome e uma tradição a zelar.
- Eu sei.
- Se se dedicar ao serviço com a mesma garra de seu pai, ainda será um guia
famoso.
- Para mim, perto do trabalho no campo, a montanha é uma diversão. Não
gosto de plantar batata.
Lakpa riu.
- Escalar exige mais força ainda, Phurbu, tenha certeza. Se quiser, posso
contratá-lo como carregador. Está disposto a suar muito?
- Sim.
- Até hoje, você fez apenas turismo nas montanhas. A gora, vai ser diferente.
- Aceito qualquer desafio.
- Tenho duas expedições, Annapurna ou Sagarmatha. Em qual deseja ir?
- Sagarmatha.
- Otimo, ótimo, iremos juntos. Serei o guia. Se estiver maduro, posso levá-lo
longe, Phurbu. Bem longe, bem alto.
- Ao mais alto?
- Quem sabe? Tudo é possível.
O rapaz não se conteve. Seus olhos brilharam como se estivessem a um palmo de
distância do topo do mundo.
- Não, não vou enganar você, Phurbu. Ainda está muito novo. O último assalto
seria um risco exagerado na sua idade.
- Eu já sou homem, Lakpa. Faço o que qualquer outro faz. E melhor.
- Veremos no caminho. Esteja aqui amanhã cedo, às cinco em ponto.
- Estarei. Obrigado.
Quando Phurbu saía, Lakpa entregou-lhe um maço de rúpias, o dinheiro do
Nepal.
- É o seu pagamento por três semanas. Sem Pasang, você deve estar
precisando.
- Não estou.
- Leve mesmo assim. Aposto que saberá como gastar.
- Ali, isso é verdade. Obrigado.
Uma hora depois, o rapaz já não tinha sequer uma rúpia do adiantamento.
Investiu tudo na compra de duas iaques prestes a parir. De acordo com seus
cálculos, nasceriam duas fêmeas, ele tiraria muito leite, produziria ghee, as crias,
por sua vez, ficariam adultas e prenhas, mais fêmeas viriam, mais ghee, talvez
queijos, talvez... Ao encerrar as contas, possuía dinheiro suficiente para conhecer
Katmandu, comprar uma rede para caçar yétis, um toca fitas e botas novas, fazer
acabamentos e pôr maior conforto em casa e, mais importante, dar um xale da
India para Laxini, na sua opinião a moça mais bonita da região de Khumbu.
Ao anoitecer, sozinho, no retomo de Tengbochê - onde deixara Namastê e os
três iaques com Pemba e Djulê - examinou o Sagarmatha, cheio de carinho pelas
encostas que ainda o tornariam um homem famoso. O cume pareceu-lhe um
pontudo chapéu das mulheres do Ladakh, cujas quinas cortassem feito lâminas de
facas gurkhas. Sorriu. Pela primeira vez, ganhara dinheiro para fazer o que mais
gostava.
Escalou com a mente os paredões alaranjados. Escolheu um caminho entre os muitos
possíveis, seguindo à risca os ensina mentos de seu pai, que lhe mostrara todas as vias de
acesso. Atingiu o topo em poucos segundos. Lembrou-se de Pemba, para quem o horizonte
se enxerga melhor de longe. Imaginou a distância que avistaria lá de cima, com o mundo
inteiro a seus pés. Existe maior horizonte? Lakpa Sherpa iria mesmo permitir que
participasse do último assalto? Como Shiva reagiria quando fincasse a bandeira do Nepal em
sua morada? Se um yéti aparecesse, o que faria para capturá-lo?
Absorto pelos devaneios, Phurbu concluiu que preferiria encontrar o yéti no
futuro distante. Com tantos participantes na expedição de Lakpa, corria o risco de
outra pessoa ser mais esperta, pegar o bicho e levar a fama. Pela primeira vez, deu
razão a Pemba. Como o tio costumava dizer, o tempo se tempera com tempo, e o
êxito se alcança com a escolha do melhor momento para agir. Capturar o yéti,
então, era também um exercício de paciência. Mais cedo ou mais tarde, poria sua
coragem à prova. Que fosse mais tarde. Saberia aguardar a glória.
Em meio ao lusco-fusco, Phurbu decidiu que assim estava escrito, assim seria o
seu destino de herói. No entanto, ao ouvir barulhos estranhos na trilha,
esqueceu-se de todo o futuro e acelerou a marcha para se proteger em casa.

5. No Caminho Do Sagarmana

Setenta pessoas compunham a expedição de Lakpa ao Sagarmatha: quarenta
nepaleses - sherpas, na maioria - e trinta europeus, entre suíços, italianos e
franceses. Enfileirados à beira dos penhascos, portando mochilas ou cestas,
pareciam um bando de formigas cortadeiras em plena atividade.
Caminhavam seis a oito horas por dia em ritmo tão uniforme quanto possível e
montavam acampamento no meio da tarde. À noite, jantavam comida local, massas
italianas ou enlatados, e faziam uma rápida sessão musical ao redor da fogueira,
deitando-se cedo. De manhã, os cozinheiros serviam chá, leite, granola e biscoitos.
Às nove, o grupo retomava a trilha encosta acima. Além de bolhas nos pés, as
sanguessugas eram o único incomodo. Recém saídas da hibernação, grudavam-se
nos braços dos mais desatentos. Um pouco de sal as removia com facilidade.
Phurbu se divertiu com os estrangeiros. Prestou atenção aos costumes, reações e trejeitos
de cada um. Examinou também seus equipamentos e reviu o manejo de mosquetões, argolas,
cordas e nós. Em marcha, envolveu-se a tal ponto com a beleza dos cumes que nem notou
sua carga: panelas, pratos e talheres.
Próximo -ao Acampamento da Base do Everest, o silêncio tomou conta da
vastidão das morenas, e ele pôde entender por que tantos encontram a si mesmos
naquelas paragens: a monotonia invade as pessoas, a aridez facilita a meditação.
Repassou todas as suas ideias e planos até que nenhum pensamento subsistiu,
nem sequer a vontade de vislumbrar um yéti escondido entre as rochas. O único
som veio do choque das botas contra as pedras ou dos escorregões que faziam
tilintar por instantes os utensílios às costas.
Tomado pelo vazio mental, experimentou uma euforia desconhecida e uma total
integração com o ambiente. Mais que isso, confundiu-se com o mundo e limitou-se
a respirar, caminhar e ver. Os picos adquiriram a magia que atrai gente de toda a
parte, um ima sustentado por muito suor, pouco ar, a beleza das montanhas e a
mais completa solidão. Resultado: sentiu total consciência da vida, livre da
opressão da gravidade. A caminhada transformou-se em um vôo rente ao solo.
Imerso no transe, descobriu o tamanho de sua força. Acelerou o passo. Quanto
mais rápido ia, mais leve ficava. Acabou ultrapassando todos os carregadores.
Lakpa advertiu-o:
- Aqui em cima, os valentes morrem cedo. Vão muito alto, muito depressa.
Quando desconfiam, é tarde, o mal das montanhas já os pegou. "Devagar e
sempre" é a regra de ouro. Reduza o ritmo. A gora.
Diante da ordem, Phurbu perdeu a ilusão de voar. Retomou à trilha, à fadiga
provocada pelo peso, à certeza de que era um entre mais de trinta carregadores
nas vizinhanças do topo do mundo. Estava a cinco mil e quinhentos metros de
altitude, chegando a Kalapathar, base do Sagarmatha.
Olhou ao redor. A grama brotava onde a neve desaparecera com a primavera.
Junto ao Nuptsê, uma geleira escurecida pelos detritos que transportava morria no
planalto em contorções de ondas, trincas, fendas e estalidos, uma verdadeira
catarata de areia, pedras e matacões suspensos no espaço. Ponto cle passagem
obrigatório, era uma escada tanto para o céu quanto para a morte. Ao fundo, o
Changtsê e o Ama Dablam, dois dos maiores picos da Terra, ficavam pequenos
diante do Sagarmatha. Suas pirâmides marrom acinzentadas cutucavam o zênite
azul cobalto. O vento do leste vinha em rajadas de curta duração. Uma brisa fria
assobiava entre os pêlos do capuz de pele. Para atrapalhar o panorama, garrafas e
latas semi enterradas comprovavam o descuido humano em visitas anteriores. O
alumínio de uma coca-cola brilhava ao sol.
Phurbu ampliou o raio de visão, varrendo a cordilheira desde o Makalu até o
Cho-Oyu, distinguíveis à distância. Lembrou-se do pai, das vezes em que vieram
juntos a Kalapathar. Pasang, após descrever cada dificuldade enfrentada na luta
contra os cumes, apontar as encostas mais difíceis, os desvios, os atalhos e os
passos, expôs à façanha do sherpa Norgay Tensing, que, junto com o neozelandês
Edinund Hillary, conquistou o Sagarmatha em 1953. Falou da face sudoeste, por
muito tempo considerada intransponível, até que a habilidade humana a derrotou
em 1975. Confessou a tristeza de assistir à queda de um pico atrás do outro.
Admitiu que, aos poucos, desaparecia a verdadeira aventura, o prazer da primeira
vez. Acompanhando o perfil da cordilheira com o indicador direito, certa ocasião
concluiu desolado:
- O momento da conquista é o último do sonho, meu filho.
Previu o dia em que os turistas seriam despejados às centenas no cume que
escolheram. Torceu para que Chomolungma não permitisse tanta intimidade e
revidasse com seu lado genioso, sujeito a súbitas alterações de humor, colocando
em risco até mesmo os guias mais experientes.
Enquanto se recordava, Phurbu ouviu de novo o chamado da montanha, a voz
interior que manda os aficionados para cima.
Quem sucumbe a esse encantamento abraça a irracionalidade. Arrisca-se sem
motivo, põe o trabalho de equipe a perder, compromete a vida alheia. O rapaz foi
invadido pelo ímpeto de jogar longe sua tralha, correr através da morena, galgar a
geleira e alcançar sozinho o Sagarinatha. Quando a cesta caiuno chão, o barulho
das vasilhas o fez despertar. Assustou-se. Ao mesmo tempo, ocorreu-lhe uma das
frases favoritas de seu tio Pemba: "Quem vive em meio ao perigo não tem olhos
para vê-lo".
Phurbu conteve-se, respirou fundo muitas vezes, retomou o controle. Vários
dias de caminhada ainda os separavam do topo. A proximidade era ilusória. Ele
não possuía super poderes, Refeito, foi ajudar na instalação das barracas.
Pouco depois do jantar, Lakpa abordou Phurbu. Ele estava carrancudo.
Tenho observado seu comportamento, rapaz. Você me preocupa. Tem a
garra, a resistência e a coragem de seu pai, mas ainda não amadureceu. Não faça
besteira. Cuidado.
- Não precisa se preocupar. Sei me controlar.
- Tomara. Muito entusiasmo é sinal de pouco juízo. Ninguém deve assumir
riscos inúteis. Nada justifica o perigo.
- Escalar é perigoso, Lakpa.
- Por isso existem as regras de segurança. Cuidado, rapaz. Vou lhe dar uma
chance. Talvez não deva, mas você merece um teste. Seguirá connosco pelos
próximos dois dias. Saia-se bem e poderá haver um terceiro.
- Obrigado.
- Nada de afobamento. Economize sua energia. Vai precisar dela mais tarde.
- Eu sei.
- Fui claro?
- Sim.
Como previsto, a expedição largou vinte de seus membros em Kalapathar,
encarregados de providenciar eventuais socorros, monitorar o tempo, cuidar dos
equipamentos de comunicação e do rastreamento por satélite, Os demais seguiram
em direção à catarata de gelo, escavando com cuidado degraus que podiam ruir a
qualquer momento. Não avançaram muito, porque os estrangeiros desejavam
aclimatar-se sem pressa. Montaram o acampamento no início da tarde, em altitude
inferior à máxima atingida durante o dia, para evitar enjôos e dores de cabeça.
Phurbu agiu conforme as recomendações. Entretanto, na manhã seguinte,
diante do vale entre o Lhotsê e o Sagarmatha, percebeu que o tempo ia mudar. Se
não apertassem o passo, a expedição estaria comprometida. Sentiu-se na
obrigação de alertar Lakpa. Correu até ele. De repente, veio o mal-estar, o principio
de tonteira e a náusea. Em seguida, o vomito e a ameaça de desmaio. Pediu
socorro.
Lakpa examinou, sorriu chamou o médico e, diante do diagnóstico agnóstico, mandou
Dawa descer com o amigo até um nível onde o aumento da pressão atmosférica o
recuperasse. Enquanto se providenciava a remoção, falou ríspido:
- Fim da linha para você, rapaz. Não foi por falta de aviso. Nunca vi tanta imaturidade.
Que isso sirva de lição para o futuro.
- Eu só queria avisar sobre a mudança do tempo. Olha o sudeste.
- Sei disso desde ontem, os satélites avisaram. Todos já sabiam. E daí? Não temos asas.
Não quero assumir os perigos de uma marcha acelerada. Você viu o que pode acontecer. A
vida vale mais que tudo.
- Desculpa, Lakpa.
- Assim que melhorar, desça à base.
- Por favor, me deixe ficar. Já estou bem.
- Não discuta, desça à base e não faça mais besteiras. Suma da minha frente.
Phurbu amargou risadas dos companheiros ao desfilar trilha abaixo às costas de Dawa,
amarrado numa cadeira de lona. O fiasco renderia assunto por muito tempo no vilarejo: o
filho de Pasang Sherpa voltou carregado. Imaginou o sarcasmo de Pemba nos meses
seguintes. Sobretudo, teve raiva de si mesmo. Por que desrespeitara as regras? Por que
tentara bancar o herói?
Logo depois de passar pelo último membro da expedição, pediu:
- Me põe no chão, Dawa.
- Você está bem?
- Ninguém está bem quando sente tanta vergonha e raiva.
- Ah, você está ótimo. Pode descer.
- E você pode subir. Volto sozinho.
Ao atravessar a região entre o Lhotsê e o Sagarmatha, Phurbu não enxergou
magia alguma nas montanhas. Viu apenas rochas pontudas cobertas de branco.
Remoeu sua frustração. Não notou as nuvens que invadiram o vale vindas de
Namche, nem sequer a queda da temperatura. Só não pôde ignorar o vento que
soprou forte. Mesmo encolhido, quase foi arrastado. Teve de correr. Mal conseguiu
abrir os olhos. Começou a escurecer. Passar a noite ao relento talvez significasse a
morte. Estremeceu. Pôs o fracasso de lado, ocupou-se de um único objetivo:
alcançar a base.
Chegou a tempo de ajudar na remontagem de duas barracas
arrancadas por um torvelinho cujo rastro havia destruído a central
de rádio.
Phurbu não evitou uma ponta de satisfação quando, depois
de uma semana de tempestades e ventos de quase duzentos quilómetros por hora,
a expedição foi cancelada.
No retorno, próximo a Tengbochê, o céu se abriu, fez calor,
e o Sagarmatha pareceu zombar de seus ex-desafiadores. Os europeus
lamentaram a sorte, mas prometeram nova tentativa tão logo arranjassem
patrocinadores.
6.Contradições

Como transportava os utensílios da cozinha, a última parte do acampamento a
ser desmontada, Phurbu chegou à vila quando todos já sabiam do seu quase
desmaio e punição. Pemba recebeu o rapaz com ironia:
- Salve o nosso heróico corredor das alturas!
- Por favor, tio.
- Andam falando que você passou mal porque encontrou um legítimo
Gigantopithecus nepalensis e...
Por favor, tio, eu só...
... morreu de medo, desistiu da escalada e desceu de cadeirinha. Não é
verdade?
- Por que me trata assim?
- Porque desejo que você cresça, Phurbu, que você deixe de lado as fantasias
de criança e se apegue à realidade. Só isso.
- Eu prefiro fazer minhas próprias escolhas.
- Não há escolha fora do fato, meu jovem.
- Então, por favor, não transforme o fato em fantasia.
- Você está igualzinho a seu pai, sem tirar nem pôr. Um caso perdido.
- Quem herda não rouba. Melhor assim. Me deixe em paz, por favor.
- Você encontrará a paz assim que descer das nuvens. Os homens vivem na
terra.
- Ótimo. Quero fazer isso sozinho.
- Nunca despreze a experiência alheia. Não tente descobrir
- Quero descobrir apenas meu próprio caminho.
- Ah, o próprio caminho... Isso é bom, meu jovem, muito bom. Se precisar,
estarei sempre por aqui, pronto para ajudar.
- Não creio que tanta crítica possa ajudar alguém.
Pemba refletiu por um momento.
- Talvez você tenha razão, Phurbu. Vou mudar o tratamento que lhe dou. Vou
tentar segurar minha língua.
- Melhor assim. Talvez a gente consiga se entender depois.
- Enquanto tento, gostaria que você se esforçasse para mudar minha opinião.
- De que jeito?
- Trazendo-me um yéti. Basta um. Unzinho só.
Phurbu começou a rir.
- Tio, você também é um caso perdido.
- Talvez, talvez... Diria que estou perdido no bom caminho, com os pés no
chão.
- Ainda hei de pegar um yéti.
- Se fizer isso, sairei por aí, com a maior alegria, fantasiado de Gigantopithecus
nepalensis, de braço dado com o verdadeiro. Combinado?
- A proposta foi sua.
- Ora, quanta pretensão de sua parte, Phurbu...
Djulê e Namastê entraram em casa. A adolescente segurava um fóssil parecido
com um caracol. Ficou mais interessada em exibi-lo que em cumprimentar o irmão.
- Olha, Phurbu, o presente que o tio Pemba me deu. Um amonitídeo. Veio do
Tíbete. Esse bicho viveu quando não existiam nem o Himalaia nem os homens.
- Muito menos as fantasias dos homens - cutucou Pemba.
- Vamos embora, Namastê. Daqui a pouco, o tio vai dizer que a gente também
é fantasia.
Durante a colheita da batata, toda vez que encarava a cordilheira, Phurbu remoía o seu
fiasco. A precipitação lhe custara o emprego e a chance de ir mais alto. Lakpa e Pemba
estavam certos: apesar do corpo de adulto, era ainda imaturo. O sucesso no arado não
significava total preparo para a vida. Prometeu emendar-se, jamais correr perigos
desnecessários. Achou as decisões penosas, porém inadiáveis. Custariam o herói que morava
em seu futuro, mas ninguém permanece criança para sempre. Precisava crescer com
urgência, cercar-se de realidade por todos os lados. A maturidade conhecia bem as demandas
da sobrevivência.
No auge do raciocínio, Phurbu lembrou-se do pai, de Norgay Tensing, de
Edmund Hillary, de Mallory - cuja famosa justificativa de subir às montanhas
"porque elas estão lá" era citada por nove entre dez visitantes de Khumbu -,
lembrou-se mesmo de Lakpa e de tanta gente que vive pulando de um pico a outro.
Comparou o comportamento deles com aquele incentivado por Pemba, caiu em
dúvida: Homens maduros desafiam o Sagarmatha?
Após a venda da produção de batatas, menor que a prevista devido a uma
geada fora de época, Phurbu ocupou-se com melhoramentos em casa. Eliminou
goteiras, tapou frestas, construiu uma fossa no quintal. Comprou botas de couro em
Nainche, pouco duráveis em relação às fabricadas pelos velhos sherpas. O solado
descolou-se após algumas caminhadas; recuperou-o com pregos que lhe feriram
um dos pés. A conselho de um turista, desistiu do toca-fitas e passou a sonhar com
um aparelho de discos a laser. Ao descobrir o preço do modelo mais simples,
preferiu economizar o seu dinheiro. Achou fora de propósito trocar todo o lucro com
as batatas por um capricho sonoro.
Teve uma alegria no início das monções, ou melhor, duas: suas iaques pariram
fêmeas. Junto com Namastê, produziu ghee, trocado em Nainche por sal,
querosene, carne e arroz.
A partir de junho, os dias e noites nos vales transformara se em dilúvios. A chuva nunca
chegava ao fim. Pedras rolaram das encostas, enchentes carregaram moradias, criações e
gente.
As sanguessugas saíram das locas em busca de alimento. Poucas pessoas animaram-se a
enfrentar o clima. As trilhas ficaram quase desertas. Permanecendo a maior parte do tempo
acima das nuvens, Tengbochê passou ao largo das tragédias das regiões baixas. No vilarejo,
como rotina do verão, o azul diurno cedia lugar ao brilho das estrelas num céu quase sempre
aberto, andava-se em mangas de camisa, realizavam-se casamentos. Dois mundos diferentes
estavam separados por poucos quilômetros de distância.
No outono, sem perder seu jeito de executivo afobado, Lakpa Sherpa
reapareceu. Havia assumido tantos compromissos com as agências de turismo que
toda a mão-de-obra disponível em Khumbu seria insuficiente para satisfazê-los.
Começou a contratar até meninos. Phurbu candidatou aceito sem rodeios.
Estranhou a rapidez com que sua punição havia caído no esquecimento. Lakpa
tratou-o como um carregador exemplar, mas, ao entregar-lhe o maço de rúpias do
adiantamento, advertiu-o:
- Não seja imaturo dessa vez, rapaz. Não me cause problema. Siga as ordens,
só isso. Fui claro?
- Sim.
- Vou mandá-lo ao Kali Gandaki, uma trilha muito fácil, verdadeiro passeio, se
comparada a Kalapathar. Por favor, não tente bancar o herói.
- Aprendi a lição, Lakpa.
- Ótimo, ótimo. Se tiver aprendido mesmo, se se sair bem no Kali Gandaki,
tenho um convite especial para você.
- Para mim?
- Isso. Quero que me acompanhe ao Sagarinatha em janeiro.
- Janeiro, em pleno inverno?
- Exato. Selecionei um grupo pequeno. Só os melhores. Quinze suíços buscam
um desafio de verdade, uma prova de coragem, um empreendimento de muita
técnica.
- O Sagarmatha em janeiro é maluquice.
- Discordo. É apenas o prazer do risco elevado ao máximo, Phurbu.
- Estranho... você acabou de me pedir para ser maduro.
- Como assim?
- Você me puniu porque, do seu ponto de vista de adulto experiente, agi com
imaturidade, me arrisquei à toa. Você e esses suíços vão fazer o quê?
- Ora, é muito diferente. Os homens precisam ir cada vez mais longe, fazer
mais que as gerações anteriores. Precisamos superar nossos limites, Phurbu.
- Quando tentei superar os meus, você me mandou sumir da sua frente. Dois
pesos, duas medidas.
- Você está confundindo tudo. Seu risco foi inútil. Essa expedição seguirá um
planejamento rigoroso, que vem sendo feito há meses.
- Por acaso inventaram uma maneira de prever os ventos, as nevascas, as
avalanchas com bastante antecedência?
- Sem perigo não existe desafio, rapaz. A dificuldade nos faz mais fortes,
valoriza nossa vitória. Posso contar com você?
- Não, Lakpa. Estou fora.
- Pense bem. É uma oportunidade única.
- Vocês arriscam a vida.
- Por isso mesmo, os suíços pagam muito bem. O dobro, talvez o triplo do
normal. Acho que pode contar com o triplo.
- Então tudo virou uma questão de dinheiro e interesse? Segurança,
maturidade, vida...
- Não posso perder essa oportunidade, Phurbu. Muito menos você. Então, vem
ou não?
- Não.
- Sem Pasang, esse dinheiro vai lhe fazer falta, aposto. Você já cresceu, logo
vai querer casar, precisa de economias.
- Os mortos não casam, Lakpa.
- E os covardes nunca alcançarão o Sagarmatha. Passarão a vida como guias
de velhinhos nas trilhas do Kali gandaki. É isso que você , Phurbu, filho do grande
Pasang?
- Não vou, Lakpa.
- Sua decisão me decepciona. Resolvi esquecer tudo que me fez para lhe oferecer esta
chance. Olhe a sua resposta: não. É assim que me agradece? Cresça, rapaz.
- Prefiro continuar imaturo, mas vivo.
- Muito bem. Não tenho tempo para essas discussões idiotas. Se mudar de
idéia, me procure. Tenho um lugar reservado para você.
- Você começou dizendo que eu precisava me sair bem no Kali Gandaki,
precisava cumprir todas as ordens, precisava ser maduro. Por que mudou de
opinião, Lakpa?
O guia não respondeu. Baixou a cabeça, pôs a mão esquerda sobre os olhos.
Um segundo depois, reagiu. Com o indicador em riste, falou irritado:
- Olhe aqui, garoto, vá para o Kali Gandaki e não me apronte besteira. Você
precisa crescer para entender a vida. Se eu cheguei onde estou, com certeza não
foi levando velhinhos para passear. Minha perícia custou riscos, muitos riscos.
- O S agarmatha em janeiro pode custar sua vida.
- Deixe de ser agourento, garoto.
- Estou encarando os fatos com maturidade, do jeito que você me pediu,
alertando como adulto sobre acontecimentos prováveis, nada mais.
- Cuide de sua vida que eu cuido da minha.
- Obrigado por mais esse conselho. Vou fazer isso.
- Vá embora antes que eu peça o meu dinheiro de volta.
Phurbu considerou a devolução do adiantamento. Ao mesmo tempo, não quis
perder a oportunidade de conhecer o outro lado do Nepal. A viagem pareceu-lhe
mais importante que o orgulho de jogar as rúpias sobre a mesa.
- Até a volta, Lakpa.
- Até, seu ingrato.


7 Namoro

Para chegar ao Kali Gandaki, Phurbu foi antes a Katmandu. Devido à
inexistência de estradas, tomou um avião em Nainche Bazar. Seu primeiro vôo lhe
trouxe mais medo que prazer. O monomotor alugado por Lakpa, cheio de gente e
carga, custou a decolar e quase raspou nos cumes dos arredores da vila. Durante o
trajeto, as asas pareciam não caber entre os paredões das gargantas. No pouso, o
rapaz teve certeza de que se espatifaria na pista. Receoso de deboches,
permaneceu calado, suando frio. Para seu consolo, enxergou também nos rostos
dos colegas o esgar de quem escapou da morte por pouco. Ninguém riu de
ninguém.

Sentiu-se realizado ao conhecer a capital do país. Era um de seus sonhos. Cidade antiga,
ponto de encontro de muitas civilizações, impressionou-se com o tamanho e os ornamentos
dos templos e palácios. Na Praça Durbar, adquiriu de um camelô um xale para Laxini em
tecido vermelho e transparente, com uma manada de elefantes bordada em fios de ouro.
Imaginou-se a entregá-lo, anteviu o sorriso de concordância com o namoro, seu coração ba-
teu mais forte apesar da distância. Laxini haveria de ser dele. Não existia moça mais bela
nem em Katmandu. Tinha os olhos amendoados, íris de jade escuro, pele de caramelo bem
batido, dentes com a alvura de um floco de neve. Bastou afastar-se um pouco para descobrir
que estava apaixonado. Se pudesse acompanhar o ímpeto do coração, voltaria de imediato.
Como a viagem apenas começava, arrumou-se um consolo: o melhor momento, aquele pelo
qual tanto se espera, seria o último, o de retorno. Os anteriores o preparariam. As novidades
que o aguardavam apenas ressaltariam o sabor do que mais gostava.
Em um ônibus digno de ferro-velho, seguiu rumo a Pokhara, no oeste, por uma
rodovia estreita e sem acostamento, onde, de vez em quando, surgiam ilhas de
asfalto. O vôo voltou-lhe à mente durante as curvas à beira de precipícios, sempre
que veículos vinham na outra mão. Ao cruzarem, por instantes seu olhar caía direto
da janela no abismo, como se as rodas flutuassem. O medo invadiu-o. Para evitar o
pânico, puxou conversa com Dawa, seu companheiro de banco.
- Bonita paisagem.
- É, Phurbu.
- Muita descida. É. Se o ônibus despencar, ninguém escapa. Vira essa boca pra
lá. Com medo, Dawa? Não. Bem... quer dizer, um pouco.
Só então Phurbu notou a firmeza com que o amigo se grudava ao apoio para os
braços: seus dedos estavam brancos. Sentiu - se aliviado. Não era o único que
padecia. Com o rosto de lado, deixou escapar um sorriso.
A primeira visão de Pokhara enfeitiçou-o. Os picos pareciam mais altos que os de
Khumbu. O Machaptichare, com seu rabo de peixe esculpido na rocha, não tinha rival em
beleza. O Annapurna ostentava majestade com uma coroa de nuvens rosadas. No Lago
Phewa, o Himalaia se refletia emoldurado por uma vegetação inconcebível em Tengbochê.
Fascinado pelo cenário, cogitou ficar ali para sempre. Mudou de ideia logo depois. Um senso
de obrigação com o destino o impeliu para sua terra. Lá ficava o Sagarmatha, e os yétis
preferiam as altitudes máximas. Lá morava Laxmi. Lá estava escrito seu futuro. Khumbu
era, sem dúvida, seu lugar.
O Rio Kali Gandaki corta a cordilheira no sentido norte sul, escavando a mais
profunda garganta do planeta, com cinco mil e quinhentos metros de desnível. Para
percorrer o vale, gastam-se em geral quinze dias de caminhada. Gente do mundo
inteiro aventura-se nesse passeio. Não existem estradas, apenas trilhas estreitas
por onde também circulam tropas de burros com dezenas de animais enfeitados,
tendo à frente a madrinha e seu cincerro barulhento.
Os turistas de Lakpa, europeus e canadenses, percorreram nos primeiros dias
plantações de arroz, sorgo e painço intercaladas por florestas de rododendros
cobertos de musgo, passaram à vegetação alpina nas altitudes médias e, depois de
atravessarem um semi deserto de coloração predominantemente marrom, atingiram
a região de neve eterna. Não economizaram elogios à paisagem.
Em Muktinath - seu objetivo final, a mais de quatro mil metros acima do nível do
mar - o gás inflamável que escapa da rocha justificou, há séculos, a construção de
um templo, ponto de peregrinação de muitos budistas. Aí aconteceu o único
incidente da viagem.
Sem que ninguém esperasse, o céu se fechou à tarde, durante a montagem do acampamento.
As nuvens descarregaram uma tempestade de gelo. A temperatura despencou. Ventos de
mais de cem quilómetros por hora arrancaram barracas, carregaram mochilas, destruíram a
cozinha, provocaram queimaduras nas peles mais sensíveis.
Devido a uma rajada mais violenta, cuja fúria retirou até mesmo das rochas a
impressão de solidez, um casal de franceses entrou em pânico e, às cegas, saiu
em debandada trilha abaixo. Phurbu alcançou-os a poucos passos de uma ponte
em ruínas e deu-lhes um esbarrão, derrubando-os antes que se acidentassem com
gravidade. Em seguida, conduziu-os a uma fenda na outra vertente, ao abrigo da
ventania, ofereceu palavras tranquilizadoras, controlou a situação.
Pela iniciativa, recebeu elogios do guia Taksar - um ex soldado gurkha do
exército britânico -, além de uma declaração pública de confiança:
- Você tem tudo para se tomar um grande montanhista, rapaz. Aposto em você.
Seu futuro é brilhante.
Phurbu sentiu-se redimido do fiasco no Sagarmatha. Pelo testemunho dos
conterrâneos, logo Tengboché tomaria conhecimento de sua bravura. Pensou em
Laxmi. Um herói e um xale com brocados dourados bastam para conquistar uma
sherpani? Esperava que sim. E se ela já gostasse de outro? Descartou essa possi-
bilidade. Achou-a sem propósito para alguém destinado a alcançar tanto sucesso
na vida.
Pela iniciativa, recebeu elogios do guia Taksar - um ex soldado gurkha do
exército britânico -, além de uma declaração pública de confiança:
- Você tem tudo para se tomar um grande montanhista, rapaz. Aposto em você.
Seu futuro é brilhante.
Phurbu sentiu-se redimido do fiasco no Sagarmatha. Pelo testemunho dos
conterrâneos, logo Tengboché tomaria conhecimento de sua bravura. Pensou em
Laxmi. Um herói e um xale com brocados dourados bastam para conquistar uma
sherpani? Esperava que sim. E se ela já gostasse de outro? Descartou essa possi-
bilidade. Achou-a sem propósito para alguém destinado a alcançar tanto sucesso
na vida.
Ao deitar-se, ocorreu-lhe ser outubro, mês do seu nascimento. Estava
completando dezessete anos. Não sabia a data certa, já que os sherpas não
comemoram os aniversários. Pelos critérios de seu povo, acabava de tomar-se
adulto. Não mais admitiria que o tachassem de imaturo. Exigiria até alguma
projeção na vila, em virtude das louvações de Taksar, um homem lendário em todo
o Nepal. Devolveria em dobro o sarcasmo de Pemba. Dedicaria o seu tempo livre a
Laxrni. Conquistaria um lugar de destaque no mundo.
No retorno de Muktinath, ao passar pela aldeia de Ghandrung, cedeu aos apelos de uma
mulher que usava muitos brincos nas orelhas e argolas de prata nas narinas e comprou dela
uma rede anunciada como ideal para a captura do Abominável Homem das Neves. Rendido
pela lábia da vendedora, adquiriu também uma faca gurkha antiga, com cabo em osso
trabalhado, que já teria sido usada em muitas guerras. Com tanta história no gume, pagou o
triplo de uma faca nova.
Tão logo fechou os negócios, seus companheiros começaram a rir.
Disseram-lhe que era mais inocente que uma criança. Apelidaram no "caçador de
yétis", transformaram-no em alvo preferido para brincadeiras. Phurbu ficou bravo,
perdeu a compostura, ameaçou brigar. Quanto mais se deixava aborrecer, mais, o
punham na berlinda. Passou a comer longe do grupo.
Durante as paradas para descanso, alguém sempre lhe apontava um yéti
escondido no meio da mata e sugeria a estreia da rede. Até os turistas, com sua
camaradagem nascida em quase duas semanas de convívio, aderiram à chacota.
Um italiano improvisou uma fantasia de macaco e, de madrugada, aprontou al-
gazarra no acampamento. Acordaram o rapaz e pediram-lhe para prender o animal.
Ele não se deu ao trabalho de levantar, porém não dormiu mais. Amanheceu
buscando razões para tanta descrença com relação aos yétis. Talvez não
existissem mesmo. Teria seu pai tido apenas uma visão? A pegada em sua casa
seria humana? Teria sido ele, na verdade, quem salvou Namastê?
Depois de muita reflexão, pressentiu que sua hora chegava, seu momento de
mostrar ao mundo a lenda tornada carne e osso. Resolveu aceitar o apelido jocoso.
Caía-lhe bem. Sim, ele era Phurbu, o "caçador de yétis". Com muita honra.
Defenderia vida afora a existência das mais raras criaturas da Terra, até mesmo se
nunca encontrasse uma. No seu coração e na sua mente, os yétis existiam, e isso
lhe bastava.
Ao contrário do que Phurbu temia, ao chegarem a Tengbochê, os
companheiros já se haviam esquecido de suas compras em Gliandrung e apenas
festejaram a ajuda dada por ele aos franceses em Muktinath. A proeza foi logo
aumentada pela falta de assunto durante o final do outono. Os mais imaginosos
espalharam nas aldeias vizinhas, com detalhes, como o conterrâneo havia salvo
centenas de estrangeiros, pondo em risco a propria vida. Um herói começou a
surgir.
A história perdeu o interesse em questão de dias: um grupo de ingleses
morrera no Cwm Ocidental, uma geleira bem próxima ao Sagarmatha. A má sorte
dos britânicos aposentou o feito do Kali Gandaki. A tragédia atraiu mais conversa
que a bravura.

Laxini aceitou o xale com um breve sorriso entre as covinhas. Encabulada,
agradeceu o presente, fez uma mesura com o corpo e despediu-se. Ao fechar a
porta, pela fresta, desferiu um beijo entre os dedos.
Phurbu voltou para casa com a mesma certeza de poder voar experimentada em
Kalapathar, embora não houvesse atmosfera rarefeita, tampouco fadiga. A leveza veio de
dentro da cabeça. Igualmente aos nionges budistas, que, segundo se diz, levitam mediante a
repetição ininterrupta de um mantra, ganhou o espaço a bordo de uma palavra mágica:
Laxmi. Pronunciou-a de todas as maneiras e entonações, até descobrir-lhe os segredos e
incorporá-Ia à sua intimidade.
Deu-lhe o primeiro beijo durante o festival de Mani Rímdu, num momento em que ela o
olhava com ternura. Nos dias seguintes, andou sem rumo. Sagarrnatha e yétis deixaram de
ser prioridades. Decidiu pedi-la em casamento no verão.
Namastê morreu de ciúmes. Arrumou brigas, recusou-se a fazer comida e ghee, ameaçou
mudar-se para a casa dos tios. Exigiu de Phurbu a reconfirmação da antiga promessa:
casar-se depois dela. Temia ficar sozinha. O irmão cedeu. Mesmo assim, vez por outra
testava-o para verificar se não tinha mudado de opinião.
Cessou o questionamento tão logo recebeu de Dawa, como presente, um fóssil raro, em
forma de cone pontudo, vindo da China. Daí em diante, tomou-se boa amiga de Laxmi.
8. Túmulo de gelo
Dezembro inverteu o humor de Phurbu. O mau tempo provocou-lhe a impressão de
uma freada brusca na vida. O mês transcorreu com o mesmo céu encoberto e a temperatura
em declínio. O horizonte desapareceu. Tengbochê foi engolida pela névoa.
Os raros momentos de alegria - os encontros com a namorada - passaram tão rápido
quanto o granizo em dia quente. O futuro, entrou em compasso de espera. Casamento,
Sagarmatha e Yétis pareceram-lhe um arco-íris nas nuvens: visível, porém longe demais.
Ficou desorientado. Vinha aumentando as atividades e os conhecimentos,
aprendendo línguas no contato com estrangeiros, ouvindo falar de novas terras.
Descobrira quão além do vilarejo o planeta se espichava: Katmandu sozinha
possuía várias culturas, as expedições revelavam diferentes costumes, viu fotos e
livros de países distantes e estranhos. Desenvolvera uma necessidade de urgência
na realização dos planos, bem como a certeza de alcançá-los de imediato.
De repente, a estagnação do inverno. Khumbu tornou-se nanica perto do que
poderia alcançar na capital. Questionou suas certezas. Afinal, o que ele perseguia
numa das regiões mais inóspitas da Terra? Um bicho que jamais perdia a aura de
lenda, mesmo depois de ele ter encontrado uma de suas pegadas; uma montanha
já visitada dezenas de vezes; uma mulher que, caso o aceitasse como
companheiro, poderia também mudar-se, assim como Namastê. Por que insistia em
permanecer naquele fim de mundo?
De tanto ruminar, Phurbu acabou dando razão a Pemba. Tinha herdado muito
do pai: o apetite pela fantasia, o agarramento a vagas possibilidades, o desapego a
tarefas objetivas. Estava passando da hora de pôr os pés no chão. No entanto, nem
bem se convencia a sair de Tengbochê, lembrava-se de novo do yéti, imaginava o
horizonte no topo do Sagarinatha, contabilizava fortuna e fama com a realização
desses sonhos e recaía na roda-viva.
Para fugir das dúvidas, começou a correr nos arredores de casa. Foi cada vez
mais longe, mais alto e mais depressa. Impôs-se metas, logo vencidas. Fez o
trajeto até Kalapathar em tempo recorde, recebido com ceticismo pelos amigos.
Para comemorar, escalou sozinho a catarata de gelo. Diante das recordações e do
perigo do local, resolveu voltar.
Após algumas semanas de muito exercício físico, sentiu-se recuperado. Uma
vez mais, decidiu ficar. Em Katmandu, ele seria anônimo; em Khumbu, era Phurbu,
filho de Pasang Sherpa. As corridas ajudaram-no a tomar a decisão. Quanto mais
se exigiu, maior o prazer experimentado pelo corpo, melhor o fluxo das idéias. O
cansaço trazia-lhe certezas e injetava em seu cérebro
uma dose de otimismo. A exaustão unia o mundo diretamente
aos seus sentidos, deixando-o eufórico. Dormia sem sonhos.
Nas trilhas, os poucos transeuntes, quase sempre turistas acompanhados de
guias, dividiram-se ao comentar-lhe a pressa. Uns o tacharam de louco, sujeito a
uma embolia súbita. Outros viram em sua dedicação a chave do sucesso dos
sherpas nas grandes escaladas.
Namastê reclamou das ausências: sobrava-lhe cada vez mais serviço, inclusive
a ordenha das iaques, tarefa que detestava. Não foi ouvida.
Em janeiro, vieram Lakpa e os suíços. Os montanhistas vestiam roupas
especialmente projetadas para o frio intenso, à prova de rasgões, impermeáveis,
leves e coloridas. Trouxeram equipamentos Modernos, alguns em plena estreia
introduzidos na expedição Por fabricantes que desejavam testá-los em condições
extremas de uso. Cada detalhe da programação fora previamente simulado nos
Alpes. Dois computadores Laptop controlavam todas as atividades, do cardápio à
cravação da bandeira suíça no cume do Sagarmatha.
Phurbu recebeu novo convite para a escalada, considerou as vantagens,
balançou, quase cedeu diante da promessa de ficar com as roupas como presente,
porém manteve a decisão anterior. Dawa acompanhou o grupo como carregador,
ganhando o quádruplo do usual.
Namastê achou absurda a recusa do irmão. Ficou resmungando após a partida
de Lakpa, até desabafar, durante um chá de meio de tarde:
Em vez de ficar correndo por aí à toa, você devia gastar sua força com coisa
útil. Aposto que o dinheiro desses estrangeiros ainda vai fazer falta para a gente.
- Eu sei muito bem o que quero.
- Sabe mesmo? - Namastê encheu a voz de sarcasmo.
- Minha vida vale mais. Nosso pai dizia que Chomolungma é muito geniosa e
Shiva vira uma fera quando irritado. Ninguém deve acordar os deuses no inverno.
- Nunca ouvi tanta bobagem junta. Com seus aparelhos, os homens dão conta
de qualquer mudança de gênio de Chomolungma com dias de antecedência.
Qualquer bocejo de Shiva os satélites enxergam na hora.
- Você fala como o tio Pemba. Igualzinho.
- Pois você também devia. Ele sabe muito. Não é atrasado, não acredita em
fantasias.
- Por que você não vai morar com ele, que é tão esperto?
- É isso que você quer?
Phurbu refletiu por um momento, controlou a raiva.
- Não, Namastê, não é isso que eu quero. Quero que fique. - Se eu for embora,
você pode casar logo com Laxrni.
- Eu lhe fiz uma promessa, vou manter. Além disso, tenho muitas coisas para
conquistar antes do casamento. Coisa útil, como você pediu.
- Caçar yétis é uma delas?
- Por que você gosta de ser difícil?
- Difícil é você, Phurbu. Difícil e egoísta. Só pensa nos seus interesses.
O rapaz saiu de casa batendo a porta. Correu pelo resto da tarde sob a neve
que caía em remoinhos de vento. Considerou a hipótese de alcançar Lakpa. Sem
carga, seria fácil. Voltou atrás. O que diriam dele, caso aceitasse o serviço que tanto
criticara? No mínimo, que não tinha opinião.

No jantar, Namastê serviu tsampa e carne de búfalo, preparados com muito sal,
do jeito que ele gostava. Foi a maneira que encontrou de encerrar a briga. O irmão
comeu e repetiu, até raspou a panela. Quando a digestão, o calor do fogo e o
cansaço o deixaram sonolento, ela selou a reconciliação:
- Desculpa, Phurbu.
- Está desculpada, Namastê.
- Fiquei brava à toa.
- É assim mesmo. Quando for adulta, vai me dar razão. Você ainda é uma
criança.
Não sou mais criança. É sim. Não sou.

- Olha aqui, cresça e apare...
Murros na porta interromperam a discussão. Dawa gritou:
- Abre depressa, Phurbu!
O amigo tinha os olhos saltados, a testa suada, o anoraque imundo. Custou a
falar, de tanta falta de fôlego. Engoliu as palavras junto com os grandes volumes de
ar que sugava. A voz saiu trêmula.
- A catarata de gelo desmoronou. Justo na hora da escalada. Dei muita sorte. Ainda não
tinha começado a subir.
- Morreu alguém?
Dawa emudeceu, cabisbaixo.
- Quantos?
- Os oito primeiros, Phurbu. Acho que não escaparam. Não vejo como. Estão
completamente soterrados.
- Lakpa?
- Também.
- A base já pediu socorro?
- Já, mas, por causa do mau tempo, os helicópteros só chegam amanhã cedo. Vim buscar
ajuda para ver se salvamos alguém.
- Se estão soterrados como disse, vai ser difícil, Dawa.
- Eu sei, mas temos que tentar. O pessoal da base e todos os turistas estão trabalhando
como podem. Por favor, leve as enxadas e pás que tiver. Precisamos apostar na sorte. Vou a
Tengbochê chamar todo o mundo.
- Eu já estou saindo. Conte comigo.
Ao despedir-se do irmão, Namastê abraçou-o:
- Desculpa de novo. Por favor, me desculpa.
Não obteve resposta.
Phurbu andou com dificuldade pela trilha. Depois de uma tarde de muito
exercício, o peso das ferramentas às costas pareceu-lhe multiplicado. Havia ainda
o incomodo da neve e do vento. Para complicar a situação, as pilhas de sua
lanterna estavam fracas. Valeu-se do instinto e da memória para prosseguir. De vez
em quando, nos descampados, uma ténue claridade trazida pelas nuvens
ajudava-o a orientar-se.
De repente, numa ponta de geleira, um barulho de pedras rolando pela encosta
lateral deixou-o em alerta. Virou-se à direita, percebeu movimentos. O medo
ofereceu-lhe uma explicação imediata: "É um iaque".
Examinou de novo a sombra, distinguiu sua fórma contra o fundo
esbranquiçado.
"Iaques não ficam de pé, não têm a altura de dois homens, não possuem braços e mãos.
É um yéti!"
Suas pernas bambearam, a pele inteira encrespou, o suor brotou, quis correr,
não conseguiu. Imobilizado pelo pavor, aguardou um ataque que não aconteceu.
Com movimentos vagarosos, pegou a lanterna. Ao acendê-la, o animal já havia
desaparecido. Criou coragem, deu alguns passos, agachou-se, apalpou o chão. Lá
estavam elas, as pegadas, muitas, fresquinhas, profundas, com os polegares bem
afastados dos outros dedos. Os flocos de neve começavam a cobri-las. Assim o
animal se protegia: apenas se aproximava das regiões habitadas quando nevava.
"Esperto, muito esperto", raciocinou Phurbu.
Com cuidado, vasculhou as redondezas. Nada viu. Pela direção do rastro, o
bicho havia subido a encosta. O rapaz descartou o ímpeto de segui-lo. Achou a
escuridão perigosa. Preferiu socorrer os acidentados. Entretanto, num arroubo,
gritou:
- Eu sou Phurbu Sherpa, caçador de yétis! Apareça, Abominável Homem das
Neves!
Um longo assobio chegou em resposta; depois outro, mais distante.
Com uma mistura de temor e contentamento, pôs-se em marcha. Dobrou a
atenção. Deslizou a mão sobre o cabo da faca gurkha, pronto para a defesa, uma
precaução desnecessária. Nenhum vulto apareceu até Kalapathar.

Um simples exame do volume despencado sobre a expedição levaria qualquer
um a concluir pela inexistência de sobreviventes. Mais de cem metros da catarata
de gelo e pedra formavam um túmulo ovalado no chão. Outros duzentos
sustentavam-se em equilíbrio precário, rangendo e estalando, tal qual uma língua
projetada à boca da geleira que salivasse ante a possibilidade de engolir mais
gente. Holofotes emprestavam um aspecto fantasmagórico à ameaça em seu
desafio à gravidade.
Com lanternas entre os dentes ou sob um dos braços, várias pessoas escavavam.
Pareciam formigas a remover, de grão em grão, um saco de açúcar espalhado pelo solo.
Apesar de toda a dedicação, não dispunham de tempo para completar a tarefa. O
desmoronamento era iminente.
Afastado, um suíço seguia os trabalhos e falava ao rádio. Quatro mulheres
controlavam os holofotes. Às vezes, alguém berrava o nome dos desaparecidos,
dizia frases em alemão, aguardava resposta. Diante do silêncio, insistia. Um
homem de barba grisalha parou de cavar e desaconselhou os gritos: as vibrações
sonoras poderiam precipitar o desastre.
Em meio à busca caótica, sem pista alguma para localizar os corpos, um turista
julgou ouvir um pedido de socorro no interior de um desvão. Sem perda de tempo,
todas as ferramentas se concentraram no local. A boa vontade serviu apenas para
arranhar as toneladas de gelo. Uma voz rouca comentou, em inglês, que o
sobrevivente devia estar preso em alguma fenda, cercado por um bolsão de ar. Em
sherpa, alguém tachou de inútil a esperança. O homem de barba grisalha, que
antes havia recriminado os gritos, se contradisse e começou a gritar "Schneller,
schneller!" (Mais rápido, mais rápido!
Um estalido mais forte soou. Vários alertas foram dados na babel de línguas
que procurava sobreviventes. Phurbu largou a pá e saiu em disparada. Bem às
suas costas, outra porção da catarata começava a ruir.
A geleira emitiu um estrépito de relâmpago quando estraçalha uma árvore. Em
seguida, tal qual uma gigantesca garganta irritada, pigarreou com estrondo. Num
último alento, suas bordas rangeram feito lâminas de patins em lago congelado.
Sob a luz dos holofotes do Acampamento da Base, o desmoronamento
lembrou uma enorme estalactite a precipitar-se da abóbada da noite, a princípio em
câmara lenta, depois em queda livre. Explodiu no solo, estremecendo os arredores.
O ar deslocou-se com violência pelos desfiladeiros. Pedras e pedaços de gelo
espirraram para todos os lados. Avalanchas escorreram das encostas do Nuptsê.
Phurbu escapou por pouco. Sentiu nos calcanhares o vento dos estilhaços.
Dois turistas não tiveram a mesma sorte. Desapareceram sob o dilúvio de gelo.
Ao amanhecer, as escavações foram reiniciadas, mais por dever humanitário
que por recomendação da lógica.
Um dos suíços, com um braço apoiado no cabo da pá, comentou em inglês com Phurbu,
embora parecesse conversar sozinho:
- Coitados. Quando forem resgatados, se é que isso vai acontecer, nesse dia
provavelmente todos nós estaremos velhos, enquanto os infelizes terão mantido a
fisionomia da juventude. O gelo os conservará.
O rapaz concordou com um aceno de cabeça, sem compreender o significado
de todas as palavras. Refletiu por um momento, falou em sherpa:
Agora eu sei o que tio Pemba quer dizer com alegria de viver.
- O quê?
- A morte reacende o prazer da vida - balbuciou Phurbu, em inglês.
Uma frase interessante, mas trágica. Não precisamos ir tão longe para gostar
de viver.
- Ontem, eu nasci outra vez.
- Eu também. Longa vida para nós. Se eu não tivesse torcido o pé, ontem, a
esta hora, estaria congelado - o suíço gesticulou bastante para explicar-se.
- Muita sorte sua.
- Mais do que imagina. Que dia foi ontem?
- Dezenove de janeiro.
- Então, feliz novo aniversário para nós.
Trocaram um aperto de mão e um sorriso pela metade, enquanto olhavam para
a sepultura aos pés do Sagarmatha.

9 A caçada

Em Virtude da iminência de novos desabamentos, o resgate dos cadáveres
acabou adiado para o verão, embora a Cruz Vermelha acreditasse que apenas com
O recuo da geleira, em um ano de calor excepcional, o serviço pudesse ser
realizado. Segundo os mais céticos, isso levaria décadas para acontecer.
Em memória dos mortos, um pequeno chorten - monumen~ to religioso em
pedra - foi erguido no local. Em cada faces de sua base quadrada, gravou-se "Om
como pede a tradição.
O acidente em nada alterou o afluxo de turistas e expedições a Khumbu. Os
habitantes de Tengbochê chegaram a ficar preocupados com o desemprego,
devido à perda de Lakpa, mas logo vários agentes de viagens de Katniandu
apareceram e contrataram para a primavera todos os interessados em trabalhar.
Pagaram muito melhor. Os carregadores da vila descobriram quanto Lakpa os
explorava: repassava-lhes, no máximo, um décimo do que recebia. O benfeitor virou
bandido. Sua mesquinharia estremeceu todas as conversas.
Phurbu enfrentou o resto do inverno absorto, em parte, pela ordenha das iaques e o
preparo do ghee. Enfadonhas, porém de execução automática, essas tarefas
permitiram-lhe uma vez mais refazer planos. Reduziu a freqüência das corridas por
causa das fortes nevascas, um fenômeno incomum em fevereiro. No entanto,
sempre que Namastê aceitava urna sobrecarga nos afazeres domésticos e o tempo
se abria, escapava até Kalapathar. No caminho, prestava atenção ao local onde o
yéti lhe aparecera, na vã esperança de um reencontro. Mais à frente, diante da
corcova deixada pela queda da catarata de gelo, recordava os perigos das es-
caladas. Conhecia-os desde a infância, tinha sido testemunha de sua voracidade. A
paixão pela montanha sobrepunha-se, contudo, aos riscos. Jamais se aventuraria
com a imprudência de Lakpa; porem seu pai, sempre cuidadoso, morrera durante
um simples jantar. Os exemplos das vidas alheias não lhe apontavam uma tra-
jetória longa e segura. Na verdade, ele dependia das próprias iniciativas.
De raciocínio em raciocínio, começou a desconfiar do destino, dessa ideia de impotência
diante do futuro. Fez comparações. Pasang, além de ter alcançado um número maior de
picos, viveu mais que Lakpa. Com quase toda a certeza, tinha tomado melhores decisões.
Um dia, no final de fevereiro, Phurbu acordou com barulhos no estábulo: os
animais mugiam e escoiceavam como se ameaçados. Levantou-se tão depressa
que saiu descalço ao relento. nevava fino. No lusco-fusco da manhã, deparou com
o vulto enorme de um yétí em fuga com uma das pequenas iaques às costas.
Surpreso, não soube o que fazer. Limitou-se a acompanhar, com os olhos, o
ladrão e seus passos desajeitados na trilha para Kalapathar. Um segundo depois,
veio a raiva. Entrou em casa, vestiu o anoraque, pegou a rede e a faca compradas
em Ghandrung, pôs as botas. Namastê não entendeu o motivo da agitação.
- O que você está aprontando tão cedo, Phurbu?
- Chegou a minha hora.
- Como assim?
- Minha hora chegou. Só isso.
- Explica direito.
- Depois.
Partiu sem olhar para trás, começou a correr. Ficou dividido, em busca do mais
importante: recuperar a criação ou capturar o yéti? Estranhou a dúvida, ele que
vivera aguardando por aquele momento. Tinha medo, admitiu, medo da realidade.
Enquanto caçava com a mente, o sucesso sempre acontecia. Agora, virara vítima
da caça. Temeu a derrota na luta contra a besta selvagem, considerou até a
hipótese de morrer no embate.
Por prudência, trocou o desejo de fama pela segurança. Diminuiu o ritmo da
corrida, achou melhor abandonar a iaque à própria sorte. Reagiu logo após. Aquela
era uma ocasião única, não podia desperdiçá-la. Acelerou o passo novamente.
Pôs-se a gritar, primeiro nos miolos, depois com leve movimento dos lábios, por fim
para o vale inteiro:
- Eu sou Phurbu Sherpa, caçador de yétis!
Sentiu-se melhor. Através da garganta, cuspiu longe as armadilhas da razão.
Acreditou-se preparado para tudo. Se necessário, seria mais selvagem que o
animal que perseguia. Se exigido, mostraria a força adquirida numa vida árdua e de
exercícios constantes. Quando se imaginava capaz de derrotar um batalhão de
yétis, tropeçou numa pedra e caiu. Retomou a trilha em silêncio.
Rastreou as pegadas com mais de trinta centímetros de comprimento e quinze
de largura sem dificuldade. Recém impressas na neve, denunciaram a rota de fuga.
Sumiram de repente à margem do Ribeirão Imja Khola. Deduziu que ressurgiriam
na escarpa lateral. De fato, ao examinar o paredão, notou marcas de unhas tão
profundas que as julgou feitas de propósito. Descartou a ideia. Com muito maior
probabilidade, haviam resultado de um escorregão.
Encosta acima, valeu-se da perícia para encontrar o rastro. Se o perdia, andava em
Círculo ao redor do último Sinal. Recuperada a pista, tratava de ganhar tempo, apressando a
marcha e assumindo riscos.
Ao saltar sobre uma fenda, o pé de apoio escorregou e, caso não se jogasse ao
chão, teria despencado no vazio. O acidente deixou-lhe as pernas trêmulas por
alguns minutos, além de lhe causar um ferimento no rosto.
Passado o susto, a raiva retornou. Havia sido derrotado antes da luta. Decidiu
esforçar-se ainda mais para alcançar o ladrão. Por sorte, divisou-o contra o céu ao
dobrar a crista e, minutos depois, perseguiu-o rumo a um conjunto de rochas
negras espalhadas em disposição de labirinto - uma série de dolmens monolíticos
erguidos pelo capricho da natureza.
"É ali a sua toca", concluiu.
Matreiro, o yéti atravessou as pedras e continuou em frente, procurando
despístá-lo. Cometeu um erro, no entanto. Ao subir a primeira vertente do Monte
Lobujya, provocou um desmoronamento. Atraído pelo ruído similar ao de uma
avalancha, Phurbu, avistou-o quando tentava escapar da borda de uma geleira que
se desintegrava a seus pés. Ao vê-lo safar-se sem perder a presa, consolou-se:
"Não caiu, mas ficou, decerto, com as pernas mais bambas que as minhas."
Meia hora mais tarde, entrou num desfiladeiro ao lado de um penhasco.
Estreito, coberto em parte por matacões derrubados durante algum cataclisma,
formava um abrigo natural. À direita, na encosta, reentrâncias produziam pequenas
grutas. Do outro lado, já na saída, havia ossos espalhados pelo solo. De toda a par-
te, vinha a incomoda impressão de ter companhia.
"É aqui. Desta vez, não erro."
O rapaz estendeu a rede, girou-a para desembaraçá-la, abriu o fecho da faca
gurkha. A cada passo, estudou os arredores com a respiração suspensa, atento a
barulhos e movimentos. Não notou outras presenças.
Quando começava a pensar em rebate falso, ouviu o urro, um som grave, gutural,
obra-prima da arte de assustar. As paredes tremeram. O eco multiplicou o tamanho da
ameaça.
O yéti saiu da toca com a boca escancarada, braços erguidos, mãos abertas, dedos
crispados. Maior que todo e qualquer ser humano, possuía focinho de macaco, cabeça afilada
no alto como a de um gorila, dentes protuberantes, pêlo cinza amarronzado formando
grandes tufos nos ombros, membros compridos. Era fêmea. Tinha as mamas salientes e
caídas.

Phurbu recuou por reflexo, enquanto, sugeria fugir. Vencido o impacto, um
solavanco mandou-o avançar. O sangue ferveu, engrossando nas artérias. A pele
esquentou, expelindo suor. O raciocínio emergiu lúcido. Havia sido roubado. O
dinheiro que ganhara de Lakpa e investira nas iaques, bem como os lucros futuros,
perigavam. Carecia recuperar a criação. Era uma questão de sobrevivência. Ou ele
ou a besta. Que fosse ele.
Num acesso de valentia, pôs a rede em posição de lançamento, sacou a
faca.
Dois pequenos yétis saíram correndo de trás de unia pedra, pararam no meio do
desfiladeiro, estarrecidos. A mãe calou-se, atônita, dividida entre a prole e o agressor. Ficou
a observar a reação de ambos.
Phurbu exultou. Trocaria sua iaque por qualquer dos macaquinhos de pelagem
branca em muda para o cinza amarronzado. Se necessário, entregaria seu rebanho
inteiro. Decidiu separar, encurralar e prender um dos filhotes, enquanto se protegia
de um ataque mantendo a lâmina reluzente bem à mostra.
Para executar a manobra, acompanhou todos os gestos da fêmea. Foi obrigado
a encará-la de frente. Ao dar com seus olhos, estremeceu. Reconheceu-os.
Numa combinação de vigília e sonho, retomou à madrugada da morte dos pais,
a um vago instante de consciência sob o luar em que sentira uma pressão nos
pulsos, durante o arrasto para fora da casa destruída. Por medo, defesa ou
debilidade, não reteve com clareza a fisionomia do salvador. Agora ele sabia.
Namastê errara. Não fora um, mas uma yéti que os retirara dos escombros. Não
existia no mundo outro olhar tão semelhante.
Phurbu viu sua coragem encolher. Junto, a vontade de capturar o filhote. Uma
lição aprendida desde a infância - o amor dos sherpas por todos os seres vivos -
veio à tona. Não podia punir a benfeitora, destruindo sua família. Por experiência
própria, ele conhecia o significado de uma separação brusca. Por outro lado,
sempre sonhara em comprovar a existência daqueles animais, inclusive para livrar
o pai da imagem fantasiosa que lhe imputavam. Havia ainda fama e prestígio em
jogo. Por fim, em desafio contra a descrença geral, aceitara o apelido jocoso
"caçador de yétis", ao qual queria fazer jus.
Os pensamentos lhe ocorreram em tempo tão curto, que se fundiram e viraram
parte de um todo inseparável. Em conflito, abaixou a rede, guardou a faca,
preparou-se para partir. Encontraria outros yétis no futuro.
A fêmea percebeu a mudança de intenção, recompôs-se e avançou para o ataque. Urrando
sem parar, investiu contra o rapaz, arrancou-lhe a rede num safanão, ergueu-se na ponta dos
pés, exibiu todo o seu tamanho e destemor, preparou o golpe final.
Phurbu recuou depressa, descobriu tarde demais que se desequilibrava. Pisou
no vazio e mergulhou no espaço. Durante longo segundo da queda, uma lembrança
inesperada ocupou sua' mente: em momento algum tinha ouvido o assobio
característico dos yétis. Repreendeu-se:
"Que coisa mais idiota para se pensar numa hora dessas."
Aterrissou em cima de um monte de neve. Afundou até bati com as costas no
solo. Permaneceu desmaiado por horas.
Ao acordar, não pôde articular a voz. Emitiu grunhidos semelhantes aos de um
porco, pronunciou o próprio nome até sons voltarem à normalidade. Como
motivação extra, fez o m, mo com o de Laxmi. Tentou mover-se. A coluna vertebral
bacia doeram. O capuz do anoraque estava cheio de neve. Á gelada escorreu no
interior de sua roupa. A confusão mental atordoou, o pânico ameaçou retornar.
Abriu os braços, deixo ficar bem relaxado. Acompanhou o vôo de um abutre que
ossos que circulava sem bater as asas. Sentiu-se leve.
Assim que a ave desapareceu, pôs as ideias em ordem, depois o corpo.
Resolveu galgar a parede do desfiladeiro, única saída fosso onde tombara. Mexeu
o pescoço, o tronco, as pernas. A da dor, nada parecia quebrado. Tão logo se
reaquecesse, esqueceria o incômodos. Já havia enfrentado esse tipo de acidente.
Ergueu-se limpou-se, iniciou a subida com dificuldade. Ao alcançar temeu um
reencontro com o animal. Pé ante pé, entrou na toca.
A yéti havia abandonado o local, levando as crias. para trás restos de sua
presa: manchas de sangue, ossos, r de couro e vísceras, o rabo. A um canto, jogou
a rede esti da. As pegadas se dirigiam ao Pico Kang Chung.
Phurbu encheu-se de um bem-estar súbito. Achou e Tudo dera errado. De onde
provinha aquela alegria capa plantar um sorriso prolongado no rosto e no cérebro,
do só lhe acontecera uma vez, aos seis anos, quando achou i de gralha com dois
filhotes empenujados? Buscou explicações.
Pensou no alívio de sua situação difícil - a luta desigual e o drible na morte -, orgulhou-
se da coragem demonstrada durante o confronto, lembrou a solução conseguida para um
longo mistério, teceu considerações sobre a necessidade de garantir a sobrevivência de sua
salvadora, nenhuma justificativa o convenceu. Talvez a felicidade repentina resultasse um
pouco de tudo. Raciocinou em outra direção. Quantos homens haviam enfrentado uma yéti
com crias novas, portanto no auge da ferocidade? Apenas ele, com certeza. Era essa a
explicação. Tinha o que contar para os filhos.
As elucubrações não o livraram da fome. Estava em jejum. Lançou longe os
pedaços da rede, tomou o rumo de casa. No caminho, descobriu que assobiava. O
refrão da velha música sherpa reproduzia o silvo agudo do yéti que ouvira perto de
Kalapathar. A letra celebrava os laços entre todos os seres, numa eterna cor rente
de transformações. Era a preferida das mulheres na prima vera, durante a
semeadura. Sem dúvida, o autor anônimo tinha vivido uma experiência idêntica à
sua. A canção traduzia em notas e versos um encontro mágico com a vida.
Ao se aproximar de Tengbochê, cogitou uma visita a Pemba para contar-lhe a
aventura. Desistiu. Não trouxera um único elemento concreto da existência da yéti.
Arranhões nada provavam. Tudo o que contasse acabaria tachado de fantasia. Seu
tio, em seu apego à lógica e à realidade, não hesitaria em atribuir o sumiço da
iaque a uma incursão fulminante do leopardo-das-neves, um felino arredio que
ataca os estábulos durante os invernos rigorosos. Mais uma vez, os yétis
escapavam da revelação. De novo, permaneciam lenda.
Namastê recebeu o irmão preocupada, sem esconder uma ponta de irritação.
Falou com os braços cruzados:
- Onde esteve, Phurbu? Sumiu o dia inteiro.
- Fui para os lados do Lobujya.
- Saiu sem falar nada. Podia pelo menos ter avisado que ia demorar. Onde se
machucou?
- Caí.
- Caiu... Só isso, sem mais nem menos? Você anda cada vez mais egoísta,
Phurbu. Só pensa em você.
- Você acha?
- Acho sim. Fiquei o dia inteiro morrendo de medo, medo de que o tigre o
encontrasse.
- Que tigre?
- Você ainda não sabe, mas uma das nossas crias de iaque sumiu. Quando
levantei, procurei por todo o lado, não encontrei. Tio Pemba acha que um tigre a
pegou.
- Você acreditou?
- Claro. Nós até vimos o danado na montanha, fugindo depois da refeição à nossa custa.
É um bicho enorme. Você não teria escapado dele.
Phurbu deu uma risada.
- Namastê, se eu lhe dissesse que uma yéti roubou nossa iaque, você
acreditaria?
- Claro que não. Foi um tigre. Eu vi. Tio Pemba também viu.
- Pois a mesma yéti que nos salvou levou nossa iaque.
- Phurbu, vou ser franca. Você está delirando.
- Muito pelo contrário. Você e tio Pemba é que estão.
- Ah, essa foi boa. Conta outra.
- Repito: não existe tigre por aqui.
- Alguém mais, além de você, viu a tal yéti?
- Não.
- Então, mano, você perdeu. Dois contra um. O tigre ganhou. Vitória da
realidade sobre a fantasia.
Phurbu encarou a irmã, pensou em lhe mostrar todos os machucados, talvez até levá-la
ao desfiladeiro onde a cria fora sacrificada. De nada iria adiantar. Até mesmo a rede rasgada
não seria prova convincente. Quatro olhos imaginosos sobrepujavam dois realistas.
- Namastê, acabo de aprender que uma mentira com testemunha vale mais que
a verdade de um só.
- Você está me chamando de mentirosa?
- Eu também não estou mentindo. Mas viu sozinho.
Dawa, mais uma vez, pôs fim à discussão entre os irmãos. Acabava de chegar.
Ao ouvir as batidas na porta, Namastê arrumou apressada os cabelos, ajeitou a
roupa e foi encontrar o namorado. Recebeu de presente outro fóssil, colocou-o na
coleção que já enchia uma prateleira.
Phurbu comeu dal, bebeu um litro de leite e, embora procurasse ficar acordado,
não conseguiu. O cansaço não lhe permitiu sequer um sonho.


10. Visitas

Phurbu continuou, no dia seguinte, com a mesma alegria indefinível. O
sentimento não podia nascer apenas na luta contra uma fêmea recém parida,
mesmo porque tinha sido derrotado. De caçador passara a caça, não recuperara a
criação, quase perecera. Buscou outras explicações durante as tarefas de casa.
Prosseguiu mais tarde, enquanto corria.
Ao anoitecer, a caminho de uma visita a Laxmi, encontrou Pemba tirintando
de frio a estudar o céu com um grande mapa de constelações à mão. Por acaso, o
tio ajudou-o a clarear as idéias. Pela primeira vez admitiu:
- Talvez eu tenha de sair por aí fantasiado de macaco, conforme lhe prometi.
- Como assim?
- Vi umas pegadas misteriosas nas bandas de Kalapathar.
- Yéti?
- Por enquanto, direi apenas isto: há um bicho diferente nas redondezas ou
alguém anda aprontando uma brincadeira.
O rapaz fitou-o com uma expressão marota.
- É o tal tigre que vocês enxergaram na montanha. Namastê, me contou.
- Inventei essa desculpa para não preocupar sua irmã. Tigres não têm cinco
dedos, muito menos andam sobre duas patas.
- Tio, o que faria se encontrasse um yéti?
- Bem, evidentemente, em primeiro lugar, cumpriria meu dever com a ciência.
Chamaria os biólogos para examinar, descrever e classificar a nova espécie.
Precisamos, antes de tudo, conhecer seus hábitos, alimentação, território.
- E depois?
- Sem dúvida, alguns espécimes deverão ser capturados. Não poderemos
negar nossa maravilha para o mundo. Os zoológicos mais importantes irão querer
pelo menos um casal.
- Os yétis são raros, não haverá exemplares para todos os interessados.
- Você fala como se existissem de fato. Até agora, argumentei por hipótese,
mera hipótese. No máximo, com alguma desconfiança.
- Supondo que existam, com tanta gente à sua procura, eles logo estariam
extintos por aqui.
- Não tinha pensado nisso. Pode ser.
- Nesse caso, nosso yéti viraria lenda. De fato.
- Sim, por hipótese, mais uma vez.
- É por isso que eles não se expõem. A intuição os protege. Sabem que o
homem acaba sendo um perigo.
- Seu ponto de vista não deixa de ser interessante, Phurbu.
- Se neste inverno resolveram dar as caras, alguma coisa grave aconteceu. Deve
ter faltado alimento.
- Continue, continue. Aonde quer chegar?
- Se eles forem descobertos, estarão condenados.
- Dentro da sua lógica, talvez.
Talvez. não: tenho certeza - Prefiro a lenda do jeito que está a um verdadeiro
Gigantopithecus nepalensis empalhado ou no cativeiro. A lenda possui vôo próprio,
cresce, evolui, adquire detalhes e cores novas toda vez que é recontada. Um bicho
empalhado não passa de um prato para traças. Qualquer jaula, por mais ampla e
bem cuidada que seja, é um arremedo da natureza. Onde, no mundo, existe um
zoológico a seis, sete mil metros de altitude?
- Phurbu, estou estranhando você. O que mais sabe a respeito do yéti?
- Tenho certeza de que existe, só isso.
- Pois, de minha parte, preciso ver para crer. No momento, só desconfio.
- Sua hora vai chegar, tio.
- Sei dar tempo ao tempo, sei esperar. Se não for nesta encarnação, que seja numa
outra. Quem sabe um dia vou renascer yéti?
- Pelo menos, sua opinião já mudou muito.
- Será?
Pemba sorriu. O sobrinho acompanhou-o.
Uma semana depois, Phurbu acordou com um assobio agudo, seguido de agitação no
estábulo. Sem demora, pegou a faca e veio ao relento. Grandes flocos de neve caíam como
que seguros por pára-quedas invisíveis. Acabava de clarear. No fundo do quintal, viu a yéti e
seus dois rebentos. Um corte a ferira do ombro esquerdo ao seio direito. Perdera o ar
imponente. Os filhotes tinham emagrecido, seus olhos pareciam ocupar mais da metade da
cara. A pelagem escurecera.
De longe, Phurbu exibiu a faca, balançando o braço, na tentativa de afugentá-los. Os
visitantes não se mexeram. Continuaram com seu jeito de monge mendigando um prato de
arroz: falaram por meio do olhar.
O rapaz lembrou-se da irmã. Se Namastê os visse, um sério problema surgiria. Na certa,
ela quereria mudar-se. Ergueu o outro braço, agitou ambos. Malsucedido, bateu os pés,
ameaçou uma investida. Não os abalou. Gritou:
- Fora daqui! É para o bem de vocês. Sumam!
Os animais permaneceram estáticos, mantendo a expressão de pedintes. A
fêmea assobiou de novo e, quase ao mesmo tempo, emitiu um som dolorido, sem
agressividade, pouco mais que um arrulho. Pôs as crias à sua frente, deu um passo
para trás e, após uma breve hesitação, outro. Assentou-se sobre as patas, deixou
as mãos tombadas, recolheu o pescoço, encurvou-se. Ficou da altura de uma
criança.
O rapaz espantou-se com a atitude. Afinal, não havia muito, ele tentara
capturá-los e, no confronto, não percebera sinal algum de que pudessem ser
domesticados. Por que se arriscavam?
- Devem estar com fome - concluiu.
Entrou em casa sem provocar ruído, com cuidado pegou a jarra de leite e duas
tigelas. Ao sair, foi retido por Namastê.
- Quem você mandou embora?
- Umas crianças. Estavam mexendo no estábulo.
- Tão cedo?
- Crianças não têm hora para amolar.
- Por que pegou a jarra?
- Vou fazer a ordenha.
- Essa jarra está cheia, Phurbu.
- Vou beber tudo antes.
- Tudo?
- Estou faminto.
- E as tigelas?
- Vou lhe trazer leite fresquinho.
- Prefiro que me deixe dormir. Por favor, não me acorde de novo.
- Desculpa.
De propósito, Phurbu encheu as vasilhas bem à vista dos animais, em jorros
lentos e compridos. Nem bem as depositou no
chão, os filhotes começaram a aproximar-se, a princípio ressabiados, depois em franca
correria. Beberam com pressa, derramando boa parte.
O rapaz teve-os ao alcance das mãos. Pensou em prendê-los. Bastavam dois golpes nas
nucas indefesas. A captura, entretanto, jamais se equipararia àquele prazer de ter diante de si
um dos grandes segredos do mundo. Além do mais, ao se exporem a um ser humano, os
bichos tinham vencido o instinto, uma forte barreira natural. Haviam confiado nele.
Acreditaram na solidariedade. Phurbu Sherpajulgou, por fim, entender o motivo da estranha
alegria que vinha sentindo. O caçador de yétis, de uma maneira inesperada, tinha conseguido
seu intento. Fitou os animais com carinho. Assentou-se, saboreando a companhia.
Os filhotes secaram as tigelas, lamberam a neve ao redor, ergueram as
cabeças com expressão de quem pede mais. Após outra rodada, deram-se por
satisfeitos e caminharam para junto da mãe.
Com algum temor, Phurbu levou o resto do leite para a yéti. Ela vacilou em
aceitar a oferenda, porém acabou engolindo-a de um só fôlego, até a última gota.
Lançou um olhar agradecido, chamou as crias com um cicio entre os dentes e
partiu. Mal dera o primeiro passo, voltou-se, Assobiou num tom agudo, idêntico ao
que Phurbu ouvira em Kalapathar. Para produzir o som, ergueu-se nas pontas dos
pés, pôs o corpo ereto, apontou o focinho para o céu.
Nas madrugadas seguintes, o encontro se repetiu.
Namastê começou a implicar com o sumiço do leite. O irmão estava bebendo
mais do que cabia em qualquer estômago. Phurbu, antes que ela descobrisse a
verdade numa hora errada e se assustasse, resolveu mostrar-lhe os novos amigos.
Para ganhar a antiga aposta, convidou Pemba e Djulê para dormirem em sua
casa. Contou-lhes toda a história. O tio continuou na dúvida. Namastê e Djulê, ao
contrário, além de trancarem a porta à noite, calçaram-na com um banquinho.
Ao amanhecer, os três yétis vieram, mas estranharam o públíco extra, que não
escondeu o assombro. Phurbu fez um carinho nos filhotes, acalmou-os, eles
retribuíram com lambidas em seu braço.
Pemba não resistiu, aproximou-se. A yéti ficou agitada, grunhiu, mostrou os
dentes. O tio desistiu de um contato maior.
- Você tinha razão, Phurbu. Seu pai tinha razão. O Gigantopithecus nepalensis
existe mesmo. A fantasia é pura realidade.
- Eu sempre soube disso.
- Preferi encarar tudo com ironia. Aceite minhas desculpas.
- Você estava no seu papel, tio, agindo como sempre faz, um eterno descrente.
Sua atitude virou um desafio para mim. Por isso, insisti tanto na procura do yéti.
Não há nada para desculpar.
- Abusei da sua paciência, reconheço.
- Tio, eu estava certo. Para mim, é o que importa. Sua ironia já se perdeu no
tempo. Meu argumento venceu. Não existe situação mais confortável que a da
vitória, existe?
Pemba não respondeu. Adquirira um ar de estupefação.
- É inacreditável!
- Ver para crer, não é, tio?
- Estou vendo muito mais, Phurbu, muito mais. Examine bem os olhos desses
bichinhos.
- O que têm?
- Vamos, examine.
- Não vejo nada demais.
- Você está cego, Phurbu?
- Claro que não.
- Esses olhares são os de Pasang e Tassidelê, não enxerga? Os seus pais estão
reencarnados nessas criaturas. Por isso confiam tanto em você.
Ora, tio, deixe a fantasia de lado, segure-se à realidade. Os yétis apenas têm
fome, por isso se arriscaram a vir aqui.
Phurbu, acredite. Tenho certeza de que seus pais estão aí dentro. Eu os
vejo.
Por favor, tio, desça à terra.
A yéti pôs-se de pé, deu um urro mais forte, zangada, os filhotes correram até
ela. Como sempre, despediu-se com o assobio. Um pouco à frente, repetiu a
saudação. As crias tentaram imitá-la. Não produziram mais que um silvo.
Não nevou naquela manhã. As pegadas permaneceram intactas, prontas para
conduzir qualquer rastreador ao esconderijo do Lobujya ou do Kang Chung. Phurbu
pressentiu o perigo que representavam. Chamou os tios e a irmã.
Quero pedir duas coisas. A primeira: mantenham segredo sobre esse
encontro.
Ah, isso não -protestou Pemba. Sinto muito, mas vou contar para todo o
mundo o que vi hoje. Foi um momento histórico.
- Os yétis podem ser exterminados se fizer isso, tio. Nem todos respeitam os
animais.
- Tenho uma obrigação com a ciência.
- Perfeito. Proponho, então, um acordo. Espere até a primavera para contar aos
amigos e chamar os biólogos. Dê uma chance aos filhotes. O inverno tem sido
muito rigoroso. Eles precisam se fortalecer. Além disso, todos vimos que o
ferimento da mãe ainda não está curado.
A sugestão é bastante racional. Gostei. Há um outro aspecto muito
importante: não gostaria de ver Pasang e Tassidelê numa jaula. Eu aceito.
- Eu também - disse Namastê.
- De minha parte - propôs Djulê -, vou mais longe ainda. Além de aceitar, sugiro que
a gente cubra os rastros com neve. Eles estão por toda a parte.
- Esse era o meu segundo pedido.
- Então, mãos à obra - convocou Pemba. Temos serviço para a manhã inteira.
Nem bem iniciavam a tarefa, Phurbu concluiu que não teriam sucesso. As
pegadas eram muitas, algumas escapariam de suas vistas e, no dia seguinte, se
não nevasse e os yétis voltassem, outras seriam deixadas. O segredo logo
terminaria. Levou o tio até o estábulo.
- Você me deve uma aposta.
- Sou bom perdedor. Vou sair de macaco, não se preocupe, vou vestir a
fantasia.
- Tenho uma ideia melhor. Em vez de fantasia completa, quero que faça apenas
um calçado igual ao pé do yéti e deixe por aí o maior número possível de marcas.
Muita gente vai levar a realidade como brincadeira.
- Você fala sério?
- Não custa tentar. Topa?
- Feito.
Pemba começou a pagar a aposta de tardezinha. Logo foi flagrado na trilha
para Kalapathar. Dali a pouco, Tengbochê comentava que o conhecimento em
excesso o havia deixado maluco. Ele não ligou para as conversas. Sabia da
importância de sua ciência. Acintoso, desfilou com a indumentária completa pela
única rua do vilarejo. Apelidaram-no Pé Grande.

11. O TOPO DO MUNDO

As falsas pegadas não surtiram efeito. Pemba esqueceu-se de usar calçados pequenos, do
tamanho das patas dos filhotes, não houve como explicar as outras marcas. A atração pelos
yétis cresceu. Passaram a vê-los por toda Khumbu. Muitos partiram à sua caça. Voltaram
frustrados.
A fêmea e suas crias nunca mais apareceram.
Com o tempo, a lenda prevaleceu outra vez. O animal virou de novo história de avô para
impressionar os netos.
Phurbu só foi rever um yéti anos depois - na época, Laxini e Namastê estavam grávidas
do segundo filho -, durante uma missão ao topo do Sagarmatha, de onde um chileno
despencara no último assalto. Separado do grupo de resgate, Phurbu apreciava a solidão da
montanha, quando ouviu o assobio agudo. Virou-se para o lado, o yéti apontou-lhe a fenda
na qual o corpo jazia.
Encararam-se por instantes. Phurbu recordou-se daquele olhar, estranhamente familiar,
fez um gesto de agradecimento com a cabeça, tentou aproximar-se.
O yéti sumiu encosta acima.

SELEÇÕES DO DRÁCULA

DISCÍPULOS DO MAL

Copyright ¸ 1998 - L P B Edições


CAPÍTULO 1


Ao longe, recortadas contra o céu frio do final de outono, as ruínas
romanas eram atravessadas pelo vento, que arrancava uma sinistra
melodia dos velhos nichos, onde se dependuravam morcegos negros.

Ao pé da colina, na zona de acampamentos, um trailer era o único
elemento moderno a quebrar a harmonia antiga da região. Um rapaz
deixou o veiculo e espreguiçou-se, encolhendo-se a seguir, reclamando
do frio.

-- Sammy, eu faço o fogo e você vai buscar água -- gritou ele.

Uma voz preguiçosa ronronou lá dentro, antes que um vulto louro e
gracioso chegasse à porta e enlaçasse o rapaz pela cintura,
mordendo-lhe o lóbulo da orelha.

-- Por que não usamos o nosso a gás? -- indagou ela, esfregando-se
nele.

-- Porque nosso gás acabou. Vamos, não seja preguiçosa. eu vou apanhar
lenha e fazer um belo fogo. Você trate de ir o rio e apanhara água.
lembre-se depois de encher nosso reservatório.

-- Diabos, Bull! Você tinha de ser tão esquecido? Só falta deixar de
reabastecer o trailer agora -- disse ela, indo até o fundo do veiculo.

Bull a seguiu logo depois, vestindo uma blusa. Caminhou até o fim do
acampamento, olhando a cerca de tábuas pontiagudas. Algumas delas
seriam o bastante para um bom fogo, mas ele preferiu ultrapassá-la até
o bosque ressequido além.

Suas pisadas sobre as folhas secas produziam um ruído inquietante. Uma
coruja piou agourenta num galho desfolhado. Um outro ruído se juntou
ao dos passos do rapaz, que parou.

Apenas o vento assobiava e arrancava notas macabras dos galho secos,
que oscilavam fantasmagoricamente. Por um instante ele julgou que
Sammy o houvesse seguido.

Começou a reunir galhos secos e folhas para a fogueira. Um
pressentimento estranho agitou-o. Era como se alguém o observasse,
oculto por entre os troncos esqueléticos.

Com certa inquietação, continuou seu trabalho, enquanto pairando acima
das ruínas romanas, o disco prateado da lua jogava uma claridade
agradável por sobre o bosque.

Não longe dele, oculto como uma fera enraivecida à espera da vitima,
um ser hediondo e retorcido lastimava a sua natureza e se deixava
contagiar pela maldade e pela inveja.

Torg vira Sammy e a desejara ardentemente, como desejaria toda e
qualquer bela mulher que cruzasse seu caminho. A face horrenda, o
corcunda deformado, a selvagem e assustadora aparência, tudo isso
barrava as suas pretensões.

Mulher alguma o olhava com desejo ou atração. Mulher alguma o olharia
como olharia a face e o físico elegante e másculo daquele rapaz.

Nenhuma delas se atreveria a fazer amor com um aleijado e isso o fazia
odiá-las, apesar de desejá-las ardentemente.

Da mesma forma, olhando aquele belo rapaz, Torg reconhecia que a
inveja que ele despertava tornava tudo mais fácil. Drácula ordenara
que o rapaz fosse destruído. A presa final, a bela e tentadora garota,
satisfaria sua sede infindável.

Torg o invejava também, mas apenas servindo-o poderia obter o que mais
desejava: um novo corpo.

Bull terminara de recolher lenha e folhas. Ergueu-se. Torg deslizou
para mais perto, sem se importar com o barulho provocado por seus
passos desiguais.

-- Sammy? -- indagou Bull, um leve acento de medo no tom de voz.

Torg nada respondeu, sentindo uma enorme satisfação em saber que era
temido. Se o rapaz pudesse imaginar o destino que o corcunda lhe
reservara, teria se afastado dali o mais depressa possível.

-- Sammy! -- insistiu o jovem.

Torg arrastou-se para mais perto ainda. Suas mãos se crispavam,
ansiosas para golpearem impiedosamente aquele rosto belo até
transformá-lo numa pasta sanguinolenta e disforme.

-- Sammy! -- voltou a dizer Bull, dessa vez pondo-se na defensiva.

As achas de lenha escorregaram de seus braços. Em sua mão ficou apenas
a mais grossa e pesada. O som dos passos desiguais que se arrastavam
em sua direção puseram-no em alerta.

Fosse o que fosse, iria encontrá-lo preparado. Seus olhos se aguçavam,
tentando ver nos reflexos prateados que se esparramavam pelo bosque um
vulto humano.

Ao invés disso, um ser disforme surgiu a sua frente, mãos erguidas e
crispadas, olhar faiscante e ameaçador.

-- Quem é você? -- indagou, antes que Torg se lançasse sobre ele.

Bull, no entanto, reagiu instintivamente, vibrando a acha de lenha com
todas as suas forças. Ao ruído surdo e desagradável se seguiu uma
imprecação, enquanto o corcunda rolava sobre as folhas secas.

Ergueu-se imediatamente. Bull recuou. Aquela pancada teria matado um
ser humano normal. ?Aquele vulto grotesco continuou avançando, agora
rosnando como uma fera raivosa.

-- Afaste-se de mim! -- ordenou o rapaz, enquanto Torg ia em sua
direção. -- Afaste-se, eu disse -- repetiu, voltando a golpear o corpo
do corcunda.

-- Maldito! -- grunhiu Torg, segurando-lhe o pulso e torcendo-o.

A Lua cheia iluminou o rosto crispado pela dor. Torg forçou mais e
mais, até que um ruído seco se ouviu e um grito de dor desesperado
cortou o silencio do bosque, assustando as corujas e fazendo esvoaçar
um bando de morcego.

-- Você... Você quebrou meu braço -- lamentou Bull, rastejando sobre
as folhas secas, tentando fugir à agressão animalesca.

Torg apanhou um galho e vibrou-o contra as costas do rapaz, fazendo-o
estatelar-se com um gemido. Golpeou-o novamente, fazendo seus olhos se
esgazearem e uma golfada de sangue ser expelida de sua boca
entreaberta.

Com um riso sádico nos lábios disformes, Torg se aproximou e chutou-o,
fazendo-o se voltar para cima. Por instantes o corcunda olhou aquele
rosto mudo de espanto e dor, depois ergueu um dos pés e pisou-o
violentamente.

-- Deus! -- gemeu Bull, tentando se erguer, mas era como se seu corpo
não mais obedecesse ao seu comando.

Ele ficou ali, contorcendo-se no chão, enquanto Torg fitava com
indizível satisfação o sangue que jorrava da boca e do nariz do rapaz.

Com crueldade, Torg pisou sobre a garganta do outro, depois chutou
repetidas vezes a cabeça de Bull, arrancando gemidos cada vez mais
fracos.

Não satisfeito, apanhou uma enorme pedra e ergueu-se. Por instantes
pareceu ver, nos olhos ensangüentados do rapaz, uma suplica final.

Com todas as suas forças ele arremessou a rocha, esmigalhando aquela
cabeça, jogando miolos, sobre as folhas secas. Rosnando
animalescamente debruçou-se sobre o cadáver, rasgando a blusa e a
camisa, desnudando-lhe o peito.

Como garras suas mãos se crisparam e seus dedos se enterraram na pele,
arrancando pedaços de carnes e ossos, até finalmente, trazerem o
coração ainda palpitante.

Olhou-o contra a lua, depois, levou-o à boca e mascou-o vorazmente,
enquanto o corpo a seus pés estrebuchava macabramente.

Um grito feminino cortou a noite, mas não incomodou o corcunda. Ele
sabia o que estava acontecendo.

*

A noite caíra mansamente. Enquanto havia um resto de luz, delineando
contra o céu a figura tortuosa do monte, um ar de falsa paz podia ser
sentido pelas encostas silenciosas.

Depois, quando gradativamente a escuridão jogava seu manto sobre
aquele lugar desolado, uma sensação de terrível opressão e maldade
faria gelar a medula de algum mortal que se aventurasse por aqueles
ermos.

O monte era maldito. Os segredos de suas cavernas e escuras e
misteriosas, onde as trevas eram total, ocultavam-se nas cinzas que a
terra absorvera.

Cinzas muito antigas, de filhos de Satã que arderam nas fogueiras da
purificação e que jamais aplacaram a sede de vingança de suas almas
torturadas.

Seus lamentos de morte, suas maldições, ainda pareciam ecoar na voz
lúgubre do vento frio. O crepitar das chamas que devoraram seus corpos
podia ser ouvido, quando o vento silenciava.

Um odor constante de carnes putrefatas e queimadas, mesclado ao cheiro
forte e nauseante do enxofre, sobrepujava o da terra lavada pelas
últimas chuvas.

Animais o evitavam. Roma toda aprendera a temê-lo. Era algo
instintivo, enraizado, transmitido de geração em geração desde há
muitos séculos.

Raros pastores, que ainda teimavam eme levar suas ovelhas segundo a
tradição, evitavam aquele local maldito. Ali a erva não crescia e as
árvores viviam desfolhadas e secas, numa vigília macabra.

Turistas eram alertados para os perigos ocultos naquelas encostas
escarpadas. Um perigo que iam além da imaginação e da razão.

Naquela noite, quando na Cidade Eterna as pessoas se preparavam para o
inicio do fim de semana e as prostitutas vestiam suas melhores roupas
e se maquilavam cuidadosamente, o monte espreitava, como se
aguardando.

Era sexta-feira, dia maldito, quando as forças do mal atingem sua
plenitude e se voltam contra a humanidade, semeando pavor.

Era a noite do demônio, que se regozijava com a presença de seu filho
predileto nas proximidades de seus domínios.

O vento parecia gritar um alerta que voava pelo céu e ia se perder na
agitação da grande cidade.

O medo, porém, se refletia na boca pintada da prostituta, nos
trejeitos do travesti, no ar sério e sombrio dos exploradores de
mulheres, na aparência arredia e assustadiça dos ladrões e malfeitores
que se ocultavam nos becos mais nojentos.

O vento que soprava contra o monte contagiava a cidade com apeste de
sua maldição. suas entranhas frias e silenciosas guardavam o segredo
como um feto mal gerado, apenas esperando o momento de ver a luz
através da fétida cloaca do sobrenatural.

Por isso, quando em algum canto ermo, um grito de pavor se elevou, o
monte todo parecia se eriçar, gargalhando uma satisfação que mortal
algum entenderia.

*

A garota descabelada seminua, deixada para trás trapos de roupas,
escorregou pela ravina escura, esfolando-se nas pedras, jogando no ar
o cheiro adocicado do sangue morno que cobria sua pele macia.

Sabia que precisava correr, fugir dali, escapar àquela perseguição
macabra, afastar-se daquele terror instintivo que galava-lhe a espinha
e confundia seus pensamentos.

Ela soluçava, os pés descalços cortando-se nas pedras, deixando uma
trilha de sangue para a fera que a perseguia. A sombra sinistra
pairava, avançando mais e mais, gozando o pavor daquele corpo,
assanhando-se nos soluços assustados, espicaçado-se nas súplicas
perdidas no vento.

Sammy tropeçou mais uma vez e caiu. Girou rapidamente o corpo,
tentando se levantar. O vento pareceu soprar mais frio e arrepios
angustiantes percorreram sua pele, ao perceber aquele vulto parado a
seus pés.

-- Não! O que quer de mim? -- indagou, a voz embargada pelo pavor.

A mão descarnada do vampiro estendeu-se. Sentia-se fraco e ferido.
precisava de alimento, de vida, de nova forças. Já não havia encanto
naquela perseguição. Sua sede era urgente, apressada, esganada.

Segurou o pescoço da garota e ergueu-a facilmente diante de si. Sammy
fitou com horror aqueles olhos injetados e faiscantes, como se o fogo
do inferno ardesse neles.

Aquelas feições crispadas e cruéis, aquelas mãos assassinas aquele
cheiro de cadáver em decomposição, tudo levou-a ao paroxismo do
terror.

Ela se debateu, tentando usar seus braços, suas mãos, suas unhas, seus
pés em carne viva, mas suas pancadas contra aquele ser nada produziam,
senão uma força maior que lhe apertava a garganta, sufocando-a.

-- Deus! -- murmurou, sentindo-se desfalecer.

Uma gargalhada sarcástica e cavernosa seguiu-se ao seu lamento e, como
se ela fosse um boneco, Drácula puxou-a para si com violência,
colando-a ao corpo esquelético e enfraquecido.

Fora uma longa viagem. Drácula estava ferido e precisava de sangue
fresco. pena que não fosse uma viagem. Seu prazer e sua vitalidade
seriam dobrados.

Ainda assim, era uma bela garota. Seios rijos, cintura torneada, coxas
firmes e elásticas, pescoço delicado e apetitoso...

Seu olhar injetado e chamejante se concentrou naquela veia latejante,
por onde o sangue corria, transbordando vida e juventude.

Um rosnado escapou de seus lábios finos e frios. Sua boca gosmenta
esfregou-se à pele macia. Sua língua áspera como a de um animal lambeu
um resto de perfume. Suas presas pontiagudas e sinistras rebrilharam à
luz do luar.

Tremores espasmódicos abalaram seu corpo. O cheiro do sangue era
insuportável. Seus instintos vibravam intensamente, sua fome aumentou,
seu desejo pediu vazão.

Apertou-a contra si, sentindo o estalar das frágeis costelas e colou
sua boca no pescoço delicado, rasgando-o com suas presas e sorvendo
esganadamente o sangue que jorrava.


CAPÍTULO 2


Ambrosio Scallone recuou um passo, depois outro, caindo finalmente de
encontro à sacaria de macarrão, após tropeçar numa botija de vinho.

Limpou o sangue que lhe lambuzava o rosto e ergueu os olhos assustados
para a expressão de seu patrão.

O cheiro do vinho nauseou-o. Vitorio Caprilho fitou o prejuízo, depois
arremessou com todas as forças o pé, atingindo o peito do rapaz e
fazendo-o cair para trás. Avançou, o enorme pé quase pisando a
garganta de Ambrosio, que encolheu-se assustado.

Vitorio sorriu e, no entanto, seu desejo era pisotear o corpo do
empregado, dando àquele pobre imbecil uma lição de que jamais se
esquecesse.

Inclinou-se, porém, e suas mãos grossas e enormes quase rasgaram o
bolso da camisa do rapaz ao retirar dali algumas notas. Olhou-as com
um sorriso sádico, depois agitou-se, batendo-as contra o rosto
ensangüentado do rapaz.

-- É meu... Juro como é meu! -- exclamou o rapaz.

-- Quê! Um pobretão como você? Não tem onde cair morto! Vive da minha
caridade! O que faria sem o maldito emprego que lhe dou? O que? Eu sei
de onde isso veio, seu pedaço de asno ingrato! Estas notas vieram
dali. Dali, ouviu bem? Dali! -- repetiu, apontando para a antiga
máquina registradora.

Um vulto gracioso avançou pelo mercado escuro e estacou ao observar
com horror aquela cena. Seu rosto meigo se crispou numa expressão de
surpresa e indignação.

-- Papai o que pensa que...

-- Cale a boca, Sofia! O que quer aqui? Não a chamei. Veio me
espionar?

A garota olhou, apiedada, o rosto assustado e envergonhado de
Ambrosio, que tentava limpar o sangue que teimava em escorrer de seu
nariz. A patada fora violenta, cruel.

Sofia ergueu, então os olhos para as faces coradas e gordas de seu
pai, observando por instantes o brilho de maldade e embriaguez que o
tornava tão infame e desprezível.

O rosto do homem crispou-se ameaçadoramente e Sofia girou nos
calcanhares, rumando para a saída. Não era difícil reconhecer quando
seu pai estava bêbado. Temeu por Ambrosio, mas nada podia fazer senão
lamentar.

Saiu para a rua e parou junto ao meio-fio, erguendo o rosto para o
céu. quando suas preces seriam ouvidas? Quando Deus a atenderia?

Lá dentro ouviu-se um som desagradável, seguido de um gemido de dor.
Depois outro e, em seguida. Ambrosio saiu pela porta, desequilibrando,
indo esbarrar em Sofia e estatelar-se na sarjeta.

Ergueu-se rapidamente, limpando o rosto do sangue e da água suja que
escorria constantemente pelas pedras. Seu olhar humilhado pedia
compaixão.

No rosto da garota havia pena, desespero, ódio e amor. A sombra
gigantesca de Vitorio Caprilho se projetou para a calçada, fazendo-a
se voltar num sobressalto.

-- Para casa! -- ordenou raivosamente o comerciante.

Sofia apressou-se em obedecer. Atrás dela, Ambrosio se ergueu,
cabisbaixo e humilhado ao extremo. As pessoas que passavam pareciam
rir dele, mais por medo de Vitorio do que por julgar hilariante aquele
rosto sujo.

Todos conheciam Vitorio, sabiam de seu gênio violento. Ninguém ousaria
intervir. Ambrosio era um pobre coitado.

Por instantes ele fitou o rosto do patrão, ousando encará-lo. Qualquer
coisa ameaçava explodir em seu peito.

-- E esteja aqui amanhã bem cedo, seu imprestável! Vai me pagar por
tentar roubar meu dinheiro. E dê-se por satisfeito por não mandar
prende-lo, ouviu bem? Você apodreceria numa jaula, seu vagabundo,
amaldiçoado filho de uma...

Ambrosio afastou-se o mais depressa que pode. O sangue lhe fervia nas
veias e o ódio latejava em sua cabeça, sugerindo pensamentos tétricos
e violentos.

Era explorado, maltratado e humilhado diariamente. Não podia mudar de
emprego. Jamais acharia outro. Depois ali, apesar de tudo, havia uma
compensação nas visitas de Sofia.

Naquela noite, porém nem esse pensamento parecia acalmá-lo. Era como
se a última gota houvesse transbordado e o desejo de mudar aquela
situação drasticamente imperasse sobre sua vontade.

Lutou contra essa tentação, como sempre tinha lutado. Queria resistir,
mas dia após dia, lentamente, sua resistência vinha sendo vencida.

P poder latente em seu corpo se resumia naquela marca em seu pulso.
Era o símbolo do mal. Ambrosio, porém, sempre se recusara a
entregar-se ao mal. Não podia pensar nisso, não quando tinha o amor da
doce e terna Sofia.

Cabisbaixo e pensativo, nem percebeu o vulto de mulher que deixou o
beco e se postou a seu lado, caminhando junto.

-- Eu o odeio! -- murmurou Sofia, entredentes, com decisão e rancor.

Ambrosio parou, aquele conflito intimo empurrando-o para a pior das
soluções.

-- É seu pai...

-- Um monstro!

-- Você deve amá-lo...

-- Eu o odeio! Gostaria de destrui-lo, de esmagá-lo como se esmaga um
verme desprezível -- desabafou ela e lágrimas correram por suas faces
angelicais.

Ambrosio poderia resistir a qualquer coisa, mas não àquelas lágrimas.

Segurou pelos ombros a mulher que amava e olhou-a no fundo dos olhos.

-- E o que quer? -- indagou ele.

-- Sim, é o que quero. De que outra forma poderíamos um dia ficar
juntos? Oh, Ambrosio! Eu adoro você, mas ele nunca vai aprovar nosso
namoro. Não compreende? Jamais ele permitira -- soluçou ela,
lançando-se nos braços dele.

O rapaz estreitou-a com força, rodeando seu corpo com carinho e
apreensão.

A manga do casaco deslizou. À altura do pulso havia um sinal negro.
Ele olhou aquela marca maldita e estremeceu.

*

A velha mulher se ergueu num sobressalto, as narina dilatadas, os
olhos opacos adquirindo um brilho intenso de ódio, como o da besta que
corre em socorro da cria ameaçada.

Deixou o casebre atabalhoadamente e seus olhos se fixaram no monte ao
longe. Torceu nervosamente as mãos descarnadas, pressionando as unhas
pontiagudas contra a pele, como se desejasse ferir-se.

Uma sensação angustiante oprimiu-lhe o peito e ela compartilhou um
ódio que partia do filho e vinha vibrar em seu próprio corpo.

Recuou então, apoiando o corpo alquebrado contra a parede. Suspirou
resignadamente.

Depois como se uma convulsão interior desse força a seus atos, repuxou
com violência a manga da blusa ensebada e descobriu o sinal maligno no
pulso.

Muita coisa acontecera, muito tempo fora perdido, desperdiçado para
nada. O sinal perdera a força. Não era mais do que uma pequena mancha
arroxeada agora, misturada às outras que a velhice jogara em sua pele,
como um estigma.

Um pressentimento a fez ergueu a cabeça e observar atentamente o vulto
que caminhava ao seu encontro.

Ambrosio estendeu os braços e tomou o corpo esquelético da velha,
procurando não deixar que ela percebesse a máscara de sofrimento e
sangue que ainda marcava seu rosto.

-- Mãe, não devia estar aqui fora -- disse carinhosamente, enquanto a
levava para o interior da casa miserável.

Com uma força surpreendente, no entanto ela se desvencilhou dele e
encarou-o. Seus olhos opacos ganharam um brilho de náusea e sofrimento
ao fitar o rosto sujo do filho.

Depois, gradativamente, seu olhar se alterou brilhante e intenso,
perturbando. Seus lábios trêmulos fecharam-se com firmeza numa
expressão de altivez e desafio.

-- Outra vez, não? -- indagou ela e havia repreensão em seu tom de
voz.

Ambrosio abaixou a cabeça, incomodado pela força daquele olhar.

-- O que foi dessa vez/ -- quis saber sua mãe.

-- Aquele dinheiro...Seu remédio... ele jamais acreditaria que...

-- O maldito tomou-lhe o meu dinheiro?

-- Sim, mas...

-- Aquele filho bastardo de uma cadela vagabundo! -- grunhiu a velha,
como o mais puro ódio. -- Não é pelo dinheiro, filho, mas pela
prepotência daquele monstro. Posso me curar com minha ervas, com meu
elixir... Mas... Ambrosio, filho, meu! -- soluçou ela e sua voz soou
gutural e amedrontada, enquanto sua mão descarnada se estendia e
agarrava o pulso direito do rapaz, descobrindo-o e apontando o sinal
negro.

-- Veja isso, Ambrosio. Você não precisa se humilhar e se sacrificar
dessa forma. Seus desejos, serão lei. isso lhe dará tudo. Basta que
aceite, filho. Basta que aceite -- sussurrou a velha, então, a sua voz
ganhou um novo acento, suave e convincente como o sopro do vento, nas
noites calmas, atravessando os espinheiros do monte Equillin.

Ele a encarou, tentando fazer prevalecer dentro de si o amor de Sofia,
acima do ódio que sentia pelo pai dela. Abaixou a cabeça e passou pela
mãe, fugindo àquele convite quase irresistível.

Ela o fitou com seus olhos perturbadores e, por instantes pareceu que
ele fraquejava finalmente. Um riso esboçou-se em seus lábios
descorados. Dentes apodrecidos se destacaram em sua boca escancarada.

Entrou. Caminhou até uma velha arca a um canto da pequena sala e
abriu-a lentamente. Dali retirou uma espécie de baú antigo, construído
de metal enegrecido pelo tempo e ostentando grossas tachas de ferro
nas emendas.

Olhando pacientemente o filho, a velha esperou que o filho se
voltasse. Vinha repetindo aquele ritual dia após dia. Um dia ele se
voltaria. Um dia ele haveria de ceder às evidencias.

O dia, finalmente parecia haver chegado. Para sua satisfação.

-- Venha filho! Deixe-me mostrar-lhe -- sussurrou ela.

Ambrosio venceu aquela agonia interior que o martirizava e se
aproximou. Viu a mãe retirar um grosso e antigo volume do interior do
baú.

-- Está é a bíblia de Satã -- disse ela e seus olhos se injetaram
malignamente. -- Pergaminhos de pele humana -- acrescentou, alisando
lubricamente, como num ritual satânico, a capa enrugada.

Ambrosio estremeceu de um pavor instintivo, mas se viu fascinado pelo
curioso volume. A velha retirou, em seguida um outro objeto do baú.

Era um antigo punhal, longo e recurvo como os chifres de um bode
velho. Depositou-o sobre o livro. Encarou o filho.

-- Sabasius! -- disse, então.

-- Sabasius? -- repetiu Ambrosio, sem entender.

-- Você é um sabasius. Talvez o último deles. Essa marca em seu braço
é a marca do diabo. Você é um predestinado. Demorou para acordar. Seu
estigma é sua salvação. A vida eterna e tudo aquilo que sempre desejou
poderão se tornar real. Basta que aceite, que deseje, que peça.

-- A marca do diabo! -- murmurou ele, aterrorizado, olhando o sinal em
seu braço.

A velha empunhou o punhal e tomou o pulso do filho. Depositou a lamina
afiada sobre o sinal negro e fez correr o fio. Ambrosio se retraiu
esperando ver suas carnes se abrirem e o sangue jorrar.

Incompreensivelmente, porém, não sentiu dor e o local continuou
intacto. Ele apanhou a arma e examinou-lhe o fio. Repetiu o gesto da
mãe, maravilhado.

-- Mas...

-- Acredita em mim, afinal? Satã é seu pai e seu destino é governar os
mortais desprezíveis. Homens como Vitorio Caprilho se arrastarão a
seus pés. Basta que vá ao encontro daquele que o espera, filho.

-- Quem? -- indagou ele, com voz trêmula ainda.

-- Satã, seu pai!

-- Onde?

Um frêmito incontido e assustador fazia vibrar o corpo e marejar seus
olhos . Arrepios intensos e estranhos enrijeciam sua pele. Seus dedos
se agitaram independentes de sua vontade, comandados por um poder
acima de sua compreensão.

-- Lá -- apontou a velha, na direção do monte Equillin. -- Suas
legiões o esperam, filho. O rei das Trevas vai guiá-lo. O mal será sua
redenção.

Ambrosio levantou os olhos para o monte distante e pareceu sentir a
força de um apelo irreversível.

-- Deve ser feito hoje -- disse a mãe, segurando-o pelos ombros e
fixando nele seus olhos injetados e febris.

Ambrosio percebeu, então, que se metera num caminho sem volta.

*

A lua enorme, amarelada e lenta, firmava-se no céu, jogando sua
claridade sobre a terra. Torg rosnou, mascando esganadamente o último
pedaço sangrento.

Uma baba gosmenta escorria de seus lábios, pendendo de seu queixo,
acumulando-se em seu peito. Ao lado, Drácula o fitava com desprezo.

A seus pés, o cadáver nu e mutilado de uma bela jovem que lhe dera seu
sangue. Não fora o bastante, porém. O apetite maldito não fora
saciado. O cheiro provocante de sangue fresco ainda espicaçava os
instintos do vampiro.

-- Precisamos ir, Torg. eu ainda tenho sede! -- disse.

-- Sim, mestre. Claro mestre -- balbuciou o corcunda, engolindo
apressadamente, depois esfregando as mãos nodosas pelos lábios e pelo
queixo.

-- Não tenho tido a paz que procuro. Estou cansado dessa fuga. Ninguém
nos persegue agora, Torg. Aquele maldito professor teve o fim que
merecia. Estamos livres. O filho de Satã deve encontrar as honras e o
repouso que merece. Que minhas legiões trabalhem por mim agora --
murmurou o monstro e sua voz cavernosa intimidava o próprio vento.

-- O que ordena, mestre.

-- Quero mais sangue neste noite maravilhosa, meu fiel Torg. Leve-me
onde há sangue fresco. Depois conduza-me ao monte Equillin. em suas
cavernas estarei próximo de Satã e poderei organizar minhas legiões.

-- Sim, mestre -- concordou Torg, ciente de que Drácula ainda estava
fraco, após a viagem. precisava alimentar-se, devolver-lhe as forças
totais, saciá-lo completamente. Assim o veria manso e acessível para o
pedido secreto que teria de repetir.

Estava cansado daquela carcaça podre e deformada. Queria um novo
corpo, belo e atraente, capaz de encantar e seduzir as mulheres.

Seguiu-o servilmente até o furgão. Antes de entrar, Drácula ergueu o
rosto para a lua cheia e respirou fundo, um riso macabro retorcendo
seus lábios finos e ainda úmidos de sangue fresco.

Entrou, finalmente estendendo-se no negro ataúde que estava preso no
centro do furgão. Torg olhou-o respeitosamente, depois fechou a porta.


CAPÍTULO 3


O furgão negro diminuiu a marcha. Torg acompanhou com o olhar a cena à
beira da estrada. Duas garotas se empenhavam em trocar o pneu de um
Fiat antigo.

Um riso sinistro e asqueroso desenhou-se nos lábios do corcunda e ele
manobrou seu veiculo para o acostamento, parando-o. Por instantes
pensou naquelas duas mulheres, sozinhas, disponíveis. haveria muito
sangue para Drácula. Talvez até demais. Quem sabe uma das garotas
poderia.

Saltou da boleia e foi abrir a cabine do furgão. O ataúde negro, com
metais reluzentes, faiscou ao clarão da lua generosa. A pesada tampa
ergueu-se macabramente. A mão descarnada do vampiro se apoiou à beira
e seu tronco esquelético se levantou.

-- Onde estamos? -- indagou, sentando em seu ataúde.

-- Na estrada de Roma, mestre.

-- E por que paremos?

Torg recuou e apontou para trás. Drácula se levantou e olhou naquela
direção. Um riso sádico e satisfeito desenhou-se em seus lábios finos.
havia um cheiro de fumaça no ar e o ruído dos carros, em sua corrida
incessante, era perturbador.

Drácula deixou o furgão e caminhou na direção do outro carro, olhando
fixamente os vultos graciosos e tentadores. Seus olhos injetaram-se e
a sede amaldiçoada assanhou-lhe o corpo.

Seus passos não foram ouvidos. O vulto grotesco se aproximou, gozando
um aroma que se sobrepunha ao cheiro da fumaça dos carros na estrada e
brincava selvagemente com seus instintos.

A capa esvoaçava. Espasmos estremeceram seu corpo.

-- Diabos, se... -- ia dizendo uma das jovens, mas interrompeu-se ao
perceber a aproximação de alguém.

-- Posso ajudá-las em algo? -- indagou e sua voz metálica ganhou um
tom amigável e cavalheiresco. -- Meu nome é Vlad Lucard.

-- Bem, eu não sei se... -- ia dizendo a loura graciosa, de cabelos
curtos e corpo roliço.

-- Claro que sim! -- interrompeu a amiga, uma apetitosa morena de
seios fartos delineados contra a blusa justa. -- Se tiver um macaco
hidráulico melhor que o nosso...

-- Posso fazer melhor que isso. por que não deixam que meu motorista
cuide disso tudo? -- indagou e sua voz se tornou hipnótica,
persuasiva.

As garotas tentaram sorrir, cativadas pela classe e pela generosidade
do cavalheiro com que falavam. Apesar de não verem-lhe o rosto,
adivinhavam-no belo e atraente.

Estavam de férias, dispostas a se divertirem acima de tudo. Não havia
roteiros ou previsões. Era simplesmente deixar que acontecesse.

-- Se me acompanharem até meu veiculo, darei ao meu motorista. Tenho
um pouco de conhaque. Poderão se aquecer dessa fria noite -- sugeriu e
não havia como recusar.

-- Temos o suficiente para um lanche agradável -- disse a Morena. --
Aceitaria?

-- Claro. Estou faminto! -- disse ele, sentindo-se brutalmente
excitado pela docilidade com que elas se entregavam a ele, subjugadas
pelo seu poder.

-- Acho-o um pouco esquisito -- comentou a loura, em voz baixa,
enquanto apanhava qualquer coisa no carro.

-- Parece-me um ricaço -- cortou-a morena mais extrovertida e disposta
a uma aventura sem maiores conseqüências.

No momento seguinte caminhavam na companhia de Drácula. Quando se
aproximavam do furgão, Torg se adiantou.

-- Torg, cuide do carro das senhoritas -- ordenou o morcego humano.

A loura pareceu, então, demonstrar certa preocupação. Talvez a figura
de Torg a houvesse impressionado, talvez algo no cavalheiro que as
acompanhava sugerisse um perigo mortal.

Pararam diante da porta. O luar batia sobre os metais do ataúde,
dando-lhe um brilho fantasmagórico.

-- Mas... É um ataúde! -- exclamou a loura recuando alguns passos.

A morena ficou estática, sem compreender o que se passava. Drácula
alcançou a outra, segurou-a pelo pescoço e impulsionou-a para dentro
do furgão. A loura foi jogada contra a parede oposta, estatelando-se
com um gemido.

-- Quem é você? -- indagou a morena, estática, incapaz de desviar seus
olhos daquele rosto fatídico, banhado pelo luar. A jovem subiu para o
furgão. Drácula entrou em seguida. A porta se fechou pesadamente.

*

Ambrosio estava fascinado pela facilidade e decisão com que sua mãe o
guiava por entre os caminhos tortuosos do monte Equillin.

Jamais estivera ali antes. Conhecia as lendas a respeito daquele local
amaldiçoado, mas tudo estava acontecendo rápido demais para que
pudesse temê-las.

Via apenas as pedras cobertas pelo luar, pontiagudas e agressivas,
como se houvesse ali uma intenção perversa em afastar os visitantes.
Ambrosio apertava firme, sob um dos braços, a bíblia estranha e
assustadora. preso a sua cintura, em contato com o corpo, ia o punhal
misterioso.

O metal parecia não se aquecer, mantendo-se frio, apesar do calor que
dominou o rapaz. Seus pensamentos se voltaram para Sofia e os
acontecimentos daquela noite.

Era um amor impossível, nascido do desespero, da humilhação, da
vergonha. Ele a queria muito, mas a figura autoritária e repugnante de
Vitorio pairava entre os dois.

Havia sido um longo tempo de espera. Por mais assustadora que lhe
parecesse aquela decisão, estava certo de que jamais voltaria atrás.

Se havia uma chance, por menor que fosse, de ter Sofia, então valeria
a pena.

-- Estamos próximos! -- disse a velha e não havia cansaço em sua voz,
mas apenas uma excitação estranha, febril, maligna.

Aproximou-se de uma enorme rocha, de formato irregular como uma
espécie de pentagrama natural. Espinheiros se juntavam diante dela. A
velha abriu caminho por entre eles, avançando para uma estrada escura
e assustadora.

-- Venha! -- ordenou ao filho.

Ambrosio hesitou por instantes. Seu coração bateu mais forte. Qualquer
coisa diabólica parecia habitar aquela caverna. Era lago que o
assustava e fascinava ao mesmo tempo, embora não conseguisse explicar
essa sensação.

Havia apenas uma sugestão forte, um convite irrecusável no cheiro
nauseabundo que chegava a suas narinas. Era como se a própria Morte
estivesse próxima, exalando seu perfume macabro.

Avançou, então, resoluto, deixando-se abraçar pela escuridão fria
daquelas pedras.

-- Deixe-me acender a vela -- pediu a velha, soltando-lhe a mão.

Sua voz ecoou lugubremente por corredores sombrios e profundos. A
chama de um fósforo espantou um bando de morcegos, que esvoaçou
assustado. Uma claridade frágil firmou-se no pavio de cera, iluminando
gradativamente as paredes, onde ratazanas enormes se escondiam e
aranhas peludas descansavam em suas teias.

-- Onde estamos/ -- indagou Ambrosio.

-- Siga-me! -- ordenou a mãe, avançando.

Estavam numa estreita sala de pedra agora, de onde saíram diversos
túneis. A mulher ergueu a vela. No alto da pedra, acima de uma das
passagens, havia uma inscrição rústica, quase coberta pelo limo.

-- Dê-me o punhal. Meu olhos já não são os mesmos -- pediu.

Ambrosio passou-lhe a arma. Ela tomou-o e estendeu o braço, raspando a
pedra.

-- Abadou! -- murmurou ela e sua voz com um fervor místico e
respeitoso ecoou pelos corredores.

Qualquer coisa se agitou no interior do monte, como se um monstro
enorme despertasse de um sono demorado.

-- O que quer dizer isso? -- quis saber o rapaz.

-- A maldade! -- respondeu ela, seguindo em frente.

Ambrosio procurou segui-la o mais perto possível. Ela conhecia os
segredos daqueles corredores que avançavam para dentro do monte.

Túneis sucessivos surgiam à frente deles, num intrigado labirinto que
não confundia a mulher, que se guiava pelas inscrições que se repetiam
sobre os túneis por onde penetravam.

Aquela palavra era a chave que abria o segredo das profundezas da
terra. Ambrosio a seguia sempre, intrigado e curioso, contendo aquele
pavor que fazia gelar sua medula, como se as garras de um ser
repulsivo o envolvesse.

Gradativamente aquele cheiro repugnante foi se acentuando, mesclado ao
sutil e nauseante aroma do enxofre. o frio da caverna enregelava seus
ossos, mas, acima de tudo, podia sentir próximo, muito próximo, uma
presença sobrenatural e aterradora.

*

-- Quem é você? -- voltou a indagar a loura, erguendo-se aturdida,
ouvindo aquela respiração animalesca.

Um hálito bafejou malignamente sobre seu rosto, arrepiando-a. Uma
gargalhada sinistra explodiu, enquanto as mãos frias do vampiro
pousavam sobre os ombros mornos da garota que estremeceu.

Uma força maior que sua vontade se impunha. Aquela mão como garra
massageando suas carnes, comprimindo seus seios, machucando-a,
terminando por buscar sua intimidade com selvageria.

O tecido de suas roupas cedia ruidosamente à passagem daquela mão fria
e possessiva. O príncipe da trevas ofegou, sentindo-se poderoso e
perverso, dono da humanidade.

O sangue que corria nas veias daquelas duas em breve o alimentaria,
restaurando suas forças, saciando seu apetite macabro.

Adiar aquele momento provocava uma excitação brutal em seus sentidos.
A sensação de poder despertou um furor cego e maldoso que aguçou sua
lascívia desumana.

Ele desejou manifestar seu poder, espancando, brutalizando,
atirando-as de um lado para outro como joguetes em suas mãos.

Gargalhou sadicamente, enquanto suas mãos se fechavam ao redor da
garganta da loura, erguendo-a lentamente, deliciando-se no debater
daquele corpo e nos ruídos grotescos que escapavam da garganta
comprimida.

Jogou-a para o alto e gargalhou mais ainda ao ouvir o gemido que se
seguiu ao baque pesado do corpo contra o meta;.

-- Quem é você? -- perguntou a morena, tateando a escuridão à procura
da porta.

Drácula avançou para ela, estendendo a mão e agarrando-a pela gola da
blusa, dilacerando o tecido e arranhando-lhe as costas.

O cheiro adocicado e tentador de sangue chegou a suas narinas, que se
dilataram animalescamente. Seus olhos brilharam na escuridão. Ele
tropeçou no corpo da loura, que tentava se erguer.

Apanhou-a pelos ombros e a pôs em pé. Havia medo e loucura naquele
corpo. O pavor fazia circular mais rápido o sangue em suas veias.
Quando sua garganta fosse dilacerada, o precioso liquido jorraria para
os lábios frios e sequiosos do vampiro, inundando-o de prazer e vigor.

A morena soluçava, jogada a um canto do furgão. Drácula envolveu a
loura, apertando-a contra o peito, sentindo-lhe o calor e o tremor
desesperado.

Sentiu-se mais apetitosa daquela forma. Seu hálito fétido varreu o
rosto crispado pelo medo. Suas presas rebrilharam na escuridão,
roçando a pele macia e levemente perfumada.

A garota se debateu. Suas mãos esbofetearam o rosto frio do monstro,
que gargalhou.

-- Idiota! -- rugiu batendo-lhe a cabeça, contra a parede metálica.

O cheiro de sangue se tornou mais forte, fazendo estremecer o corpo
monstruoso. Um rosnado escapou de sua boca escancarada.

Ele trouxe a garota para junto de si. Seus lábios degenerados
deslizaram pelo rosto assustado, espalhando beijos obscenos.

Drácula grunhiu, triunfante, quando sua boca deslizou para o pescoço
delicado e seus lábios sentiram o latejar compassado da veia jugular.

Um frêmito fez crispar seu rosto. Seus olhos injetaram-se totalmente e
faiscaram como os de um felino contra a luz. As presas pontiagudas
rasgaram as carnes mornas e o sangue esguichou para sua boca.

Com sofreguidão, rosnando e apertando convulsivamente o corpo da
jovem, como se desejasse espremê-lo de seu vital liquido, Drácula
sorveu cada gota.

Gradativamente a vida foi deixando aquele corpo, até que, finalmente
ofegando e guinchando, Drácula a soltasse e pisoteasse com desprezo.

Voltou-se para a outra jovem, acuada a um canto, soluçando
convulsivamente. Segurou-a em seus braços, depois apertou-a contra si.

Num rosnado selvagem, beijou o rosto pálido com sua boca lambuzada de
sangue. A garota estremeceu, no paroxismo do terror, à mercê da sanha
voluptuosa e assassina daquele ser monstruoso.

As presas fatídicas voltaram a rasgar carnes macias e Drácula sugou
avidamente. A garota debateu-se. Um grito desumano escapou de seus
lábios, abafado pelas paredes de metal e pelo ruído dos carros lá
fora.

*

O eco do grito lancinante ainda se debatia contra as paredes do
quarto, quando a luz foi acessa.

Morgana ficou ali, olhos esbugalhados, a boca ressequida, a respiração
ofegante, olhos perdidos em algum ponto da parede, como se houvesse
presenciado uma tragédia. Tinha tido um pesadelo.

Febrilmente saltou da cama, atravessou o aposento, abriu a porta e
correu para a sala. Tomou o telefone e discou apressadamente. Aguardou
com nervosismo que atendessem.

-- Mamãe, onde está Viviana? -- indagou, incapaz de se libertar
daquela sensação angustiante e opressiva que lhe viera num pesadelo.

-- É você, Morgana? O que foi? Isso são horas de ligar?

-- Mãe, onde está Viviana?

-- Está indo ao seu encontro. Saiu hoje de Turim, na companhia de sua
amiga.

-- Ela está vindo com o carro?

-- Sim, mas qual o problema, afinal?

Morgana ficou parada, segurando o telefone sem saber como responder.


CAPÍTULO 4


-- Abbadon! -- gritou a velha, quando a última tocha foi acesa.

Um bando assustado de morcegos esvoaçou. O sangue gelou nas veias de
Ambrosio, que fitou atônito a transfiguração que se operava no rosto
da mãe.

Recuou, cobrindo os olhos com os braços, protegendo-se dos morcegos
que voavam sem tocá-lo.

-- Veja, Ambrosio! Veja! -- ordenou a mãe, enquanto as aves repulsivas
se aquietavam nos túneis escuros e profundos.

Lentamente ele descobriu o rosto, fitando a pedra de um altar rústico.
Antigas manchas de sangue se escrutavam por sobre a rocha, lembrando
sacrifícios. Ao fundo, toda puída e quase desfeita, havia uma cortina
negra. Símbolos cabalísticos ainda podiam ser vistos por todo o manto.

A velha se abaixou diante de Ambrosio e apanhou a bíblia que ele
derrubara no momento do espanto. Olhou o filho e sorriu. Depois
tomou-lhe a mão e conduziu-o até o altar.

-- O que mais deseja agora, filho? Diga-me e seu senhor lhe dará em
sinal de boas-vindas. Peça, filho. Você é um sabasius, um eleito. Há
muito que aprender -- disse, abrindo o estranho volume a esmo.

Seu dedo indicador descreveu um circulo no ar, depois apontou direto
para a página logo abaixo, tocando-a.

-- Diga-me o que mais deseja, filho?

Ambrosio pensou por instantes. o rosto de Sofia banhado de lágrimas
surgiu-lhe à mente. O desejo dela era seu desejo. Encarou a mãe com
desafio.

-- Eu quero que Vitorio Caprilho vá para os quintos do inferno! --
disse e sua voz trovejou pelos corredores que partiam da ampla e fria
caverna.

*

Morgana parou diante do espelho e fitou sua própria face, alterada
pela preocupação. jamais se enganará com algo tão sério. Um perigo
extremo ameaçara a vida de sua irmã. Estivesse onde estivesse, lançara
um apelo a Morgana, sensível e estranhamente, captara no seu sonho.

A garota juntou as duas mãos diante dos olhos. Observou a marca do
diabo em seu punho. O mal não ousaria prejudicar Viviana, sua irmã. As
forças do sobrenatural eram suas aliadas. Morgana tinha o poder de
dominá-las.

O que houvera, então? O que aterrorizara tanto Viviana a ponto de
fazê-la vibrar daquela forma?

Fechou os olhos e tentou captar alguma coisa no ar. Lentamente imagens
se formaram em sua mente. imagens de terror, de alucinação. Aquilo não
podia estar acontecendo.

Havia uma sombra negra e esvoaçante, com garras impiedosas que
retalhavam o corpo quase desnudo de Viviana. Ela implorava, suplicava.

A comoção interior fez Morgana suar frio. Seu corpo estremecia. o que
provocara a ira daquela sombra? Como pudera ameaçar Viviana, se esta
estava protegida contra o mal?

Tremores espasmódicos abalaram-na ao ver o corpo da irmã ser atirado
contra uma parede e cair desfalecido.

Abriu os olhos e respirou fundo, os olhos esbugalhados, algo nauseante
e opressivo atravessado em sua garganta. Ódio brilhou em seu olhar.
Quem ousara, afinal, desafiar o poder da filha do demônio?

-- Fosse quem fosse, pagaria caro.

-- Eu juro! -- rosnou a garota, o rosto se transformando numa máscara
horrenda e ameaçadora.

Sua mão esquerda ergueu-se lentamente e traçou o sinal da cruz ao
peito.

*

Torg! -- berrou Drácula, recuando para a parede que o separava do
corcunda.

O veiculo guinou para o lado e imobilizou-se. Uma pequena abertura
surgiu diante dos olhos injetados do vampiro. Seu servo fiel encarou-o
assustado.

-- Sim, mestre!

-- Venha aqui! -- ordenou o monstro, caminhando até a porta e
abrindo-a.

O ar frio da noite e o brilho intenso do luar pareceram reanimá-lo e
acalmá-lo. Torg se aproximou coxeando e encarou-o sem entender.

-- Algo errado, mestre?

-- Aquela mulher... A morena... ela não usa um crucifixo, mas algo
pior. Não consegui dominá-la. Vá lá ver! -- rosnou o vampiro e sua voz
tremia, como se a cólera estivesse ainda adormecendo dentro de si.

Torg fechou parcialmente a porta, depois correu até a cabine e girou o
botão. Uma luz se acendeu no interior do furgão. O corcunda retornou
apressadamente e entrou.

Viu a garota loura caída a um canto como uma boneca deliciosa de
trapos coloridos. Por momentos antegozou o prazer de enterrar seus
dedos naquelas carnes ainda morna e arrancar aquele coração tentador.

Voltou-se para a outra garota, estendida após o ataúde. Aproximou-se,
intrigado. O que havia nela que perturbava tanto o vampiro?

Inclinou-se sobre o corpo. Ela respirava, embora debilmente. Sua pele
era quente e macia, mas havia marcas arroxeadas e ferimentos cruéis
manchando-a.

Olhou o pescoço da vitima de Drácula. Havia a marca das presas
fatídicas, mas o sangue não jorrava como seria de se esperar. A garota
continuava rosada, com as veias regurgitando do precioso liquido que
saciaria o vampiro.

Procurou um crucifixo ou alguma marca semelhante, mas havia apenas uma
corrente de ouro, com um estranho medalhão. Torg julgou reconhecer
aquilo.

Tomou-o em suas mãos. Tinha o formato de um pentagrama, com símbolos
cabalísticos entalhados artisticamente no metal dourado.

Havia um fecho. Tocou-o e o medalhão se abriu. De seu interior o
corcunda retirou um pequeno pedaço de pergaminho, branco como a cor do
leite.

Sorriu estranhamente, enquanto o desdobrava.

-- Anasisapta! -- leu, compreendendo.

Deixou a corrente e o medalhão entre os seios rijos e perturbadores da
garota e se ergueu. Sabia que força alguma poderia retirá-lo dali.

Recuou até a porta.

-- E então, descobriu o crucifixo?

-- Não é um crucifixo, mestre.

O olhar do vampiro demonstrou confusão. Depois ele riu e sua mão
direita estendeu-se, tomando o pescoço do corcunda e apertando-o até
que seus olhos quase saltassem das órbitas.

-- Não zombe de mim, seu dejeto da natureza! Sabe muito bem que posso
destrui-lo como a qualquer mortal...

O corcunda caiu de joelhos diante do vulto imponente do Conde Drácula.
Abaixou os olhos e juntou as duas mãos sobre os sapatos do vampiro.

-- Eu jamais faria isso, mestre. A garota tem um talismã poderoso...

-- Talismã? Nada resiste ao meu poder, Torg exceto as coisas
sagradas...

-- O talismã é sagrado, mestre. Ela é uma protegida de Satã!

-- Eu sou o filho predileto de Satã e meu poder é supremo -- urrou o
vampiro, enquanto seu corpo estremecia e seus olhos chamejavam.

-- Mas eu a mordi...

-- A maldição não a afetará. Ela está imune pelo poder do inferno.

O vampiro pareceu se acalmar, compreendendo afinal a situação. Seus
olhos se aquietaram. O brilho de ódio cedeu lugar ao da curiosidade.

-- Por que não pensei nisso antes? Uma aliança com a filha de Satã! --
murmurou, pensativo.

-- Essa garota não é a filha de Satã...

-- Mas pode me levar a uma delas. Vamos levá-la conosco.

Os olhos do corcunda luziram e a baba escorreu de seus lábios para o
queixo. Ele torceu nervosamente as mãos, desejando que seu mestre
entendesse seus apetites em relação àquela loura tentadora e morta lá
dentro.

-- Seria prudente amarrá-la para que não fuja -- disse o vampiro, no
entanto, entrando no furgão e estendendo-se no ataúde.

Torg entrou e fechou a porta atrás de si. Debruçou-se sobre a loura.
Dedos frios seguraram seu pescoço e puxaram-no pra trás raivosamente.

Equilibrou-se assustado, fitando os olhos chamejantes do vampiro.

-- Não a toque, imbecil e tola carcaça podre. Ela me será útil.

-- Vai deixar que a maldição a reviva?

-- Sim, ela será minha serva fiel, assim como você, Torg. Pense nas
vantagens que isso me trará, depois faça como ordenei -- sentenciou o
monstro, voltando a se entender no ataúde luzidio.

Torg ficou ali, parado, sem compreender, o apetite frustrado, um
sorriso morto nos lábios obscenos.

*

Vitorio Caprilho estremeceu e o copo de vinho caiu de suas mãos. Ele
ficou olhando para a parede, o corpo hirto, o rosto crispado numa
expressão de terror. Seus amigos se ergueram rapidamente, fugindo ao
liquido que entornara sobre a mesa.

-- Vitorio, homem, já bebeu demais! -- disse um.

-- Sim, já não pode segurar um mísero copo -- ajuntou outro.

-- Que fraco!

O comerciante, no entanto, continuava imóvel. sua boca se abria,
embora palavras não fossem articuladas. Com um esforço terrível, uma
de suas mãos se ergueu e apontou para a parede.

Todos olharam naquela direção, mas nada havia de anormal no Bar do
Pepe. Aquela parede sempre estivera ali, com manchas na pintura e
rachaduras na madeira velha.

-- Vitorio, que passa? -- indagou um amigo, debruçando-se sobre ele.

-- Deve ser o coração -- lembrou-se o outro, observando com apreensão
aquela expressão terrível no rosto do amigo.

Vitorio tentava falar, tentava mostrar-lhe aquele horrível ser junto à
parede, de longos chifres e asas pontiagudas como as de um morcego.

Ninguém parecia vê-lo, mas ele estava lá, rindo zombeteiramente e
fazendo gestos ofensivos e provocadores, como que chamando-o para seus
destino.

O comerciante tentou se mover, mas uma força acima de sua vontade
paralisara seus movimentos. Aquele ser estranho e horrendo continuava
lá, fazendo gestos, exibindo os dentes pontiagudos e a pele coberta de
escamas arroxeadas.

Sentiu seu corpo ser agitado. Dedos apressados desabotoavam sua
camisa. Um imbecil qualquer abanou o forma de pizza diante de seu
rosto.

O monstro junto à parede gargalhou. Ninguém o ouvia, mas era
impossível. Tinham de vê-lo e ouvi-lo.

Tudo sumiu, de repente. Aquela força que o paralisava, o que lhe
travava a voz e o que assustava.

-- Lá! -- berrou, em voz alta, assustando a todos, que olharam na
direção apontada.

a velha parede manchada e rachada foi tudo que viram. O corpo de
Vitorio amoleceu-se e ele tombou, amparado por mãos amigas.

-- Vitorio, o que se passa, homem de Deus? -- indagou um amigo
preocupado.

-- Não viram? Lá, na parede? -- voltou a apontar, assim que readquiriu
o controle do corpo.

-- O que havia lá?

-- Não viram? -- insistiu, olhando rosto por rosto.

Todos ficaram sérios, olhando-o com preocupação. Risos zombeteiros
esboçavam-se nos lábios deles, mas eram contidos a custo.

-- Não me diga que... -- ia dizendo um.

-- Vitorio, você não! -- acrescentou outro, começando a rir.

-- macacos ou aranhas? -- quis saber outro.

-- Elefantes?

-- Mussolini?

Em breve formavam um coro que troçava do rosto atônito e embriagado do
comerciante, que se ergueu furiosamente e tentou atacar o mais
próximo.

Todos se afastaram, rindo divertidamente.

-- Acalme-se, Vitorio. Isso não é mal, homem. ainda ontem eu vi um
bando de marcianos nas paredes de meu quarto. É o tributo que se paga
por gostar tanto de vinho... -- comentou um amigo.

-- Isso passa.

-- Passa nada! É melhor ir se acostumando com essa fauna que povoa
nossos sonhos de alcoólatras! -- recomendou outro.

-- Malditos! Corja de imprestáveis! Bando de cegos! Punhado de abutres
gozadores! Eu vi, estava lá, o próprio diabo em pessoa, rindo de mim!
Eu juro como o vi...

-- eu também juro como vi os marcianos -- riu outro e o bar todo o
acompanhou num coro divertido.

Vitorio empurrou dois e passou como um furacão, buscando a porta de
saída. Antes de ganhar a rua, porém, voltou-se e encarou-os,
lançando-lhes um gesto de ofensa e desagrado.

-- Malditos! -- berrou e saiu para a rua, buscando consolo no ar da
noite.

A rua deserta incomodou-o. Desejou encontrar alguém para desabafar a
raiva que o invadira.

-- Bando de abutres gozadores! -- rosnou, cuspindo para o lado,
enquanto avançava cambaleando.

Lembrou-se da figura impressionante que vira. Náuseas assaltaram-no.
Ele apoiou-se a um muro, desejando vomitar tudo que engolira.

Algo fez cócegas entre seus dedos. Ele olhou atônito. Vermes pareciam
brotar de sua pele, esverdeados e nauseabundos.

Agitou a mão, batendo-a contra a coxa, tentando expulsar aquelas
coisas gosmentas e incômodas. Comichões tomaram seu corpo de assalto.

Um odor fétido e desagradável chegou a suas narinas, nauseando-o
definitivamente. Ele apoiou-se com as duas mãos no muro e vomitou um
liquido gosmento e avermelhado. Tremores abalaram-no. ele tentou se
equilibrar.

Dedos frios e repulsivos, com unhas que feriam a sua pele, envolveram
seu pescoço e pressionaram-no para baixo. Apesar de forte, Vitorio se
viu incapaz de lutar contra aquela força descomunal.

Reconheceu o cheiro nauseante. Era enxofre, pior que a substância
pútrida que fora expelida em golfadas de sua boca, onde pulavam vermes
esbranquiçados.

Lentamente seu corpo foi vergando, enquanto aquela força sobrenatural
o empurrava para baixo. Tentou se libertar, mas era inútil.

Caiu de joelhos. Uma gargalhada sinistra enregelou-o. O vento soprou
fortemente, agitando seus cabelos e suas roupas, trazendo um cheiro
forte de enxofre para suas narinas.

Procurou girar o rosto e observar quem o agredia. Estremeceu. Seus
olhos esbugalharam-se ao ver de novo aquele monstro arroxeado, coberto
de escamas, com longos chifres e faces animalescas, de onde escorria
uma baba esbranquiçada e malcheirosa.

-- Oh, Deus! -- lamentou, mas a gargalhada se repetiu, cobrindo seu
apelo.

A força daquela garra o fez se dobrar totalmente, o rosto próximo
daquela massa gosmenta que fora expedida de seu estômago.

Sem piedade o demônio esfregou o rosto de Vitorio Caprilho contra o
cimento e o vomito arrancando-lhe a pele, sangrando-o, enquanto se
divertia.

Soltou finalmente. O comerciante cruel rolou pela calçada. A comichão
em seu corpo acentuou-se. Vermes brotavam de sua pele, que ardia como
que em chamas.


CAPÍTULO 5


Os pombos revoavam sobre a cidade com a chegada do sol, ocupando o
lugar que fora dos morcegos noturnos. a vida retornava febril e
colorida nas ruas de Roma, afastados os temores noturnos.

A despreocupação de uns contrastava com a intensa atividade de outros,
empenhados em seus negócios e afazeres. ao longe, banhado pelo sol, o
monte Equillin não deixava perceber o terror que habitava suas
entranhas.

Num bairro da periferia da cidade, porém, o temor noturno parecia
permanecer nos rostos assustados, cheios de interrogações e
suposições.

Uma aglomeração inquieta formara-se diante de uma das casas. Murmúrios
corriam como presságios malditos, fazendo fundo a um coro lamentações
e lágrimas.

O bairro não adormecera. Atravessara febrilmente a noite, mergulhado
no mais puro terror, desde que o cadáver de Vitorio Caprilho fora
encontrado junto a um muro.

Os motivos de sua morte era desconhecidos, mas comentava-se que sua
maldade o destruíra. Outros lembravam um pacto de crueldade com o
próprio diabo. alguns lembravam-no na noite passada, ainda no Bar do
Pepe, embriagando-se com os amigos.

Nada, porém, explicava sua morte horrível e misteriosa. O segredo
parecia guardado para sempre no ataúde lacrado que se achava sobre a
mesa, rodeado de velas.

Apesar das flores espalhadas, um ar putrefato e nauseante se formara
cobrindo o local como se amaldiçoasse com a podridão prematura.

Estavam todos abalados, principalmente os amigos que haviam encontrado
o corpo. Ninguém podia explicar nada. Um corpo não podia se decompor
tão depressa. Peste nenhuma, por mais maligna que fosse, atacaria tão
rápido e brutalmente.

A verdade, porém, estava à espera no ataúde lacrado. O que fora
Vitorio Caprilho nada mais era agora que um amontoado de carnes
decompostas.

Vermes enormes haviam roído suas entranhas vazando seus olhos,
destruindo sua fisionomia. Se houvera terror no momento da morte,
jamais seria descoberto.

Aquelas criaturas alongadas e onduladas haviam feito seu papel
macabro. A autópsia não pudera ser realizada. Nada havia intacto a ser
analisado.

Parado sob o sol, ainda sob os efeitos da violenta emoção que lhe fora
provocada na noite anterior. Ambrosio tentava raciocinar a respeito
daquilo.

Seu desejo fora cumprido, mas jamais pudera imaginar quão horrível
seria o destino a ser dado ao homem que infernizava sua vida e
tiranizava a família.

Aquela marca enegrecida em seu pulso o convencia agora, enchendo-o de
temor e confiança ao mesmo tempo. Sofia estava livre, ambos estavam
livres.

Não era difícil traçar seu futuro a partir daquele acontecimento. A
família não poderia manter os negócios em andamento sem a mão firme de
um homem.

Ambrosio seria a solução para Sofia e sua mãe. Nada poderia ser mais
adequado a seus planos.

A necessidade de rever a garota de contar-lhe sobre seu libertador, de
revelar-lhe sua nova força, de confessar-lhe um amor agora se redimia
na morte de Vitorio se tornou imperativo.

Avançou lentamente, sentindo-se dono daquela força estranha e
poderosa. Não precisava mais baixar a cabeça a quem quer que fosse. O
destino entrava em suas mãos agora.

-- Ambrosio! -- soluçou Sofia, num grito agoniado, lançando-se nos
braços dele.

Apertou-a contra si, vibrando uma emoção forte e gratificante. Sonhara
com aquele momento inúmeras vezes. lamentou o tempo perdido e gozou a
proximidade adorada daquela mulher.

Consolou-a com palavras ternas, mas, acima de tudo, precisava
contar-lhe. Seu olhar pousou sobre o ataúde. Ali dentro estava a
última barreira a sua felicidade. Riu e daria gargalhadas se tal
atitude não escandalizasse.

-- preciso falar-lhe a sós, querida -- murmurou ele.

Ela o conduziu por entre as pessoas até seu quarto. Quando a porta se
fechou. Ambrosio experimentou uma violenta emoção, fitando aquelas
coisas tão intimas da garota.

Estar ali era como estar dentro dela, compartilhando seus segredos,
numa união total e desejada.

Apertou-a contra si, beijou-lhe os cabelos, deixando-se contagiar pelo
momento. O calor daquela pele o seduzia irresistivelmente. Queria
senti-la, tocá-la, experimentar aqueles contornos, sentí-los sobre seu
domínio.

-- Ambrosio! -- surpreendeu-se ela, entre ofendida e chocada,
afastando-se dele.

-- Que importa agora, querida. Ele está morto -- disse ele, preso da
excitação.

-- Ambrosio! -- repreendeu-o ela.

-- Estamos livres, amor. ele está morto, graças a Deus morto!

-- Não blasfeme assim...

Um riso sinistro o demente surgiu nos lábios dele e seus olhos
brilharam estranhamente.

-- Posso corrigir, querida. Graças a Satã, graças ao diabo! --
sussurrou ele. -- Seu pai está morto. Eu o destrui. eu fiz o que você
desejou e...

-- O que está dizendo?

-- Mas o que importa? Interessa apenas que ele foi morto, que sumiu
para os quintos dos infernos e nos deixou livre para nos amarmos. --
falou ele, excitado, lançando seus braços ao encontro dela.

Sofia recuou para a porta, olhando-o surpresa, incapaz de compreender
o que ele pretendia dizer.

-- Está tentando me dizer que teve alguma coisa a ver com a morte de
meu pai? -- balbuciou ela.

Um riso triunfante surgiu nos lábios dele.

-- Sim, eu causei a destruição dele. Eu fiz aquilo acontecer. Ele deve
ter experimentado o terror absoluto, quando...

-- Ambrosio! Você praticou aquela monstruosidade? Como? Deus meu,
eu...

-- Acalme-se -- pediu ele, tentando se aproximar.

-- Fique longe de mim. eu vi o corpo dele, foi demoníaco o que...

-- É o que estou tentando lhe dizer. Foi o demônio foi Satã, atendendo
ao meu pedido, ao nosso pedido.

-- Você deve estar louco, Ambrosio -- murmurou ela e o medo
estampou-se em suas faces lívidas.

-- Querida, não fale assim... Não me olhe assim... Eu consegui... Nós
estamos livres...

-- Não... Afaste-se de mim! Você enlouqueceu!

-- Mas foi você quem desejou...

-- Ele era meu pai...

-- Mas...

-- Deus!!!

*

Viviana tropeçou e estatelou-se na escuridão. Suas mãos apoiaram-se
numa massa viscosa e malcheirosa. Qualquer coisa moveu-se entre seus
dedos e ela gritou, pondo-se de pé.

Olhou para trás. A luz do fogo a seguia pela escuridão do túnel.
Passos desiguais ecoavam mais alto que sua respiração pesada e seus
gemidos de dor e medo.

Avançou tateando a escuridão daquela caverna, procurando a luz do dia,
tentando encontrar uma saída naquele labirinto. Uma gargalhada soou a
seus ouvidos e lágrimas vieram a seus olhos.

Não conseguia compreender o que acontecia. primeiro aquele homem
monstruoso e feroz, agredindo-a no interior daquele furgão até que
desfalecesse.

Depois, como uma continuação do pesadelo, via-se numa caverna, envolta
pela escuridão. Tentara fugir, mas aquele ser deformado que a
perseguia parecia divertir-se apenas, brincando com seu pavor.

-- Venha a mim, protegida de Satã -- disse uma voz zombeteira, ecoando
pelas paredes frias.

Viviana não entendeu o que aquilo queria dizer. Pensou na irmã, na
afinidade entre as duas, na proteção que Morgana lhe dispensava e
rezou para que ela, de alguma forma, a ouvisse.

Depois seguiu em frente, descobrindo uma passagem. Adiante viu luz,
mas não era a do dia. Avançou tropegamente, até ver-se numa sala de
pedras, iluminada por archotes presos às paredes.

Ao centro, como num altar, havia alguns objetos. Seres humanos
poderiam estar por perto, já que havia luz no local.

Correu até o altar. Viu um grosso volume, encadernado curiosamente e
um punhal brilhante de lâmina recurva e afiada. Empunhou-o e se
escondeu atrás da pedra entalhada.

Torg surgiu tão intrigado quanto ela, olhando o local. Parecia
entender aquele cenário, mas estava mais preocupado com a garota
agora.

Não a amarra, como Drácula ordenara e, por isso, ela fugira quando a
levara para a caverna. Estacou, atento. Ouviu a respiração agoniada.
Sorriu sadicamente e atirou a tocha para o lado.

-- Venha, protegida de Satã! Não quero lhe fazer mal -- disse,
caminhando para o centro da sala de pedra.

-- Afaste-se de mim, monstro -- gritou a garota, pondo-se na defensiva
e erguendo o punhal.

Torg estava se divertindo com aquela perseguição. Um pouco de
resistência final lhe daria o prazer adequado pelo tempo perdido.

Foi caminhando para ela, preparado para se defender no momento certo.

-- Escute, não quero lhe fazer mal. Podemos ser amigos -- afirmou
tentando ser convincente. -- Isso em seu pescoço, onde conseguiu?

Viviana recuou um passo e levou uma das mãos ao pescoço. Morgana lhe
dera aquele medalhão, pedindo-lhe que o usasse sempre.

Lembrava-se das recomendações da irmã. O medalhão era um talismã
poderoso e a defenderia do mal. Nunca acreditara naquilo, mas era uma
bela jóia.

Morgana sempre fora muito estranha e não custava nada fazer a vontade.

Pensou, por instante, na ironia dos fatos. Depois, qualquer coisa
brilhou em sua mente. Sua amiga estava morta, tateara seu cadáver na
caverna escura.

Ele estava viva ainda e, talvez, houvesse alguma lógica na proteção do
medalhão. Um riso confuso estampou-se em sua face, e ela ergueu o
medalhão, esperando, com isso, intimidar o homem diante de si.

Torg riu em resposta e balançou a cabeça. O medalhão não o afetaria.
Na verdade, não pretendia fazer mal à garota. Queria apenas levá-la de
volta e, talvez, tornar-se realmente seu amigo.

-- Onde o conseguiu? -- voltou a indagar.

-- Minha irmã...

-- Ela o deu pessoalmente?

-- Ela o pôs pessoalmente em meu pescoço! -- respondeu a jovem,
intrigada com a curiosidade demonstrada pelo corcunda horripilante.

-- Escute, podemos ser amigos -- disse ele, avançando mais um pouco e
estendendo a mão.

O punhal vibrou no ar e gotas de sangue escorreram pela palma da mão
do corcunda. A ira brilhou em seus olhos e, por momentos, ele esteve
prestes a se deixar levar por ela.

Conteve-se, no entanto. havia uma chance, uma remota chance de se
beneficiar da situação.

-- Não quero lhe fazer mal, juro -- disse abrandando a voz.

-- O que quer de mim?

-- Diga-me onde encontrar sua irmã e eu a libertarei.

-- O que quer com minha irmã?

-- Ajuda... Mas você não entenderá jamais. Diga-me onde encontrar sua
irmã e prometo-lhe não lhe fazer mal algum.

*

Morgana se movia febrilmente pelo quarto escuro, como que dominada por
um instinto selvagem. Traçara símbolos no assoalho e levara uma
vasilha para o centro.

Depois apanhou um candelabro estranho, em forma de metade de uma
estrela, e o postara numa das pontas do pentagrama traçado com um
estranho e malcheiroso pó.

Acendeu as velas, que iluminaram suas faces crispadas. um pombo
arrulhou assustado quando ela o retirou da gaiola e o aproximou das
chamas.

-- Abbadon! -- murmurou ela, depois começou a recitar o Pai Nosso de
um modo estranho, ao inverso, numa linguagem incompreensível a um
leigo.

Quando terminou, havia aproximado o pássaro das chamas o bastante para
que os olhos da ave fossem cegados.

Trouxe-o para cima da vasilha e estendeu uma das mãos para apanhar uma
tesoura ainda em sua embalagem lacrada, que rasgou furiosamente com os
dentes.

Depois, voltando a repetir as mesmas palavras iniciais, degolou a ave
e recolheu seu sangue na vasilha diante de si. A chama do fogo se
refletiu como cintilações de um rubi sobre o liquido morno.

Rouquejou qualquer coisa, jogando a cabeça para trás. O corpo degolado
da ave foi posto de lado. palavras intraduzíveis soaram dos lábios de
Morgana, antes que ela se debruçasse sobre a vasilha com sangue e a
olhasse atentamente.

Juntou as duas mãos ao peito e fechou os olhos por instantes,
suspirando aliviada.

*

-- Isso é palhaçada! -- explodiu Ambrosio, atirando para o lado a
veste negra que a mãe lhe estendera. -- Jamais vestirei essa mortalha.
Acabou-se a farsa. Tudo foi uma loucura.

A velha abaixou a cabeça e pareceu murmurar alguma coisa. Foi
recolher, em seguida, a roupa que o filho atirara para o lado.

-- Foi ela, não? -- indagou, aproximando-se de Ambrosio.

-- Nada lucrei com isso, mãe. Ela me detesta agora, ela me julga um
monstro, ela me abomina e...

-- Nada é impossível para um sabasius, filho.

-- Isso é pura besteira! Eu vi os olhos de Sofia, mãe. Eu vi o
repúdio, a aversão total. Como compreender isso? Ela desejava a morte
do pai... Talvez... me amasse o bastante para não desejar esse crime
horrendo em minhas mãos... -- conjeturou ele, com um olhar demente.

-- Tudo é possível para um sabasius, filho. Você quer o amor daquela
mulher? Você o terá...

-- Não, não quero mais nada dessa feitiçaria, será que não compreendeu
isso?

A velha olhou-o fixamente. Seu rosto enrugado estava sério, ameaçador,
preocupado. Ela estendeu a mortalha negra para Ambrosio e pediu.

-- Use isto!

-- Acabou-se! -- afirmou ele, convicto. -- Perdi o que mais desejava
neste mundo...

-- Nada está perdido quando se tem Satã...

-- Para o inferno com Satã! -- berrou Ambrosio, apanhando a mortalha e
jogando-a ao chão e pisoteando-a num acesso de fúria.

Uma gargalhada explodiu na sala, imobilizando-o. olhou a mãe, sem
entender. ela ria, zombeteiramente, assustadoramente.

-- Não pode recuar agora. Já se entregou a Satã, ele já o presenteou
com as boas-vindas. Agora terá de servi-lo...

Não chegou a terminar. Uma gosma esverdeada explodiu da boca e das
narinas da velha, projetando-se contra o rosto dele, enojando-o.

Ele recuou, tentando se limpar. A velha riu. O vento soprou agitando
seus cabelos. Ambrosio olhou ao seu redor. As janelas estavam
fechadas. De onde viria aquele cheiro de enxofre? De onde brotava
aquele vento insuportável que o empurrava contra a parede e ameaçava
esmagá-lo?


CAPÍTULO 6


Seu corpo se contorcia, rolando pelo assoalho até os limites do
pentagrama. Seu rosto era uma máscara horrível de pavor demoníaco.
Seus cabelos se agitavam loucamente, enquanto suas mãos se lançavam
para o alto, dedos recurvos como garras, tentando alcançar o inimigo
que via em seu transe demoníaco.

-- Cavasti Abbadon! -- urrou ela, rangendo os dentes e
imobilizando-se, finalmente, para olhar a tigela de sangue.

Tomou-a entre as mãos ainda trêmulas e levou-a até a altura dos seios.
Lentamente, então, derramou o sangue do pombo sobre o corpo, fechando
os olhos numa expressão de gozo macabro.

Por longo tempo ficou ali, naquela posição, enquanto o transe
diabólico se diluía nas trevas do quarto e no oscilar das chamas das
velas.

Respirou fundo, finalmente, e ergueu-se. Venceu facilmente os limites
do pentagrama e deixou aquele quarto. A claridade da sala ofuscou seus
olhos. Ela foi repousar o corpo sobre o sofá macio, cobrindo o rosto.

Tudo fora claro, sua irmã corria perigo, mas sua salvação parecia
estar acima das forças de Morgana. havia um poder maligno superior
bloqueando sua visão mística. Não conseguia imaginar o que ou quem
estaria causando aquilo.

Ergueu-se num salto, passou diante de um espelho e recompôs os
cabelos. As roupas manchadas de sangue chamaram sua atenção. o
vermelho vivo a atraiu por instantes e seus olhos brilharam
misteriosamente.

Correu para o banheiro, despiu-se e tomou uma ducha rápida. Logo em
seguida se vestiu e deixou o apartamento. Tomou um táxi e, algum tempo
mais tarde, entrava num enfumaçado barzinho, encravado no subsolo de
um velho prédio num bairro mal afamado de Roma.

Imediatamente rostos se voltaram para ela, encarando-o em silencio.
alguém desligou a máquina da música. Homossexuais, lésbicas,
pervertidos da pior espécie e elementos da mais baixa índole
demonstraram seu respeito à entrada de Morgana.

Ela fez um gesto apenas e todos pareceram entender.

-- Às seis horas místicas -- disse ela, girando nos calcanhares e
retirando-se do bar.

Imediatamente após sua saída o ruído das conversas e a música
retornaram, como se, por instantes, sua presença houvesse feito parar
o tempo naquele local de perdição.

Dali tomou outro táxi, indo até um parque de diversões armado numa das
mais belas praças do centro da cidade. Caminhou por entre a multidão
que aproveitava o sábado para se divertir.

Rumou para as barracas, dispostas num dos cantos da praça, longe da
agitação dos brinquedos eletrônicos. Entrou numa delas.

-- Eu sabia que você vinha -- disse uma megera, olhando fixamente um
globo de cristal diante de si.

-- eu sei. Preciso de ajuda.

-- Conheço seu problema, irmã, mas não posso ajudá-la.

-- Quem pode me ajudar/

-- O que tem a enfrentar está acima de nossas forças, pude sentir.

-- E quem é ele?

-- Não sei... Satã também está do lado dele e o fez tão maligno como
nós.

-- Satã se regozija quando um de seus prediletos demonstra seu poder.
Mas você não pode enfrentar esse mal facilmente. precisa de ajuda...
Da ajuda de outro sabasius. Absorvendo-lhe o poder, você será tão
forte quanto seu inimigo.

-- Acharei outro sabasius.

-- Sei que achará, mas... -- murmurou a velha, como se lesse algo
agourento em sua bola brilhante.

-- Eu nada temo. Rezarei a missa negra e tomarei o poder do outro
sabasius pelo ritual. O que vê em sua bola/

-- Trevas impenetráveis apenas isso -- disse a mulher, mas Morgana
percebeu claramente que ela mentia.

Não se amedrontou, no entanto. conhecia sua missão. Teria de salvar e
proteger a irmã a qualquer custo.

*

Ambrosio se levantou com dificuldade. em seu olhar, havia espanto e
terror. encarou a mãe, cuja expressão transmitia agora uma profunda
serenidade.

-- O que... O que aconteceu? -- balbuciou ele.

-- Uma demonstração de ira de Satã. Você o desafiou, mas ele não
puniu. apenas revelou-lhe sua força. Acredita agora?

-- Como duvidar? -- argumentou ele, pateticamente.

-- Então fique tranqüilo que tudo se arranjará. Você deseja Sofia.
Está noite mesmo você a terá nos seus braços. iremos ao monte para a
cerimônia de sua iniciação. Você pedirá Sofia e ela lhe será dada.

-- Teremos de voltar ao monte, então?

-- sim. Agora, há muito que precisa aprender. Sente-se e ouça, filho
-- ordenou a mulher.

*

Na escuridão da caverna. Torg meditava, quanto olhava o corpo
adormecido de Viviana, encolhido a um canto. No centro da sala de
pedras estava o ataúde negro de Drácula.

O olhar aguçado do corcunda, vencendo a escuridão, fitava aquele
talismã no pescoço da jovem adormecida. Reconhecia aquilo um poder
superior algo acima das forças do próprio Príncipe das Trevas.

Quem o havia posto no pescoço da jovem, possuía um poder que tentava
Torg. Alguém com aquela força poderia dar-lhe de imediato um novo
corpo, aplacando aquele desejo que o desesperava há muito.

Livrar-se de sua carcaça deformada e repugnante poderia ser um bom
preço pela traição. Ainda assim, relutava. Conhecia a ira do Drácula.
Não havia lugar no mundo onde pudesse estar seguro, caso o traísse.

A menos que...

Estremeceu diante da idéia, mas a verdade era aquela. Se havia alguém
capaz de destruir Drácula, seria Torg. Protegido pelo poder de uma
filha de Satã, não seria difícil realizar aquela missão e sobreviver
para gozar seu novo corpo.

Anos de servidão fiel passaram por sua mente. Dedicara-se sempre ao
morcego humano, mas o que recebera em troca? Humilhações, ofensas,
desprezo.

Ergueu-se, resoluto, e deixou a sala de pedra. Caminhou facilmente
pelo labirinto de túneis. Seu instinto animalesco o conduzia para a
lua do sol.

*

Morgana caminhou na direção do casebre, guiada por uma força
desconhecida. Sabia que ali encontraria o necessário. O ritual negro
mostrara-lhe onde encontrar a ajuda de que precisava.

Seus passos eram apressados. A tarde que caia, anunciando a noite, era
cheia de presságios. a escuridão parecia trazer um perigo maior a sua
irmã.

Tudo que sabia dela era que estava ameaçada e cercada pelas trevas
frias de algum lugar assustador. O mal que a ameaçava era poderoso.

Bateu a porta e aguardou com impaciência.

Quando Ambrosio abriu a porta e encarou-o frêmitos percorreram seus
corpos e seus olhos brilharam intensamente, numa revelação.

Morgana sabia o que aquilo significava. Ambrosio pressentia apenas. A
garota exibiu a marca negra em seu pulso.

-- preciso de ajuda! -- disse ela.

Ambrosio esboçou um sorriso atônito e se voltou para olhar a mãe. A
velha fixou-se no pulso de Morgana, entendendo.

-- Entre! -- disse.

-- Tenho pressa. Preciso de ajuda.

-- E o que a ameaça? -- indagou a mulher.

-- Laços de sangue estão ameaçados. Minha irmã...

-- Entendo! Sou velha, mas meu filho, um sabasius iniciante, poderá
ajudá-la.

-- Iniciante? -- indagou Morgana, olhando-o.

Aquilo tornava mais fácil seu plano. Todo o poder latente naquele
bruxo poderia ser assimilado por ele, conhecedora há muito da magia
negra.

Seria como roubar uma criança, mas era necessário. Seu poder místico
percebia a confusão interior que habitava Ambrosio.

Ele não estava de todo definido e havia desejos conflitantes dentro
dele.

-- Vai me ajudar? -- indagou a ele.

-- Sim, claro.

-- E o que posso dar-lhe em troca?

-- Nada que eu não possa ter.

-- O amor de uma mulher? -- arriscou Morgana.

-- Talvez sim -- sorriu ele.

-- Uma virgem?

-- Uma adorável virgem -- confessou o rapaz, ingenuamente.

Os olhos de Morgana luziram estranhamente e seu sorriso demonstrou
satisfação interior.

-- Você terá ainda está noite. Onde recebe suas legiões?

Diante da ignorância de Ambrosio, sua mãe se adiantou.

-- Ambrosio ainda é iniciante, como já disse. Hoje rezaria sua
primeira missa negra.

-- Rezaremos juntos, então. Eu o ajudarei a agrupar em torno de si os
discípulos necessários. Já escolheu seu local?

-- É um velho altar, no monte Equillin -- respondeu ele.

-- Excelente! Estaremos lá na hora mística. Juntos conseguiremos fazer
prevalecer nossa vontade -- prometeu ela, retirando-se.

Ambrosio ficou à porta, vendo-a afastar-se. Voltou-se, então, para a
mãe.

-- Como ela soube de mim?

-- Você descobrirá que todos sabemos de nossos irmãos, quando
necessitamos deles. Descobrirá, também, que jamais deveremos confiar
neles.

-- Como assim?

-- Satã é um pai generoso, mas cruel. Cerca-se dos poderosos. Seus
filhos indecisos e fracos são destruídos. Por isso você tem de ser
forte, impiedoso. Seu poder é grande, filho, mas poderá ser maior,
mais experiente, se conseguir destruir essa mulher.

*

Torg estava nas proximidades do prédio. Seu coração se convulsionava
de ódio e ressentimento ao perceber os olhares zombeteiros e piedosos
que lhe eram lançados.

Nada daquilo aconteceria se possuísse um corpo belo, elegante e
atraente. Sua mágoa contra Drácula se agigantava, cegando-o. O vampiro
poderia tê-lo recompensado há muito tempo, mas se divertia em
torturá-lo, adiando para um tempo indeterminado a realização daquele
sonho.

Repentinamente, um táxi parou diante do prédio e uma garota desceu.
Torg olhou-a incrédulo. Tudo se confundiu em sua mente por instantes.

-- Gêmeas! -- exclamou, afinal, compreendendo.

Morgana avançou para a entrada do prédio. Torg atravessou rapidamente
a rua.

-- Abbadon! -- disse ele e a garota se voltou como que tocada por um
raio.

Torg se aproximou, maravilhado. Era incrível a semelhança entre as
duas irmãs.

-- Gêmeas idênticas! -- murmurou ele, diante dela.

Os olhos da bruxa brilharam e seu corpo estremeceu. A proximidade
daquele corcunda traía o círculo maligno que o envolvia.

ao mesmo tempo, aquela observação só podia ter um significado.

-- Onde está ela? -- indagou, chamando a si todo o poder da maldade
para ampará-la.

-- Bem -- respondeu Torg, percebendo que seria fácil dialogar com ela.

Ambas eram gêmeas. Seguramente haviam nascido em condições especiais.
A que, estava diante dele nascera depois e trouxera consigo o sinal do
diabo. Isso a obrigava a proteger a irmã contra tudo e contra todos.
Era uma espécie de anjo da guarda do mal.

-- Eu a quero, sã e salva -- disse Morgana.

-- Você pode tê-la, se... -- hesitou ele.

-- Se?

-- Se me ajudar.

Ela olhou e compreendeu de imediato. Alguém com aquele corpo só
desejaria uma coisa de uma filha de Satã.

-- Eu posso lhe dar um novo corpo -- afirmou ela, pensando em
Ambrosio.

O bruxo iniciante viera a calhar perfeitamente em seus planos. poderia
tomar-lhe o poder e ainda usar seu corpo para pagar aquela troca.

-- Imagino, ainda assim, que não será fácil, não é? -- quis saber ela.

-- Vi o talismã que pôs no pescoço de sua irmã. Se aquilo revela a
dimensão do seu poder, não será tão difícil.

-- Contra quem lutarei?

-- Nosferat -- rouquejou Torg.

Morgana estremeceu. Um vampiro era um ser poderoso, privilegiado na
escala demoníaca, preferido de Satã acima de seus outros filhos mais
diretos.

Se o vencesse, porém, seu privilégio estaria assegurado e seu poder
não teria limites. O corcunda poderia ajudá-la muito mais do que
imaginava.

-- Onde ele se esconde?

-- Nos labirintos do monte Equillin.

-- Conveniente -- sorriu a discípula do mal -- Muito convincente.

*

Lentamente as trevas venceram a luz e a noite chegou sobre o monte
maldito, que via reunir-se em seu ventre as mais estranhas e sórdidas
criaturas.

Num ponto profundo de seu labirinto de túneis, um ser monstruoso
ergueu-se de sua tumba e aspirou o ar úmido da caverna.

A escuridão total não o incomodava. Seus olhos se dirigiram para um
canto, onde um corpo feminino maltratado ressonava suavemente.

-- Torg! -- chamou Drácula e sua voz ecoou, despertando a garota, que
encolheu-se aterrorizada.

Por instantes nada pressentiu. Depois, gradativamente, uma respiração
pesada, animalesca, selvagem, soou mais e mais, envolvendo-a num
terror desesperado.

Suas mãos se juntaram sobre o medalhão. O corcunda dissera a respeito
do poder oculto ali dentro, capaz de livrá-la de todo o mal.

Drácula a fitava. Seu olhar animal brilhou, como chamas do inferno.
Sua sede de sangue o espicaçava e a força que se opunha a ele era um
desafio.

Caminhou lentamente ao encontro dela. Seu olhar maligno se concentrou
nos olhos dela, forçando-a, vencendo-a, ameaçando-a.

-- Quem está ai? -- indagou Viviana, aterrorizada, tentando fugir à
força daquele olhar sanguinolento que vinha em sua direção.

Uma gargalhada soturna se ouviu, aumentando e ecoando pelos túneis
ameaçadora e zombeteiramente. Depois silenciou e apenas um ranger
trágico de dentes, acompanhando de um rosnado furioso, se fez ouvir.

Drácula lutava contra o poder do talismã.


CAPÍTULO 7


Um urro grotesco e raivoso provou que suas forças eram insuficientes
para vencer aquela palavra mística escrita num pergaminho virgem e
guardada no interior do medalhão que Viviana segurava fervorosamente.

Como fera enraivecida. Drácula caminhou de um lado para outro. Sua ira
crescia, seu poder desafiado o fazia crispar os músculos e chamejar os
olhos.

Viviana experimentava momentos de indescritível terror. pressentia
aquela presença feroz rondando-a, mas não podia vê-la ou enfrentá-la.
apegava-se ao medalhão, esperando que cumprisse sua missão.

Instintivamente, porém, foi rastejando pelo chão úmido da caverna, ao
longo da parede. Esbarrou numa sacola. Tateou-a. Encontrou fósforos e
uma vela. Acendeu-a. A claridade fez o monstro recuar.

As faces do vampiro eram uma máscara de ódio e impotência. Seus olhos
destilavam sangue, seus dentes brilhavam, refletindo o fogo da vela.

-- Afaste-se de mim, monstro -- berrou a garota, fechando os olhos e
erguendo o medalhão.

-- Tola! Idiota! Mulher inútil! -- rugiu o vampiro, apanhando uma
pedra e arremessando-a contra a perna de Viviana.

ela gemeu sufocado e levou as mãos ao membro ferido. À vista do
sangue, um furor endemoninhado se apossou de Drácula, que avançava e
recuava, as mãos à frente como garras, os dentes rangendo
furiosamente, um rosnado surdo brotando de seu peito.

O cheiro adocicado do sangue espalhou-se pela caverna. As narinas do
vampiro dilataram-se, ele estremecia convulsivamente, desejando
despedaçar a mulher que ousara desafia-lo.

Foi então que seu olhar se dirigiu para o corpo da outra garota, morta
na noite anterior. olhou-a demoradamente, depois foi até o cadáver,
virando-o.

O Príncipe das Trevas inclinou-se sobre ela, agarrando-a pelos cabelos
e erguendo-a. Viviana acompanhou aterrorizada a ação do monstro.

O corpo de sua amiga posto em pé. Drácula enlaçou-a em seus braços,
então, apertando-a contra o peito. Seus lábios finos e frios
aproximaram-se daquele rosto, bafejando-o com cheiro da morte.

Depois, num ritual que fez Viviana enlouquecer de pavor. Drácula
beijou o cadáver, enquanto o envolvia em sua capa negra.

Por instantes ficou ali, como um negro e enorme morcego, protegendo a
presa com suas asas demoníacas. Depois, lentamente se afastou.

-- Não! -- berrou Viviana, vendo o corpo da amiga em pé.

Uma palidez mórbida cobria-lhe o rosto agora. Seus olhos se abriram,
brancos, sem expressão, frios como o olhar da morte.

Ela olhava Drácula, como se observasse o poder maligno que lhe
destituía a vida. Sorriu. Caninos alongados e pontiagudos se
sobressaíram, fazendo de seu sorriso um símbolo da maldade.

Drácula gargalhou satanicamente.

-- Vá! -- ordenou a sua discípula e ela se voltou para Viviana, que se
encolheu por instantes, depois tentou rastejar.

A ferida em sua perna sangrou mais ainda, espicaçando Drácula e sua
vampira, que avançava resolutamente para Viviana.

-- Não, afaste-se! -- suplicou a garota, apertando e erguendo o
medalhão.

-- É inútil agora -- gritou Drácula, concentrando todo os eu poder no
cadáver ambulante que cumpria seu desejo.

-- Não! -- balbuciou Viviana, fracamente, desfalecendo.

A vampira se voltou para o mestre e sorriu, mostrando os dentes
ameaçadores. Depois caminhou rapidamente, como um lobo carniceiro,
para junto de Viviana, arrebatando-lhe o medalhão e atirando-o para
longe.

Depois, resfolegando, debruçou-se sobre a garota, buscando seu
pescoço. O palpitar da veia jugular espicaçou-a e o desejo de sangue
se fez intenso.

-- Pare! -- ordenou Drácula, quase voando sobre ele e agarrando-a
pelos cabelos.

A vampira rugiu, defendendo-se com as unhas feito garras agora.
Drácula socou-a violentamente na cabeça, jogando-a para longe.

Depois, rosnou e amaldiçoando, debruçou-se sobre o corpo de Viviana,
agarrando-o pelos cabelos para trás. Seu olhar se concentrou na veia
palpitante. Suas presas avançaram, rasgando profundamente as cernes
tenras. O sangue jorrou para seus lábios sequiosos.

Atrás dele, igualmente sedenta, a vampira se arrastou para junto do
corpo de Viviana, agarrando-lhe a perna ferida e lambendo
prazerosamente o sangue que lhe escorria.

*

-- Abbadon! Cavasti Nosferat! -- gritou Morgana, dobrando-se
inicialmente, depois jogando-se para trás e rolando na umidade da
caverna.

Seus discípulos olharam-na sem compreender. Torg e um canto,
estremeceu, suspeitando. Ambrosio e sua mãe se entreolharam, pasmados.

Lágrimas de sangue escorreram dos olhos de Morgana, quando ela se
levantou dolorosamente. Suas mãos se fechavam com força. As unhas
pontiagudas cravavam-se nas palmas, ferindo-as e sangrando-as.

-- Nohasti maganif! Cavasti Nosferat! -- Voltou a gritar Morgana,
esfregando as mãos e lambuzando de sangue seu próprio rosto,
transformando-o numa máscara de dor e ódio.

Seu grito de desafio avançara profundamente pelos túneis escuros,
ecoando como se o próprio monstro gargalhasse satisfeito com a volta
total da maldade a suas entranhas.

Ajoelhada agora, Morgana passou os olhos pelos seus discípulos,
surpresos com a atitude de sua mestre. Ela sabia o que houvera. De
alguma forma, sua irmã sucumbia ao poder maior do vampiro que a
ameaçava.

Isso dava-lhe uma mostra do poder que teria de enfrentar, mas não
recuaria agora. Satã saberia recompensar a força de sua filha, quando
ela vencesse.

Seu olhar se voltou, então, para Ambrosio, parado ao lado do altar
pagão. Por momentos pareceu ler sua alma e seus pensamentos. Depois se
concentrou profundamente, murmurando velhas orações malditas.

-- O que pensa que vai fazer? -- indagou a mãe de Ambrosio,
reconhecendo-as.

Morgana não a ouviu. A velha avançou, postando-se diante da bruxa mais
jovem e encarando-a.

-- Eu sei, Morgana! Eu sei! -- disse, num rugir furioso.

-- Cale-se, velha bruxa, e ceda à força dos argumentos. Não planejei
nada para você. Eu a respeito pelo seu papel. Leonardo a tem em sua
glória, mas não me desfie.

-- Eu defendo o que é meu! -- rosnou a velha.

-- Mas, o que está havendo? -- indagou Ambrosio, incapaz de
compreender aquele dialogo ameaçador.

-- Ela quer seu poder, filho! Mas só o terá passando sobre meu
cadáver!

-- Não me desafie, velha bruxa -- rosnou Morgana, pondo-se em pé.

Seu rosto transfigurado revelava decisão e dor. Não planejara destruir
a mulher diante de si, mas o faria, se preciso fosse.

Seu poder seria fortalecido um pouco mais, mas Satã jamais apreciava a
destruição de uma velha servidora.

A velha, no entanto, ergueu as mãos e estremeceu convulsivamente. Seus
olhos brilharam satanicamente. Morgana cambaleou alguns passos, depois
seu corpo enrijeceu-se.

O olhar da velha demonstrou surpresa. Talvez esperasse provocar a
destruição de Morgana, mas esta se revelara forte demais.

A confirmação de sua suspeita veio em seguida. os olhos de Morgana se
arregalaram, como se círculos de fogo concêntricos brotassem deles.

O corpo da velha foi jogado violentamente para trás. Pedras soltas
espalhadas pelo chão da caverna voaram em sua direção, atingindo-a,
dilacerando sua pele enrugada.

-- Pare! -- ordenou Ambrosio, num grito, apontando sua mão para
Morgana.

Uma convulsão violeta dobrou o corpo da jovem. Seu rosto demonstrou
estupor. Sua língua enrolou-se em sua boca, ameaçando sufocá-la.

Ambrosio talvez não dominasse muito bem seu poder, mas acabara de dar
uma demonstração de sua força. Enquanto corria para junto da mãe,
Morgana rosnava, tentando arrancar a língua de sua própria garganta.

Ao redor, olhando-a pateticamente, os discípulos da bruxa reconheciam
sua impotência para ousarem se intrometer naquela disputa poderosa.

-- Não! -- gritou Ambrosio, ao remover as pedras que cobriam o corpo
da mãe.

Espinhos brotavam das feridas em sangue, um sapo estufou as bochechas
da mulher, que regurgitou e o lançou para fora. O negro animal, de
olhos esbugalhados, fitou Ambrosio como se zombasse dele.

O rapaz apanhou uma pedra e bateu sobre ele. Uma fumaça nauseabunda se
elevou e, no momento seguinte, o horrível animal sumira.

A velha regurgitou novamente e expeliu sangue pela boca e pelas
narinas. Seus olhos encararam o filho com piedade, depois se voltaram
para dentro, brancos e sem vida.

-- Maldita! -- berrou ele, abraçando-a, manchando-se em seu sangue.

Largou-a e se voltou para Morgana, que respirava ofegante e cruzava as
duas mãos diante do peito, num gesto de defesa. Talvez não suportasse
a ira de Ambrosio. Um filho de Satã enfurecido era indomável.

Confiava, no entanto, na estratégica de seus planos. Cedo ou tarde
teria nas mãos como dominá-lo.

E então, como que atendendo suas preces macabras, seus discípulos se
afastaram e um vulto feminino e delicado, trajando uma camisola
transparente que realçava suas formas avançou.

Ambrosio olhou atônito. Era Sofia. Tentou correr para ela mas, a um
gesto de Morgana, um circulo de fogo cercou-a, barrando a passagem
dele.

O rapaz se voltou para ela. Seus olhares se cruzaram, em desafios,
medindo forças. Morgana riu, quando Ambrosio cedeu. A vida de Sofia
lhe era mais importante. Imobilizou-se. Morgana repetiu o gesto e o
circulo de fogo desapareceu. Sofia caminhou pra ela.

Morgana a recebeu em seus braços, apertando-a contra si. Depois,
beijou-a nos lábios com lascívia, para horror e desespero de Ambrosio,
que ameaçou avançar.

A bruxa repetiu o gesto anterior e o circulo de fogo enlaçou Ambrosio,
prendendo-o. ele se debateu, mas aquelas chamas invocadas das
profundezas do inferno formavam uma barreira intransponível.

-- Alegremo-nos, irmãos! -- disse Morgana. -- Já temos a virgem para o
nosso Sabá.

Seus discípulos urraram de gozo e se uniram, de mãos dadas, num
circulo ao redor da bruxa. A um canto, fascinado, Torg observava tudo
atentamente.

Muita coisa acontecera ali, rapidamente, prendendo sua atenção.
Esquecera-se que a noite chegara e que Drácula se levantaria do ataúde
e procuraria por ele.

Sua preocupação era o corpo prometido. pelo que via, logo sua alma
habitaria Ambrosio. Olhou-o com interesse. Era um belo jovem,
vigoroso, másculo, atraente.

Com a fortuna de Drácula em suas mãos, não seria difícil recuperar em
pouco tempo os anos todos aprisionados naquela carcaça poder e
repugnante.

*

Saciado, Drácula se afastou do cadáver de Viviana, enquanto sua
discípula avançava, tentando colher as últimas gotas que escorriam da
garganta da outra.

O vampiro da noite limpou a boca lambuzada de sangue. A mulher loura
se levantou, então, aproximando-se dele e postando-se respeitosamente
de joelhos.

Um brilho de maldade tornava seus olhos esbranquiçados assustadores.
De sua boca lambuzada de sangue escorregava uma gosma avermelhada, que
ela colhia com a língua, lambendo-se como um animalzinho esfomeado.

Drácula afagou os cabelos de sua seguidora. Não sabia ainda que
destino daria a ela. Poderia lhe servir, atraindo novas vitimas. Sem a
perseguição implacável de um homem como o Prof. Hilgenstiller, o
vampiro poderia descansar em paz, escolhendo um local propício,
formando uma legião de vampiros que o serviriam fielmente.

Aquela loura afável poderia ser a primeira delas. Mas onde estaria
Torg?

Ergueu, então, a cabeça. Seu ouvido aguçado de morcego humano parecia
captar sons tétricos que percorriam aqueles túneis infindáveis.

Seria o vento soprando uma alegre melodia? Sorriu saciado e forte. O
ódio em seu coração, porém, não havia se aplacado.

Seu olhar maligno se voltou para o corpo exangue de Viviana, caído
grotescamente junto à parede de pedra. Que força misteriosa estivera
por trás dela/

procurou, então, pelo medalhão. Estava aberto e o pedaço de pergaminho
saltara fora. Era inofensivo, agora que fora vencido.

Tomou-o nas mãos e desembrulhou-o. Leu a palavras mística que, após um
ritual, ganhava a força de proteger quem a portasse de todo o mal.

Riu, então, satisfeito por perceber que seu poder ainda era maior
sobre a face da terra. Depois, intrigado, voltou a examinar o
pergaminho.

-- Seguidores de Satã! -- murmurou e sua voz ecoou lugubremente.

-- Como disse, mestre? -- indagou a mulher, rastejando servilmente até
seus pés.

-- Isto -- disse ele, mostrando o medalhão e o pergaminho.

-- Morgana o deu a sua irmã. Sempre suspeitei que fosse uma adoradora
do diabo -- disse a loura.

-- Sabe onde achá-la?

-- Sim, ela mora...

-- silêncio! -- ordenou Drácula, aguçando os ouvidos.

Pelos corredores sombrios, morcegos esvoaçavam assustados, como se
algo os houvesse expulsado de seus ninhos.

-- Eu ouço! -- murmurou o vampiro, quando um frêmito percorreu seu
corpo.

A presença do mal, assim como a daquele medalhão momentos antes,
parecia habitar aquelas cavernas. Em algum ponto, tinha sua origem.

Isso intrigou Drácula, da mesma forma como intrigava-o não encontrar
Torg ali. A noite chegara e o corcunda sempre estivera presente nesses
momentos.

A menos que algo muito mais importante surgisse, mas nada havia para
Torg acima de Drácula. A não ser seu desejo tolo por um novo corpo.

Um pressentimento demoníaco passou pela mente perversa do Príncipe das
Trevas. Voltou-se e olhou o corpo de Viviana. A idéia era absurda.
Torg jamais ousaria desafiá-lo.

-- Fique e proteja meus domínios -- ordenou à loura.

-- Mestre, sou Conciliata!

-- Não, seu nome, agora, será Daura -- disse ele, depois foi
caminhando na direção de um dos túneis que partiam daquela sala.

Uma fosforescência maligna envolveu-o, alterando sua forma para a de
um enorme e asqueroso morcego, que agitou suas asas pontiagudas e
desapareceu nas trevas, buscando a direção daqueles sons lúgubres e
arrastados.


CAPÍTULO 8


De costas para o altar profano, os discípulos do mal entoavam cânticos
fúnebres, enquanto Morgana despia Sofia e a submetia a sua vontade,
obrigando-a a se postar diante do altar, apoiada nas mãos e nos
joelhos, numa grotescas posição.

Sobre as costas nuas da garota, Morgana depositou um cálice de haste
retorcido, encimada por metade de um crânio humano.

Velas negras, sobre a pedra, iluminavam agora o ambiente. As tochas
haviam sido apagadas. Um cheiro de enxofre parecia vir das entranhas
da terra.

-- Leonardo! -- murmurou Morgana.

-- Leonardo! Leonardo! Leonardo! -- repetiu os outros, numa cadência
pesada e inquietante.

O pesado volume foi depositado sobre as costas de Sofia, ao lado
daquele cálice. Morgana abriu uma página ao acaso e recitou:

-- Lúcifer!

-- Abbadon! -- repetiu o coro.

-- Bal! Rosierth! Eu vos conjuros!

O coro repetiu suas palavras, abalando as paredes da caverna, fazendo
bruxulear as chamas das velas negras. Tomando o punhal místico,
Morgana traçou um circulo no ar, na direção de Torg, que estremeceu,
sentindo-se abalar por uma força estranha.

A bruxa se voltou para Ambrosio, caído no chão frio da caverna,
impotente diante de um poder maior que o seu. Seus músculos
crisparam-se e ele tentou erguer o rosto.

Os olhos da bruxa cintilaram. Ambrosio cedeu novamente, tombando para
o chão.

O coro silenciou. Morgana ofegava, fitando o copo nu de Sofia. Depois
encarou Torg, que olhava fascinado o corpo virgem de Sofia, sonhando
momentos em que gozaria prazeres há muito sepultados dentro de si.

Percebeu, porém que Morgana estava abalada. Não conseguia entender o
motivo, mas aquilo poderia ser perigoso para ela. Ambrosio era um
bruxo poderoso. Deitado como estava, em contato com a terra, seu corpo
poderia estar absorvendo novas forças.

Seguramente ele as teria num local como o monte Equillin. Desejou
interferir, pedido que Morgana apressasse o ritual e terminasse logo
com tudo.

Um pavor intenso e indescritível tomou conta dele, quando o morcego
enorme penetrou na caverna, fazendo tremer as chamas das velas negras.

Morgana se pôs em guarda, as unhas prontas para atacar, rangendo os
dentes e descabelando-se em movimentos demoníacos. O morcego parecia
brincar com ela, girando ao seu redor, entontecendo-a.

Ambrosio se ergueu, então, livre do domínio da outra. Olhou Sofia,
naquela grotesca posição e seu ódio agigantou-se. Ele correu para
junto dela e puxou-a para si, derrubando os objetos que ela
equilibrava a suas costas.

-- Pare! -- ordenou Morgana, voltando-se para ele. -- Profanou a
cerimônia.

Uma gargalhada satânica explodiu na caverna, enregelando o sangue dos
discípulos do mal.

A figura de Drácula se metamorfoseou diante deles. O monstro
encarou-os um por um. Quando seu olhar fitou o de Morgana ela
estremeceu, mas manteve-se incrivelmente calma.

Pareceu reconhecer a figura sinistra que vira em suas visões,
ameaçando sua irmã. Olhou Torg, que se encolhera aterrorizado. Tudo
estava claro, portanto.

-- Beberei teu sangue, filha do demônio! -- prometeu Drácula, embora
se postasse na defensiva.

Conhecia o poder daquela bruxa. Vence-la era difícil, mas não
impossível.

Morgana ofegou. Falhara em sua missão de proteger a irmã por culpa
daquele nosferat. Sabia, no entanto, como atacá-lo. Não que estivesse
pronta. Mais alguns instantes e somaria seu poder ao de Ambrosio.

-- Espalharei suas cinzas pelas encostas flageladas deste monte,
vampiro.

Drácula gargalhou, tentando abalar a confiança da bruxa. Morgana se
moveu com rapidez, traçando dois círculos no ar. Depois fechou os
olhos, enquanto uma cruz de fogo ardia no centro da caverna.

Drácula urrou, blasfemando e cobrindo os olhos com os braços. Recuou
para a parede, mas a cruz o perseguia. Todos olharam atônitos a grande
cena.

Retorcendo-se e urrando, o vampiro encolheu-se, querendo fundir seu
corpo à pedra, enquanto o fogo mais e mais se aproximava, ameaçando
reduzi-lo a cinzas.

-- Torg! Ajude-me! -- berrou ao seu servo.

-- Ele jamais o ajudará! -- respondeu Morgana. -- É meu discípulo
agora. Terá um novo corpo, algo que deseja acima de tudo agora,
monstro. eu o atenderei e o farei espalhar suas cinzas pelo monte!

-- Maldito seja, filho do demônio! A vingança do Drácula permanecerá
eternamente sobre sua cabeça, Torg. Ajude-me ou lamentará para o resto
da eternidade!

Morgana gargalhou, concentrando-se naqueles traços de fogo que
avançavam para o Vampiro da Noite.

Ambrosio, porém, recuperava-se em definitivo. Vendo Morgana
concentrada e de olhos fechados, concentrou-se no punhal que jazia
caído ao lado da bíblia de Satã.

Como que movido por mãos por mãos invisíveis, a arma aprumou-se e se
lançou no espaço. Morgana abriu os olhos no último momento e gritou de
dor ao sentir a fisgada que espargiu sangue sobre seu rosto.

Contorceu-se e se dobrou, agarrando o cabo do punhal e puxando-o. com
Horror, percebeu na ponta recurva, o globo sangrento de seu olho.

Imediatamente a cruz de fogo se desfez. Drácula encolheu-se e seu
corpo luziu, como que irradiando luz. No momento seguinte, em vôo
rasante, o morcego negro sumiu por um dos túneis.

-- Maldito! Filho de uma megera! -- urrou Morgana, transfigurando-se.
-- agarrem-no. -- ordenou a seus discípulos, que caíram imediatamente
sobre Ambrosio, subjugando-o.

Com as mão atadas, ele foi jogado de joelhos diante do altar pagão.
Morgana olhou-o com seu único olho agora. Da órbita vazia pendia uma
confusão de veias e nervos. Ela arrancou uma tira de sua veste e
improvisou um atadura, cobrindo-o.

Com seus poderes, não seria difícil reconstruir seu rosto. Agora
precisava concentra toda a sua energia na vingança que absorvia o
poder daquele bruxo.

Para tanto, teria de fazê-lo implorar e abjurar Satanás. isso não
seria difícil, considerando a presença de Sofia.

A bruxa tinha pressa agora. precisava estar preparada para a volta do
morcego humano. A um gesto seu, seu bando de degenerados caiu sobre o
corpo virginal de Sofia. Lésbicas e maníacos sexuais deram vazão a
seus instintos, sob o olhar desesperado de Ambrosio.

A um canto, Torg tremia. A voz trovejante de Drácula, jurando maldição
e vingança, ainda ecoava em seus ouvidos. Talvez, Morgana pudesse
superá-lo, mas Drácula não seria tolo de enfrentá-la num encontro
direto.

-- Ambrosio, meu adorado! Ajude-me! -- suplicou Sofia, enojada pelas
mãos e lábios pegajosos que avançavam sobre seu corpo, devassando-o
inteiramente.

-- pare! Pare! -- gritou o rapaz, rastejando para os pés de Morgana,
que olhou-o em triunfo.

-- Abjure Satanás! -- ordenou.

-- Eu o abjuro. eu esconjuro as forças do mal, eu esconjuro a minha
maldição, eu não sou filho de Leonardo -- gritou ele, preso do horror
e do desespero.

A bruxa gargalhou, enquanto os gritos de pavor de Sofia silenciavam e
apenas o som cadenciado de sua respiração se ouvia, quando um homem nu
cavalgava, deflorando-a e sangrando-a impiedosamente.

Morgana apanhou o punhal, que ainda trazia em sua ponta seu globo
ocular. Limpou-o nos cabelos de Ambrosio, depois traçou uma série de
símbolos no ar.

O corpo dele se contorceu. Seus olhos se arregalaram. Sua boca espumou
raivosamente. Num espasmo maior, quedou-se imóvel, enquanto Morgana
fechava os braços ao redor do próprio corpo, como se recebesse com
prazer algo etéreo que se elevava do vencido.

Ela gaguejou deliciada, depois abriu os braços encarou Torg.

-- Você quer este corpo? -- indagou, apontando o cadáver imóvel de
Ambrosio.

-- Sim... -- respondeu o corcunda, tremendamente.

-- você o terá! Aproxime-se!

Mal havia dado um passo, Torg estacou, percebendo a entrada na caverna
da garota loura que Drácula havia atacado na noite anterior.

A bruxa também a viu e se pôs na defensiva. Com sua atenção atraída
para a figura ameaçadora que caminhava lentamente em sua direção, não
percebeu a entrada de uma enorme ratazana, que foi se alojar entre as
pedras do altar profano.

-- O que quer? Quem é você? -- indagou Morgana, os braços se alongando
diante do corpo.

-- Daura! -- respondeu a jovem , num tom inexpressivo.

-- O que quer?

-- Eu não quero. eu faço -- respondeu a vampira.

-- Afaste-se ou a destruirei! Afugentei seu mestre e poso afugentá-la
também.

Daura não a ouvia. Continuou se aproximando. Morgana fez um gesto e o
punhal macabro avançou no ar, cravando-se no peito da outra, que riu,
arrancou-o e quebrou-o, jogando seus pedaços ao chão.

Morgana traçou a cruz no ar e o fogo iluminou os olhos esbranquiçados
de Daura, que recuou, cobrindo-os. Por instantes hesitou, depois
firmou-se e caminhou resolutamente ao encontro das chamas, que
envolveram seu corpo imediatamente.

Um grito de puro pavor escapou de sua garganta em chamas, mas ela
continuou em frente, movida pelo instinto de servidão que a ligava a
seu mestre.

Morgana estremeceu diante da tocha humana que se retorcia
horrivelmente, mas continuava avançando. Fez um gesto e pedras voaram
para cima de Daura, arrancando pedaços em chamas de seu corpo.

-- afaste-se! -- ordenou e um vento sibilante soprou contra as chamas,
apagado-as, mas sem evitar que, num esforço sobrenatural, o cadáver
ambulante e deformado de Daura se jogasse contra Morgana, enlaçando-a
num abraço mortal.

Os discípulos da filha de Satã recuaram, horrorizados. presa naqueles
braços possessos, a bruxa se debatia, pedindo ajuda, mas imobilizada,
afinal.

Náuseas e horror abalaram seu corpo. Uma ratazana esgueirou-se das
pedras do altar e avançou para ela. A bruxa tentou se livrar mas,
rápido e cruel, os dentes afiados do animal cravaram-se em seu único
olho, vazando-o.

No momento seguinte, para horror e espanto de Torg, a sinistra e
ameaçadora figura de Drácula surgiu do corpo do rato.

Chamas repentinas voltaram a brotar do corpo de Daura. Morgana
rastejou, libertando-se, as vestes em fogo, o olhar tresloucado. Numa
corrida cega, chocou-se contra as rochas, tropeçando no cadáver de
Sofia, blasfemando e urrando desesperadamente.

A ira de Drácula explodiu, então, em todo a sua violência e crueldade,
jogando-se sobre Morgana e cravando suas presas fatídicas no pescoço
da bruxa.

O sangue jorrou e Drácula sorveu-se avidamente, enquanto golpeava
impiedosamente o corpo dela, moendo-o com sua força descomunal.

Um odor de carnes em fogo dominava a caverna. os discípulos da bruxa
perceberam a ameaça, afinal, e se dispersaram num acorrida suicida
pelos túneis sombrios.

Drácula se ergueu, afinal. Gritos de dor e desespero vinham dos
túneis. O morcego humano gargalhou. Uma das garotas que seria Morgana
retornou para a caverna. Ratos enormes grudavam-se ao seu corpo,
arrancando pedaços sangrentos.

Morcegos hematófagos esvoaçavam ao redor de seu pescoço, cravando suas
presas em busca da veia principal, que se rompeu para gozo dos
animais.

A jovem tombou junto do altar, debatendo-se. Mas, pouco a pouco, suas
forças se esvaíram e os ratos e morcegos se banquetearam com carne e
sangue humanos.

Nos corredores gritos desesperados cessaram, dando a entender que os
outros haviam tido o mesmo trágico destino. O Príncipe das Trevas se
voltou, então, para Torg.

Seu olhar destilava cólera e prometia vingança. Sua crueldade, porém,
sabia como puni-lo. viu o medo estampado nas faces do corcunda. Riu
satanicamente, como se quisesse tortura-lo com as mais angustiante
espera.

Voltou-se as costas e caminhou até as cinzas do que fora o corpo de
Daura. Olhou-o demoradamente. De alguma forma, estava sensibilizado.
Não fosse aquela mulher, teria amargado um vergonhosa e definitiva
derrota.

Duas lágrimas de sangue formaram-se nos cantos avermelhados de seus
olhos. Arquejou num lamento final.

-- Torg! -- chamou e a ameaça contida em sua voz apavorou o corcunda.

-- Perdão, mestre! -- suplicou ele, lançando-se nos pés do Príncipe
das Trevas, o preferido agora de Satã.

-- Maldito aleijão da natureza! -- rosnou o vampiro.

-- Eu estava louco, mestre! Puna-me, mas não me destrua!

O vampiro sorriu macabramente e olhou o corpo imóvel de Ambrosio.
Afastou Torg com um pé e caminhou até o cadáver. Abriu os braços e,
misteriosa e macabramente, o corpo do bruxo se ergueu, sem expressão,
sem vida.

Torg acompanhou com esperança a ação de seu mestre. Drácula se voltou
para ele, então.

-- Você queria este corpo, Torg?

-- Sim, mestre.

-- Não o acho bom para você, meu fiel servo! -- disse o monstro,
caminhando ao redor do corpo imóvel.

Viu, então, caído perto dali, um dos pedaços do punhal. apanhou-o e se
voltou para o corcunda.

-- Não gosto desse nariz -- disse, golpeando ferozmente o cadáver
imóvel.

O sangue esguichou do corpo decepado e Torg cobriu os olhos com as
mãos, percebendo o que Drácula pretendia.

-- Essas orelhas, meu bom Torg -- continuou o vampiro.

De olhos cobertos, o infeliz corcunda acompanhou o silvo da lâmina e
ouviu nitidamente os tecidos sendo decepados. Estremeceu. Lágrimas de
dor e ódio saltaram de seus olhos, mas ele sabia que era inútil.

-- Finalmente, Torg, esse pescoço não me agrada em definitivo --
berrou o vampiro, golpeando profundamente.

Torg encolheu-se quando algo úmido rolou para junto de seu corpo.
Depois ouviu o baque de um cadáver inútil caindo. Ficou ali, enquanto
uma gargalhada satânica se ouvia entre suas pernas.

Abriu os olhos. A cabeça de Ambrosio zombava dele, gargalhando
escarnecedoramente.


FIM



O agente do FBI, Pete Honkala, investigava o assassinato de um jovem artista envolvido com drogas. À medida que avançava no caso, descobria que lidava com uma organização poderosa e perigosa. E duas belas mulheres eram peças chave, uma delas, uma ambiciosa dançarina, a outra, ex-noiva do artista, uma doce mulher que o deixava perturbado, mas Pete não poderia desviar-se de seus objetivos nesse momento, pois isso poderia lhe custar a vida.
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Disponibilização: Karine
Digitalização: Marina
Revisão: Laís








CAPÍTULO PRIMEIRO

Um jovem morto

Ver um cadáver é sempre deprimente. Ninguém pode negar que nessa hora o espectro da morte lhe passa pela cabeça. E se pensam muitas coisas em pouco tempo. Todas pessimistas. Porque, se existe algo que liga um homem a outro, esse algo é a morte.
E há vários tipos de morte. Morte calma, enquanto se dorme. Morte por excesso de uísque. Outros morrem, para resumir, morrem por uma carga de chumbo.
O cadáver era de um rapaz loiro, cabelos longos.
Um rosto agradável, pelo menos deveria ser em vida. Um rosto de adolescente que ainda não tinha vinte anos. Isso estava comprovado.
Havia morrido com duas balas no peito.
E ali estava, sobre a cama, coberto por um lençol. Não estava desfigurado, apesar de tudo.
Dos homens que observavam o cadáver, enquanto um auxiliar mantinha a cabeça descoberta, três trocaram olhares. Havia uma interrogação neles, apesar de exprimirem muito bem o que sentiam naquele momento.
O mais velho dos homens fez um sinal e tossiu. O auxiliar cobriu o cadáver novamente.
— Bem... — disse o mais velho. — Parece um assassinato, não?
Estava olhando para o capitão Masters, da polícia metropolitana, e para o médico legista, doutor Hayden. Masters replicou:
— É um assassinato comum. Contudo, há algo a mais, inspetor. O doutor Hayden pode falar.
O inspetor Wede Newell, do FBI, olhou para o doutor e esperou.
— O morto era um usuário de cocaína — disse o médico. — É difícil precisar quando adquiriu o vício, mas estava intoxicado. De qualquer modo, tinha cura, o que me faz pensar que era novo no negócio.
O inspetor Newell assentiu com a cabeça.
— Compreendo — murmurou.
Olhou para os dois agentes que o acompanhavam. Um deles, Pete Honkala, tinha trinta e quatro anos e era um homem taciturno, de expressão grave. Pete também olhava para o inspetor. O mais jovem, o agente Corrick, olhou com certo desprezo para o cadáver.
O inspetor Newell e o agente especial Honkala acharam deprimente um jovem morrer daquela forma.
Novamente, o inspetor Newell olhou para o capitão Masters.
— Supõem que o assassinato tenha relação com a cocaína? — perguntou.
— É o mais provável, inspetor. Talvez o rapaz estivesse metido no negócio — respondeu Masters.
— Sim... É possível. Certo... Passe para nossa jurisdição. Já iniciou as investigações, capitão?
— Não. O doutor Hayden esclareceu o que havia com o cadáver, e eu me pus em contato com você.
— Está bem. Encontrou algo interessante em poder do jovem?
— Se se refere à cocaína, nada. Só uma carteira com documentos e duzentos dólares em notas miúdas. Vamos lhe entregar a carteira, inspetor.
— A que horas morreu? — perguntou Newell, olhando para o outro.
— Entre onze e meia-noite.
— Onde foi encontrado?
Foi Masters quem respondeu.
— Em um solar da rua Broome, próximo do East River. Mas isto não quer dizer nada, pode ter sido morto em outro lugar e trazido para cá depois. Essa foi a impressão que teve a patrulha que recolheu o cadáver.
Com um leve sorriso, Newell concordou com a cabeça.
— Têm algo mais de interessante para dizerem? —perguntou.
— Sinto, inspetor — grunhiu Masters.
— Não importa. Mandem as balas para o nosso laboratório de balística. Talvez possamos descobrir algo.
Um minuto mais tarde, após breve despedida, os três homens do FBI saíram do local e, após percorrer silenciosamente o corredor da funerária, encontraram-se na rua, na parte traseira do Hospital Bellevue. Lá estava estacionado o carro oficial, e os três homens dirigiram-se até ele. Corrick sentou-se na direção, e os outros dois sentaram-se atrás.
O inspetor Newell pegou a carteira que fora do morto. Reparou na fotografia que estava em um documento. Chamava-se Hal Farson e tinha dezenove anos. Profissão: estudante. Sem especificação alguma.
Newell percebeu que Honkala também havia lido aquilo. Sorriu e deu-lhe a carteira.
— É coisa sua, Pete — disse. — Deixe todos os casos até que isso esteja esclarecido. Tinha dezenove anos...
Honkala guardou a carteira no bolso da jaqueta sem dizer nada. Mas estava de acordo com o inspetor. Não ia demonstrar que se sentia furioso. Honkala nunca demonstrava nada... até que fosse preciso.
— Não quer dar opinião? — perguntou o inspetor.
— Para quê, senhor? Creio que pensamos do mesmo modo. Estou de acordo com o capitão Masters: o rapaz foi assassinado por algo relacionado com a droga. Pelo visto, não basta viciar, têm que fazê-lo trabalhar no negócio, afundá-lo até o limite. Estou assustado. Quem nos diz que Hal Farson era o único metido nesse negócio na escola onde estudava?
O inspetor sacudiu a cabeça.
— Já pensei nisso, Pete. O assunto é delicado, exatamente por isso. Pode levantar um escândalo. Você é um homem sereno. Procure não assustar ninguém.
Honkala também sabia sorrir, às vezes. E, então, seu rosto adquiria um certo ar juvenil e agradável. Pete era um homem alto, magro. Vestia roupas discretas e parecia um homem maduro em tudo, apesar de seus trinta e quatro anos. Tinha o cabelo escuro, como os olhos, e rugas em volta destes.
Honkala transmitia confiança quando seus olhos sorriam.
— Ouviu, Pete? Procure não fazer alvoroço na investigação. Vamos supor que haja mais gente envolvida nisso... Não, não quero supor.
Corrick meteu-se:
— A culpa não é do FBI, senhor — disse, sem virar a cabeça, sempre ao volante. — Nem o problema desses garotos cabe a nós.
Newell balançou a cabeça, enquanto seus lábios davam um sorriso condescendente.
— Não se trata disso, Corrick — disse. — Nós três não vamos estudar o problema da adolescência delinqüente de agora. Há gente muito mais inteligente que nós. Nesse caso, só podemos evitar mais mortes. E para isso devemos saber por que um rapaz de dezenove anos morreu assassinado.
Enquanto Pete dissimulava um sorriso, Corrick enrijeceu.
— Sinto, senhor — murmurou. — Creio que disse uma estupidez.
— Você é muito jovem, Corrick.
— Hal era mais jovem que eu — grunhiu Corrick.
— Sim... Mas sua mentalidade não era. Pode-se dizer que ele era muito mais velho e mais experiente. Diga-me, Corrick: alguém já lhe ofereceu droga alguma vez e lhe propôs ganhar dinheiro fácil com ela?
— Não, senhor — murmurou Corrick.
— Sinceramente, acha que teria se mantido firme com dezoito, dezenove anos?
Corrick meditou um pouco.
— Não sei, senhor — foi a resposta, um tanto fraca.
— Certo, Corrick. Você é um bom rapaz. Penso que não sabe que problemas Hal enfrentou. Moral e materialmente. Por isso, temos que chegar à verdade e desmantelar essa organização.
Honkala compreendia o inspetor Newell. Tinha que separar de suas opiniões dois pontos de vista. Primeiro: o do FBI, que tinha um caso concreto para resolver. Segundo: o ponto de vista humano.
Bem, era Pete quem teria que resolver aquilo tudo. Enquanto o inspetor e Corrick ainda discutiam, recostou-se no assento, pensando no que ia fazer.
Segundo a identidade de Hal, este havia vivido em Carmine Street, numa casa junto à rua 3 Oeste. Uma casa em forma de triângulo e que estava inacabada. Era uma péssima casa.
Em compensação, a casa em que Farson morava, em Greenwich Village, era decente. O exterior do edifício não significava nada. Era uma casa como outra qualquer. De três andares, com varanda.
Quando Pete entrou na pensão, às cinco da tarde, confirmou sua primeira impressão. Era tudo calmo. O vestíbulo estava limpo, assim como os vidros das janelas, e também aquela mulher que o olhava. Uma mulher de cerca de quarenta anos. Tinha aparência de mulher casada, e de quem pensa mais nos outros que em si própria. Honkala aproximou-se dela.
— Pete Honkala, do FBI — saudou, mostrando suas credenciais.
A mulher assentiu com a cabeça, com um movimento de compreensão.
— É por causa de... de... de Hal, não? — gaguejou.
— Isso mesmo, senhora...
— Sherman. Na realidade, já o esperava, senhor Honkala. Ainda que pouco possa dizer sobre Hal.
Honkala esperava por aquilo. Só que a mulher não sabia que o que tinha para dizer poderia ser muito interessante. A senhora Sherman tinha que ser conduzida pelas perguntas do agente especial.
— Tinha pais? — perguntou Pete.
— Que eu saiba, não. Pelo menos no ano que esteve em minha casa não recebeu correspondência de ninguém. E jamais o ouvi se referir aos pais. Isso, contudo não quer dizer nada, já que Hal raramente falava de alguma coisa.
— Certo... Hal estudava. Com que meios, já que não tinha pais?
— Uma bolsa de estudos — explicou a senhora Sherman.
Honkala tomou nota do detalhe, com certa surpresa. Olhava fixamente para a senhora Sherman quando perguntou:
— Supõe-se que Hal era um bom estudante, então. O suficiente para conseguir uma bolsa, certo?
— Bem... A bolsa não era para estudos universitários. Era uma bolsa artística. Hal era escultor.
— Ganhava dinheiro com a escultura? — perguntou Pete.
A senhora Sherman vacilou. Disse depois:
— Que eu saiba, não. Não vendeu nenhuma de suas obras.
— Contudo, Hal tinha dinheiro para comprar cocaína. E uma bolsa, por melhor que seja, não dá para tanto, senhora Sherman.
A mulher mostrava um assombro sincero. Honkala achou que aquele era um bom momento para ir mais a fundo e disse:
— Por favor, senhora Sherman. Fale-me da vida que Hal levava. Tinha amigos?
— Eu não conheci nenhum.
— Mulheres?
— Não aqui — disse, tranqüila, a senhora Sherman. — Não permito isso em minha casa, senhor Honkala.
— Perdoe-me... Diga-me qualquer costume que ele tinha.
— Bem... Deitava-se tarde e levantava-se tarde. Houve uma longa temporada em que preferiu comer longe daqui e parecia bem de dinheiro. Não creio que trabalhasse, senhor Honkala. Na verdade, não sei aonde ia, nem o que fazia. Hal comportava-se muito bem em minha casa. Pagava em dia, e eu não tinha porque preocupar-me. Bem... sei que às vezes ia ao Holland's. É um lugar de péssima fama, mas sei que muitos jovens artistas freqüentam o local. Talvez Hal tivesse alguma relação ali.
Pete tomou nota mentalmente daquele nome. Depois começou a acreditar em suas suspeitas. Se Hal só vivia com uma bolsa artística, como era possível que pudesse comprar cocaína? A resposta era: colaborando com o negócio.
— Senhora Sherman... posso ver o quarto que ele ocupou?
— Claro. Siga-me, senhor.
Pete, pensativo, seguiu-a. Subiram ao primeiro andar, e depois de percorrer um corredor a senhora Sherman abriu a porta de um quarto. A janela dava para um pátio pequeno, e já começava a escurecer, obrigando a senhora Sherman a acender a luz.
Honkala olhou em volta. Era um quarto comum. Cama, armário, uma pia, um par de cadeiras e duas mesas.
— Senhora Sherman... a senhora não sabe se, fora a bolsa, Hal não tinha outra fonte de renda?
— Não... Quase nunca falava dele.
— Está segura de que Hal nunca recebeu ninguém aqui?
— Completamente.
— Hal era reservado, eh?
— Mais ultimamente. E..., já que falamos disso, Hal me dava a impressão de que estava escorregando perigosamente. Nada de concreto, compreende? Mas tenho quarenta anos e três filhos. Um deles de dezessete anos, e começo a conhecê-lo agora. A gente sabe quando um filho está com problemas. E percebi que Hal os tinha. Antes disso, mesmo não sendo de muita conversa, era um rapaz agradável. Tinha cultura e passava horas inteiras em seu estúdio...
— Seu estúdio? Aqui?
— Sim... Eu lhe cedi um quarto. Não sei por que o fiz. Talvez por sua juventude. Quando eu o conheci, era um desses rapazes dispostos a triunfar. Quis ajudá-lo.
— Posso ver esse estúdio?
A senhora Sherman sorriu.
— Se já terminou aqui, podemos, ir.
Honkala sorriu e guardou um papel no bolso.
— Vamos, senhora.
A mulher saiu primeiro.
Honkala ainda deu uma última olhada no quarto. Ali não havia sinal algum de cocaína. Não obstante, aquele papel... Podia ter um significado. Pete o descobriu com uma olhada rápida. Era o extrato de uma conta corrente bancária. Saldo: zero. Depois estudaria o movimento da conta com calma.
Seguiu a senhora Sherman até o último quarto do primeiro piso.
A senhora abriu a porta do aposento.
Era para surpreender-se. Era um quarto grande que contava com muita luz natural. Aquilo podia dar uma boa idéia do coração da senhora Sherman.


CAPÍTULO SEGUNDO

Investigações

— Algumas vezes me arrependi de alugar este quarto — disse a senhora Sherman, antes que Honkala abrisse a boca. — Contudo, acreditei que Hal reagiria e seria alguém. Viu estas figuras? Espere, vou acender a luz.
E o fez.
Pete piscou assombrado.
— Figuras... — sussurrou.
— Não gosta?
Pete olhou para a mulher em silêncio. Depois deu uma volta pelo quarto, dotado de uma grande janela. Havia muitas esculturas sem terminar. Podia-se dizer que Hal era um gênio em determinados momentos. Bem..., Pete não entendia muito de esculturas, mas o que viu lhe pareceu sensacional. Cada uma daquelas figuras incompletas lhe parecia uma obra de arte. Pete pensou que gostaria muito de possuir uma daquelas esculturas. Especialmente aquele meio rosto de mulher, com uma expressão do olhar tão humana que parecia real.
— Figuras... — repetiu.
— O senhor me surpreende — murmurou a senhora Sherman.
— O surpreso sou eu, senhora. Na minha opinião, cada uma destas peças é uma verdadeira obra de arte. Acho que Hal teria chegado a ser alguém. Porém...
Honkala refletiu. Quem teria feito aquilo com o jovem Farson? Olhou para a mulher que observava as figuras. Seriam tão boas assim?
— Senhora Sherman, está segura de que Hal nunca vendeu suas obras? — perguntou Pete.
— Bem..., não. Quase com certeza, pelo menos desde que esteve aqui, não.
— É incompreensível... — murmurou Pete. — Está mais do que claro o motivo pelo qual se formou. Mas essas instituições limitam-se a dar o diploma e esquecer o artista. Farson não devia ter confiança em si mesmo. Nem ele sabia o que estava criando. E morreu estupidamente...
A senhora Sherman assustou-se um pouco.
— Eu... eu não sabia...
Pete conseguiu sorrir.
— Não se preocupe — disse. — Não estou acusando ninguém. Creio que nem Hal poderia escapar de seu destino.
A senhora Sherman não disse nada. Pensava que via um homem muito humano, que se preocupava com os outros.
De súbito, Pete disse:
— Tem mais alguma coisa a dizer, senhora?
— Não... Creio que não.
— Agradeço a sua colaboração, senhora Sherman.
— Ouça.
Pete, que já havia começado a andar, virou-se para a mulher.
— Tenho umas dúvidas horríveis — disse a senhora Sherman. — Acha que eu poderia ter feito algo mais por Hal? Teria podido ajudá-lo em alguma outra coisa?
Pete Honkala olhou-a atentamente e depois balançou a cabeça.
— Não se atormente, senhora. O que poderia ter feito?
Aquilo dava a questão por concluída. Quando saiu da pensão já havia escurecido. Começou a andar pela calçada em direção à rua 3 com o extrato da conta de Hal na mão.
Ali estava a sala de escultura da Escola de Belas Artes de Manhattan. Antes de chegar à porta, percorrendo o corredor, onde cruzou com rapazes e moças que saíam das aulas, o homem do FBI sentiu medo. E teve a sensação de ter chamado a atenção da massa de jovens por tê-los observado atentamente, procurando traços de tóxico em seus olhos.
Aquilo era monstruoso.
Contendo a sua impaciência, Honkala empurrou a porta e encontrou um enorme e silencioso estúdio, magnificamente dotado de luz artificial.
Ninguém lhe deu atenção.
Todos estavam absortos em seus trabalhos. Viam-se coisas bonitas por toda parte, mas... Nenhum deles alcançava a categoria do trabalho de Hal. Mas o superavam em desejo de trabalhar.
Entrou no estúdio.
Um aluno estava reproduzindo o busto de uma mulher. Uma jovem modelo, muito bonita. Parecia tão interessada na obra quanto o próprio artista.
Cabeças, bustos... Todo mundo trabalhava ali.
— Senhor...
Pete voltou-se, olhando o homem que acabava de interpelá-lo. Era um tipo de meia-idade, cabelos grisalhos, testa larga, olhos fundos. Vestia um avental, e sua roupa era velha.
— Pete Honkala, FBI — disse Pete, mostrando suas credenciais.
— Pois não... Professor Fillmore. Devo entender que é um novo aluno de...
— Não, não — sorriu Pete. — Trata-se de um assunto oficial.
— Sei... Hal Farson? — perguntou, com um pouco de receio o professor Fillmore.
— Sim... A notícia espalhou-se rapidamente, não?
— Não sei se foi tão rápido assim. Hal me interessava. Foi o melhor aluno que passou por minhas mãos. Vê isso tudo?
Honkala olhou. Estavam num canto. Ninguém prestava atenção a eles, nem os ouvia. Assentiu com a cabeça.
— Pois nenhum deles chegará ao que era Hal. Creio que isso explica meu interesse pelo rapaz.
— Compreendo. Vi os trabalhos dele — disse Pete. — Mesmo assim, queria verificar algo pessoal sobre Hal, fora suas qualidades artísticas.
Fillmore balançou a cabeça.
— O que me interessou foi o trabalho dele — disse. — Sua vida privada não me interessava. Embora nos últimos meses só tenha aparecido aqui umas duas vezes. E ele sabia que minhas informações poderiam comprometer uma nova bolsa de estudos.
— Falou sobre isso com ele? — perguntou Honkala.
— É claro.
O professor fixou seus olhos profundamente nos do policial.
— Acha que se importou? — grunhiu. — Em absoluto.
— Sei...
Era fácil de compreender, mas Pete não disse nada a respeito do negócio em que imaginava estar Hal metido. Por que diabos Hal se importaria com bolsa de estudos se tinha encontrado a galinha dos ovos de ouro?
— Não fez mais perguntas, professor? — indagou Pete.
— Não. Para quê? Hal era um rapaz estranho e grosseiro, não teria me respondido. Mas não se preocupe, esses jovens só querem aparecer. E soube que Hal era como todos eles.
Estava claro que o que acontecera com Hal não fora culpa do professor nem da senhora Sherman.
— Outra pergunta, professor: notou em seus alunos algum sinal característico parecido com os de Hal?
— Não compreendo muito bem...
— Diga-me se há algum aluno que se comporta como Hal o fazia ultimamente.
— Absolutamente. Hoje só tenho alunos que sonham em serem gênios. Hal era um gênio por natureza... Teria sido um grande escultor...
Pete sentiu-se aliviado. Pelo que Fillmore lhe dizia e pelo que ele observava. Só havia pessoas que se interessavam pela arte naquele estúdio. Tomara que só um dali tivesse sido prejudicado.
— Alguma outra pergunta, senhor Honkala? — inquiriu Fillmore, diante do silêncio do homem do FBI.
— Sim... Hal tinha amigos aqui? — Pete apontou com um gesto para os artistas.
— Bem... Não sou de prestar atenção nisso, mas Farson entrava e saía sempre só.
— Compreendo — murmurou Pete.
— Senhor Honkala, talvez tenha tido uma impressão um tanto errada de mim. É verdade que não me preocupo com a vida particular dos rapazes. Mas com Hal tentei ser mais íntimo, e não deu certo. Sou velho o suficiente para saber quando um jovem está com problemas e notei que Hal estava caindo... Ele não respondeu às minhas perguntas. Quando tentei aproximar-me um pouco, ele parou de vir aqui. E não fazia mais nada. Parecia... estupefato. Uma coisa estranha. Não sei se dá para entender.
Honkala assentiu com a cabeça.
Exatamente. Estupefato. E o que Hal ia fazer ali naquele estado? Talvez quisesse lutar contra o vício... Mas ninguém tentou ajudá-lo, nem Hal dava oportunidade para isso.
De qualquer maneira, Fillmore, assim como a senhora Sherman, sentia remorsos. A resposta de Pete foi a mesma que deu a senhora Sherman:
— Não se preocupe, professor. Ninguém poderia evitar.
— Bem, lamento não poder ser mais útil...
— Não importa. Boa noite, professor.
Apertaram-se as mãos, e Pete saiu do estúdio, depois de dar uma olhada nos jovens que também o olhavam. Bem... Parecia que por ali não tinha nada a temer.
Na rua, Pete caminhou em busca de um bar. Entrou num próximo à Escola de Belas Artes, e pouco depois estava telefonando para a Delegacia do FBI. Um minuto mais tarde ouvia a voz do inspetor Newell:
— Pete?
— Sim, senhor.
— Estou ouvindo.
— Hal Farson era um grande escultor. Estudava com auxílio de uma bolsa de estudos.
— Compreendo.
— Agora, algo que pode ser importante — disse Pete, tirando do bolso o extrato da conta bancária do rapaz morto. — Ele fez um depósito de dois mil dólares. E não creio que isso seja da bolsa. Quero dizer que tinha alguma atividade.
— Cocaína.
— Não sei ainda, senhor. Hal gastou esse dinheiro em dois meses. E de se supor que não resistiu à tentação de gastar o dinheiro.
— Sei... Um viciado não sabe se conter.
— De qualquer maneira, acho que o rapaz queria reagir, inspetor. Existe um detalhe que parece indicar isso.
— Qual?
— Hal foi ao estúdio por duas vezes, estupefato. Talvez quisesse encontrar forças ali para livrar-se do vício.
— Muito bem, o que você conseguiu de concreto na escola?
— Nada, fora que não parece haver outros viciados como Hal por lá.
— Isso já é muito, Pete — suspirou o inspetor Newell. — Um grande alívio, na realidade.
— Isso é verdade, senhor. Mas é tudo.
— Nada mais além disso?
— Só uma pista para seguir adiante: um local que o rapaz freqüentava.
— Não é muito, eh?
— Hal era muito fechado. Não tinha amigos, nem sequer entre seus colegas de estúdio. Desse modo é muito difícil procurar seus relacionamentos, senhor.
— Está bem, Pete. Alguma mulher em sua vida?
— Ainda não sei.
— Como se chama esse local?
— Holland's.
— Certo. Enviarei alguém.
— Não penso chegar antes das dez, senhor.
— Não importa. Boa sorte, Pete.
— Ok.
Pete desligou o telefone. Antes de sair da cabine consultou seu relógio de pulso: eram oito e cinco.
Não havia pressa, portanto, para ir ao Holland's.
Saiu da cabine e caminhou até o balcão do bar. Sentou-se e pediu um uísque com soda. Depois acendeu um cigarro e, através do espelho, distraidamente, observou a máquina automática de discos, rodeada de gente jovem. Ali havia alguns rapazes da Escola de Artes.
Todos iguais. Vestiam-se do mesmo modo, divertiam-se do mesmo modo. Eram uma massa homogênea.
Pete perguntou-se se Hal alguma vez teria sido como eles.
Terminou o uísque, pagou e pouco depois saiu do bar.
Queria caminhar um pouco e pensar, ainda que estivesse convencido de que seria difícil chegar a alguma conclusão.
O que lhe vinha à mente de vez em quando era a imagem de um jovem de menos de vinte anos, crivado de balas e estendido numa cama branca. E no momento isso era tudo. Um morto empanturrado de cocaína.


CAPÍTULO TERCEIRO

A mulher

Quando Pete entrou no Holland's teve que conter um sorriso. Conhecia aquele ambiente. Todo jovem uma vez na vida freqüentava aquele tipo de lugar. E quanto à fama errada atribuída a ele pela senhora Sherman, era exagero.
O lugar não era exatamente um antro. E nem dava para se consumir muito álcool por questões financeiras.
Não era muito grande e não se notava uma atmosfera carregada. Viam-se muitos jovens de ambos os sexos, misturados, vestidos de forma estranha, rostos contraídos, alguns em êxtase. Bebiam pouco e falavam muito. Ouviam música exótica. Um rapaz recitava uma poesia, e duas moças o escutavam embevecidas. Outro lia algo e gesticulava. Tinha o rosto vermelho. Outro tamborilava seus dedos no mármore da mesa acompanhando o ritmo da música...
Pete aproximou-se do balcão.
Pediu café. E acendeu um cigarro.
O café lhe foi servido, e o garçom já se retirava.
— Um momento — pediu Pete.
O homem parou. Parecia um homem acostumado a ver as coisas e a calar.
— Não vejo Hal Farson — disse Pete, calmo.
— Hal? — o camareiro levantou uma sobrancelha. Demonstrou não saber do crime.
— Não está? — perguntou Pete.
— Bem..., não. Claro que não vem todos os dias. De qualquer modo, Janet pode servir-lhe. Está ali.
Pete olhou a mulher. Olhou novamente para o garçom.
— Quem é? — perguntou.
— A noiva de Hal. Creio eu. Sabe como são esses jovens...
— Compreendo — Pete sorriu.
O garçom olhava com curiosidade. Realmente era difícil ver gente como Pete por ali. Este parecia um cavalheiro. Podia ser um cliente de Hal. Por que não? Tinha entendido que Hal era escultor.
Pete bebeu o café e pagou, deixando uma gorjeta. Depois, seguido pelo olhar do camareiro, o homem do FBI aproximou-se de Janet.
A música continuava a tocar. As vozes do poeta, do escritor e do que tamborilava também continuavam audíveis.
Pete chegou à mesa que Janet ocupava. Esta olhou-o com receio nos olhos azuis, grandes e lindos. Tinha os lábios rosados, sem batom, e o rosto um tanto pálido. Usava um vestido negro, de gola alta, que modelava seu busto pujante. E Janet não tinha mais de dezoito anos.
— Janet... — murmurou Pete.
— Quem é você? — indagou a jovem.
— Não importa. Hal não virá esta noite.
A jovem mordeu o lábio inferior. Ficara rígida.
— Posso me sentar? — perguntou Pete, com um sorriso calmo.
— Bem... Como sabe? — perguntou Janet.
Pete sentou-se. Observou as pupilas da mulher, sem notar qualquer traço de drogas.
— Sofreu um acidente — mentiu Pete.
Janet baixou os olhos.
— Você não me engana. Está com ela — murmurou a moça.
Aquelas palavras da jovem bem que podiam ser um jorro de luz sobre o assunto. "Ela", na vida de um rapaz de dezenove anos, podia ser algo decisivo.
— Ela? — perguntou Pete suavemente.
— Sim.
— Quem é?
— Chama-se Loretta..., não sei o resto. Sei que trabalha num clube noturno na rua 42.
Pete sorriu.
— Deve estar enganada, Janet. É preciso ter muito dinheiro para freqüentar um clube desses. Deveria saber disso. E não creio que Hal tivesse o suficiente. Além do mais, como sabe de Loretta?
— Eu... segui Hal mais de uma vez — confessou, sem olhar para Pete. — Eu amo Hal e ele me quer, ou me queria. Até que Loretta apareceu. Ela trabalha na rua 42. E Hal tinha muito dinheiro ultimamente. Até prometeu que casaríamos. Mas tudo começou a ir de mal a pior... Estava estranho. Tudo por culpa dessa mulher.
Os olhos de Janet estavam cheios de lágrimas. E Pete não pôde evitar a compaixão.
— E quem é você? — perguntou a jovem, olhando Pete através das lágrimas.
Pete não conseguiu mentir mais. Havia algo de muito agradável em Janet. Não era mulher de perverter um jovenzinho. Janet cheirava a limpeza. Pena...
— Pertenço ao FBI, Janet — murmurou Pete. — Meu nome é Pete Honkala. Não fique assustada.
Janet mordia os lábios. Perguntou em sussurros:
— O que houve com Hal?
Pete umedeceu os lábios. Estava claro que ela queria a verdade... Tudo poderia ser diferente. Hal e Janet poderiam ter sido felizes. Ela era bonita e doce. Hal tinha talento. Mas... uma maldita mão suja havia destruído aquele amor.
— Sinto muito, Janet — murmurou o federal. — Não sei...
— Morto? — disse, quase sem fôlego, Janet.
Pete assentiu com a cabeça. Olhava-a nos olhos.
— Meu Deus... Por quê?
— Averiguaremos os motivos e o nome do assassino. É possível que você possa ajudar-nos. De fato já o fez, posto que essa Loretta pode dizer-nos alguma coisa interessante.
— Sim... Pode ter sido por causa dela. Hal não quis me ouvir. Um dia me agrediu quando o adverti do perigo que pode representar esse tipo de mulher. Ficou furioso comigo, e agora...
Não conseguiu mais conter as lágrimas. Deitou a cabeça sobre a mesa e Pete passou a mão em seus cabelos loiros. Deixou-a chorar por algum tempo.
— Acalme-se, Janet.
A jovem levantou a cabeça, mostrando o rosto banhado em lágrimas. Pete pegou uma de suas mãos e apertou-a suavemente. Notou a pedra do lindo anel que usava. Não entendia de jóias, mas percebeu que era valiosa.
— Presente de... Hal? — perguntou.
Janet assentiu com a cabeça.
— Já lhe disse que prometera casar-se comigo... E me deu muitos outros presentes...
— Nunca tentou verificar de onde vinha esse dinheiro? Sabe que só tinha uma bolsa de estudos para viver e prosseguir na carreira.
— Quis saber várias vezes — murmurou Janet. — Ficava furioso se lhe perguntava algo. Eu... tinha medo, mas o que podia fazer? Não ia abandoná-lo, nem podia insistir. Já havia me batido uma vez, e não me atrevi a dizer-lhe que estava no caminho errado. Não disse, mas creio que, por minhas atitudes, minhas súplicas, ele deve ter entendido.
Era quase certo. Ter ido à escola era prova disso. Mas por que não confiar em Janet?
A resposta era clara. Depois de conhecer Loretta, Janet passou para segundo plano na vida de Hal.
— Não chore mais, Janet — pediu Pete. — Você disse que o seguiu várias vezes.
— Sim.
— Sempre para o mesmo lugar?
— Quando não ia para esse clube, me desinteressava pela perseguição, entende?
— Certo, Janet. Nunca imaginou que, se o tivesse seguido para os outros lugares, teria descoberto o mistério da repentina fortuna dele?
Janet abriu muito os olhos.
— Eu... eu não...
— Não se preocupe. Quer uma dose de conhaque?
— Não... não bebo...
E inclinou a cabeça. Pete compreendia o que ela devia estar sentindo naquele momento.
— Quero ir para casa... Posso? — murmurou Janet.
Pete sorriu.
— Claro que sim, Janet. Irei com você.
— Não se incomode, por favor...
— Não é incômodo, pequena.
— Não... não é longe.
Pete levantou-se e agarrou Janet por um braço. A jovem não opôs nenhuma resistência. Limitou-se a colocar o casaco, e começaram a andar em direção à saída. Pete olhou com indiferença para o homem que tomava café no balcão. Ora... Corrick havia-se apressado.
Saíram para a rua.
— Moro na Grand Street, a duas quadras daqui — murmurou Janet.
— Certo.
Formavam uma dupla estranha. Janet não era muito alta e usava sapatos de saltos baixos, fazendo com que chegasse apenas aos ombros de Pete.
Janet vivia no andar de baixo. Havia um quarto bem grande, totalmente desocupado. Mais dois quartos, menores, ficavam para dentro, assim como a cozinha e o banheiro. Janet havia tirado o casaco, e Pete observava a casa modesta. Móveis bem velhos e um par de cadeiras caras, que deviam ser coisa de Hal.
— Está melhor, Janet? — perguntou Pete.
— Sim, senhor... Estou despertando pena?
— Bem... Sinto muito pelo que aconteceu. Não é pena, entende?
— Creio que sim...
Naquele instante, ouviram a porta de entrada do prédio ser aberta e passos rápidos. Depois a voz de um rapaz:
— Hal! Hal! Não pensei voltar a vê-lo...!
O rapaz havia empurrado a porta do apartamento e interrompeu-se bruscamente ao ver que aquele homem não era Hal. O rosto do rapaz mudou. Olhava alternadamente para Janet e Pete.
— Qual é o seu nome? — perguntou Pete, avançando até ele.
— E... e quem é você?
— Um momento, senhor Honkala — intrometeu-se Janet. — Esse é Melvin, meu irmão. Por favor, Melvin, responda ao senhor Honkala. Ele é do FBI.
— Ora... — murmurou Pete. — O que me diz, Melvin? Por que não pensava voltar a ver Hal? Era isso que estava gritando, não?
O rapaz não respondeu. Devia ter uns dezessete anos e tinha cara de fome, os olhos um pouco mortiços e as pupilas quase tão azuis como as de sua irmã, dilatadas de um modo alarmante. Melvin suava e olhava, assustado, para o federal.
— Não responde, Melvin? — insistiu Pete, calmamente.
Silêncio.
Pete e Janet trocaram um olhar. Janet estava muito nervosa e alarmada.
— Vamos, Melvin... — pediu. — Responda.
— Cale-se — grunhiu Melvin. — Não responderei nada.
— Melvin...
O rapaz retrocedia e Pete decidiu agir. Bruscamente, esticou o braço direito e pegou Melvin pela gola da camisa.
Agarrou-o com força e empurrou-o violentamente.
Pete estava decidido a mostrar-se bastante duro com aquele rapaz. Melvin piscava furiosamente, e sua palidez havia aumentado.
— Solte-me! — gritou. — Você não pode...!
— Cale-se! — disse Pete em tom seco.
E o rapaz calou-se.
— De onde você tira a cocaína, Melvin? — perguntou o federal.
Melvin estava assustado com o olhar de Honkala.
— Não... não sei do que está falando...
Pete esteve a ponto de dar uma bofetada no rapaz. Empurrou-o contra a parede. Melvin estava quase a chorar.
— Estou falando da cocaína, estúpido — disse Pete, furioso. — Hal foi assassinado por isso! Quer ser morto também? De onde tiram a cocaína? Vamos, fale!
Os olhos de Melvin estavam quase fora de órbita. Sua longa cabeleira caía em mechas. Estava muito magro, tinha uma aparência péssima. Algo parecia minar seu organismo.
— Não pode ser! — gritou.
Foi um grito de angústia, como um protesto.
— Dois tiros no peito, Melvin — disse Pete com dureza, sentindo-se um pouco envergonhado por tratar o rapaz daquele modo. — Eu o vi na Morgue esta manhã. Vai continuar calado? O FBI o protegerá. Vai ajudá-lo, se falar.
Aquilo era como um filme para Melvin. Jamais pensou ficar frente a frente com um daqueles famosos homens do FBI.
Começou a chorar convulsivamente.
Janet abraçou-o e deu um olhar de reprovação para Pete, que se sentiu culpado.
— Sinto, Janet — murmurou Pete. — Mas é absolutamente necessário que seu irmão fale. Você entende, não? Trata-se de evitar mais mortes. Nunca percebeu que Melvin estava metido nisso?
Janet mordia os lábios. Pete insistiu:
— Não chore, Melvin. Diga a verdade. Ninguém vai lhe fazer mal.
O rapaz levantou a cabeça.
— Eu... eu não sabia que o Hal...
— Fale-me da cocaína.
— Eu a roubava de Hal! Eu juro! — gritou Melvin.
Pete apertou os lábios. Se aquilo era verdade, as possibilidades de descobrir alguma coisa com Melvin se encerravam ali.
— Não minta, rapaz — grunhiu Pete.
— Eu juro! Hal sempre tinha cocaína nos bolsos e, quando deixava o casaco na cadeira e enquanto jantava com Janet, eu roubava um pouco. É a verdade... — soluçou. — Hal... Hal me pegou um dia e me deu uma surra. Nunca o tinha visto daquele jeito. Disse que já bastava um e que se voltasse a me pegar usando era capaz de me matar, que era melhor estar morto... Mas eu... eu continuei a roubá-lo...
Pete respirou fundo. Janet estava mortalmente pálida.
— Está bem, Melvin — disse Pele. — Não sabe de onde Hal a tirava?
— Não. É a verdade. Não sei...
Pete meditou por alguns segundos. O mais provável era que Melvin estivesse dizendo a verdade. O rapaz estava muito assustado. Bem, por sorte, com Melvin se chegaria a tempo.
— Está bem, Melvin. Vou acreditar em você — disse Pete. — Agora, responda isto: por que gritou que não acreditava voltar a ver Hal?
Melvin mordeu o lábio inferior.
— Eu... o vi à noite... Quase sempre o espio. Por quê... Você sabe...
— O que mais viu, Melvin?
— Ele estava... com dois homens...
— Quem eram? Conhecidos?
— Que eu saiba, não. Hal estava entre os dois, e vi quando o enfiaram num carro com um empurrão. Eu... não soube o que fazer. Não... não compreendia muito bem o que estava acontecendo. Pensei que não aconteceria nada...
— Não avisou à polícia, Melvin? — murmurou Pete, contendo a raiva. — Claro que não. Talvez a polícia o interrogasse, e o segredo da cocaína deve permanecer oculto, não? Pois bem, já sabe o que aconteceu com Hal. Continua escondendo algo, Melvin?
— Não. Não, não!
— Então fique calmo. Reconheceria aqueles dois homens?
— Creio que sim... Não sei...
— Viu bem o rosto deles?
— Vi. Um tinha bigode fino, negro. Creio que era italiano...
— Certo, Melvin. Não saia daqui.
Janet olhava o federal tristemente. Pete gostaria de dizer-lhe algo naquela hora, mas desistiu. Com mais calma a jovem compreenderia que aquilo era necessário.
Pete saiu da casa. Abriu a porta da rua e deu uma olhada em volta. Fez um sinal.
Cinco segundos mais tarde, Corrick estava junto dele.
— O que houve, Pete?
— Entre.
— Quanto mistério! Estive a ponto de entrar quando vi o jovem. Porém, achei que você não precisava de mim.
Pete não respondeu.
Guiou Corrick até Janet e Melvin, que continuava pálido.
Corrick olhou criticamente para os jovens. Gostou de Janet.
— Estão metidos nessa porcaria, não, Pete? — grunhiu Corrick.
— Cale-se.
Corrick encolheu os ombros, enquanto Pete dirigia-se a Melvin, olhando-o com firmeza.


CAPÍTULO QUARTO

Vinte e cinco mil dólares

Melvin estava trêmulo. Aquela aventura de ver-se metido com o FBI, como nos filmes, já começava a ficar perigosa. Apesar disso, estava tentando acalmar-se um pouco.
— Preste atenção, Melvin — disse Honkala. — Já que pode reconhecer aqueles homens, vai examinar o arquivo policial até encontrá-los, entendeu? Passe a noite inteira fazendo isso, se for preciso. Depois vai para um hospital até ficar curado. Não pode haver discussões. Quando sair do hospital, será um homem. É melhor para você, Melvin.
O rapaz umedeceu os lábios. Não protestou. Sabia que era inútil.
Pete virou-se para Corrick.
— Acompanhe-o, Corrick. O rapaz dará seu depoimento e o inspetor Newell confirmará as instruções.
Corrick assentiu com a cabeça.
— E você, Pete? — perguntou.
— Eu... Janet, lembra-se do nome do clube noturno?
— Soto's — murmurou Janet.
— Já sei qual é. Rua 42. Loretta... É uma mulher que pode estar metida nisso. O inspetor pode mandar alguém investigar o clube, pode precisar de ajuda. Vá, Corrick.
Corrick suspirou e olhou para Melvin.
— Já ouviu, rapaz — grunhiu.
Janet e Melvin trocaram um olhar. Não despregaram os lábios. Um minuto depois, Melvin saía dali, custodiado por Corrick.
Na casa, Pete aproximou-se de Janet.
Os dois olhavam-se. Contrastava o brilho profundo das pupilas negras de Pete com o suave e tímido dos grandes olhos azuis de Janet.
A jovem estremeceu ligeiramente quando Pete pôs a mão sobre seu ombro.
— Janet... tem medo de ficar só?
— Um pouco, senhor Honkala.
— Certo.
— Mas não se preocupe comigo. Já vai passar.
— Seu irmão ficará ausente por um bom tempo. Você entende, não? É para o bem dele.
— Sim, senhor.
— Está com raiva de mim?
— Oh, não... não, senhor Honkala.
Pete sorriu.
Sentiu-se estranho, velho e inútil... Maldição! Percebia que já era velho: trinta e quatro anos! E Janet era tão bonita, tão doce...
Pete tossiu. Sim, estava perturbado, diabos.
Ela insistiu:
— Tem sido muito bom, senhor Honkala.
— Bem, Janet, aceitaria um conselho?
— Estou disposta a escutá-lo, senhor Honkala.
— Esqueça Hal Farson. Você é muito jovem, e a vida sempre nos reserva algo bom. Isto foi um pesadelo, entende? É possível que não o esqueça tão cedo, mas deve reagir. Vai fazer isso?
Janet ficou em silêncio.
Na verdade, sabia que aquele homem só queria o seu bem. Achava-o interessante e viril. O tipo de homem que uma mulher pode chegar a amar com todas as suas forças.
Janet enrijeceu, ao surpreender-se admirando aquele homem.
— O que você tem, Janet? — grunhiu Pete. — Não quer responder?
— Sim... — disse num fio de voz. — Tratarei de seguir seu conselho, senhor Honkala.
— Assim é melhor, pequena...
— Sabe de uma coisa? — disse Janet. — Não creio que me custe tanto quanto imagina, porque...
Interrompeu-se. Olhou para o chão.
Pete a admirava. Sim, era muito bonita. Percebia-se seu busto sob a jaqueta cinza, o contorno dos ombros, redondo e suave. Tinha a cintura fina. Honkala queria deixar de pensar naquilo, mas...
— Janet, por que não será difícil esquecer Hal? — perguntou ele.
— Não houve nada entre nós, senhor Honkala — murmurou Janet.
Pete sentiu-se suar. Assentiu com a cabeça, olhando-a nos olhos.
— Assim é melhor, pequena — murmurou.
— Talvez só o quisesse porque não era como os outros, parecia diferente.
— Não queira enganar a si mesma, Janet.
— Não estou me enganando. E gostei dele porque era o primeiro rapaz que... que me falou de amor.
Pete respirou fundo.
— Está bem, Janet — disse. — Posso fazer algo por você agora?
— Não... não sei... Acho que nada.
— Vou dizer-lhe o nome do hospital em que Melvin ficará. Espero que tudo corra bem.
Janet assentiu com a cabeça.
— Obrigada, senhor Honkala — disse.
— Por quê?
— Por tudo.
Pete sorriu. Acariciou o rosto de Janet...! Não quis fazer comentários. Janet olhava-o com os olhos muito abertos... E estava a ponto de começar a chorar. Pete sentiu-se culpado e preferiu fugir dali.
Saiu. Continuava chovendo. Uma chuva fina e fria.
O táxi deixou Pete em frente ao Soto's. Viam-se o letreiro luminoso e a decoração psicodélica na entrada. A rua continuava ruidosa e animada. Era hora de movimento de gente, pessoas que procuravam seu espetáculo ou diversão para aquela noite.
Pete pagou a corrida, cruzou rapidamente a calçada e entrou. Olhou em volta, descobrindo Loretta imediatamente. Pete deu-lhe uns vinte e cinco anos, que eram magnificamente distribuídos num corpo maravilhoso. Tinha o rosto ovalado e o cabelo longo. Lábios generosos e grandes olhos claros.
De certa forma, era compreensível que um rapaz cometesse loucuras por uma mulher como aquela. Mas, em nenhum momento, aquelas loucuras deveriam desembocar na morte.
Enquanto pensava, Pete ia entrando no local, que não era diferente de nenhum outro de sua espécie. Bom ambiente, champanha em algumas mesas, cheiro de tabaco, luz discreta. Mulheres com ou sem par. O de sempre.
E Loretta estava atuando. E não o fazia mal. Pete observou a brilhante pele da mulher, suas pernas bem torneadas, o busto erguido... Era fácil imaginar o que Hal havia sentido em seus dezenove anos.
Pete continuou avançando em direção à entrada dos camarins. Havia vários corredores, e Pete teve que perguntar a um homem, que lhe indicou a direção a seguir.
Havia muita gente por ali. Alguns camarins estavam com as portas abertas. De outros, com as portas fechadas, partiam risadas ou discussões...
Ali estava: "Loretta". Era o recorte de um cartaz de propaganda colado na porta. O camarim ficava num canto, um pouco mais escuro que os outros. Dali podia alcançar-se a rua, notava-se pela corrente de ar. Pete se dispôs a esperar a chegada de Loretta.
— Maldição... O que esse idiota faz aí? — grunhiu um dos três tipos que estavam escondidos num canto do corredor, a poucos passos da saída.
— Deve estar esperando Loretta. Parece óbvio. O que faremos? — perguntou o segundo, olhando para o homem que permanecia oculto e silencioso, destacando-se dos outros dois.
Parecia um cavalheiro. Era elegante e de idade madura, o que lhe dava um ar distinto.
— O que faremos? — repetiu o outro, chamado Riccoli, um homem alto, esbelto, com cabelos negros e um fino bigode preto sobre o lábio superior.
— Terá que afastar-se dali — disse o cavalheiro — Não quero intromissões nesse momento.
Riccoli olhou para o terceiro, um homem bem similar a um chimpanzé. Chamava-se Lasker e parecia ser capaz de derrubar um urso com um braço só.
— Já ouviu, Lasker — disse Riccoli. — É um trabalho para você.
Lasker assentiu com a cabeça.
— Agora? — perguntou.
— Antes que Loretta volte — disse o cavalheiro.
— Ok. Não é para matar, certo?
— Não seja besta, Lasker — grunhiu Riccoli. — Deixe-o dormindo como um rato.
— Pode vir alguém.
— Sim... Espere.
Riccoli olhou em volta, aproximou-se da saída que dava para uma rua lateral e viu o porteiro de costas, sentado tranqüilamente, lendo uma revista. A cabine telefônica estava a uma distância suficiente do porteiro para que o homem se desse conta. Riccoli voltou e disse:
— Vá, Lasker, e tire-o daqui. Vamos metê-lo na cabine.
Lasker avançou até Pete, que estava acendendo um cigarro. Pete ouviu as pisadas, mas não fez caso. Ali passava tanta gente...
De repente, parecia que um pedaço de rocha caía sobre a sua cabeça. Caiu de joelhos, com a visão nublada, sem forças para virar-se, nem compreender o que acontecia. O segundo golpe deixou-o inconsciente. Ia cair de bruços, mas a enorme mão de Lasker agarrou-o pelo pescoço, sustentando-o. Depois, Lasker carregou Pete até a esquina do corredor.
O cavalheiro ficou de lado olhando para o fardo que Lasker trazia. Riccoli esperava com a porta da cabine aberta, dificultando ainda mais a visão do porteiro.
Segundos mais tarde, Pete estava encerrado na cabine, e os dois homens voltaram para perto do cavalheiro.
— Pronto — disse Lasker.
— Quanto tempo levará para acordar? — perguntou Riccoli.
— Bati duas vezes... — disse Lasker. — Uns quinze minutos.
— Será suficiente — disse o cavalheiro. — De qualquer forma, vão ficar aqui. Eu falarei com Loretta. Depois, vamos embora.
— Certo — assentiu Riccoli. — Creio que já está chegando.
Ouvia-se o bater dos saltos da mulher. Logo, ela apareceu, indo diretamente para seu camarim. Lasker fez uma careta ao ver aquela beldade com seu ar de rainha. Ela não olhou para lado algum. Limitou-se a abrir a porta e entrar.
O cavalheiro foi até lá e, sem bater, também entrou.
Loretta estava tirando a capa. Virou-se e não mostrou surpresa nem sobressalto ao ver o homem.
— É você... — disse com sua voz pastosa.
— Não me esperava, Loretta?
— Não tão cedo. Sente-se.
— Não posso perder muito tempo. Vamos ao que interessa. Que tal com cinco mil dólares? — perguntou o tipo.
Loretta, com expressão de quem olha uma poeira no vestido, olhou o indivíduo de cima a baixo. O homem sentiu-se um tanto incomodado. Sentiu-se insultado. Com prazer teria dado umas bofetadas naquela mulher e lhe arrancado aquele sorriso dos lábios.
— Vamos, vamos... Sente-se — disse Loretta. — Não é menos que vinte e cinco mil. E acha que vou aceitar migalhas? Vinte e cinco mil, irmão, ou você vai para o inferno. Escolha.
O tipo estava pálido.
— É muito dinheiro — disse, roucamente.
— Mas você é um assassino e tem negócios sujos. Negócios importantes. Na realidade, não creio que vinte e cinco mil dólares sejam grande coisa para você, mas me dói a cabeça quando começo a pensar em que vou gastá-los. E, talvez, depois de gastar tudo, vou querer mais. Está claro? Sabe? Não é que amasse Hal Farson, mas o rapaz era simpático. Era quase um homem. E você sabe o que penso de um homem.
— Não fale tanto, Loretta, nem se sinta tão segura. É verdade que...
— Chega. Pague-me e esqueça-me até que eu necessite. Não complique a vida comigo. Se me acontecer algo, você está frito. Não vale a pena, não é?
— Já disse a alguém o que sabe? — perguntou o homem, contendo a raiva.
— Acha que sou boba? Não se pode confiar em ninguém. Eu me cuido muito bem. Bem, tenho que tirar a roupa. Assim sendo...
— Acha que tenho vinte e cinco mil dólares aqui?
— Me dê o que trouxe, e o resto vou buscar no escritório.
— Melhor que...
— Melhor nada. Em seu escritório, senhor. Sei o que faço.
— Está bem. Mas seja discreta.
— Não tema. Não contarei seu segredo a ninguém, como Hal fez comigo. E não sou chorona. Gosto de dinheiro. Acho até que uma temporada em Miami me fará bem. Se receber carta de lá, já sabe de quem é. Bem, já fiz meus planos. Me dê os cinco que trouxe e adeus, senhor.
O homem pegou o dinheiro com as mãos trêmulas de raiva. Cinco mil formosos dólares que Loretta guardou cuidadosamente em seu bolso.
— Não me olhe assim — disse. — Não fará comigo o que fez com Hal. Meta isso na sua cabeça, senhor. E saiba que teve sorte. Imagine que eu poderia ter ido à polícia em vez de entrar em contato com você, e contasse o que sei. Você, a esta hora, estaria roendo as unhas, com uma roupa de presidiário. Vá, senhor.
— Quero fazer-lhe uma pergunta — disse o homem.
— Seja breve.
— A polícia a interrogou?
— A mim? — perguntou Loretta, surpresa.
— Claro, estúpida. Acha que não investigaram com quem Hal andava e o que fazia? Se a polícia ainda não chegou a você não vai demorar muito a fazê-lo. Suponho que seja inútil adverti-la para se calar.
— Oh, claro que sim. Não conhecia Hal nenhum...
— Claro que o conhecia, estúpida...!
— Ouça, senhor. Meus ouvidos são delicados.
— Não minta quanto a isso, pois a polícia já deve saber que se conheciam. O que deve dizer é que se dava bem com Hal, mas não estava a par de seus assuntos. Você agia profissionalmente com ele...
Os olhos de Loretta brilharam de ódio.
— Ouça, desgraçado: nunca tive nada profissionalmente com Hal. Nem com ninguém. Minha profissão é artística. Isso não quer dizer que tenha conhecido homens em minha vida.
O sujeito não quis continuar a discutir. Além do mais, aquela mulher o humilhara.
— Está bem, está bem... — grunhiu. — Já sabe: você saía com Hal, mas este era uma pessoa fechada. Entendeu?
— Isso sim, senhor. E assim é melhor: com educação.
Riu novamente, diante da cara de raiva do indivíduo.
O homem começou a andar até a saída. Antes de sair, virou-se para Loretta, que já havia jogado os sapatos longe. O homem a olhava em silêncio, e ela perguntou:
— O que é agora?
— Você é linda. Cuide-se.
— Pode estar certo — disse a mulher.
— É perigoso o que faz.
— E produtivo.
— Mas a longo prazo...
— A longo prazo, você e seus negócios vão para o inferno. Portanto, decidi viver bem, enquanto posso. E, se insistir em me ameaçar, vou até a polícia. Uma dica anônima e saio por aí.
— Não é tão fácil.
— Ande, vá embora. Não seja agourento.
Furioso, o homem saiu, fechando a porta com força. Loretta encolheu os ombros. O homem teria que agüentá-la até a hora que ela quisesse.
E Loretta sentiu-se feliz com o que poderia fazer com o dinheiro que tinha no bolso e os vinte mil dólares que ainda iria receber. Tirou a roupa, olhando-se no espelho e viu-se jovem, formosa... e com vinte e cinco mil dólares. Aquilo é que era viver, diabos. O resto... Começou a cantarolar. Por certo, a primeira coisa que faria seria mandar o dono do clube para o inferno.


CAPÍTULO QUINTO

Loretta

Pete ouviu o grito como se viesse de Marte. Piscou e levou a mão à nuca. Abriu os olhos e viu as bem torneadas pernas femininas que tinha diante de si. Uma linda mulher havia aberto a porta da cabine telefônica e levou um grande susto.
— Ouça... O que houve? — perguntou a moça.
Pete reagiu rapidamente. Tudo o que acontecera veio à sua mente. Alguém o agredira enquanto esperava Loretta, e não poderia ter passado muito tempo.
Levantou-se, olhando para a mulher, que estava muito surpresa.
— Vejamos — disse Pete. — Viu alguém por aqui?
— Não... Tenho que telefonar e... abri a porta e...
— Está bem. Não foi nada.
Pete deixou-a com a boca aberta e lançou-se pelo corredor, tratando de ver alguém que lhe parecesse suspeito. Mas... que besteira! Como, diabos, iriam estar ali? Loretta!
A testa de Pete cobriu-se de suor. Estava claro: tinham ido eliminar Loretta, já que ela devia saber de algo. E Pete correu como louco até o camarim da mulher. Sabia que só encontraria um cadáver ali. Maldição...
Empurrou a porta do camarim e saltou para seu interior, dando uma rápida olhada para dentro. E... ali estava Loretta, não totalmente vestida, mas calma, observando criticamente o indivíduo que tinha a desfaçatez de invadir seu aposento.
— O que se passa? — grunhiu Loretta. — Nunca viu uma mulher com pouca roupa?
Pete respirou fundo. Mais calmo, fechou a porta, aproximando-se de Loretta.
— Já — respondeu. — Vejo que está viva.
Loretta levantou uma sobrancelha.
— E mordo, irmão — disse. — Quer me explicar essa entrada no meu camarim?
— É claro. Mas... vista-se primeiro.
Loretta olhou-o como se fosse um ser de outro planeta.
— Bem... o que há? — perguntou ela. — Já sei: você é um cavalheiro, não é isso?
— Procuro sê-lo.
— Consegue sempre?
Pete sorriu. Loretta era agradável. Pena... Além do mais, ela já havia-se levantado e estava à sua frente, olhando-o com ironia.
— Não, Loretta. Nem sempre consigo — grunhiu Pete.
— Que medo... Então, vou me vestir — riu ela, zombeteira. — Quer me alcançar o vestido... É o único que tenho.
A mulher pôs o vestido. Causava mais sensação ali do que no palco.
Depois, sentou-se e começou a se pentear. Pete falava de modo a conduzi-Ia. Era uma mulher esperta.
— Ficou mudo? — perguntou ela.
— Só um pouco impressionado.
— Imagino. Quem é você?
— Meu nome é Pete Honkala, e sou do FBI. Pena, não?
Loretta estava surpresa e virou-se para ele.
— Por que é uma pena, Pete? — perguntou.
— Porque o nosso será um caso de rotina... Perguntas e respostas. Já sabe, não? Má sorte.
— Bem... depois das perguntas e respostas, pode-se chegar a outras coisas, não?
— Não — suspirou Pete.
— Ora... Então mentiu quando disse que estava impressionado.
— Também tive outra impressão: a de que as coisas não terminariam bem. Vejamos: enquanto a esperava, alguém me agrediu e me meteu na cabine telefônica. Ao recobrar-me, pensei que a tinham assassinado, Loretta. De qualquer modo, como não foi assim, vou deduzir que você esteve com o tipo que me golpeou. Quem é?
Loretta voltou a seu penteado. Parecia um pouco tensa.
— Estive só, Honkala — disse.
— Não, não...
— Alguém que não gosta de você é que deve tê-lo agredido. Além do mais, quem iria querer me matar? Tampouco sei o motivo de sua presença em meu camarim. Se suspeita que alguém queria me matar, e não aconteceu isso, é uma prova de que se enganou. Sendo assim, podemos começar a falar de coisas agradáveis, querido.
Pete sorriu.
Aproximou-se dela pelas costas e passou a mão em sua nuca, sem que ela se movesse. Limitava-se a olhá-lo nos olhos. Talvez o sorriso de Pete e seus modos a estivessem enganando, porque ela disse:
— Você sabe como acariciar uma mulher, rapaz.
Havia virado o rosto e sorria. Tinha os lábios entreabertos.
Pete continuava a olhá-la. Também olhou os lábios, acariciou o cabelo de Loretta. Esta esperava, até que compreendeu o sorriso de Pete.
— Não pensa em me beijar? — suspirou.
— Não... por hora.
— Já lhe disse que...
— E eu não acredito, Loretta. Já tinha imaginado que você iria dificultar as coisas. Já disse a primeira mentira. E isso é feio, Loretta.
— Não menti.
— Ninguém esteve aqui? Não a ameaçaram?
— Ninguém, Honkala.
Pete balançou a cabeça e grunhiu:
— Conhecia Hal Farson?
— Sim...
— Sabe que morreu assassinado?
Loretta ergueu-se um pouco.
— Hal... assassinado? — murmurou.
— Isso mesmo. Olhe, Loretta, trata-se de um assunto grave: cocaína. Além do mais, a coisa está dançando entre menores, o que significa um sério problema para o desgraçado que se meteu nisso. Hal estava no meio, e imaginamos que você soubesse de algo.
— Supõe que eu participo disso? — perguntou ela, sem mover-se.
— Ainda não — Pete sorriu. — Mas você, como saía com o rapaz, pode ter visto algo. Pode conhecer alguém que interesse ao FBI. Estamos procurando o homem que iniciou Hal nisso e depois o matou. E Hal era um bom rapaz, não? Você deve saber que ele lutou contra a droga, mas não o deixaram sair, Loretta.
A mulher umedeceu os lábios.
Naquele momento estava um pouco assustada. Pete notou isso em seus olhos.
— Não... não sabia que estava nesse tipo de confusão — murmurou Loretta. — É verdade que usava cocaína. Eu... tentei fazer algo por ele, mas... Suponho que você saiba como é esse vício. Também é verdade que Hal não me preocupava muito...
— Hal estava apaixonado por você, Loretta.
— Ou acreditava estar. Contudo, você pode crer que eu não sentia o mesmo por ele. Hal era um rapaz agradável. É tudo o que posso dizer dele.
— Hal tinha amigos? Nunca lhe fez confidencias?
— Não desse tipo. Era um rapaz calado.
Pete concordou com a cabeça. Todos os que conheciam Hal diziam a mesma coisa.
— Está bem, Loretta. Viu-o acompanhado alguma vez?
— Nunca, Honkala. Hal sempre vinha sozinho aqui.
— Escute, Loretta... Não está escondendo nada?
Loretta piscou. Negar... negar... negar... Porque ela iria perder o negócio? Lamentava a morte de Hal, mas não muito. Já não se podia fazer nada por ele. Ela podia viver um pouco, e os do negócio iriam cair mais cedo ou mais tarde. Por isso devia negar tudo.
— Não estou escondendo nada — disse Loretta. — Nós saímos quando ele tinha dinheiro, o que era quase sempre. Conversávamos, mas ele quase não falava de si mesmo. Parecia-me inteligente e bastante maduro para sua idade. Isso é tudo... E lamento não poder fazer mais nada para ajudar.
Houve alguns segundos de silêncio no camarim. Naquele instante, a porta foi aberta. O rosto de um homem muito agitado apareceu na soleira. O homem olhou em volta e disse:
— Perdoem... me enganei...
Fechou a porta, enquanto Pete sorria ligeiramente. Depois, olhou para Loretta, que disse:
— Nossa entrevista não foi de todo desagradável, senhor Honkala. Acho que agora podemos falar de nós.
— Sinto, Loretta. Eu não posso esquecer que assassinaram um rapaz e que outras pessoas também morrerão. Talvez num outro dia... E, se se lembrar de algo que possa ser útil, vá até a delegacia do FBI. Sabe, Loretta? Isto será pago com a cadeira elétrica.
Loretta suspirou.
— Então, vai embora?
— Sim.
Loretta pensou uns segundos e disse:
— Se me lembrar de algo importante o chamarei, Honkala.
— Assim espero.
Pete fez uma saudação com a mão e encaminhou-se para a porta. Ia pensando que Loretta era uma mulher esperta. Ou, pelo menos, isso ela pensava. Mas havia cometido vários erros. Não devia negar que havia falado com alguém. Para quê e por quê bateram em Pete, se não fosse para tirá-lo do caminho?
O homem do FBI foi até a porta e saiu, indo para a sala de música. Estava mais cheio. Pouca luz, tudo muito agradável e discreto. Maldição, teria que vigiar aquele lugar, a menos que descobrisse algo melhor.
Pete comprou cigarros e foi até o banheiro. Só havia um homem e saiu tossindo pouco depois da entrada de Pete, que esperou uns trinta segundos antes de abrir a porta e ver o mesmo rosto que havia assomado no camarim de Loretta, pouco antes.
O dono daquele rosto era um jovem atlético, de vinte e sete anos, com os cabelos loiros e os olhos cinzas, que entrou no reservado suspirando exageradamente.
— Diabos, Pete! Chegou a me assustar — disse.
Pete sorriu.
— Só me acertaram a cabeça, Hobbs. Não é nada. Loretta mentiu. Portanto, vá rápido antes que parta. Não a perca de vista, e depois comunique a situação à delegacia. Certo?
— Mas... ela...?
— Nega quase tudo. Eu não confio.
— Claro. Suponhamos que vá para casa e durma. O que faço?
— Nada. Vá embora.
— Ok, Pete.
— Espere. Está de carro?
— E com o rádio.
— Perfeito. Até logo, rapaz.
Hobbs saiu, deixando sozinho Pete, que deu duas tragadas e jogou o cigarro no chão, pisando depois. Saiu dali. Deu uma olhada em Hobbs, que se dirigia para a saída. Pouco depois, observou Loretta, com um casaco de peles falsificadas, que também saía.
Pete foi até o balcão. Com um uísque diante de si, fez um resumo dos acontecimentos. Continuava acreditando que Loretta era uma peça chave. De qualquer modo, a mulher não usava drogas e parecia muito calma.
Pagou e dirigiu-se para a saída. Tinha que esperar que Melvin pesquisasse algo no arquivo. E Pete começou a desconfiar de que os golpes que recebeu tinham a ver com os caras que Melvin conhecia.


CAPÍTULO SEXTO

Filantropia

Quando Pete entrou no escritório do inspetor Newell, a coisa parecia clara, a julgar pela atitude dos presentes. O inspetor parecia satisfeito. Corrick estava sentado e Melvin, deitado. Notava-se a inquietação em seus olhos, e roía as unhas.
Corrick e o inspetor Newell olharam para Pete. Melvin não levantou a cabeça.
Não havia fichas, nem rastro de arquivo, o que poderia ser um bom sinal.
Antes que Pete pudesse falar, o inspetor Newell disse:
— Nós temos sorte, Pete. Lembra-se de John Lasker?
Pete sorriu. Recordava muito bem e entendia quem o havia agredido na boate.
— Lasker, eh? E o outro?
— Desconhecido. Pelos menos para Melvin.
— Certo. Lasker é suficiente, não?
— Claro que sim.
— Que mais? — perguntou Pete.
— Nada mais. Como sabe, Lasker nunca esteve metido com droga. Isso é um pouco desconcertante, mas não quer dizer nada. Como sabe, Lasker nunca trabalhou por sua conta. Obedece a ordens, e isso me faz pensar que estamos no bom caminho. E uma coisa ficou clara: Hal meteu-se em algo mais forte que ele, um negócio perigoso. Fraquejou, e o cabeça ordenou sua execução. Sem problema algum.
— Parece bem evidente, senhor — suspirou Pete.
— Contudo...
— Contudo o quê? — grunhiu Pete, olhando para o inspetor.
— Bem... Como deve saber, colocamos nossos confidentes em movimento, e nenhum deles sabe sobre esse caso. É indiscutível que a droga corre solta pelo país. Mas trata-se de intermediários, entende? Ninguém dedicado habitualmente a esse contrabando moveu-se o suficiente para despertar suspeitas. Vende-se cocaína sem que se saiba sua procedência nem se conheça ninguém. E isso me faz pensar numa revenda de pouca importância.
Pete refletiu. Tinha muita lógica tudo o que o inspetor dissera.
— Vejamos, senhor. Não há negócio de cocaína recente?
— Não.
— O senhor acha que se trata de algo solto, o que é um pouco fora do esquema.
— Exato.
— Portanto, não existem verdadeiros interesses no negócio. Hal não morreu em conseqüência do negócio que tentamos descobrir.
— Não posso afirmar como verdade absoluta, Pete. Não obstante, pessoalmente acho que o menor fator que provocou a morte de Hal foi a cocaína. Deve existir algo mais. A menos que estejamos cometendo um erro muito grave, o que é pouco provável.
— Talvez estejamos nos deixando levar por uma pista falsa — murmurou Pete. — O rapaz estava cheio de droga, mas isso não quer dizer, segundo entendo agora, que tivesse que estar relacionado...
— E o dinheiro, Pete? Hal manuseava muito dinheiro.
Pete inclinou a cabeça.
— É verdade — grunhiu. — De qualquer modo, temos Loretta. Hobbs não a perderá de vista, e anotei certos detalhes suspeitos. Já podemos cuidar de Melvin, senhor?
— Um momento, Pete — sorriu Newell. — Vejamos: Hobbs está atrás de Loretta. Corrick se ocupará de Melvin e comunicará a Janet o hospital onde o rapaz ficará. Você se ocupa de todos, e falta alguém que localize Lasker. Mandarei Mellon e Parrot. Com a colaboração da polícia local, poderemos localizar o sujeito logo. Certo, Pete? Amanhã haverá novidades. Você está pensando em algo especial?
— Não... É algo que já devia ter feito, mas que não vale a pena mencionar.
Newell franziu o cenho. Bem... Esqueceu o assunto quando Pete foi até Melvin.
— Já ouviu, Melvin será internado num hospital — disse Pete. — Deve ficar calmo, compreende?
— Sim, senhor Honkala.
— Não crie dificuldades, rapaz. E lembre-se de Hal de vez em quando, certo?
— Certo.
— Assim está bem. Tudo dará certo.
Pete olhou para Corrick.
— Andando, Corrick. E, por favor, você mesmo fale com Janet. Estou morto. Me sinto um velho.
Pouco depois, resolvido o assunto Melvin, Pete estava na rua.
Começou a andar perdido em pensamentos. Claro que, no momento, só poderia esperar e...
— Senhor Honkala.
Olhou bruscamente para sua esquerda e piscou. Metida num casacão, estava Janet, olhando-o um pouco assustada.
— Pequena... Mas... o que faz...? — começou Pete, aproximando-se dela.
— Comecei a sentir medo. Um medo terrível. Deitei-me, mas não conseguia dormir. Pensei no senhor e... Não sei... O senhor disse que poderia fazer algo por mim...
— Claro, claro... — Pete tossiu.
Janet estava ali na porta da delegacia, esperando-o para lembrá-lo de cuidar dela. Perfeita confusão.
— Janet... sou solteiro, entende?
— Sei...
— E... vivo só em meu apartamento.
— Mas eu confio no senhor.
— Ora, não tem medo?
Janet baixou o olhar. Quando o levantou novamente estava sorrindo. Disse:
— Sim, senhor Honkala. Muito medo.
— Alegro-me. Então?
— Mas continuo confiando no senhor.
— Bem... Há uma solução: vou deixá-la no meu apartamento e irei para um hotel.
— Como quiser, senhor Honkala.
— Então, vamos.
Começaram a andar. Pete estava contente por Janet estar ali. Podia haver a possibilidade de ela ser envolvida no assunto. No apartamento dele, estaria segura. Melhor assim.
Pete sentiu-se feliz quando Janet passou a mão por seu braço, colando-se a ele sob a chuva fina.
Pouco depois, estavam em seu apartamento. Abriu a porta e olhou para Janet, que examinava o lugar.
— Na geladeira há o que comer — disse Pete. — Fique à vontade e... boa noite, Janet.
Ia girar a chave, mas Janet murmurou:
— Espere, Pete.
Olhou-a sem compreender.
E, quando compreendeu, Janet já estava beijando-o nos lábios, meio assustada. Apertou-se a ele, tornando o frio agente especial um homem feliz, que se encontrou com a porta fechada quando quis reagir.
Naquela noite, Pete dormiu muito mal. Teve pesadelos com Loretta, com Hal assassinado... E tornava-se agradável quando sentia o beijo de Janet. Pete suava. Quando acordou, vestiu-se, penteou-se e estava de saída quando o telefone tocou. Havia dado o número do hotel para o FBI. Durante cinco minutos esperou notícias de todos...
A chamada cessou e Pete já saía. Pegou um táxi e pouco depois rodava até a "Promotora Artística". Estava certo de que naquela empresa, que se dedicava a ajudar novos talentos, iria encontrar novas pistas. Afinal, antes do jovem ganhar a bolsa de estudos, tinha que passar pela "Promotora", e eles estudavam bem o candidato antes de concederem o benefício.
A "Promotora Artística" ficava numa rua calma e discreta, situada próximo ao East River.
Pete pagou o táxi e desceu, dirigindo-se diretamente para o edifício de vinte andares, que era dividido em escritórios.
Pegou o elevador e desceu no décimo-sexto andar. Primeira porta.
Bateu, sem fixar-se no letreiro que dizia "Empurre". Assim que o viu, entrou.
Gostou do ambiente. Ali podia encontrar gente educada. Filantropos sem dinheiro... no que diz respeito aos empregados, naturalmente. Entrou.
Tropeçou com uma mulher loira, jovem, bonita, que datilografava algo.
Ela levantou a cabeça e perguntou:
— Diga, senhor?
— Gostaria de falar com o presidente.
— Temo que não possa, senhor. O presidente é honorário. O senhor Pomeroy poderá atendê-lo. E o secretário.
— Certo, senhorita.
— A quem devo anunciar? — perguntou a jovem.
— Pete Honkala, do FBI.
A jovem mostrou discretamente sua surpresa, nada mais. Acionou o interfone e disse:
— Senhor Pomeroy.
— Sim, Betty.
— O senhor Honkala, do FBI, deseja falar com o senhor.
Houve um ligeiro silêncio.
— Já vou recebê-lo, Betty. Mande-o entrar.
— Sim, senhor.
A mulher olhou para Pete. E levantou-se.
— Siga-me, por favor.
Pete seguiu-a em silêncio. Nem reparou no belo corpo da moça.
Foi a própria secretária quem bateu à porta. Abriu-a e cedeu passagem a Pete, que entrou imediatamente.
Pete encontrou-se num amplo escritório, bem mobiliado, sem muito luxo, mas com certa solidez. Uma grande janela, muita luz, não estava mal.
No escritório estava Pomeroy. Um homem elegante, mas insignificante, se não tivesse aquele cargo. Quarenta e poucos anos, bem vestido, bem conservado, bem perfumado e bem educado. Um cavalheiro.
Pomeroy tinha o cabelo escuro, meio grisalho. Um tipo maduro, inteligente, a julgar por sua expressão, e bastante agradável.
— Senhor Honkala? — perguntou.
— O próprio.
— Sente-se, por favor. Espero que compreenda, minha surpresa.
Pete meditou alguns segundos, olhando-o fixamente.
— Por que surpresa, senhor Pomeroy? — perguntou. — Anda tão mal de notícias? A Escola de Belas Artes não lhe comunicou a morte de Hal Farson?
— Oh... Por Deus, não relacionei...
— Sabe sobre isso?
— Creio que foi assassinado.
— Nem sequer está seguro, eh?
Pomeroy mexeu-se inquieto.
— O senhor compreenderá que a "Promotora Artística" não é mais que uma instituição para ajudar os talentos em embrião. Nós não podemos nem temos meios de proteger pessoalmente esses talentos, senhor Honkala. Se algo desagradável aconteceu com Hal Farson, não creio que possamos ser acusados. Nós concedemos a jovens como Hal meios para seguirem seus estudos com dignidade. Mas não nos metemos nas vidas privadas de nossos alunos. Só os protegemos em estudos, nada mais.
Pete sorriu, sem dar a maior importância à fala daquele tipo com aparência de cavalheiro. À medida que prestava atenção nele, o conceito que fizera à primeira vista descia até quase ao chão. Os olhos do tipo eram mortiços. E a maneira como falava não era a de um filantropo. Era um assalariado ou um farsante daquele lugar.
— De modo que vocês concedem uma bolsa, sem se preocuparem com a personalidade de seu protegido — disse Pete.
— Não! Nada disso, senhor! Como pode supor semelhante disparate? — protestou Pomeroy. — Nós sabemos muito bem a quem concedemos uma bolsa, em quem investimos nosso dinheiro. Saiba que uma junta se reúne a cada trimestre, aprovando o que eu faço, ou a junta em geral.
— Então, as bolsas são revistas trimestralmente.
— Exato.
— Inclusive a de Hal Farson?
— Naturalmente.
O tal Pomeroy parecia escandalizado. Mas aquele tipo... era antipático. Além do mais, não olhava de frente. Era desagradável e vestia-se de um modo estranho, ambicioso. Mas não tinha nada de bobo. Pete disse:
— Pode-se dizer que Hal era um indesejável. Por que então continuavam a dar-lhe a bolsa?
— Porque... o senhor o conhecia? — perguntou, assombrado, Pomeroy.
— Vi-o uma vez. Morto.
O indivíduo pestanejou.
— Sei... Suponho que o FBI estranhe certas coisas. Respondendo a sua pergunta anterior: Hal era um artista. Era de nascença. Tinha o dom no sangue. O senhor viu suas obras?
— Sim.
— E então?
— Suponho que são extraordinárias — suspirou Pete.
— Essa é a palavra. Acha que poderíamos dispensar um talento como o dele só porque parecia ir pelo mau caminho? Nós continuamos protegendo-o. E tudo o que aconteceu foi muito lamentável. A "Promotora" não dispensaria Hal nem que fosse um criminoso.
— Bem... Senhor Pomeroy, tinha esperanças de que me fornecesse dados concretos sobre o motivo que levou Hal a essa morte tão violenta. Se vocês se reuniam...
— Perdão — interrompeu Pomeroy. — O que se informava na junta de sócios era que Hal não se comportava como os jovens de sua idade. Soubemos que Hal se drogava, que não trabalhava e que perdia tempo com uma consta. Mas... confesso que eu mesmo insistia em sua permanência conosco. Todos nós esperávamos que Hal recuperasse o bom senso.
Pete refletiu rapidamente, concluindo que havia perdido tempo. O tal Pomeroy se expressava com toda clareza e lógica. Não se preocuparam com Hal porque não tinham tempo para isso. Só esperavam que se recuperasse. Que mais poderiam fazer?
Pete começou a levantar-se.
— Bem, sinto tê-los feito perder tempo...
— Quero pedir-lhe um favor, senhor Honkala — disse Pomeroy. — Nossa situação é delicada nesses casos, entende? Rogo-lhe que, em nome de todos os sócios, sejam discretos. Nossos sócios não gostariam de ver seus nomes envolvidos nisso. Se a imprensa tomasse conhecimento do caso, nem sei o que poderia acontecer.
Pete assentiu com a cabeça.
— Desculpe, senhor Pomeroy.
O homem até sorriu e estendeu a mão a, Pete. Este apertou-a, ocultando seu desprazer. Não gostava daquele homem.


CAPÍTULO SÉTIMO

Luta no apartamento

O inspetor Newell olhava pela janela, com as mãos no bolso. Não via nada.
Pete fumava um cigarro, ruminando seu fracasso. Decidiu aplacar um pouco seu mau-humor. Que diabos! Havia algo que devia fazer quando levantou-se àquela manhã.
Sorrindo ligeiramente, pegou o telefone e ligou para sua casa.
— Janet?
O inspetor olhou-o, mas não fez o menor comentário, apesar do sorriso de Pete tê-lo deixado perplexo.
— Muito bem, Pete. É claro.
— Fico feliz, pequena. Eu só queria...
— Vou vê-lo logo, Pete? — perguntou Janet.
— Bem... depende.
— De quê?
— De tempo. Temos que esclarecer esta situação, Janet. Depois poderá voltar para sua casa.
— Sei... — disse ela, meio decepcionada.
Pete riu.
— Pete... o que acontecia com Loretta?
— Ainda não sabemos. Tem rancor?
— Não mais. Sabe... Mudei em poucas horas. Eu... Lembra que prometi seguir seu conselho?
— Sim — suspirou Pete.
— Pois... já consegui. Não lhe parece estranho?
— Não sei. Mas me alegro. Juro.
— Tudo está tão longe... Gostaria de vê-lo, Pete.
— Janet, você é uma menina...
— Por favor, Pete. Eu lhe... quero tanto...
Pete olhou para o inspetor. Pigarreou.
— Janet, eu... Clic!
Melhor. Que diabos iam dizer?
Desligou também e olhou para o inspetor. Gostaria de saber o que o inspetor diria sobre tudo isso e sua idade, mas...
O telefone tocou naquele instante. Os dois homens ficaram tensos. Foi o inspetor quem atendeu.
— Sim — grunhiu.
— Uma mensagem do agente Hobbs, senhor.
Newell apertou as mandíbulas. Olhou significativamente para Pete, que esqueceu a doce Janet num instante. A voz de Hobbs:
— Loretta acaba de sair de seu apartamento, senhor. Quando me dispunha a segui-la, apareceram dois tipos, que se dirigiram para o apartamento dela. O que faço?
— Como são esses homens? — perguntou o inspetor.
— Um deles é um perfeito gorila. O outro parece...
— Latino — concluiu, com um suspiro, o inspetor.
— Isso mesmo.
— Certo, Hobbs. Deixe Loretta. Não saia daí. Vamos para lá imediatamente. Quando esses dois saírem, siga-os, comunicando o mais rapidamente sua posição. Preste atenção, Hobbs. Isso é importante.
— Compreendido, senhor.
O inspetor desligou. Olhou Pete.
— Andando — disse.
Em segundos colocaram os casacos, e o inspetor saiu do escritório dando ordens, enquanto Pete, com o rosto tenso, examinava sua pistola, procurando lembrar-se de um rapaz assassinado chamado Hal Farson.
Além do mais, Lasker lhe batera na boate. Bem... bem...

Os dois homens viram Loretta andar pela calçada. Lasker linha as pupilas contraídas. Grunhiu:
— Vamos agora, Riccoli?
— Claro.
Lasker era bom naqueles assuntos e demorou menos de um minuto para abrir a porta do apartamento de Loretta, situado à rua Prince. Aquela hora, onze da manhã, só gente trabalhadora passava por aquela rua.
Entraram no apartamento e fecharam a porta. O olfato de Lasker entrou em ação assim que entraram.
— Cheira bem, Riccoli. Seria uma pena que a mulher... Você me entende...
— Não percamos tempo — disse Riccoli.
— Não há pressa. Suponho que teremos que esperá-la aqui.
— Não creio.
Riccoli adiantou-se a Lasker e entrou no quarto de Loretta, que era a maior peça. Estava em desordem, o que indicava que Loretta não era uma boa dona de casa. Viam-se revistas pelo chão, copos sujos... Apesar de tudo, o perfume era bom. Pelo menos para Lasker.
— Por onde começamos, Riccoli? — perguntou o gorila, observando-o circular pelo quarto.
— Teremos que fazer as coisas com método, Lasker. Procure não meter a mão onde não deve, entendeu? Vamos procurar com calma. Nada de jogar as coisas pelo chão. Temos que encontrar, seja como for.
— Certo — grunhiu o outro.
E deixou de preocupar-se com Riccoli. Começou a gostar daquele trabalho quando abriu um armário e viu as calcinhas de Loretta. Logo, sua imaginação começou a trabalhar. Virou-se para Riccoli, que estava mexendo na penteadeira.
— Eh, Riccoli, maldição... O que procuramos exatamente? — perguntou.
— Um papel, uma nota... Se Loretta não disse a ninguém o que sabe, deve ter escrito em algum lugar, de modo que a sua morte não seja em vão. Portanto, procuramos um papel onde esteja escrito o que ela sabe.
— Sei... um papel.
Lasker não conseguia sair de perto do armário. O problema é que começava a se cansar, e a bagunça se iniciava. Ali não havia nada...
— Riccoli! — gritou.
— O que é agora?
— Não há nada no armário.
— Procure debaixo da cama, na mesa de cabeceira. Tem que estar por aqui.
— É? Vamos supor que ela não tenha escrito nada, pelo simples fato de que não saiba escrever.
— Sabe escrever, sim. Aqui há uma cópia do contrato com a boate, assinado por ela. Assim...
Lasker bufou. Olhou debaixo da cama... Não havia nada. Riccoli também havia abandonado a penteadeira sem resultado algum.
— Temos que revistar a casa toda — disse Riccoli. — Não percamos tempo, Lasker.
Afastaram-se dos móveis já revirados, sem falar nada. Estavam furiosos, e o que devia ser uma revista metódica acabou por transformar-se numa bagunça.
Já não sabiam o que fazer quando o telefone tocou sobre o móvel-bar.
Trocaram um olhar.
— Deve ser o chefe — disse Riccoli. — Temos que lhe dizer que ainda não encontramos nada.
Riccoli atendeu o telefone. Ouviu a voz apagada:
— Riccoli?
— Eu mesmo.
— E então?
— Nada. Já olhamos em tudo.
— Sei... Loretta acaba de sair daqui com seus vinte mil dólares. É possível que esteja indo para aí.
— Vamos embora, então?
— Não. Façam-na falar, Riccoli. De qualquer maneira. Lembra-se do tipo que a esperava no Soto's ontem à noite?
— Sim...
— É do FBI. E começam a suspeitar de Loretta e a segui-la, o que pode nos arruinar. Portanto, vamos dar-lhe um golpe, que consiste em obrigar Loretta a dizer onde está esse papel, entendeu? Uma vez recuperado o papel, pode matá-la. Levem-na para qualquer lugar. Escondam seu cadáver. Só então ficaremos tranqüilos. Suponho que tenha experiência em arrancar confissões de gente. Por outro lado, será fácil convencê-la. É apenas uma mulher estúpida que tem algo muito perigoso nas mãos. Compreendido?
— Claro. Suponhamos que Loretta não venha para cá.
— Esperem-na.
— Certo. Terá notícias nossas.
Desligaram.
Riccoli olhou para Lasker, que o interrogava mudamente.
— Temos que esperá-la e fazê-la falar — grunhiu Riccoli.
Os olhos de Lasker brilharam.
— De acordo — disse. — Esperemos que...
— Aqui, Lasker! — soou, secamente, uma voz, vinda da entrada da saleta.
Os dois homens giraram velozmente, com as mãos próximas às axilas esquerdas. Mas aquelas mãos ficaram imobilizadas e seus olhos muito fixos naqueles três homens que lhes apontavam suas pistolas. Um deles foi reconhecido imediatamente. Era o tipo a quem Lasker desacordara na boate. Esse homem sorria ironicamente enquanto aproximava-se de Lasker.
Outro dos homens que estavam armados era o inspetor Newell. O terceiro era o atlético Hobbs.
Pete, diante de Lasker e Riccoli, olhou-os fixamente.
— Este é o do bigode, que Melvin falava, senhor — grunhiu Pete.
— Sei...
— E este é Lasker..., o assassino de meninos. Qual dos dois matou Hal Farson? — perguntou Pete, olhando alternadamente para ambos.
— Não sabemos quem é Farson — disse Lasker.
Pete sorriu duramente. Olhou para o inspetor de relance. Uma pena que ele estivesse ali. Newell não gostava de que seus homens se excedessem. E Pete tinha muita vontade de arrebentar Lasker.
— É mesmo, Lasker? — perguntou Pete, com seu sorriso. — Era um rapaz loiro, tão jovem...
— Nunca o vi em minha vida...
Pete não quis conter-se. Moveu rapidamente o braço direito, e o cano de sua pistola penetrou selvagemente entre os lábios de Lasker, até chocar-se com seus dentes. Após o grito de Lasker, o sangue começou a brotar abundantemente de sua boca. Lasker havia retrocedido até bater numa cadeira, e estava tão pálido, que mal continha sua ira. Newell intrometeu-se.
— Cuidado, Pete — grunhiu. — Vamos sair daqui. Estão negando. É o comum. Andando.
Pete fez um gesto com a pistola, indicando a porta para Lasker. O homem do FBI sentia uma aversão incontrolável por aquele homem.
Lasker começou a andar.
Enquanto Riccolli, que não abria a boca e observava Hobbs, fez o mesmo.
Todos em direção à saída. O inspetor Newell ficou de lado, e aquilo parecia o sinal.
Riccoli atacou Hobbs, desviando a pistola e dando-lhe um duro golpe no peito, que fez o agente retroceder até se chocar com o inspetor.
Quase simultaneamente, Lasker atacou a mão direita de Pete, tentando tirar-lhe a arma com sua força descomunal. Logo, Lasker gritou, dolorido, furioso, quando o joelho de Pete acertou-o no baixo-ventre. Mesmo assim, continuou segurando a mão de Pete e começou a golpeá-la contra o móvel-bar, fazendo com que Pete largasse a arma. Depois suou para esquivar-se de um golpe do gorila, só conseguindo pela metade.
A face esquerda lhe queimava quando bloqueou um novo soco de Lasker e depois lhe acertou um golpe no pescoço. A boca ensangüentada de Lasker abriu-se muito, e foi para lá que se dirigiu o punho de Pete, acertando-o com tanta força, que o deixou com a visão nublada.
Como um louco, Lasker lançou-se contra Pete, tentando agarrá-lo pela cintura. Pete esquivou-se, e o tipo caiu e bateu violentamente contra uma cadeira. Levantou-se antes de Pete atacar e lançou os dois punhos contra o rosto pálido do federal, cujos olhos brilhavam de um modo estranho quando, com os dedos índice e médio da mão direita, estendidos e rígidos, recebeu Lasker, procurando seus olhos. E os achou.
Lasker rugiu. Ficou parado, cambaleante, com as mãos cobrindo os olhos doloridos...
Pete não teve compaixão. Acertou-lhe o fígado com toda força, e Lasker já não sabia o que fazer. Inclinou-se, mostrando os olhos fechados, cheios de lágrimas.
Depois, o soco que Pete lhe acertou lançou-o para trás, deixando-o sentado no chão, aturdido.
Pete deixou-o de lado, já que Riccoli acertara Hobbs e estava lutando contra o inspetor.
Pete saltou até ele, rodeou-lhe o pescoço com o braço esquerdo, apertando-o até conseguir que soltasse o inspetor. Depois, Pete largou Riccoli, acertando-Ihe um soco no rosto. Foi então que Hobbs, furioso consigo mesmo pela derrota diante dos outros, gritou:
— Esse é meu, Pete!
Pete largou-o e foi até onde estava sua arma.
Hobbs riu quando disparou um violento soco no plexo solar de Riccoli, cujo rosto transformou-se numa máscara de ferro. Depois Hobbs acertou-lhe o nariz, inundando o bigode de Riccoli de sangue. Fechou-lhe um olho, rasgou-lhe a face, quase arrancou-lhe uma sobrancelha e, por fim, mandou-o para junto de Lasker com um direto no nariz.
— Já basta — disse Newell, olhando para Hobbs e depois para Pete.
Ninguém se moveu.
— Vamos levá-los para a delegacia — disse Newell.
Pete começou a andar, suspirando.
Observou a desordem do apartamento: roupas pelo solo, caixas viradas, gavetas abertas...
— Estavam revirando tudo, senhor — disse Pete. — Talvez fosse interessante saber o que procuravam. Começo a suspeitar que Loretta sabe muito sobre esse assunto. E deve ter algo que interessa a esses dois. Talvez o verdadeiro motivo da morte de Hal.
Newell observou o quarto de Loretta. Depois olhou para Lasker e Riccoli.
— Muito bem? — perguntou. — Por que tudo isto?
Silêncio.
Naquele instante, Parrot, um dos agentes que devia vigiar Lasker, chegou, vindo da escada onde havia montado guarda e disse:
— Loretta está subindo.


CAPÍTULO OITAVO

A confissão

Loretta abriu a bolsa, e seus olhos brilharam ao verem novamente aquele monte de notas. Vinte mil dólares! E mais cinco que estavam muito bem guardados em seu apartamento. A felicidade era aquilo.
E tudo por ser esperta.
A verdade era que sentia certo mal-estar, talvez remorsos. Ela sabia que devia comunicar ao FBI o que sabia. Aquele Honkala era um homem interessante. Mas... Nada mais se podia fazer por Hal. E, se ela podia viver bem, por que não fazê-lo?
Já estava tudo decidido. Iria para Miami naquela mesma tarde. Desfrutaria do dinheiro e deixaria de ser explorada pelo dono da boate. Enquanto contava o dinheiro na presença do homem notou que este estava a ponto de estrangulá-la. Portanto, era ótima idéia desaparecer por um tempo.
Pegou as chaves e foi até sua caixa de correspondência. Abriu e, como de costume, ali estava o envelope. Ela nunca recebia correspondência, fora a que dirigia a si mesma. O truque era velho, mas o considerava inteligente. Era naquele envelope que eslava o papel onde explicava tudo o que sabia. A mesma coisa que Hal lhe confessou um dia.
Guardou o envelope no bolso e fechou a caixa. O que faria era trocar o lugar. Mandaria para o correio de Miami. E ia viver.
Começou a andar. Subiu até seu apartamento, com as chaves na mão. Antes que acabasse de virar a chave na fechadura, a porta foi aberta.
Loretta abriu muito os olhos ao ver Pete Honkala. Depois, fixou-se no sorriso duro do homem do FBI.
— Entre, Loretta — disse Pete.
Ela reagiu.
Entrou no vestíbulo deserto, como se ali, no apartamento, só estivesse Pete.
— Você... — murmurou.
— Já disse que voltaríamos a nos ver.
— Oh... é isso, querido. O certo é que...
— Entre, não fique aí.
Loretta entrou com desconfiança em seu próprio apartamento. Olhou para Pete e não se acalmou. Quis tirar o casaco, mas Pete impediu-a, tomando-a nos braços.
Loretta soltou uma risada. Virou o rosto para Pele e disse:
— Não seja impaciente, querido.
— Não, claro que não, Loretta.
— Mas, o que está fazendo? — protestou a mulher. Pete a havia pego por um braço e a arrastava até o interior do apartamento. Imediatamente, Loretta sentiu que algo não ia bem.
Quis falar, mas não teve tempo. Pete introduziu-a na saleta, e Loretta empalideceu ao ver aqueles três homens ali, que, por sua vez, a olhavam fixamente. Eram Newell, Parrot e Hobbs.
Riccoli e Lasker estavam sentados, com a cabeça baixa.
Loretta olhou para Pete.
— O que... que significa isto? — perguntou.
Pete riu.
— Gosta desta reunião? — perguntou.
— Mas... não compreendo...
Loretta não sabia a quem olhar. Aquilo era uma surpresa para ela. Estava aturdida e assustada. Por mais esperta que fosse, tinha que começar a compreender a verdade.
Será que tudo ia dar errado. Por quê? Ela havia solucionado tudo... Só precisava sair dali e ir para o mais longe possível. Tinha tudo pronto. Mas aquele maldito homem do FBI...
Ela dissimularia. É claro que sim.
Muito dignamente, apontou o dedo para os homens do FBI.
— Quem são esses? — perguntou.
— Oh... perdoe-me — ironizou Pete. — Vou apresentá-los. Inspetor Newell e os agentes Hobbs e Parrot. Os outros você já conhece, com certeza.
— Juro que não! — disse Loretta, menos segura de si mesma.
— Deve conhecer, Loretta — insistiu Pete. — Esse gorila foi o que me bateu na outra noite no Soto's. Portanto, suspeito que é um dos que falaram com você.
— Está enganado, Honkala. Nunca o vi antes.
— Loretta...
— É a verdade!
Pete suspirou e meneou a cabeça.
— Está bem — grunhiu. — E tudo isto?
Pete apontou para o apartamento revolto. Loretta mordeu os lábios.
— Não... não compreendo — murmurou.
— Pois é fácil, Loretta: você tem algo que eles querem.
— Que diabos eu vou ter? — defendeu-se ela. — Saiba que estão invadindo minha residência. Saiam todos aqui. Não os conheço, nada tenho a ver com eles, nem sei de nada. Fora, irmão.
Pete olhou para o inspetor. Este simulou não perceber o olhar.
Calmamente, Pete, com um súbito movimento, arrancou a bolsa que Loretta segurava com as duas mãos.
Loretta gritou agudamente:
— Me dê isso! Me dê, porco!
Tratou de pegar a bolsa das mãos de Pete, mas este empurrou-a em direção a Hobbs, que recebeu-a sorrindo entre seus braços. Mas Loretta deu-lhe um chute e virou-se para Pete.
— Não têm o direito de estarem aqui...! Já entendi! Vocês são uns malditos bandidos que se fingem de agentes do FBI... e...
Hobbs imobilizou-a, enquanto Loretta chorava de raiva, e Pete esvaziava o conteúdo da bolsa sobre o móvel-bar, observado pelos demais, inclusive Lasker e Riccoli, que começavam a compreender que haviam-se metido numa "fria" ao revistarem aquele apartamento, já que a coisa era muito mais simples.
Sim... caiu um maço de dinheiro. Caíram o envelope, as chaves, um batom, um espelho, um lenço...
E Loretta tentando libertar-se de Hobbs.
Pete estendeu o envelope ao inspetor Newell.
— Parece claro, senhor: Loretta dirigindo correspondência a ela mesma, e Lasker e o do bigode procurando o envelope sem saber onde...
Newell olhava o envelope em silêncio.
Pete pegou o dinheiro e aproximou-se de Loretta.
— E isto, boneca? — perguntou.
— É meu — disse a mulher.
— Sei... Ganhou na boate?
— Isso importa?
— Naturalmente — suspirou Pete. — Vamos, não percamos tempo. De onde tirou este dinheiro? Há pelo menos...
— Vinte mil dólares que eu tinha guardados — disse Loretta. — E tudo o que estão fazendo vai custar-lhes caro. E não abra o envelope! Vou denunciá-los.
Newell olhou-a inexpressivamente e rasgou o envelope. Extraiu um papel dobrado e escrito com uma letra razoável.
Polícia
O assassino de Hal Farson é Robert Pomeroy. O tipo é um farsante, e esse negócio de " A Promotora Artística" é uma armadilha para iludir e sonegar impostos. Estão deixando de pagar milhões de dólares para o Tio Sam. Não sei muito bem como funciona isto, mas o que digo é verdade. Foi Hal Farson quem me contou. E conhecer este assunto lhe custou a vida. Vocês descobrirão facilmente em que consiste a "Promotora". Quando receberem isto posso estar morta. Terá sido Pomeroy. Também posso estar viva. Não me procurem.
Newell havia lido em voz alta. Quando acabou tudo estava calmo. Loretta havia parado com sua histeria e olhava para o chão, assim como Riccoli e Lasker. Os homens do FBI os olhavam em silêncio. Foi Pete quem disse, sopesando o dinheiro.
— Chantageava Pomeroy, não?
— Sim... — murmurou Loretta.
— E o ameaçava com a carta que estes estavam procurando, eh? Não posso felicitá-la, Loretta. Não vai passar muito bem. Chantagem e esconder a verdade. Por que o fez? Não era muito mais simples comunicar o que sabia ao FBI? Explique o que sabe sobre Hal.
Loretta olhou para Pete com seus lindos olhos cinza. Estava assustada.
— O que me farão? — perguntou num fio de voz.
— Não sei. Não somos juízes. Fale, Loretta.
— Mas eu... eu só queria um pouco de dinheiro, viver bem por um tempo, o único de minha vida... Depois contaria tudo. Juro. Queria sair daqui — chorava. — Nunca tive sorte, nunca. Minha vida não tem sido...
— Vamos, Loretta, a quem espera enganar com isso? — grunhiu Pete. — Vamos ao que interessa, e deixe de se lastimar. O que houve com Hal?
— Foi morto porque sabia demais — disse Loretta com raiva, vendo que o teatro não dera certo. — Descobriu não sei como. Explicou-me em que consistia a farsa da "Promotora", mas não entendi muito bem. Hal tinha muito medo, porque Pomeroy descobriu que ele sabia a verdade. Pomeroy foi lhe oferecendo dinheiro — os homens do FBI se entreolharam. Já estava explicado o fato de Hal ter muito dinheiro. — Dava-lhe muito dinheiro. E Hal começou a gastá-lo alegremente, sem saber o que poderia lhe acontecer. Depois, começou a receber ameaças de Pomeroy, que começava a cansar-se de Hal, fora o perigo que ele representava. Hal insistia. Viciou-se em cocaína, não sei como. Suponho que tinha uma personalidade fraca. Isso foi mais um motivo para Pomeroy querer matá-lo, já que um viciado poderia ser descoberto a qualquer momento.
— Hal lhe disse alguma vez que tinha medo de ser morto?
— Quando me explicou a verdade, sim. Foi morto dois ou três dias mais tarde. Eu logo soube quem era o culpado, é claro.
— Compreendo. Por que Hal não foi à polícia?
— E eu é que sei? Era um rapaz, estava assustado. Preferiu confiar em mim, pelo visto. Me contou tudo aqui mesmo, chorando. Consegui acalmá-lo e, quando saiu, disse que ia tomar uma decisão. E... não voltei a vê-lo mais. Isso é tudo, Honkala. O que mais posso dizer? Fiquei com pena dele, mas também pensei em mim.
— E correu a chantagear Pomeroy.
— Exatamente.
— Quanto já conseguiu?
Loretta suspirou. Caminhou até a televisão. Colados atrás do aparelho estavam os cinco mil dólares.
— Isso é tudo — disse, entregando-os a Pete.
— Certo, Loretta. Suponho que Pomeroy negou tudo quando foi a chantageá-lo.
— No princípio, sim. Depois, começou a se convencer de que eu poderia metê-lo numa confusão.
— Compreendo — disse Pete.
Virou-se para o inspetor.
— Bem... Hal não soube resistir à tentação. De qualquer maneira, ninguém o ajudou. Suponho que aceitava dinheiro de Pomeroy por medo. E depois foi gostando. Cocaína, Loretta... Ficou cego. Quis lutar, não podia. E... vamos até Pomeroy, senhor. O delito é grave, e suponho que esse negócio sujo deve esconder algo muito sério.
Newell assentiu com a cabeça.
Ele também pensara em Hal e sentira-se deprimido, lembrando-o sem vida, estendido na cama, com o rosto quase imberbe... E dois balaços no peito.
— Vamos, senhor? — perguntou Pete.
O inspetor foi até Hobbs e Parrot, que esperavam ordens.
— Levem os três para a delegacia. Terão que assinar seus depoimentos. E não se preocupem com Lasker e o outro. Confessem ou não, o resultado será o mesmo. Mandem suas pistolas para a Balística, e que venham os informes junto com as balas que encontraram no corpo de Hal. Saberemos quem fez os disparos.
Lasker e Riccoli se olharam.
— Fui eu — disse Lasker.
— Já sabe o que o espera, não?
— Essa estúpida é a culpada.
— Não diga asneiras. A culpa é sua — disse Newell. — Como pôde fazer isso? Como pôde disparar contra aquele rapaz? Ninguém o perdoará, Lasker. Deus o ampare. Estou falando com você! — grilou, furioso, o inspetor, já que Lasker se levantara e lhe dera as costas.
Lasker virou-se. Umedeceu os lábios. Seus olhos doloridos tinham uma estranha expressão.
— Quero saber quantos homens mais participaram disto — disse o inspetor. — Quantos na "Promotora"? Vamos!
— Todos — sorriu cinicamente Lasker. — Cinco empregados, cinco cúmplices. Incluindo a secretária. Mais alguma coisa?
— Mais assassinos de aluguel? — perguntou Newell.
— Não — disse. — Que eu saiba, pelo menos.
— Então, andando.
Hobbs e Parrot puseram-se em movimento. Hobbs empurrou Riccoli. Depois, todos saíam do apartamento. Loretta e Pete caminhavam mais atrás.
A mulher ia olhando para o chão. Seu sonho terminara. Pena. Sem vinte e cinco mil dólares, sem viagem, e a cadeia.
— Vão me meter na cadeia, Honkala? — perguntou. Pete olhou-a com pena.
— Seguramente, Loretta. O que você fez foi crime.
— Sei... Muito tempo?
— Não pense nisso.
— Em que vou pensar, então?
Pete não respondeu. Que diabos ia dizer? Compreendia Loretta. Havia afundado pela ambição. Claro que estava salva, pois um dia iria terminar como Hal Farson. Olhou para a mulher, e esta pareceu-lhe mais velha.
A comitiva estava chegando à rua. O céu estava cinza, e caía uma chuva fina. As pessoas olhavam com curiosidade para o grupo, alguns com machucados bem visíveis no rosto.
Um pouco mais abaixo estava o carro oficial e dois agentes de vigia, Mellon e Younger, que estavam próximos.
— Vamos — grunhiu Newell. — Hobbs e Parrot. Younger e Mellon venham comigo, e Pete vá à "Promotora Artística".
Hobbs e Riccoli caminhavam para o carro. Iam pela calçada, entre as pessoas, que começavam a compreender e se afastavam prudentemente.
Não tanto para que Lasker não tentasse a sorte. Armou-se uma pequena confusão na rua.
E Lasker aproveitou.


CAPÍTULO NONO

Sociedades beneficentes

Lasker havia apertado os dentes. Não se sentia na plenitude de sua forma, mas poderia surpreender aqueles tipos.
A oportunidade consistia, precisamente, nas pessoas que passavam pela rua, perturbando a visibilidade. E, o mais importante, os homens do FBI não poderiam atirar para não ferir inocentes e, portanto, não disparariam contra ele.
Assim, Hobbs e Riccoli já caminhavam à frente. Parrot estava à direita de Lasker, de modo que este, com um empurrão, podia jogá-lo contra a parede. Assim, Parrot, o homem mais perigoso dos que o custodiavam, por ser o que estava mais próximo de Lasker, ficaria inutilizado. Newell não dispararia. E Honkala ainda não estava na rua.
Era só correr. Matemático.
Empurrou Parrot, jogando-o contra a parede, e começou a correr.
— Alto, Lasker! Alto!
Nada. Empurrou as pessoas, saltou alguns obstáculos.
Nem um só disparo, ainda que soubesse que estava sendo seguido. Atravessou a rua, sempre empurrando. Ia dobrar a esquina quando viu aquele tipo, com a pistola na mão, cortando-lhe a passagem. Maldição! Devia prever que o FBI teria mais agentes na rua.
Lasker apertou as mandíbulas e não parou.
Mellon, um pouco surpreso, continuou parado e sentiu que aquele homem queria atropelá-lo. Agüentou firme, e os dois se chocaram. Mellon levou a pior e ficou sentado na calçada, enquanto as pessoas gritavam e se afastavam.
Lasker continuou correndo, mas Mellon esticou a perna, fazendo-o tropeçar. Lasker gritou, furioso, e jogou-se sobre Mellon, tentando pegar a pistola. Era a única coisa que podia fazer. O resto dos agentes estavam chegando, esperando a melhor oportunidade para disparar.
As mãos de Lasker fecharam-se em torno das de Mellon, ao mesmo tempo que seu joelho acertava o rosto do agente.
Mellon, com a visão turva, fez uma dolorosa volta com o braço, notando que uma nova pressão lhe quebraria o cotovelo.
Disparou.
Não podia fazer outra coisa.
Mellon apertou firmemente o gatilho, procurando pontos vitais de Lasker. E foram três tiros muito próximos, na garganta de Lasker, que soltou a presa imediatamente, levando as duas mãos ao ferimento.
Caiu de bruços num charco de sangue.
Parrot, Hobbs e Pete haviam chegado. Ajudaram Mellon a levantar-se, sem se preocuparem com Lasker. A coisa estava clara.
— O maldito... — bufou Mellon. — Talvez não devesse matá-lo, mas...
— Não se preocupe, rapaz — disse Pete. — Está bem morto.
Já soavam as sirenes da polícia. Uma dupla de policiais aproximava-se correndo, enquanto as pessoas se amotinavam em volta. Identificações, perguntas... Ordens do inspetor. Chamou uma ambulância, e minutos mais tarde a ordem já estava estabelecida na rua. Riccoli e Loretta, mudos, foram metidos no carro e partiram.
No carro oficial do FBI entraram Younger, Mellon, Newell e Honkala. Pelo rádio, Mellon pediu reforços à delegacia, já que não sabiam como Pomeroy reagiria.
O carro tomou a Quinta Avenida, rodando por entre um mar de veículos. Pete pegou um maço de cigarros, que foi passando de mão em mão.
Newell disse:
— Terá que ir com cuidado, Pete. Se se pode evitar um escândalo, melhor. Essa promotora deve ter sócios importantes, de nome, e não devemos misturar no assunto quem não participa dele.
Pete tragou e soltou uma imensa baforada.
— Não entendo ainda a história — disse. — Mas estou convencido de que a maior parte desses indivíduos tem algo a ocultar.
Newell sorriu.
— Estamos de acordo, Pete. Mas temos que proteger os outros. Sabe que é muito fácil perder uma reputação. Isso é algo delicado. Subir custa muito, mas a queda... Compreende?
— Sim. O que acontece é que estou dando voltas no assunto e não consigo captar em que consiste essa promotora. O que tem a ver com impostos?
— E fácil, Pete — disse Newell. — Há pouco se descobriu uma organização nos mesmos moldes da "Promotora". A única diferença era o ramo.
— Não recordo — disse Pete.
— O subtítulo dessa empresa mercantil, significa que está enquadrada no tipo de empresas beneficentes, filantrópicas. Sua missão é favorecer os talentos. Tais empresas se nutrem de sócios protetores, que doam grandes quantidades de dinheiro e até obras de arte para fundos de proteção aos estudantes, segundo os estatutos que as regem.
— Até agora, entendi — disse Pete.
— Falando dessa outra empresa descoberta há meses, os sócios-protetores nem destinavam dinheiro para a ajuda a estudantes ou artistas, nem se preocupavam em absoluto com a sociedade.
— Então?
— O truque é muito simples, Pete. Suponha que sou um desses homens, que ganho milhões por ano. Agora quero reduzir meus impostos.
— Certo.
— Que faço? Simplesmente encontro uma dessas falsas promotoras e dou cinco mil dólares em troca de um recibo em que conste eu ter entregue duzentos mil, por exemplo.
Pete olhou o inspetor de boca aberta.
— Diabos...! Mas...
— Mas nada, Pete. Eu tenho um recibo assinado por uma sociedade legalizada. E os fundos que se destinam à beneficência não pagam impostos, já que são uma contribuição em si. Está entendendo?
— Naturalmente! Você entrega cinco mil dólares como donativo e recebe um recibo de duzentos mil. O contribuinte fica com cento e noventa e cinco limpos, e a sociedade embolsa os cinco mil limpos por seus serviços. Ora... Os fundos dessa empresa não são controlados nem pagam contribuição alguma.
— Exato, Pete.
— Deus...
Newell sorria.
— Diga-me, chefe: será que todos os sócios da promotora estão metidos nisso?
— Não creio, Pete. Temos provas de que a promotora concede bolsas suficientes para não despertar suspeitas. Esses fundos procedem, naturalmente, dos sócios de boa-fé, que entregam o dinheiro e recebem o comprovante justificando a quantia. Pomeroy deve ter acordo com a metade dos sócios. Uns lucram às custas dos sócios de boa-fé.
— Compreendo, senhor — disse Pete.
Houve uns instantes de silêncio. Só o motor roncava.
— E me parece engenhoso — disse Pete. — Se não tivesse acontecido a morte de Hal, Pomeroy teria continuado seu negócio por muito tempo.
— Sem dúvida, Pete. Mas sempre acontece alguma coisa. O lamentável é que tenha havido a morte desse rapaz.
Pete estava pensativo. Disse após alguns instantes:
— Acha que será difícil separar os verdadeiros sócios dos que só procuram sonegar impostos?
— Não. Para isto existe Pomeroy.
— Talvez haja surpresas — disse Pete.
— É quase certo. É possível que, por causa disso, caiam em nossas mãos alguns bandidos. Quase me sinto feliz. Nos meus tempos de agente isso também acontecia. Os tempos não mudaram.
— Só me pergunto porque nós sempre triunfamos.
— Vai filosofar agora, Pete — riu Newell.
— Não. Não sou tão velho.
— Bem, creio que existe uma resposta: temos razão.
— Sim...
Pete pensou que Hal teve medo durante todo o tempo, o que não o impediu de tomar gosto pelo dinheiro. Debilidade sobre debilidade.
Claro que aquele não era o caso de Robert Pomeroy. O tipo era inteligente. Mas não ia durar muito. Nisso Loretta tem razão.
— Estamos chegando — disse Younger.
— Pare na esquina. E peça mais gente. Fique aqui. Não parecem gente de ação, mas não podemos nos descuidar. Mellon, Pete e eu subiremos ao escritório. Certo?
— Sim, senhor.
O carro deslizou silenciosamente até a beira da calçada e parou sem chamar a atenção das pessoas. Daquela esquina podia-se ver o cais do East River. Ouviam-se as sirenes dos navios que cruzavam o rio por entre a neblina, como fantasmas.
Três homens desceram. Simultaneamente, Younger comunicava-se com a delegacia do FBI pelo rádio.
O tipo esfregava as mãos.
Seu instinto lhe dizia que algo não ia bem. Fazia quase duas horas que Loretta havia saído dali com o dinheiro, e o lógico era que já tivesse tido notícias. Mas o telefone só tocava para assuntos daquele maldito negócio que começava a incomodar Pomeroy.
Bem, ele teria que ligar. Não podia mais esperar. Além do mais, não iam descobrir nada por uma simples chamada, isso se as coisas fossem dar muito mal mesmo.
Ali estava o telefone. E os olhos de Pomeroy fixos nele. Por fim, estendeu a mão e pegou o aparelho. Discou o número da casa de Loretta. E esperou.
Esperou em vão. Lá não havia ninguém. Por quê? Não estavam esperando? Já teriam levado a mulher?
Acontecesse o que acontecesse, Riccoli e Lasker teriam que ter comunicado a ele. O que teria acontecido? O nervosismo de Pomeroy aumentou, quando pensou que um agente do FBI poderia estar atrás de Loretta. Deveria ter acabado com aquela mulher antes. Maldição!
Discou novamente.
Nada.
Desligou. Tinha que verificar o que ocorrera. Mas isso talvez fosse um erro. Talvez o FBI tivesse interferido. Isso significava a ruína. Subitamente, decidiu as coisas. Pegar o dinheiro que havia no cofre.
Havia mais de cento e cinqüenta mil dólares, e uns trinta sócios a quem o FBI pediria explicações. É claro que procurariam os sócios, porque ele iria embora. Mas antes verificaria o que acontecera na casa de Loretta.
Assim, febrilmente, Pomeroy saltou de sua cadeira e abriu o cofre. Primeiro a sua pele. Com mais de cem mil dólares se vive bem em qualquer lugar do mundo. Demorou cerca de dez minutos para arrumar suas coisas e se recompor, pois sua secretária não deveria suspeitar de nada. Sairia calmamente dizendo que iria resolver um assunto bancário. Os outros que se arrumassem.
E, assim, com o dinheiro debaixo do braço, saiu para a ante-sala, onde Liz trabalhava calmamente.
— Volto logo, Liz — disse.
Nem sequer houve resposta. Era tão estúpido esse Pomeroy...


CAPÍTULO DÉCIMO

O elevador

No corredor do décimo segundo andar do prédio, onde ficavam os escritórios, Pomeroy chamou o elevador. Sem dificuldades. A luz indicando que o elevador subia acendeu-se.
Dois minutos mais tarde, Pomeroy entrava e descia.
Tudo bem. Assim que saísse dali, bastava fazer as coisas serenamente para conseguir o que queria. Na pior das hipóteses, estaria partindo naquela mesma tarde.
Mais um minuto e o elevador abriria as portas. Abriu. Ficou petrificado de medo. Aquelas pessoas que entravam...
Reconheceu Pete imediatamente. Estava acompanhado de dois homens. E iam... Deus! O que fazer?
Se os deixasse aproximarem-se mais o reconheceriam. Não poderia reter o elevador, esperando que os homens do FBI pegassem outro. Tampouco podia arriscar-se a sair, já que seria reconhecido. O que fazer?
Os agentes estavam muito próximos.
Tudo havia dado errado. Claro! Loretta... A maldita! Não pensou mais. Apertou o botão que o levaria ao último andar. Lá veria o que fazer.
O elevador começou a subir, quando os agentes entraram no outro.
Que tolo era! Reprovou a si mesmo pela falta de serenidade. A coisa estava clara. Bastava apertar o botão e subir ou descer.
Voltou a sorrir, nervoso. Enquanto os agentes subiam, ele descia. Já não se importava mais com o que acontecera no apartamento de Loretta. Estava tudo muito claro. Assim que saísse, correria até uma companhia de aviação e partiria.
O elevador parou. Sentiu um calafrio, vontade de gritar. Maldição! Ali estava um dos homens que iam com Honkala...
E, por instantes, pelos vidros, antes que Pomeroy abrisse a porta, seu olhar cruzou com o de Younger, que estava esperando o resto dos agentes chegarem. E Younger achou estranha a aparência daquele homem. Além do mais, o elevador voltou a subir com Pomeroy dentro.
Pomeroy estava mal. Desceria em qualquer andar. O certo era que aquela jaula começava a incomodá-lo. De repente, o elevador parou. Foi chamado de um andar abaixo e começou a descer. Parou novamente. Subiu. Parou.
Pomeroy começou a sentir-se encurralado. A garra do medo alterava sua expressão.
Desceu.
Parou.
Subiu.
Ele tinha a pistola. Ia usá-la, naturalmente. Tudo, menos entregar-se. Tinha mais coragem para morrer do que para entregar-se. Muito bem: desceu, e veria o que iria acontecer.
Não podia saber que quatro homens do FBI entraram no edifício, aproximando-se de Younger, que manipulava o elevador.
— Younger! Mas que diabos!
— O pássaro está na jaula, Corrick. O chefe está subindo com Mellon e Pete. Vou comunicar-me com eles.
— Ok.
Younger entrou no outro elevador.
Corrick continuou a fazer o que Younger fazia com os comandos do elevador, para desespero de Pomeroy, que já perdera o controle de si mesmo. Mas ele ia se vingar.
Younger entrou no escritório da promotora.
Acalmou-se ao ver seus amigos e Liz, a secretária loira. Newell e Mellon estavam examinando papéis, enquanto Pete mantinha o resto do pessoal que trabalhava no escritório contra a parede.
— Pete! — gritou Younger.
Pete olhou-o de soslaio.
— O que há, Younger?
— Já o temos.
— Quem?
— Um tipo que...
— Já disse! — gritou, chorosa, a loira. — O senhor Pomeroy saiu. Nós... nós só obedecíamos ordens...
Pete não ligou.
— Corrick e os outros estão lá embaixo — disse Younger. — Suponho que continuam com o jogo do elevador.
— Muito bem. Desça. Mantenham o elevador neste andar. Eu cuido do resto.
— E eles?
— Vão ficar quietos aqui — sorriu duramente Pete.
Younger saiu, e apareceram o inspetor e Mellon. O inspetor disse:
— Só há um cofre vazio e documentos que não posso avaliar agora. De qualquer modo, suponho que não há mais o que fazer. O jogo terminou.
Liz estava vermelha. Os demais se entreolhavam.
— O cofre vazio? — perguntou a secretária.
— Isso mesmo.
— O maldito! — gritou. — Levou o dinheiro!
— Acalme-se, senhorita — disse Newell. — Suponho que compreenda sua situação e confessem o que sabem. Sabem que enganar o fisco é crime.
— Confessaremos tudo — murmurou Liz. — E espero que peguem Pomeroy.
Newell voltou-se para falar com Pete. Este não estava.

O elevador estava no andar superior. Foi descendo, e Pete se preparou. Quando chegasse a seu andar, abriria a porta, impedindo-o de continuar a descer.
Agora!
Pete abriu a porta, e ele e Pomeroy se olharam. Pete gritou:
— Quieto, Pomeroy! Não complique as coisas!
A resposta foi um disparo que destroçou os vidros e penetrou na parede.
Pete saltou de lado, sem atirar. Era melhor pegar aquele tipo vivo. Mas Pomeroy pensava o contrário, posto que disparou freneticamente, tentando acertar o corpo de Pete.
As detonações retumbaram estrondosamente nas escadas, deixando em pânico os funcionários de outras empresas. E Pete decidiu acabar com aquilo.
Agiu com rapidez e astúcia. Deslizou para um lado e disparou duas vezes, contando que obrigaria Pomeroy a encolher-se.
Acertou.
Pete saltou sobre o homem apavorado. Pomeroy gritou, morto de medo, desesperado, e disparou contra Pete. Errou. O homem do FBI, pelo contrário, acertou seus dois disparos. Viu o sangue fluir imediatamente. Destroçou o rosto daquele tipo. Ninguém saberia que Pete fizera aquilo à sangue-frio.
Pete abriu a porta do elevador. Olhou o morto. Mandou o elevador descer em definitivo.
Quando girou, Newell estava ali. Em silêncio.
Depois apareceu Mellon com os empregados.
— Vamos — disse Newell.
Embaixo, Corrick abriu as portas do elevador, e todos puderam ver o morto.
— Creio que terminamos — murmurou Corrick.
Houve mudos assentimentos.

Naquela tarde fria e cinzenta, Pete Honkala sentia-se satisfeito. Havia tomado uísque e comprara uma caixa de bombons para alguém muito especial.
Entrou numa cabine telefônica e ligou para Newell.
— Sou eu, chefe. Como foi?
— Gente canalha, Pete. Mais de quarenta sócios implicados. Era aquilo que falamos. O fisco burlado vergonhosamente. Gente importante, Pete. Faremos uma grande limpeza.
— Perfeito. Por quem começamos?
— Nós nos veremos amanhã.
— Ok.
Desligou e saiu. Lembrou que Loretta só pegara dois anos de prisão, e os demais ficariam um bom tempo na penitenciária, sendo que Riccoli pegara prisão perpétua.
Caminhava alegre com os bombons debaixo do braço. Tinha certeza de que Janet gostaria dos bombons. Só não sabia se gostaria dele. Chegou em seu apartamento. Bateu, e Janet abriu a porta.
— Pete...
— Olá. Eu... — coçou a nuca. — Gosta de bombons?
— Muito. Não quer entrar?
— Se não incomodar...
— Claro que não.
Pete entrou. Sentia-se inibido. Virou-se para Janet, que tinha o rosto vermelho.
— Faz três dias que não o via — murmurou ela.
— É mesmo?
— Claro. Eu... até conto os minutos.
— Como eu.
— Oh... Então, me ama?
— Eu... Não lhe pareço velho, Janet?
— Bobo.
Pete piscou. Depois fechou os olhos. Talvez ele não merecesse Janet. Mas sabia que era impossível viver sem aquela mulher. Olhou-a e beijou-a.
Janet era tão jovem... tinha lábios tão sedosos...
Beijou-a com suavidade.
Já nem lembrava dos bombons.
Nem de mais nada.

FIM

ALÉM DA MORTE
Samael Aun Weor

O Venerável Mestre Samael Aun Weor escreveu uma inumerável variedade de livros,
desde os de grande porte aos pequenos, mas em todos eles revelando conhecimentos
preciosos a humanidade. Este pequeno livro, Além da Morte, trata de temas importantes
para ir além da morte física, sobre o retorno, a reencarnação, como recordar as existências
passadas, o desdobramento astral, como negociar o Karma , sobre medicina oculta e outros
assuntos que devemos ter como comuns em nossa vida diária, trabalhando intensamente
com o DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA.

Primeiramente, este pequeno livro foi reunido em 1978 num livro maior denominado
Teurgia e Magia Prática, sendo um livro que se aprofunda, em suas duas partes
subsequentes, a temas que somente usaremos quando tivermos despertados uma boa
porcentagem de Consciência: a conversa com os anjos, a invocação de elementais e dos
gênios planetários, o Manual de Magia Prática e o Tratado Esotérico de Teurgia.

Esperamos que se iluminem as dúvidas quanto a estes temas, e se veja a urgência de
vivenciar, hoje, em 2000, as portas do terceiro milênio, de forma direta este ensinamento
entregado neste pequeno mais grandioso livro do Venerável Mestre Samael Aun Weor



Capítulo 1 ­ A morte..........................................................................................................2

Capítulo 2 ­ Além da Sepultura........................................................................................4

Capítulo 3 ­ A Reencarnação............................................................................................7

Capítulo 4 ­ A Lei do Karma...........................................................................................12

Capítulo 5 ­ Fantasmas....................................................................................................15

Capítulo 6 ­ Acontecimentos Humanos..........................................................................18

Capítulo 7 ­ Interessantes Relatos..................................................................................21

Capítulo 8 ­ O Desdobramento........................................................................................24

Capítulo 9 ­ Fenômenos Místicos....................................................................................27

Capítulo 10 ­ Experiências Místicas de um Neófito.......................................................30

Capítulo 11 ­ Negócios......................................................................................................33

Capítulo 12 ­ Assuntos de Amores..................................................................................35

Capítulo 13 ­ Feitiçarias...................................................................................................37

Capítulo 14 ­ Medicina Oculta.........................................................................................39
CAPÍTULO 1 ­ A MORTE

O que é a morte física?

A cessação de todas as funções orgânicas. A defunção.

O que há depois da morte?

A morte é profundamente significativa. Descobrindo o que ela é em si mesma,
conheceremos o segredo da vida. Aquilo que continua além da sepultura somente pode ser
conhecido por pessoas de consciência desperta. Você está adormecido, por isso desconhece
aquilo que está além da morte. Teorias há muitas, cada um pode formular a sua opinião,
porém o importante é experimentar diretamente tudo isso que pertence aos mistérios da
morte. Posso assegurar-lhe que dentro da ultra desta grande natureza vivem as almas dos
defuntos.

Por que existe o temos à morte?

O temor à morte se deve à ignorância. Sempre se teme o que se desconhece. Quando a
consciência desperta, a ignorância desaparece e o temor ao desconhecido deixa de existir.

Sabemos que o corpo físico se desintegra na sepultura depois da morte, porém o que se
passa com a alma? Para onde ela vai?

A alma dos defuntos continua nas dimensões superiores da natureza. Isso significa que os
desencarnados podem ver o sol, a lua, as estrelas, os rios, os vales, as montanhas, da mesma
forma que nós, porém de uma maneira mais esplêndida.

É verdade que depois de se levar uma vida de maldades e de libertinagem, se nos
arrependemos na hora da morte, a alma pode se salvar?

Para o indigno todas as portas estão fechadas, menos uma, a do arrependimento.
Naturalmente, se nos arrependemos, ainda que seja no último instante, podemos ser
ajudados a corrigir nossos erros.

Por que voltamos como fantasmas a este mundo depois que morremos?

Saiba que neste planeta existe um universo paralelo, regiões da quinta dimensão vivem os
defuntos. Esse mundo aparentemente invisível interfere como nosso sem com ele se
confundir.

Para onde vai a alma de um ser humano que tira a vida de si mesmo?

Os suicidas sofrem muito depois de desencarnarem. Eles vivem aqui e agora na região dos
mortos e um dia terão de voltar a outra matriz para renascerem neste Vale de Lágrimas,
quanto então morrerão contra sua vontade ao chegarem novamente àquela idade em que se
suicidaram; quem sabe naqueles instantes em que estejam mais iludidos pela vida.

Espírito e alma são a mesma coisa?
Espírito se é, alma se tem. São pois diferentes.

Os animais e as plantas têm alma?

Sim ... tem. As almas vegetais são conhecidas em todas as lendas universais com o nome de
Fadas. As almas animais são criaturas inocentes. Recordemos a palavra animal, se lhe
tiramos o L ficará escrita assim: ANIMA.

Existe um julgamento superior depois da morte? Quem o faz?

Depois da morte, temos de revisar a vida que acaba de passar. Revivemo-la de maneira
retrospectiva com a inteligência e com o coração. Concluído o retrospecto, temos de nos
apresentar diante dos tribunais de Deus. Os Anjos da Lei, chamados de Senhores do Karma
pelos orientais, nos julgarão de acordo com nossas ações. Desse julgamento pode resultar
que passemos um período de férias nos mundos de luz e da felicidade, que regressemos a
uma nova matriz para renascermos neste mundo imediatamente ou que sejamos obrigados a
entrar no interior da terra onde estão os mundos infernais com todas suas penas e
dissabores.

Quando um menino morre ao nascer, para onde vai a sua alma?

Está escrito que as almas dos meninos vão para o limbo, a região dos mortos, porém logo
voltarão a entrar em uma matriz para renascerem neste mundo.

A que se deve sua morte ao nascer?

Deve-se à lei do destino; pais que precisam passar por essa dura lição, os quais em vidas
anteriores foram cruéis para com seus filhos. Com esse sofrimento melhoram, aprendem a
amar.

As missas rezadas em memória do morto servem de ajuda para a alma?

Qualquer ritual ajuda as almas dos defuntos. É claro que as orações dos parentes e amigos
levam consolo às almas dos falecidos.
CAPÍTULO 2 - ALÉM DA SEPULTURA

Por que na hora de morrer uns choram , uns cantam e outros sorriem?

Sua pergunta se divide em três partes. Primeira: Esta escrito que se nasce chorando e se
morre chorando. Segunda: há casos em que o moribundo canta por recordar momentos
felizes do passado. Terceira: sabem sorrir, ainda que não seja comum, aqueles que
possivelmente recordem cenas agradáveis de sua vida.

Quem manda a alma sair do corpo para que ele possa ser sepultado?

No momento em que o moribundo exala seu último suspiro, concorre ao leito mortuário um
Anjo da Morte; deles há legiões. O anjo funerário corta o cordão de prata ou fio da vida que
liga a alma com o corpo físico. O moribundo vê esse anjo na sua aparência espectral e a
gadanha com que se apresenta é real. Esse instrumento de trabalho serve exatamente para
que a deidade possa cortar o fio da existência.

O que comem os defuntos e com o que pagam?

Aqui no México comemoramos o dia de finados no dia 2 de novembro de cada ano. Nesse
dia, as pessoas visitam o cemitério, põem velas acesas nos sepulcros e em pratos, vasilhas e
copos aqueles alimentos e bebidas que o defunto mais gostava quanto vivo. É costume de
alguns comer depois essas sobras. Qualquer um dotado de um pouco de sensibilidade
psíquica poderá notar que falta a estes manjares o princípio vital. As gentes simples pensam
e acertadamente que o ser desencarnado se alimenta com essas iguarias. Não há dúvidas, os
falecidos realmente comem, não há parte física dos alimentos e sim a parte etérica, sutil,
desconhecida para a visão física, contudo perceptível para a clarividência. Não esqueçamos
que em todo alimento físico há a contraparte etérica, facilmente assimilável pelos defuntos.

Os desencarnados podem visitar um restaurante do mundo físico. Eles saudarão e o
subconsciente dos vivos lhes responderá. Eles pedirão comida e o Ego interno dos donos de
restaurante trará à mesa deles formas mentais semelhantes aos pratos que são consumidos
no estabelecimento. O falecido sentado à mesa comerá desses pratos sutis, feitos com
essência do mundo mental e pagará com moeda mental, sairá a seguir do restaurante. Em
tais condições, é óbvio que os mortos seguem crendo que estão vivos e isso pode evidenciar
qualquer pessoa que haja desenvolvido a clarividência e as outras faculdades da alma.

Onde moram os defuntos?

Eles vivem os primeiros dias na casa, na clínica ou no hospital onde faleceram. Depois,
com tem de reviver a vida que acabou de passar, viverão naqueles lugares onde antes
moravam.

Como se vestem os defuntos?

Como costumavam se vestir quando vivos. Comumente vestem-se com aquela roupa com
que foram enterrados.

Quais são as suas diversões?
O bêbado continuará frequentando os bares, os espectadores os cinemas, o jogador os locais
de apostas, a rameira os bordéis onde vivia, o libertino estará onde elas estejam, etc.

Que sol ilumina os defuntos?

O sol que ilumina os mortos é o mesmo que ilumina os vivos, apenas que aqueles o vêem
em cores além do espectro solar. Eles vêem cores que a retina física dos mortais não
percebe.

Os mortos tomas banho e com que água o fazem?

Eles banham-se com as mesmas águas com que os vivos tomam banho, somente que eles
usam água da quinta dimensão.

Por que algumas pessoas morrem mais depressa que outras?

Há pessoas que se apegam demasiado ao mundo e dele não querem partir, por isso
demoram agonizando por horas a fio.

Que esperança tem os defuntos?

Os mortos prosseguem com as mesmas tarefas que tinham quando viviam, já que não
suspeitam haverem morrido.

Um defunto pode se transladar para onde ele quiser, tal como fazia na vida?

Os defuntos tem plena liberdade para se moverem em todos os lugares do espaço e para
visitar todos os locais.

Com que luz se iluminam os mortos?

Eles se iluminam com a luz astral. Essa luz é um fogo desprendido do nimbo do sol e
fixado na terra pela força da gravidade e pelo peso da atmosfera.

Sente-se alguma dor ao morrer?

A morte é dolorosa para os jovens e deliciosa para os velhos. Isto é semelhante a um fruto.
Quando já está maduro, cai por seu próprio peso, porém quando está verde não cai. Poderia
se dizer que sofre com o desprendimento.

Poderá alguém reconhecer seu corpo no ataúde depois de haver morrido?

Podem vê-lo, mas não o reconhecem.Como possuem a consciência adormecida jamais
acreditam que aquele seja seu próprio corpo. Pensam que se trata do corpo de outra pessoa.

Se uma pessoa se der conta que morreu, pode voltar ao corpo físico antes de que o
sepultem?
Depois de cortado o fio da vida, ninguém poderá se meter em seu corpo. Neste caso,
quando a pessoa se tornasse consciente de que realmente morreu, ou se assustaria
terrivelmente ou muito se alegraria. Tudo depende das condições morais do defunto.

Que consolo recebe a alma quando seu corpo morre?

O consolo dos desencarnados é a oração dos parentes e amigos. Há que se orar pelos
mortos.

Cada um tem seu dia, hora e minuto fixado para morrer?

Toda a pessoa que vem a este mundo recebe um capital de valores vitais. Quando esse
capital se acaba, sobrevem a morte. Esclarecemos que se pode poupar tais valores e com
isso se alongar a vida. Aqueles que não sabem economizar os valores vitais morrem mais
ligeiro.

Um defunto pode levar um vivo ao mundo dos mortos?

Nós gnósticos aprendemos a sair do corpo físico à vontade; podemos visitar o mundo dos
mortos. Em algumas ocasiões, os defuntos também podem levar as almas de seus amigos.
Isto acontece geralmente durante o sono, porém terão de regressar ao mundo físico para
despertarem. Isto significa que as visitas ao mundo dos mortos se faz durante o sono do
corpo físico.

No mundo dos defuntos há aviões, carros e trens como no mundo físico?

Todos os inventos que existem no mundo físico vem precisamente da região dos mortos.
Esses artefatos no fundo são formas mentais que os desencarnados podem ver, ouvir, tocar
e apalpar.
CAPÍTULO 3 A REENCARNAÇÃO

Que se entende por reencarnação?

As pessoas comuns e correntes entendem por reencarnação o regresso a uma nova matriz.
Isso significa que nós podemos reincorporar em um novo organismo humano. Não será
demais acrescentar que ao regressar voltamos a nascer e a viver na mesma forma e do
mesmo modo vivido na existência precedente.

Por que não recordamos nada de nossa vidas passadas?

As pessoas não recordam suas vidas anteriores porque têm a consciência adormecida. Se a
tivessem desperta, logicamente se lembrariam de sua vidas anteriores.

Quem se reencarna?

Enquanto alguém tenha possibilidade de salvação, poderá regressar a uma nova matriz para
se revestir com um outro corpo físico. Porém, quando o caso já for perdido, quando o
sujeito se tornou um malvado definitivamente, quando nenhum castigo produz mais
resultados úteis, então não volta mais, não lhe é dado mais outro corpo e assim ele entra nos
mundos infernais onde somente se ouve o pranto e o ranger dos dentes.

Como podemos comprovar que regressamos a este mundo outra vez?

O retorno a este mundo depois da morte para uns é uma teoria, para outros um dogma, uma
anedota, uma superstição ou uma crença. No entanto, para aqueles que recordam suas vidas
passadas, o retorno é um fato. Isto significa que somente se lembrando de suas vidas
anteriores, poderá alguém evidenciar a crua realidade da reincorporação ou regresso a este
Vale de Lágrimas. Porém repetimos: só é possível se recordar as existências anteriores
quando se desperta a consciência.

Para que voltamos a este mundo?

Voltamos a este mundo com o propósito de nos aperfeiçoar, pois infelizmente somos
pecadores e precisamos terminar com nossos erros.

O que é que regressa a este mundo dos seres humanos?

O que retorna a este mundo é a alma do falecido.

Os animais e as plantas também regressam a este mundo?

As almas das plantas, dos animais e das pedras são os elementais da natureza. Eles
retornam a este mundo de maneira contínua. Por exemplo, se uma planta seca e morre, o
elemental desse vegetal renasce em outra planta. Se um animal morre, o elemental dessa
criatura regressa a um novo organismo animal, etc.

Existe a predestinação?
Cada alma é o artífice de seu próprio destino. Se alguém pratica o bem, ganha uma boa
sorte. Se faz o mal, renasce neste mundo para sofrer e para pagar tudo o que deve. Assim se
explica porque uns nascem em um leito de plumas e outros na desgraça.

Gostaria de recordar as minhas vidas passadas, mas como tenho a consciência adormecida,
que devo fazer para despertá-la?

Seguindo a senda da santidade. Eis o caminho para se despertar a consciência. Termina
com teus erros, arrepende-te de tuas más ações, torna-te puro em pensamento, palavra e
obra e eu te garanto que quando hajas alcançado a verdadeira santidade, terás despertado a
consciência.

Por que muitos não crem que tiveram vidas anteriores?

Alguns não crêem simplesmente porque não recordam suas vidas passadas e de fato não se
lembram porque tem a consciência adormecida.

Senhor, você se lembra de suas vidas passadas? Você constatou de fato que existe a
reencarnação?

É claro que se não recordasse minhas vidas passadas não me atreveria a defender com tanta
ênfase a doutrina da reencarnação. Felizmente, lembro-me com bastante clareza todas as
vidas que tive no planeta Terra.

Quantas vezes pode alguém reencarnar nesta vida?

Está escrito com letras de ouro no livro da vida que se regressa 108 vezes a este mundo.

Por que uns reencarnam como homens e outros como mulheres?

Tudo depende dos acontecimentos da vida. Às vezes, temos que voltar em corpo feminino e
outras vezes em corpo masculino. Sempre de acordo com as ações de nossas experiências
anteriores.

Por que se diz que por tratar mal os animais pode alguém reencarnar como cavalo, cachorro
ou gato?

As almas perdidas ingressam nos mundos infernais. Ali, como dizem as sagradas escrituras,
passam pela Segunda Morte. Somente depois de tal morte é que as almas condenadas ficam
limpas de toda mancha. Então podem voltar a este mundo. Evoluem como elementais
minerais, ascendendo depois ao estado vegetal, a seguir reincorporam em organismos
animais para finalmente reconquistar o estado humano que outrora perderam. Ao chegarem
a estas alturas, se lhes concede 108 vidas a fim de que se façam perfeitas. Porém, se
fracassam, voltam a repetir todo o processo de novo.

A que se deve o fato de alguém estar em certos lugares e ter a sensação de que já os
conhece tão bem a ponto de poder descrevê-los com detalhes?

Esse fenômeno se deve ao fato de que em vidas anteriores já esteve nesses lugares.
Quantas vezes se pode reencarnar em corpo humano, quantas vezes em corpo animal,
quantas em vegetal e quantas em mineral?

O retorno dos seres humanos já está devidamente calculado em 108 vezes, porém o retorno
em organismos animais, vegetais ou simplesmente minerais não tem um número exato.

Será possível se passar do reino vegetal ao humano ou do animal para o mineral?

Do reino vegetal se passa para o humano, mas através do reino animal. Isto significa que
não podemos saltar porque a natureza não dá saltos. Se o elemental animal degenera,
involui, retrocede para o estado mineral, passando antes, naturalmente, pelo estado vegetal.

Em que dimensão se encontram os elementais do reino vegetal e mineral?

As criaturas elementais vivem na quarta dimensão da natureza.

Somos nós os mesmos seres humanos dos tempos antigos que estamos a nos reencarnar ou
alguns tem desaparecido definitivamente?

A humanidade atual é muito velha. Está retornando a este mundo há muitos milhares de
anos.

Quanto tempo um ser humano espera depois de morto para receber um novo corpo?

Isso depende do destino de cada um. Uns renascem imediatamente e outros levam muito
tempo para voltar.

Um estudante que haja começado a despertar sua consciência, ao morrer, pode dar-se conta
do processo de reencarnação?

Quem desperta a consciência não precisa aguardar o momento da morte para recordar as
vidas passadas. Ele pode recordá-las em vida, aqui e agora.

A Gnose considera justo o fato de que milhões de seres humanos vivam na mais completa
ignorância sobre a evolução, a reencarnação, a realização e o despertar da consciência?

Nós gnósticos consideramos injusto que não haja pregadores suficientes, melhor diríamos
missionários em quantidade para levar estes ensinamentos a todas as parte, mas não temos
culpa disso. Acontece que à humanidade só lhe interessa se divertir, ganhar dinheiro e
entregar-se aos prazeres. Se as pessoas fossem mais compreensivas, se preocupariam por
estes ensinamentos e os divulgariam.

O que é a Segunda Morte e o que tem a ver com a reencarnação?

A Segunda Morte marca o fim de nossas paixões animais nos mundos infernais. Isto
significa que no fim, os condenados, os perdidos, chegam à pureza original. Quando isso
acontece, saem dos abismos infernais que existem no interior da terra. Então, como já
dissemos, tais almas tornam a evoluir da pedra até o homem.

Quando a humanidade irá entender o porquê das reencarnações?
A Humanidade somente poderá entender o porquê das reencarnações no dia em que
conseguir despertar a consciência.

Por que as pessoas nascem, morrem e voltam sempre a repetir o mesmo disco?

De fato, as pessoas repetem, como você disse, sempre o mesmo disco. Refiro-me à Lei de
Recorrência. Em cada vida, tornamos a repetir tudo o que fizemos na anterior, sofrendo as
conseqüências do bom e do mau praticados na vida passada. Isto é um círculo vicioso:
repetição de dramas, de cenas, de amores, reencontro com as mesmas pessoas, etc.

Como faremos para sair de tanta repetição?

Conseguimos nos livrar da lei da Recorrência somente através da santificação.

Quem nos obriga a tomar um novo corpo físico?

A este mundo nos mandam os Anjos do Destino. Eles tem anotado em seus livros as nossas
boas e más ações.

Se depois de morto o corpo, a alma vai para o céu, como afirmam muitas religiões, por que
não ficam lá então?

O céu é um prêmio, uma recompensa pelas nossas boas ações, mas quando a recompensa se
esgota, temos de voltar para este mundo.

Será certo que existe inferno?

O inferno com chamas, aquele fosso com carvões em brasa viva e diabos com garfos, é um
símbolo que corresponde a uma tremenda realidade. Existe mundos infernais, mundos
inferiores, regiões de amargura no interior do planeta Terra. Nesses abismos vivem as
almas perdidas.

Se algumas almas vão para o inferno, que poderão fazer para se livrar dessas chamas?

Ensinar a doutrina para tais almas é nosso dever e seria injusto, como já disse em uma
pergunta anterior, não levar o ensinamento gnóstico a todas as regiões do mundo.

É verdade que as almas caem em um poço cheio de chamas e não se queimam?

No interior da terra existe fogo e água. As almas fracassadas se identificam com esses
elementos da natureza e sofrem, mas o fogo não pode queimá-las, nem a água afogá-las,
porque as almas são incorpóreas, sutis. Olhando de outro ângulo este assunto de chamas,
quero lhe dizer que tais flamas simbolizam nossas paixões animais.

Quem viu essas almas e se deu conta que ali estavam as almas?

Qualquer pessoa inteligente sabe que no interior da terra existe fogo líquido. Os vulcões
assim o indicam. Não se necessita ser sábio para ver as chamas. Qualquer um pode vê-las
nas crateras misturadas com lavas e gases inflamáveis.
O que é a região purgatorial?

As religiões falam do purgatório e da região purgatorial. Na realidade, existe zonas
moleculares inferiores, submersas, situadas além da quarta dimensão. Em tais zonas, muitas
almas que aspiram a luz se purificam eliminando seus pecados.

Será verdade que acreditando em Deus, se pode escapar do inferno?

Muitas pessoas acreditam em Deus e não escapam do inferno. Se alguém quiser escapar da
região das trevas, terá de tornar-se santo.

Será verdade que alguém aprendendo de memória os capítulos da Bíblia consegue se livrar
do inferno?

No inferno há muita gente que conhece a Bíblia de cor com pontos e vírgulas.

Poderia alguém se salvar apenas acreditando no que está escrito na Bíblia?

A fé sem obras é fé morta. Precisamos de uma fé viva e esta deve se fundamentar nas boas
obras. Urge que vivamos de acordo com os ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo.

É obrigatória a reencarnação?

Enquanto não atingirmos a perfeição, os Anjos do Destino nos mandarão para este mundo.

A reencarnação favorece a que paguemos por nossas más ações?

Todos os sofrimentos que temos neste mundo são devidos às más ações de nossas vidas
passadas.

Sempre regressamos na mesma família?

O Eu continua em sua própria semente. Isso significa que continuamos em nossos
descendentes, isto é, regressamos à mesma família.
CAPÍTULO 4 A LEI DO KARMA

Que se pode responder ao profano quando, ao se lhe falar do retorno, ele declara não poder
acreditar nele, já que ninguém foi e voltou para contar o que viu?

Os dias vão e vem. Os sóis regressam ao seu ponto de partida depois de milhares de anos.
Os anos se repetem e as quatro estações (primavera, verão, outono e inverno) sempre
voltam. Portanto, não há necessidade de se acreditar no retorno já que é tão evidente que
todos o estão vendo diariamente. Assim também as almas retornam, regressam, a este
mundo. Esta lei existe para toda a criatura.

Como podemos demonstrar a existência do retorno?

Podemos evidenciar todos a lei do eterno retorno despertando a consciência. Nós temos
sistemas e métodos para o despertar da consciência. A pessoa desperta pode recordar todas
suas vidas passadas. Para quem se lembra das vidas anteriores, a lei do retorno é um falso.

Por que há pessoa com preparo que mesmo trabalhando e lutando muito por uma posição
não o conseguem, em troca, outras, com menos preparo e esforço, conseguem o êxito
desejado?

Tudo depende da lei do Karma. Esta palavra Karma quer dizer ação e conseqüência. Se em
vidas passadas agimos bem, triunfamos e somos felizes na presente vida. Porém, se em
vidas anteriores praticamos o mal, na atual fracassamos.

Por que há famílias que por mais que se esforcem não conseguem ter amigos de modo
algum, enquanto que para outros é tão fácil conquistá-los aonde quer que vão?

Em vidas anteriores tivemos muitos amigos e inimigos e ao voltarmos ou regressarmos a
este mundo, tornamos a reencontrar essas amizades ou esses adversários, então tudo se
repete como já ocorreu. Mas, também, há gente difícil que não gosta de ter amigos, são os
misantropos, gente que se oculta, que se afasta, que se distancia da sociedade, são solitários
por natureza e por instinto. Quando tais pessoas voltam a este mundo, costuma ver-se sós,
ninguém simpatiza com elas. Em troca, há outras pessoas que souberam cumprir com seus
deveres para com a sociedade, para com o mudo e até trabalharam por seus semelhantes,
em vidas passadas. Logicamente, ao retornarem a este mundo vêem-se rodeadas por
aquelas almas que formaram seu ambiente e agora gozam naturalmente de muita simpatia.

A que se deve que algumas donas de casa não encontrem quem lhes ajude fielmente, ainda
que tratem bem suas empregadas, enquanto que outras, em troca, não encontram
dificuldade alguma neste sentido?

Aquelas donas de casa que não contam com criadagem fiel e sincera foram, em vidas
anteriores, déspotas e cruéis com seus criados e agora não encontram quem lhes sirva, pois
que não souberam servir no passado. Eis a conseqüência.

Por que há pessoas que desde o nascimento estão a trabalhar sem descanso, como se
estivessem a sofrer uma condenação e só param ao morrer; em troca, outras vivem bem e
sem tanto trabalho?
Isso se deve à Lei do Karma. As pessoas que trabalham muito e não progridem, em vidas
passadas fizeram seus semelhantes trabalharem demais. Exploraram seus súditos
impiedosamente e agora sofrem a conseqüência, trabalhando inutilmente pois não
progridem.

Meu filho contraiu um matrimônio que lhe foi sumamente mal. As empresas onde
trabalhava faliam. Uma vez pediu um empréstimo bancário para por um negócio e
fracassou rotundamente. Tudo o que empreendia fracassava. Teve de divorciar-se da esposa
devido aos tantos desgostos que tinham. Depois de algum tempo contraiu novas núpcias e
aquele homem a quem só faltou pedir esmola, agora se acha muito bem e seu sucesso
aumenta a cada dia. A que se deve isto?

Existe três vínculos matrimoniais:
CÁRMICO
DÁRMICO
CÓSMICO

Os primeiros são de dor, miséria, fome, desgraça, nudez... Os segundos são de êxito,
felicidade, amor, progresso econômico ... Os terceiros são para as almas selecionadas, puras
e santas. Trazem naturalmente felicidade inesgotável.

Sobre o caso que você me relata devo dizer que ele pertence à primeira ordem de vínculos
matrimoniais. Não há dúvidas que seu filho e a esposa dele sofreram bastante pagando as
más ações de suas vidas passadas. Naturalmente, já haviam sido marido e mulher antes e
agiram mal, não souberam viver juntos e o resultado foi a dor. O segundo matrimônio de
seu filho lhe foi benigno do ponto de vista econômico. Podemos catalogá-lo como de boa
sorte, dármico. Diríamos que resultou das boas obras de vidas anteriores. Sua segunda
esposa também conviveu com ele ates e com ela se comportou melhor, o resultado foi que
agora o favoreceu melhorando sua sorte. Isso é tudo.

Meu filho está doente há cinco anos. Gastamos já muito com médicos que não encontram a
causa exata de sua enfermidade. Uns dizem que talvez seja um choque nervoso, outros
supõem que foi vítima de trabalhos de bruxaria, já que era um rapaz bastante inteligente nos
estudos. Qual é a sua opinião?

Ressalta a todas as luzes com inteira claridade meridiana um castigo, um carma mental pelo
mau uso de sua mente em vidas anteriores. Se você quer que seu filho cure, lute por curar
outros enfermos mentais a fim de modificar a causa que produziu a doença. Lembre-se que
somente se mudando a causa se altera o efeito. Infelizmente, os enfermos tem uma
acentuada tendência a se encerrar em seu próprio círculo, rara vez na vida se vê o caso de
um doente preocupado em curar a outros doentes. Se alguém o fizer, com isso aliviará suas
próprias dores. Eu a aconselho, já que neste caso preciso, seu filho não poderia se dedicar a
cuidar de ninguém, faze-lo você mesma em nome dele. Não se esqueça das obras de
caridade. Preocupe-se com a saúde de todos os doentes mentais que encontre no caminho.
Faça o bem às toneladas. Tampouco esqueça que no mundo invisível há muitos Mestres
que podem ajudá-lo nesse caso específico. Gostaria de me referir especialmente ao glorioso
anjo Adonai, o anjo da luz e da alegria. Esse Mestre é muito sábio. Se você se concentrar
intensamente, rogando a ele em nome de Cristo para que cure seu filho, estou seguro que de
forma alguma se negará a fazer esta obra de caridade, porém não se esqueça a Deus
rogando e com o malho dando. Faça o bem às toneladas e suplique; este é o caminho .
Tive a oportunidade de presenciar o caso de um matrimônio em Santa Marta, Colômbia.
Tinham um grande negócio que de um momento para outro pegou fogo. Depois o marido
adoeceu e morreu tuberculoso. Vinte anos mais tarde, encontrei sua esposa que também
estava a ponto de morrer tuberculosa. A que se deveria isso?

É bom que você saiba que a tuberculose se deve à falta de religião em vidas anteriores, ao
materialismo e a uma vida sem devoção e sem amor a Deus. Se o marido morreu
tuberculoso, esta foi a causa. Se perdeu seus bens, foi porque terminou com as propriedades
de outras pessoas em sua vida passada. Queimou e lhe queimaram! Danou e lhe danaram!
Isso se chama Karma, castigo. A tuberculose não afetou tanto a esposa porque sua falta de
religiosidade em vidas anteriores não foi tão extremada. Houve ainda um pouco de
espiritualidade.

Tenho um filho muito bom que me entregava tudo o que lhe rendia seu trabalho. Um dia
enamorou-se de uma mulher mais velha que ele, amiga minha, e que tivera três filhos com
um senhor casado. Não se casaram, mas passaram a viver juntos. Apesar de continuar
trabalhando, o dinheiro não lhe rendia de maneira suficiente a ponto de recorrer a mim
exigindo uma certa quantidade de dinheiro. Disse que ia empreender um negócio, coisa que
nunca o fez e quando terminou a quantia que lhe dei, a mulher o abandonou. Agora vive
sozinho, trabalha, mas está completamente arruinado. A que se deve isso?

A uma simples análise ressalta o adultério com todas as suas dolorosas conseqüências:
perda de dinheiro, má situação, sofrimentos morais intensos, etc. Eis o resultado do erro.

Gostaria que me informasse se poderia melhorar a sua situação?

Se em um prato da balança cósmica pomos boas ações, no outro as más e este último pesa
mais, é claro que a balança se inclinará contra nós e o resultado serão as amarguras. Porém,
se pomos boas obras no pratinho do bem, podemos inclinar a balança em nosso favor e
assim melhorarmos nossa sorte notavelmente. Se esse seu filho se dedicar a fazer o bem, a
sua sorte melhorará.

Tenho um filho de vinte anos que desde os dezoito não quis mais viver no seu lar, passando
a morar na casa de amigas minhas. Não quer estudar nem trabalhar. Vem nos visitar por um
mês, sente-se feliz por uns dias e depois começa a se aborrecer com todos, terminado por ir-
se embora sempre. Gostaria que me dissesse o porquê de tudo isso?

Esse filho só lhe criou problemas. É claro que o resultado da desordem será a dor. Não há
dúvida que ele não sabe nem quer aprender a viver, porém tem de ser tratado da melhor
maneira possível com amor e paciência. Não há dúvida que no futuro dará fortes tropeções,
cujas conseqüências lhe serão amargas. Só então começará a compreender a necessidade de
por ordem em sua vida.
CAPÍTULO 5 FANTASMAS

Você já viu alguma vez um fantasma?

Alguns crêem em fantasmas, outros duvidam e também há aqueles que zombam. Eu não
preciso acreditar, duvidar nem rir, para mim os fantasmas são um fato.

Você confirma que os viu?

Meu amigo, não será demais relatar um caso deveras interessante. Eu era ainda muito
jovem e ela se chamava Ângela. Era uma noiva um tanto singular; hoje já é morta. Certo
dia, quando ela ainda estava viva, resolvi me afastar sem me despedir. Dirigi-me às praias
do Atlântico e pedi hospedagem na casa de uma senhora idosa; nobre mulher que não me
negou sua hospitalidade. Passei a morar em uma sala cuja porta dava diretamente para a
rua. Minha cama era um catre de lona estilo tropical e como quer que havia muito
mosquito, pernilongo, etc., me protegi com um cortinado fino e transparente.

Uma noite jazia em meu leito dormitando quando de repente alguém bateu três vezes
compassadamente na porta. No instante em que me sentei para levantar e sair para abrir a
porta, percebi um par de mãos penetrar através do mosquiteiro. As mãos se aproximaram
perigosamente e me acariciaram o rosto. Mas a coisa não ficou nisso. Após aquelas mãos
apareceu todo um fantasma humano que se assemelhava àquela noiva que francamente não
me interessava. Chorava o angustiado fantasma dizendo-me frases como estas: Ingrato, te
afastaste sem te despedir de mim e eu que tanto te queria, que te adorava com todo o
meu coração! etc., etc., etc.

Quis falar, mas foi inútil porque minha língua ficou presa; então mentalmente ordenei ao
fantasma para que se retirasse imediatamente. Novos lamentos e novas recriminações.
Depois disse: Me vou. Se afastou devagarzinho, devagarzinho ... e quando vi que a
aparição ia embora, um pensamento novo, uma idéia especial surgiu no meu entendimento.
Disse para mim mesmo: este é o momento de saber que coisa é um fantasma, de que está
feito e o que tem de real. Obviamente, ao pensar deste jeito, desapareceu de mim todo o
temor, a língua se destravou e pude falar. Então ordenei ao fantasma: Não, não se vá,
volta, preciso conversar contigo. O fantasma respondeu: Bom, volto, está bem. Não será
demais dizer que a palavra foi acompanhada de ação e voltou o fantasma para mim.

A primeira coisa que fiz foi examinar minhas próprias faculdades para ver se estavam
funcionando certo. Não estou bêbado, pensei, não estou hipnotizado nem sou vítima de
alguma alucinação. Meus cinco sentidos estão bem, não tenho porque duvidar. Um vez que
já verificara o bom funcionamento de meus cinco sentidos, passei a examinar o fantasma.

Dá-me a tua mão, disse à aparição. Ela não me recusou e me estendeu a sua destra. Tomei
o braço da singular figura que tinha a minha frente e pude notar uma batida rítmica normal
como se tivesse coração. Auscultei-lhe o fígado, o baço e tudo funcionava bem, porém a
qualidade daquela matéria mais parecia ser de protoplasma, substância gelatinosa que às
vezes se assemelha no tato ao vinil. Executei todo aquele exame à luz de uma lanterna
acesa e ele durou uma meia hora aproximadamente. Depois, despedi o fantasma dizendo-
lhe: Já podes te retirar. Já estou satisfeito com o exame. E o fantasma repetindo as suas
múltiplas recriminações se retirou chorando amargamente.
Momentos depois a dona da casa bateu na porte. Ela pensava que eu não havia respeitado
sua casa. Veio me dizendo que me alojara somente a mim e estrava que estivesse admitindo
mulheres no quarto.

Minha senhora, você me engana, foi minha resposta. Não trouxe mulher alguma aqui.
Fui visitado por um fantasma e foi tudo. Naturalmente, contei-lhe o que acontecera. A
dama terminou se convencendo e estremeceu quando percebeu o frio espantoso que havia
no quarto, apesar do clima quente; isso lhe pareceu definitivo para confirmar a veracidade
do meu relato.

Anotei o dia e a hora da ocorrência e mais tarde, quando me encontrei outra vez com aquela
noiva, contei a ela tudo que acontecera. Ela se limitou a dizer que naquela noite e àquela
hora dormia e sonhava que estava em algum lugar da costa atlântica e que conversava
comigo em um quarto parecido com uma sala. Então conclui para mim mesmo: ela se
deitara pensando em mim e seu fantasma me visitara.

O mais curioso foi que vários meses após aquela garota morreu e estando uma noite
descansando em meu leito o fenômeno se repetiu. Porém, desta vez, o fantasma resolveu
deitar-se junto a mim, cheio de ternura e carinho. Como quer que a coisa estava se tornando
ruim, não me restou outro remédio a não ser mandar severamente que se retirasse para
sempre e que nunca mais me incomodasse. O fantasma assim o fez e nunca mais voltou.

Muito interessante o seu relato. Gostaria de nos contar outro caso parecido?

Com muito prazer, meu amigo.Certa ocasião, chegou à cidade uma jovem e pobre mulher.
Estava em péssima situação econômica, porém era uma mulher honrada. Ela me solicitou
trabalho e não encontrei inconveniente em admiti-la como empregada doméstica. Ela era
bastante habilidosa, mas infelizmente poucos dias depois de começar a trabalhar uma série
de fenômenos psíquicos extraordinários se apresentaram, os quais vieram a perturbar não só
meus familiares com também as pessoas da vizinhança. Na presença dela, os pratos voavam
e estatelavam-se contra o piso fazendo-se em pedaços. As mesas e as cadeiras dançavam
sozinhas e caíam pedras dentro da casa. Não era nada agradável para nós o fato de, nos
precisos instantes de estarmos comendo, caírem pedras e terra em nossos pratos.

A jovem tinha em sua mão direita um misterioso anel com uma inscrição: Lembrança de
teu amigo Luzbel. O mais interessante de tudo era que, ainda que estivesse em desgraça,
falando economicamente, jamais deixava de receber desse seu amigo algumas moedas que
usava para comer. Essas moedas vinham pelo ar e ela as recolhia simplesmente do espaço.

A garota explicava que seu amigo lhe disser que vivia no mar e que queria levá-la ao fundo
do oceano. Inúmeras vezes fizemos conjurações a fim de afastar o invisível camarada,
porém ele sempre retornava e com força redobrada, recomeçando às suas andanças. As
pessoas não deixavam de se alarmar, naturalmente.

Alguns jovens se apaixonaram por ela, mas quando tentavam se aproximar chovia pedras
sobre eles e apavorados fugiam.

Mais tarde, aquela garota se afastou e não foi mais vista pela cidade. Que aconteceu? Não
sabemos. O que pudemos comprovar foi quem era seu amigo Luzbel: simplesmente um
elemental do oceano. Não há dúvida que ela também tinha muito de natureza elemental. Era
o que nos transmitia seu olhar, seu corpo, sua forma de ser, etc.
CAPÍTULO 6 ACONTECIMENTOS HUMANOS

Vou relatar um caso que me aconteceu há alguns anos. Nos mudávamos da casa em que
tínhamos vivido durante onze anos e onde nós déramos muito mal. Como havia ficado
ainda alguma coisa lá, poucos dias depois eu e minha tia voltamos para buscar. Ao
entrarmos, imediatamente nos chegou um cheiro de cadáver em decomposição. Como
deixáramos a casa totalmente limpa, por curiosidade, subi ao piso superior para fazer uma
vistoria. Entrei em um dos quartos e vi no lugar onde estivera uma das camas uma funda
cova, como se nela fossem enterrar um ataúde. Dei um grito e minha tia ao ouvi-lo subiu
imediatamente. Ao ver-me tão espantada, levou-me depressa dali e voltamos para a casa
onde agora residíamos.

Desde então comecei a perder o apetite. Cada vez comia menos até que chegou o momento
em que não podia engolir alimento algum. Em dois meses emagreci vinte quilos. Tiveram
de me internar num sanatório e vários especialistas estudaram meu caso, contudo nenhum
deles pode descobrir o que eu tinha e estava a morrer com um dor de estômago que não me
abandonava um minuto. Comida, medicamentos, nada passava; tudo tinha de ser injetado.

Oito dias depois de ter sido internada entrei em estado de coma. Os médicos desanimaram
na tentativa de me curar e prognosticaram câncer, de fato meu corpo exalava um fedor de
corpo canceroso. Tentaram me operar, mas meus familiares o impediram.

O estranho era que eu sempre via junto a mim um médico de bata branca, desconhecido
para mim e para meus familiares. Esse galeno, invisível para todos menos para mim, não
tinha existência no mundo físico. Ele, no entanto, me reanimou e prometeu me curar. E
cumpriu sua palavra, pois curei-me milagrosamente. Quando os doutores me operaram com
o propósito de descobrir a causa causorum da enfermidade, com assombro descobriram que
estava completamente sã. O suposto câncer não existia.

Isso sempre foi um enigma para mim. Poderia me dizer o que aconteceu? Qual foi a razão
daquela enfermidade?

Com o maior prazer responderei a sua pergunta. Permita que lhe diga, senhorita, que em
sua passada existência, vivida precisamente aqui na cidade do México, você cometeu um
ato de magia negra contra uma pessoa causando-lhe a morte. O resultado foi a sua
misteriosa doença. Se se curou, se não morreu, foi devido às boas ações que você praticou e
que permitiram a diminuição do seu Karma. Certamente foi assistida por um médico
invisível a quem você deve ficar imensamente agradecida.

Meu pai teve três filhos em seu primeiro matrimônio, incluindo a mim. Quando meu irmão
maior contava um ano, tiraram-no de minha mãe. Depois, quando eu tinha cinco anos,
minha mãe me entregou ao meu pai, que vivia com sua mãe e meu irmão maior.

Durante toda a infância nunca tive o carinho deles, pois como minha avó me odiava muito,
eles para não contrariá-la não se importavam comigo. De minha mãe, nunca soube se vivia
até fazer quinze anos. Ela sim me deu carinho até que morreu faz uns dez anos.

Gostaria que você me dissesse por que não consegui obter a felicidade e o amor de um
homem e a que se devia o ódio tão grande de minha avó?
Dê um giro na medalha de seu relato e terá você a resposta. É óbvio que todos esses
acontecimentos de sua vida são uma repetição da existência anterior, quando você foi o
algoz ao invés de ser a vítima. Aqueles que hoje lhe proporcionaram tantas dores foram
suas vítimas no passado; isso é tudo. Recorde que a lei do Karma é o fiel balanço de todas
nossas ações. Não pode haver efeito sem causa nem causa sem efeito. Você recolheu as
conseqüências de seus próprios atos. Se você se lembrasse de suas existências passadas,
verificaria a realidade de tudo o que eu disse.

Poderia você explicar-me por que não encontro um amor na vida apesar de desejá-lo tanto?

Recolhemos o que semeamos, afirmamos isso baseados na lei de ação e conseqüência.
Portanto, concluímos que você semeou tempestades e está colhendo raios.

Gostaria que você nos contasse algum caso concreto de enfermidade causada por más ações
em vidas anteriores! Pode ser?

Com o maior prazer. Em minha reencarnação passada conheci o caso de um bandido que
foi fuzilado. Isso se deu em uma estrada. O bandoleiro era conhecido pelo apelido de
Golondrino. Um dia caiu nas mãos da justiça, foi atado a uma árvore e se lhe aplicou a
pena máxima.

Algum tempo depois, aquele homem renasceu em corpo feminino. Um certo dias, seus
parentes solicitaram-me ajuda. Aquela distinta senhorita, em cujo corpo estava encarnada a
alma do Golondrino, lançava espuma pela boca, retorcia-se horrivelmente e gritava cheia
de espanto frases como estas: A polícia vem vindo. Dizem que sou um ladrão, um
salteador de estradas. Ataram-me nesta árvore e vão me fuzilar. Esta últimas palavras
eram sempre acompanhas de gestos e de esforços, como se quisesse desatar invisíveis
laços, estranhas cordas.

Nossas investigações permitiram conhecer este caso concretamente. Tratava-se de uma
repetição mental do episódio final da vida anterior dessa alma, agora encarnada no corpo
daquela mulher.

Os psiquiatras fracassaram rotundamente e não conseguiram curá-la. Nós apelamos para
certas conjurações mágicas e o resultado foi assombroso, a enferma curou-se radicalmente.
Não há dúvida que fomos assistidos pelo poder divino do Espírito Santo.

Vivíamos em uma casa com o número treze na porta e éramos treze na família. Durante
onze anos nessa casa não houve mais do que enfermidades e miséria. Você poderia nos
explicar a razão disso?

Com o maior prazer responderei sua pergunta, distinta senhorita. Lembre-se da viagem
espacial Apolo 13. Foi um completo fracasso. Atrasou o plano de conquista do espaço dos
Estados Unidos e seus três tripulantes estiveram a ponto de perecer. Vem-me a memória
nestes instantes a lembrança de uma noite de ano novo. Éramos treze pessoas reunidas ao
redor de uma mesa. Então, em pleno banquete, disse aos convidados: Um de nós, aqui
reunidos, morrerá muito em breve. Esta profecia cumpriu-se quando alguns meses após
um dos convidados faleceu.
Não se espante quanto ao fatídico treze. Este número é morte, fatalidade, dor, porém
também traz situações novas, já que a morte e a vida estão intimamente ligadas. Quanto a
vocês, é claro que estavam pagando um Karma espantoso. Isso é tudo.

Quando estive a ponto de alcançar a felicidade ela me escapou da mão. Ainda que sempre
digam que me amam, afastam-se de mim para se casarem com outra. Poderia me explicar
por que sempre fracasso no amor?

Com o máximo prazer responderei a sua pergunta, distinta senhorita. É claro que seu
problema não poderia ser devidamente compreendido se ignorássemos a lei do eterno
retorno. Todos os casos são uma repetição incessante das diversas vidas que tivemos.
Todos ser humano no passado contraiu diversos matrimônios, estabeleceu relacionamento
sexual com outras pessoas, etc. O resultado de semelhantes associações conjugais pode ser
bom, mau ou indiferente. Se nos portamos mal com determinado cônjuge, em uma nova
vida estabelece-se o reencontro com suas conseqüências: fracassos matrimoniais, frustração
das bodas, ruptura das relações amorosas, etc. O mais grave de tudo é a separação legal,
causada por tal ou qual motivo, sobretudo quando há amor.
CAPÍTULO 7 INTERESSANTES RELATOS


Uma noite do mês de abril de 1968, estando profundamente adormecido, escutei gritos e
ruídos, como de gente que quebrava vidros e brigava na rua. Temendo que quebrassem
algum vidro do meu automóvel, o qual ficara estacionado à calçada, levantei-me. Peguei os
chinelos e as calças e me fui pelo corredor. Atravessei a casa e olhei pela janela da frente.
Levantando a cortina percebi surpreso não haver gente nem ruídos. Ao contrário, havia paz
e tranqüilidade, iluminação normal na rua e meu carro em perfeito estado.

Pensando que tudo tinha sido produto de uma ilusão ou pesadelo, voltei pelo corredor em
direção ao quarto. Abri a porta e entrei, dando uns quantos passos. Fiquei estarrecido ao ver
a mim mesmo na cama profundamente adormecido junto a minha esposa. Os braços
estavam fora das cobertas, a perna esquerda destapada e a cara recostada no lado esquerdo.

Ao ver a cena senti um terrível pavor e uma forte atração vinda do meu corpo, como se ele
tivesse um imã. Despertei sobressaltado com o coração batendo forte e com um suor frio
pelo corpo. Poderia me dizer o que aconteceu realmente?

Neste caso concreto, houve o que se chama desdobramento; sua alma estava ausente do
corpo físico. Toda alma sai do corpo durante o sono comum e normal e anda por aí. Ela vai
a diferentes lugares e depois regressa ao corpo físico no exato momento do despertar. O
estado de vigília se manifesta precisamente quando a alma entra de novo em seu corpo de
carne e osso.

O interessante do seu caso foi que sua alma ao voltar ao quarto pode ver ser corpo físico
adormecido na cama. Você o viu da mesma forma como pode ver uma mesa ou um
automóvel que dirige diariamente. Assim como o motorista se mete no automóvel para
dirigi-lo também você, isto é, sua alma entra no corpo. É quando a gente desperta e vem o
estado de vigília. Foi isso o que aconteceu.

Em 1958, ao voltar de uma função cinematográfica, uma novidade estava me esperando.
Em casa toda a família estava preocupadíssima com o desaparecimento de uma tia que
havia saído cedo de casa, deixando seus filhos sozinhos. Eram quatro filhos, de três a seis
anos, os quais estavam chorando de medo e de fome. Os familiares já tinham ido a vários
lugares a fim de encontrá-la e tudo fora inútil. Então combinaram sair e procurar por ela,
perguntando por toda a parte; a mim coube ficar em casa.

Perto das três da manhã despertei sobressaltado. A peça estava completamente escura, mas
de repente uma figura ovalada começou a brilhar no meio do quarto. dirigiu-se a minha
cama, chegou até a beirada e levantou a tela do mosquiteiro. Senti um corpo se sentar na
beira da cama e apareceu totalmente a figura de minha tia a que andavam buscando. Em
voz alta ela me disse o seguinte: Filhinho, não te assusta! Sou eu, tua tia. Venho te avisar
que estou morta. Quero que lhes diga onde podem achar o meu cadáver. Localiza o teu tio e
diz para ele me procurar na Delegacia X. Pede ainda para que cuidem de meus filhos e
rezem também.

Levantou-se, baixou o cortinado e sumiu. No dia seguinte repeti o que me dissera. Ninguém
acreditou. Somente se convenceram quando a encontraram no lugar assinalado. Seu
cadáver estada disforme; morrera em um banho de vapor.
Como é possível que uma pessoa depois de ter morrido dê dados para a localização de seu
cadáver e peça por seu filhos?

Depois da morte do corpo físico a alma passa a viver nas dimensões superiores da natureza
e do cosmos. Isto já o dissemos em um capítulo anterior, porém tornamos a repetir. É claro
que essa alma precisava te informar a respeito de sua morte. Era preciso que desse esse
informe; tinha filhos e devia cumprir com seu dever. Neste caso, hão há dúvida que essa
alma foi ajudada por leis superiores e se lhe permitiu entrar neste mundo de três dimensões
para dar uma informação precisa: onde estava o seu cadáver. O que foi devidamente
comprovado, já que o seu corpo foi encontrado exatamente no lugar onde dissera estar, em
uma Delegacia de Polícia. Fatos são fatos e temos de nos render diante deles.

Estando em uma reunião gnóstica, uma pessoa aproximou-se de mim para fazer um pedido
pela saúde de sua mãe, que não estava em seu perfeito juízo. Prometi fazer todo o possível
para curá-la.

Pedi ao anjo Adonai para que me ajudasse e me imaginei na casa da senhora, uma
simpática anciã a quem eu encontrava reclinada em seu leito e que ao ver-me sorria
alegremente e se sentava. Pondo a minha mão direita na sua testa e a minha esquerda no
meu coração, me concentrei fortemente no Mestre Jesus para que me ajudasse. Vi como ela
se restabelecia e sorrindo me acompanhava até a porta da casa.

Na reunião seguinte, a pessoa que me havia solicitado ajuda, quase com lágrimas nos olhos,
veio me agradecer, dizendo que sua mãe se restabelecera e que me mandava lembranças
porque tinha me visto. Como é possível, que duas pessoas, unicamente pela fé, tenham
conseguido uma cura quase milagrosa?

Meu amigo, a fé realiza milagres. O Divino Mestre Jesus disse: Tende fé do tamanho de um
grão de mostarda e movereis montanhas. Você ao se imaginar de forma vívida junto ao
leito da enferma conseguiu se desdobrar. Sua alma viajou até a enferma e com a ajuda do
Divino Mestre sanou o paciente. Não estranhe portanto que o tenham visto. Quando a alma
se desdobra, muitas vezes faz-se visível, ainda que as remotas distâncias. Não ouviu falar
de santos que fizeram o mesmo? Que durante a oração, em estado de êxtase, foram vistos
em outros lugares a curar enfermos?

Em uma outra reunião de cura, chegou uma senhora de uns 60 anos aproximadamente. Ela
portava uma ferida de faca muito funda nos braços e a mostrou a todos os assistentes.
Posteriormente, o Mestre fez conjurações e nós repetimos as palavras que ele pronunciava.
Depois fez com que ela se sentasse. Na reunião seguinte, ela nos mostrou os braços de novo
e vimos que já estava quase curada. Tornamos a repetir a conjurações. Na terceira reunião,
mostrou-nos mais uma vez os braços e vimos com surpresa que nem cicatriz havia, onde
antes verdadeiras talhadas de carne se apresentavam. O que ocorreu para que aquela pessoa
se curasse tão rápida e perfeitamente?

Ah! Percebo que você está falando das reuniões gnósticas. De fato, são muito interessantes
essas assembléias. Lembre-se que os primitivos cristãos foram gnósticos e que realizavam
curas maravilhosas. Não estranhe pois que nessas reuniões, sob a direção do Mestre que
instrui a congregação, se haja realizado um milagre semelhante. Os gnósticos invocam os
seres divinos que vivem no mundo invisível para que realizem este tipo de curas. Isto foi o
que realmente aconteceu e o paciente curou-se radicalmente.

No ano de 1962, aproximadamente pelo mês de novembro, eu apenas começava a
freqüentar as conferências gnósticas, compareceu um senhor que refletia preocupação em
seu semblante e que tinha um olhar vago e misterioso. Pediu para que lhe tirassem algumas
entidades tenebrosas do corpo, as quais o estavam prejudicando e já haviam produzido um
inchume nas suas pernas. Em seguida, mostrou a todos como elas estavam.

O Mestre acedeu e pronunciou a Conjuração dos Sete. Deu uns passes magnéticos e o
indivíduo começou a se retorcer, a dar gritos, uivos e a lamentar-se como se sentisse uma
dor imensa. Ao mesmo tempo, fazia gestos e movimentos como se algo saísse dele. Logo
depois, um cheiro forte e nauseabundo se espalhou pelo ambiente. Houve então uma pausa
em que parecia ter descansado. O Mestre deu três palmadas no homem que voltou a si e que
declarou não se lembra de nada. Em três sessões tinha as pernas recuperadas e não se
queixava mais das entidades. Você poderia nos explicar o que aconteceu? Como foi
possível a sua cura?

Esses são os casos de possessos de que nos fala o Evangelho cristão. Jesus punha as mãos
sobre os possessos e mandava os demônio saírem daqueles corpos. E eles obedeciam
naturalmente. Os apóstolos também receberam este poder. Jesus lhes conferiu autoridade e
puderam exorcizar os demônios a fim de expulsá-los dos corpos enfermos. Portanto, o caso
que nos conta não é o único. As enfermidades são causadas precisamente pelas entidades
tenebrosas que se metem dentro do corpo do enfermo. Muitas tribos indígenas das
Américas conhecem estes mistérios. Sei de muitos sacerdotes indígenas que, antes de curar
seus pacientes, os exorcizam com o sadio propósito de eliminar as entidades tenebrosas
causadoras da doença. Se nossos médicos seguissem o exemplo desses curandeiros
indígenas, realizariam maravilhas nos campos de ação da medicina. O caso concreto que
nos narrou é apenas normal. Exorcizou-se o enfermo e ele sanou, isso é tudo. Não se
esqueça da arruda e da sálvia! São plantas maravilhosas que podem ser usadas como
defumação nos exorcismos.
CAPÍTULO 8 O DESDOBRAMENTO

Que é o desdobramento?

Você ignora realmente o que é o desdobramento? Percebo que sua pergunta é sincera!

O desdobramento é sumamente simples. Trata-se de um fenômeno natural como comer,
beber, etc. Quando o corpo físico adormece, a alma sai dele e viaja por todas as partes. Ao
regressar, ao entrar novamente no seu corpo, muitas vezes a alma se lembra dos lugares por
onde andou, das pessoas com quem falou, etc. As pessoas costumam chamar isso de
sonhos, mas na realidade é desdobramento.

Isso pode ser feito à vontade ou apenas durante o sono?

De qualquer forma se precisa do sono para que haja desdobramento, seja voluntário ou não.

O desdobramento é perigoso?

Parece-me que se tornar consciente dos próprios fenômenos naturais nunca poderia ser
perigoso. Cada um deve estar consciente dos alimentos que come, do que bebe, do estado
de saúde em que se encontra e também do processo de desdobramento, o qual ocorre em
toda criatura viva.

Explique-me a técnica para que eu possa me desdobrar. Gostaria de ir até Paris.

Tudo aquilo que você faz de forma involuntária e inconsciente, deve aprender a fazer
voluntária e conscientemente. Você sempre se desdobrou. Repito, no momento que se está
dormindo, a alma sai do corpo, mas infelizmente inconsciente. Continue se desdobrando,
porém o faça-o agora de uma maneira voluntária e consciente.

Quando você sentir aquela lassidão própria do sono, quando comece a adormecer, imagine-
se ser um fantasma sutil e vaporoso. Compreenda que você é uma alma, que você não é o
corpo e que vai sair dele. Sinta-se uma alma, levante-se do leito suavemente,
delicadamente, como se levantam as almas. O que estou a dizer deve ser traduzido em atos
concretos. Não se trata de pensar e sim de agir. Ao se levantar, dê um saltinho em seu
próprio quarto com a intenção decidida de flutuar no espaço. Se você flutuar é porque já
está fora do corpo físico e poderá sair do seu quarto e flutuar lá fora. Poderá ir a Paris ou a
Londres, ao lugar que quiser. Se não flutuar, é porque se levantou da cama em corpo físico.
Então volte ao leito e repita o experimento.

Ao se flutuar, o corpo físico fica na cama?

Quero que você entenda. Se você flutua no meio ambiente que o circunda é porque está
fora do corpo físico. Neste caso concreto, você deve compreender que o corpo físico ficou
deitado na cama, que você está fora dele e longe da cama.

Quando alguém se sentir flutuando, deverá pensar que viaja a algum lugar determinado?

Distinta dama, quero que você compreenda. Não se trata de pensar e sim de agir. Um coisa
é diferente da outra. Por exemplo, estou vendo-a sentada nessa cadeira. Se você pensar que
via se levantar dessa cadeira e vai à rua e não age, é claro que permanecerá sentada aí.
Precisamos de ação, entendeu?

Isso é o que me agrada na Gnose, que me explicam claramente tudo o que não entendi.

De fato, nós gostamos da exatidão em tudo, gostamos da precisão.

Poderia nos contar o caso concreto de um desdobramento voluntário?

Com o maior prazer, distinta senhorita. Vou contar um caso pessoal; como se verificou o
meu primeiro desdobramento. Eu era ainda muito jovem quando resolvi me desdobrar à
vontade. Recordo claramente que pus bastante atenção no processo do sono. Quando senti
que estava quase dormindo, nesse estado de transição que existe entre a vigília e o sono,
atuei inteligentemente. Não me pus a pensar que ia me desdobrar porque obviamente se
houvesse ficado pensando, não teria realizado o experimento almejado. Repito que agi.
Levantei-me com grande suavidade do leito e ao fazê-lo produziu-se uma separação muito
natural entre a alma e o corpo. A alma ficou fora e o corpo na cama dormindo.

Sai da minha casa para a rua de maneira espontânea e clara, pondo-me a caminhar por uma
rua deserta. Detive-me na esquina seguinte da rua e refleti por uns instantes sobre o lugar
aonde deveria me dirigir. Resolvi ir à Europa. Tive de viajar por cima das águas do
Atlântico, flutuando maravilhosamente no espaço luminoso. Senti-me cheio de uma alegria
não concebível para os seres humanos. Por fim atingi a cidade de Paris.

Caminhando, ou melhor dizendo, flutuando na atmosfera luminosa, senti instintivamente a
necessidade de entrar em uma casa. Não me arrependo de ter entrado em certa mansão. O
curioso do caso foi o encontro com um Iniciado que tinha conhecido em reencarnações
anteriores.

Ele também estava fora do corpo. Nitidamente pude evidenciar que seu corpo jazia
dormindo no leito. Junto a ele vislumbrei uma mulher e dois meninos. Percebi que se
tratava de sua esposa e de seus dois filhos. Saudei carinhosamente o meu amigo e a alma de
sua esposa, a qual também estava fora do corpo. Não será demais acrescentar que como
aqueles meninos dormiam, as suas almas também estavam fora do corpo. Aquelas almas
infantis assustaram-se com a minha inusitada presença. Compreendi a necessidade de me
retirar para evitar que tais almas regressassem ao seus respectivos corpos. Se isso tivesse
acontecido, os meninos teriam chorado e o pranto haveria de despertar meu amigo e sua
esposa, então o diálogo seria interrompido, já que tanto a alma do meu amigo como a de
sua esposa seriam obrigados a voltar para os seus respectivos corpos de carne e osso.

Compreendi tudo isto em milésimos de segundo e para evitar precisamente este problema,
propus ao meu amigo que abandonasse a casa e saísse comigo para dar uma volta pelas ruas
de Paris. Grande foi a minha alegria quando aceitou.

Fomo-nos juntos pelas avenidas daquela grande cidade. Aconselhei-o a voltar ao caminho,
entrando na senda da luz. Por último, propus a ele uma visita a um templo maravilhoso que
existe na Alemanha. Ele recusou o convite alegando que não podia ir porque devia
concentrar sua atenção nos problemas da vida prática, visto que tinha mulher e filhos.
Despedi-me daquele Iniciado e, suspendendo-me na atmosfera, passei por cima de uns
muros altos e me fui por um caminho que serpenteava, uma estrada cheia de curvas, até que
cheguei a um templo maravilhoso.

Diante do Santuário vi muitas almas das mais diversas nacionalidades, pessoas que durante
as horas de sono escapavam de seus corpos densos para irem ter naquele Santuário.
Aquelas pessoas, reunidas em vários grupos, estavam conversando. Falavam do cosmos,
das leis da reencarnação e do karma, dos mistérios da vida e da morte, etc. Procurei entre
tais grupos um certo amigo muito hábil no desdobramento e não o achei. Então, me
aproximei do umbral do templo e vi um jardim magnífico com flores deslumbrantes que
exalavam um perfume embriagador. No fundo, destacava-se a silhueta de um esplêndido
templo iluminado pelo esplendor das estrelas. Quis entrar, mas o guardião interveio e disse:
Este é o templo da sabedoria! Retira-te! Ainda não é tempo!

Obedecendo a ordem, retirei-me a uma certa distância, sem me afastar demasiado do
umbral. Foi quando comecei a me observar. Olhei as minhas mãos e meus pés espirituais e
até me permiti ao luxo de compará-los com as mãos e os pés do corpo de carne e osso que
deixara dormindo no leito, lá na América Latina, na terra sagrada dos astecas.
Evidentemente, todas aquelas comparações deram como resultado o regresso instantâneo ao
veículo físico que, profundamente adormecido, roncava na cama. Despertei sobressaltado
exclamando: Estive no templo da sabedoria! Que felicidade! Que alegria! Até hoje não
consegui esquecer aquela luz tão branca, tão imaculada, que brilhava naquele Santuário.
Essa luz não se parecia a de qualquer lâmpada física; saía de todas as partes e não fazia
sombra de espécie alguma.

Pode alguém viajar a qualquer lugar mesmo que não o conheça?

Eu fui a esse templo divino e não o conhecia. Fui levado, podemos dizer, por um sentido
telepático superior. Poderia dizer-lhe que me guiou meu próprio espírito.

Quando há o desdobramento voluntário, nos lembramos aonde fomos ao despertar?

É claro que se não há recordação não houve desdobramento voluntário. A mim parece-me
impossível que uma pessoa se desdobre voluntariamente, que saia do seu corpo
intencionalmente, conscientemente, e não seja capaz de se lembrar do que viu fora do
corpo. Por exemplo, quando você sai de sua casa para o trabalho e depois volta do
escritório para casa, se lembra do que viu no escritório? se lembra do trabalho que
executou? das ordens de seu chefe?

Sim, eu me lembro de tudo o que fiz no escritório quando volto para casa.

Pois é o mesmo caso, senhorita. Tenha em mente que seu corpo físico é uma casa de carne
e osso. Se você sai voluntariamente de tal casa, verá muitas coisas. Se você retorna
voluntariamente, é lógico que se lembrará também de tudo que viu e ouviu.
CAPÍTULO 9 FENÔMENOS MÍSTICOS

Certa ocasião em que realizava um exercício de meditação no campo, senti que saía do
corpo enquanto me estremecia todo. De repente senti que voava à grande velocidade,
chegando em um par de segundos ao Egito. Desci perto da esfinge e percebi o calor da areia
na planta dos pés. Pude tocar as enormes e carcomidas pedras do gigantesco monumento.
Foi uma grande surpresa para mim ver tão nítido panorama e tão vívida percepção do céu.
Uma tênue brisa que vinha do rio Nilo movia umas altas e delgadas palmeiras. Depois de
um breve descanso, uma espécie de atração fez com que me elevasse do solo e fui flutuar
aproximadamente na altura do nariz da esfinge, onde havia uma pequena cavidade pela qual
entrei. Uma estreita e semi-iluminada escada que descia conduziu-me até a porta de uma
câmara. Lá estava um guardião vestido com um mandil, sandálias douradas e uma touca na
cabeça. Na touca havia um diadema dourado que representava uma cobra na atitude de
picar. Ele tinha uma lança na mão direita com a qual impedia minha passagem. Seus olhos
eram de um azul esverdeado muito penetrantes e sua pele era morena.

Não pronunciou uma palavra, apenas me examinou e me fez uma saudação de passe a qual
respondi. Sorriu e recolhendo a lança permitiu que eu passasse com uma amável reverência.
Penetrei numa câmara ampla onde se ouvia os cantos leves de um coro que recitava orações
na forma de cantos deliciosos. Havia no ambiente fumaça de incenso de cor rosada, o qual
cheirava a extrato de rosas vermelhas e fazia vibrar meu corpo dos pés à cabeça. Havia
também muitos símbolos egípcios nas paredes que apesar de não entender me eram
familiares. Depois de ver a rica decoração daquela câmara, que indubitavelmente deve
pertencer a um templo deveras especial, escutei um gongo e apareceram três Mestres. Seus
rostos eram veneráveis e aprazíveis, porém de olhares penetrantes. Dois deles estavam
vestidos de amarelo e o outro com uma túnica branquíssima. Depois de me saudarem deram
as boas-vindas com um abraço fraternal.

Em seguida, oficiaram uma missa em um altar que havia entre duas colunas enormes. Um
grande escaravelho de ouro resplandecia entre o fumo do incenso. Uma piazinha com água
cristalina que não havia notado antes foi iluminada. Aproximaram-me dela e comecei a ver
o meu rosto horrivelmente negro e barbudo como um orangotango. Posteriormente, vi
muitas passagens da minha vida, onde cometera todo tipo de pecado. Terminei gemendo e
chorando. A seguir me admoestaram, dando-me conselhos de uma forma simbólica.

Entregaram-me um escaravelho de ouro maciço, puseram-no na minha mão direita,
fecharam-na e pronunciaram algumas palavras que não entendi. Disseram-me que o
conservasse e me fizesse merecedor de tê-lo sempre ao meu lado. Abençoaram-me e
regressei ao meu corpo, despertando instantaneamente muito impressionado. Até hoje não
me esqueci de nenhum detalhe. Poderia me dizer o que aconteceu e que significado tem
tudo isso para mim?

Com muito prazer responderei a sua pergunta. A todas as luzes ressalta com inteira
claridade meridiana tratar-se de um caso de desdobramento. Você adormeceu enquanto
meditava e orava, então sua alma saiu do corpo e foi dar no Egito, a terra sagrada dos
faraós. Quero que você compreenda que entrou espiritualmente no misterioso templo da
esfinge. Alegra-me muito que haja descoberto uma porta secreta no nariz da esfinge.
Obviamente, não se trata de uma porta física, mas de uma porta invisível para os sentidos
físicos, contudo perfeitamente visível para a inteligência e para o coração. É ostensível que
o templo da esfinge também não se encontra neste mundo denso. Trata-se de um templo
invisível para os olhos da carne, mas totalmente perceptível para os olhos do espírito. O que
lhe aconteceu foi algo parecido à experiência de São Paulo, o qual como se sabe foi levado
aos céus onde viu e ouviu coisas que aos homens não lhes é dado compreender.

Não há dúvida que você em uma existência passada foi iniciado nos mistérios egípcios e
devido a isso foi chamado ao templo. Chamada essa que foi feita quando você estava
meditando e foi dar precisamente lá. Assistiu espiritualmente a um ritual egípcio, viu e
ouviu os sacerdotes do templo, escutou sublimes cânticos e viu na água o seu Eu
Psicológico e todos os delitos que cometeu. Não há dúvidas que viu a si próprio bastante
feio. Acontece que nossos pecados nos tornam assim: horríveis.

Entregaram-lhe um escaravelho sagrado, de puro ouro, símbolo maravilhoso da alma
santificada; isso é tudo. Espero cavalheiro que haja compreendido o indispensável: que se
resolva a seguir o caminho da santidade e que se arrependa de todos seus erros.

Em outra ocasião em que fazia exercícios de meditação em pleno bosque, nas cercanias do
povoado de Cuernavaca, México, junto com um amigo espiritual de muita sabedoria, o qual
estimo como a um pai, tive a seguinte experiência:

Sentamo-nos na posição ioga conhecida como da Flor de Lótus e fizemos uma prática
respiratória. A seguir ficamos em silêncio e entramos em meditação. Quase que
imediatamente me senti transportado às cordilheiras dos montes Himalaias, mais
precisamente ao Tibete. No lugar fazia um frio tremendo e se escutava o agudo uivar dos
ventos. Vi alguns soldados chineses armados a rondar por aqueles inóspitos lugares. Atingi
uma planície um tanto nublada onde se descortinou pouco a pouco uma majestosa
construção amuralhada, a qual tinha tinha um enorme portão de madeira preso com cravos
de ferro forjados há séculos. Naquela oportunidade, a entrada estava guardada por soldados
tibetanos que ao me aproximar gritaram o comando alto. Mandaram que esperasse um
momento enquanto consultavam se podia passar ou não.

Instantes depois receberam a resposta e se ouviu o ranger das dobradiças do enorme portão.
Disseram-me para passar. À primeira vista, pareceu-me uma cidade celestial e ao mesmo
tempo espetacular. A brancura do mármore, os lindos jardins com flores de uma beleza
indescritível e os arbustos de tonalidade verde e amarelo, nunca vistos na terra,
resplandeciam. Caminhei por amplas armações que tinham corrimões com colunas
torneadas na forma de belas figuras de mármore e que me conduziram a uma pracinha. Nela
se via uma pequena fonte de água vaporosa e cristalina. No meio havia um formoso menino
que vertia de um cântaro água que nunca se acabava. Voltei-me para a direita dirigindo-me
ao portal de um edifício espichado horizontalmente no qual se percebia sete colunas de
mármore belamente decoradas. Estava observando o passeio quando começaram a se fazer
ouvir coros angelicais que trouxeram consigo uma figura que desprendia luminosidade e
respeito. Era nada menos do que o Mestre Jesus Cristo. Ao vê-lo, senti desfalecer. Ele
olhou-me fixamentente e em seu rosto esboçou-se um sorriso de fraternidade e amor. Ato
seguinte, aproximou-se de mim, pôs sua mão direita em minha testa e me disse: Ide e
ensinai a todas as nações que eu estarei convosco.

Depois, andamos por outros passeios. Encontramos outros grandes Mestres, entre eles
reconheci o Mestre Samael Aun Weor a quem chamou em voz alta e lhe recomendou para
que vigiasse e instruísse a minha humilde pessoa. Chamou outros Mestres e alguns alunos
que se encontravam próximos e nos abençoou com orações e mantras especiais.
Pessoalmente nos despediu, ao Mestre Samael e a mim. E vi como se fechava o portão e
como desaparecia da visão o magnífico recinto.

Ao regressar ao meu corpo, abri os olhos e vi que meu amigo ainda não despertara, porém
demorou um minuto, despertou e comentamos as experiências vividas. Como é que um
estudante gnóstico, sem mérito algum, tenha tido uma experiência tão maravilhosa e que
lhe hajam confiado essa delicada missão?

Com muito prazer responderei a sua pergunta. Já vê você o que é a meditação e a oração.
Se uma pessoa de boa vontade se entrega à oração e à meditação, pode ter sorte de atingira
o êxtase. A alma sai do corpo, como já explicamos antes, e viaja aos mais remotos lugares
da terra ou do infinito.

No seu caso concreto, você foi parar no Tibete e entrou em um templo secreto, onde pode
ver os Mestres da humanidade e a Nosso Senhor o Cristo. Não esqueça que a alma em
oração, em êxtase, pode chegar a ver o próprio Cristo. Você teve essa felicidade e não há
dúvida que o Senhor recomendou que ensinasse a doutrina da Gnose a todos os seus
semelhantes.

Obviamente, devo transmitir-lhe tais ensinamentos, por isso viu e ouviu o Senhor se
preocupar para que eu o instruísse.
CAPÍTULO 10 EXPERIÊNCIAS MÍSTICAS DE UM NEÓFITO

Em uma prática de saída em astral, uma noite do ano de 1966, consegui sair
conscientemente de meu corpo. Senti uma liberdade muito especial, já que meu ser sentia
uma alegria indescritível. Voei, voei como um pássaro até outro planeta, para mim
desconhecido, mas que tinha muito de parecido com a Terra. Via enormes e verdes bosques
povoados de pinheiros. Vislumbrei uma cabana de troncos em que haviam algumas pessoas
a me fazer sinais. Desci e tive a agradável surpresa de ver que ali estava o Mestre Samael
Aun Weor com alguns familiares e discípulos conhecidos. Todos me receberam com
efusivos abraços e uma alegria que não posso descrever.

Em seguida, o Mestre convidou-me a caminhar. Andamos pelo bosque até que chegamos a
uma ponte de pedra, onde o Mestre me explicou que aquele planeta era a Lua de épocas
passadas, quando nela havia habitantes, animais e vegetação, que era a antiga Terra-Lua ou
Terra-Mãe-Lua. E me mostrou rios, montanhas e grandes mares. Poderia me explicar como
é possível se visitar outro planeta e em épocas tão remotas como essa?

Já vê você, distinto cavalheiro, o que é o desdobramento astral. A alma pode se transportar
a outros planetas e conhecer muitos mistérios. Você foi de fato, em alma ou em espírito,
como queira, a esse satélite que resplandece nas noites estreladas.

Certamente, lá encontrou meu espírito na citada ponte, porém o que você viu: a ponte, a
vegetação, o rio, etc. pertence ao passado sumamente antigo, porque a Lua hoje é um
cadáver. É bom que você saiba que os mundos, as pessoas, os vegetais e os animais
nascem, crescem, envelhecem e morrem. em nome da verdade devo dizer-lhe que hoje a
Lua é um cadáver.

Esse satélite teve vida abundante, passou por sua infância, por sua juventude, por sua
maturidade, envelheceu e morreu.

A alma pode ver não somente o futuro e o presente, como também o passado. O que você
viu corresponde exatamente àquela época passada em que a Lua teve rios caudalosos,
mares profundos, vegetação exuberante, vulcões em erupção, vida vegetal, animal e
humana.

Quero que saiba, os selenitas existiram. A Lua teve sete raças humanas através de
sucessivos períodos históricos. As primeiras raças foram de gigantes e as últimas de
liliputianos, isto é, pequeníssimos. As últimas famílias humanas que viveram na Lua
poderíamos catalogá-las como de homens formigas. Não se espante com o que digo, isto
sempre acontece em todos os planetas. As primeiras raças são de gigantes e as últimas
demasiado pequenas. Felicito-o por ter recordado o que viu e ouviu na Lua.

Futuramente, os arqueólogos encontrarão debaixo do subsolo lunar ruínas de cidades
antiquíssimas. Você verá as notícias em todos os jornais.

Em julho de 1969, tendo a oportunidade de visitar um povoado do estado de Hidalgo
em companhia do Mestre Samael Aun Weor, sua família, um amigo, um discípulo e um
humilde criado, partimos de automóvel em uma tarde muito chuvosa e algo fria. Seguíamos
para uma zona arqueológica e pensávamos que não ia ser possível visitar o lugar proposto,
já que chovia forte na estrada e havia pouca visibilidade.
Percorremos assim quase todo o caminho e ao chegarmos vimos com surpresa que o tempo
melhorava no povoado para onde nós dirigíamos, enquanto que ao redor dele permanecia
carregado de nuvens negras.

Pudemos visitar a zona arqueológica praticamente na sua totalidade. Em dado momento,
notei que o Mestre fazia algumas concentrações instantâneas e posteriormente comentou
com sua esposa que a permissão já se havia terminado. A mim perguntou se me havia dado
conta do fenômeno produzido. Respondi afirmativamente, já que era evidente que ele
solicitara para que a chuva parasse. Então disse para que subíssemos no carro e logo em
seguida começou a chover a cântaros. Poderia me explicar como foi possível aquele
milagre?

Saiba que os quatro elementos, terra, fogo, água e ar, estão densamente povoados por
criaturas elementais da natureza. Pode ser que estranhe o que estou expondo, porém em
todas as épocas da história existiram tradições sobre isso que se chama duendes, fadas,
ninfas, nereidas, silfos, etc. Pois são esses os elementais e são assim chamados porque
vivem nos elementos. Os pigmeus, por exemplo, vivem entre as rochas da terra, as
salamandras vivem no fogo, os silfos no ar e nas nuvens, por fim as nereidas na água.

As pessoas incrédulas não aceitam nada disto, mas penso que você seja uma pessoa que tem
fé, por isso com o maior prazer explico e respondo sua pergunta. Por meio de certas
fórmulas secretas, meu próprio espírito deu ordens aos silfos que vivem nas nuvens para
que as afastassem. Você não deve ignorar que as águas são manejadas pelas ondinas. Se os
silfos promovem correntes psíquicas especiais, levam as nuvens, mexem-nas, afastam-nas
do lugar e com elas vão também as ondinas. Por conseguinte, momentaneamente pode-se
afastar a chuva. Porém, isto somente o fazemos, nós os Iniciados, em ocasiões especiais,
porque do contrário se estabeleceria a desordem na natureza. Quando um Iniciado gnóstico
realiza um milagre desses, o faz sempre com permissão dos Seres Superiores.

O milagre que você presenciou foi necessário, pois era preciso se estudar alguns monólitos
de Tula, por certo bastante interessantes.

Em uma prática em que quis recordar minhas vidas passadas, tal como nos ensinou,
trouxe as seguintes experiências:

Vi-me nas pirâmides de Teotituacán na época dos astecas, bem onde se encontra a
Cidadela. Havia uma grande multidão que aclamava e vociferava. Em toda a Avenida dos
Mortos havia gente do povo, soldados e políticos ricamente adornados com penachos,
braceletes, sandálias, ornamentos de ouro e pedrarias.

Por aquela avenida caminhávamos com as mãos e pescoços atados; éramos prisioneiros.
Rodeados por vários soldados vestidos de Cavaleiros Tigres e Cavaleiros Águias fomos
levados ao pé da pirâmide do Sol, onde ardia uma grande fogueira. Ao chegarmos à
plataforma colocaram-nos em forma. Um sacerdote fez um sinal e todos se calaram. As
chirimias e os teponaztlis começaram a soar e surgiram donzelas bailando danças de uma
faustosidade indescritível. Terminadas as danças, apareceram doze anciãos que
compuseram uma espécie de corte marcial e nos julgaram.
Posteriormente, vendaram-nos os olhos e fizeram-nos subir os degraus da pirâmide. Alguns
resvalaram e caíram, já que escutavam o ruído e os gritos de dor. Lembro-me que sentia os
degraus estreitos que mal davam para a metade do pé. Ao chegarmos à parte superior,
houve invocações, orações e ofertórios. Depois, fomos sacrificados ao Deus
Huichilopotxtli. Poderia explicar o que me aconteceu nessa reencarnação ou retorno?

Em plena meditação, você quis recordar suas vidas passadas. Adormeceu um pouco e sua
alma saiu do corpo de carne e osso. Depois vieram as diversas cenas, lembranças de um
passado. Convido-o a compreender que você viveu entre os astecas no antigo México. Viu
como os delinqüentes eram julgados e como eram depois sacrificados aos deuses. Portanto,
nem todos os imolados no altar dos sacrifícios humanos foram vítimas inocentes. Saiba
pois que, no México pré-colombiano, havia sacrifícios humanos.
CAPÍTULO 11 NEGÓCIOS

Senhor, tenho um negócio e ultimamente tenho atravessado uma situação econômica difícil.
Meu estabelecimento vai mal, os clientes se retiram ... Que devo fazer?

Antes de tudo, estimado amigo, devo dizer-lhe que precisa guardar 40 dias de castidade
absoluta, pois entendo que você tem vivido uma vida muito profana, tem sido muito
fornicário, gastando torpemente suas energias sexuais.

É insdispensável, urgente, que compreenda a íntima relação existente entre a glândula
pineal e os órgãos sexuais. Não se surpreenda com o que digo. Essa pequena glândula
encontra-se situada na parte superior do cérebro.

Todo estudante gnóstico sabe muito bem que em nosso organismo temos estabelecido todo
um sistema sem fim. O plexo solar, situado na região do umbigo, é a antena receptora ou
telepática que capta as ondas mentais de nossos amigos e inimigos e as transmiti à mente. A
glândula pineal é o centro emissor do pensamento, transmitindo ondas às diversas pessoas e
lugares.

É claro que os grandes comerciantes, os grandes líderes de todos os tempos, tiveram essa
glândula bem desenvolvida. Quando se malgasta a energia sexual, a glândula pineal se
debilita e se degenera. Já não podendo emitir as ondas mentais com força, sobrevem o
fracasso nos negócios.

Como você é um homem profano que nada sabe sobre os nossos estudos esotéricos, a única
coisas que posso lhe aconselhar é que guarde pelo menos 40 dias de castidade absoluta para
acumular energia sexual e dar força à glândula pineal. Assim melhorará a sua situação
econômica; fará uma troca favorável. Ademais aconselho a levar enxofre nos sapatos. Não
se surpreenda! Lembre-se que as emanações etéricas do enxofre limparão a sua atmosfera
pessoal.

Você precisa saber que com a fornicação se formam muitas larvas invisíveis ao seu redor,
em sua aura. Delas existem múltiplas espécies. Com as emanações provindas do enxofre,
essas asquerosas larvas se desintegram a sua atmosfera clareia. Ademais, convém que limpe
o ambiente onde tem o seu negócio. Faça queimações de enxofre por uns nove dias. Depois
faça queimações com açúcar para adoçar o ambiente e para torná-lo agradável também por
nove dias.

Estamos falando de ocultismo e penso que você me compreendeu. Já que precisa melhorar
seu negócio.

Poderia me dizer o que devo fazer para prosperar? Vendo artigos no interior sem ter
negócio estabelecido. Há meses que não consigo cobrar nada.

Compreendo a sua situação, meu amigo. Com toda a sinceridade quero lhe dizer que
quando alguém segue exatamente os dez mandamentos da lei de Deus, quando reza
diariamente ao Pai Secreto, a sua situação só pode melhorar. O Pai lhe dá tudo e nada lhe
fará falta. Mas quando alguém se comporta mal, quando não cumpre os dez mandamentos,
quando não se entrega ao Pai, então Ele se ausenta e você cai em desgraça.
Siga meus conselhos. Faça muitas obras de caridade. Guarde castidade. Banhe-se com
ervas aromáticas, tais como menta, camomila, eucalipto, nogueira, etc. Use estas plantas
por 40 dias em seu banho diário e faça obras de caridade às toneladas. Somente assim
melhorará a sua situação econômica.

Porém, o que você entende por castidade?

Meu amigo, não vou explicar-lhe o Arcano AZF de nossos estudos gnósticos porque não
entenderia. Este livro é tão somente uma cartilha elementar para quem jamais estudou
nossas obras. Me limitarei unicamente a repetir para que guarde 40 dias de abstenção
sexual em pensamento, palavra e obra; isso é tudo. Se você quiser se aprofundar em nossos
estudos, leia nossos livros mais avançados.

Poderia me explicar que obras de caridade posso fazer?

Saiba que obras de caridade são as obras de misericórdia: dar a comer ao faminto, dar de
beber ao sedento, vestir o desnudo, ensinar o que não sabe, curar os enfermos, etc.

Poderia me dizer quando devo fazer uma obra de caridade, quando não e a quem?

Ninguém é juiz para julgar, ademais a caridade não precisa de juiz. Isto faz parte do bom
senso. Dar de comer ao faminto e algo bastante humano porque até aos presos se lhes dá de
comer, senão morreriam de fome. Dar de beber ao sedento é algo lógico, já que seria
demasiado cruel se negar um copo com água com alguém com sede. Presentear com uma
camisa o mal vestido é natural, consolar um aflito é humano; para isso não se precisa de
juizes. Contudo seria absurdo dar-se álcool a um bêbado ou emprestar armas a um
assassino. Amor é lei, porém amor consciente.
CAPÍTULO 12 ASSUNTOS DE AMORES

Quero pedir-lhe um favor. Acontece que meu marido separou-se de mim por causa de outra
mulher. Sofro o indizível e não sei o que fazer e não sei o que fazer. Como você conhece as
ciências ocultas, parece-me que poderia ajeitar a minha situação. Sei que dispõe de força
mental maravilhosa e que pode dominar a mente alheia, sugestionar o ser amado e pô-lo aos
meus pés através da magia. Que preço cobraria você pelo trabalho? Poderia pagar-lhe o que
quisesse.

Creio que a senhora se equivocou. Não sou mago negro. Utilizar as forças da mente para
subjugar os outros, para escravizá-los, para obrigá-los, é violência e todo ato violento é
magia negra. Cada um vive sua vida e ninguém tem o direito de intervir nos assuntos
alheios. É absurdo querer dominar os outros.
Quando será que as pessoas aprenderão a respeitar o livre arbítrio dos demais? Crê você por
acaso que se pode obrigar impunemente alguém a amar os demais à força? É necessário que
saiba que esse tipo de ações de magia negra se paga com castigos muito fortes. Os Anjos do
Destino não estão dispostos a perdoar semelhante delito. Se você continuar por esse
caminho receberá seu castigo.
No mundo, existe muita gente dedicada à bruxaria, à feitiçaria e à magia negra. Milhares de
feiticeiros vivem desse negócio sujo e é claro que tais pessoas não progridem porque a
magia negra só traz miséria, fome, nudez e suprema dor.

O Castigo das pessoas que se dedicam à feitiçaria pode atingir também seus filhos?

O ambiente dos magos negros costuma ser desastroso. Os filhos desses tenebrosos também
são tenebrosos. É normal que as almas perdidas busquem progenitores ou pais terrenos que
sejam magos negros. Não é de se estranhar que os filhos dos perversos também sejam
perversos e caiam na desgraça.

É lamentável que as pessoas não entendam que o livre arbítrio dos demais tenha de ser
respeitado. Sempre existe a tendência nefasta de dominar os outros à força, de querer impor
idéias ao próximo, de tentar obrigar o semelhante a fazer o que nos dá na cabeça. Tudo isso
se paga muito caro: lágrimas, miséria e suprema dor.

Por que os magos negros acham que estão fazendo um bem a humanidade, pois crêem que
mesmo cobrando estão ajudando as pessoas a resolver seus problemas?


Quero dizer-lhe que a lógica do absurdo existe. Para os tenebrosos o branco é negro e vice-
versa. Recorde que o caminho que conduz ao abismo está empedrado de boas intenções.

Constantemente, chegam-me cartas de todas as partes solicitando este tipo de serviço.
Realmente, a humanidade causa pena. Alguém está entregando uma mensagem divina às
pessoas e ao invés de se preocuparem com o estudo de tal mensagem, a única coisa que lhes
ocorre é escrever dizem que para que lhes recupere seus maridos, para que domine a mente
da mulher desejada ou ainda para que me meta no pensamento alheio com o propósito de
que fulano pague tanto a beltrano, etc. Verdadeiramente, tudo isso causa-me profundo
desgosto. Não escrevem para pedir orientação esotérica, para esclarecer ensinamentos, mas
para que domine os demais ao seu gosto. Eis o estado em que se encontra a humanidade.
Nestas condições, prefiro que não me escrevam porque só me preocupo em ensinar, em
mostrar o caminho da libertação, em indicar a meta que conduz à verdadeira felicidade de
espírito. Infelizmente, as multidões não querem saber disso. Há pessoas que têm o poder de
sugestão mental em alta cotação. Cobram tantos pesos ou tantos dólares por cada sugestão e
outros tantos para por um espírito (como dizem os pseudo-espiritualistas) à disposição para
que faça o ser adorado ou amado deixar a outra pessoa em cujos braços dorme e voltar
chorando para casa, etc.

Todos esses negócios sujos pertencem ao abismo, aos tenebrosos. Aqueles que exercem tais
afazeres, de boa ou má fé, entrarão inevitavelmente no abismo, onde apenas se ouve o prato
e o ranger de dentes.

Eu sou cartomante e posso jurar que digo a verdade às pessoas. Ajudo-as em seus
problemas, ainda que lhes cobre, enfim esta é a minha maneira de viver. Crê você que
esteja agindo bem?

Horrível maneira de viver tem você. De fato, és uma adivinha, uma feiticeira. Acreditas por
acaso que com o diabo metido no meio do negócio, no próprio reino do coração , pode-se
dizer a verdade? Você bem sabe e de uma vez por todas convém que não mais ignore que
leva no fundo do seu coração o Eu Pecador dos mortais, o próprio Satã. Pode porventura
estar iluminada uma pessoa que não chegou à santidade? O fato mesmo de cobrar por
predicar ou adivinhar já é um delito.
Você pensa que age bem, porém não estranhe, no abismo vivem muitos anacoretas,
penitentes, feiticeiros, bruxos, adivinhos, que se imaginam mártires e que também julgam
estarem indo muito bem.

Então poderá dizer-me se meus filhos, a quem ensinei minhas crenças, também vão mal?

Tratando-se de crendices sobre lançar sorte, adivinhar fatos, etc., tenho de lhe dizer que vão
mal. Repito, não é possível conhecer o destino dos demais se não conhecemos o nosso
próprio destino, se antes não chegamos ao despertar da consciência. Semelhante despertar
resulta impossível se antes não morremos o Eu Pecador.

Apesar de haver estudado em escolas esotéricas muitos anos e de me haver abstido do sexo,
sendo casada, crê você que não haja salvação para mim?

O que sei é que você vai muito mal. É casada e rechaçou ao consolador de que nos falara
Jesus Cristo. Refiro-me ao Espírito Santo. De fato, o Espírito Santo está no sexo. Sabendo-
se maneja-lo, atinge-se a iluminação, mas você o odeia e nem sequer cumpre seus deveres
sexuais com seu marido. Ainda acha que vai indo bem? Recebeu informação de cunho
ocultista ou pseudo-ocultista, mas nada realizou. O Eu Pecador está muito vivo em você.
Reconheça-o, arrependa-se, estude nossos livros.

Faço trabalhos de todo tipo. Arrumo maridos alheios, faço vir gente à força, etc... e estou
muito bem economicamente, já que ganho muito dinheiros. Que teria a declarar a respeito?

A miséria no seu caso virá um pouco mais tarde, nesse ínterim, contente-se com os
sofrimentos morais que tem e que não são por certo muito agradáveis. Lembre-se que tem
um filho enfermo, atacado de epilepsia. Semelhantes enfermos são na realidade possessos
do demônio. Não o entende? Não quer entender? A sorte que a aguarda é o abismo e a
Segunda Morte.
CAPÍTULO 13 FEITIÇARIAS

Por ser aniversário de minha irmã, fui até a sua casa, onde não ia há bastante tempo, já que
ela somente aparecia por lá de oito em oito dias. Chegando lá, encontrei-a bastante enferma
sem saberem os médicos o que tinha. Ela me explicou que se sentia assim de noite e não
podia dormir por falta de respiração. Fazia já algum tempo que isso ocorria. Disse-me
também que quando queria ler certo livro esotérico que lhe havia emprestado, punha-se tão
mal que não conseguia lê-lo, a não ser que o invocasse e fizesse a Conjuração dos Sete que
eu tinha lhe dado.

Vendo-a tão enferma, nasceu do meu coração o ímpeto de tomar dois ovos e de limpá-la
com eles. Enquanto assim agia, recitava a Conjuração dos Sete que você nos tinha
ensinado. Em poucos minutos, ela sentiu-se melhor e pode respirar perfeitamente., Desejo
que me diga se agi direito e a que foi devido essa enfermidade?

Não há dúvida que os tenebrosos sabem atacar as pessoas que buscam o sendeiro da luz. As
potências das trevas vivem no mundo invisível. Elas vigiam e quando vêem que uma alma
tenta escapar de suas garras fazem de tudo para desviá-la, para afastá-la do caminho
luminoso. Você agiu muito bem curando a sua irmã. Não resta dúvida que o ovo, usado da
maneira que você usou, possui certo poder mágico maravilhoso que permite a eliminação
de certas larvas e fluídos malignos que se acumulam na atmosfera das pessoas, ocasionando
diversos mal-estares.

As pessoas que lêem estas linhas precisam conhecer a Conjuração dos Sete do sábio
Salomão. Este conjuro afugentou os tenebrosos que atacavam sua irmã. É bom que se
aprenda de memória esta conjuração a fim de se usá-la no momento em que dela se
precisar. Tomem nota deste conjuro que textualmente diz o seguinte:

CONJURAÇÃO DOS SETE

Em nome de Michael, que Jehová te mande e te afaste daqui, Chavajoth!

Em nome de Gabriel, que Adonai te mande e te afaste daqui, Bael !

Em nome de Raphael, desaparece ante Elial, Samgabiel!

Por Samael Zebaoth e em nome de Elohim Gibor, afasta-te Andramelek!

Por Zachariel e Sachiel Meleck, obedece ante Elvah, Sanagabril!

No nome divino e humano de Schaddai e pelo signo do Pentagrama que tenho na mão
direita! Em nome do anjo Anael! Pelo poder de Adão e Eva, que são Jot-chavah,
retira-te Lilith! Deixa-nos em paz, Nahemah!

Pelos santos Elohim e em nome dos gênios Cashiel, Sehaltiel, Aphiel e Zarahiel, ao
mandato de Orifiel, retira-te Moloch! Nós não te daremos nossos filhos para que os
devores!

Outro dia, voltei a sua casa com outro irmão gnóstico. Como a encontrei muito sombria,
juntos queimamos enxofre, incenso e mirra por toda a casa. Pusemos o pentagrama
esotérico que você havia magnetizado e fizemos cadeias chamando a todos os Mestres da
Fraternidade Branca para que nos ajudassem. Fiz bem?

As queimações são úteis para limpar a atmosfera das casas. O enxofre, por exemplo,
desintegra larvas; os outros há que se saber usá-los. Você devia queimar o enxofre por uns
nove dias seguidos para purificar a atmosfera da casa, limpando-a das larvas astrais.
Depois, continuar com os outros perfumes porque o incenso e a mirra são úteis, mas não se
misturam com o enxofre; são incompatíveis.

O conde Cagliosto invocava os quatro Santos ou os quatro Anjos que, situados nos quatro
pontos cardeais da terra, governam o destino dos seres humanos. Não há dúvida que o
conde Cagliostro usava também as queimações para isso. Oferecia louro ao gênio da luz
que vive no oriente, murta ao anjo do ocidente, incenso ao rei do norte e mirra ao rei do sul.
Em um caso grave, pode-se invocar estes quatro Santos, oferecendo-lhe seus perfumes
correspondentes e pedindo-lhes de coração a ajuda almejada.
CAPÍTULO 14 MEDICINA OCULTA

Mestre, que me diz você sob as curas à distância?

Constantemente, chegam-me cartas de diversos lugares do mundo solicitando tais curas.
Nós nos limitamos à medicina espiritual, indicamos a hora precisa em que podem nos
invocar, isto é, em que podem, concentrados, pensar em nós. É claro que nós assistimos aos
enfermos espiritualmente e algumas vezes até nos fazemos visíveis diante deles.

Comumente, instruímos no sentido de que acendam três fogos em determinada e
conveniente hora. Aconselhamos a por um copo com água diante desses três fogos.
Insinuamos ainda que, depois de uma meia hora de concentração em nós, bebam tal água. É
justamente nessa água que depositamos certas substâncias que ao serem levadas ao interior
do organismo costumam realizar curas maravilhosas.

Nos trabalhos de cura, cooperam vários Mestres tais como Paracelso, Hilarion, São Rafael e
outros mais. Nem sempre indicamos a concentração específica em Samael. Eu tenho muito
trabalho. Indicamos também qualquer outro dos Mestres da Medicina. Indicamos também
os enfermos tenham fé porque esta produz milagres. O Cristo já disse: Tende fé como um
grão de mostarda e movereis montanhas. A fé é um maravilhoso poder solar com o qual
podem ser realizados muito prodígios. Nosso sistema de cura espiritual não causa briga
com os doutores, cada um pode ter fé em nossos métodos e consultar no mundo o seu
médico.

Quaisquer enfermos podem ser curados através desses métodos?

Os Mestres da ciência curam o corpo vital, medicam-no e o resultado mais tarde é a cura do
organismo físico. Sem dúvida há enfermidades cármicas muito graves, resultado de mas
ações, cometidas em vidas anteriores. Quando o castigo é muito severo, a cura torna-se
impossível, porém os Mestres da Medicina assistem e tratam de aliviar o paciente.

Pode haver cura sem que haja necessidade da atenção médica?

Quando a pessoa não deve um carma muito grave, os Mestres da ciência podem curar o
enfermo, ainda que ele não consulte doutor nenhum.

Todas as enfermidades são cármicas?

Não há necessidade de se exagerar as coisas, cara senhorita. Nem todas as enfermidades são
de origem cármica, por isso muitos pacientes saram rapidamente com nossos
procedimentos psíquicos ou espirituais.

Poderá dizer-me se existe a enfermidade do mau-olhado?

Tenho de dizer-lhe que nas cidades morrem milhares de crianças devido ao mau-olhado.
Acontece que nos países supercivilizados, as pessoas não acreditam em tal doença e por
isso a mortandade aumente de maneira geral. Qualquer pessoa com força hipnótica
inconsciente, ao olhar um menino, fere violentamente seu corpo vital e o resultado não se
faz muito esperar. Em seguida surge na vítima grandes olheiras, vômito, febre, diarréia, etc.
Os médicos costumam diagnosticar infecção intestinal e receitam muitos antibióticos,
xaropes, etc. No entanto, as crianças ao invés de melhorar pioram e morrem.

Que se pode fazer são fortes passes magnéticos, de baixo para cima, sobre o rosto e
pálpebras do menino com o firme propósito de eliminar os fluídos vitais tenebrosos.
Convém acender um fogo, vela ou chama e ler às crianças a Conjuração dos Sete do sábio
Salomão tal como está escrita neste livro. Deve-se também benzer o menino enfermo na
fronte, no peito, sobre a cabeça e nas espáduas, enquanto se lê os quatro evangelhos.

Ler os quatro evangelhos é muito comprido, não se poderia abreviar alguma coisa?

Sim, senhorita. Podem ser lidas as bem-aventuranças com verdadeira fé para lançar um
fluído curativo suficientemente forte que desaloje os maus fluídos acumulados no
organismo do enfermo. Assim deverá se curar.

Existe então enfermidades causadas por feitiçaria?

O mundo está cheio disso, distinta senhorita. Posso citar inúmeros casos, mas antes de tudo
quero dizer-lhe que a primeiro coisa que se necessita é o diagnóstico exato; somente assim
se atinge a cura.

Infelizmente, são muito raros os curadores que sabem diagnosticar de verdade uma doença
ocasionada por feitiçaria. Vou citar um caso especial relatado pelo sábio Waldemar. Segue
entre aspas porque não me agrada ser adornado com plumas alheias, mas como é realmente
um caso sensacional, é bom que nossos leitores o conheçam:

Um dos casos mais interessantes de ciúmes vampirescos o experimentou o
investigador e ocultista francês Eliphas Levi (abade Constant) .

Durante sua permanência em Londres, Eliphas Levi travou amizade com um jovem duque,
cuja casa visitava quase que diariamente. Fazia pouco tempo que o duque tinha se casado
com uma jovem princesa francesa de extraordinária beleza, contudo o fizera contra a
vontade de sua família protestante, já que a jovem era católica praticante. O duque, como o
comprovou Levi, tinha levado durante muitos anos uma vida um tanto frívola, para não
dizer libertina, tendo por amante durante muito tempo uma jovem italiana, bailarina de
balé. No fim a abandonou já que na realidade amava apenas a sua esposa.

Certa tarde, enfermou a duquesa, motivo que a levou a acamar-se. Os médicos
diagnosticaram um princípio de gravidez, porém logo ficou demonstrado que a sua
debilidade devia ter outra causa. Apesar de o duque haver consultado os mais famosos
médicos de Londres, eles viram-se diante de um enigma. Foram empregados os mais
diferentes remédios sem êxito algum. Freqüentava o palácio do duque também um velho
abade francês que conhecia a princesa já de Paris. Esse ancião agradou-se de conversar com
Eliphas Levi especialmente de problemas metafísicos, pois ele também se interessava sobre
o tema há décadas e não apenas teoricamente.

Certa noite ficaram a sós no salão, pois o duque preocupado se fora para o quarto para ficar
ao lado de sua esposa enferma. Era uma noite fria e úmida. Fora, a célebre névoa londrina
ondulava empanando a luz dos lampiões. De repente, o abade agarrou uma das mãos de
Levi e disse com voz baixa: "Escute, querido amigo, desejaria falar de algo com você.
Posso confiar com sua inteira descrição?". Levi respondeu afirmativamente e o abade
prosseguiu: "Tenho todos os motivos para supor que a doença da duquesa não é natural.
Conheço a Mildred desde pequena e sempre foi uma garota mais saudável do que se possa
imaginar. Agora, torna-se lânguida e se debilita dia-a-dia; parece-me que está sendo
desangrada misteriosamente".

"Acredita você que se ache sob o influxo de algum poder obscuro? Que está em jogo algum
sortilégio?" perguntou Levi. "Posso confiar e muito em minha voz interna e por isso quase
me atreveria a dizer que nessa enfermidade há algo que não vai como deve. Queres ajudar-
me a romper o encantamento." "Com muito prazer", respondeu Levi. "Bem, em tal caso
não devemos perder mais tempo. Agradeceria que meia hora antes da meia-noite viesse ao
meu domicílio para uma conjuração conjunta. Tentarei interpelar o poder tenebroso. Caso
nos chegue uma resposta do além ..." Depois desta conversação, Eliphas Levi tomou um
coche e rapidamente transladou-se para sua residência, onde se lavou, se enfeitou e mudou
de roupa das cabeças aos pés, pois os espíritos da zona média, que era os que o abade
pretendia invocar, exigiam de seus conjuradores a mais escrupulosa limpeza. Também o
traje devia estar de acordo com sua natureza; não suportavam nenhum tecido animal pelo
que ficavam descartados os de lã, assim como os sapatos de couro ou de qualquer pele.

Como a casa do abade situava-se no nordeste, em Hampstead Heath, e Eliphas Levi vivia
na praça Russel, ou seja, que era considerável a distância entre ambos lugares, Eliphas Levi
teve de fazer seu exigente asseio com certa pressa, uma vez que queria estar lá no horário
combinado. Uns quarenta minutos antes da meia-noite chegou a Hampstead Heath. O abade
em pessoa, todo de branco, abriu-lhe a porta e o conduziu por uma elevada escalinata a um
aposento que se achava em um extremo do corredor do primeiro piso. Os olhos de Eliphas
Levi tiveram primeiro de acostumar-se com a obscuridade: chamazinhas azuladas e
trêmulas queimavam um incenso que cheirava a âmbar e a almíscar.

Nessa luz incerta, Eliphas observou uma grande mesa circular que se encontrava no centro
da habitação e plantado sobre ela o crucifixo invertido, símbolo do falo. Junto à mesa
estava um homenzinho delgado. O abade comentou: "É meu criado. Você já sabe que é
indispensável a cifra de três para estas conjurações. Começa você com a primeira
invocação". Este convite da parte do abade era mais que uma cortesia, pois as potências da
zona média poderiam enojar-se e vingar-se sobre o dono da casa, causando-lhe até a morte,
caso permitisse rebaixar a harmonia de sua esfera por um intruso incompetente. Ceder pois
a invocação ao amigo era mostra de que considerava a Eliphas como mestre de primeira
categoria na magia. Tal suposição era em verdade justificada. Se alguém podia executar
com êxito, com gesto desembaraçado e sem temor, com coração puro e uma vontade
fortalecida por numerosas provas, as cerimônias milenares da sagrada magia, era este
homem. Ele exercia no reino dos espíritos tanto domínio quanto no mundo das criaturas
encarnadas e adeptos.

Entre o véu de fumo, Eliphas estendeu a mão instintivamente à esquerda. Lá devia estar o
recipiente com água benta que devia ter sido recolhida em uma noite de plenilúnio de uma
cisterna, velando-se e orando-se sobre ela durante vinte e uma noites. Em seguida, fez uma
aspersão pelos quatro ângulos da habitação. O abade fazia às vezes de acólito e
movimentava o incensário ondulatoriamente. No fumo, começaram a formar-se figuras
estranhas e, ao mesmo tempo, pareceu-lhes que um frio, gelado, brotava do chão e chegava-
lhe até a ponta dos cabelos, dificultando-lhes a respiração. Eliphas Levi proferiu agora com
mais força as palavras de invocação. Subitamente, as paredes do quarto pareceram retirar-se
como se um abismo infinito e astral se abrisse na frente deles, ameaçando engoli-los.
Brilharam os esplendores de uma cintilantes luminosidade e os olhos se cobriram para não
ofender o espírito invocado com um olhar indiscreto.

Com régia voz, Levi perguntou a causa da enfermidade da duquesa Mildred. Não recebeu
resposta. As emanações de fumo ficaram espessas de tal modo que ameaçaram sufocar os
sentidos. Precipitando-se rumo a janela, Eliphas ouviu subitamente uma voz, a qual ainda
que forte e retumbante parecia sair do mais profundo de si mesmo e encher todo o espaço
de sua alma. O que a voz lhe gritou era tão espantoso que suas pernas se negaram a mover-
se e ficou como que petrificado no mesmo lugar onde se encontrava. Agora foi a vez do
abade se precipitar para junto da janela, porém suas mãos trêmulas, sem forças, não
conseguiram abri-la. O criado que assistira passivamente a invocação jazia desmaiado no
chão. Por fim, Eliphas saiu de sua paralisia e rompeu o cristal com o crucifixo, absorvendo
o ar fresco da noite com fruição em companhia do abade, especialmente ele que banhava
por assim dizer, sua cabeça febril na névoa úmida. Por todos seus nervos corria a espantosa
acusação que o misterioso espírito havia lançado com clareza inequívoca contra ele.
Quando por fim se recobrou, voltou para o quarto. O fumo tinha se dissolvido, mas a
lamparina seguia ardendo tenuemente. O abade palidíssimo contemplava a Eliphas com os
olhos dilatados e balbuciou: "Você é realmente culpado, meu amigo? Não posso
acreditar!".

"Você também ouviu a resposta do espírito?", perguntou Levi. O abade deixou cair a
cabeça, como que oprimido, num gesto de concordância. "Sim...", sussurrou apenas
perceptivelmente. Levi se manifestou com veemência: "Juro-lhe que tomei o símbolo com
mãos puras e que em minha vida jamais cometi um crime. Juro-lhe que não estou
manchado de sangue". Ao dizer estas palavras, aproximou-se mais da lâmpada de maneira
que o brilho dela caiu em cheio sobre ele. Espantado, o abade apontou com o dedo a
mandíbula e a peiteira da camisa de Eliphas. "Aí, olhe você mesmo no espelho...", disse
tomando a mão do amigo e conduzindo-o a um grande espelho de parede que pendia no
quarto contíguo. Ali, comprovou Eliphas um corte em sua barba com umas gotinhas de
sangue; também em sua camisa apareciam outras gotinhas. Devia ter se cortado ao fazer
apressadamente a barba... Assim, a resposta do espírito explicava-se perfeitamente: "Eu não
falo com alguém manchado de sangue".

Levi sentiu seu coração se aliviar de um enorme peso, não obstante o abade parecia mais
acabrunhado e tinha se deixado cair sobre um sofá, contraía os ombros convulsivamente e
escondia o rosto com as mãos, Levi tentou acalmar o ancião, porém ele o rechaçou dizendo:
"Trata-se da pobre Mildred, cada hora consome sua vida. Não fosse por isso, poderíamos
invocar o espírito de novo em três vezes 21 dias, com as devidas oferendas e orações ...
porém o tempo é demasiado, nesse ínterim Mildred morrerá". Levi não soube o que
responder e fechou-se em um denso silêncio que obrigou o abade a levantar-se e a andar
com passos vacilantes de um lado a outro da sala: "Custe o que custar, devo obter uma
resposta... a qualquer preço. Prometa, meu amigo, que não me abandonará!. Uma vigorosa
determinação lia-se na mirada do ancião e para tranquilizá-lo Eliphas respondeu: "Dou-lhe
a minha palavra. Ponho-me a sua disposição como mago. Como o objetivo ainda não foi
alcançado, mantenho a palavra dada". "Então, permaneça aqui, dentro de doze horas
efetuaremos outra conjuração; invocaremos os espíritos da zona baixa", disse o abade.
Eliphas sobressaltou-se. Teria o velho ficado louco? "Você... o que? Você? ... um filho da
Igreja quer entrar em contato com os espíritos infernais? Não, isso não está sequer na
intenção da devota duquesa. Renuncie a isso, não arrisque sua alma".
É ostensível que invocar demônio é magia negra. Resulta claro que a magia negra traz
fome, nudez, enfermidades e calamidades físicas e morais.

Havia tal glacial decisão nas palavras e gestos do abade que Eliphas sentiu que toda réplica
seria vã. Contra sua vontade, mais por lealdade à palavra dada, aceitou a solicitação do
amigo. Ficou como hóspede na casa. Depois da extraordinariamente fatigante e tensa
conjuração anterior, dormiu tão profunda e pesadamente que despertou tarde de manhã.

O dia foi passado com as devidas purificações e orações. De noite, Eliphas recebeu a roupa
apropriada para o serviço com o diabo, bem como os demais requisitos. Como já
manifestara antes, o abade não tomaria parte ativa na invocação. Somente o assistiria como
acólito, mas mesmo assim vestiu-se com a roupagem prescrita.

O que aconteceu após é algo que francamente e de maneira alguma quero transcrever
porque há responsabilidades na palavra. Neste caso é preferível calar porque o
silêncio é a eloquência da sabedoria. É notório que se alguém transcreve parágrafos
tenebrosos, converte-se em cúmplice do delito. Isto é semelhante a ensinar magia
negra às pessoas. Felizmente, os invocadores do presente relato não conseguiram
tornar visíveis e tangíveis os demônios invocados. A única coisa que conseguiram foi
fazer brotar de uma parede uma salamandra, pequena e inocente criatura do fogo.

O abade fazendo provisão de todas suas forças perguntou pela doença da duquesa.
"Batráquios" falou a salamandra com voz infantil e no mesmo instante desapareceu.
Eliphas viu então como o abade cambaleava e desabava no chão. Imediatamente tomou nos
braços seu magro corpo e o levou para o dormitório, onde despindo o ancião o pôs na cama,
indo logo buscar o criado para que trouxesse algum reconstituinte. Ao voltar, encontrou o
abade completamente restabelecido, mas sua aparência era a de um homem abatido, parecia
haver envelhecido muitos anos.

Obviamente, o abade estava fazendo esforços sobre-humanos para salvar a duquesa.

"Tudo inútil, a pobre Mildred haverá de morrer. Minha alma ..., ó minha alma... que quer
dizer batráquios?", exclamava com voz febril. "Apenas sei que é uma palavra grega que
significa rãs", respondeu Eliphas.

O criado não tardou a chegar com vinho e biscoitos, porém o abade repeliu todo alimento.
Eliphas tomou um pouco e tentou arrancar o amigo de sua desesperada letargia, mas foi
inútil sua pretensão em reanimá-lo. Com o coração oprimido retirou-se para sua moradia.
No dia seguinte, informou-se sobre como estavam o abade e a duquesa. Mildred ia cada vez
pior. Seu médico de cabeceira dava por certo seu óbito. Também o abade achava-se em
estado grave. Negava qualquer alimento e inicialmente não respondeu as perguntas do
amigo, depois manifestou sua intenção de por fim aos seus dias mediante a inanição.
Profundamente entristecido, Levi despediu-se, preocupando-se muito com as trágicas
conseqüências do pecaminoso conjuro. Durante as duas tardes seguintes, afundou-se outra
vez nos seus costumeiros estudos e enquanto lia o Enquiridion de Leão III deteve-se no
ponto no qual, através da chave de Trithenus, se decifrava do esotérico e cabalístico escrito
o seguinte: "Um apreciável encantamento maléfico é o da rã."
Abstemo-nos de entregar a fórmula secreta do sapo para não dar armas aos perversos
criminosos da magia negra.

Como um relâmpago, o trecho atravessou a mente de Eliphas. Sem fechar o livro pôs o
sobretudo e lançou-se através das ruas de Londres que iam sumindo no crepúsculo vesperal.
Por fim, achou uma carruagem e pareceu-lhe insuportável e longo o tempo que levou para
chegar ao palácio do duque. Rostos chorosos o receberam. Informaram-lhe: "... a duquesa
está em agonia. Já estão administrando-lhe os últimos sacramentos..."

"Eu posso salvá-la", exclamou Eliphas e afastando os espantados criados precipitou-se em
direção ao quarto de Mildred, onde achou o duque. Com a respiração ofegante, suplicou-
lhe: "Você me conhece o suficiente para saber que sou de confiança. Creia-me pois que não
se perdeu toda a esperança. Enquanto a duquesa viver não há porque se desesperar. Rogo
que me deixe a sós com ela e pelo amor de Deus não me pergunte nada ... tenha confiança
em mim". Ainda que atônito e confuso ao extremo, o duque acedeu ao desejo de Eliphas
pedindo aos presentes: um médico, um sacerdote e uma donzela de companhia, que
abandonassem a paciente. Uma vez só, Levi fechou a porta atrás de si e se aproximou do
leito da princesa. "Era o que supunha", murmuro ao ver Mildred sumida em uma espécie de
catalepsia com os olhos brancos. Seus lábios estavam roxos e respirava com suave estertor.

Imediatamente Levi pôs mãos à obra e começou a levantar o assoalho da soleira da porta,
porém a madeira resistiu aos seus trêmulos dedos. Sacou sua navalha de bolso, cuja folha se
rompeu no frenético intento. Finalmente e com força desesperada conseguiu levantar o
sarrafo. Sangravam-lhe os dedos e seu esforço tinha sido baldio ... Nada estava oculto ali.
Levantou os tapetes ... tampouco. Tornou a olhar a duquesa que respirava com dificuldade.
Reparou que sua mão esquerda pendia singularmente contraída para um lado. "A cama",
pensou e com a certeza de agora procurar no lugar certo, levantou a enferma de seu leito e a
depositou tão suave quanto pode sobre um sofá que estava contra a parede. Dedicou-se a
seguir com uma crescente excitação a revolver cobertores e almofadas, mas nada ... nada de
novo.

Tirou o colchão e o desfez, tateou, apalpou, remexeu sua crina ... e... seus dedos tropeçaram
com um objeto mole, esponjoso, agarrou-o e retirou-o. Com efeito era aquilo que buscava...
precipitou-se para fora do quarto. Provou ao duque em breve explicação o problema e este
colocou a sua disposição uma carruagem que o transportou com a maior rapidez a sua casa.

Chegando lá, pôs se a executar uma nova tarefa, a de queimar em chamas de pez e enxofre
a besta dos infernos, seguindo ao pé da letra a prescrição de Enquiridion.

Abriu a janela do quarto para o mau cheiro sumir dele. Oprimido por um enorme cansaço,
lançou-se vestido como estava na cama e num instante sumiu em profundo sono.

No dia seguinte, foi recebido como um salvador no palácio do duque. De maneira de causar
pasmo e absolutamente incompreensível para os médicos, o estado de saúde da jovem
duquesa havia melhorado a tal ponto que se podia falar de uma franca superação da crise. A
própria Londres, no dia 28 de outubro de 1865, impressionou-se com a sensacional notícia
de que a Diva do balé, Maria Bertin, tinha falecido repentinamente sem enfermidade
alguma. Esta não foi a única notícia. Poucas horas depois era também arrebatada pela morte
uma parente próxima do duque, uma velha solteirona que tinha sido apaixonada inimiga de
Mildred e que em vão tentara impedir o matrimônio do duque com a princesa católica.
FRITZMAC
Artur Azevedo e Aluísio Azevedo

Revista fluminense de 1888, em prosa e verso, em um prólogo, três atos e
dezessete quadros

A
Luís Braga Júnior
O.D.C.

PERSONAGENS

MADEMOISELLE FRITZMAC
AMOROSA
A AVAREZA
A PACIÊNCIA
UMA SENHORA
DONA INÊS DE CASTRO
O AMOR
A LUXÚRIA
A LIBERDADE
O CONGRESSO DOS FENIANOS
A SOBERBA
A DILIGÊNCIA
OUTRA SENHORA
A GRÃ-VIA
A INVEJA
A TEMPERANÇA
UMA CRIADA
UM ASPIRANTE DA MARINHA
A ÉPOCA
O HIGH-LIFE
UMA MULATA
PEKY
A IRA
A CARIDADE
UMA PRETA
A SEMANA
A PREGUIÇA
A CASTIDADE
A HUMILDADE
O BARÃO DO MACUCO
FRITZMAC, alquimista
UM CREDOR
O CLUBE DOS FENIANOS
O ENTRUDO
O PADRE-SOLDADO
TIRO-E-QUEDA, capoeira
UM CONVIDADO
UM JORNALISTA
A GULA
UM SOLDADO DE POLÍCIA
O CHEFE DOS COELHOS
UM LICURGO
SEU ZÉ DO BECO
FONSECA-TCHING
ANTÔNIO JOSÉ (personagem invisível)
OUTRO JORNALISTA
O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS
O CARNAVAL
O PROJETO E A LEI
O VISCONDE, que dá o baile
UM ARTISTA
UM DILETANTE
ANTUNES
O COMENDADOR VILA ISABEL
OUTRO CONVIDADO
UM ENGENHEIRO
O CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA
TRIPAS AO SOL, desordeiro
OUTRO CONVIDADO
TSING-TSING-SODRÉ
O GALO
UM VENDEDOR DE CANIVETES
OUTRO CONVIDADO
OUTRO JORNALISTA
UM CAIXEIRO
O TIGRE
OUTRO VENDEDOR DE CANIVETES
OUTRO CONVIDADO
OUTRO JORNALISTA
UM EX-ATOR
UM PADRE
O JACARÉ
UM HOMEM
OUTRO VENDEDOR DE CANIVETES
UM PRETO
UM CRIADO
UM MEDROSO
O LEÃO
OUTRO HOMEM
OUTRO PRETO
O DOUTOR GAZÉTA
OUTRO ENGENHEIRO
A ONÇA
O CONSELHEIRO JACÓ
SERAPIÃO
OUTRO CONVIDADO
UM ESGRIMISTA
OUTRO JORNALISTA
OUTRO LICURGO
UM ITALIANO
UM EMPRESÁRIO LÍRICO
UM DIPLOMATA

Pessoas do povo, peixes, coelhos, flores, mendigos, vagabundos,
convidados, jornalistas, artistas líricos, soldados, etc.

Nesta Edição não se fizeram as alterações exigidas pelo Conservatório
Dramático, pela Polícia e pelas inconveniências de cena.

PRÓLOGO

Quadros 1, 2 e 3

Laboratório sombrio e diabólico. Ao levantar o pano, o velho Fritzmac
está ocupado nalgum trabalho de alquimia. Ao ver o público, ergue-se,
aplica bem a vista, deixa o que está fazendo e vem ao proscênio. Música
em surdina na orquestra desde o levantar do pano até a entrada de Pero
Botelho.

CENA I

FRITZMAC, depois PERO BOTELHO

[FRITZMAC] -

Meus senhores, eu sou Fritzmac, o alquimista:
A falta de outro artista,
O prólogo farei da pândega revista.
Desgostoso da terra,
Onde sofri dos homens dura guerra,
Ao serviço me pus
Do bom Pero Botelho,
Diabo assaz conhecido,
Bon vivant, divertido,
Que bons cobres me dá, me trata por meu velho,
No conceito me tem do rei dos nigromantes,
E em breve - ele é que o diz - vai dar-me uma grã-cruz,
De ouro de lei, rodeada de brilhantes!
Um presente de truz!

(Pequena pausa.)

Do Botelho citado,
Um capricho engraçado
Vai ser, senhores meus, o ponto de partida
Da frívola comédia a que ides assistir.
Quando a revista, por desenxabida,
Vos obrigue a dormir...

(Acelera-se o movimento da música.)

Mas que ouço!! A concluir sou forçado de chofre!
Vem barulho do chão... sinto cheiro de enxofre!

(Endireitando aqui e ali algum objeto.)

É o patrão!
Atenção!
Vai abrir-se o alçapão!
Verão!

(Música forte. Pero Botelho surge do alçapão, acompanhado de labaredas.
Cessa a música.)

PERO BOTELHO - Não te enganes, Fritzmac, sou eu. (Consultando o
relógio.) Meia-noite: é a minha hora, meu velho. Não sou desses demônios
de hoje, que se enfaram de modernismo, e desdenham os costumes dos
nossos avós. É justamente por isso que te procuro, amigo.

FRITZMAC - Amigo, diz Vossa Alteza muito bem, porque nós, os homens da
ciência, nada mais somos do que espíritos rebeldes, que se voltavam,
como vós outros, contra as imposições de Deus. (Pero Botelho pula e
estremece.) Desculpe... sempre me esqueço de que não devo pronunciar o
nome deste sujeito em presença de Vossa Alteza. (Vai buscar um banco e
oferece-o a Pero Botelho.) Deixe lá falar o velho Doutor Fausto, sábio
carola e freguês de missas: a ciência é e sempre foi inimiga da Bíblia.
Sente-se Vossa Alteza.

PERO BOTELHO (Sentando-se.) - A prova ai está em Galileu, que pregou uma
boa peça a Josué, e em Franklin, que desmoralizou o raio... Mas tratemos
do objeto que aqui me trouxe.

FRITZMAC - Sou todo ouvidos.

PERO BOTELHO - Há bastante tempo vivo preocupado com a capital de um
vasto império americano, que tem sabido resistir à minha influência.

FRITZMAC - Vossa Alteza graceja.

PERO BOTELHO - Não, meu velho. A capital de que te falo é o meu
desespero. Conheces perfeitamente o nosso esplêndido sucesso sobre o
antigo mundo pagão. Babilônia excedeu à nossa expectativa. Sodoma e
Gomorra foram duas tetéias. Nínive, aquilo que tu sabes. O Egito foi
nosso de uma ponta a outra! Depois Roma... Ah! Roma! Roma!... Tão cedo
não apanhamos outro Nero, nem outro Calígula... Aquilo é que era ouro de
lei! Estendemos depois o nosso domínio por toda a Europa... Paris,
Londres, Berlim, Viena, São Petersburgo, Madri, todas as capitais,
enfim, de certa ordem, foram a pouco e pouco cedendo à nossa influência.
Conseguimos plantar o nosso reinado em todas elas! Mas, meu velho, a
América... (Abana a cabeça.)

FRITZMAC - A América não se tem explicado.

PERO BOTELHO - É o termo. Ainda lá para o Norte não temos ido de todo
mal. New York promete, isso promete. Mas o Brasil...

FRITZMAC - O Brasil? Conheço. Um vasto território ocupado pelos
portugueses.

PERO BOTELHO - Isso é história antiga. O Brasil tornou-se independente
há sessenta e tantos anos. E o Rio de Janeiro, a capital desse vasto
império, é o meu cavalo negro.

FRITZMAC - Deveras?

PERO BOTELHO - Imagina que não tem mordido nem a pontinha da isca que
lhe atiro com tanta insistência!

FRITZMAC - É incrível!

PERO BOTELHO - Despejei no Rio de Janeiro todos os elementos corrosivos
que pude apanhar na Europa. Debalde! A tal cidadezinha resiste, e tem se
conservado...

FRITZMAC - Pura? Pois é possível que haja ainda no mundo uma cidade
pura?

PERO BOTELHO - Pura, pura, não digo que o seja. Não exageremos. Mas está
tão longe da perfeição européia, como da China. Um ou outro pândego
paga-me sobejamente o seu dízimo: mas não calculas que ingenuidade! que
sancta simplicitas! Amam ainda e choram legítimas lágrimas. Há
dedicação, há o que a moral chama bons exemplos; filhos modelos, mães
extremosíssimas, quase santas, amigos desinteressados, e, parece
incrível! há brio, há caráter, há honra!... Há lá quem dê a alma ao céu
por uma questão de pundonor!... Para encurtar razões: já houve quem
dissesse que a caridade se naturalizou fluminense!

FRITZMAC - É com efeito uma capital sui generis.

PERO BOTELHO (Erguendo-se, com resolução.) - Pois bem, estou resolvido a
ocupar-me seriamente com aquilo, a nivelar o mundo. Não tolero
semelhante exceção... E como estou convencido de que só com o auxilio da
ciência poderei realizar o meu plano de combate, venho ter contigo, meu
velho, que és o meu sábio. Serve-me, e ainda mais depressa apanharás
aquilo que te prometi.

FRITZMAC - Já sei: a tetéia. Estou às ordens de Vossa Alteza.

BEBO BOTELHO - Quero que reduzas a um indivíduo só, os sete pecados
mortais. Compreendes que é muito mais prático e mais cômodo enviar uma
só criatura ao mundo, em vez de mandar para lá sete tipos que se
prejudicariam uns aos outros, e acabariam por neutralizar mutuamente o
que fizessem.

FRITZMAC (Que tem estado a pensar, coçando a cabeça.) - É... o plano
não é mau...

PERO BOTELHO - E é exeqüível?

FRITZMAC - Homem, Alteza, para falar francamente, não posso afiançar a
exeqüibilidade do plano. Até hoje tenho feito apenas algumas
transmissões da alma de um corpo para outro, eletrizado diversos
cadáveres e dado vida a meia dúzia de seres inanimados. Mas isto de
reunir num só corpo nada menos de sete espíritos, e que espíritos!

PERO BOTELHO - Recuas?

FRITZMAC - É muito fácil com dois indivíduos fazer sete... Para isso nem
é necessário a ciência... Mas de sete fazer um... Enfim, nada se perde
por tentar.

BEBO BOTELHO - Bravo! E quando tencionas dar começo ao teu trabalho?

FRITZMAC - Imediatamente.

BEBO BOTELHO - Nesse caso, mãos à obra! Vou invocar os sete pecados
mortais!

Canto

Eu ordeno com modo arrogante,
E para isso não prego editais,
Que apareçam aqui neste instante
Os meus sete pecados mortais!

(Abre-se o fundo, deixando ver uma pequena gruta de fogo. Os sete
pecados mortais estão alinhados e em linha descem ao proscênio. Fecha-se
o fundo.)

CENA II

FRITZMAC, PERO BOTELHO, os SETE PECADOS MORTAIS

CORO DOS PECADOS MORTAIS

- Pero Botelho, ó grande Alteza,
Cá estamos nós!
Obedecemos com presteza
À tua voz,
Rival de Belzebu,
Que queres tu!

(Continua a música em surdina na orquestra.)

PERO BOTELHO - Aí tens os sete pecados mortais, Fritzmac. São sete
raparigas de se lhes tirar o chapéu.

FRITZMAC - Estão bem dispostas, estão... principalmente aquela...
(Aponta para a Gula.)

PERO BOTELHO - Já as conhecias?

FRITZMAC - Apenas de tradição.

PERO BOTELHO - Meninas, apresentem-se ao Doutor Fritzmac. (À Avareza.)
Rompa você a marcha. (Os Pecados executam um pequeno movimento, e vão
passando pela frente de Fritzmac sucessivamente, á medida que se
apresentam.)

A AVAREZA -

- Sou a Avareza sórdida,
Que a força deletéria
Do pranto e da miséria
Desenvolvendo vai;
Para os males do próximo
Apática não olho,
Porque tudo aferrolho
Que nestas unhas cai.

FRITZMAC - Faz muito bem. Quem para adiante não olha atrás fica.

A LUXÚRIA -

- Eis a luxúria, eis o pecado
Que mais desgraças tem causado,
E eternamente as causará!
Enquanto, ao pé do masculino,
No mundo houver o feminino,
O meu domínio durará.

FRITZMAC - Também não sei por que fizeram disto um pecado...

A INVEJA -

- Eu sou a vesga inveja; invejo a toda a gente;
Eu mordo-me, a chocar esta paixão ruim;
Quando, por invejar, eu me sinto contente,
Invejo a própria Inveja, invejando-me a mim.

FRITZMAC - Bom; esta tem muito em que se ocupar...

A GULA -

- A Gula sou; sou, e não vejo
Em que um pecado possa .....

FRITZMAC - Nem eu.

A GULA -

- Não alimento outro desejo
Senão comer, comer, comer...

FRITZMAC - Este diabo abriu-me o apetite!

A IRA (Que faz fugir Fritzmac.) -

- Sumam-se! raspem-se,
Que eu sou a Ira!
Tudo me inspira
Raiva e furor!
Morro de cólera
Se não espanco,
Se não desanco
Seja quem for!

FRITZMAC - Vá desancar o boi! (A Soberba passa sem dizer nada.) Então a
menina não solta a sua piada? Quem é?

A SOBERBA - Não tenho que lhe dar satisfações! (Passa.)

FRITZMAC - Safa! é malcriada, é.

PERO BOTELHO - Pudera! é a Soberba...

FRITZMAC - Ah! (Vendo passar a Preguiça.) E esta, que mal se arrasta?

A PREGUIÇA (Com voz muito descansada.)

- Eu sou a Preguiça; não há neste mundo
Coisinha melhor do que o dolce far niente.
Eu vivo deitada de papo pra cima,
E tenho preguiça de tudo e por tudo.

FRITZMAC - Perdão, mas esses versos...

PERO BOTELHO - Não rimam: ela teve preguiça de rimá-los. Bem, meninas,
entretenham-se a ver esses bibelôs da nigromancia. (Os Pecados formam
grupos ao fundo, examinando uma coisa ou outra. Pero Botelho vai ter com
Fritzmac.) Anda, trata de me reduzir sete raparigas a um rapaz bem
sacudido e esperto.

FRITZMAC - Um rapaz? Aí é que Vossa Alteza está na tinta.

PERO BOTELHO - Como assim?

FRITZMAC - Pois eu posso lá fazer um homem de sete mulheres!

PERO BOTELHO - Por quê?

FRITZMAC - Falta muita coisa. Não posso dispor de certos elementos dos
quais nenhuma destas senhoras dispõe... a barba, por exemplo.

PERO BOTELHO - Pois arranja uma mulher, com um milhão de raios! Pode ser
até que lucremos com a troca! Uma mulher vale por vinte homens, e o que
ela não alcançar, nem eu mesmo conseguirei! Que seria de mim se não
fosse a mulher?

FRITZMAC - Bom, comecemos o serviço. Vou metê-las todas naquela
caldeira, que foi um presente de Vossa Alteza, e que tem sempre fogo.

PERO BOTELHO - Ah, sim! a caldeira de Pero Botelho; mas provavelmente
resistem.

FRITZMAC - Resistem? Boas! E o hipnotismo?! (Pero Botelho mostra pela
cara que não sabe o que é.) Uma ciência moderna. (Vai buscar uma escada
de mão, que encosta a uma cadeira, ligada a uma retorta. Depois vai aos
Pecados, faz alguns passes magnéticos e as raparigas ficam imóveis.) Vê
Vossa Alteza? Estão prontas a obedecer à minha vontade!

Canto

[FRITZMAC] -

- Vamos lá, senhoras minhas.
Sem fazer oposição;
Entrem todas direitinhas
Para aquele caldeirão!

PERO BOTELHO -

- A fazer um simples gesto,
Tudo alcança um sabichão!
As pequenas, sem protesto,
Vão entrar no caldeirão!

OS PECADOS -

- Que diabólica artimanha!
Que esquisita sensação!
Sinto que uma força estranha
Vai me pôr no caldeirão!

Juntos

FRITZMAC - Vamos lá! senhoras minhas! etc.

PERO BOTELHO - A fazer um simples gesto, etc.

Os PECADOS - Que diabólica artimanha! etc.

(Continua a música na orquestra. Fritzmac, sempre a fazer passes
magnéticos, obriga os Pecados a entrarem para a caldeira. Eles o fazem a
contra gosto. A Preguiça é a última.)

PERO BOTELHO - Agora me lembra. Essa não é lá precisa. No Rio de Janeiro
o que não falta é preguiça.

FRITZMAC - Deixe-a ir... agora é maçada desipnotizá-la. Quoci abundat
non nocet. (Empurrando a Preguiça.) Vamos! vamos! mova-se! ... (Estão
todos os Pecados no caldeirão.)

CENA III

FRITZMAC, PERO BOTELHO

PERO BOTELHO - És um homem extraordinário!...

FRITZMAC - Ponha de quarentena os seus elogios, Alteza: quem sabe se,
com tudo isto, nada mais consigo do que fazer um enorme ensopado?

PERO BOTELHO - Não me digas.

FRITZMAC (Trepa na escada, debruça-se sobre a caldeira, e começa a
mexê-la com uma enorme colher de pau.) - Oh! oh! como a gorducha
esperneia! Só o caldo que aquilo dá! A Ira como esbraveja! A Preguiça
ainda está viva... tem preguiça até de morrer!

PERO BOTELHO - Que vais fazer dessa sopa?

FRITZMAC - Esta sopa, quando estiver completamente líquida, passará por
essa retorta, e irá depositar-se naquele reservatório. Dali é que há de
sair a mulherzinha.

PERO BOTELHO - E quanto tempo isso dura?

FRITZMAC - Uns cinco meses talvez.

PERO BOTELHO - Julguei que a coisa fosse mais rápida. Tenho lá paciência
para esperar tanto tempo!

FRITZMAC - Oh! Alteza! o fogo, por mais forte que seja, não terá mais de
três mil graus de calor especifico.

PERO BOTELHO - No mundo, sim, mas no Inferno tenho fogo superior a
trinta mil graus!

FRITZMAC - Ah! com esse fogo tudo se arranjava em alguns minutos.

PERO BOTELHO - Pois espera, vou, aplicar o fogo do inferno ao fundo da
caldeira. (Solta um assovio e formam-se grandes chamas vivas debaixo da
caldeira.)

FRITZMAC (Subindo á escada.) - Xi! Fogo viste lingüiça! Nem sinal de
osso existe já! Foi mais rápido que um raio! A sopa escorreu toda!

PERO BOTELHO - Quando teremos a nova criatura?

FRITZMAC - Não se demora muito. Só o tempo necessário para que o caldo
passe pelos canais competentes, distribua as respectivas moléculas e
esfrie de todo.

PERO BOTELHO - Bom!

FRITZMAC (Que tem ido examinar o aparelho.) - Vai muito bem; não temos
que esperar mais do que alguns minutos. (Apalpa o reservatório.) Está
quase frio. Não tarda aí!

PERO BOTELHO - Deve ser completa essa mulher! Um ente feito da infusão
de todos os meus pecados! (Ameaçando.) Ah, Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro! agora juro que não zombarás do poder do Diabo! Hás de
pertencer-me!

FRITZMAC (Destapado o reservatório.) - Pronto! (Forte na orquestra. Sai
uma mulher. Pero Botelho e Fritzmac dão-lhe a mão para descer.)

CENA IV

FRITZMAC, PERO BOTELHO, a MULHER

PERO BOTELHO (A Fritzmac.) - Como é linda e como estou contente! Amanhã
terás a grã-cruz, meu velho!

FRITZMAC - Que perfeição de mulher!

Canto

A MULHER -

- Quem sou?
Em que lugar estou? (Como se lembrando.)
Ah!
Tudo me lembra já!

Tango

Sinto todos os pecados
Dentro de mim;
Inda não houve no mundo
Mulher assim!
Sou avarenta,
Sou preguiçosa,
Sou rabugenta,
Sou invejosa,
Irosa,
Gulosa,
Vaidosa.
Uma mulher completa enfim!

FRITZMAC -

- Ai, meu amor, como és bonita!
Estão meus olhos cativados!

PERO BOTELHO -

- O peito meu de amor palpita!
És realmente os meus pecados!

OS TRÊS -

- Sou avarenta, etc.
É avarenta.

PERO BOTELHO - Bom, acompanha-me. Vou confiar-te uma missão delicada.
Mas agora me lembro: é preciso batizar esta pequena. Ela não há de ter
sete nomes.

FRITZMAC - Fui eu que a fiz. Nada mais justo que ter o nome do pai.

PERO BOTELHO - Apoiado: chamar-te-ás Fritzmac. Madame ou Mademoiselle
Fritzmac, à vontade. Vamos! Adeus! (Mesura de Fritzmac.)

A MULHER - Vamos! (Sai, levada por Pero Botelho.)

FRITZMAC (Indo. gritar ao bastidor.) - Não vá Vossa Alteza esquecer-se
da tetéia!

CENA V

FRITZMAC, só

[FRITZMAC] - Uma grã-cruz! uma grã-cruz! Isto era caso para um
viscondado, pelo menos! Mas não é que o tal serviçozinho prostrou-me?
(Boceja.) Tenho sono... vou me deitar... e com a consciência de não
haver perdido o meu dia. (Sai.)

CENA VI

O AMOR [só]

Depois que Fritzmac se retira, a cena fica só, por alguns momentos. Há
um forte na orquestra, um armário transforma-se numa gruta florida, e
sai de dentro desta o Amor. Continua a música.

[O AMOR] -

- Ao ver surgir esta figura,
Que há tantos séc'los a pintura
Vulgarizou,
O espectador menos esperto
De si pra si logo decerto
Disse quem sou.
Mas, pelo todo, me parece
Que esta figura não conhece
Ali o senhor...

(Aponta para um espectador qualquer.)

Se bem que o caso seja raro,
Eu, pelas dúvidas, declaro
Que sou o Amor.
Já percorri bem mau caminho,
Já fui feroz, já fui daninho,
Já fui fatal;
Mas hoje em dia só patetas
Podem temer que as minhas setas
Lhes façam mal.
Não é, por Vênus! a vontade
De atormentar a humanidade
Que aqui me traz:
Venho, contente e petulante,
Desempenhar uma importante
Missão de paz.
(Dirigindo-se para o fundo.)
Vinde, olá! virtudes magas!
Preciso do auxílio vosso!

(Ao público.)

Ides ver que eu também posso
Invocar nas horas vagas...

(Música. Abre-se o fundo, e aparece um templo de ouro e luz. As sete
virtudes opostas aos sete pecados mortais aparecem abraçadas, e
abraçadas descem ao proscênio, onde se desentrelaçam.)

CENA VII

O AMOR, as SETE VIRTUDES, depois AMOROSA

CORO DAS VIRTUDES -

- Aqui estão, muito bem postas,
Aqui estão, sem mais nem mais,
As virtudes opostas
Aos pecados mortais.

PRIMEIRA VIRTUDE - Eu sou a Caridade.

SEGUNDA VIRTUDE - Eu sou a Castidade.

TERCEIRA VIRTUDE - Eu sou a Humanidade.

QUARTA VIRTUDE - A Liberalidade.

QUINTA VIRTUDE - A Temperança.

SEXTA VIRTUDE - A Paciência.

SÉTIMA VIRTUDE -

- E a Diligência,
Que não descansa!
Se me encarrego
De uma incumbência,
Aquilo é zás!
Trás!
Nó cego!

TODAS

- Zás!
Trás!
Nó cego!

A DILIGENCIA - Vamos! vamos, Amor! que desejas? para que nos invocaste?
Dize! dize depressa, que não há tempo a perder!

A PACIÊNCIA - Para que tanta pressa? Temos multo tempo. Quem corre
cansa.

A LIBERALIDADE - Cala-te, Paciência, já começas! Dize o que desejas,
Amor.

O AMOR - Serei breve. Trabalha neste laboratório um mágico, doutor ou
coisa que o valha chamado Fritzmac, que se acha ao serviço de Pero
Botelho.

TODAS (Benzendo-se.) - Credo!

O AMOR - Pero Botelho quis enviar ao Rio de Janeiro os sete pecados
mortais; não é preciso que eu vos diga com que intenções. Receando que
sete criaturas não dessem boa conta do recado, porque se estorvariam
mutuamente, incumbiu Fritzmac de reduzir as sete a uma só, por meio de
misteriosos processos de alquimia. Pois bem: eu, o Amor, desejo opor um
poder a esse poder... desejo extrair das virtudes opostas aos sete
pecados mortais uma criatura que faça guerra à outra e lhe inutilize os
planos. Para isso, valho-me do próprio laboratório do diabo, e não
empregarei, como ele, o fogo do céu, mas o do amor, pois, como sabeis, o
amor tem fogo.

A CASTIDADE - Oh! (Tapa a cara.)

O AMOR - Perdoa, Castidade. (Beija-lhe a mão.)

A LIBERALIDADE - Se for preciso fazer alguma despesa, cá estou eu.

O AMOR - Não, formosa Liberalidade: o Amor tudo arranja de graça. Muito
obrigado. (Beija a mão á Liberalidade.)

A CARIDADE - Estamos prontas para quanto quiseres.

A PACIÊNCIA - E pelo tempo que entenderes.

O AMOR - Ah, ah! Fritzmac, vais ver que o Amor é mais feiticeiro que tu!

Canto

Mas agora reparo: trazeis flores...
Muito bem!
O vosso contingente, meus amores,
A propósito vem.

Rondó

Doce Humildade, na caldeira lança
Essas gentis violetas belas
Dá-me essas rosas, Temperança;
Perdoa se te obrigo a desfazer-te delas.
Lá dentro atira, Liberalidade,
Os teus esplêndidos lilases,
E tu, desfaz-te, ó Caridade,
Do amor perfeito, a flor que no teu seio trazes,
Essa camélia, ó cândida Paciência,
Lá da caldeira põe no fundo;
Dê-me o seu cravo a Diligência,
E dê-me a Castidade um lírio pudibundo.

(As Virtudes obedecem á proporção que canta o Amor Todas as flores têm
passado para a caldeira.)

A DILIGENCIA - Vais água-flórida fazer?

O AMOR - Vão ver! vão ver! ...

(Bate com a seta na caldeira, e esta desaparece, deixando ver Amorosa.)

TODAS - Oh!

O AMOR - Filha do Amor e das Virtudes; chamar-te-ás Amorosa. Vem
comigo... vou dar-te as minhas instruções. Urge sair deste lugar
maldito. Minhas filhas, vamos!

TODAS - Vamos!...

CORO GERAL -

- Oh, que linda e bela fada
Engendrou este fedelho!
Ai, que peça bem pregada
Ao Senhor Pero Botelho!
(Saem correndo.)

[(Cai o pano.)]

ATO PRIMEIRO

Quadro 4

O Largo da Lapa. Juntos a uma casa, um cabide na parede, uma esteira no
chão, um baú, uma vela espetada no gargalo de uma garrafa; sobre uma
cama de ferro, o Credor fuma tranqüilamente e lê um jornal. Muitas
pessoas do povo o rodeiam com curiosidade.

CENA I

O CREDOR, PRIMEIRO e SEGUNDO CURIOSOS, PESSOAS

DO POVO, depois um POLÍCIA

CORO -

- Oh, que coisa esquisita!
Estaremos no mundo da lua?!
O riso nos excita
Ver um tipo morando na rua!
Ah! ah! ah! ah! ah! ah!
Esta agora não é má!

O CREDOR -

- Paguei na Rua do Lavradio
Por mês de casa trinta mil réis;
Mas hoje o belo do senhorio
Não me incomoda por aluguéis,
Porém
Eu não lhe exijo reparações,
Pois tem
Tudo na vida compensações.

CORO - Oh, que coisa esquisita! etc.

O CREDOR - Riam-se! Estou perfeitamente aqui! A casa não pode ser mais
ventilada.

PRIMEIRO CURIOSO - Mas diga-nos, por que está o senhor aí deitado?

O CREDOR - É muito simples: tenho um devedor que mora aí defronte, e não
há meio de apanhar-lhe vintém. Como o tenho procurado um ror de vezes,
sem nunca o encontrar em casa, resolvi estabelecer aqui o meu domicílio.
Desafio-o a que me escape!

PRIMEIRO CURIOSO - E se o homem pagar?

O CREDOR - Se pagar, mudarei de residência. Morarei defronte de outro
devedor. Irei para a Rua do Carmo. É um meio de cobrar dívidas e morar
de graça.

SEGUNDO CURIOSO - Que caradura!

O CREDOR - Eh! lá! não insulte um homem que está em sua casa. Trouxe a
minha cama, o meu cabide, o meu baú de roupa e uma vela, para ler um
pouco antes de dormir. Com este gás, não há meio de enxergar as letras.

PRIMEIRO CURIOSO - E se chover?

O CREDOR - Já encomendei um toldo. O tempo está seguro. Espero que não
chova antes que ele fique pronto.

SEGUNDO CURIOSO - Mas isto é proibido!

O CREDOR - Proibido? Mostre-me a lei que proíbe ao cidadão viver e
dormir na praça pública. Na praça pública o que não se pode é fazer
discursos políticos, isso sim. Mas dormir? Ora viva, meu amigo!

SEGUNDO CURIOSO - A polícia catrafila quem não tem domicilio certo.

O CREDOR - Mas eu tenho-o, que diabo! É este... Largo da Lapa, casa sem
número, nem portas, nem janelas, nem teto, nem telhado, nem senhorio.
Uma casa que não precisa de clarabóia.

SEGUNDO CURIOSO - Isto nunca se viu! (Entra um polícia.)

O CREDOR - Viu-se em Atenas. Havia lá um Fulano Diógenes, que passava a
vidinha na rua, dentro de uma pipa. Ele trazia uma lanterna; eu trago um
recibo. Ele andava à procura de um homem; eu também, para ver se apanho
o meu dinheiro. Somos ambos filósofos.

O POLÍCIA - Levante-se, retire-se, ao contrário vai para o xadrez.

PRIMEIRO CURIOSO - Onde também não pagará aluguel.

TODOS - Apoiado! Fora! Fora dai! É um abuso! etc. (Obrigam o Credor a
levantar-se no meio de grande algazarra.)

O CREDOR - Não há liberdade neste país! Não pode um homem estar a gosto
em sua casa!...

TODOS - Fora! fora!...

O CREDOR - Aos cães concede-se tudo... Podem dormir na rua... podem até
fazer alguma coisa mais... e eu não tenho o direito de...

O POLÍCIA - Sabe que mais? Venha explicar-se na Estação.

O CREDOR - E a minha mobília?

TODOS - Vá! Vá! Nós levamos tudo isto! (Cada um toma um dos objetos, e
saem todos, fazendo grande algazarra.) Vamos à Estação! Vamos! etc.

CENA II

ANTUNES, o BARÃO DO MACUCO, entrando cada um do seu lado

O BARÃO - Não me engano... é seu Antunes!

ANTUNES - O Barão do Macuco! Não sabia que estivesse na Corte!

O BARÃO - Há quinze dias. Estou hospedado ali no Freitas Hotel.

ANTUNES - Ah, sei... abriu-se há pouco tempo. É um belo edifício.
Embirro é com o nome: por que Freitas Hotel e não Hotel Freitas?

O BARÃO - Freitas Hotel entra melhor no ouvido. Nisto de nomes, um pouco
de estrangeirice não faz mal. Nós temos, por exemplo, o Hotel do Caboclo
(que é onde eu me hospedava antes de ser Barão); não era melhor Caboclo
Hotel?

ANTUNES - Ah, sim... Caboclotel... caboclotel... Até parece inglês.
Pois, Senhor Barão, encontra-me muito aborrecido da vida.

O BARÃO - Por que, homem de Deus?

ANTUNES - Imagine que eu tinha (tinha e tenho) um bilhete inteiro da tal
grande loteria de Pernambuco.

O BARÃO - Saiu branco. Console-se comigo, que tinha (tinha e já não
tenho) não um, mas três bilhetes, e foram sessenta mil réis deitados
fora.

ANTUNES (Num tom de profunda tristeza.) - Pois eu tirei dois contos...

O BARÃO - Dois contos?! E é por isso que está aborrecido da vida?

ANTUNES - Naturalmente. Aborrecido, primeiro, por não ter apanhado a
sorte grande. De que servem dois contos? Eu posso lá endireitar a vida
com dois contos? E segundo, porque li nos jornais que só em Pernambuco
se pagam os prêmios.

O BARÃO - Mas ora essa! Desconte o bilhete em qualquer quiosque, ou
arranje um saque para Pernambuco.

ANTUNES - Se eu descontar o bilhete, tenho que perder alguma coisa, e a
mim convinha-me receber os dois contos intactos. (zangado.) Maldita a
hora em que me lembrei de comprar semelhante bilhete! Se eu adivinhasse
que me havia de dar tanta maçada...

O BARÃO - Bom! Não vá agora suicidar-se por ter abiscoitado dois contos
de réis na loteria!

ANTUNES - Oh, o Barão foi feliz! Os seus bilhetes saíram brancos...
Invejo-o.

O BARÃO (Comovido.) - Pois olhe, foi contra a minha vontade.
(Abraçando-o.) Coitado! pobre amigo! ganhou dois contos de réis, e só
pode recebê-los em Pernambuco. Que desgraça!

ANTUNES - É mesmo muito caiporismo.

O BARÃO - Tenha paciência. Não viemos a este mundo senão para sofrer.
Olhe, aqui onde me vê, não passei pelo transe de tirar dois contos na
loteria, mas tirei-me dos meus cuidados, fui ao Eldorado, e não há meio
de sair de lá todas as noites. Veja se não é também uma desgraça. Vim
passar cinco ou seis dias na Corte, já lá se vão quinze... a Baronesa
todos os dias chama por mim... e não há meio de arrancar-me do Baco do
Império. (Vendo passar Mademoiseile Fritzmac.) Ui! que tetéia!
(Dirige-se a ela.)

ANTUNES (À parte.) - É o mesmo homem: em vendo rabo-de-saia...

CENA III

ANTUNES, o BARÃO, MADEMOISELLE FRITZMAC, depois AMOROSA

O BARÃO - Minha senhora, quer um criado para carregar esse embrulhinho?

MADEMOISELLE FRITZMAC - Obrigada. Não aceito obséquios de pessoas que
não conheço.

O BARÃO - A senhora diz isso porque não me conhece.

MADEMOISELLE FRITZMAC - Monsieur de La Palisse faria a mesma observação.
Com quem tenho a honra de falar?

ANTUNES (Aproximando-se.) - Com o Barão do Macuco, um dos primeiros
políticos da província do Rio.

O BARÃO - E este é o meu amigo Antunes, que acaba de passar pelo
doloroso transe de tirar dois contos de réis na loteria... quando podia
tirar cinqüenta.

ANTUNES - Ou não tirar coisa alguma.

MADEMOISELLE FRITZMAC (À parte.) - O Barão do Macuco! É o homem que me
convém...

O BARÃO - E agora posso saber quem é a formosa dama com quem tenho a
honra de falar?

MADEMOISELLE FRITZMAC - Pois não!

Valsa

Eu sou solteira,
E independente,
Vivo contente,
A viajar;
Corro, percorro
Todo esse mundo
Vasto e profundo
Sem descansar.
Amo os prazeres,
E pelo vinho
Tenho um gostinho
Particular.
Apraz-me um tipo
Que me acompanhe
Quando o champagne
Possa pagar.
Pátria não tenho,
Não tenho afeto,
Não tenho lar.
Eu sou formosa
Cosmopolita,
Que necessita
Rir e folgar!
Ah!
Eu sou solteira, etc.

O BARÃO - Bravo! bravo! admirável!...

ANTUNES (À parte.) - Está caído!

AMOROSA (Que durante o canto apareceu, e observou sem ser vista, â
parte.) - Vai seduzi-lo, mas eu o defenderei! (Sai.)

O BARÃO - A madama canta muito bem. Canta muito bem, e entoa. É do
Eldorado?

MADEMOISELLE FRITZMAC - Não, mas talvez me contrate lá.

O BARÃO - E é indiscrição perguntar onde mora?

MADEMOISELLE FRITZMAC - Barão caiu-me em graça: não será nunca
indiscreto. Moro ali pertinho, no próprio Beco do Império.

O BARÃO - Somos vizinhos, a madame, o Eldorado e eu. Estou ali no
Freitas. (São interrompidos por um Medroso, que entra a correr e esbarra
em Antunes.)

CENA IV

O BARÃO, ANTUNES, MADEMOISELLE FRITZMAC, o MEDROSO, depois um PADRE,
Povo

ANTUNES - Eh! olá! Não enxerga?

O MEDROSO (Esfalfado.) Ah!... desculpe... É que... Parece que eles
ficaram longe... Vim a correr... desde... o Campo de Santana.

O BARÃO - A correr de quê?

O MEDROSO - Dois malfeitores, armado cada um com uma faca deste tamanho!

MADEMOISELLE FRITZMAC (Contente.) - Ah! (Interessada e sorrindo.)
Mataram alguém?

O MEDROSO - Mataram uma porção de gente... e, afinal, não tendo mais a
quem matar, esfaquearam um burro de bonde! (Sai correndo.)

O BARÃO - Um burro?! Já não estou bem aqui!

ANTUNES - Há perigo.

MADEMOISELLE FRITZMAC - Nesse caso, venham cá para casa. Almoçam ambos
comigo.

ANTUNES - Eu não, que não dispenso o meu almoçozinho de quatrocentos
réis no Democrata. Até sempre, Barão. Minha senhora...

O BARÃO - Adeus, seu Antunes, apareça. (Saem todos. Entra o Padre, com
uma tocha quebrada na mão, perseguido pelo povo.)

O PADRE - Deixem-me! deixem-me!.

(O povo persegue-o, dando uma volta pelo palco, e cantando.)

CORO -

- Este padre está demente!...
Doido varrido ficou!
Aqui escandalosamente
O padre, o padre pintou!
Fiau!
Fiau!
Deu-nos de tocha! Que sistema novo
De edificar o povo!

(Sai o Padre, perseguido pelo coro. Mutação.)

Quadro 5

Sala rica em casa de Mademoiselle Fritzmac.

CENA I

MADEMOISELLE FRITZMAC, o BARÃO, depois uma CRIADA

(O Barão almoçou bem; traz o colete desabotoado, palita os dentes, e
está ligeiramente perturbado pelo vinho.)

O BARÃO - Sim, senhor! Tratou-me à vela de libra! (À parte.) Nunca vi
uma mulher comer tanto!

MADEMOISELLE FRITZMAC - Espere pelo resto.

O BARÃO - Gostei muito daquela... Como é mesmo o nome que você lhe
deu?... Manarezi?

MADEMOISELLE FRITZMAC - Maionese.

O BARÃO - É isso. Eu aprecio também os quitutes franceses. Gosto tanto
deles como de uma boa feijoada porca.

(A criada entra, trazendo uma bandeja com duas chávenas de café, uma
garrafa de conhaque e dois cálices. Mademoiselle Fritzmac passa uma
xícara ao Barão.)

MADEMOI5ELLE FRITZMAC - Veja se o seu café é melhor do que este!

O BARÃO - Meu café é do melhor, e de terra ferruginosa. Este ano a
colheita será esplêndida, se não vier por aí alguma retirada de negros.
Não me queixo dos abolicionistas: queixo-me dos meus colegas que
facilitam muito. (Acaba de tomar café, e Mademoiselle Fritzmac
oferece-lhe um cálice de conhaque.) Mais bebida? Enfim, vá lá! (Depois
de tomar o cálice de conhaque, repoltreia-se, palitando os dentes; ela
tem tomado também o seu cálice, e apresenta uma cigarreira ao Barão,
depois de acender um cigarro. A criada sai.)

MADEMOI5ELLE FRITZMAC - Fuma?

O BARÃO - Eu só pito cachimbo. (Boceja e espreguiça-se.)

MADEMOISELLE FRITZMAC (Sentando-se perto dele.) - Sabe que estou
simpatizando muito com você?...

O BARÃO - Qual, madama! Quem sou eu para acompanhar nosso pai fora de
horas!...

MADEMOISELLE FRITZMAC - São destas coisas! A gente sabe lá por que fica
embeiçada por um homem?... Às vezes um defeito, uma esquisitice, o que
nos seduz... E você sabe: quem o feio ama bonito lhe parece.

A CRIADA (Entrando.) - Está aí o Clube dos Fenianos.

MADEMOISELLE FRITZMAC - O Clube dos Fenianos? Que pretende ele de mim?
Fá-lo entrar. (Ao Barão.) Você dá licença! (A criada sai.)

O BARÃO - Ó menina, faça de conta que está em sua casa!...

CENA II

OS MESMOS, o CLUBE DOS FENIANOS, depois o CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS, depois
o CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA

O CLUBE DOS FENIANOS (Aparecendo á porta.) - Dá licença, Mademoiselle
Fritzmac?

MADEMOISELLE FRITZMAC - Entre, cavalheiro. (Apresentando o Barão, que
cumprimenta sem se levantar.) O Barão do Macuco. (Ao Barão.) O Clube...

O CLUBE DOS FENIANOS - Eu mesmo me apresento.

Copla

O Clube eu sou dos Fenianos.
Outro melhor não pode haver;
Tenho vencido os demais anos,
E agora mesmo hei de vencer!
Proclamará por toda a parte
Da Fama a voz universal
Que só o meu carro de estandarte
Vale por todo um carnaval!
Não há, não há,
Nem haverá
Assim um clube, olá!...

(Dança cancã ao som dos últimos compassos. Durante o canto, o Barão
dormita.)

MADEMOISELLE FRITZMAC - Queira sentar-se. (Sentam-se ambos.) A que devo
a honra de sua visita?

O CLUBE DOS FENIANOS - Ao grande empenho de que a senhora faça parte do
nosso préstito carnavalesco, este ano. Não se arrependerá. É um
excelente anúncio para o seu gênero de negócio. Juro que seremos os
primeiros em tudo: em grandeza, em luxo, em espírito, em bom gosto e...

MADEMOISELLE FRITZMAC - E em modéstia.

O CLUBE DOS FENIANOS - Peço-lhe ardentemente que não aceite convite de
outro clube.

MADEMOISELLE FRITZMAC - Pode ser. Veremos.

O CLUBE DOS FENIANOS - O carnaval está a pingar; o tempo é curto e a
senhora tem de preparar-se. A senhora é a mais rutilante estrela do
nosso horizonte, e o Carnaval é a única moldura capaz de fazer
sobressair a sua beleza! Oh! venha! decida-se a vir conosco! Os Tenentes
não saem este ano à rua.

MADEMOISELLE FRITZMAC - Ah! não saem? Há de ver que é a sociedade que se
apresenta com mais espírito.

O CLUBE DOS FENIANOS - Não deixe que os Democráticos nos passem a perna!

MADEMOISELLE FRITZMAC - Pois sim, se me resolver...

O CLUBE DOS FENIANOS - É preciso que se note: não consentimos que a
senhora faça a menor despesa; escolha a seu gosto uma fantasia, o carro
que desejar, os cavalos que quiser, e nós marcharemos com os cobres!
Aceita?

MADEMOISELLE FRITZMAC - Darei depois uma resposta definitiva.

A CRIADA (Entrando.) - Está aí o Clube dos Democráticos...

O CLUBE DOS FENIANOS (À parte, levantando-se.) - Ora bolas!

MADEMOISELLE FRITZMAC - Outro? Que entre!

O BARÃO (Abrindo um olho.) - Não me deixam ficar um instante só com
ela!... (Adormece de novo.)

O CLUBE DOS FENIANOS - Encontra o beco tomado.

O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS (À parte.) - Dá licença?

MADEMOISELLE FRITZMAC (Levantando-se.) - Pois não!

Copla

O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS (Entrando.)

- O Clube eu sou dos Democráticos,
Vai o triunfo ser meu só!
Outro não há de mais espírito
Que se apresente mais liró!
Nem Progressistas, nem Políticos,
Nem Fenianos que sei eu!
Não são assim como eu tão pândegos,
Nem têm decerto o valor meu!
Não há, não há,
Nem haverá
Um clube assim, olá!... (Dança.)

MADEMOISELLE FRITZMAC - Vou apresentá-lo ao Barão...

(O Barão ronca.) Coitado! deixá-lo dormir! (Vai apresentar os
Democráticos aos Fenianos, mas eles medem-se com um olhar de desafio e
voltam-se as costas.) Bem, vejo que já se conhecem... (Cada um dos
Clubes dá um grande assovio.) Sentemo-nos. (Sentam-se.)

O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Minha senhora, vinha convidá-la para tomar
parte no nosso préstito este ano... A senhora é indispensável!

MADEMOISELLE FRITZMAC - Este senhor acaba de fazer o mesmo pedido...

O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - E a senhora comprometeu-se?

MADEMOISELLE FRITZMAC - Não resolvi coisa alguma

O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Nesse caso, decida-se por nós. Pagamos todas
as despesas e damos-lhe ainda em cima trezentos mil réis.

O CLUBE DOS FENIANOS - E nós quinhentos...

O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Seiscentos!

O CLUBE DOS FENIANOS - Oitocentos!

O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Um conto de réis!

O CLUBE DOS FENIANOS (Depois de hesitar.) - Um conto e vinte e cinco mil
réis! (Olha vitorioso para o rival. À parte.) Quero ver se cobre o
lance!...

O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Minha senhora, nós lhe faremos um a pensão
mensal de duzentos mil réis durante toda a sua vida. Isso é mais seguro.
Um conto e vinte e cinco mil réis gastam-se numa pândega, ao passo que a
senhora terá aqueles cobrinhos certos no fim de cada mês...

O CLUBE DOS FENIANOS - Eu faço-lhe um patrimônio, minha senhora!

O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Eu arranjo-lhe um dote!

O CLUBE DOS FENIANOS - Eu dou-lhe um noivo!

O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - E, eu dois!

A CRIADA (Entrando.) - Está aí o Clube dos Progressistas da Cidade Nova!

OS DOIS (Levantando-se.) - Hein?

MADEMOISELLE FRITZMAC (Levantando-se.) - Ainda? Manda-o entrar! Já agora
farei coleção!

O BARÃO - Estou roubado!... (Torna a adormecer e daí em diante ressona.)

O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Pois a senhora dá confiança àquele tipo?...

O CLUBE DOS FENIANOS - Até a Cidade Nova!...

O CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA (Entrando.) - Dá licença, minha
senhora? Oh! os colegas por cá?... Agradável surpresa! ...

O CLUBE DOS FENIANOS - Viva!

O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Adeus!

O CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA (À parte.) - Impostores!... (A
Mademoiselle Fritzmac.) - Senhora madama, faça favor de me ouvir.

Copla-lundu

Eu não sou nenhum gabola;
Sou modesto e faço bem;
Dar não pode o mais pachola
Mais do que tem.
Se a madama no meu carro
Quer ir cheia de ouropéis, Imediatamente escarro
Trinta mil réis. (Dança.)

O CLUBE DOS FENIANOS - Creio que o amigo perde o tempo... nós já cá
estávamos, e eu em primeiro lugar!...

O BARÃO (Sonhando.) - Vinte mil arrobas a dez mil réis... Duas vezes um,
dois... (Resmunga.)

O CLUBE DOS FENIANOS - Dê-me preferência! Cheguei em primeiro lugar! Eu
disponho do que há de melhor no gênero mulher!...

O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Não lhe dê ouvidos! aquilo tudo é prosa!

O CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA (Querendo conciliá-los.) -
Então, colegas, então! (É repelido pelos dois.) Ah! orgulhosos! Querem
a guerra?! Pois bem - guerra! (Os três começam a falar de modo que
ninguém entenda, disputam e caem por cima do Barão, que desperta
sobressaltado, pedindo por socorro; mas, vendo que se trata de três
imprudentes, agarra na cadeira e corre com eles, enquanto Mademoiselie
Fritzmac ri às gargalhadas.)

CENA III

MADEMOISELLE FRITZMAC, o BARÃO, depois a CRIADA

O BARÃO - Que desordeiros!

MADEMOISELLE FRITZMAC - Deixá-los!

A CRIADA (Entrando, baixo.) - Está ai um mocinho muito bonitinho, que
quer falar com a senhora...

MADEMOISELLE FRITZMAC - Quê?... Ainda algum clube?...

A CRIADA - Não, minh'ama, é um moço de espírito: deu-me esta moeda!

MADEMOISELLE FRITZMAC - Uma libra? Deve então ser muito rico... Fá-lo
entrar!

O BARÃO - Que segredinhos são esses?...

MADEMOISELLE FRITZMAC - Xi! Que cara de sono!... Olhe! entre naquele
quarto e lá encontrará onde dormir.

O BARÃO - Mas observo-lhe que não gosto de estar muito tempo sozinho...
(Sai.)

MADEMOISELLE FRITZMAC - Manda entrar o mocinho. (A criada sai. Entra
Amorosa, disfarçada em rapaz.)

CENA IV

MADEMOISELLE FRITZMAC, AMOROSA

AMOROSA [(À parte)] - Queres seduzir esse pobre chefe de família, mas a
seduzida serás tu!

MADEMOISELLE FRITZMAC - Ah! (À parte.) Como é lindo!...

AMOROSA - Perdoe, minha senhora, tanta ousadia... Se assim o ordena,
retiro-me... (Faz menção de retirar-se.)

MADEMOISELLE FRITZMAC - (Correndo para ele, com ímpeto, e tirando-lhe o
chapéu das mãos.) - Não! Não saia, e diga o que o trouxe aqui.

AMOROSA - O que me trouxe foi o... amor!

MADEMOISELLE FRITZMAC - O amor?...

AMOROSA - O amor, sim, minha senhora.

Copla

Eu vi teus olhos divinais,
E nunca mais tive sossego,
Pois cada vez te adoro mais
E amar-te é o meu único emprego.
Vim declarar-te o meu amor,
Guardar não posso este segredo...
Vê como tremo, ó minha flor!...
Não sei de quê, mas tenho medo!

MADEMOISELLE FRITZMAC - Pobre rapaz!...

AMOROSA - Nunca amei outra mulher, nem nunca pensei que o amor fosse um
sentimento tão despótico! Depois que te amo, só em ti penso, só te vejo
a ti! Nada mais te peço, entretanto, senão que me deixes de vez em
quando passar alguns momentos com as tuas mãos entre as minhas.

MADEMOISELLE FRITZMAC (À parte.) - Coisa estranha! E não é que estou
sensibilizada? Sinto neste instante por ele o que nunca senti por
ninguém! Dir-se-ia que também o amo!

AMOROSA - Se quiseres, serei teu e só teu. Mudarás de vida...
Levar-te-ei para o campo... casar-nos-emos... Que existência feliz e
honesta passaremos numa casinha, entre árvores, até que, depois de
muitos anos de virtude, sempre ao lado um do outro, cercados pelos
nossos filhos e pelos nossos netos, eu te veja, coroada de cabelos
brancos, passar entre o bom povo do campo, aureolada pelas bênçãos de
todos, e amada por Deus (Mademoiselle Fritzmac estremece.), que nos
esperará no céu, sorrindo, de braços abertos!

MADEMOISELLE FRITZMAC (Afastando-se.) Cala-te, criança! Esses prazeres
não se fizeram para mim! se para o teu amor é necessário o meu
arrependimento, foge de mim, nunca mais me procures!

AMOROSA - Vejo que não poderás ser minha... Adeus! (Mademoiselle
Fritzmac não responde. Amorosa retira-se lentamente e sai.)

MADEMOISELLE FRITZMAC (Depois de algum tempo.) - Não! Não posso
separar-me dele! Amo-o! (Põe o chapéu e sai.)

CENA V

O BARÃO, depois o CONGRESSO DOS FENIANOS, depois a CRIADA

O BARÃO (Entrando e vendo-a sair.) - Madama! madama! Ela sai? Nada, isso
é que não está no programa! (Pega no chapéu, vai a sair, e esbarra-se
com o Congresso dos Fenianos.) Oh, senhor! (O Congresso vai falar.) Não
lhe posso dar atenção! (Sai.)

A CRIADA (Entrando.) - Que deseja o senhor?

O CONGRESSO DOS FENIANOS - Falar a Mademoiselle Fritzmac.

A CRIADA - Saiu neste momento. (À parte.) Estes meninos!...

O CONGRESSO DOS FENIANOS - Pois quando ela vier, tenha a bondade de lhe
dar este cartão... e pedir-lhe que não se comprometa com ninguém. (Sai.)

A CRIADA (Só, lendo o cartão.) - Congresso dos Fenianos. Também este!
(Indo gritar â porta.) Cresça e apareça! (Sai pelo lado oposto.
Mutação.)

Quadro 6

No Jardim Zoológico .

CENA I

A RAPOSA, a ONÇA, o LEÃO, o JACARÉ, o TIGRE, o GALO, que descem ao
proscênio; depois o CHEFE DOS COELHOS

CORO -

- Do Jardim Zoológico
Eis o ministério!
E, como hoje é sábado,
Há conselho, e sério!

A RAPOSA - Vamos lá, meus senhores! Antes de expor os negócios públicos
à nossa amável rainha, a majestosa gazela, procedamos a um pequeno
ensaio geral.

TODOS - Apoiado!

A RAPOSA - Tanto na pasta dos Negócios Interiores, como na dos Negócios
Exteriores, ambas comigo, não há novidade de maior. Fale o Senhor Onça,
Ministro das Finanças.

A ONÇA - Excelentíssimo Senhor Raposa, as finanças estão no mesmo pé e
na mesma mão em que estavam sábado passado. As coisas vão perfeitamente,
e melhor hão de ir se me deixarem realizar as reformas que projeto.

A RAPOSA - Ainda bem... vê-se que estar a Onça no governo não quer dizer
que o governo esteja na onça.

TODOS - Apoiado!

A RAPOSA - E que diz o Senhor Galo, Ministro dos Rolos?

O GALO - Não há novidade no galinheiro. Depois que lhe pusemos aquela
tranca, reina a paz... em Varsóvia.

A RAPOSA - Ainda bem. Senhor Leão, Ministro da Lavoura, que há de novo
pela sua pasta?

O LEÃO - Grandes projetos, meu senhor, grandes projetos! A existência
deste jardim começa apenas, e o nosso maior cuidado deve ser povoá-lo.
Conto que não fique aqui lugar para uma formiga.

A RAPOSA - Muito bem. E o Senhor Tigre? que tem feito?

O TIGRE - Ah, Senhor Presidente, esta pasta das coisas justas,
habitualmente tão calma, está começando a dar-me água pela barba!

A RAPOSA - Que me diz?

O TIGRE - Que o diga ali o Senhor Jacaré, Ministro das Águas.

O JACARÉ - É verdade; as coisas não vão lá para que digamos.

A RAPOSA - Mas expliquem-me!...

O JACARÉ - Olhe, é melhor que Vossa Excelência se informe com o Chefe
dos Coelhos, encarregados da ordem pública. Ele aí vem. (O Chefe dos
Coelhos entra apressado.)

A RAPOSA - Então? que há? que há?

O CHEFE DOS COELHOS - O diabo com botas! Os meus coelhos estão
atrapalhadíssimos!

A RAPOSA - Mas por quê?

O CHEFE DOS COELHOS - Estava um peixe a fazer desordem fora do seu
elemento. Um coelho prendeu-o, mas teve o desazo de tratá-lo como a um
reles parati, quando era um badejo de alta prosápia.

A RAPOSA - E daí?

O CHEFE DOS COELHOS - Daí, é que os peixes escamaram-se, e voltaram-se
todos contra os coelhos!

A RAPOSA - Fizeram-na bonita! (Ao Tigre.) Vá imediatamente demitir o
coelho que deu causa ao conflito! (O Tigre sai.) É preciso ter muito
cuidado com aquela gente. Se eles não se satisfizerem com essa demissão,
as coisas ficarão muito entroviscadas.

O CHEFE DOS COELHOS - Antes que elas se entrovisquem, peço a Vossa
Excelência que me meta na relação dos beneméritos. O seguro morreu de
velho.

(Barulho fora.)

A RAPOSA - Aquilo que é?

O TIGRE (Entrando a correr.) - O bicho está demitido, mas não há meio de
acalmar os outros!

A RAPOSA - Mau! mau! mau! mau! ...

CENA II

OS MESMOS, um GRUPO DE COELHOS, um GRUPO DE PEIXES, aquele perseguido
por este.

Coro

OS PEIXES -

- Vingança, amigos, vingança!
Vingar-nos todos devemos!
Lavemos sem mais tardança,
O insulto que recebemos!

OS COELHOS -

- Desejam todos vingança!
Pois bem! fugir-lhes devemos!
Fujamos sem mais tardança,
Senão, em boas nos vemos!

A RAPOSA - Sabem que mais? Vou expor todas estas circunstâncias à nossa
amável rainha, e pedir providências contra tamanha falta de disciplina!
Esperem-me aí vocês. que já volto. (Sai.)

O TIGRE - A rainha é capaz de dar razão aos peixes!

A ONÇA - E se assim for, vamos para os peixinhos.

O CHEFE DOS COELHOS - Contanto que me metam na relação dos beneméritos.

O GALO (Olhando para dentro.) - Vejam!... o Senhor Raposa conversa com a
rainha...

A ONÇA - Sua Majestade está com cara de poucos amigos...

O TIGRE - A conversação anima-se.

O CHEFE DOS COELHOS - Gesticulam ambos.

O GALO - Céus!

TODOS - Que é?

O GALO - O Senhor Raposa entregou as suas pastas! (Atirando-se ao chão.)
Caí!...

TODOS (Menos o Leão e o Chefe dos Coelhos, atirando-se ao chão.) -
Caímos!

A RAPOSA (Entrando muito cabisbaixa, e atirando-se também ao chão.) -
Caí!... (Ao Chefe dos Coelhos.) Você também caiu!

O CHEFE DOS COELHOS - Eu? Pois isso é possível? (Sentando-se no chão,
muito desconfiado e aos poucos.)

A RAPOSA - Caiu, sim, senhor. Caiu, e deu causa a que todos nós
caíssemos. A rainha exigiu a sua demissão. Eu apoiei-o... nada! - fiz
finca-pé, ela também, e não tive remédio senão resignar o poder!

O CHEFE DOS COELHOS - Estou arranjadinho!...

A RAPOSA (Ao Leão.) - Olá, amiguinho, está de pé? Olhe que você também
caiu!

O LEÃO - Eu? Boas! Estava com vocês por honra da firma! Hei de fazer
parte do novo governo!... (Sai. Ouvem se foguetes.)

A RAPOSA - Estão ouvindo? A notícia é recebida com foguetório! Aposto
que hão de deitar luminárias na gaiola dos macacos! (Suspirando.) Ah!...

TODOS (Suspirando.) - Ah! ...

CORO -

Nesta vida sem ventura,
Tudo é pérfida ilusão;
Pensa a gente estar segura,
Quando leva um trambolhão!
Ai! ai!
Ai! ai!
Tudo neste mundo
De catrâmbias cai!
Ai!

(Os bichos acabam chorando. Findo o canto, aparece o Comendador Vila
Isabel, que estaca ao ver a bicharia reunida.)

CENA III

OS BICHOS, que logo saem, o COMENDADOR VILA ISABEL, depois o BARÃO DO
MACUCO; depois o CARNAVAL, depois MADEMOISELLE FRITZMAC e AMOROSA,
depois PERO BOTELHO, depois o BARÃO e o COMENDADOR VILA ISABEL, depois o
AMOR

VILA ISABEL - Que é isso? que pândega é esta?... Já para os seus
lugares! (Todos os bichos se levantam e fogem.) São temíveis! Em
apanhando a gente descuidada, vêm cá para fora fazer política!...

O BARÃO (Entrando, consigo.) - Qual! já perdi as esperanças de
encontrá-la... Meteu-se com o pelintra num bonde de Vila Isabel...
julguei que tivessem vindo para o Jardim Zoológico.

VILA ISABEL - Oh! Barão!...

O BARÃO - Oh! Comen... Comendador ou Barão também?

VILA ISABEL - Comendador... Comendador... mas não tarda por aí o
baronato.

O BARÃO - Não me canso de admirar o seu jardim...

VILA ISABEL - Meu é um modo de dizer.

O BARÃO - Oh! o Comendador tem sido a alma deste bairro vitorioso! Vejo
constantemente nas Notícias Várias os presentes que todos os dias se
fazem ao Jardim Zoológico. Hei de mandar-lhe também dois macacos e uma
jararaca.

VILA ISABEL - Serão recebidos com muito prazer.

O BARÃO (A parte.) - Não lhe poder eu mandar minha sogra!... (Entra o
Carnaval, e vai sentar-se num banco a meditar profundamente até
chegar-lhe a ocasião de falar.)

VILA ISABEL - Temos aí uma onça muito bonita, chegada hoje. Quer vir
vê-la?

O BARÃO - Com todo o prazer. (À parte.) O que eu queria era encontrar a
pequena.

VILA ISABEL - Venha por cá. (Sai com o Barão. Mademoiselle Fritzmac
entra com Amorosa.)

MADEMOISELLE FRITZMAC (Correndo.) - Ai, que linda borboleta! que linda!
Ora! Voou!...

AMOROSA - Pousou naquele galho... vou apanhá-la e trazer-lha, mas com a
condição de que lhe não fará mal.

MADEMOISELLE FRITZMAC - Descansa. (Amorosa sai.) É singular! Operou-se
uma revolução completa em todo o meu ser! Como adoro este rapaz... uma
adoração pura... sagrada... quisera vê-lo sempre, sempre ao meu lado, e,
no entanto, não me tarda o momento de estar com ele a sós... Se Pero
Botelho soubesse disto...

PERO BOTELHO (Deitando a cabeça fora do tronco de uma árvore.) - És uma
idiota!

MADEMOISELLE FRITZMAC - Pero Botelho!

PERO BOTELHO - Os momentos são preciosos... Pois não vês, minha tonta,
que esse mancebo por quem te apaixonaste é uma mulher como tu?

MADEMOISELLE FRITZMAC - Uma mulher!

PERO BOTELHO - É a suma das Virtudes, como tu és a suma dos Pecados.
Obra do Amor, que me quis pregar uma peça; mas para cá vem de carrinho.
Não me posso demorar mais tempo. Cautela! (Desaparece.)

MADEMOISELLE FRITZMAC (Só.) - Em que esparrela ia eu caindo!

AMOROSA (Voltando com a borboleta.) - Aqui a tens, meu amor! É azul como
os teus olhos e doirada como Os teus cabelos!

MADEMOISELLE FRITZMAC (Toma a borboleta, esmaga-a e pisa-a aos pés.) -
Aí tens o caso que faço da tua borboleta! (Gesto de espanto de Amorosa.)
Julgas que continuarei a ser o teu ludibrio? Descobri toda a verdade, e
a tempo de evitar que frustres o desempenho da minha missão! (Vendo o
Barão, que entra com o Comendador Vila Isabel.) É o diabo que O envia!
(Vai abraçar o Barão; Vila Isabel foge envergonhado.) Oh, meu bom
amigo... meu querido Macuco... já te não largo! ...

O BARÃO - Ora graças!

MADEMOISELLE FRITZMAC - Vamos jantar ali no hotel...

O BARÃO- Mas que foi isto?

MADEMOISELLE FRITZMAC - Vamos! (Sai com o Barão, que lança um olhar de
triunfo a Amorosa.)

AMOROSA (Só.) - Não há que ver! Fui vencida pelo diabo!

O AMOR (Aparecendo.) - Vencida! Isso é o que havemos de ver!

AMOROSA - Ah! és tu? Ainda bem! Inspira-me; diz-me O que devo fazer.

O AMOR - É preciso que esse homem se apaixone por ti. É o único meio de
salvá-lo. Vai!

AMOROSA - Serás obedecido. (Sai.)

O AMOR (Só.) - A Fritzmac tem seguido muito mal as instruções do diabo.
Atracou-se a um homem isolado, sem se lembrar de que uma andorinha só
não faz verão. A minha vitória será ainda mais fácil do que eu supunha.

Coplas

I

Quando nalgum ponto
Meto o meu bedelho,
O poder afronto
De Pero Botelho.
'Stava eu bem servido,
Se fosse vencido!
Meu pobre Pero Botelho,
Tu cantas, mas não entoas...
Venceres este fedelho?
Boas!

II

Quando antigamente
Era um deus vendado,
Fui por toda a gente
Bem mistificado.
Hoje nem por graça
Já ninguém me embaça...
Meu pobre Pero Botelho, etc. (Desaparece.)

CENA IV

O CARNAVAL, depois o ENTRUDO, depois o HIGH-LIFE

O CARNAVAL (Só, erguendo-se.)

- Desanimado estou! Não tenho idéias!
Mas não! mas não! Desanimar não quero!
Hei de vencer, espero!

(Outro tom.)

Estou bem aviado!
Pois o Entrudo não vem para este lado!

O ENTRUDO (Entrando.)

- Ó Carnaval tirânico!
Maldito sejas, que a vitória é tua!
Já não se encontra uma bisnaga tímida,
Nem um limão de cheiro sai à rua!
Quisera que tu, déspota,
Me dissesses a causa dos meus males!
Por que razão não tenho o teu prestígio?
Por que razão não valho o que tu vales?

O CARNAVAL -

Não me interrompas! cala-te, defunto!
Não me vês dando tratos ao bestunto?

O ENTRUDO -

Tu procuras espírito?
Encontrá-lo não podes nesse vaso!
É mel que não se fez para os teus lábios

(O Carnaval . encolhe os ombros.)

Ria-te, provavelmente, se eu acaso
Te disser que fui muito espirituoso.

O CARNAVAL

- Não me rio; deploro-te!

O ENTRUDO -

- Pois ouve-me, orgulhoso;
Uma bisnaga, delicadamente
Espremida por mão de sinhazinha,
Ao passar por um Juca de repente,
Muito mais graça tem, por vida minha!
Que um boneco mal feito,
Representando um célebre sujeito.

O CARNAVAL - Vai-te catar!

O ENTRUDO

- Quem pândego não acha
Um bom limão de cheiro de borracha,
Como uma bala o espaço atravessando
E uma velha cartola derrubando,
Que um tipo traga na cabeça?

O CARNAVAL

- Ó tolo,
Não me esquentes o miolo!
Deste modo, não posso ter espírito!

O ENTRUDO -

- Um bom mergulho numa tina dado
Faz rir, como não faz um mascarado
Dizendo asneiras do alto da carroça;

O CARNAVAL - Fala pr'aí, que eu faço vista grossa!
O ENTRUDO -

- Pois é crível que nem sequer distingas
As clássicas seringas,
Dessas que a medicina hoje condena
E que o grande Moli&egrave;re pôs em cena?
Há lá nada mais cômico?

O CARNAVAL -

- E mais sujo?
Foge, senão eu fujo!
Fazes-me o efeito de um montão de lixo!

O ENTRUDO -

- Como tem graça o esguicho
Que sai do bico da gentil seringa,
E, descrevendo graciosa curva,
Vai molhar uma velha que rezinga!
E o limãozinho pândego, bonito,
A quebrar-se num colo de donzela?
E o susto? e aquele grito
Que solta a moça bela,
Quando bate o limão noutro mais rijo?
Achas-me sujo? Adeus! não me corrijo!
Não é por me gabar, porém sustento
Que hei promovido muito casamento;
Muitos banhos de igreja são causados
Por meus banhos brutais. - Ó salafrário,
Algum dia casaste uns namorados?
Antes pelo contrário,
Já descasado tens alguns casados,
E tais façanhas não têm sido poucas!

O CARNAVAL - Orelhas moucas a palavras loucas

O ENTRUDO -

- Vejo que passa ali, ó céus! que dita!
Uma negra baiana e bem bonita!
Adeus! adeus, ó filho!
Vou mascarar-lhe a cara com polvilho! (Sai.)

O CARNAVAL (Só.)

- Nem à mão de Deus Padre arranjo espírito!
Atrapalhar-me veio este abelhudo!
Nem uma idéia! nem uma facécia!
Estou quase tão besta como o Entrudo!

O HIGH-LIFE - (Entrando.)

- Pois espírito o Entrudo ter bem pode.

O CARNAVAL - Quem és tu?

O HIGH-LIFE -

- O meu nome não te acode,
Por que nós nos vemos há que séculos!
Eu sou o High-life, e quero que repares
Na batalha das flores, de Petrópolis,
E depois me declares
Se aquilo tem ou se não tem espírito!
(Mutação.)

Quadro 7

Cena de fantasia. Bailado de flores animadas.

Depois do bailado começa a chover torrencialmente. Cada uma das flores
abre um guarda-chuva.

[(Cai o pano.)]

ATO SEGUNDO

Quadros 8 e 9

A Rua da Misericórdia, entre a Câmara de Deputados e a Rua da
Assembléia.

CENA I

MENDIGOS, que atravessam a cena para o lado do mar; o BARÃO, AMOROSA,
vestida modestamente

CORO DE MENDIGOS -

- Sem levar mágoas
No coração,
Vamos do Mangue
Pro Galeão.
Nosso passado,
Sem mais tardar,
Vai o trabalho
Regenerar.

(Saem os Mendigos. Aparecem o Barão e Amorosa.)

AMOROSA - São os asilados do Mangue, que vão para a Ilha do Governador.
Vamos assistir ao embarque?

O BARÃO - Não; tenha paciência, menina. Quero estar junto da Câmara,
para acompanhar de perto os acontecimentos.

AMOROSA - E eu não o deixo um só instante. Tenho tantos ciúmes do
senhor!

O BARÃO - Não compreendo como tem tantos ciúmes de mim, e consente que
se prolongue assim este platonismo. Creio que é platonismo que se
chama...

AMOROSA - O melhor da festa é esperar por ela.

O BARÃO - Quem espera desespera.

AMOROSA - Quem espera sempre alcança.

O BARÃO - Já com a outra foi a mesma coisa!

AMOROSA - Pelo amor de Deus, não me fale da outra.

O BARÃO - Que infelicidade a minha! Levei-a a jantar ao restaurante do
Jardim Zoológico, e ela apanhou uma tremenda indigestão, cujos efeitos
duraram perto de um mês. Pobre Mademoiselle Fritzmac! Mas também nunca
vi comer com tanta velocidade! O homem do restaurante levou-me quarenta
e cinco mil réis pelo jantar, e eu achei que foi de graça! Antes que ela
ficasse restabelecida, tive a ventura (a ventura ou a desgraça), de
encontrar a menina, e desde então me deixei subjugar completamente pelos
seus encantos. Já não acho graça na Fritzmac!

AMOROSA - E quem sabe se a natureza do nosso afeto não se transformará?
Quem sabe se o senhor não será ainda para mim um pai?

O BARÃO - Com franqueza: prefiro ser um paio!

AMOROSA - Pois bem, se lhe não agrada o nome de pai, será meu irmão mais
velho.

O BARÃO (Com força.) - Nunca!... (Consigo.) Entretanto, é esquisito...
tenho por ela um certo respeito... Aprecio aqueles escrúpulos, por mais
singulares que me pareçam, e não seria capaz de uma violência.

CENA II

O BARÃO, AMOROSA, dois LICURGOS, depois um ASPIRANTE DE MARINHA, depois
PRIMEIRO e SEGUNDO HOMENS, depois o CONSELHEIRO JACÓ, depois o
PADRE-SOLDADO (Os dois Licurgos atravessam a cena.)

PRIMEIRO LICURGO - Vossa Excelência é um ladrão confesso!

SEGUNDO LICURGO - E Vossa Excelência é uma pústula que hei de espremer!
(Desaparecem.)

O BARÃO - Não faça caso... são dois licurgos, que repetem na rua as
amabilidades trocadas lá dentro.

O ASPIRANTE DE MARINHA (Entrando e colocando-se entre o Barão e
Amorosa.) - Então? que tal acham este fato?

AMOROSA - Muito feio.

O BAR - Reprovadíssimo.

O ASPIRANTE - Quê? pois este uniforme é feio? o dólmã
reprovadíssimo?!...

AMOROSA - Houve confusão. O senhor referiu-se ao fato...

O BARÃO - E nós nos referimos ao fato.

O ASPIRANTE - Falava-lhes do negligé da Armada Nacional.

Copla

Num corpo esbelto e chibante,
Todo airoso e perfilado,
Nada há de mais elegante
Do que um dólmá bem talhado.
As sinhazinhas por isto
De amores ficam babadas;
Depois que este dólmá visto,
Tenho mais três namoradas.

(O Aspirante sai. Entra da esquerda um Homem, acompanhado por outro, que
traz um livro e uma campainha na mão.)

PRIMEIRO HOMEM - Escusa de insistir! Juro que não juro! É contra as
minhas idéias! (Sai pela direita.)

SEGUNDO HOMEM - Venha cá! (Vai segui-lo.)

O BARÃO (Agarrando-o.) - Que há, meu amigo?

SEGUNDO HOMEM - É aquele herege que não quer jurar nem pelo diabo!

AMOROSA - Com razão! Pelo diabo ninguém jura!

SEGUNDO HOMEM - Estou vendo que há de ser preciso alterar o regimento!
(Gritando a sair pela direita.) Venha cá! venha jurar, homem de Deus!
(Sai.)

O BARÃO - Isto aqui está muito divertido. (Vendo entrar o Conselheiro
Jacó, que traz uma mala.) Oh, Conselheiro Jacó! De volta de Paris!
Dou-lhe os parabéns... apanhou finalmente a sua Raquel...

O CONSELHEIRO JACÓ - Ah, meu amigo, não foi porque Labão o quisesse!
Olhe que trabalhei!... Fui candidato vinte e tantos anos!... Hei de
escrever a história das minhas eleições. Pelo menos três volumes!

AMOROSA - Água mole em pedra dura...

O CONSELHEIRO JACÓ - Bem.... lá estou na Rua do Areal às ordens dos
amigos.

Q BARÃO e AMOROSA - Conselheiro! (O Conselheiro Jacó sai.)

O BARÃO - Isto aqui está muito divertido! (Vendo entrar o
Padre-soldado.) Quem será este agora?

O PADRE-SOLDADO - Psiu... (Vem ao meio dos dois.)

Copla

Música Religiosa

Por esta batina tétrica
Por este ar de santarrão,
Já sabeis que canto vésperas
E que prego o meu sermão.

(Transforma-se em soldado. A música muda de andamento e toma caráter
marcial.)

Eu sou soldado, Sou desertor!
E ao velho estado
Volto ao som da trombeta e tambor! Trá lá lá lá!
Rataplã plã... (Sai marchando.)

AMOROSA - Padre e soldado!

O BARÃO - Não será também estudante?

CENA III

O BARÃO, AMOROSA, PESSOAS DO POVO, que entram a pouco e pouco, o
PROJETO, que atravessa a cena da direita para a esquerda montado num
velocípede, com uma casaca de abas exageradamente compridas; depois o
PRIMEIRO VENDEDOR DE CANIVETES, depois o PROJETO, depois o SEGUNDO
VENDEDOR DE CANIVETES, depois o TERCEIRO VENDEDOR DE CANIVETES

O PROJETO (Enquanto atravessa a cena.) - Eu sou o projeto! Venho de São
Paulo! Deixem-me passar! Não tenho tempo a perder!

O Povo (Aclamando-o.) - Viva! viva!...

O BARÃO - É ele! É o projeto, que vem de São Paulo! Entrou na Câmara!
Meus Deus! que velocidade! Ai, os meus ricos pretinhos!...

AMOROSA - Esqueça-se dos seus interesses e só se lembre da liberdade de
tantos homens.

O BARÃO - O grande caso é que, quando estou a seu lado, a minha
indignação diminui consideravelmente.

(A cena tem se enchido. No meio do burburinho geral, entra o primeiro
Vendedor de Canivetes e é logo rodeado de povo, que faz vozeria.)

CORO -

- Quem será este sujeito,
Este tipo que aqui está?
Quer vender alguma coisa:
Vamos ver o que será!

PRIMEIRO VENDEDOR DE CANIVETES - Meus senhores, comprai o
canivete-abolição!

TODOS - Bravo! bravo!... (Indignação do Barão, que é contido por
Amorosa.)

PRIMEIRO VENDEDOR (Mostrando um canivete.) - Esta folha chama-se a
Cidade do Rio... é a mais pequenina, mas é também a mais cortante. Esta
outra folha, a maior, chama-se o País; corta que nem uma navalha! Esta
aqui, cheia de figurinhas, chama-se a Revista Ilustrada! Comprai,
comprai todos o canivete! O canivete-abolição extrai, destrói, extirpa,
extermina esse calo chamado escravidão, com o qual o pais não pode dar
um passo para diante!...

TODOS - Venha! venha!... (O Vendedor distribui canivetes, e sai,
distribuindo-os sempre.)

AMOROSA (Ao Barão.) - O senhor devia ter ficado com um.

O BARÃO - Não! - aqueles canivetes amolam-me!

(O Projeto atravessa a cena, em sentido oposto, sempre em velocípede.
Leva as abas da casaca cortadas.)

O PROJETO (Enquanto passa.) - Passei na Câmara! Vou para o Senado! Não
tenho tempo a perder! (Desaparece.)

O Povo (Aclamando-o.) - Viva! viva!...

O BARÃO - Ai, minha Nossa Senhora, é o projeto, e já vai sem rabo!...

(Entra o segundo Vendedor de Canivetes e é rodeado pelo povo.)

SEGUNDO VENDEDOR DE CANIVETES - Meus senhores, comprai, comprai o
canivete-indenização!

TODOS - Fora! fora!...

SEGUNDO VENDEDOR (Mostrando.) - Só tem uma folha, e uma folha que só
serve para cortar largo, mas é um ótimo canivete, e a maior novidade das
novidades! O canivete-indenização extrai, destrói, extirpa, extermina
esse calo, ou antes esse calote, chamado abolição!

TODOS - Não queremos! Fora! Fora!

O BARÃO - Aquele compro eu. (Dá um passo.)

AMOROSA - (Retendo-o.) - Não!

SEGUNDO VENDEDOR - Não arranjo nada! (Sai muito murcho.)

TERCEIRO VENDEDOR DE CANIVETES (Entrando e vendo-se logo rodeado de
povo.) - Meus senhores, comprai o canivete-república! Tem uma infinidade
de folhas, e mais esta balança, em que se pesam os direitos do homem, e
mais este saca-rolhas, que se chama Princípios de 89. O
canivete-república extrai, destrói, extirpa, extermina esse velho calo -
a monarquia!

(Uns compram e outros não. O Terceiro Vendedor sai.)

O BARÃO - Eu também quero a república, contanto que me deixem ficar com
o meu título de Barão, que me custou bem bons cobres.

CENA IV

O BARÃO, AMOROSA, povo, o PROJETO, que atravessa a cena vestido de
mulher

O PROJETO - Passei no Senado!

TODOS (Com entusiasmo.) - Bravo! Viva! Viva!... (A cena deve estar
completamente cheia.)

O BARÃO - É o projeto... Está vestido de mulher!

AMOROSA - Naturalmente. Foi convertido em lei.

O BARÃO - Vamos ao Paço. (Saem. Os coros descem ao proscênio.)

CORO

- Um novo sol brilhante
Os horizontes desta
Pátria doira!
Foi-se a nódoa infamante!
Salve, salve, Princesa redentora!

(Rasga-se parte do pano do fundo, e aparece no céu, cercada de flores,
uma enorme roseira de ouro. Mutação.)

Quadro 10

Corredor de casa pobre.

CENA I

ZÉ DO BECO, depois TRIPAS-AO-SOL

ZÉ (Falando para a esquerda.) - Nada, meu amigo. Você cá não dorme hoje!
Se quiser cama, pague o atrasado!

UMA VOZ - Amanhã dou tudo junto.

ZÉ - Qual amanhã nem pera amanhã! Você já deve meia pataca de duas
noites! Se a continha aumenta, adeus, minhas encomendas!... De meu rico
dinheiro não vejo nem a sombra!

A VOZ - Pois vá pro diabo, seu burro!

ZÉ - Burro vá ele! (Vindo ao proscênio.) Era o que faltava! ter eu aqui,
às ordens destes caloteiros, a melhor casa de alugar camas do Beco de
Dom Manuel, célebre pelo horroroso assassinato de um grumete que
ressuscitou em Resende! (Indo á porta e gritando.) Não tenho medo de
navalha, ouviu?

TRIPAS-AO-SOL (Entrando com um movimento de capoeira.) - Isso é com o
degas?

ZÉ - Oh! não senhor, seu Tripas-ao-sol! É com outro vagabundo que saiu
agora.

TRIPAS-AO-SOL - Ah! pensei!

ZÉ - Seja bem aparecido por esta sua casa. Ainda o fazia lá pela chácara
de Catumbi...

TRIPAS-AO-SOL - Neste sábado agora faz quinze dias que eu fui sorto.

ZÉ - E por onde tem andado?

TRIPAS-AO-SOL - Por aí. Tenho visto as festa da abolição.

ZÉ - Dizem que têm estado muito bonitas...

TRIPAS-AO-SOL - Você não foi, seu Zé do Beco?

ZÉ - Eu tenho lá licença de arredar pé daqui?...

TRIPAS-AO-SOL - Pois eu tenho ido a tudo! Fui à missa do campo de São
Cristovo; fui às corrida; entrei lá num rolo danado; agora acabou-se o
cobre, e não há remédio senão vir dormir barato.

ZÉ - É! Vocês andam, viram, mexem, mas afinal de contas aqui vêm todos
parar! Vocês hão de se capacitar que não há nada como isto! (Reparando
em Tripas-ao-sol.) Mas, sim, senhor: o Senhor Tripas-ao-sol engordou na
Correção!...

TRIPAS-AO-SOL - Pois, olhe, a boa vida por lá começa agora.

ZÉ - Como assim?

TRIPAS-AO-SOL - Foi lá quem pode, provou a bóia, achou ela má, e quer
que, de hoje em diente, os preso tenha muito bom bife, muito boa salada,
azeitona, e até vinho do Porto!

ZÉ - Qual! Isso são caraminholas! (Outro tom.) Lá vem freguesia!

TRIPAS-AO-SOL - Tome os quatro vintém. Vou me deitar, que quero acordar
cedo. (Paga e sai.)

CENA II

ZÉ, SERAPIÃO

SERAPIÃO (Entrando e tirando o chapéu.) - Muito boa noite.

ZÉ - Boa noite.

SERAPIÃO (A meia voz.) - O senhor tem aí uma cama disponível?...

ZÉ - Tenho algumas.

SERAPIÃO - Preço?

ZÉ - Para acordar a que horas?

SERAPIÃO - Seis ou sete da manhã...

ZÉ - Oitenta réis. (À parte.) Este é calouro...

SERAPIÃO - É o último preço?

ZÉ - São as mais baratas. Há também de tostão, com travesseiro.

SERAPIÃO - Dispenso o travesseiro. Mas, diga-me uma coisa: não faz um
abatimento, eu ficando freguês?

ZÉ - Por quanto tempo?

SERAPIÃO - Não sei... até a reforma dos correios. Tenho lá um lugar
prometido, mas o diabo é que os candidatos são muitos. Conheço uma
família em que há quatro primos e um tio, todos com promessas de se
encaixarem lá.

ZÉ - Se o senhor quer tomar uma assinatura por mês, dou-lhe a cama por
dois mil réis, dinheiro adiantado.

SERAPIÃO - Adiantado é que é o diabo: tenho a vida muito atrasada! Olhe,
eu pago os quatro vinténs! Faz favor de me dar a cama?

ZÉ - Faz favor de me dar o cobre? (Serapião paga.) O senhor tem sono
pesado?

SERAPIÃO - Pelo contrário; muito leve: para me acordar, é bastante
puxar-me a perna com força e gritar-me aos ouvidos.

ZÉ - É que de vez em quando há barulho aqui por casa. Se ouvir alguma
coisa, faça de conta que não ouviu nada. Vire-se para o outro lado e
continue a dormir. Vamos lá. Vou dar-lhe a cama. (Entram um preto e uma
preta, que mal podem andar, porque trazem os pés apertados.)

CENA III

UMA PRETA, PRIMEIRO PRETO, depois ZÉ, depois SEGUNDO PRETO

PRIMEIRO PRETO - Entra, nhá Bituca! Aqui é que é casa que gente drume
por quatro gintém.

A PRETA - Eu é capaz de jurá que gente aqui não drume tão bem como lá em
casa de meu senhô.

PRIMEIRO PRETO - Que senhô! Gente não tem mais senhô!... Treze de Maio
botou tudo tão bom, como tão bom! Diabo é este brutina, que tá me
pretando pé.

A PRETA - Eu também tá que não pode!

ZÉ (Entrando.) - Boa noite! Desejam dormir?

PRIMEIRO PRETO - Eu qué drume com minha praceira, sim senhô.

ZÉ - Nesta maison meublée não há aposentos separados! Não há quartos com
menos de oito camas.

PRIMEIRO PRETO - Ué! Então home drume com muié tudo junto?

ZÉ - E até crianças! Olha! (Entra uma turca maltrapilha, com duas
crianças pela mão. Paga e sai.) As crianças só pagam dois vinténs:
metade do preço.

A PRETA - Eh, pai João, ante no cativero!...

ZÉ - Não seja mal agradecida! não diga mal da liberdade!

PRIMEIRO PRETO - Libredade é bom, mas barriga cheia é mió!

ZÉ - Pois você não está contente com o Treze de Maio?...

PRIMEIRO PRETO - É! Pru mode Treze de Maio preto já não vale nem dé
tutão!

ZÉ - O que vocês precisam é dormir! Passem para cá a bela da meia
pataca, e por ali é o caminho!

PRIMEIRO PRETO (Pagando.) - Tá'í!

ZÉ (Empurra-os para dentro. Saem os dois.) - Aí vem mais gente!

SEGUNDO PRETO (Entrando, com as botas na mão.) - Viva a lei Treze de
Maio! Ave libertas!

ZÉ - Bom! bom! nada de barulho, que isto aqui é casa de sossego!

SEGUNDO PRETO - Ave libertas!

ZÉ - Que libertas, nem meio libertas! Que quer você?

SEGUNDO PRETO - Cama com travesseiro para um! Aqui tem nicolau, Diabo,
tou rouco de dá tanto viva!

ZÉ - Ainda bem que este está contente!

SEGUNDO PRETO - Pois não há de tá contente um home que levou toda a sua
vida a trabaiá de meia cara, e agora pode se empregá e ter seu dinheiro
no borso?... Branco safado que deixou a gente tanto tempo no cativero!

ZÉ - Bem, bem! Vá dormir, que seu mal é sono!

SEGUNDO PRETO - Ave libertas!

ZÉ - Mas que é isso de Ave libertas?

SEGUNDO PRETO - Sei lá! É francês! Isso anda em toda a boca! Ave é
galinha e libertas é muié que ficou livre! (Sai.)

ZÉ - Aí vem mais povo. Hoje isto está quente! Também não admira: dia de
pagode!...

CENA IV

ZÉ, uma MULATA, depois um ITALIANO, depois TIRO-E-QUEDA

A MULATA (Entrando.) - Me dê uma cama, seu Zê do Beco! (Dando-lhe
dinheiro.) Tem aí mais dois vintém pro café de menhã.

ZÉ - Então tem festejado muito o Treze de Maio?

A MULATA - Eu? Ixe! (Traçando o chale sobre o ombro.) Pra cá, mais pra
cá! Não sou muita de Trezes de Maio, nem de livros de ouro. Esta que
aqui está pra ser livre não precisou de leses. O pai de meu filho pagou
minha carta. Eu até acho que os branco faz mal em acabá cos escravo.
Agora é que vai se vê o que é vadiação! (Saindo.) Não se esqueça do café
de menhã.

ZÉ (Só.) - É muito prosa esta mulata, mas é boa freguesa. (Entra um
italiano, com um realejo e um macaco no ombro.)

O ITALIANO - Signor, dateme una cama; ecco il denaro. (Senhor dá-me uma
cama, eis o dinheiro)

ZÉ - Quatro vinténs só? E o macaco?

O ITALIANO - Il macaquito anche dove pagare?... (O macaco também deve
pagar?)

ZÉ - Aqui os macacos pagam como crianças: metade do preço.

O ITALIANO - Si lei vuole, lo faró danzare um pouquito, per pagare la
sua parte... (Se o senhor quiser eu o farei dançar, para pagar a sua
parte...)

ZÉ - Não! não! Aqui não se admite barulho! Pagate, pagate e não buffate!

O ITALIANO - Ecco. Povero simioco, tratato come un bambino! (Pobre
macaco, tratado como uma criança!)

ZÉ - Andate! andate, mossiú! (O italiano sai.) Já uma vez veio aqui
dormir um homem que andava com um urso, mas também cobrei-lhe dez
tostões pelo companheiro! O diabo do bicho fungou toda noite, que
parecia caçoada! Nessa noite ninguém aqui dormiu, nem ele!

TIRO-E-QUEDA (Entrando.) - Ora viva o seu Zé do Beco!

ZÉ - Olá! Venha esse abraço! Que é feito?

TIRO-E-QUEDA - Ah, seu padre! eu fui no Cabeça de Porco vê uma roupa
lavada, e um português me convidou pro sete-e-meio. Logo na segunda mão
eu já tinha mordido dois cruzado, mas o bruto quis fazer estréias
comigo, e eu não lhe conto nada! Enchi ele, e o cabra foi conversá cas
formiga! Num ápis a estalage ficou toda num sarseiro: cacete voava que
nem mosca!

ZÉ - E a canoa?

TIRO-E-QUEDA - Canoa só de longe, contemplando os acontecimentos.

ZÉ - Você não toma caminho! Um dia acaba na ponta de uma sardinha!

TIRO-E-QUEDA - Só se fô sardinha de Nantes. Ferro que há de me furá inda
não está feito folha! Pois não! um diabo que teve o desaforo de me chamá
indivíduo! Indivíduo é home que anda fora d'hora. (Ouvem-se passos
apressados na escada.)

ZÉ - Que é isto?

CENA V

ZÉ, TIRO-E-QUEDA, o BARÃO, depois todos os demais personagens do quadro

O BARÃO (Entra insuflado; traz a tiracolo a fita distintiva dos
jornalistas nas festas da abolição.) - Escondam-me! escondam-me por amor
de Deus!

OS DOIS - Que foi?

O BARÃO - Aquela mulher é os meus pecados.

Os DOIS - Que mulher?

O BARÃO - Vinha muito descansado ali pela Rua da Misericórdia, em
companhia da outra, quando ela passou num bonde, apeou-se, e fez um
chinfrim de todos os diabos!

Os DOIS - Ela quem? Ela quem?

O BARÃO - Intervenho, naturalmente; chega a polícia...

TIRO-E-QUEDA - A canoa.

O BARÃO - Um soldado toma-me pelo desordeiro e vai prender-me; eu -
pernas para que te quero? Embarafusto por este beco e entro na primeira
porta que encontro aberta! Onde estou eu?

TIRO-E-QUEDA - Tá diante de um home bom pra lhe defendê! Se qué sabê
quem é o Tiro-e-queda...

O BARÃO - Tiro-e-queda?...

TIRO-E-QUEDA - É o meu vulgo! Se quer saber quem ele e, aqui seu Zé do
Beco que lhe informe!

ZÉ (Dando um beijo nos dedos.) - É obra! No gênero capanga é o que se
pode encontrar de melhor no mercado.

TIRO-E-QUEDA (Lisonjeado.) - Favores que não mereço!...

O BARÃO - Não me despeço dos seus serviços...

TIRO-E-QUEDA (Reparando na fita que o Barão traz a tiracolo.) - Ah,
espera, Vossa Senhoria também é desses home que escreve nas folha?

O BARÃO - Eu não senhor... nunca escrevi senão à família.

TIRO-E-QUEDA - Mas essa fita...

O BARÃO - Dizem que é o distintivo da imprensa... Mas como vejo toda a
gente na rua com o tal distintivo a tiracolo, comprei também o meu, para
não me distinguir das outras pessoas: não gosto de me dar ares de
original.

(Ouve-se tocar realejo lá dentro e logo uma gritaria infernal de pessoas
que protestam e brigam.)

ZÉ - Hein? Já tardava!...

(Todos os personagens do quadro entram fazendo algazarra e empurrando o
Italiano adiante de si.)

O ITALIANO - Perdonate, signori, non é colpa mia! Il macaquito ha
torcito la manivella! (Me perdoem, não é culpa minha. O macaco torceu a
manivela!)

ZÉ - O pescoço torço-lhe eu, se continua! Bom! Toca a dormir! Não vale a
pena... (Todos resmungam.)

O BARÃO - Ah! isto cá é hotel?

SERAPIÃO - Hospedaria.

ZÉ - Hospedaria vá ele. Maison garnie. Vossa Senhoria quer uma cama?

PRIMEIRO PRETO - Quá! Branco limpo há de assujetá a drumi em cama de
quatro gintém!

ZÉ - Há também de tostão, com travesseiro..

O BARÃO - Está doido! Eu posso lá dormir aqui!

TIRO-E-QUEDA - Não faça pouco da casa, seu Conselheiro, e ouça lá esta
cantiga pra ficá ciente.

Lundu

I

Quem é pobre não tem luxo,
Se deixe de imposturia!
Meta só feijão no bucho,
E, em vez de vinho, água fria!
Deve andar alegre um home
E não ter pena nenhuma
De matar no frege a fome,
Drumir onde um cão não druma.
Perfeitamente
Acha-se aqui
Caminha quente
Para drumi.
Se fofas penas,
Aqui não tens,
Gastas apenas
Quatro vinténs.

II

Nesta casa não se acoite
Quem pode ir para os hotéis
E pagar por uma noite
Pelo menos dois mil réis.
Mas logrado está quem julga
Ser melhor o tal Ravot,
E ter de achar menos pulga
Lá no Fr&egrave;res Provençaux.
Perfeitamente, etc.

ZÉ - Bom. São horas! toca a dormir!

O BARÃO - Eu vou tomar o bondinho. (À parte.) Lá no Freitas sempre estou
melhor do que aqui! (Os personagens têm-se retirado aos poucos.)

TIRO-E-QUEDA - Eu acompanho Vossa Senhoria até a sua casa.

O BARÃO - Pois sim! Vá lá! (À parte.) Dou-lhe dois mil réis! (A Zé.)
Boa-noite!

Zé - Boa-noite. (O Barão sai.)

TIRO-E-QUEDA (A Zé.) - Se ele não marcha com uma de cinco, eu encho ele!
(Sai.)

ZÉ (Só.) - Este diabo é levado! É pena, porque é boa pessoa, e podia
fazer caminho na política... se tivesse juízo!... (Sai. Mutação.)

Quadro 11

No Cassino Fluminense. É o final de um grande baile. O salão está quase
vazio. Senhoras e cavalheiros passeiam fatigados.

CENA I

CONVIDADOS, depois o VISCONDE, que dá o baile, depois o PRIMEIRO e
SEGUNDO CONVIDADOS, depois um CRIADO, com uma bandeja de chocolate

CORO -

- Que belo baile!
Que animação!
Luzes e flores
Em profusão!
Comes e bebes
 discrição!
Que belo baile!
Que animação!...

O VISCONDE (Fatigadíssimo, vindo ao proscênio.) - Valha-me Deus! já
terminou o cotilhão... Que faz ainda aqui esta gente? Estou morto por me
deitar... Que dia! Nunca trabalhei tanto em toda a minha vida!...
(Consultando o relógio.) Já passam de quatro horas. (Falando a um e a
outro.) Então, minha senhora, ficou satisfeita com o presente que lhe
coube no cotilhão? - Conselheiro, por que não trouxe sua senhora? -
Dançou muito, Doutor? (Sai, falando sempre e muito preocupado em
obsequiar a um e a outro. Vêm ao proscênio o Primeiro e o Segundo
Convidados.)

PRIMEIRO CONVIDADO (Com um pé no ar.) - Arre! que um bruto pisou o meu
melhor calo! Também arrumei-lhe uma descompostura como ele tão cedo não
ouvirá outra! Não gosto disto. É a primeira vez que venho ao tal
Cassino, e há ele ser a última!

SEGUNDO CONVIDADO - Não faça caso, Comendador!

PRIMEIRO CONVIDADO - Basta que o estupor das botas me apertem os
joanetes, que é uma desgraça!...

(Passa um criado levando uma bandeja de xícaras de chocolate. Todos os
convidados avançam para ele. O criado levanta a bandeja de modo que não
lhe possam tocar.)

VOZES - Dê cá! Dê cá!

(O criado consegue sair. O Segundo e o Quarto Convidados encontram-se no
proscênio.)

CENA II

CONVIDADOS, TERCEIRO e QUARTO CONVIDADOS, depois o VISCONDE

TERCEIRO CONVIDADO - Oh! estás também por cá?

QUARTO CONVIDADO - Desde o princípio. Já fiz três declarações de amor.

TERCEIRO CONVIDADO - Eu procurei-te, mas podia lá encontrar-te no meio
de três mil pessoas!...

QUARTO CONVIDADO - Que tal achaste o baile?

TERCEIRO CONVIDADO - Muito bom, mas estou arrependido de ter vindo. Está
aqui todo o comércio. Não dou um passo que não encontre um credor. Ainda
agora esbarrei com o alfaiate que me fez esta casaca há dois anos.

QUARTO CONVIDADO (Examinando.) - Ouvidor?

TERCEIRO CONVIDADO - Hospício.

QUARTO CONVIDADO - Pois olha, está soberba. Devias ter pago.

TERCEIRO CONVIDADO - Ah! isso era muito difícil.

QUARTO CONVIDADO - O baile acabou, mas creio que ainda há o que beber.
Vamos tomar alguma coisa?

TERCEIRO CONVIDADO - Vamos lá. Desde a lei de Treze de Maio, não faço
outra coisa senão tomar alguma coisa.

QUARTO CONVIDADO - Já fui a quinze banquetes... (Afastam-se.)

O VISCONDE (A um e a outro, entrando.) - A sua menina gostou da festa? -
Jogou a sua partidinha de voltarete? - Por que não trouxe a família? Ah!
veio? Bom!... Minha senhora, por onde anda seu esposo? Divirtam-se,
divirtam-se até o fim!! (No proscênio.) Ora esta! Querem passar aqui o
dia!... (Sai.)

CENA III

CONVIDADOS, o BARÃO, SEGUNDO CONVIDADO, PRIMEIRA SENHORA, depois o
VISCONDE

O BARÃO (Conversando com o segundo convidado, que entra de braço com uma
senhora.) - Pois é verdade, meu caro senhor, não sei para que estas
levas para Mato Grosso! A cidade está agora, mais do que nunca,
infestada de capoeiras! Aqui há dias, ali no Largo da Lapa, à porta do
Freitas Hotel, este seu criado apanhou uma cabeçada na boca do
estômago... porque não quis dar cinco mil réis a um desses meliantes.

A SENHORA - Credo!...

SEGUNDO CONVIDADO - Valia a pena ter-lhe dado o dinheiro.

O BARÃO - Ah, se eu adivinhasse, dava-lhe até mais alguma coisa. Durante
quatro dias não me animei a sair à rua!...

A SENHORA - Ainda se demora muito tempo na Corte, Senhor Barão?

O BARÃO - Não sei, Senhora Dona Mariana, não sei: há aí um negócio, ou
antes, dois negócios que me têm prendido. A Baronesa, coitadinha!
chama-me todos os dias. Para consolá-la, mandei-lhe o meu retrato...
deste tamanho... tirado na Fotografia União!

SEGUNDO CONVIDADO - Ah! eu vi-o na Glacé Elégante.

O BARÃO - Agora mesmo a Baronesa me escreveu dizendo que os negros não
abandonaram a fazenda e aceitaram os salários.

O VISCONDE (Entrando.) - Minhas senhoras... meus senhores... tomaram
chocolate? Está delicioso!

O BARÃO (Ao Visconde.) - Oh! Visconde!...

O VISCONDE - Ah!... perdão!... estou a conhecê-lo e não me recorda...

O BARÃO - Ora essa! dar-se-á caso que não me conheça e tenha me
convidado para a sua festa? Eu sou o Barão do Macuco... Ainda não lhe
havia falado, porque sentei-me numa cadeira ali naquela sala... ao pé da
janela, a tomar fresco e peguei no sono. Mas tenho me divertido muito.
(Boceja.)

O VISCONDE - Pois, Barão, estimo muito que... (Saem ambos. O quinto
convidado com a senhora têm se afastado.)

CENA IV

CONVIDADOS, QUINTO CONVIDADO, SEGUNDA SENHORA, depois SEGUNDO CONVIDADO
e PRIMEIRA SENHORA, depois um DIPLOMATA, depois PRIMEIRO e SEXTO
CONVIDADOS

SEGUNDA SENHORA (Acompanhando o quinto convidado.) - Vamos embora,
Roberto... já deu o tiro de peça, são horas. Às onze horas eu devo estar
de pé, senão é uma desordem lá em casa que ninguém se entende

QUINTO CONVIDADO - Ainda não tomei chocolate.

SEGUNDA SENHORA - Já arranjaste os doces para as crianças?

QUINTO CONVIDADO (Tirando um embrulho de doces do bolso.) - Cá estão.
Vim prevenido com papel.

SEGUNDA SENHORA - Nhozinho e Lili sempre que vamos a qualquer parte e
não levamos alguma coisa para casa, nos apoquentam todo o santo dia.
(Examinando o embrulho.) Oh, Roberto! que miséria de balas!... Vai
arranjar mais algumas!

QUINTO CONVIDADO - Aonde, senhora? Restavam algumas... foi o Meio da
botica quem se lambeu com elas!

SEGUNDA SENHORA - Olha, estas cocadas é que se dispensavam, fazem muito
mal às crianças.

QUINTO CONVIDADO - Deixa ir. Mandam-se de presente ao filho do Góis.

SEGUNDA SENHORA - Mesmo para pagar aquela compoteira de doce de marmelo
que nos mandaram o outro dia.

SEGUNDO CONVIDADO (Sempre de braço com a primeira senhora.) - Ó Dona
Senhorinha, como tem passado?

PRIMEIRA SENHORA (Voltando, vai cumprimentar a segunda senhora.) -
Adeus, seu Roberto... como está Dona Aquela? (Beijam-se.) Não lhe tinha
visto. (O quinto e o sexto convidados cumprimentam-se.)

SEGUNDA SENHORA - Pudera! tanta barafunda!... Não sei pra que se convida
tanta gente... eu gosto mais das soirées de família que destes bailes de
maçada. - Viu a nossa vizinha, a Henriquetinha Barros? Como estava
ridícula!

PRIMEIRA SENHORA - É sempre no que dão vestidos aproveitados... Olhe,
com aquela saia de seda azul, eu vi ela há dois anos no Clube do
Engenho Velho.

SEGUNDA SENHORA - Como tem ido lá por casa com a falta d'água?

PRIMEIRA SENHORA - Tem havido pouca, mas alguma. Sempre dá para os
gastos.

SEGUNDA SENHORA - Lá em casa tem sido um horror. Não é, Roberto?

QUINTO CONVIDADO - Uma calamidade! Há mais de oito dias não temos um
pingo d'água!

PRIMEIRA SENHORA - Que coisa! Então agora, depois do tal Treze de Maio,
que não se pode contar com as criadas, que ficaram todas umas senhoras
fidalgas!

SEGUNDA SENHORA - A lavadeira não nos dá roupa há um mês!... A cesta da
roupa suja está que não se pode fechar!

QUINTO CONVIDADO - Então, que tal tem achado a festa?

SEGUNDO CONVIDADO - Muito bonita... Este homem deve ter gastado muito
dinheiro!

QUINTO CONVIDADO - Dizem que trinta contos, e eu acredito.

SEGUNDO CONVIDADO - Mas há muita mistura... Ainda agora vi um sujeito
metendo doces na algibeira da casaca.

QUINTO CONVIDADO - Oh! péssimo costume!

SEGUNDO CONVIDADO (Vendo passar pelo fundo o diplomata.) - Conhecem? É
um dos homens da época. (Apaga-se a luz do salão.)

QUINTO CONVIDADO - Olhe, apagam-se as luzes... Vamos embora? Já temos
bonde. (Ao sexto.) Vão de carro?

SEGUNDO CONVIDADO - Nada, vou tomar o bondinho da Praça Onze, que me
deixa na porta.

TODOS QUATRO - Então vamos juntos. (Saem.)

(Aparece o primeiro convidado conversando com o sexto.)

PRIMEIRO CONVIDADO - Não há dúvida! O câmbio está bonito, está; sobe que
é um louvar a Deus de gatinhas! Mas ou eu me engano, ou vamos ter uma
crise terrível! Esta lei!...

SEXTO CONVIDADO - Não diga isso! E a imigração? Não vê como tem entrado
gente? Quer que lhe diga? Cá para o meu comércio de vinhos, a lei foi
providencial. Tem sido um beber, meu rico senhor, mas um beber!...

PRIMEIRO CONVIDADO - Ah, por esse lado não me queixo também. Para o meu
negócio de calçado, a lei foi obra. Não imagina a quantidade de sapatos
que tenho vendido para o interior! - Mas vamos embora, que isto já está
deserto. (Saem.)

CENA V

O BARÃO, depois MADEMOISELLE FRITZMAC, depois AMOROSA, depois o VISCONDE

O BARÃO - Já são horas de me pôr ao fresco... mas não devo retirar-me
sem me despedir do dono da casa... Com que saudades estou daquela
misteriosa mulherzinha, que me tem acompanhado a tanta parte e nem
sequer me disse o seu nome nem aonde mora! Tenho por ela um sentimento
difícil de explicar. E a Fritzmac? Que será feito dela? Não a vejo desde
a cena da Rua da Misericórdia. Deixem lá, é levada da carepa, mas é
muito boa fazenda, e não se me dava...

MADEMOISELLE FRITZMAC (Aproximando-se e batendo-lhe ao ombro,
amigavelmente.) - Não se te dava de quê!

O BARÃO - Ela! Vestida de homem!... Que grande atrevimento! Você
aqui!... num baile aristocrata!...

MADEMOISELLE FRITZMAC - Adivinhei que vinhas; era o único meio de
encontrar-te. Que fim levou aquela sirigaita com quem estavas na Rua da
Misericórdia?

O BARÃO - Você não devia falar nisso, que é a sua vergonha!

MADEMOISELLE FRITZMAC - Tenho-te procurado por toda a parte. Já não vais
ao Eldorado, já não apareces no Santana, ninguém te vê na Rua do
Ouvidor. Não recuei diante da idéia de me vestir de homem, pois só assim
poderia penetrar aqui. (Abraçando-o meigamente.) Então, meu Macucozinho,
tem pena de mim: por que tratas assim a tua bichinha?

O BARÃO (Deixando-se abraçar.) - Quem vir isto há de supor que tenha
havido entre nós intimidades de certa transcendência! Pois, senhores...

Coplas

I

MADEMOISELLE FRITZMAC

- Macuco, de mim não fujas.
Macuco, de mim tem dó;
Macuco, meu bem, reserva
Teus beijos para mim só.

Macuco, vê que a Macuca
Já está maluca
Pelo seu bem;
Macuco, vê que à Macuca
Fere e machuca
Tanto desdém!

II

Macuco, tão mau macuco
Palavra que nunca vi!
Macuco, tu não calculas
Que coisas tenho pra ti!


Macuco, vê que a Macuca, etc.

O BARÃO - Não há que ver! Estou vencido!

MADEMOISELLE FRITZMAC - Vem!

O BARÃO - Ora adeus! Vamos!... (Vão a sair. Entra Amorosa.)

AMOROSA - Alto!

Os DOIS (Estacando.) - Ela?!

MADEMOISELLE FRITZMAC (À parte.) - Como o domina com o olhar!...

AMOROSA (Com muita calma, ao Barão.) Retire-se para sua casa. Esta cena,
neste lugar, pode ter conseqüências muito lamentáveis.

O BARÃO - Mas ... (É vencido por um olhar de Amorosa e sai, dizendo.)
Decididamente esta mulher tem feitiço!...

MADEMOI5ELLE FRITZMAC (Cruzando os braços.) - Agora nós! ---

AMOROSA - Que quer dizer essa frase: Agora nós? Nem agora nem nunca!
Por lealdade não aceito a luta, pois tenho certeza que te hei de sempre
vencer, qualquer que seja o terreno em que nos coloquemos! Os teus
pecados nada podem contra as minhas virtudes!

MADEMOISELLE FRITZMAC - Veremos!

O VISCONDE (Entrando de chapéu e sobretudo.) - Ah, finalmente...
(Reparando.) Que vejo! Ainda aqui duas pessoas! (Alto.) Meus senhores...
vão se fechar as portas.

MADEMOISELLE FRITZMAC (À parte.) - Se eu apanhasse este homem! Que ótimo
instrumento seria!... (Alto.) Aproveito este momento em que o acaso nos
põe em frente um do outro, para saudar em Vossa Excelência o amigo dos
prazeres!

AMOROSA - Não! Eu saúdo em Vossa Excelência o brasileiro que tanto
concorre para que a sua pátria prospere com o advento da indústria, do
comércio, das artes, das letras e da ciência! (Apontando para o fundo.)
Possa realizar-se aquele quadro! (Mutação.)

Quadro 12

Apoteose ao progresso da indústria, do comércio, das artes, das letras e
da ciência.


[(Cai o pano.)]

ATO TERCEIRO

Quadro 13 e 14

A cena representa o jornal Imprensa Fluminense, distribuído pelas festas
da abolição.

CENA I

O BARÃO, AMOROSA

(O Barão entra rapidamente, acompanhado por Amorosa.)

AMOROSA - Mas venha cá! Que vai fazer? Onde estamos?

O BARÃO - Não vê? (Aponta para o pano do fundo.) Imprensa Fluminense!

AMOROSA - Ah! Agora reparo! Um imenso jornal!

O BARÃO - A imprensa fluminense congraçou-se por ocasião da lei de Treze
de Maio, e fez aquele jornal de anúncios. Toda ela está representada aí,
toda, exceto o País, que não gosta de andar acompanhado.

AMOROSA - Pois deve aborrecer-se bastante, porque circula tanto...

O BARÃO - É mesmo o jornal de maior circulação da América do Sul.

AMOROSA - Mas o que vem o senhor fazer à imprensa?

O BARÃO - Protestar contra as noticias que escreveram a respeito daquele
rolo do Eldorado; deram a entender que fui eu o provocador, quando foi a
Fritzmac quem me atirou um copo de cerveja tigre à cara.

AMOROSA - Não publicaram o seu nome.

O BARÃO - Mas puseram-lhe as iniciais, e é quanto basta para que todo o
mundo saiba de quem se trata. Isto de iniciais é até um meio de chamar
mais a atenção para o nome.

AMOROSA - E que foi o senhor fazer ao Eldorado? Dir-se-ia que tem
saudades dessa mulher!

O BARÃO - Asseguro que lá não fui por causa dela. Quando ainda restasse
alguma coisa do que sentia por aquele diabo, um copo de cerveja tigre na
cara me curaria de todo!

AMOROSA - Pois sim, mas deixe os tipos tranqüilos.

O BARÃO - Que tipos?

AMOROSA - Os tipos da tipografia. Não faça protesto algum a semelhante
respeito.

O BARÃO - Por quê?

AMOROSA (Com sobranceria.) - Porque não quero! (Meiga.) Bem sabe que só
desejo o que o não prejudique.

O BARÃO - Pois seja! A senhora faz de mim o que quer!... Estamos aqui
como Ceci e Peri. Ceci manda; Peri obedece!

CENA II

OS MESMOS, o DOUTOR GAZETA, depois um ARTISTA

(O Doutor entra com dois quadros debaixo do braço)

O BARÃO - Oh doutor! como tem passado?

O DOUTOR - Menos mal.

O BARÃO - Que leva aí? dois quadros?

O DOUTOR - Não são dois quadros: são dois anzóis.

AMOROSA - Dois anzóis?...

O DOUTOR - Dois prêmios para os assinantes do ano.

Copla

Co'estes cromos tão chibantes
Que a Paris mandei buscar,
Dezesseis mil assinantes
Eu tenciono abiscoitar!
Sujeitinho que se estima
E figura quer fazer,
Na parede esta obra-prima
Pendurada deve ter.
Oh, que pendant,
Como é gentil!
En badinant
E M'aime t'il!

[O DOUTOR] - Para o ano devo arranjar coisa melhor: darei um relógio a
cada assinante!

O BARÃO - Com corrente?

O DOUTOR - Decerto, todo assinante é concorrente.

AMOROSA - Um relógio de ouro?

O DOUTOR - Quase. Tempo virá em que hei de dar como prêmio uma apólice
da dívida pública. Adeus! (Sai.)

O ARTISTA (Entrando.) - É uma indignidade!

O BARÃO - Por que vem tão zangado, amigo?

O ARTISTA - Pois não! O senhor assistiu às festas por ocasião do
regresso de Suas Majestades?

O BARÃO - A algumas. Fui um dos setenta mil logrados de Botafogo!

AMOROSA - Um verdadeiro logro, na verdade. Anunciam um fogo de vistas de
dez contos de réis, e, afinal de contas, impingem ao público, tarde e a
más horas, algumas pobres girândolas.

O BARÃO - Uma pulha de Primeiro de Abril.

O ARTISTA - Ah! não, mas é disso que trato. Bem me importa a mim que em
Botafogo houvesse um fogo bota! Estou indignado, porque sou um pintor,
sou um artista, e o comércio, tendo de ornamentar a fachada do edifício
da Bolsa e dispondo de recursos para fazê-lo dignamente, foi procurar
uns seringueiros muito ordinários, uns caiadores muito incompetentes,
uns pinta-monos, capazes de fazer ladrar um cão! Como se neste país não
houvesse artistas!

O BARÃO - E o coreto da Rua do Ouvidor, canto da dos Ourives?

AMOROSA - Um arco de triunfo, que obrigava o triunfador a passar por
baixo de uns músicos!

O ARTISTA - Um desastre! Pois olhem, d'antes, estas coisas faziam-se com
mais limpeza e talvez com menos despesa. Vou deitar um artigo! (Sai.)

AMOROSA - Tudo salva a boa intenção...

CENA III

O BARÃO, AMOROSA, a SEMANA e a ÉPOCA, que entram desfeitas e
cadavéricas; depois um ESGRIMISTA, depois PRIMEIRO, SEGUNDO e TERCEIRO
JORNALISTAS

O BARÃO - Ó pobres raparigas! Ó meninas, onde vão vocês?

AS DUAS - Vamos morrer.

O BARÃO - Morrer tão jovens? na primavera da vida? na idade das ilusões
e do amor?... Coitadinhas! (Tomando a Semana pela mão.) A menina como
se chama?

A SEMANA - A Semana. Já fui bonita, bonita e guapa; hoje estou neste
belo estado!

AMOROSA - Não admira; tem passado por tantas mãos!...

A ÉPOCA - E eu que passei por uma única mão e estou também morre não
morre?!...

O BARÃO - Como se chama?

A ÉPOCA - A Época.

O BARÃO - Pois, meus amores, vão morrer mais longe, porque eu, a
respeito de defuntos, temos conversado. (Empurra-as brandamente. Elas
saem, e entra o Esgrimista, todo cheio de emplastros e coxeando.)
Querem ver que este é também algum jornal que vai morrer?

O ESGRIMISTA - Não, senhor, não sou um jornal, sou um jornalista.

O BARÃO - Pelo que estou vendo veio de algum rolo!...

O ESGRIMISTA - Engana-se. Sou membro do Clube de Esgrima e acabo de
tomar uma lição de florete.

AMOROSA - Ah! o tal clube que se fundou este ano...

O BARÃO - Deve ser muito divertido.

O ESGRIMISTA - Ah! é preciso saber esgrima! A moda dos duelos vai se
introduzindo no Rio de Janeiro.

AMOROSA - É o meio mais fácil de resolver os pontos de honra...

O BARÃO - E de dar extração aos pontos falsos.

O ESGRIMISTA - Em todo o caso, é bom saber uma pessoa como se há de
haver em frente de uma espada.

O BARÃO - Por exemplo (Servindo-se da bengala como de um florete.) Um,
dois e...

O ESGRIMISTA - Ai! (Foge.)

AMOROSA - É provável que no clube não se ensine o principal requisito
para quem se vai bater, que é ter coragem...

(Entram os três jornalistas, carregados de malas e de presentes. Chegam
ao meio da cena, deixam cair as malas, sentam-se sobre elas e soltam um
grande suspiro de alívio.)

OS TRÊS - Ai...

O BARÃO - É a comissão de jornalistas que foi ao Rio da Prata.

PRIMEIRO JORNALISTA - Trinta banquetes!

SEGUNDO JORNALISTA - Vinte e três espetáculos!

TERCEIRO JORNALISTA - Dezoito recepções!

PRIMEIRO JORNALISTA - Dezenove maioneses!

SEGUNDO JORNALISTA - Cinqüenta e cinco discursos!

PRIMEIRO JORNALISTA (Levantando-se.) - Mas, em compensação, que
amabilidade!

SEGUNDO JORNALISTA (Idem.) - Que gentileza!

TERCEIRO JORNALISTA (Idem.) - E que bonitos presentes!

PRIMEIRO JORNALISTA - Sem contar que vimos e ouvimos a Patti...

OS TRÊS - Oh! a Patti!...


Tango

- São cavalheiros finos
Os argentinos;
Não têm rival.
Enquanto lá estivemos,
Não despendemos
Nem um real!

- Casa bem mobiliada,
Roupa lavada,
Nada faltou!

PRIMEIRO JORNALISTA

- Que belas petisqueiras
O Pederneiras
Saboreou!

SEGUNDO JORNALISTA

- Oh, que linda terra!
Como são gentis!
Pode lá haver guerra
Com tão bom país!
As tais argentinas
São mesmo uma flor!
Por pouco as meninas
Nos matam de amor!

II

PRIMEIRO JORNALISTA

- Nuns corrupios doidos
Andamos todos
De cá pra lá,
E coisas viu a gente
Que infelizmente
Nunca viu cá!

SEGUNDO JORNALISTA

- Foi um passeio bruto!
Nem um minuto
Se descansou!

TERCEIRO JORNALISTA -

- Mas - é bom que se note -
Este velhote
Não fraquejou!

OS TRÊS - Oh, que linda terra! etc.

(Saem os três dançando.)

O BARÃO - Pobres homens! Vêm estrompados!

AMOROSA - Mas vêm contentes!

(Atravessa a cena um grupo de jornalistas, falando todos a um tempo.)

[JORNALISTAS] - Não entendi palavra!

O BARÃO - Discutem a imigração chinesa.

AMOROSA - Qual é a sua opinião sobre esse assunto?

O BARÃO - A minha?

AMOROSA - Sim.

O BARÃO - Homem, menina, eu não sou muito contra os chins. Dizem que são
ótimos agricultores.

AMOROSA - Não há dúvida, mas não passam disso. Levam a miséria e a
corrupção a toda a parte. E tanto é assim, que os americanos do norte já
os repelem a mão armada.

O BARÃO - Os americanos têm lá muita gente, e nós cá precisamos de
braços.

AMOROSA - Pois deixe mostrar-lhe qual será o futuro da sociedade
brasileira, se a sua terra proteger semelhante imigração.

(Agita o braço. Forte na orquestra. Ergue-se o pano do fundo e aparece
uma sala no gosto chinês, lembrando ao mesmo tempo as nossas casas
atualmente. Fonseca-Tching está assentado, num coxim, fumando ópio e
abanando-se com uma ventarola. Continua a música em surdina na orquestra
durante o quadro suplementar.)

O BARÃO - Que é isto?

AMOROSA - É o que está vendo.

O BARÃO - Eu quando digo que esta mulher tem feitiço!...

AMOROSA - Imagine que estamos em meado do século que vem. Chegue-se aqui
para o lado. Observemos, como se estivéssemos num teatro.

CENA IV

O BARÃO, AMOROSA, FONSECA-TCHING, depois TZÉNG-TZÉNG-SODRÉ, depois PEKY

FONSECA -

- Eu sou feliz, porque em suma
Não há no mundo outro emprego
Melhor que estar em sossego
E não fazer coisa alguma.
Batem à porta. Quem é?

A VOZ DE SODRÉ - Um seu infame criado! ...

FONSECA - Queira entrar.

(Sodré entra.)

Oh! Deus louvado!
É o Senhor Tzeng-Tzeng-Sodré!
Seja bem aparecida
Nesta pobre casa imunda
Essa cara rubicunda
Que é toda saúde e vida!

(Ergue-se e os dois cumprimentam-se á chinesa.)

SODRÉ - Então, como tem comido?

FONSECA - Perfeitamente. Obrigado.

SODRÉ - Cada vez mais anafado!

FONSECA - Vou como Buda é servido..

SODRÉ -

- Minha família canalha
Me pede que cumprimente
A sua esposa excelente.
Onde está ela?

FONSECA -

- Trabalha.
Minha ignóbil mulherzinha
Retribui reconhecida
Tais cumprimentos. Metida
Ela está lá na cozinha
A lavar facas e pratos:
Não lhe pode aparecer.
E o senhor? Come a valer?

SODRÉ -

Ainda hoje comi dois ratos
Que achei no barril do cisco.

FONSECA - Arrotou? Não teve azia?

(Sinais afirmativo e negativo de Sodré.)

É prato de economia
Mas é muito bom petisco.

(Sentindo os efeitos do ópio.)

Tenho fumado demais!
Fume você no meu próprio
Chibuque. Veja que bom ópio
Este de Minas Gerais!

(Passa o cachimbo a Sodré, que fuma.)

SODRÉ (Vendo entrar Peky.) - Olé! formosa Peky!

PEKY -

'Stava lavando a gamela;
Ouvi-lhe a voz...

SODRÉ - Como é bela!

PEKY - E pressurosa corri.

SODRÉ (Tomando a mão de Peky, a Fonseca.)

- Esta mão já duas vezes
Tive a honra de pedir.

PEKY -

- É tempo de decidir:
'Stou d'esp'ranças há três meses...

FONSECA -

Ainda não é visível
Esse estado interessante,
E noivo mais importante
Que se apresente é possível!
Mesmo saber desse estado
Há muito noivo que estima;
Acha mulher e, inda em cima,
Trabalho já começado,
Porque, enfim, Sodré querido,
A tudo a ambição recorre;
Se a mulher sem filho morre,
Não herda nada o marido!

(Com resolução, abraçando-os.)

Ora adeus! Eu não desejo
Que me torçais os narizes;
Casai-vos! sede felizes!

SODRÉ - Oh! que felicidade! Um beijo!

(Beija Peky. Fonseca cai no chão completamente embriagado.)

O velho bêbado está,
E eu já me sinto também...

(Cai.) -

- Vem a meus braços, oh, vem!
Beijos ardentes me dá... (Adormece.)

PEKY -

- Dormem ambos... Ora pois,
Neste cachimbo dourado
Vou fumar o meu bocado,
E adormecer como os dois...

(Tira o cachimbo das mãos de Sodré e começa a fumar. Cai o pano do
fundo. Cessa a música.)

CENA V

O BARÃO, AMOROSA, depois o TERCEIRO JORNALISTA

AMOROSA - Então? que diz àquele quadro?

O BARÃO - Digo que a menina lavrou dois tentos. Já estou completamente
voltado contra o chim.

TERCEIRO JORNALISTA (Entrando.) Aqui tem o primeiro número do meu Diário
do Commercio. A alma do Diário de Noticias num corpo novo.

O BARÃO (Examinando.) - O aspecto é agradável. Naturalmente o miolo diz
com a casca.

AMOROSA - Já vi também a Tribuna Liberal. Bem escrita, mas perversa.

TERCEIRO JORNALISTA - Adeus. (Sai.)

AMOROSA - É um jornal garantido.

O BARÃO - Xi! que grupo ali vem! Fujamos! (Saem. Entra um grupo de
caixeiros.)

CENA VI

CAIXEIROS, armados com baldes de piche e broxas

CORO -

- Das portas o fechamento
Nós vimos todos pedir.
A imprensa neste momento
Vai nossas queixas ouvir.

UM CAIXEIRO

- Amigos da liberdade
Os maus patrões vão ficar;
Embora contra a vontade,
As portas hão de fechar.
Quando algum deles capriche,
E liberdade não der,
Leva de piche,
Haja o que houver!

CORO

- Leva de piche, de piche, de piche,
Haja o que houver!
Das portas o fechamento, etc.

(Saem Os caixeiros. Mutação.)

Quadro 15

O Rossio, no ponto compreendido entre a Rua Sete de Setembro e o Teatro
São Pedro. Cena escura.

CENA I

O BARÃO, AMOROSA

AMOROSA - O senhor durante todo o caminho tem me parecido contrariado...
Não está satisfeito por se ir embora?

O BARÃO - Pois bem, deixe falar-lhe com o coração nas mãos! Não estou
nada satisfeito! Fiz uma figura d'urso - aí está o que fiz! Compreendo
que a senhora não me concedesse certas regalias; está se vendo que é uma
menina honrada... o que, aliás, torna ainda mais inexplicável o seu
procedimento de acompanhar-me por toda a parte e fazer-me continuas
declarações.

AMOROSA - O senhor tem uma falsa compreensão do amor.

O BARÃO - Mas a outra, a Fritzmac?.. Por que não deixou que
arranjássemos nós a nossa vida? Afinal de contas, que perderia eu com
isso? Agora, usando dessa misteriosa influência que exerce sobre a minha
pessoa, a senhora obriga-me a tomar o trem de ferro e voltar para a
fazenda!

AMOROSA - É o que devia ter feito há mais tempo.

O BARÃO - E o bonito é que uma força irresistível me obriga a obedecer
sem tugir nem mugir! E vou-me embora! Só lhe digo duas palavras, duas
palavras apenas, mas enérgicas e cheias de filosofia! Essas duas
palavras são: - Ora bolas!

AMOROSA - Chegou o momento de revelar-lhe tudo.

O BARÃO - Tudo quê?

AMOROSA - Tudo quanto não sabe. A Fritzmac é uma criatura sobrenatural.

O BARÃO - Hein?...

AMOROSA - É uma invenção do Diabo, assim como eu sou uma invenção do
Amor.

O BARÃO (Recuando.) - Quê?... A senhora também é sobrenatural?...

AMOROSA - Pois não deu ainda por isso?...

O BARÃO - Já andava desconfiado... principalmente depois da tal
feitiçaria dos china...

AMOROSA - O meu poder é ilimitado!

Copla

Na terra embora tudo se mude,
Tomem as coisas diversa cor,
Forte há de sempre ser a virtude,
No eterno orgulho do seu vigor.
Anos decorram,
Séculos corram,
É inabalável o Deus do amor.

O BARÃO - Ao mesmo tempo que a senhora me parece criatura de outro
planeta, custa-me crer que não seja uma mulher como as outras...

AMOROSA - Experimente.

O BARÃO (Maliciosamente.) - Como?

AMOROSA - Quer que eu faça aparecer aqui alguma coisa que o divirta?...
Temos tempo: ainda não são horas de tomar o trem, daqui à estação é um
instante e já lá estão as bagagens.

O BARÃO - Ora! O que me poderá divertir?...

AMOROSA - Qual é o divertimento da sua predileção?

O BARÃO - É o teatro.

AMOROSA - Pois bem, farei desfilar diante de seus olhos Os principais
acontecimentos teatrais do ano que está a findar.

O BARÃO - Sempre quero ver isso.

AMOROSA - Pois vai ver! (Faz um gesto.) Aí tem Dona Inês de Castro.

CENA II

OS MESMOS, a CASTRO

O BARÃO - Olá! a mísera e mesquinha! (Vendo entrar a Castro.) Tem razão:
é a própria; conheço-a do bom tempo.

A CASTRO -

Estava a linda Inês...
A linda Inês sou eu!...

O BARÃO (A Amorosa.) - É ela!

A CASTRO -

- Estava a linda Inês posta em sossego,
Entre o pó de esquecidos alfarrábios,
E sacrílega mão ninguém lhe punha.
Quando o empresário do Recrei' Dramático,
Prevendo que a ressurreição da peça
Lhe levaria público ao teatro,
Foi buscá-la nos lôbregos arquivos,
Mandou tirar papéis, meteu-a em cena,
E encarregou-se do papel de Afonso,
O rei severo, o pai meigo e sensível.
Se nós não temos lá um João Caetano,
Se nós não temos uma Ludovina,
Possuímos, no entanto, alguns artistas
Que ainda podem prestar bem bons serviços!
A tragédia montada foi com luxo,
Luxo nas roupas e nos acessórios...

O BARÃO -

- Nem era de esperar que o Dias Braga
Procedesse jamais de outra maneira!...

A CASTRO -

Eu quisera, porém, que me deixassem
No meu canto gozando o doce fruto
Da paz inalterável dos arquivos...

(Saem majestosamente.)

UMA VOZ - Pchit! Pchit!

AMOROSA - Donde partem estes psius?. . Quem nos chama?

A VOZ - Sou eu! Estou aqui! Deste lado! no terraço do Teatro São Pedro
de Alcântara!

O BARÃO - Ah! Lá está! É um homem muito branco!

AMOROSA - Não se engano! É a estátua de Antônio José!

A VOZ - Digam-me uma coisa, meus senhores. É verdade que estão
representando ali defronte as minhas Guerras do Alecrim e da Manjerona?

AMOROSA - É verdade, sim, Senhor Antônio José. E com muitos aplausos.

A VOZ - Faço idéia! Aplausos de convenção, muito diversos daqueles do
Bairro Alto! Tenham a bondade de dizer ao empresário que a minha época
passou. Deixem as minhas óperas em companhia da Nova Castro!

AMOROSA - Lá direi.

A VOZ - Adeus. Vou tomar um semicúpio.

AMOROSA - Adeus, Senhor Antônio José.

CENA III

O BARÃO, AMOROSA, um EX-ATOR, depois PRIMEIRO e SEGUNDO ENGENHEIROS,
depois a GRÃ-VIA

AMOROSA - Aqui está outro acontecimento teatral do ano. Barão,
apresento-lhe o ator Martins.

O EX-ATOR - Ator, risque: ex-ator.

Canto

Sou do Correio
Almoxarife;
Agora o bife
Seguro está!
Já não receio
Tacão de bota,
Nem a risota
Provoco já!
Meus ex-colegas
Todos me invejam
E até desejam
Me acompanhar,
Pois sem pelegas
Não vale a pena
Ir para a cena
Representar.
Muito contente, olé! muito contente, olá!
O almoxarife está! (Sai dançando.)

AMOROSA - Um homem feliz! Passou pelo teatro, foi aplaudido, e não
acabará no Galeão.

O BARÃO - Onde dizem que o governo vai fundar um asilo para os artistas
dramáticos... (Entram dois engenheiros.)

PRIMEIRO ENGENHEIRO - Olhe, colega, neste teatro é preciso abrir cem
portas!

SEGUNDO ENGENHEIRO - Ficará um Teatro Tebas!

PRIMEIRO ENGENHEIRO - No Recreio pôr-se-ão cinco escadas.

SEGUNDO ENGENHEIRO - No Santana umas poucas de saídas.

PRIMEIRO ENGENHEIRO - Que, sendo preciso, poderão também servir de
entradas...

SEGUNDO ENGENHEIRO - O Pedro II é que de mais reformas precisa!

PRIMEIRO ENGENHEIRO - Passará por uma transformação completa!

SEGUNDO ENGENHEIRO - O mesmo acontecerá à Fênix.

PRIMEIRO ENGENHEIRO - Ora, o mesmo acontecerá a todos os outros!

SEGUNDO ENGENHEIRO - Talvez fosse mais curial propor o arrasamento dos
teatros existentes e a edificação de novos.

PRIMEIRO ENGENHEIRO - Pelo menos a economia seria maior...

SEGUNDO ENGENHEIRO - Vamos estudar?

PRIMEIRO ENGENHEIRO - Estudemos! (Saem ambos.)

O BARÃO - Os proprietários dos nossos teatros podem considerar-se também
vítimas do incêndio do Baquet.

AMOROSA - Ai vem a Grã-via, que foi, por bem dizer, o único sucesso
teatral do ano.

A GRÃ-VIA - Conhecem a Grã-via?

OS DOIS - E quem não conhece?

Canto

AMOROSA -

- Essa
Peça
Tantas vezes se tem dado,
Que hoje Foge
Dela o público maçado!

O BARÃO -

- Por formas tão diversas
A dão, coitada,
Que ninguém quer conversas
Coa desgraçada!

A GRÃ-VIA -

Má sorte em Grande Avenida
Me transformou;
Não há música batida
Mais do que eu sou.
Sou vítima dos planos
Deste pais...
Digam-me tais desumanos,
O que lhes fiz! (Sai. dançando.)

CENA IV

O BARÃO, AMOROSA, um DILETANTE, depois um EMPRESÁRIO LÍRICO, depois
PRIMEIRO JORNALISTA, acompanhado do QUARTO e do QUINTO, que não falam.

O BARÃO (Vendo entrar o Diletante a chorar.) - Oh! um homem a chorar!
Que é isto? É também um acontecimento teatral? Querem ver que este
senhor acabou de assistir à representação de uma comédia?

O DILETANTE (Chorando.) - Não, senhor... choro por que ela não veio.

AMOROSA - Ela quem?

O DILETANTE - Ou antes, veio e não cantou; e se cantou, não a ouvi!
Ouvi-la era o meu sonho doirado! Ouvi-la, sim, ainda que não fosse senão
nalguns compassos daquela ária do Barbeiro, em que a dizem sublime.
(Chorando e cantando ao mesmo tempo.) Una voce poco fa...

AMOROSA - Ah! fala da Adelina Patti.

O DILETANTE - Sim, falo da célebre diva italiana! Eu estava tão
esperançado agora de não morrer sem ouvi-la! Já tinha resolvido empenhar
até os colchões em que durmo para tomar uma assinatura!

O BARÃO - Já é vontade de ouvir a Patti!

O DILETANTE Viram os telegramas? Que tormento: "A Patti vai." "Não vai a
Patti." "Vai." "Não vai." "Vai." e não veio! Quero dizer, veio mas não
cantou nem nada, e lá se muscou outra vez sem dar uma nota! Nunca me hei
de consolar desta hipótese. (Sai chorando.)

O BARÃO - Que grande pedaço d'asno!...

(Entram os artistas de uma companhia lírica perseguindo o Empresário.)

CORO DOS ARTISTAS

- O senhor empresário, sem demora
O que deve é pagar, senão há briga!
Não podemos daqui nos ir embora;
Temos todos a sela na barriga!...

O EMPRESÁRIO

- Artistas meus caríssimos,
Não me griteis assim!
Queixai-vos só do público;
Não vos queixeis de mim.

(Sai. A orquestra faz lembrar um motivo da canção do aventureiro, do
Guarani.)

CORO -

Co' esta quebradeira insólita,
Co' esta falta de dinheiro,
Não vem fora de propósito
A canção do aventureiro!
Pobre de nós! na miséria
Vamos ficar!
Que a coisa é séria
Não há mais que duvidar.

PRIMEIRO JORNALISTA (Entrando acompanhado pelo terceiro e quinto
jornalista.)

Recitativo

Da imprensa generosa, ilustre comissão
De que fazemos parte,
Vos toma a todos sob a sua proteção
Por amor da arte.

ÁRIA DO TROVADOR

- Pobres artistas,
Corro a salvar-vos!
Hei de arranjar-vos
Alguns mil réis;
Pagareis todos
Vossas passagens,
E as hospedagens
Nesses hotéis.

CORO - Muito obrigado.

PRIMEIRO JORNALISTA - Não há de quê.

CORO -

- Isto só nesta
Terra se vê.

PRIMEIRO JORNALISTA

- Em mim achastes
Um bom amigo!
Vindo comigo
Ao Castelões!
O fluminenses,
Ides um dia
Ter companhia
A dez tostões!

CORO

- Se nos dá de comê.
Se nos dá de bebê.
Se nos paga os hotéis o seu bem,
Vamos lá com você!
(Saem os jornalist as e os co ros.)

O BARÃO - Mas a senhora não me mostrou o acontecimento teatral mais
importante do ano: a vinda do grande Coquelin.

AMOROSA - Não temos tempo para mais nada. Daqui a vinte minutos, parte o
trem. Vamos!...

O BARÃO - Vamos lá! Estou convencido... A Baronesa vai ter um alegrão!
(Música na orquestra.) Que é aquilo?

AMOROSA - São as tropas que vão para Mato Grosso. Vamos ao encontro
delas.

O BARÃO - Vamos! (Saem. Começam a desfilar as tropas da esquerda para a
direita. No meio da desfilada, faz-se a mutação.)

Quadro 16

A sala do quadro terceiro.

CENA ÚNICA

MADEMOISELLE FRITZMAC, depois PERO BOTELHO

MADEMOISELLE FRITZMAC (Entrando enraivecida.) - Inferno e danação! Ele
partiu!... Partiu sem que eu pudesse transmitir-lhe os meus pecados! Fui
vencida por aquela maldita filha do Amor! Que contas hei de dar de mim a
Pero Botelho?! (Pero Botelho surge do alçapão.) Ele!...

PERO BOTELHO - És um gênio pulha, um espírito de meia tigela, não vales
dois caracóis! Em vez de corromper uma sociedade inteira, procuraste
perverter um indivíduo só, e isso mesmo não conseguiste! Estúpida!...
Que fizeste durante todo este ano? O mormo dos burros talvez, só isso!

MADEMOISELLE FRITZMAC - Fiz o que pude... Até me vesti de homem!...

PERO BOTELHO - Pois foi pena que te não recrutassem para o exército.

MADEMOISELLE FRITZMAC - Tive uma adversária terrível...

PERO BOTELHO - Qual adversária nem qual carapuça! És um gênio mau.

MADEMOISELLE FRITZMAC - E tu tens muito mau gênio.

PERO BOTELHO - Nunca o Brasil foi tão feliz como neste ano! Aboliu-se a
escravidão, receberam-se cento e trinta mil imigrantes, o comércio
prosperou, as artes deram sinal de vida, e publicaram-se livros! Até as
mulheres!... Foi preciso que tu cá viesses para que no Rio de Janeiro
houvesse uma doutora, uma farmacêutica, e até uma toureadora!... Com
certeza não és a criatura que eu desejava. Fritzmac deu-me uma mulher
falsificada... Condenei-o a três meses de cadeia, e retirei-lhe a
Grã-cruz com que o havia condecorado.

MADEMOISELLE FRITZMAC - Fez mal; não é dele a culpa, mas dos próprios
pecados, que estão serôdios, e já não produzem efeito em ninguém. A
sociedade moderna transformou os pecados em virtudes; a avareza hoje é
economia e previdência; a ira, coragem e energia; a preguiça, prudência,
discrição e modéstia a inveja, ambição e estímulo; a gula, é sinal de
saúde e bons costumes, e a luxúria... amor!...

PERO BOTELHO - Talvez tenhas razão... mas olha que lá no inferno não me
pões mais os pés!... Fica-te no Rio de Janeiro a tomar cajuadas, e
deixa-te dominar pelas virtudes, se quiseres. Nada tenho com isso. Para
o ano virei em pessoa corromper esta boa gente. Bem diz o ditado que
quem quer vai, e quem não quer manda.

AMOROSA (Entrando.) - Então não se conta comigo?

Q AMOR (Idem.) - Nem comigo?

PERO BOTELHO - Por Satanás! que grande audácia!...

O AMOR - Volta para o ano, e aqui me encontrarás pronto para o combate!

MADEMOISELLE FRITZMAC - Veremos.

AMOROSA -

- Há de o Brasil crescer: do amor o deus antigo
De protegê-lo não cansa;
O Oitenta e Nove há de lhe ser amigo...
Boa figura vai fazer em França.

(Aponta para o fundo. Mutação.)

Quadro 17

O Palácio do Brasil na Exposição Universal de 1889. A orquestra executa
um trecho de música, composto pela Marselhesa e pelo Hino Brasileiro,
engenhosamente ligados.

[(Cai o pano.)]
Lady Windermere's Fan
by Oscar Wilde

The Project Gutenberg

Lady Windermere's Fan by Oscar Wilde
Scanned and proofed by David Price
ccx074@coventry.ac.uk





Lady Windermere's Fan




THE PERSONS OF THE PLAY

Lord Windermere
Lord Darlington
Lord Augustus Lorton
Mr. Dumby
Mr. Cecil Graham
Mr. Hopper
Parker, Butler

Lady Windermere
The Duchess of Berwick
Lady Agatha Carlisle
Lady Plymdale
Lady Stutfield
Lady Jedburgh
Mrs. Cowper-Cowper
Mrs. Erlynne
Rosalie, Maid



THE SCENES OF THE PLAY


ACT I. Morning-room in Lord Windermere's house.
ACT II. Drawing-room in Lord Windermere's house.
ACT III. Lord Darlington's rooms.
ACT IV. Morning-room in Lord Windermere's house.


TIME: 1892
PLACE: London


The action of the play takes place within twenty-four hours,
beginning on a Tuesday afternoon at five o'clock, and ending the
next day at 1.30 p.m.




Lady Windermere's Fan


FIRST ACT



SCENCE

Morning-room of Lord Windermere's house in Carlton House Terrace.
Doors C. and R. Bureau with books and papers R. Sofa with small
tea-table L. Window opening on to terrace L. Table R.
[C = Center, L = Left, R = Right]



[LADY WINDERMERE is at table R., arranging roses in a blue bowl.]

[Enter PARKER.]

PARKER. Is your ladyship at home this afternoon?

LADY WINDERMERE. Yes - who has called?

PARKER. Lord Darlington, my lady.

LADY WINDERMERE. [Hesitates for a moment.] Show him up - and I'm
at home to any one who calls.

PARKER. Yes, my lady.

[Exit C.]

LADY WINDERMERE. It's best for me to see him before to-night. I'm
glad he's come.

[Enter PARKER C.]

PARKER. Lord Darlington,

[Enter LORD DARLINGTON C.]

[Exit PARKER.]

LORD DARLINGTON. How do you do, Lady Windermere?

LADY WINDERMERE. How do you do, Lord Darlington? No, I can't
shake hands with you. My hands are all wet with these roses.
Aren't they lovely? They came up from Selby this morning.

LORD DARLINGTON. They are quite perfect. [Sees a fan lying on the
table.] And what a wonderful fan! May I look at it?

LADY WINDERMERE. Do. Pretty, isn't it! It's got my name on it,
and everything. I have only just seen it myself. It's my
husband's birthday present to me. You know to-day is my birthday?

LORD DARLINGTON. No? Is it really?

LADY WINDERMERE. Yes, I'm of age to-day. Quite an important day
in my life, isn't it? That is why I am giving this party tonight.
Do sit down. [Still arranging flowers.]

LORD DARLINGTON. [Sitting down.] I wish I had known it was your
birthday, Lady Windermere. I would have covered the whole street
in front of your house with flowers for you to walk on. They are
made for you. [A short pause.]

LADY WINDERMERE. Lord Darlington, you annoyed me last night at the
Foreign Office. I am afraid you are going to annoy me again.

LORD DARLINGTON. I, Lady Windermere?

[Enter PARKER and FOOTMAN C., with tray and tea things.]

LADY WINDERMERE. Put it there, Parker. That will do. [Wipes her
hands with her pocket-handkerchief, goes to tea-table, and sits
down.] Won't you come over, Lord Darlington?

[Exit PARKER C.]

LORD DARLINGTON. [Takes chair and goes across L.C.] I am quite
miserable, Lady Windermere. You must tell me what I did. [Sits
down at table L.]

LADY WINDERMERE. Well, you kept paying me elaborate compliments
the whole evening.

LORD DARLINGTON. [Smiling.] Ah, nowadays we are all of us so hard
up, that the only pleasant things to pay ARE compliments. They're
the only things we CAN pay.

LADY WINDERMERE. [Shaking her head.] No, I am talking very
seriously. You mustn't laugh, I am quite serious. I don't like
compliments, and I don't see why a man should think he is pleasing
a woman enormously when he says to her a whole heap of things that
he doesn't mean.

LORD DARLINGTON. Ah, but I did mean them. [Takes tea which she
offers him.]

LADY WINDERMERE. [Gravely.] I hope not. I should be sorry to
have to quarrel with you, Lord Darlington. I like you very much,
you know that. But I shouldn't like you at all if I thought you
were what most other men are. Believe me, you are better than most
other men, and I sometimes think you pretend to be worse.

LORD DARLINGTON. We all have our little vanities, Lady Windermere.

LADY WINDERMERE. Why do you make that your special one? [Still
seated at table L.]

LORD DARLINGTON. [Still seated L.C.] Oh, nowadays so many
conceited people go about Society pretending to be good, that I
think it shows rather a sweet and modest disposition to pretend to
be bad. Besides, there is this to be said. If you pretend to be
good, the world takes you very seriously. If you pretend to be
bad, it doesn't. Such is the astounding stupidity of optimism.

LADY WINDERMERE. Don't you WANT the world to take you seriously
then, Lord Darlington?

LORD DARLINGTON. No, not the world. Who are the people the world
takes seriously? All the dull people one can think of, from the
Bishops down to the bores. I should like YOU to take me very
seriously, Lady Windermere, YOU more than any one else in life.

LADY WINDERMERE. Why - why me?

LORD DARLINGTON. [After a slight hesitation.] Because I think we
might be great friends. Let us be great friends. You may want a
friend some day.

LADY WINDERMERE. Why do you say that?

LORD DARLINGTON. Oh! - we all want friends at times.

LADY WINDERMERE. I think we're very good friends already, Lord
Darlington. We can always remain so as long as you don't -

LORD DARLINGTON. Don't what?

LADY WINDERMERE. Don't spoil it by saying extravagant silly things
to me. You think I am a Puritan, I suppose? Well, I have
something of the Puritan in me. I was brought up like that. I am
glad of it. My mother died when I was a mere child. I lived
always with Lady Julia, my father's elder sister, you know. She
was stern to me, but she taught me what the world is forgetting,
the difference that there is between what is right and what is
wrong. SHE allowed of no compromise. I allow of none.

LORD DARLINGTON. My dear Lady Windermere!

LADY WINDERMERE. [Leaning back on the sofa.] You look on me as
being behind the age. - Well, I am! I should be sorry to be on the
same level as an age like this.

LORD DARLINGTON. You think the age very bad?

LADY WINDERMERE. Yes. Nowadays people seem to look on life as a
speculation. It is not a speculation. It is a sacrament. Its
ideal is Love. Its purification is sacrifice.

LORD DARLINGTON. [Smiling.] Oh, anything is better than being
sacrificed!

LADY WINDERMERE. [Leaning forward.] Don't say that.

LORD DARLINGTON. I do say it. I feel it - I know it.

[Enter PARKER C.]

PARKER. The men want to know if they are to put the carpets on the
terrace for to-night, my lady?

LADY WINDERMERE. You don't think it will rain, Lord Darlington, do
you?

LORD DARLINGTON. I won't hear of its raining on your birthday!

LADY WINDERMERE. Tell them to do it at once, Parker.

[Exit PARKER C.]

LORD DARLINGTON. [Still seated.] Do you think then - of course I
am only putting an imaginary instance - do you think that in the
case of a young married couple, say about two years married, if the
husband suddenly becomes the intimate friend of a woman of - well,
more than doubtful character - is always calling upon her, lunching
with her, and probably paying her bills - do you think that the
wife should not console herself?

LADY WINDERMERE. [Frowning] Console herself?

LORD DARLINGTON. Yes, I think she should - I think she has the
right.

LADY WINDERMERE. Because the husband is vile - should the wife be
vile also?

LORD DARLINGTON. Vileness is a terrible word, Lady Windermere.

LADY WINDERMERE. It is a terrible thing, Lord Darlington.

LORD DARLINGTON. Do you know I am afraid that good people do a
great deal of harm in this world. Certainly the greatest harm they
do is that they make badness of such extraordinary importance. It
is absurd to divide people into good and bad. People are either
charming or tedious. I take the side of the charming, and you,
Lady Windermere, can't help belonging to them.

LADY WINDERMERE. Now, Lord Darlington. [Rising and crossing R.,
front of him.] Don't stir, I am merely going to finish my flowers.
[Goes to table R.C.]

LORD DARLINGTON. [Rising and moving chair.] And I must say I
think you are very hard on modern life, Lady Windermere. Of course
there is much against it, I admit. Most women, for instance,
nowadays, are rather mercenary.

LADY WINDERMERE. Don't talk about such people.

LORD DARLINGTON. Well then, setting aside mercenary people, who,
of course, are dreadful, do you think seriously that women who have
committed what the world calls a fault should never be forgiven?

LADY WINDERMERE. [Standing at table.] I think they should never
be forgiven.

LORD DARLINGTON. And men? Do you think that there should be the
same laws for men as there are for women?

LADY WINDERMERE. Certainly!

LORD DARLINGTON. I think life too complex a thing to be settled by
these hard and fast rules.

LADY WINDERMERE. If we had 'these hard and fast rules,' we should
find life much more simple.

LORD DARLINGTON. You allow of no exceptions?

LADY WINDERMERE. None!

LORD DARLINGTON. Ah, what a fascinating Puritan you are, Lady
Windermere!

LADY WINDERMERE. The adjective was unnecessary, Lord Darlington.

LORD DARLINGTON. I couldn't help it. I can resist everything
except temptation.

LADY WINDERMERE. You have the modern affectation of weakness.

LORD DARLINGTON. [Looking at her.] It's only an affectation, Lady
Windermere.

[Enter PARKER C.]

PARKER. The Duchess of Berwick and Lady Agatha Carlisle.

[Enter the DUCHESS OF BERWICK and LADY AGATHA CARLISLE C.]

[Exit PARKER C.]

DUCHESS OF BERWICK. [Coming down C., and shaking hands.] Dear
Margaret, I am so pleased to see you. You remember Agatha, don't
you? [Crossing L.C.] How do you do, Lord Darlington? I won't let
you know my daughter, you are far too wicked.

LORD DARLINGTON. Don't say that, Duchess. As a wicked man I am a
complete failure. Why, there are lots of people who say I have
never really done anything wrong in the whole course of my life.
Of course they only say it behind my back.

DUCHESS OF BERWICK. Isn't he dreadful? Agatha, this is Lord
Darlington. Mind you don't believe a word he says. [LORD
DARLINGTON crosses R.C.] No, no tea, thank you, dear. [Crosses
and sits on sofa.] We have just had tea at Lady Markby's. Such
bad tea, too. It was quite undrinkable. I wasn't at all
surprised. Her own son-in-law supplies it. Agatha is looking
forward so much to your ball to-night, dear Margaret.

LADY WINDERMERE. [Seated L.C.] Oh, you mustn't think it is going
to be a ball, Duchess. It is only a dance in honour of my
birthday. A small and early.

LORD DARLINGTON. [Standing L.C.] Very small, very early, and very
select, Duchess.

DUCHESS OF BERWICK. [On sofa L.] Of course it's going to be
select. But we know THAT, dear Margaret, about YOUR house. It is
really one of the few houses in London where I can take Agatha, and
where I feel perfectly secure about dear Berwick. I don't know
what society is coming to. The most dreadful people seem to go
everywhere. They certainly come to my parties - the men get quite
furious if one doesn't ask them. Really, some one should make a
stand against it.

LADY WINDERMERE. I will, Duchess. I will have no one in my house
about whom there is any scandal.

LORD DARLINGTON. [R.C.] Oh, don't say that, Lady Windermere. I
should never be admitted! [Sitting.]

DUCHESS OF BERWICK. Oh, men don't matter. With women it is
different. We're good. Some of us are, at least. But we are
positively getting elbowed into the corner. Our husbands would
really forget our existence if we didn't nag at them from time to
time, just to remind them that we have a perfect legal right to do
so.

LORD DARLINGTON. It's a curious thing, Duchess, about the game of
marriage - a game, by the way, that is going out of fashion - the
wives hold all the honours, and invariably lose the odd trick.

DUCHESS OF BERWICK. The odd trick? Is that the husband, Lord
Darlington?

LORD DARLINGTON. It would be rather a good name for the modern
husband.

DUCHESS OF BERWICK. Dear Lord Darlington, how thoroughly depraved
you are!

LADY WINDERMERE. Lord Darlington is trivial.

LORD DARLINGTON. Ah, don't say that, Lady Windermere.

LADY WINDERMERE. Why do you TALK so trivially about life, then?

LORD DARLINGTON. Because I think that life is far too important a
thing ever to talk seriously about it. [Moves up C.]

DUCHESS OF BERWICK. What does he mean? Do, as a concession to my
poor wits, Lord Darlington, just explain to me what you really
mean.

LORD DARLINGTON. [Coming down back of table.] I think I had
better not, Duchess. Nowadays to be intelligible is to be found
out. Good-bye! [Shakes hands with DUCHESS.] And now - [goes up
stage] Lady Windermere, good-bye. I may come to-night, mayn't I?
Do let me come.

LADY WINDERMERE. [Standing up stage with LORD DARLINGTON.] Yes,
certainly. But you are not to say foolish, insincere things to
people.

LORD DARLINGTON. [Smiling.] Ah! you are beginning to reform me.
It is a dangerous thing to reform any one, Lady Windermere. [Bows,
and exit C.]

DUCHESS OF BERWICK. [Who has risen, goes C.] What a charming,
wicked creature! I like him so much. I'm quite delighted he's
gone! How sweet you're looking! Where DO you get your gowns? And
now I must tell you how sorry I am for you, dear Margaret.
[Crosses to sofa and sits with LADY WINDERMERE.] Agatha, darling!

LADY AGATHA. Yes, mamma. [Rises.]

DUCHESS OF BERWICK. Will you go and look over the photograph album
that I see there?

LADY AGATHA. Yes, mamma. [Goes to table up L.]

DUCHESS OF BERWICK. Dear girl! She is so fond of photographs of
Switzerland. Such a pure taste, I think. But I really am so sorry
for you, Margaret

LADY WINDERMERE. [Smiling.] Why, Duchess?

DUCHESS OF BERWICK. Oh, on account of that horrid woman. She
dresses so well, too, which makes it much worse, sets such a
dreadful example. Augustus - you know my disreputable brother -
such a trial to us all - well, Augustus is completely infatuated
about her. It is quite scandalous, for she is absolutely
inadmissible into society. Many a woman has a past, but I am told
that she has at least a dozen, and that they all fit.

LADY WINDERMERE. Whom are you talking about, Duchess?

DUCHESS OF BERWICK. About Mrs. Erlynne.

LADY WINDERMERE. Mrs. Erlynne? I never heard of her, Duchess.
And what HAS she to do with me?

DUCHESS OF BERWICK. My poor child! Agatha, darling!

LADY AGATHA. Yes, mamma.

DUCHESS OF BERWICK. Will you go out on the terrace and look at the
sunset?

LADY AGATHA. Yes, mamma. [Exit through window, L.]

DUCHESS OF BERWICK. Sweet girl! So devoted to sunsets! Shows
such refinement of feeling, does it not? After all, there is
nothing like Nature, is there?

LADY WINDERMERE. But what is it, Duchess? Why do you talk to me
about this person?

DUCHESS OF BERWICK. Don't you really know? I assure you we're all
so distressed about it. Only last night at dear Lady Jansen's
every one was saying how extraordinary it was that, of all men in
London, Windermere should behave in such a way.

LADY WINDERMERE. My husband - what has HE got to do with any woman
of that kind?

DUCHESS OF BERWICK. Ah, what indeed, dear? That is the point. He
goes to see her continually, and stops for hours at a time, and
while he is there she is not at home to any one. Not that many
ladies call on her, dear, but she has a great many disreputable men
friends - my own brother particularly, as I told you - and that is
what makes it so dreadful about Windermere. We looked upon HIM as
being such a model husband, but I am afraid there is no doubt about
it. My dear nieces - you know the Saville girls, don't you? - such
nice domestic creatures - plain, dreadfully plain, but so good -
well, they're always at the window doing fancy work, and making
ugly things for the poor, which I think so useful of them in these
dreadful socialistic days, and this terrible woman has taken a
house in Curzon Street, right opposite them - such a respectable
street, too! I don't know what we're coming to! And they tell me
that Windermere goes there four and five times a week - they SEE
him. They can't help it - and although they never talk scandal,
they - well, of course - they remark on it to every one. And the
worst of it all is that I have been told that this woman has got a
great deal of money out of somebody, for it seems that she came to
London six months ago without anything at all to speak of, and now
she has this charming house in Mayfair, drives her ponies in the
Park every afternoon and all - well, all - since she has known poor
dear Windermere.

LADY WINDERMERE. Oh, I can't believe it!

DUCHESS OF BERWICK. But it's quite true, my dear. The whole of
London knows it. That is why I felt it was better to come and talk
to you, and advise you to take Windermere away at once to Homburg
or to Aix, where he'll have something to amuse him, and where you
can watch him all day long. I assure you, my dear, that on several
occasions after I was first married, I had to pretend to be very
ill, and was obliged to drink the most unpleasant mineral waters,
merely to get Berwick out of town. He was so extremely
susceptible. Though I am bound to say he never gave away any large
sums of money to anybody. He is far too high-principled for that!

LADY WINDERMERE. [Interrupting.] Duchess, Duchess, it's
impossible! [Rising and crossing stage to C.] We are only married
two years. Our child is but six months old. [Sits in chair R. of
L. table.]

DUCHESS OF BERWICK. Ah, the dear pretty baby! How is the little
darling? Is it a boy or a girl? I hope a girl - Ah, no, I
remember it's a boy! I'm so sorry. Boys are so wicked. My boy is
excessively immoral. You wouldn't believe at what hours he comes
home. And he's only left Oxford a few months - I really don't know
what they teach them there.

LADY WINDERMERE. Are ALL men bad?

DUCHESS OF BERWICK. Oh, all of them, my dear, all of them, without
any exception. And they never grow any better. Men become old,
but they never become good.

LADY WINDERMERE. Windermere and I married for love.

DUCHESS OF BERWICK. Yes, we begin like that. It was only
Berwick's brutal and incessant threats of suicide that made me
accept him at all, and before the year was out, he was running
after all kinds of petticoats, every colour, every shape, every
material. In fact, before the honeymoon was over, I caught him
winking at my maid, a most pretty, respectable girl. I dismissed
her at once without a character. - No, I remember I passed her on
to my sister; poor dear Sir George is so short-sighted, I thought
it wouldn't matter. But it did, though - it was most unfortunate.
[Rises.] And now, my dear child, I must go, as we are dining out.
And mind you don't take this little aberration of Windermere's too
much to heart. Just take him abroad, and he'll come back to you
all right.

LADY WINDERMERE. Come back to me? [C.]

DUCHESS OF BERWICK. [L.C.] Yes, dear, these wicked women get our
husbands away from us, but they always come back, slightly damaged,
of course. And don't make scenes, men hate them!

LADY WINDERMERE. It is very kind of you, Duchess, to come and tell
me all this. But I can't believe that my husband is untrue to me.

DUCHESS OF BERWICK. Pretty child! I was like that once. Now I
know that all men are monsters. [LADY WINDERMERE rings bell.] The
only thing to do is to feed the wretches well. A good cook does
wonders, and that I know you have. My dear Margaret, you are not
going to cry?

LADY WINDERMERE. You needn't be afraid, Duchess, I never cry.

DUCHESS OF BERWICK. That's quite right, dear. Crying is the
refuge of plain women but the ruin of pretty ones. Agatha,
darling!

LADY AGATHA. [Entering L.] Yes, mamma. [Stands back of table
L.C.]

DUCHESS OF BERWICK. Come and bid good-bye to Lady Windermere, and
thank her for your charming visit. [Coming down again.] And by
the way, I must thank you for sending a card to Mr. Hopper - he's
that rich young Australian people are taking such notice of just at
present. His father made a great fortune by selling some kind of
food in circular tins - most palatable, I believe - I fancy it is
the thing the servants always refuse to eat. But the son is quite
interesting. I think he's attracted by dear Agatha's clever talk.
Of course, we should be very sorry to lose her, but I think that a
mother who doesn't part with a daughter every season has no real
affection. We're coming to-night, dear. [PARKER opens C. doors.]
And remember my advice, take the poor fellow out of town at once,
it is the only thing to do. Good-bye, once more; come, Agatha.

[Exeunt DUCHESS and LADY AGATHA C.]

LADY WINDERMERE. How horrible! I understand now what Lord
Darlington meant by the imaginary instance of the couple not two
years married. Oh! it can't be true - she spoke of enormous sums
of money paid to this woman. I know where Arthur keeps his bank
book - in one of the drawers of that desk. I might find out by
that. I WILL find out. [Opens drawer.] No, it is some hideous
mistake. [Rises and goes C.] Some silly scandal! He loves ME!
He loves ME! But why should I not look? I am his wife, I have a
right to look! [Returns to bureau, takes out book and examines it
page by page, smiles and gives a sigh of relief.] I knew it! there
is not a word of truth in this stupid story. [Puts book back in
dranver. As the does so, starts and takes out another book.] A
second book - private - locked! [Tries to open it, but fails.
Sees paper knife on bureau, and with it cuts cover from book.
Begins to start at the first page.] 'Mrs. Erlynne - o600 - Mrs.
Erlynne - o700 - Mrs. Erlynne - o400.' Oh! it is true! It is
true! How horrible! [Throws book on floor.] [Enter LORD
WINDERMERE C.]

LORD WINDERMERE. Well, dear, has the fan been sent home yet?
[Going R.C. Sees book.] Margaret, you have cut open my bank book.
You have no right to do such a thing!

LADY WINDERMERE. You think it wrong that you are found out, don't
you?

LORD WINDERMERE. I think it wrong that a wife should spy on her
husband.

LADY WINDERMERE. I did not spy on you. I never knew of this
woman's existence till half an hour ago. Some one who pitied me
was kind enough to tell me what every one in London knows already -
your daily visits to Curzon Street, your mad infatuation, the
monstrous sums of money you squander on this infamous woman!
[Crossing L.]

LORD WINDERMERE. Margaret! don't talk like that of Mrs. Erlynne,
you don't know how unjust it is!

LADY WINDERMERE. [Turning to him.] You are very jealous of Mrs.
Erlynne's honour. I wish you had been as jealous of mine.

LORD WINDERMERE. Your honour is untouched, Margaret. You don't
think for a moment that - [Puts book back into desk.]

LADY WINDERMERE. I think that you spend your money strangely.
That is all. Oh, don't imagine I mind about the money. As far as
I am concerned, you may squander everything we have. But what I DO
mind is that you who have loved me, you who have taught me to love
you, should pass from the love that is given to the love that is
bought. Oh, it's horrible! [Sits on sofa.] And it is I who feel
degraded! YOU don't feel anything. I feel stained, utterly
stained. You can't realise how hideous the last six months seems
to me now - every kiss you have given me is tainted in my memory.

LORD WINDERMERE. [Crossing to her.] Don't say that, Margaret. I
never loved any one in the whole world but you.

LADY WINDERMERE. [Rises.] Who is this woman, then? Why do you
take a house for her?

LORD WINDERMERE. I did not take a house for her.

LADY WINDERMERE. You gave her the money to do it, which is the
same thing.

LORD WINDERMERE. Margaret, as far as I have known Mrs. Erlynne -

LADY WINDERMERE. Is there a Mr. Erlynne - or is he a myth?

LORD WINDERMERE. Her husband died many years ago. She is alone in
the world.

LADY WINDERMERE. No relations? [A pause.]

LORD WINDERMERE. None.

LADY WINDERMERE. Rather curious, isn't it? [L.]

LORD WINDERMERE. [L.C.] Margaret, I was saying to you - and I beg
you to listen to me - that as far as I have known Mrs. Erlynne, she
has conducted herself well. If years ago -

LADY WINDERMERE. Oh! [Crossing R.C.] I don't want details about
her life!

LORD WINDERMERE. [C.] I am not going to give you any details
about her life. I tell you simply this - Mrs. Erlynne was once
honoured, loved, respected. She was well born, she had position -
she lost everything - threw it away, if you like. That makes it
all the more bitter. Misfortunes one can endure - they come from
outside, they are accidents. But to suffer for one's own faults -
ah! - there is the sting of life. It was twenty years ago, too.
She was little more than a girl then. She had been a wife for even
less time than you have.

LADY WINDERMERE. I am not interested in her - and - you should not
mention this woman and me in the same breath. It is an error of
taste. [Sitting R. at desk.]

LORD WINDERMERE. Margaret, you could save this woman. She wants
to get back into society, and she wants you to help her. [Crossing
to her.]

LADY WINDERMERE. Me!

LORD WINDERMERE. Yes, you.

LADY WINDERMERE. How impertinent of her! [A pause.]

LORD WINDERMERE. Margaret, I came to ask you a great favour, and I
still ask it of you, though you have discovered what I had intended
you should never have known that I have given Mrs. Erlynne a large
sum of money. I want you to send her an invitation for our party
to-night. [Standing L. of her.]

LADY WINDERMERE. You are mad! [Rises.]

LORD WINDERMERE. I entreat you. People may chatter about her, do
chatter about her, of course, but they don't know anything definite
against her. She has been to several houses - not to houses where
you would go, I admit, but still to houses where women who are in
what is called Society nowadays do go. That does not content her.
She wants you to receive her once.

LADY WINDERMERE. As a triumph for her, I suppose?

LORD WINDERMERE. No; but because she knows that you are a good
woman - and that if she comes here once she will have a chance of a
happier, a surer life than she has had. She will make no further
effort to know you. Won't you help a woman who is trying to get
back?

LADY WINDERMERE. No! If a woman really repents, she never wishes
to return to the society that has made or seen her ruin.

LORD WINDERMERE. I beg of you.

LADY WINDERMERE. [Crossing to door R.] I am going to dress for
dinner, and don't mention the subject again this evening. Arthur
[going to him C.], you fancy because I have no father or mother
that I am alone in the world, and that you can treat me as you
choose. You are wrong, I have friends, many friends.

LORD WINDERMERE. [L.C.] Margaret, you are talking foolishly,
recklessly. I won't argue with you, but I insist upon your asking
Mrs. Erlynne to-night.

LADY WINDERMERE. [R.C.] I shall do nothing of the kind.
[Crossing L. C.]

LORD WINDERMERE. You refuse? [C.]

LADY WINDERMERE. Absolutely!

LORD WINDERMERE. Ah, Margaret, do this for my sake; it is her last
chance.

LADY WINDERMERE. What has that to do with me?

LORD WINDERMERE. How hard good women are!

LADY WINDERMERE. How weak bad men are!

LORD WINDERMERE. Margaret, none of us men may be good enough for
the women we marry - that is quite true - but you don't imagine I
would ever - oh, the suggestion is monstrous!

LADY WINDERMERE. Why should YOU be different from other men? I am
told that there is hardly a husband in London who does not waste
his life over SOME shameful passion.

LORD WINDERMERE. I am not one of them.

LADY WINDERMERE. I am not sure of that!

LORD WINDERMERE. You are sure in your heart. But don't make chasm
after chasm between us. God knows the last few minutes have thrust
us wide enough apart. Sit down and write the card.

LADY WINDERMERE. Nothing in the whole world would induce me.

LORD WINDERMERE. [Crossing to bureau.] Then I will! [Rings
electric bell, sits and writes card.]

LADY WINDERMERE. You are going to invite this woman? [Crossing to
him.]

LORD WINDERMERE. Yes. [Pause. Enter PARKER.] Parker!

PARKER Yes, my lord. [Comes down L.C.]

LORD WINDERMERE. Have this note sent to Mrs. Erlynne at No. 84A
Curzon Street. [Crossing to L.C. and giving note to PARKER.]
There is no answer!

[Exit PARKER C.]

LADY WINDERMERE. Arthur, if that woman comes here, I shall insult
her.

LORD WINDERMERE. Margaret, don't say that.

LADY WINDERMERE. I mean it.

LORD WINDERMERE. Child, if you did such a thing, there's not a
woman in London who wouldn't pity you.

LADY WINDERMERE. There is not a GOOD woman in London who would not
applaud me. We have been too lax. We must make an example. I
propose to begin to-night. [Picking up fan.] Yes, you gave me
this fan to-day; it was your birthday present. If that woman
crosses my threshold, I shall strike her across the face with it.

LORD WINDERMERE. Margaret, you couldn't do such a thing.

LADY WINDERMERE. You don't know me! [Moves R.]

[Enter PARKER.]

Parker!

PARKER. Yes, my lady.

LADY WINDERMERE. I shall dine in my own room. I don't want
dinner, in fact. See that everything is ready by half-past ten.
And, Parker, be sure you pronounce the names of the guests very
distinctly to-night. Sometimes you speak so fast that I miss them.
I am particularly anxious to hear the names quite clearly, so as to
make no mistake. You understand, Parker?

PARKER. Yes, my lady.

LADY WINDERMERE. That will do!

[Exit PARKER C.]

[Speaking to LORD WINDERMERE] Arthur, if that woman comes here - I
warn you -

LORD WINDERMERE. Margaret, you'll ruin us!

LADY WINDERMERE. Us! From this moment my life is separate from
yours. But if you wish to avoid a public scandal, write at once to
this woman, and tell her that I forbid her to come here!

LORD WINDERMERE. I will not - I cannot - she must come!

LADY WINDERMERE. Then I shall do exactly as I have said. [Goes
R.] You leave me no choice. [Exit R.]

LORD WINDERMERE. [Calling after her.] Margaret! Margaret! [A
pause.] My God! What shall I do? I dare not tell her who this
woman really is. The shame would kill her. [Sinks down into a
chair and buries his face in his hands.]

ACT DROP



SECOND ACT



SCENE

Drawing-room in Lord Windermere's house. Door R.U. opening into
ball-room, where band is playing. Door L. through which guests are
entering. Door L.U. opens on to illuminated terrace. Palms,
flowers, and brilliant lights. Room crowded with guests. Lady
Windermere is receiving them.

DUCHESS OF BERWICK. [Up C.] So strange Lord Windermere isn't
here. Mr. Hopper is very late, too. You have kept those five
dances for him, Agatha? [Comes down.]

LADY AGATHA. Yes, mamma.

DUCHESS OF BERWICK. [Sitting on sofa.] Just let me see your card.
I'm so glad Lady Windermere has revived cards. - They're a mother's
only safeguard. You dear simple little thing! [Scratches out two
names.] No nice girl should ever waltz with such particularly
younger sons! It looks so fast! The last two dances you might
pass on the terrace with Mr. Hopper.

[Enter MR. DUMBY and LADY PLYMDALE from the ball-room.]

LADY AGATHA. Yes, mamma.

DUCHESS OF BERWICK. [Fanning herself.] The air is so pleasant
there.

PARKER. Mrs. Cowper-Cowper. Lady Stutfield. Sir James Royston.
Mr. Guy Berkeley.

[These people enter as announced.]

DUMBY. Good evening, Lady Stutfield. I suppose this will be the
last ball of the season?

LADY STUTFIELD. I suppose so, Mr. Dumby. It's been a delightful
season, hasn't it?

DUMBY. Quite delightful! Good evening, Duchess. I suppose this
will be the last ball of the season?

DUCHESS OF BERWICK. I suppose so, Mr. Dumby. It has been a very
dull season, hasn't it?

DUMBY. Dreadfully dull! Dreadfully dull!

MR. COWPER-COWPER. Good evening, Mr. Dumby. I suppose this will
be the last ball of the season?

DUMBY. Oh, I think not. There'll probably be two more. [Wanders
back to LADY PLYMDALE.]

PARKER. Mr. Rufford. Lady Jedburgh and Miss Graham. Mr. Hopper.

[These people enter as announced.]

HOPPER. How do you do, Lady Windermere? How do you do, Duchess?
[Bows to LADY AGATHA.]

DUCHESS OF BERWICK. Dear Mr. Hopper, how nice of you to come so
early. We all know how you are run after in London.

HOPPER. Capital place, London! They are not nearly so exclusive
in London as they are in Sydney.

DUCHESS OF BERWICK. Ah! we know your value, Mr. Hopper. We wish
there were more like you. It would make life so much easier. Do
you know, Mr. Hopper, dear Agatha and I are so much interested in
Australia. It must be so pretty with all the dear little kangaroos
flying about. Agatha has found it on the map. What a curious
shape it is! Just like a large packing case. However, it is a
very young country, isn't it?

HOPPER. Wasn't it made at the same time as the others, Duchess?

DUCHESS OF BERWICK. How clever you are, Mr. Hopper. You have a
cleverness quite of your own. Now I mustn't keep you.

HOPPER. But I should like to dance with Lady Agatha, Duchess.

DUCHESS OF BERWICK. Well, I hope she has a dance left. Have you a
dance left, Agatha?

LADY AGATHA. Yes, mamma.

DUCHESS OF BERWICK. The next one?

LADY AGATHA. Yes, mamma.

HOPPER. May I have the pleasure? [LADY AGATHA bows.]

DUCHESS OF BERWICK. Mind you take great care of my little
chatterbox, Mr. Hopper.

[LADY AGATHA and MR. HOPPER pass into ball-room.]

[Enter LORD WINDERMERE.]

LORD WINDERMERE. Margaret, I want to speak to you.

LADY WINDERMERE. In a moment. [The music drops.]

PARKER. Lord Augustus Lorton.

[Enter LORD AUGUSTUS.]

LORD AUGUSTUS. Good evening, Lady Windermere.

DUCHESS OF BERWICK. Sir James, will you take me into the ball-
room? Augustus has been dining with us to-night. I really have
had quite enough of dear Augustus for the moment.

[SIR JAMES ROYSTON gives the DUCHESS his aim and escorts her into
the ball-room.]

PARKER. Mr. and Mrs. Arthur Bowden. Lord and Lady Paisley. Lord
Darlington.

[These people enter as announced.]

LORD AUGUSTUS. [Coming up to LORD WINDERMERE.] Want to speak to
you particularly, dear boy. I'm worn to a shadow. Know I don't
look it. None of us men do look what we really are. Demmed good
thing, too. What I want to know is this. Who is she? Where does
she come from? Why hasn't she got any demmed relations? Demmed
nuisance, relations! But they make one so demmed respectable.

LORD WINDERMERE. You are talking of Mrs. Erlynne, I suppose? I
only met her six months ago. Till then, I never knew of her
existence.

LORD AUGUSTUS. You have seen a good deal of her since then.

LORD WINDERMERE. [Coldly.] Yes, I have seen a good deal of her
since then. I have just seen her.

LORD AUGUSTUS. Egad! the women are very down on her. I have been
dining with Arabella this evening! By Jove! you should have heard
what she said about Mrs. Erlynne. She didn't leave a rag on her.
. . [Aside.] Berwick and I told her that didn't matter much, as
the lady in question must have an extremely fine figure. You
should have seen Arabella's expression! . . . But, look here, dear
boy. I don't know what to do about Mrs. Erlynne. Egad! I might
be married to her; she treats me with such demmed indifference.
She's deuced clever, too! She explains everything. Egad! she
explains you. She has got any amount of explanations for you - and
all of them different.

LORD WINDERMERE. No explanations are necessary about my friendship
with Mrs. Erlynne.

LORD AUGUSTUS. Hem! Well, look here, dear old fellow. Do you
think she will ever get into this demmed thing called Society?
Would you introduce her to your wife? No use beating about the
confounded bush. Would you do that?

LORD WINDERMERE. Mrs. Erlynne is coming here to-night.

LORD AUGUSTUS. Your wife has sent her a card?

LORD WINDERMERE. Mrs. Erlynne has received a card.

LORD AUGUSTUS. Then she's all right, dear boy. But why didn't you
tell me that before? It would have saved me a heap of worry and
demmed misunderstandings!

[LADY AGATHA and MR. HOPPER cross and exit on terrace L.U.E.]

PARKER. Mr. Cecil Graham!

[Enter MR. CECIL GRAHAM.]

CECIL GRAHAM. [Bows to LADY WINDERMERE, passes over and shakes
hands with LORD WINDERMERE.] Good evening, Arthur. Why don't you
ask me how I am? I like people to ask me how I am. It shows a
wide-spread interest in my health. Now, to-night I am not at all
well. Been dining with my people. Wonder why it is one's people
are always so tedious? My father would talk morality after dinner.
I told him he was old enough to know better. But my experience is
that as soon as people are old enough to know better, they don't
know anything at all. Hallo, Tuppy! Hear you're going to be
married again; thought you were tired of that game.

LORD AUGUSTUS. You're excessively trivial, my dear boy,
excessively trivial!

CECIL GRAHAM. By the way, Tuppy, which is it? Have you been twice
married and once divorced, or twice divorced and once married? I
say you've been twice divorced and once married. It seems so much
more probable.

LORD AUGUSTUS. I have a very bad memory. I really don't remember
which. [Moves away R.]

LADY PLYMDALE. Lord Windermere, I've something most particular to
ask you.

LORD WINDERMERE. I am afraid - if you will excuse me - I must join
my wife.

LADY PLYMDALE. Oh, you mustn't dream of such a thing. It's most
dangerous nowadays for a husband to pay any attention to his wife
in public. It always makes people think that he beats her when
they're alone. The world has grown so suspicious of anything that
looks like a happy married life. But I'll tell you what it is at
supper. [Moves towards door of ball-room.]

LORD WINDERMERE. [C.] Margaret! I MUST speak to you.

LADY WINDERMERE. Will you hold my fan for me, Lord Darlington?
Thanks. [Comes down to him.]

LORD WINDERMERE. [Crossing to her.] Margaret, what you said
before dinner was, of course, impossible?

LADY WINDERMERE. That woman is not coming here to-night!

LORD WINDERMERE. [R.C.] Mrs. Erlynne is coming here, and if you
in any way annoy or wound her, you will bring shame and sorrow on
us both. Remember that! Ah, Margaret! only trust me! A wife
should trust her husband!

LADY WINDERMERE. [C.] London is full of women who trust their
husbands. One can always recognise them. They look so thoroughly
unhappy. I am not going to be one of them. [Moves up.] Lord
Darlington, will you give me back my fan, please? Thanks. . . . A
useful thing a fan, isn't it? . . . I want a friend to-night, Lord
Darlington: I didn't know I would want one so soon.

LORD DARLINGTON. Lady Windermere! I knew the time would come some
day; but why to-night?

LORD WINDERMERE. I WILL tell her. I must. It would be terrible
if there were any scene. Margaret . . .

PARKER. Mrs. Erlynne!

[LORD WINDERMERE starts. MRS. ERLYNNE enters, very beautifully
dressed and very dignified. LADY WINDERMERE clutches at her fan,
then lets it drop on the door. She bows coldly to MRS. ERLYNNE,
who bows to her sweetly in turn, and sails into the room.]

LORD DARLINGTON. You have dropped your fan, Lady Windermere.
[Picks it up and hands it to her.]

MRS. ERLYNNE. [C.] How do you do, again, Lord Windermere? How
charming your sweet wife looks! Quite a picture!

LORD WINDERMERE. [In a low voice.] It was terribly rash of you to
come!

MRS. ERLYNNE. [Smiling.] The wisest thing I ever did in my life.
And, by the way, you must pay me a good deal of attention this
evening. I am afraid of the women. You must introduce me to some
of them. The men I can always manage. How do you do, Lord
Augustus? You have quite neglected me lately. I have not seen you
since yesterday. I am afraid you're faithless. Every one told me
so.

LORD AUGUSTUS. [R.] Now really, Mrs. Erlynne, allow me to
explain.

MRS. ERLYNNE. [R.C.] No, dear Lord Augustus, you can't explain
anything. It is your chief charm.

LORD AUGUSTUS. Ah! if you find charms in me, Mrs. Erlynne -

[They converse together. LORD WINDERMERE moves uneasily about the
room watching MRS. ERLYNNE.]

LORD DARLINGTON. [To LADY WINDERMERE.] How pale you are!

LADY WINDERMERE. Cowards are always pale!

LORD DARLINGTON. You look faint. Come out on the terrace.

LADY WINDERMERE. Yes. [To PARKER.] Parker, send my cloak out.

MRS. ERLYNNE. [Crossing to her.] Lady Windermere, how beautifully
your terrace is illuminated. Reminds me of Prince Doria's at Rome.

[LADY WINDERMERE bows coldly, and goes off with LORD DARLINGTON.]

Oh, how do you do, Mr. Graham? Isn't that your aunt, Lady
Jedburgh? I should so much like to know her.

CECIL GRAHAM. [After a moment's hesitation and embarrassment.]
Oh, certainly, if you wish it. Aunt Caroline, allow me to
introduce Mrs. Erlynne.

MRS. ERLYNNE. So pleased to meet you, Lady Jedburgh. [Sits beside
her on the sofa.] Your nephew and I are great friends. I am so
much interested in his political career. I think he's sure to be a
wonderful success. He thinks like a Tory, and talks like a
Radical, and that's so important nowadays. He's such a brilliant
talker, too. But we all know from whom he inherits that. Lord
Allandale was saying to me only yesterday, in the Park, that Mr.
Graham talks almost as well as his aunt.

LADY JEDBURGH. [R.] Most kind of you to say these charming things
to me! [MRS. ERLYNNE smiles, and continues conversation.]

DUMBY. [To CECIL GRAHAM.] Did you introduce Mrs. Erlynne to Lady
Jedburgh?

CECIL GRAHAM. Had to, my dear fellow. Couldn't help it! That
woman can make one do anything she wants. How, I don't know.

DUMBY. Hope to goodness she won't speak to me! [Saunters towards
LADY PLYMDALE.]

MRS. ERLYNNE. [C. To LADY JEDBURGH.] On Thursday? With great
pleasure. [Rises, and speaks to LORD WINDERMERE, laughing.] What
a bore it is to have to be civil to these old dowagers! But they
always insist on it!

LADY PLYMDALE. [To MR. DUMBY.] Who is that well-dressed woman
talking to Windermere?

DUMBY. Haven't got the slightest idea! Looks like an EDITION DE
LUXE of a wicked French novel, meant specially for the English
market.

MRS. ERLYNNE. So that is poor Dumby with Lady Plymdale? I hear
she is frightfully jealous of him. He doesn't seem anxious to
speak to me to-night. I suppose he is afraid of her. Those straw-
coloured women have dreadful tempers. Do you know, I think I'll
dance with you first, Windermere. [LORD WINDERMERE bits his lip
and frowns.] It will make Lord Augustus so jealous! Lord
Augustus! [LORD AUGUSTUS comes down.] Lord Windermere insists on
my dancing with him first, and, as it's his own house, I can't well
refuse. You know I would much sooner dance with you.

LORD AUGUSTUS. [With a low bow.] I wish I could think so, Mrs.
Erlynne.

MRS ERLYNNE. You know it far too well. I can fancy a person
dancing through life with you and finding it charming.

LORD AUGUSTUS. [Placing his hand on his white waistcoat.] Oh,
thank you, thank you. You are the most adorable of all ladies!

MRS. ERLYNNE. What a nice speech! So simple and so sincere! Just
the sort of speech I like. Well, you shall hold my bouquet. [Goes
towards ball-room on LORD WINDERMERE'S arm.] Ah, Mr. Dumby, how
are you? I am so sorry I have been out the last three times you
have called. Come and lunch on Friday.

DUMBY. [With perfect nonchalance.] Delighted!

[LADY PLYMDALE glares with indignation at MR. DUMBY. LORD AUGUSTUS
follows MRS. ERLYNNE and LORD WINDERMERE into the ball-room holding
bouquet]

LADY PLYMDALE. [To MR. DUMBY.] What an absolute brute you are! I
never can believe a word you say! Why did you tell me you didn't
know her? What do you mean by calling on her three times running?
You are not to go to lunch there; of course you understand that?

DUMBY. My dear Laura, I wouldn't dream of going!

LADY PLYMDALE. You haven't told me her name yet! Who is she?

DUMBY. [Coughs slightly and smooths his hair.] She's a Mrs.
Erlynne.

LADY PLYMDALE. That woman!

DUMBY. Yes; that is what every one calls her.

LADY PLYMDALE. How very interesting! How intensely interesting!
I really must have a good stare at her. [Goes to door of ball-room
and looks in.] I have heard the most shocking things about her.
They say she is ruining poor Windermere. And Lady Windermere, who
goes in for being so proper, invites her! How extremely amusing!
It takes a thoroughly good woman to do a thoroughly stupid thing.
You are to lunch there on Friday!

DUMBY. Why?

LADY PLYMDALE. Because I want you to take my husband with you. He
has been so attentive lately, that he has become a perfect
nuisance. Now, this woman is just the thing for him. He'll dance
attendance upon her as long as she lets him, and won't bother me.
I assure you, women of that kind are most useful. They form the
basis of other people's marriages.

DUMBY. What a mystery you are!

LADY PLYMDALE. [Looking at him.] I wish YOU were!

DUMBY. I am - to myself. I am the only person in the world I
should like to know thoroughly; but I don't see any chance of it
just at present.

[They pass into the ball-room, and LADY WINDERMERE and LORD
DARLINGTON enter from the terrace.]

LADY WINDERMERE. Yes. Her coming here is monstrous, unbearable.
I know now what you meant to-day at tea-time. Why didn't you tell
me right out? You should have!

LORD DARLINGTON. I couldn't! A man can't tell these things about
another man! But if I had known he was going to make you ask her
here to-night, I think I would have told you. That insult, at any
rate, you would have been spared.

LADY WINDERMERE. I did not ask her. He insisted on her coming -
against my entreaties - against my commands. Oh! the house is
tainted for me! I feel that every woman here sneers at me as she
dances by with my husband. What have I done to deserve this? I
gave him all my life. He took it - used it - spoiled it! I am
degraded in my own eyes; and I lack courage - I am a coward! [Sits
down on sofa.]

LORD DARLINGTON. If I know you at all, I know that you can't live
with a man who treats you like this! What sort of life would you
have with him? You would feel that he was lying to you every
moment of the day. You would feel that the look in his eyes was
false, his voice false, his touch false, his passion false. He
would come to you when he was weary of others; you would have to
comfort him. He would come to you when he was devoted to others;
you would have to charm him. You would have to be to him the mask
of his real life, the cloak to hide his secret.

LADY WINDERMERE. You are right - you are terribly right. But
where am I to turn? You said you would be my friend, Lord
Darlington. - Tell me, what am I to do? Be my friend now.

LORD DARLINGTON. Between men and women there is no friendship
possible. There is passion, enmity, worship, love, but no
friendship. I love you -

LADY WINDERMERE. No, no! [Rises.]

LORD DARLINGTON. Yes, I love you! You are more to me than
anything in the whole world. What does your husband give you?
Nothing. Whatever is in him he gives to this wretched woman, whom
he has thrust into your society, into your home, to shame you
before every one. I offer you my life -

LADY WINDERMERE. Lord Darlington!

LORD DARLINGTON. My life - my whole life. Take it, and do with it
what you will. . . . I love you - love you as I have never loved
any living thing. From the moment I met you I loved you, loved you
blindly, adoringly, madly! You did not know it then - you know it
now! Leave this house to-night. I won't tell you that the world
matters nothing, or the world's voice, or the voice of society.
They matter a great deal. They matter far too much. But there are
moments when one has to choose between living one's own life,
fully, entirely, completely - or dragging out some false, shallow,
degrading existence that the world in its hypocrisy demands. You
have that moment now. Choose! Oh, my love, choose.

LADY WINDERMERE. [Moving slowly away from him, and looking at him
with startled eyes.] I have not the courage.

LORD DARLINGTON. [Following her.] Yes; you have the courage.
There may be six months of pain, of disgrace even, but when you no
longer bear his name, when you bear mine, all will be well.
Margaret, my love, my wife that shall be some day - yes, my wife!
You know it! What are you now? This woman has the place that
belongs by right to you. Oh! go - go out of this house, with head
erect, with a smile upon your lips, with courage in your eyes. All
London will know why you did it; and who will blame you? No one.
If they do, what matter? Wrong? What is wrong? It's wrong for a
man to abandon his wife for a shameless woman. It is wrong for a
wife to remain with a man who so dishonours her. You said once you
would make no compromise with things. Make none now. Be brave!
Be yourself!

LADY WINDERMERE. I am afraid of being myself. Let me think! Let
me wait! My husband may return to me. [Sits down on sofa.]

LORD DARLINGTON. And you would take him back! You are not what I
thought you were. You are just the same as every other woman. You
would stand anything rather than face the censure of a world, whose
praise you would despise. In a week you will be driving with this
woman in the Park. She will be your constant guest - your dearest
friend. You would endure anything rather than break with one blow
this monstrous tie. You are right. You have no courage; none!

LADY WINDERMERE. Ah, give me time to think. I cannot answer you
now. [Passes her hand nervously over her brow.]

LORD DARLINGTON. It must be now or not at all.

LADY WINDERMERE. [Rising from the sofa.] Then, not at all! [A
pause.]

LORD DARLINGTON. You break my heart!

LADY WINDERMERE. Mine is already broken. [A pause.]

LORD DARLINGTON. To-morrow I leave England. This is the last time
I shall ever look on you. You will never see me again. For one
moment our lives met - our souls touched. They must never meet or
touch again. Good-bye, Margaret. [Exit.]

LADY WINDERMERE. How alone I am in life! How terribly alone!

[The music stops. Enter the DUCHESS OF BERWICK and LORD PAISLEY
laughing and talking. Other guests come on from ball-room.]

DUCHESS OF BERWICK. Dear Margaret, I've just been having such a
delightful chat with Mrs. Erlynne. I am so sorry for what I said
to you this afternoon about her. Of course, she must be all right
if YOU invite her. A most attractive woman, and has such sensible
views on life. Told me she entirely disapproved of people marrying
more than once, so I feel quite safe about poor Augustus. Can't
imagine why people speak against her. It's those horrid nieces of
mine - the Saville girls - they're always talking scandal. Still,
I should go to Homburg, dear, I really should. She is just a
little too attractive. But where is Agatha? Oh, there she is:
[LADY AGATHA and MR. HOPPER enter from terrace L.U.E.] Mr. Hopper,
I am very, very angry with you. You have taken Agatha out on the
terrace, and she is so delicate.

HOPPER. Awfully sorry, Duchess. We went out for a moment and then
got chatting together.

DUCHESS OF BERWICK. [C.] Ah, about dear Australia, I suppose?

HOPPER. Yes!

DUCHESS OF BERWICK. Agatha, darling! [Beckons her over.]

LADY AGATHA. Yes, mamma!

DUCHESS OF BERWICK. [Aside.] Did Mr. Hopper definitely -

LADY AGATHA. Yes, mamma.

DUCHESS OF BERWICK. And what answer did you give him, dear child?

LADY AGATHA. Yes, mamma.

DUCHESS OF BERWICK. [Affectionately.] My dear one! You always
say the right thing. Mr. Hopper! James! Agatha has told me
everything. How cleverly you have both kept your secret.

HOPPER. You don't mind my taking Agatha off to Australia, then,
Duchess?

DUCHESS OF BERWICK. [Indignantly.] To Australia? Oh, don't
mention that dreadful vulgar place.

HOPPER. But she said she'd like to come with me.

DUCHESS OF BERWICK. [Severely.] Did you say that, Agatha?

LADY AGATHA. Yes, mamma.

DUCHESS OF BERWICK. Agatha, you say the most silly things
possible. I think on the whole that Grosvenor Square would be a
more healthy place to reside in. There are lots of vulgar people
live in Grosvenor Square, but at any rate there are no horrid
kangaroos crawling about. But we'll talk about that to-morrow.
James, you can take Agatha down. You'll come to lunch, of course,
James. At half-past one, instead of two. The Duke will wish to
say a few words to you, I am sure.

HOPPER. I should like to have a chat with the Duke, Duchess. He
has not said a single word to me yet.

DUCHESS OF BERWICK. I think you'll find he will have a great deal
to say to you to-morrow. [Exit LADY AGATHA with MR. HOPPER.] And
now good-night, Margaret. I'm afraid it's the old, old story,
dear. Love - well, not love at first sight, but love at the end of
the season, which is so much more satisfactory.

LADY WINDERMERE. Good-night, Duchess.

[Exit the DUCHESS OF BERWICK on LORD PAISLEY'S arm.]

LADY PLYMDALE. My dear Margaret, what a handsome woman your
husband has been dancing with! I should be quite jealous if I were
you! Is she a great friend of yours?

LADY WINDERMERE. No!

LADY PLYMDALE. Really? Good-night, dear. [Looks at MR. DUMBY and
exit.]

DUMBY. Awful manners young Hopper has!

CECIL GRAHAM. Ah! Hopper is one of Nature's gentlemen, the worst
type of gentleman I know.

DUMBY. Sensible woman, Lady Windermere. Lots of wives would have
objected to Mrs. Erlynne coming. But Lady Windermere has that
uncommon thing called common sense.

CECIL GRAHAM. And Windermere knows that nothing looks so like
innocence as an indiscretion.

DUMBY. Yes; dear Windermere is becoming almost modern. Never
thought he would. [Bows to LADY WINDERMERE and exit.]

LADY JEDBURGH. Good night, Lady Windermere. What a fascinating
woman Mrs. Erlynne is! She is coming to lunch on Thursday, won't
you come too? I expect the Bishop and dear Lady Merton.

LADY WINDERMERE. I am afraid I am engaged, Lady Jedburgh.

LADY JEDBURGH. So sorry. Come, dear. [Exeunt LADY JEDBURGH and
MISS GRAHAM.]

[Enter MRS. ERLYNNE and LORD WINDERMERE.]

MRS. ERLYNNE. Charming ball it has been! Quite reminds me of old
days. [Sits on sofa.] And I see that there are just as many fools
in society as there used to be. So pleased to find that nothing
has altered! Except Margaret. She's grown quite pretty. The last
time I saw her - twenty years ago, she was a fright in flannel.
Positive fright, I assure you. The dear Duchess! and that sweet
Lady Agatha! Just the type of girl I like! Well, really,
Windermere, if I am to be the Duchess's sister-in-law

LORD WINDERMERE. [Sitting L. of her.] But are you - ?

[Exit MR. CECIL GRAHAM with rest of guests. LADY WINDERMERE
watches, with a look of scorn and pain, MRS. ERLYNNE and her
husband. They are unconscious of her presence.]

MRS. ERLYNNE. Oh, yes! He's to call to-morrow at twelve o'clock!
He wanted to propose to-night. In fact he did. He kept on
proposing. Poor Augustus, you know how he repeats himself. Such a
bad habit! But I told him I wouldn't give him an answer till to-
morrow. Of course I am going to take him. And I dare say I'll
make him an admirable wife, as wives go. And there is a great deal
of good in Lord Augustus. Fortunately it is all on the surface.
Just where good qualities should be. Of course you must help me in
this matter.

LORD WINDERMERE. I am not called on to encourage Lord Augustus, I
suppose?

MRS. ERLYNNE. Oh, no! I do the encouraging. But you will make me
a handsome settlement, Windermere, won't you?

LORD WINDERMERE. [Frowning.] Is that what you want to talk to me
about to-night?

MRS ERLYNNE. Yes.

LORD WINDERMERE. [With a gesture of impatience.] I will not talk
of it here.

MRS. ERLYNNE. [Laughing.] Then we will talk of it on the terrace.
Even business should have a picturesque background. Should it not,
Windermere? With a proper background women can do anything.

LORD WINDERMERE. Won't to-morrow do as well?

MRS. ERLYNNE. No; you see, to-morrow I am going to accept him.
And I think it would be a good thing if I was able to tell him that
I had - well, what shall I say? - o2000 a year left to me by a
third cousin - or a second husband - or some distant relative of
that kind. It would be an additional attraction, wouldn't it? You
have a delightful opportunity now of paying me a compliment,
Windermere. But you are not very clever at paying compliments. I
am afraid Margaret doesn't encourage you in that excellent habit.
It's a great mistake on her part. When men give up saying what is
charming, they give up thinking what is charming. But seriously,
what do you say to o2000? o2500, I think. In modern life margin
is everything. Windermere, don't you think the world an intensely
amusing place? I do!

[Exit on terrace with LORD WINDERMERE. Music strikes up in ball-
room.]

LADY WINDERMERE. To stay in this house any longer is impossible.
To-night a man who loves me offered me his whole life. I refused
it. It was foolish of me. I will offer him mine now. I will give
him mine. I will go to him! [Puts on cloak and goes to the door,
then turns back. Sits down at table and writes a letter, puts it
into an envelope, and leaves it on table.] Arthur has never
understood me. When he reads this, he will. He may do as he
chooses now with his life. I have done with mine as I think best,
as I think right. It is he who has broken the bond of marriage -
not I. I only break its bondage.

[Exit.]

[PARKER enters L. and crosses towards the ball-room R. Enter MRS.
ERLYNNE.]

MRS. ERLYNNE. Is Lady Windermere in the ball-room?

PARKER. Her ladyship has just gone out.

MRS. ERLYNNE. Gone out? She's not on the terrace?

PARKER. No, madam. Her ladyship has just gone out of the house.

MRS. ERLYNNE. [Starts, and looks at the servant with a puzzled
expression in her face.] Out of the house?

PARKER. Yes, madam - her ladyship told me she had left a letter
for his lordship on the table.

MRS. ERLYNNE. A letter for Lord Windermere?

PARKER. Yes, madam.

MRS. ERLYNNE. Thank you.

[Exit PARKER. The music in the ball-room stops.] Gone out of her
house! A letter addressed to her husband! [Goes over to bureau
and looks at letter. Takes it up and lays it down again with a
shudder of fear.] No, no! It would be impossible! Life doesn't
repeat its tragedies like that! Oh, why does this horrible fancy
come across me? Why do I remember now the one moment of my life I
most wish to forget? Does life repeat its tragedies? [Tears
letter open and reads it, then sinks down into a chair with a
gesture of anguish.] Oh, how terrible! The same words that twenty
years ago I wrote to her father! and how bitterly I have been
punished for it! No; my punishment, my real punishment is to-
night, is now! [Still seated R.]

[Enter LORD WINDERMERE L.U.E.]

LORD WINDERMERE. Have you said good-night to my wife? [Comes C.]

MRS. ERLYNNE. [Crushing letter in her hand.] Yes.

LORD WINDERMERE. Where is she?

MRS. ERLYNNE. She is very tired. She has gone to bed. She said
she had a headache.

LORD WINDERMERE. I must go to her. You'll excuse me?

MRS. ERLYNNE. [Rising hurriedly.] Oh, no! It's nothing serious.
She's only very tired, that is all. Besides, there are people
still in the supper-room. She wants you to make her apologies to
them. She said she didn't wish to be disturbed. [Drops letter.]
She asked me to tell you!

LORD WINDERMERE. [Picks up letter.] You have dropped something.

MRS. ERLYNNE. Oh yes, thank you, that is mine. [Puts out her hand
to take it.]

LORD WINDERMERE. [Still looking at letter.] But it's my wife's
handwriting, isn't it?

MRS. ERLYNNE. [Takes the letter quickly.] Yes, it's - an address.
Will you ask them to call my carriage, please?

LORD WINDERMERE. Certainly.

[Goes L. and Exit.]

MRS. ERLYNNE. Thanks! What can I do? What can I do? I feel a
passion awakening within me that I never felt before. What can it
mean? The daughter must not be like the mother - that would be
terrible. How can I save her? How can I save my child? A moment
may ruin a life. Who knows that better than I? Windermere must be
got out of the house; that is absolutely necessary. [Goes L.] But
how shall I do it? It must be done somehow. Ah!

[Enter LORD AUGUSTUS R.U.E. carrying bouquet.]

LORD AUGUSTUS. Dear lady, I am in such suspense! May I not have
an answer to my request?

MRS. ERLYNNE. Lord Augustus, listen to me. You are to take Lord
Windermere down to your club at once, and keep him there as long as
possible. You understand?

LORD AUGUSTUS. But you said you wished me to keep early hours!

MRS. ERLYNNE. [Nervously.] Do what I tell you. Do what I tell
you.

LORD AUGUSTUS. And my reward?

MRS. ERLYNNE. Your reward? Your reward? Oh! ask me that to-
morrow. But don't let Windermere out of your sight to-night. If
you do I will never forgive you. I will never speak to you again.
I'll have nothing to do with you. Remember you are to keep
Windermere at your club, and don't let him come back to-night.

[Exit L.]

LORD AUGUSTUS. Well, really, I might be her husband already.
Positively I might. [Follows her in a bewildered manner.]

ACT DROP.



THIRD ACT



SCENE

Lord Darlington's Rooms. A large sofa is in front of fireplace R.
At the back of the stage a curtain is drawn across the window.
Doors L. and R. Table R. with writing materials. Table C. with
syphons, glasses, and Tantalus frame. Table L. with cigar and
cigarette box. Lamps lit.


LADY WINDERMERE. [Standing by the fireplace.] Why doesn't he
come? This waiting is horrible. He should be here. Why is he not
here, to wake by passionate words some fire within me? I am cold -
cold as a loveless thing. Arthur must have read my letter by this
time. If he cared for me, he would have come after me, would have
taken me back by force. But he doesn't care. He's entrammelled by
this woman - fascinated by her - dominated by her. If a woman
wants to hold a man, she has merely to appeal to what is worst in
him. We make gods of men and they leave us. Others make brutes of
them and they fawn and are faithful. How hideous life is! . . .
Oh! it was mad of me to come here, horribly mad. And yet, which is
the worst, I wonder, to be at the mercy of a man who loves one, or
the wife of a man who in one's own house dishonours one? What
woman knows? What woman in the whole world? But will he love me
always, this man to whom I am giving my life? What do I bring him?
Lips that have lost the note of joy, eyes that are blinded by
tears, chill hands and icy heart. I bring him nothing. I must go
back - no; I can't go back, my letter has put me in their power -
Arthur would not take me back! That fatal letter! No! Lord
Darlington leaves England to-morrow. I will go with him - I have
no choice. [Sits down for a few moments. Then starts up and puts
on her cloak.] No, no! I will go back, let Arthur do with me what
he pleases. I can't wait here. It has been madness my coming. I
must go at once. As for Lord Darlington - Oh! here he is! What
shall I do? What can I say to him? Will he let me go away at all?
I have heard that men are brutal, horrible . . . Oh! [Hides her
face in her hands.]

[Enter MRS. ERLYNNE L.]

MRS. ERLYNNE. Lady Windermere! [LADY WINDERMERE starts and looks
up. Then recoils in contempt.] Thank Heaven I am in time. You
must go back to your husband's house immediately.

LADY WINDERMERE. Must?

MRS. ERLYNNE. [Authoritatively.] Yes, you must! There is not a
second to be lost. Lord Darlington may return at any moment.

LADY WINDERMERE. Don't come near me!

MRS. ERLYNNE. Oh! You are on the brink of ruin, you are on the
brink of a hideous precipice. You must leave this place at once,
my carriage is waiting at the corner of the street. You must come
with me and drive straight home.

[LADY WINDERMERE throws off her cloak and flings it on the sofa.]

What are you doing?

LADY WINDERMERE. Mrs. Erlynne - if you had not come here, I would
have gone back. But now that I see you, I feel that nothing in the
whole world would induce me to live under the same roof as Lord
Windermere. You fill me with horror. There is something about you
that stirs the wildest - rage within me. And I know why you are
here. My husband sent you to lure me back that I might serve as a
blind to whatever relations exist between you and him.

MRS. ERLYNNE. Oh! You don't think that - you can't.

LADY WINDERMERE. Go back to my husband, Mrs. Erlynne. He belongs
to you and not to me. I suppose he is afraid of a scandal. Men
are such cowards. They outrage every law of the world, and are
afraid of the world's tongue. But he had better prepare himself.
He shall have a scandal. He shall have the worst scandal there has
been in London for years. He shall see his name in every vile
paper, mine on every hideous placard.

MRS. ERLYNNE. No - no -

LADY WINDERMERE. Yes! he shall. Had he come himself, I admit I
would have gone back to the life of degradation you and he had
prepared for me - I was going back - but to stay himself at home,
and to send you as his messenger - oh! it was infamous - infamous.

MRS. ERLYNNE. [C.] Lady Windermere, you wrong me horribly - you
wrong your husband horribly. He doesn't know you are here - he
thinks you are safe in your own house. He thinks you are asleep in
your own room. He never read the mad letter you wrote to him!

LADY WINDERMERE. [R.] Never read it!

MRS. ERLYNNE. No - he knows nothing about it.

LADY WINDERMERE. How simple you think me! [Going to her.] You
are lying to me!

MRS. ERLYNNE. [Restraining herself.] I am not. I am telling you
the truth.

LADY WINDERMERE. If my husband didn't read my letter, how is it
that you are here? Who told you I had left the house you were
shameless enough to enter? Who told you where I had gone to? My
husband told you, and sent you to decoy me back. [Crosses L.]

MRS. ERLYNNE. [R.C.] Your husband has never seen the letter. I -
saw it, I opened it. I - read it.

LADY WINDERMERE. [Turning to her.] You opened a letter of mine to
my husband? You wouldn't dare!

MRS. ERLYNNE. Dare! Oh! to save you from the abyss into which you
are falling, there is nothing in the world I would not dare,
nothing in the whole world. Here is the letter. Your husband has
never read it. He never shall read it. [Going to fireplace.] It
should never have been written. [Tears it and throws it into the
fire.]

LADY WINDERMERE. [With infinite contempt in her voice and look.]
How do I know that that was my letter after all? You seem to think
the commonest device can take me in!

MRS. ERLYNNE. Oh! why do you disbelieve everything I tell you?
What object do you think I have in coming here, except to save you
from utter ruin, to save you from the consequence of a hideous
mistake? That letter that is burnt now WAS your letter. I swear
it to you!

LADY WINDERMERE. [Slowly.] You took good care to burn it before I
had examined it. I cannot trust you. You, whose whole life is a
lie, could you speak the truth about anything? [Sits down.]

MRS. ERLYNNE. [Hurriedly.] Think as you like about me - say what
you choose against me, but go back, go back to the husband you
love.

LADY WINDERMERE. [Sullenly.] I do NOT love him!

MRS. ERLYNNE. You do, and you know that he loves you.

LADY WINDERMERE. He does not understand what love is. He
understands it as little as you do - but I see what you want. It
would be a great advantage for you to get me back. Dear Heaven!
what a life I would have then! Living at the mercy of a woman who
has neither mercy nor pity in her, a woman whom it is an infamy to
meet, a degradation to know, a vile woman, a woman who comes
between husband and wife!

MRS. ERLYNNE. [With a gesture of despair.] Lady Windermere, Lady
Windermere, don't say such terrible things. You don't know how
terrible they are, how terrible and how unjust. Listen, you must
listen! Only go back to your husband, and I promise you never to
communicate with him again on any pretext - never to see him -
never to have anything to do with his life or yours. The money
that he gave me, he gave me not through love, but through hatred,
not in worship, but in contempt. The hold I have over him -

LADY WINDERMERE. [Rising.] Ah! you admit you have a hold!

MRS. ERLYNNE. Yes, and I will tell you what it is. It is his love
for you, Lady Windermere.

LADY WINDERMERE. You expect me to believe that?

MRS. ERLYNNE. You must believe it! It is true. It is his love
for you that has made him submit to - oh! call it what you like,
tyranny, threats, anything you choose. But it is his love for you.
His desire to spare you - shame, yes, shame and disgrace.

LADY WINDERMERE. What do you mean? You are insolent! What have I
to do with you?

MRS. ERLYNNE. [Humbly.] Nothing. I know it - but I tell you that
your husband loves you - that you may never meet with such love
again in your whole life - that such love you will never meet - and
that if you throw it away, the day may come when you will starve
for love and it will not be given to you, beg for love and it will
be denied you - Oh! Arthur loves you!

LADY WINDERMERE. Arthur? And you tell me there is nothing between
you?

MRS. ERLYNNE. Lady Windermere, before Heaven your husband is
guiltless of all offence towards you! And I - I tell you that had
it ever occurred to me that such a monstrous suspicion would have
entered your mind, I would have died rather than have crossed your
life or his - oh! died, gladly died! [Moves away to sofa R.]

LADY WINDERMERE. You talk as if you had a heart. Women like you
have no hearts. Heart is not in you. You are bought and sold.
[Sits L.C.]

MRS. ERLYNNE. [Starts, with a gesture of pain. Then restrains
herself, and comes over to where LADY WINDERMERE is sitting. As
she speaks, she stretches out her hands towards her, but does not
dare to touch her.] Believe what you choose about me. I am not
worth a moment's sorrow. But don't spoil your beautiful young life
on my account! You don't know what may be in store for you, unless
you leave this house at once. You don't know what it is to fall
into the pit, to be despised, mocked, abandoned, sneered at - to be
an outcast! to find the door shut against one, to have to creep in
by hideous byways, afraid every moment lest the mask should be
stripped from one's face, and all the while to hear the laughter,
the horrible laughter of the world, a thing more tragic than all
the tears the world has ever shed. You don't know what it is. One
pays for one's sin, and then one pays again, and all one's life one
pays. You must never know that. - As for me, if suffering be an
expiation, then at this moment I have expiated all my faults,
whatever they have been; for to-night you have made a heart in one
who had it not, made it and broken it. - But let that pass. I may
have wrecked my own life, but I will not let you wreck yours. You
- why, you are a mere girl, you would be lost. You haven't got the
kind of brains that enables a woman to get back. You have neither
the wit nor the courage. You couldn't stand dishonour! No! Go
back, Lady Windermere, to the husband who loves you, whom you love.
You have a child, Lady Windermere. Go back to that child who even
now, in pain or in joy, may be calling to you. [LADY WINDERMERE
rises.] God gave you that child. He will require from you that
you make his life fine, that you watch over him. What answer will
you make to God if his life is ruined through you? Back to your
house, Lady Windermere - your husband loves you! He has never
swerved for a moment from the love he bears you. But even if he
had a thousand loves, you must stay with your child. If he was
harsh to you, you must stay with your child. If he ill-treated
you, you must stay with your child. If he abandoned you, your
place is with your child.

[LADY WINDERMERE bursts into tears and buries her face in her
hands.]

[Rushing to her.] Lady Windermere!

LADY WINDERMERE. [Holding out her hands to her, helplessly, as a
child might do.] Take me home. Take me home.

MRS. ERLYNNE. [Is about to embrace her. Then restrains herself.
There is a look of wonderful joy in her face.] Come! Where is
your cloak? [Getting it from sofa.] Here. Put it on. Come at
once!

[They go to the door.]

LADY WINDERMERE. Stop! Don't you hear voices?

MRS. ERLYNNE. No, no! There was no one!

LADY WINDERMERE. Yes, there is! Listen! Oh! that is my husband's
voice! He is coming in! Save me! Oh, it's some plot! You have
sent for him.

[Voices outside.]

MRS. ERLYNNE. Silence! I'm here to save you, if I can. But I
fear it is too late! There! [Points to the curtain across the
window.] The first chance you have, slip out, if you ever get a
chance!

LADY WINDERMERE. But you?

MRS. ERLYNNE. Oh! never mind me. I'll face them.

[LADY WINDERMERE hides herself behind the curtain.]

LORD AUGUSTUS. [Outside.] Nonsense, dear Windermere, you must not
leave me!

MRS. ERLYNNE. Lord Augustus! Then it is I who am lost!
[Hesitates for a moment, then looks round and sees door R., and
exits through it.]

[Enter LORD DARLINGTON, MR. DUMBY, LORD WINDERMERE, LORD AUGUSTUS
LORTON, and MR. CECIL GRAHAM.

DUMBY. What a nuisance their turning us out of the club at this
hour! It's only two o'clock. [Sinks into a chair.] The lively
part of the evening is only just beginning. [Yawns and closes his
eyes.]

LORD WINDERMERE. It is very good of you, Lord Darlington, allowing
Augustus to force our company on you, but I'm afraid I can't stay
long.

LORD DARLINGTON. Really! I am so sorry! You'll take a cigar,
won't you?

LORD WINDERMERE. Thanks! [Sits down.]

LORD AUGUSTUS. [To LORD WINDERMERE.] My dear boy, you must not
dream of going. I have a great deal to talk to you about, of
demmed importance, too. [Sits down with him at L. table.]

CECIL GRAHAM. Oh! We all know what that is! Tuppy can't talk
about anything but Mrs. Erlynne.

LORD WINDERMERE. Well, that is no business of yours, is it, Cecil?

CECIL GRAHAM. None! That is why it interests me. My own business
always bores me to death. I prefer other people's.

LORD DARLINGTON. Have something to drink, you fellows. Cecil,
you'll have a whisky and soda?

CECIL GRAHAM. Thanks. [Goes to table with LORD DARLINGTON.] Mrs.
Erlynne looked very handsome to-night, didn't she?

LORD DARLINGTON. I am not one of her admirers.

CECIL GRAHAM. I usen't to be, but I am now. Why! she actually
made me introduce her to poor dear Aunt Caroline. I believe she is
going to lunch there.

LORD DARLINGTON. [In Purple.] No?

CECIL GRAHAM. She is, really.

LORD DARLINGTON. Excuse me, you fellows. I'm going away to-
morrow. And I have to write a few letters. [Goes to writing table
and sits down.]

DUMBY. Clever woman, Mrs. Erlynne.

CECIL GRAHAM. Hallo, Dumby! I thought you were asleep.

DUMBY. I am, I usually am!

LORD AUGUSTUS. A very clever woman. Knows perfectly well what a
demmed fool I am - knows it as well as I do myself.

[CECIL GRAHAM comes towards him laughing.]

Ah, you may laugh, my boy, but it is a great thing to come across a
woman who thoroughly understands one.

DUMBY. It is an awfully dangerous thing. They always end by
marrying one.

CECIL GRAHAM. But I thought, Tuppy, you were never going to see
her again! Yes! you told me so yesterday evening at the club. You
said you'd heard -

[Whispering to him.]

LORD AUGUSTUS. Oh, she's explained that.

CECIL GRAHAM. And the Wiesbaden affair?

LORD AUGUSTUS. She's explained that too.

DUMBY. And her income, Tuppy? Has she explained that?

LORD AUGUSTUS. [In a very serious voice.] She's going to explain
that to-morrow.

[CECIL GRAHAM goes back to C. table.]

DUMBY. Awfully commercial, women nowadays. Our grandmothers threw
their caps over the mills, of course, but, by Jove, their
granddaughters only throw their caps over mills that can raise the
wind for them.

LORD AUGUSTUS. You want to make her out a wicked woman. She is
not!

CECIL GRAHAM. Oh! Wicked women bother one. Good women bore one.
That is the only difference between them.

LORD AUGUSTUS. [Puffing a cigar.] Mrs. Erlynne has a future
before her.

DUMBY. Mrs. Erlynne has a past before her.

LORD AUGUSTUS. I prefer women with a past. They're always so
demmed amusing to talk to.

CECIL GRAHAM. Well, you'll have lots of topics of conversation
with HER, Tuppy. [Rising and going to him.]

LORD AUGUSTUS. You're getting annoying, dear-boy; you're getting
demmed annoying.

CECIL GRAHAM. [Puts his hands on his shoulders.] Now, Tuppy,
you've lost your figure and you've lost your character. Don't lose
your temper; you have only got one.

LORD AUGUSTUS. My dear boy, if I wasn't the most good-natured man
in London -

CECIL GRAHAM. We'd treat you with more respect, wouldn't we,
Tuppy? [Strolls away.]

DUMBY. The youth of the present day are quite monstrous. They
have absolutely no respect for dyed hair. [LORD AUGUSTUS looks
round angrily.]

CECIL GRAHAM. Mrs. Erlynne has a very great respect for dear
Tuppy.

DUMBY. Then Mrs. Erlynne sets an admirable example to the rest of
her sex. It is perfectly brutal the way most women nowadays behave
to men who are not their husbands.

LORD WINDERMERE. Dumby, you are ridiculous, and Cecil, you let
your tongue run away with you. You must leave Mrs. Erlynne alone.
You don't really know anything about her, and you're always talking
scandal against her.

CECIL GRAHAM. [Coming towards him L.C.] My dear Arthur, I never
talk scandal. I only talk gossip.

LORD WINDERMERE. What is the difference between scandal and
gossip?

CECIL GRAHAM. Oh! gossip is charming! History is merely gossip.
But scandal is gossip made tedious by morality. Now, I never
moralise. A man who moralises is usually a hypocrite, and a woman
who moralises is invariably plain. There is nothing in the whole
world so unbecoming to a woman as a Nonconformist conscience. And
most women know it, I'm glad to say.

LORD AUGUSTUS. Just my sentiments, dear boy, just my sentiments.

CECIL GRAHAM. Sorry to hear it, Tuppy; whenever people agree with
me, I always feel I must be wrong.

LORD AUGUSTUS. My dear boy, when I was your age -

CECIL GRAHAM. But you never were, Tuppy, and you never will be.
[Goes up C.] I say, Darlington, let us have some cards. You'll
play, Arthur, won't you?

LORD WINDERMERE. No, thanks, Cecil.

DUMBY. [With a sigh.] Good heavens! how marriage ruins a man!
It's as demoralising as cigarettes, and far more expensive.

CECIL GRAHAM. You'll play, of course, Tuppy?

LORD AUGUSTUS. [Pouring himself out a brandy and soda at table.]
Can't, dear boy. Promised Mrs. Erlynne never to play or drink
again.

CECIL GRAHAM. Now, my dear Tuppy, don't be led astray into the
paths of virtue. Reformed, you would be perfectly tedious. That
is the worst of women. They always want one to be good. And if we
are good, when they meet us, they don't love us at all. They like
to find us quite irretrievably bad, and to leave us quite
unattractively good.

LORD DARLINGTON. [Rising from R. table, where he has been writing
letters.] They always do find us bad!

DUMBY. I don't think we are bad. I think we are all good, except
Tuppy.

LORD DARLINGTON. No, we are all in the gutter, but some of us are
looking at the stars. [Sits down at C. table.]

DUMBY. We are all in the gutter, but some of us are looking at the
stars? Upon my word, you are very romantic to-night, Darlington.

CECIL GRAHAM. Too romantic! You must be in love. Who is the
girl?

LORD DARLINGTON. The woman I love is not free, or thinks she
isn't. [Glances instinctively at LORD WINDERMERE while he speaks.]

CECIL GRAHAM. A married woman, then! Well, there's nothing in the
world like the devotion of a married woman. It's a thing no
married man knows anything about.

LORD DARLINGTON. Oh! she doesn't love me. She is a good woman.
She is the only good woman I have ever met in my life.

CECIL GRAHAM. The only good woman you have ever met in your life?

LORD DARLINGTON. Yes!

CECIL GRAHAM. [Lighting a cigarette.] Well, you are a lucky
fellow! Why, I have met hundreds of good women. I never seem to
meet any but good women. The world is perfectly packed with good
women. To know them is a middle-class education.

LORD DARLINGTON. This woman has purity and innocence. She has
everything we men have lost.

CECIL GRAHAM. My dear fellow, what on earth should we men do going
about with purity and innocence? A carefully thought-out
buttonhole is much more effective.

DUMBY. She doesn't really love you then?

LORD DARLINGTON. No, she does not!

DUMBY. I congratulate you, my dear fellow. In this world there
are only two tragedies. One is not getting what one wants, and the
other is getting it. The last is much the worst; the last is a
real tragedy! But I am interested to hear she does not love you.
How long could you love a woman who didn't love you, Cecil?

CECIL GRAHAM. A woman who didn't love me? Oh, all my life!

DUMBY. So could I. But it's so difficult to meet one.

LORD DARLINGTON. How can you be so conceited, DUMBY?

DUMBY. I didn't say it as a matter of conceit. I said it as a
matter of regret. I have been wildly, madly adored. I am sorry I
have. It has been an immense nuisance. I should like to be
allowed a little time to myself now and then.

LORD AUGUSTUS. [Looking round.] Time to educate yourself, I
suppose.

DUMBY. No, time to forget all I have learned. That is much more
important, dear Tuppy. [LORD AUGUSTUS moves uneasily in his
chair.]

LORD DARLINGTON. What cynics you fellows are!

CECIL GRAHAM. What is a cynic? [Sitting on the back of the sofa.]

LORD DARLINGTON. A man who knows the price of everything and the
value of nothing.

CECIL GRAHAM. And a sentimentalist, my dear Darlington, is a man
who sees an absurd value in everything, and doesn't know the market
price of any single thing.

LORD DARLINGTON. You always amuse me, Cecil. You talk as if you
were a man of experience.

CECIL GRAHAM. I am. [Moves up to front off fireplace.]

LORD DARLINGTON. You are far too young!

CECIL GRAHAM. That is a great error. Experience is a question of
instinct about life. I have got it. Tuppy hasn't. Experience is
the name Tuppy gives to his mistakes. That is all. [LORD AUGUSTUS
looks round indignantly.]

DUMBY. Experience is the name every one gives to their mistakes.

CECIL GRAHAM. [Standing with his back to the fireplace.] One
shouldn't commit any. [Sees LADY WINDERMERE'S fan on sofa.]

DUMBY. Life would be very dull without them.

CECIL GRAHAM. Of course you are quite faithful to this woman you
are in love with, Darlington, to this good woman?

LORD DARLINGTON. Cecil, if on really loves a woman, all other
women in the world become absolutely meaningless to one. Love
changes one - I am changed.

CECIL GRAHAM. Dear me! How very interesting! Tuppy, I want to
talk to you. [LORD AUGUSTUS takes no notice.]

DUMBY. It's no use talking to Tuppy. You might just as well talk
to a brick wall.

CECIL GRAHAM. But I like talking to a brick wall - it's the only
thing in the world that never contradicts me! Tuppy!

LORD AUGUSTUS. Well, what is it? What is it? [Rising and going
over to CECIL GRAHAM.]

CECIL GRAHAM. Come over here. I want you particularly. [Aside.]
Darlington has been moralising and talking about the purity of
love, and that sort of thing, and he has got some woman in his
rooms all the time.

LORD AUGUSTUS. No, really! really!

CECIL GRAHAM. [In a low voice.] Yes, here is her fan. [Points to
the fan.]

LORD AUGUSTUS. [Chuckling.] By Jove! By Jove!

LORD WINDERMERE. [Up by door.] I am really off now, Lord
Darlington. I am sorry you are leaving England so soon. Pray call
on us when you come back! My wife and I will be charmed to see
you!

LORD DARLINGTON. [Up sage with LORD WINDERMERE.] I am afraid I
shall be away for many years. Good-night!

CECIL GRAHAM. Arthur!

LORD WINDERMERE. What?

CECIL GRAHAM. I want to speak to you for a moment. No, do come!

LORD WINDERMERE. [Putting on his coat.] I can't - I'm off!

CECIL GRAHAM. It is something very particular. It will interest
you enormously.

LORD WINDERMERE. [Smiling.] It is some of your nonsense, Cecil.

CECIL GRAHAM. It isn't! It isn't really.

LORD AUGUSTUS. [Going to him.] My dear fellow, you mustn't go
yet. I have a lot to talk to you about. And Cecil has something
to show you.

LORD WINDERMERE. [Walking over.] Well, what is it?

CECIL GRAHAM. Darlington has got a woman here in his rooms. Here
is her fan. Amusing, isn't it? [A pause.]

LORD WINDERMERE. Good God! [Seizes the fan - DUMBY rises.]

CECIL GRAHAM. What is the matter?

LORD WINDERMERE. Lord Darlington!

LORD DARLINGTON. [Turning round.] Yes!

LORD WINDERMERE. What is my wife's fan doing here in your rooms?
Hands off, Cecil. Don't touch me.

LORD DARLINGTON. Your wife's fan?

LORD WINDERMERE. Yes, here it is!

LORD DARLINGTON. [Walking towards him.] I don't know!

LORD WINDERMERE. You must know. I demand an explanation. Don't
hold me, you fool. [To CECIL GRAHAM.]

LORD DARLINGTON. [Aside.] She is here after all!

LORD WINDERMERE. Speak, sir! Why is my wife's fan here? Answer
me! By God! I'll search your rooms, and if my wife's here, I'll -
[Moves.]

LORD DARLINGTON. You shall not search my rooms. You have no right
to do so. I forbid you!

LORD WINDERMERE. You scoundrel! I'll not leave your room till I
have searched every corner of it! What moves behind that curtain?
[Rushes towards the curtain C.]

MRS. ERLYNNE. [Enters behind R.] Lord Windermere!

LORD WINDERMERE. Mrs. Erlynne!

[Every one starts and turns round. LADY WINDERMERE slips out from
behind the curtain and glides from the room L.]

MRS. ERLYNNE. I am afraid I took your wife's fan in mistake for my
own, when I was leaving your house to-night. I am so sorry.
[Takes fan from him. LORD WINDERMERE looks at her in contempt.
LORD DARLINGTON in mingled astonishment and anger. LORD AUGUSTUS
turns away. The other men smile at each other.]

ACT DROP.



FOURTH ACT



SCENE - Same as in Act I.

LADY WINDERMERE. [Lying on sofa.] How can I tell him? I can't
tell him. It would kill me. I wonder what happened after I
escaped from that horrible room. Perhaps she told them the true
reason of her being there, and the real meaning of that - fatal fan
of mine. Oh, if he knows - how can I look him in the face again?
He would never forgive me. [Touches bell.] How securely one
thinks one lives - out of reach of temptation, sin, folly. And
then suddenly - Oh! Life is terrible. It rules us, we do not rule
it.

[Enter ROSALIE R.]

ROSALIE. Did your ladyship ring for me?

LADY WINDERMERE. Yes. Have you found out at what time Lord
Windermere came in last night?

ROSALIE. His lordship did not come in till five o'clock.

LADY WINDERMERE. Five o'clock? He knocked at my door this
morning, didn't he?

ROSALIE. Yes, my lady - at half-past nine. I told him your
ladyship was not awake yet.

LADY WINDERMERE. Did he say anything?

ROSALIE. Something about your ladyship's fan. I didn't quite
catch what his lordship said. Has the fan been lost, my lady? I
can't find it, and Parker says it was not left in any of the rooms.
He has looked in all of them and on the terrace as well.

LADY WINDERMERE. It doesn't matter. Tell Parker not to trouble.
That will do.

[Exit ROSALIE.]

LADY WINDERMERE. [Rising.] She is sure to tell him. I can fancy
a person doing a wonderful act of self-sacrifice, doing it
spontaneously, recklessly, nobly - and afterwards finding out that
it costs too much. Why should she hesitate between her ruin and
mine? . . . How strange! I would have publicly disgraced her in my
own house. She accepts public disgrace in the house of another to
save me. . . . There is a bitter irony in things, a bitter irony in
the way we talk of good and bad women. . . . Oh, what a lesson! and
what a pity that in life we only get our lessons when they are of
no use to us! For even if she doesn't tell, I must. Oh! the shame
of it, the shame of it. To tell it is to live through it all
again. Actions are the first tragedy in life, words are the
second. Words are perhaps the worst. Words are merciless. . . Oh!
[Starts as LORD WINDERMERE enters.]

LORD WINDERMERE. [Kisses her.] Margaret - how pale you look!

LADY WINDERMERE. I slept very badly.

LORD WINDERMERE. [Sitting on sofa with her.] I am so sorry. I
came in dreadfully late, and didn't like to wake you. You are
crying, dear.

LADY WINDERMERE. Yes, I am crying, for I have something to tell
you, Arthur.

LORD WINDERMERE. My dear child, you are not well. You've been
doing too much. Let us go away to the country. You'll be all
right at Selby. The season is almost over. There is no use
staying on. Poor darling! We'll go away to-day, if you like.
[Rises.] We can easily catch the 3.40. I'll send a wire to
Fannen. [Crosses and sits down at table to write a telegram.]

LADY WINDERMERE. Yes; let us go away to-day. No; I can't go to-
day, Arthur. There is some one I must see before I leave town -
some one who has been kind to me.

LORD WINDERMERE. [Rising and leaning over sofa.] Kind to you?

LADY WINDERMERE. Far more than that. [Rises and goes to him.] I
will tell you, Arthur, but only love me, love me as you used to
love me.

LORD WINDERMERE. Used to? You are not thinking of that wretched
woman who came here last night? [Coming round and sitting R. of
her.] You don't still imagine - no, you couldn't.

LADY WINDERMERE. I don't. I know now I was wrong and foolish.

LORD WINDERMERE. It was very good of you to receive her last night
- but you are never to see her again.

LADY WINDERMERE. Why do you say that? [A pause.]

LORD WINDERMERE. [Holding her hand.] Margaret, I thought Mrs.
Erlynne was a woman more sinned against than sinning, as the phrase
goes. I thought she wanted to be good, to get back into a place
that she had lost by a moment's folly, to lead again a decent life.
I believed what she told me - I was mistaken in her. She is bad -
as bad as a woman can be.

LADY WINDERMERE. Arthur, Arthur, don't talk so bitterly about any
woman. I don't think now that people can be divided into the good
and the bad as though they were two separate races or creations.
What are called good women may have terrible things in them, mad
moods of recklessness, assertion, jealousy, sin. Bad women, as
they are termed, may have in them sorrow, repentance, pity,
sacrifice. And I don't think Mrs. Erlynne a bad woman - I know
she's not.

LORD WINDERMERE. My dear child, the woman's impossible. No matter
what harm she tries to do us, you must never see her again. She is
inadmissible anywhere.

LADY WINDERMERE. But I want to see her. I want her to come here.

LORD WINDERMERE. Never!

LADY WINDERMERE. She came here once as YOUR guest. She must come
now as MINE. That is but fair.

LORD WINDERMERE. She should never have come here.

LADY WINDERMERE. [Rising.] It is too late, Arthur, to say that
now. [Moves away.]

LORD WINDERMERE. [Rising.] Margaret, if you knew where Mrs.
Erlynne went last night, after she left this house, you would not
sit in the same room with her. It was absolutely shameless, the
whole thing.

LADY WINDERMERE. Arthur, I can't bear it any longer. I must tell
you. Last night -

[Enter PARKER with a tray on which lie LADY WINDERMERE'S fan and a
card.]

PARKER. Mrs. Erlynne has called to return your ladyship's fan
which she took away by mistake last night. Mrs. Erlynne has
written a message on the card.

LADY WINDERMERE. Oh, ask Mrs. Erlynne to be kind enough to come
up. [Reads card.] Say I shall be very glad to see her. [Exit
PARKER.] She wants to see me, Arthur.

LORD WINDERMERE. [Takes card and looks at it.] Margaret, I BEG
you not to. Let me see her first, at any rate. She's a very
dangerous woman. She is the most dangerous woman I know. You
don't realise what you're doing.

LADY WINDERMERE. It is right that I should see her.

LORD WINDERMERE. My child, you may be on the brink of a great
sorrow. Don't go to meet it. It is absolutely necessary that I
should see her before you do.

LADY WINDERMERE. Why should it be necessary?

[Enter PARKER.]

PARKER. Mrs. Erlynne.

[Enter MRS. ERLYNNE.]

[Exit PARKER.]

MRS. ERLYNNE. How do you do, Lady Windermere? [To LORD
WINDERMERE.] How do you do? Do you know, Lady Windermere, I am so
sorry about your fan. I can't imagine how I made such a silly
mistake. Most stupid of me. And as I was driving in your
direction, I thought I would take the opportunity of returning your
property in person with many apologies for my carelessness, and of
bidding you good-bye.

LADY WINDERMERE. Good-bye? [Moves towards sofa with MRS. ERLYNNE
and sits down beside her.] Are you going away, then, Mrs. Erlynne?

MRS. ERLYNNE. Yes; I am going to live abroad again. The English
climate doesn't suit me. My - heart is affected here, and that I
don't like. I prefer living in the south. London is too full of
fogs and - and serious people, Lord Windermere. Whether the fogs
produce the serious people or whether the serious people produce
the fogs, I don't know, but the whole thing rather gets on my
nerves, and so I'm leaving this afternoon by the Club Train.

LADY WINDERMERE. This afternoon? But I wanted so much to come and
see you.

MRS. ERLYNNE. How kind of you! But I am afraid I have to go.

LADY WINDERMERE. Shall I never see you again, Mrs. Erlynne?

MRS. ERLYNNE. I am afraid not. Our lives lie too far apart. But
there is a little thing I would like you to do for me. I want a
photograph of you, Lady Windermere - would you give me one? You
don't know how gratified I should be.

LADY WINDERMERE. Oh, with pleasure. There is one on that table.
I'll show it to you. [Goes across to the table.]

LORD WINDERMERE. [Coming up to MRS. ERLYNNE and speaking in a low
voice.] It is monstrous your intruding yourself here after your
conduct last night.

MRS. ERLYNNE. [With an amused smile.] My dear Windermere, manners
before morals!

LADY WINDERMERE. [Returning.] I'm afraid it is very flattering -
I am not so pretty as that. [Showing photograph.]

MRS. ERLYNNE. You are much prettier. But haven't you got one of
yourself with your little boy?

LADY WINDERMERE. I have. Would you prefer one of those?

MRS. ERLYNNE. Yes.

LADY WINDERMERE. I'll go and get it for you, if you'll excuse me
for a moment. I have one upstairs.

MRS. ERLYNNE. So sorry, Lady Windermere, to give you so much
trouble.

LADY WINDERMERE. [Moves to door R.] No trouble at all, Mrs.
Erlynne.

MRS. ERLYNNE. Thanks so much.

[Exit LADY WINDERMERE R.] You seem rather out of temper this
morning, Windermere. Why should you be? Margaret and I get on
charmingly together.

LORD WINDERMERE. I can't bear to see you with her. Besides, you
have not told me the truth, Mrs. Erlynne.

MRS. ERLYNNE. I have not told HER the truth, you mean.

LORD WINDERMERE. [Standing C.] I sometimes wish you had. I
should have been spared then the misery, the anxiety, the annoyance
of the last six months. But rather than my wife should know - that
the mother whom she was taught to consider as dead, the mother whom
she has mourned as dead, is living - a divorced woman, going about
under an assumed name, a bad woman preying upon life, as I know you
now to be - rather than that, I was ready to supply you with money
to pay bill after bill, extravagance after extravagance, to risk
what occurred yesterday, the first quarrel I have ever had with my
wife. You don't understand what that means to me. How could you?
But I tell you that the only bitter words that ever came from those
sweet lips of hers were on your account, and I hate to see you next
her. You sully the innocence that is in her. [Moves L.C.] And
then I used to think that with all your faults you were frank and
honest. You are not.

MRS. ERLYNNE. Why do you say that?

LORD WINDERMERE. You made me get you an invitation to my wife's
ball.

MRS. ERLYNNE. For my daughter's ball - yes.

LORD WINDERMERE. You came, and within an hour of your leaving the
house you are found in a man's rooms - you are disgraced before
every one. [Goes up stage C.]

MRS. ERLYNNE. Yes.

LORD WINDERMERE. [Turning round on her.] Therefore I have a right
to look upon you as what you are - a worthless, vicious woman. I
have the right to tell you never to enter this house, never to
attempt to come near my wife -

MRS. ERLYNNE. [Coldly.] My daughter, you mean.

LORD WINDERMERE. You have no right to claim her as your daughter.
You left her, abandoned her when she was but a child in the cradle,
abandoned her for your lover, who abandoned you in turn.

MRS. ERLYNNE. [Rising.] Do you count that to his credit, Lord
Windermere - or to mine?

LORD WINDERMERE. To his, now that I know you.

MRS. ERLYNNE. Take care - you had better be careful.

LORD WINDERMERE. Oh, I am not going to mince words for you. I
know you thoroughly.

MRS. ERLYNNE. [Looks steadily at him.] I question that.

LORD WINDERMERE. I DO know you. For twenty years of your life you
lived without your child, without a thought of your child. One day
you read in the papers that she had married a rich man. You saw
your hideous chance. You knew that to spare her the ignominy of
learning that a woman like you was her mother, I would endure
anything. You began your blackmailing,

MRS. ERLYNNE. [Shrugging her shoulders.] Don't use ugly words,
Windermere. They are vulgar. I saw my chance, it is true, and
took it.

LORD WINDERMERE. Yes, you took it - and spoiled it all last night
by being found out.

MRS. ERLYNNE. [With a strange smile.] You are quite right, I
spoiled it all last night.

LORD WINDERMERE. And as for your blunder in taking my wife's fan
from here and then leaving it about in Darlington's rooms, it is
unpardonable. I can't bear the sight of it now. I shall never let
my wife use it again. The thing is soiled for me. You should have
kept it and not brought it back.

MRS. ERLYNNE. I think I shall keep it. [Goes up.] It's extremely
pretty. [Takes up fan.] I shall ask Margaret to give it to me.

LORD WINDERMERE. I hope my wife will give it you.

MRS. ERLYNNE. Oh, I'm sure she will have no objection.

LORD WINDERMERE. I wish that at the same time she would give you a
miniature she kisses every night before she prays - It's the
miniature of a young innocent-looking girl with beautiful DARK
hair.

MRS. ERLYNNE. Ah, yes, I remember. How long ago that seems!
[Goes to sofa and sits down.] It was done before I was married.
Dark hair and an innocent expression were the fashion then,
Windermere! [A pause.]

LORD WINDERMERE. What do you mean by coming here this morning?
What is your object? [Crossing L.C. and sitting.]

MRS. ERLYNNE. [With a note of irony in her voice.] To bid good-
bye to my dear daughter, of course. [LORD WINDERMERE bites his
under lip in anger. MRS. ERLYNNE looks at him, and her voice and
manner become serious. In her accents at she talks there is a note
of deep tragedy. For a moment she reveals herself.] Oh, don't
imagine I am going to have a pathetic scene with her, weep on her
neck and tell her who I am, and all that kind of thing. I have no
ambition to play the part of a mother. Only once in my life like I
known a mother's feelings. That was last night. They were
terrible - they made me suffer - they made me suffer too much. For
twenty years, as you say, I have lived childless, - I want to live
childless still. [Hiding her feelings with a trivial laugh.]
Besides, my dear Windermere, how on earth could I pose as a mother
with a grown-up daughter? Margaret is twenty-one, and I have never
admitted that I am more than twenty-nine, or thirty at the most.
Twenty-nine when there are pink shades, thirty when there are not.
So you see what difficulties it would involve. No, as far as I am
concerned, let your wife cherish the memory of this dead, stainless
mother. Why should I interfere with her illusions? I find it hard
enough to keep my own. I lost one illusion last night. I thought
I had no heart. I find I have, and a heart doesn't suit me,
Windermere. Somehow it doesn't go with modern dress. It makes one
look old. [Takes up hand-mirror from table and looks into it.]
And it spoils one's career at critical moments.

LORD WINDERMERE. You fill me with horror - with absolute horror.

MRS. ERLYNNE. [Rising.] I suppose, Windermere, you would like me
to retire into a convent, or become a hospital nurse, or something
of that kind, as people do in silly modern novels. That is stupid
of you, Arthur; in real life we don't do such things - not as long
as we have any good looks left, at any rate. No - what consoles
one nowadays is not repentance, but pleasure. Repentance is quite
out of date. And besides, if a woman really repents, she has to go
to a bad dressmaker, otherwise no one believes in her. And nothing
in the world would induce me to do that. No; I am going to pass
entirely out of your two lives. My coming into them has been a
mistake - I discovered that last night.

LORD WINDERMERE. A fatal mistake.

MRS. ERLYNNE. [Smiling.] Almost fatal.

LORD WINDERMERE. I am sorry now I did not tell my wife the whole
thing at once.

MRS. ERLYNNE. I regret my bad actions. You regret your good ones
- that is the difference between us.

LORD WINDERMERE. I don't trust you. I WILL tell my wife. It's
better for her to know, and from me. It will cause her infinite
pain - it will humiliate her terribly, but it's right that she
should know.

MRS. ERLYNNE. You propose to tell her?

LORD WINDERMERE. I am going to tell her.

MRS. ERLYNNE. [Going up to him.] If you do, I will make my name
so infamous that it will mar every moment of her life. It will
ruin her, and make her wretched. If you dare to tell her, there is
no depth of degradation I will not sink to, no pit of shame I will
not enter. You shall not tell her - I forbid you.

LORD WINDERMERE. Why?

MRS. ERLYNNE. [After a pause.] If I said to you that I cared for
her, perhaps loved her even - you would sneer at me, wouldn't you?

LORD WINDERMERE. I should feel it was not true. A mother's love
means devotion, unselfishness, sacrifice. What could you know of
such things?

MRS. ERLYNNE. You are right. What could I know of such things?
Don't let us talk any more about it - as for telling my daughter
who I am, that I do not allow. It is my secret, it is not yours.
If I make up my mind to tell her, and I think I will, I shall tell
her before I leave the house - if not, I shall never tell her.

LORD WINDERMERE. [Angrily.] Then let me beg of you to leave our
house at once. I will make your excuses to Margaret.

[Enter LADY WINDERMERE R. She goes over to MRS. ERLYNNE with the
photograph in her hand. LORD WINDERMERE moves to back of sofa, and
anxiously watches MRS. ERLYNNE as the scene progresses.]

LADY WINDERMERE. I am so sorry, Mrs. Erlynne, to have kept you
waiting. I couldn't find the photograph anywhere. At last I
discovered it in my husband's dressing-room - he had stolen it.

MRS. ERLYNNE. [Takes the photograph from her and looks at it.] I
am not surprised - it is charming. [Goes over to sofa with LADY
WINDERMERE, and sits down beside her. Looks again at the
photograph.] And so that is your little boy! What is he called?

LADY WINDERMERE. Gerard, after my dear father.

MRS. ERLYNNE. [Laying the photograph down.] Really?

LADY WINDERMERE. Yes. If it had been a girl, I would have called
it after my mother. My mother had the same name as myself,
Margaret.

MRS. ERLYNNE. My name is Margaret too.

LADY WINDERMERE. Indeed!

MRS. ERLYNNE. Yes. [Pause.] You are devoted to your mother's
memory, Lady Windermere, your husband tells me.

LADY WINDERMERE. We all have ideals in life. At least we all
should have. Mine is my mother.

MRS. ERLYNNE. Ideals are dangerous things. Realities are better.
They wound, but they're better.

LADY WINDERMERE. [Shaking her head.] If I lost my ideals, I
should lose everything.

MRS. ERLYNNE. Everything?

LADY WINDERMERE. Yes. [Pause.]

MRS. ERLYNNE. Did your father often speak to you of your mother?

LADY WINDERMERE. No, it gave him too much pain. He told me how my
mother had died a few months after I was born. His eyes filled
with tears as he spoke. Then he begged me never to mention her
name to him again. It made him suffer even to hear it. My father
- my father really died of a broken heart. His was the most ruined
life know,

MRS. ERLYNNE. [Rising.] I am afraid I must go now, Lady
Windermere.

LADY WINDERMERE. [Rising.] Oh no, don't.

MRS. ERLYNNE. I think I had better. My carriage must have come
back by this time. I sent it to Lady Jedburgh's with a note.

LADY WINDERMERE. Arthur, would you mind seeing if Mrs. Erlynne's
carriage has come back?

MRS. ERLYNNE. Pray don't trouble, Lord Windermere.

LADY WINDERMERE. Yes, Arthur, do go, please.

[LORD WINDERMERE hesitated for a moment and looks at MRS. ERLYNNE.
She remains quite impassive. He leaves the room.]

[To MRS. ERLYNNE.] Oh! What am I to say to you? You saved me
last night? [Goes towards her.]

MRS. ERLYNNE. Hush - don't speak of it.

LADY WINDERMERE. I must speak of it. I can't let you think that I
am going to accept this sacrifice. I am not. It is too great. I
am going to tell my husband everything. It is my duty.

MRS. ERLYNNE. It is not your duty - at least you have duties to
others besides him. You say you owe me something?

LADY WINDERMERE. I owe you everything.

MRS. ERLYNNE. Then pay your debt by silence. That is the only way
in which it can be paid. Don't spoil the one good thing I have
done in my life by telling it to any one. Promise me that what
passed last night will remain a secret between us. You must not
bring misery into your husband's life. Why spoil his love? You
must not spoil it. Love is easily killed. Oh! how easily love is
killed. Pledge me your word, Lady Windermere, that you will never
tell him. I insist upon it.

LADY WINDERMERE. [With bowed head.] It is your will, not mine.

MRS. ERLYNNE. Yes, it is my will. And never forget your child - I
like to think of you as a mother. I like you to think of yourself
as one.

LADY WINDERMERE. [Looking up.] I always will now. Only once in
my life I have forgotten my own mother - that was last night. Oh,
if I had remembered her I should not have been so foolish, so
wicked.

MRS. ERLYNNE. [With a slight shudder.] Hush, last night is quite
over.

[Enter LORD WINDERMERE.]

LORD WINDERMERE. Your carriage has not come back yet, Mrs.
Erlynne.

MRS. ERLYNNE. It makes no matter. I'll take a hansom. There is
nothing in the world so respectable as a good Shrewsbury and
Talbot. And now, dear Lady Windermere, I am afraid it is really
good-bye. [Moves up C.] Oh, I remember. You'll think me absurd,
but do you know I've taken a great fancy to this fan that I was
silly enough to run away with last night from your ball. Now, I
wonder would you give it to me? Lord Windermere says you may. I
know it is his present.

LADY WINDERMERE. Oh, certainly, if it will give you any pleasure.
But it has my name on it. It has 'Margaret' on it.

MRS. ERLYNNE. But we have the same Christian name.

LADY WINDERMERE. Oh, I forgot. Of course, do have it. What a
wonderful chance our names being the same!

MRS. ERLYNNE. Quite wonderful. Thanks - it will always remind me
of you. [Shakes hands with her.]

[Enter PARKER.]

PARKER. Lord Augustus Lorton. Mrs. Erlynne's carriage has come.

[Enter LORD AUGUSTUS.]

LORD AUGUSTUS. Good morning, dear boy. Good morning, Lady
Windermere. [Sees MRS. ERLYNNE.] Mrs. Erlynne!

MRS. ERLYNNE. How do you do, Lord Augustus? Are you quite well
this morning?

LORD AUGUSTUS. [Coldly.] Quite well, thank you, Mrs. Erlynne.

MRS. ERLYNNE. You don't look at all well, Lord Augustus. You stop
up too late - it is so bad for you. You really should take more
care of yourself. Good-bye, Lord Windermere. [Goes towards door
with a bow to LORD AUGUSTUS. Suddenly smiles and looks back at
him.] Lord Augustus! Won't you see me to my carriage? You might
carry the fan.

LORD WINDERMERE. Allow me!

MRS. ERLYNNE. No; I want Lord Augustus. I have a special message
for the dear Duchess. Won't you carry the fan, Lord Augustus?

LORD AUGUSTUS. If you really desire it, Mrs. Erlynne.

MRS. ERLYNNE. [Laughing.] Of course I do. You'll carry it so
gracefully. You would carry off anything gracefully, dear Lord
Augustus.

[When she reaches the door she looks back for a moment at LADY
WINDERMERE. Their eyes meet. Then she turns, and exit C. followed
by LORD AUGUSTUS.]

LADY WINDERMERE. You will never speak against Mrs. Erlynne again,
Arthur, will you?

LORD WINDERMERE. [Gravely.] She is better than one thought her.

LADY WINDERMERE. She is better than I am.

LORD WINDERMERE. [Smiling as he strokes her hair.] Child, you and
she belong to different worlds. Into your world evil has never
entered.

LADY WINDERMERE. Don't say that, Arthur. There is the same world
for all of us, and good and evil, sin and innocence, go through it
hand in hand. To shut one's eyes to half of life that one may live
securely is as though one blinded oneself that one might walk with
more safety in a land of pit and precipice.

LORD WINDERMERE. [Moves down with her.] Darling, why do you say
that?

LADY WINDERMERE. [Sits on sofa.] Because I, who had shut my eyes
to life, came to the brink. And one who had separated us -

LORD WINDERMERE. We were never separated.

LADY WINDERMERE. We never must be again. O Arthur, don't love me
less, and I will trust you more. I will trust you absolutely. Let
us go to Selby. In the Rose Garden at Selby the roses are white
and red.

[Enter LORD AUGUSTUS C.]

LORD AUGUSTUS. Arthur, she has explained everything!

[LADY WINDERMERE looks horribly frightened at this. LORD
WINDERMERE starts. LORD AUGUSTUS takes WINDERMERE by the arm and
brings him to front of stage. He talks rapidly and in a low voice.
LADY WINDERMERE stands watching them in terror.] My dear fellow,
she has explained every demmed thing. We all wronged her
immensely. It was entirely for my sake she went to Darlington's
rooms. Called first at the Club - fact is, wanted to put me out of
suspense - and being told I had gone on - followed - naturally
frightened when she heard a lot of us coming in - retired to
another room - I assure you, most gratifying to me, the whole
thing. We all behaved brutally to her. She is just the woman for
me. Suits me down to the ground. All the conditions she makes are
that we live entirely out of England. A very good thing too.
Demmed clubs, demmed climate, demmed cooks, demmed everything.
Sick of it all!

LADY WINDERMERE. [Frightened.] Has Mrs. Erlynne - ?

LORD AUGUSTUS. [Advancing towards her with a low bow.] Yes, Lady
Windermere - Mrs. Erlynne has done me the honour of accepting my
hand.

LORD WINDERMERE. Well, you are certainly marrying a very clever
woman!

LADY WINDERMERE. [Taking her husband's hand.] Ah, you're marrying
a very good woman!




CURTAIN





End of The Project Gutenberg Etext of Lady Windermere's Fan, by Wilde



A Cura Através das Mãos
Richard Gordon
PREFÁCIO
Este livro é uma introdução ao equilíbrio da energia polarizada. E destaco a palavra introdução, já que o sistema de polaridade é vasto como um continente não explorado,
ou como um novo ramo da ciência, pois há muito mais teoria e informação sobre este assunto do que poderia ser apresentado nestas poucas páginas.
O objetivo deste texto é familiarizar curador e expandir as fronteiras que nós mesmos vivenciamos.
NOSSAS MÃOS SÃO UMA DÁDIVA
Através de nossas mãos, podemos canalizar o amor existente em nossos corações no sentido de aliviar o sofrimento daqueles que nos rodeiam.
INTRODUÇÃO
Certa vez um menino se deparou com uma pequena semente em sua mão. Ele plantou a semente e ela germinou. Passadas algumas semanas, ele disse: "Olhem, aquela semente
se transformou numa videira verde". Poucos dias mais tarde a videira começou a apresentar brotos graciosos. Então o menino comentou: "Ah, então esta é uma vinha
verde com lindos brotos". Ele acreditou nisso até chegar o verão, quando a planta fez aparecer centenas de flores douradas, amarelas, azuis, vermelhas e laranja.
"Agora eu sei o que é isto", disse o menino. "E uma vinha verde com lindos brotos produzindo muitas flores de cores brilhantes." Na estação das chuvas, porém, a
vinha estava coberta de frutas de cor púrpura, de sabor esquisito.
A polaridade, para mim, é como aquela vinha: cada vez que eu a redescubro ela se torna mais maravilhosa. Descrevê-la a pessoas que nunca a vivenciaram é como descrever
pedras raras a pessoas que nunca tiveram contato com elas. E como tentar descrever cores a um homem cego. Essas pessoas podem ter uma vaga idéia do que é dito, mas
até que elas entrem em contato com os objetos, não compreenderão.
Saber que há alguma coisa que eu posso dar, alguma coisa que flui através das minhas mãos e que ajuda outras pessoas a experimentar vida e saúde mais amplamente,tem
sido uma fonte de enorme felicidade para mim. Por isso eu nunca me sinto impotente perante um amigo com dor.
Olhar para trás e perceber como fiquei surpreso quando aquela pequena semente que eu plantei começou a crescer, brotar e florir tão rapidamente é notável.
<13>
Na época de colégio eu sentia que meus estudos eram muito abstratos para nutrir diretamente minha vida. Eu queria ser capaz de personalizar o que estava aprendendo
e expressar o meu potencial criativo, e não simplesmente exteriorizar fatos com a finalidade de passar nos exames. Minhas intenções eram criar um estilo de vida
simples e gratificante para expressar minha vida com amor e honestidade, deixar os meus medos para trás e explorar os mistérios dentro e fora de mim. Com esse objetivo
deixei o colégio para cursar um estudo independente e, nestes últimos dez anos, tenho estado profundamente envolvido no movimento de crescimento pessoal. Mas meu
interesse na cura natural e no equilíbrio de energia polarizada começaram somente quando eu me conscientizei completamente da minha própria saúde.
Da Califórnia mudei-me para as montanhas do México, acima da cidade de Tepoztlán. O povo dali tinha um espírito encantador, livre da velocidade neurótica e da paranóia
com as quais eu tinha crescido por mais de duas décadas em Los Angeles. Durante esse tempo eu estudei ioga, nutrição, ervas, jejuns e escritos espirituais. Para
complementar minha educação, fui para a Escola Christos de Cura Natural, em Taos, Novo México, e estudei com o Dr. William LeSassier, ND. Estudamos ervas medicinais
e técnicas terapêuticas, tais como acupressura, reflexologia, shiatzu, massagem muscular profunda, massagem linfática e adaptações selecionadas quiropráticas, assim
como métodos de relaxamento, visualização e meditação para cura. Quando nos foi apresentada a polaridade não surgiu em mim nenhuma esperança especial, já que todas
aquelas diferentes técnicas eram fascinantes.
Após três dias de estudos sobre a polaridade acordei muito fraco, quando então, naquela mesma manhã, minha amiga Valerie se ofereceu para me dar uma sessão completa
de polaridade.
Valerie trabalhou em mim por quarenta minutos, e a polaridade transformou o meu desânimo em total bem-estar, fato que me deixou profundamente impressionado. Aprendi,
então, que o sistema de polaridade tem uma visão integral para com a saúde e para com o curar. Isto significa que a polaridade lida com o todo da pessoa: pensamentos
e atitudes, necessidades de nutrição, exercícios especiais conhecidos como "ioga polarizada" e, é claro, a sessão polarizada para condicionar o corpo em sua auto
cura. Devo admitir que, logo que comecei a dar sessões de polaridade, encontrei dificuldades em acreditar que, pelo simples fato de pousar minhas mãos sobre alguém,
poderia ser útil a essa pessoa. Estava certo que somente uma pessoa dotada poderia curar outras com suas mãos. E apesar do meu ceticismo, que durou mais de ano,
efetivamente obtive bons resultados.
<14>
Uma semana após completar a sessão geral de treinamento de polaridade, encontrei uma mulher com uma forte dor, que o médico diagnosticara como resultante de gravidez
tubária. Então disse a ela que eu acabara de aprender um método chamado polaridade, que poderia ajudá-la a relaxar. "Qualquer coisa", ela respondeu. "Eu tentarei
qualquer coisa!"
Meia hora mais tarde ela dizia: "Eu não posso acreditar que estas sejam as minhas mãos! Eu não posso acreditar que estes sejam meus pés! Eu me sinto maravilhosa!"
Naquela mesma semana assisti a demonstrações do Dr. LeSassier sobre tratamentos no pescoço. Porém, o tratamento não estava podendo ser feito numa mulher, já que
ela tinha muita tensão no pescoço. Nessas condições um tratamento completo requereria algumas semanas de massagem profunda. O pescoço dela doía após a demonstração,
e por isso apliquei-lhe polaridade. Quinze minutos mais tarde chamei o Dr. LeSassier. Ele confirmou que os ossos do pescoço tinham voltado ao lugar e perguntou-me
o que eu havia feito. "Eu apliquei a polaridade", disse. Desde então tenho testemunhado muitos exemplos onde ossos deslocados voltaram literalmente após uma sessão
de polaridade. Certa vez uma mulher veio a uma aula que eu estava começando. Ela disse que, apesar da assistência médica competente recebida nos últimos quinze
anos, sua condição física progressivamente tinha se tornado pior. Ela estava desesperada por uma ajuda. Depois de dar ao grupo uma breve introdução sobre polaridade,
selecionei cinco dos novos estudantes e formamos um círculo de polaridade em volta da mulher. Ao terminarmos, sua aparência era de ter remoçado dez anos. Sua face
estava relaxada. Suas mãos pararam de tremer. Então, ela nos disse que nos últimos trinta anos não havia sentido tal paz, tal calma. Pela primeira vez, que se lembrasse,
estava podendo deitar de costas sem pôr os joelhos para cima, no ar. E ela havia transpirado, sem o uso de remédios, pela primeira vez desde a infância. Uma semana
mais tarde ela voltou para contar que um exame com raios X revelara que depois da sessão de polaridade metade da curva dupla em S, que ela tinha na espinha, tinha
se corrigido.
<15>
Muitas vezes eu ficava surpreso e impressionado pela eficiência do método de polaridade. Uma mulher que estava com a menstruação atrasada em três semanas tinha o
diagnóstico de infecção uterina. Comecei a aplicar-lhe polaridade e, enquanto trabalhava nos seus pés, quatro crianças quiseram me ajudar. Coloquei-as, então, nas
várias posições do círculo de polaridade. Vinte minutos mais tarde sua menstruação começou, e ela se levantou muito aliviada. E contou que cada vez que uma das crianças
a tocava ela sentia uma onda de luz dourada fluindo pelo seu corpo.
Durante uma palestra, eu estava fazendo demonstrações do movimento do ventre numa senhora de meia-idade. Quando parei o movimento senti uma energia enorme movendo-se
através das minhas mãos. Então perguntei-lhe se ela sentira um formigamento no corpo. "Não", foi sua resposta. Porém, como a polaridade pode ser muito imprevisível
mas sempre faz alguma coisa, perguntei se havia alguma parte do seu corpo onde ela sentia energia. "Sim", ela disse, "estou sentindo um formigamento em minhas mãos".
"Há alguma razão pela qual suas mãos precisem de energia?", perguntei-lhe. Ela sacudiu a cabeça negativamente. Dez minutos mais tarde ela interrompeu a minha fala
excitadamente para exclamar: "A dor da artrite em minhas mãos sumiu!" E ela não mencionara essa dor quando lhe perguntei, de tão acostumada que estava.
Com espanto, aprendi que a polaridade pode ser boa também para transtornos emocionais. Um exemplo extremo foi o de um homem que tomara LSD e começara a se sentir
como um total fracasso na sua vida. Ele estava profundamente confuso e próximo da histeria. Depois de uma pequena polaridade, ele se sentou e disse que estava se
sentindo muito melhor. "Eu estava exagerando a proporção das coisas", ele comentou. A polaridade o relaxou e o centrou, tirando a sua mente das fantasias mórbidas
nas quais estava, sob a influência daquele poderoso alucinógeno.
<16>
Em outra ocasião em testemunhei o fato de um simples movimento de polaridade, o movimento do ventre, fazer maravilhas numa criança hiperativa, quando usado diariamente.
Toda manhã, mais ou menos à mesma hora, esse menino perdia todo o controle a ponto de a terapeuta descrever o seu comportamento como histérico. Então ensinei à terapeuta
o movimento do ventre: primeiro teria que agarrar o menino e forçá-lo a se deitar para que ela pudesse fazer o movimento. Após alguns minutos de polaridade o menino
dormia profundamente por uma ou duas horas. Depois de acordar, ele estava relaxado e apto para se relacionar normalmente com outras crianças. Algumas vezes ele até
se desculpava com os outros por seu comportamento rude. A terapeuta ficou tão impressionada que ensinou para a mãe do menino o uso do movimento do ventre com resultados
gratificantes.
Os efeitos da polaridade, porém, nem sempre são instantâneos, ou tão radicais. Pessoas com condições crônicas muitas vezes precisam de uma série de sessões em conjunto
com uma dieta aperfeiçoada, exercícios e, o mais importante, atitudes e emoções positivas. Algumas vezes uma pessoa pode sentir-se pior temporariamente antes de
sentir uma melhora. Outras vezes pode aparentar não ter sido ajudada de maneira alguma. Um de meus vizinhos foi um ótimo exemplo disso. Um dia ele deu um mau jeito
nas costas ao fazer exercícios. A dor foi tão grande que ele não podia se virar. Então, dei-lhe uma completa sessão de polaridade, mas que acabou sem ele sentir
alívio. Um pouco inquieto, entrei em contato com uma das minhas professoras e contei o ocorrido. "Oh, eu não te falei?", ela riu. "Leva mais ou menos vinte e quatro
horas para a polaridade fazer efeito nas costas." E na manhã seguinte meu vizinho estava em frente de sua casa, cortando lenha.
O que eu contei aqui é apenas um pequeno resumo das muitas experiências que tive. Cada vez mais os efeitos da polaridade superavam as minhas expectativas, aumentando
assim a minha confiança nela. Agora reconheço que todos nós temos o poder de assistência na cura não através de magia, mas através de uma simples ciência ampliada
pelo nosso amor.
<18>
RECEBENDO
Um filme exposto, revelado e fixado não mais será sensível à luz. Então, deixe de lado conceitos expostos, revelados e fixos, e receba esta dádiva. No momento, esvazie
sua taça a fim de que ela possa ser enchida.
<20>
SEÇÃO I
POLARIDADE
O equilíbrio de polaridade energética é um método simples e eficiente usado para causar um profundo relaxamento curador. É fácil de aprender, sutil, poderoso, seguro
e alegre.
Empregando as correntes de força vital que naturalmente flui através das mãos de todos, podemos aliviar e equilibrar a energia de outra pessoa. Enquanto essa energia
está fluindo livremente, experimentamos paz, alegria, amor e saúde.
Força Vital
A força vital é uma forma sutil de energia eletromagnética. É a corrente animadora da vida e uma realidade fisiológica no corpo. Através dos séculos, a força vital
tem sido rotulada com diferentes nomes por muitos povos. Não se trata de uma descoberta recente. Cristo a chamou "luz"; os russos, em suas pesquisas psíquicas, chamaram-na
energia "bioplásmica";
Wilhelm Reich referiu-se a ela como "energia orgone"; os jogues da Índia Oriental chamam-na de "pran" ou "prana"; Reichenbach falou dela como "força ódica"; para
os Kaunas, ela é "mana"; Paracelso chamou-a "munia"; o termo comum chinês é "chi" ou "ki"; manuscritos alquimistas falam de "fluido vital"; Eeman descreveu-a como
"força x"; Bruner chamou-a energia "biocósmica"; Hipócrates chamou-a "vis medicatrix naturae" (força vital da natureza). Ela também tem outros nomes, como bioenergia,
energia cósmica, força vital, éter do espaço, etc. E estou certo de que há inúmeros outros. Para simplificar, referir-nos-emos a ela como força vital, ou simplesmente
"a energia".
<22>
A força vital flui através do corpo como se estivesse seguindo um sistema circulatório invisível, carregando toda célula no seu caminho. Esta corrente de energia
pode tornar-se enfraquecida e parcialmente bloqueada devido ao cansaço. A ciência da acupuntura envolve a localização dos pontos exatos onde o bloqueio ocorre e,
usando agulhas, estimula aqueles pontos para restaurar a corrente. No equilíbrio de energia através da polaridade, as técnicas de toque físico e não-físico são usadas
para mandar energia através de todo o organismo para abrir os pontos bloqueados. Isto restabelece o fluir natural e o alinhamento da força vital através do corpo.
Energia é energia. Não há energia má - somente energia bem dirigida ou mal dirigida. A polaridade direciona a força vital ao longo do seu caminho natural para diluir
os "nós" de energia causados por excessos emocionais e físicos. A polaridade é, pois, um relaxamento curador em todos os níveis.
Experimentando a Força
Muitas pessoas imaginam porque elas nunca foram conscientes da força vital no passado. Imagine um grupo de pessoas que, olhando para as cores laranja e vermelha,
sempre as chamaram de "vermelho". Se um dia aparece alguém que demonstra a diferença entre as duas cores, de repente todo mundo passa a ver a diferença. Bem, a força
vital tem sido sempre uma parte de nossas vidas, mas, como no exemplo hipotético das cores, nós não temos nos importado em diferenciá-la de todas as sensações físicas
que estamos acostumados a experimentar.
Mas a força vital pode ser facilmente experimentada. Friccione suas mãos vigorosamente uma na outra por um minuto. Agora, deixe-as separadas alguns centímetros uma
da outra. Mova as suas mãos juntas e separadas, entre três centímetros a doze centímetros de distância, e veja onde você sente a energia mais forte. Ela pode ser
sentida como um formigamento, vibração, sensação do tipo frio ou quente, ou como um campo magnético.
<23>
Faça com que um amigo friccione as mãos também, e então ponha uma delas entre as suas. Mova as suas mãos para dentro e para fora, três a doze centímetros das dele.
Dentro de poucos segundos a um minuto é quase certeza que você estará sentindo alguma coisa. Se, por exemplo, você sente um formigamento num lugar à volta dos seus
polegares, quando a palma do seu amigo está diretamente entre as suas, seu amigo provavelmente sentirá o formigamento exatamente naquela parte da mão, bem entre
os lugares onde você sente.
<24>
Quando você começa a usar a polaridade nos amigos ou nos membros da família, a experiência de formigamento e vibração em suas mãos será muitas vezes mais poderosa
do que os efeitos que você possa ter experimentado. Por diversas vezes tenho posto minhas mãos sobre outra pessoa em um dos movimentos de polaridade quando, de repente,
sinto em minhas mãos incrível energia em ondas e formigamentos. Minhas sensações correspondem às sensações da outra pessoa, que simultaneamente sente a energia em
ondas e formigamentos através do seu corpo. Quanto mais relaxado você está, mais fácil é sentir a força vital quando ela passa através de salas mãos. Quanto mais
relaxado seu amigo estiver, quando você estiver canalizando, mais efetiva será a polaridade, e a sua própria experiência da força vital será ampliada. Não fique
desencorajado se você não sente a força vital no começo, pois ela nem sempre é sentida de maneira destacada. A medida que você continua trabalhando com a força vital,
você ficará aos poucos mais consciente dela.
Como Acabar com uma Dor de Cabeça
Acabar com uma dor de cabeça causada por tensão é tão fácil que qualquer um pode fazê-lo! Se você está com alguém que tem dor de cabeça, eis aqui o procedimento:
Friccione suas mãos vigorosamente e sinta sua própria energia. Em seguida, delicadamente toque atrás do pescoço da pessoa com a palma da sua mão direita. Ponha
a sua mão esquerda a quatro centímetros da testa da pessoa. Peça ao seu amigo que faça dez respirações profundas, fazendo com que cada uma saia com um suspiro. A
respiração profunda do seu amigo aumentará a sensação de força vital que você sentirá nas suas mãos. Mas se isso não acontecer, faça-o repetir a respiração novamente.
Deixe a sua mão no lugar enquanto você puder sentir uma forte transferência de energia. Dentro de três ou quatro minutos a maior parte das dores de cabeça dissipar-se-ão,
ou estarão grandemente aliviadas. Se a dor de cabeça persiste, será necessário fazer uma polaridade mais completa - como é demonstrado na sessão de polaridade um-a-um,
página 40. Quando você terminar, sacuda as mãos com força - como se você estivesse borrifando água. Então, lave as suas mãos na água fria para remover a energia
estagnada.
<26>
Histórico da Polaridade
O fundador do sistema moderno de polaridade, Dr. Randolph Stone, nasceu na Áustria, em 1890. Mais tarde emigrou para a América com seu pai, fixando-se em Chicago
e naturalizando-se.
O Dr. Stone tornou-se um médico em osteopatia, um doutor de naturopatia assim como um quiroprático, mantendo uma clínica particular de 1914 a 1972.
Apesar de todo este treinamento, o
Dr. Stone não estava satisfeito com a visão ocidental de cura e sentiu uma necessidade de explorar outras técnicas. Na China e na França estudou acupuntura e herbologia.
No Oriente, aprendeu reflexologia e outras técnicas de massagens orientais. No decurso de seu trabalho cruzou seu caminho com a arte antiga espagírica de curar,
como foi ensinada pelo grande Doutor Paracelsus von Hohenheim, que estudou na Arábia. Isto proporcionou ao Dr. Stone o conhecimento essencial dos campos sutis eletromagnéticos
do corpo. No decurso de sessenta anos, o Dr. Stone integrou esta riqueza de conhecimentos num sistema que ele denominou Terapia de Polaridade.
Com a idade de 84 anos, o Dr. Randolph Stone retirou-se para viver na Índia, designando Pierre Pannetier, um doutor naturopático, como seu sucessor para o futuro
crescimento da terapia da polaridade.
O intento deste livro, porém, não é apresentar os ensinamentos do Dr. Randolph Stone. A informação apresentada neste livro demonstra as inovações bem sucedidas
e variações do equilíbrio da energia de polaridade que tem evoluído desde as aquisições do pioneirismo do Dr. Stone.
O Principio da Polaridade
Assim como a terra e o sol têm pólos magnéticos norte e sul, também nossos corpos os têm. De fato, tudo o que fica na parte de cima do planeta tem uma carga positiva
em cima e uma carga negativa na base.
<27>
A parte alta do corpo tem carga positiva.
Os pés têm carga negativa.
O lado direito tem carga positiva.
O lado esquerdo tem carga negativa.
(Estas cargas são comumente avaliadas usando-se voltímetros sensíveis.) Quando os pólos positivo e negativo de magnetos são postos juntos, há uma corrente de atração
entre eles. Igualmente, a energia de polaridade é dirigida magneticamente ao longo de uma das linhas de força para alinhar e estabelecer as polaridades vitais do
corpo. Áreas bloqueadas no campo natural de energia do corpo são um desequilíbrio que o prático de polaridade trata, ligando: a mão (+) direita ao lado (-) esquerdo
do corpo, e ligando: a mão (-) esquerda ao lado (+) direito do corpo.
Repetindo, se você está trabalhando com alguém, sua mão direita vai para o lado esquerdo da pessoa, e sua mão esquerda vai para o seu lado direito. Se você está
trabalhando na linha vertical central do corpo, a mão (-) esquerda é sempre posta acima de uma área relativamente mais positiva, e a mão direita (+) é colocada numa
área relativamente mais negativa. Novamente, quando trabalhando a linha vertical central do corpo, sua mão esquerda vai acima, e sua mão direita, abaixo.
<28>
Resultados
Ao aplicar uma polaridade, você obterá maiores resultados quando a pessoa estiver muitíssimo necessitada. Uma pessoa saudável e feliz que experimenta a polaridade
provavelmente se sentirá muito relaxada e em paz, enquanto que alguém que esteja muito fora de equilíbrio se sentirá quase sempre completamente rejuvenescido.
O equilíbrio de energia com polaridade recarrega de força vital uma pessoa. Isto equilibra os campos de aura sutis eletromagnéticos à volta do corpo. Quando a aura
está equilibrada, os nervos estão relaxados. E já que os nervos controlam os músculos, e os músculos seguram os ossos, não é de maneira alguma surpreendente ver
ossos voltarem literalmente ao lugar depois da polaridade. Aqui está um jeito de você comprovar isso por você mesmo. Quando seu amigo estiver deitado de costas,
note a posição de cada pé antes da polaridade começar. Eles estão equilibrados ou ficam para fora em ângulos diferentes? Em muitos casos uma sessão de polaridade
alinhará de maneira apropriada os ossos e os dois pés ficarão visivelmente mais uniformes. Porque a polaridade funciona em níveis tão profundos, não fique surpreso
ao ver grandes mudanças na pessoa na qual você está trabalhando. Pessoas emocionalmente transtornadas podem começar a se soltar, perdoar e relaxar. Se uma pessoa
tem vontade de chorar, ela deveria ser gentilmente encorajada. Outras pessoas podem mergulhar num estado muito profundo de sono consciente. Permita à pessoa descansar
por quanto tempo ela queira. Se estiver frio, não deixe de cobrir a pessoa. Algumas vezes a pessoa se sente como se necessitasse de uma noite de descanso após a
polaridade. Outras vezes, sente como se tivesse acabado de acordar depois de uma noite de sono. Algumas vezes pode sentir muito calor, ou tremer, pois o sangue
vai direto na pele ou nos órgãos internos. Algumas vezes pessoas entram em estado de bênção ou êxtase. Qualquer coisa que aconteça, tenha certeza de que é exatamente
isso que a pessoa está precisando naquele momento. A força vital irá somente onde ela é necessária para causar as transformações que são necessárias. Ela faz as
pessoas se sentirem melhor.
<30>
A força vital não vê diferença entre dor emocional ou dor física. Ambas são simplesmente expressões de força vital bloqueada. Através dos anos, tenho observado a
polaridade ajudar jovens e idosos sofrendo de muitos problemas diferentes. Em muitos casos, a polaridade oferece alívio eficiente para a dor, sem remédios.
Pessoas aplicando sessões de polaridade estão circulando força vital e, assim, elas podem experimentar benefícios.
Condições Crônicas
Em condições crônicas ou em situações graves, uma série de polaridades é altamente recomendada. Não espere resultados imediatos da polaridade, pois talvez tenha
levado dez, vinte ou cinqüenta anos para o organismo perder o equilíbrio. Assim, pode ser necessária uma série de polaridades, somadas a uma melhora em termos de
atitude, exercícios e hábitos nutricionais, para fazer surgir as necessárias mudanças. Você pode, entretanto, obter resultados instantâneos em forma de alívio de
dor ou melhor funcionamento do organismo. Uma sessão de polaridade três ou quatro vezes por semana pode conseguir maravilhas. Quando se percebem sinais definitivos
de melhora, duas polaridades por semana são suficientes. Para aqueles que aparentam estar curados, uma polaridade por semana, como um tônico, é uma excelente idéia
até que todos os sintomas estejam completamente eliminados.
E é sempre bom perguntar para a pessoa que está recebendo as polaridades o que elas sentem de benéfico em relação à freqüência. Lembre-se que é muito melhor dar
uma série de polaridades do que uma ocasional.
Pessoas Idosas
Dando polaridade às pessoas mais velhas, há especiais considerações. Polaridades curtas e freqüentes são mais apropriadas e benéficas. Uma polaridade forte, por
si mesma, poderia precipitar um processo de limpeza e cura, liberando toxinas longamente acumuladas, as quais a pessoa mais velha pode não ter força vital suficiente
para eliminar. É muito melhor ir devagar e naturalmente. Junto com sessões freqüentes, isto é, três vezes por semana, uma dieta purificadora é ideal para idosos.
Informações bem pesquisadas e claras sobre este assunto encontram-se em livros que eu recomendo ao leitor na página 131.
<31>
Crianças
Crianças adoram dar e receber polaridades. Damos o nome de "dar amor" como uma explicação às crianças, e o círculo de polaridade é chamado um "círculo de amor".
Os jovens podem sentir instantaneamente a força vital. Eles geralmente são mais sensíveis e têm muito menos condicionamentos para bloquear a experiência. A polaridade
é extremamente eficiente em crianças porque estão abertas para deixar o amor fluir através delas. Além do mais, não falta muito equilíbrio de energia nos seus pequeninos
corpos.
O círculo de polaridade é, de muitas maneiras, ideal para crianças. E fácil de ensinar e proporciona às crianças uma oportunidade de amar e servir aos outros de
uma maneira não ameaçadora, além de não causar dor e ser alegre. Depois de dar uma polaridade, certifique-se de que as crianças tenham lavado suas mãos em água
fria. Os movimentos finais da sessão um-a-um também funcionam muito bem para as crianças. Alguns pequenos tolerarão movimentos com pressão suave. Então, deixe a
experiência de polaridade ser agradável para elas, seja o que for que você faça.
Desde que a hora de ir para a cama é um freqüente problema para muitas crianças pequenas - e para seus pais -, o seguinte exemplo pode ser posto em uso. Um dia um
amigo meu iniciou sua filha de três anos de idade na polaridade, quando a criança estava num estado bem calmo. Usando o movimento do ventre, a mãe de Sara chamou-o
de "dar amor", e Sara gostou demais. Algumas noites mais tarde, quando sua filha estava de mau-humor, meu amigo perguntou-lhe: "Você gostaria que a mãezinha lhe
desse um pouco de amor?" Quando tudo acabou, Sara estava dormindo.
Desde aquele tempo a hora de ir para a cama nunca mais foi um problema. Toda noite Sara insiste que sua mãe lhe "dê um pouquinho de amor" antes que vá dormir. Este
movimento de polaridade simples e eficiente não somente ajuda Sara a ir para cama sem confusão, mas também é altamente benéfico para sua saúde num nível preventivo,
pois alinha sua força vital todas as noites.
<32>
FICANDO MOLHADO
Não é preciso que você acredite que este sistema vá funcionar, a fim de experimentá-lo profundamente. Você não precisa acreditar no oceano para ficar molhado, no
entanto você precisa pular nele.
<34>
SEÇÃO II
POLARIDADE UM-A-UM
Esta seção do livro descreverá como uma pessoa pode dar uma sessão completa de polaridade em outra pessoa. Mais tarde exploraremos como um grupo de seis pessoas,
não usando pressão ou toque como técnicas de polaridade, podem efetuar grandes mudanças físicas no corpo. Eu recomendo que você leia cuidadosamente toda a primeira
seção deste livro antes de continuar.
Tipos de Toque
A polaridade um-a-um usa três tipos de toque: massagem profunda, toque leve sem pressão e toque não-físico, quando as mãos são postas levemente longe do corpo.
A força vital flui num sistema circulatório sutil através do corpo. Quando há esgotamento por causa de preocupação ou medo, excesso de trabalho ou problemas pessoais,
o fluxo de força vital tende a se tornar congestionado em vários lugares, deixando o resto do corpo sem energia suficiente para funcionar bem. Uma pressão profunda
pode liberar força vital bloqueada. Depois que a energia estiver liberada e fluindo de maneira livre, as técnicas de toque leve e não-toque podem polarizar a energia,
isto é, organizar e alinhar a força vital através dos seus caminhos corretos.
Atitudes
Aplicando uma polaridade, a melhor atitude é a relaxada e amorosa. Embora a força vital seja afetada por nossos pensamentos, não é essencial concentrar, meditar
ou tentar de alguma maneira fazer um bom trabalho. A energia flui por si mesma, fazendo o seu próprio trabalho. E útil que você se centre. Isto é, que você reúna
sua atenção e que esteja alerta ao que você está fazendo. Se você se esforça muito para fazer um bom trabalho, não se sentirá relaxado e somente bloqueará o fluxo
de força vital. A melhor maneira é simplesmente "estar" com a pessoa que está recebendo. Você pode gostar da pessoa, amar a pessoa ou simplesmente sentir-se bem
por dentro. Com qualquer dessas atitudes a força vital fluirá livremente.
<35>
Não dê uma sessão de polaridade se você se sente negativo em relação à pessoa que a receberá, se você está atravessando um severo abalo emocional ou se você está
doente. No entanto, estas são ótimas ocasiões para receber polaridade! O equilíbrio de energia com polaridade não é uma cura pela fé e funciona muito bem para os
céticos. Não acreditar na polaridade não alterará sua força vital de maneira significativa, contanto que você se sinta bem enquanto trabalha. A polaridade funciona
de acordo com princípios universais da força vital e atração eletromagnética, não por causa de nossas opiniões.
Autoproteção
Ao se trabalhar com a energia sutil da força vital torna-se necessário que se tomem pequenas precauções para assegurar que você não se contamine com a energia estagnada
de outra pessoa.
Primeiro, saiba que não é você o curador. Isto se torna evidente para mim quando eu estou usando uma técnica não-física como o balanço ou o balança-barriga. Às vezes
minhas mãos se aquecem de repente, e então sinto um campo de energia a poucos centímetros delas, como um rio de energia vibrando entre mim e meu amigo. Não sei aonde
ela está indo ou o que está fazendo. É a força vital que está curando, não eu como pessoa. Tudo o que faço é pôr as minhas mãos em posição e observar o que acontece.
O amor dentro de nós, em forma de força vital, faz a cura. Então, uma atitude correta é "deixar acontecer" ou, se você preferir, "Tu farás". Simplesmente assumo
a posição de um observador. Até mesmo um observador cético terá sucesso. Pensar "Eu sou um curador" evidencia uma vibração carregada de "Eu", "Eu", "Eu", que pode
atrair a energia acumulada da pessoa que está recebendo a polaridade para a pessoa que a está dando.
<36>
Segundo, sacuda suas mãos e lave-as em água fria. Quando você acaba de dar uma polaridade, é necessário sacudir suas mãos algumas vezes com fortes impulsos, como
se você estivesse jogando água. Em seguida, lave suas mãos em água fria. Estes dois passos removem e atraem para a terra a energia estática, energia não direcionada
que possa estar em suas mãos. A energia estática pode ser sentida como uma sensação de peso, volume ou inchaço. Terceiro, não dê uma sessão de polaridade se você
está muito cansado ou sob o efeito de alguma droga. Estar sob o efeito de uma droga é uma condição na qual você não se sente "presente", sentindo o seu corpo, com
o sentimento de estar completamente aqui. Sob estas condições você será mais suscetível às energias do seu amigo, transferência essa que é indesejável e que deve
ser evitada. Quarto, tenha um senso de confiança no processo. Não se preocupe se alguma coisa diferente acontece. Uma pessoa pode se sentir pior antes de se sentir
melhor, ela pode dormir profundamente de repente, pode sentir muito frio, ou ter sensações que nunca sentiu antes por todo o corpo. Saiba que a força vital está
ligada com a inteligência do corpo para fazer o que for preciso. Em raras ocasiões, durante aplicações de sessões de polaridade, pode até acontecer de você sentir
os sintomas da outra pessoa no seu próprio corpo. Não fique com medo! Simplesmente observe o que está acontecendo e a experiência passará através de você dentro
de minutos.
Efeito Magnético
Normalmente você se sente muito bem depois de dar uma sessão de polaridade. Há ocasiões, entretanto, em que você poderá se sentir cansado. Isto quer dizer que você
não estava relaxado durante a sessão. Mas a força vital que passou para a outra pessoa será de grande ajuda. Portanto, relaxe, tenha um descanso e dê algumas respiradas.
Alguns exercícios vigorosos e um chuveiro frio podem ser úteis, e a sua força voltará logo.
<37>
Atmosfera
Quando aplicar uma polaridade, cuide que o aposento esteja quente, silencioso e confortável, com espaço suficiente para que se possa ter movimentos. Se possível,
evite que ocorram fatos que provoquem distrações. Desligue o telefone, retire animais e ponha um aviso de "não perturbe" na porta, etc. Como entretenimento, ponha
uma música suave.
Vestimentas
Use roupas largas e confortáveis.
A pessoa que recebe a polaridade deveria tirar seus sapatos e meias. Isto permite um contato direto com a energia pelos pés. Tirar os sapatos também é confortável
para quem aplica a polaridade.
É aconselhável remover todo metal da roupa e do corpo quando você dá ou recebe uma polaridade, pois o metal parece interferir levemente no fluxo de força vital.
Tire jóias, cintos com fivelas, chaves, moedas, relógios e quaisquer outros objetos de metal antes de começar.
Mesas de Trabalho
Aplicar uma polaridade em uma mesa de massagem constitui o meio mais confortável. Você pode fazer todos os movimentos e posições estando relaxado e à vontade. Uma
mesa provisória pode ser tão simples quanto uma tábua com uma espuma sobre ela, colocada sobre dois cavaletes. Mesas de massagens comerciais são excelentes e podem
ser facilmente compradas em lojas que vendem artigos hospitalares ou coisas usadas.
Quando escolher uma mesa, certifique-se de que ela satisfaz suas necessidades. Alguns requisitos que devem ser observados são uma boa altura (assim ela se torna
confortável para você e outros podem usá-la), largura satisfatória (para que um homem grande possa deitar de costas sem que seus braços caiam de lado), firmeza suficiente
e de pouco peso, para que possa ser portátil.
<38>
Começando uma Polaridade
Antes de começar uma sessão, explique para seu amigo (ou amiga) que tudo que ele (ou ela) precisa é dar umas respiradas fundas, relaxar e gostar da experiência.
Seu amigo pode discutir o que está experimentando, rir, chorar ou ficar em silêncio. Quanto mais você puder ajudar seu amigo a ficar relaxado, mais facilmente a
força vital fluirá através do corpo. Faça o que você sentir apropriado no momento.
Respiração
Você pode aumentar muito o poder da polaridade se encorajar a pessoa que a recebe a fazer umas respirações profundas durante a sessão. A força vital está no ar,
e ela pode ajudar a recarregar o corpo. A respiração profunda também capacita a pessoa a relaxar e aliviar a tensão emocional. Você descobrirá que quando seu amigo
está respirando profundamente você pode experimentar mais intensamente o formigamento de força vital nos movimentos não-físicos. O poder da polaridade pode também
ser aumentado pelo seu próprio modo de respirar. Tente você mesmo respirar profundamente enquanto aplica uma polaridade. Não é necessário que a respiração seja sincronizada
com a da outra pessoa.
<39>
Enquanto você trabalha, preste atenção para ver se o seu amigo ainda respira profundamente. A respiração deveria começar abaixo do umbigo e caminhar para cima, até
os ombros. A inalação deve ser feita puxando o ar para dentro, enquanto que a expiração deveria ser uma liberação da respiração totalmente relaxada e sem esforço:
Mas estará tudo bem se o seu amigo respirar com a boca ou com o nariz durante a polaridade.
Aprendendo as Posições
Há uma série de posições na sessão geral de polaridade um-a-um. Elas serão mais eficientes se você usá-las pela ordem dada.
Essas posições são descritas em três lições designadas para ajudar você, dividindo a informação em partes fáceis de aprender. Recomendo que cada lição seja sentida
e praticada antes que se passe para a próxima. Desta maneira, você será capaz de aprender rapidamente toda a sessão.
Antes de começar, leia o título do movimento, sua descrição e o comentário. Ao praticar, você pode pular a sessão de comentário. Mais tarde você saberá o que é
o movimento só pelo fato de ler o título. Com prática continuada você vai lembrar a sessão toda de polaridade sem olhar no livro. Tome seu tempo e tenha paciência.
O tempo e o esforço despendidos serão bem recompensados. A sessão de polaridade um-a-um oferece uma oportunidade perfeita para se amar uma pessoa de uma maneira
a lhe proporcionar ajuda, e sem a agredir.
<40>
LIÇÃO UM
Posição 1 - O Embalo
Friccione suas mãos vigorosamente uma na outra e balance a cabeça sem usar pressão. Torna-se melhor quase sem tocar a pessoa. Conserve suas mãos relaxadas. Os dedos
indicador e médio ficam embaixo, nos lados do pescoço, enquanto que os polegares ficam perto das orelhas.
Comentário: o embalo é uma posição muito confortável. Pode ser de enorme ajuda no alívio de tensões, dores de cabeça e nervosismo. Tenha a certeza de que o seu
corpo está confortável nesta e em todas as outras posições da sessão de polaridade. Não se esforce se suas costas começarem a ficar doloridas. Faça um descanso,
volte relaxado e continue.
Conserve esta posição até que você sinta uma forte troca de energia em suas mãos. Não há uma regra quanto à permanência em qualquer uma dessas posições. É melhor
que você confie em suas intuições e sentimentos. Em alguns casos, o embalo pode ser feito por meia hora ou mais. Mais freqüentemente, tem a duração de alguns minutos.
Faça com que seu amigo respire profundamente. É mais fácil experimentar a força vital quando você não está tocando seu amigo.
<42>
Posição 2 - Estiramento do Pólo Norte
Descanse a cabeça do seu amigo sobre a palma da sua mão direita, de forma que o seu dedo médio e polegar possam segurar com firmeza o osso occipital. Sua mão esquerda
deverá ficar pousada sobre a testa. Com uma pressão firme, puxe direto para trás, somente com a mão direita. Fique assim uns dois ou três minutos.
<43>
Comentário: Faça com que seu amigo relaxe e deixe você fazer todo o trabalho. Se você tatear os lados da parte traseira do seu pescoço, encontrará a base do osso
occipital. Se pressionar sob o osso, provavelmente sentirá um pouco mole. Uma vez que você encontrou este lugar em você, será fácil encontrá-lo em outra pessoa.
Quando você. sentir que o polegar e o dedo médio da sua mão direita têm um sólido manejo na base do osso occipital, pode saber que está no lugar certo.
Use tanta pressão quanto for possível, na medida do conforto de seu amigo. Se sua mão direita ficar cansada, passe para o próximo movimento. Encoraje o seu amigo
a respirar profundamente, se assim ele não estiver respirando.
<44>
Posição 3 - Movimento do Ventre
Friccione suas mãos vigorosamente e pelo lado direito do seu amigo, ponha sua mão esquerda na testa dele e sua mão direita na região sob o umbigo. Agora balance
a pessoa ritmicamente com a mão direita. Balance por alguns minutos e então pare e deixe suas mãos no lugar. Conserve suas mãos aí todo o tempo que você estiver
sentindo aquele formigamento da troca de força vital (pelo menos um minuto). Agora, erga a sua mão a uns três ou cinco centímetros do corpo e sinta novamente o formigamento
de força vital em suas mãos. Comentário: Preste atenção para que o movimento seja delicado e brando, como o balançar uma criança. Durante o balanço o dorso se move
de três a cinco centímetros. Siga o momentum do corpo para conservar uma velocidade delicada e suave. Preste atenção para que sua mão direita não escorregue pela
superfície enquanto o corpo permanece quieto. A mão e o dorso deveriam mover-se juntos. Se o seu amigo não balança, tente pressionar mais profundamente com a mão
direita. Quando você parar o balanço e deixar sua mão no lugar, poderá acontecer que seu amigo sinta energia formigando e correndo por todo o corpo. Este movimento
é simples e extremamente poderoso. E recomendado como um tratamento se você tem apenas alguns minutos. E maravilhoso para as crianças antes de irem para a cama.
Novamente, respiração profunda e branda é muito importante.
Sugestão: Pare aqui e tente o que você acabou de ler.
<46>
Os Pés
Complete todos os movimentos em um pé antes de começar no outro. As instruções são para que você comece no pé direito do seu amigo. Quando você acabar o direito,
comece o esquerdo, somente invertendo as instruções.
Posição 4 - Limpeza
Faça ambas as mãos deslizarem para baixo, pela perna, começando abaixo do joelho, e mova para as extremidades dos artelhos. Então, sacuda as suas mãos vigorosamente
como se você estivesse jogando água fora. Repita este movimento algumas vezes.
Comentário: Este movimento puxa para fora a energia estática, não direcionada. Suas mãos podem sentir-se pesadas, densas, inchadas. É a hora de mandar embora esta
energia num forte arremesso.
<48>
Posição 5 - Inclinar e Puxar
O calcanhar direito do seu amigo fica nos dedos da sua mão esquerda. A base da sua mão direita é colocada na parte gorda da sola do pé. Agora, ponha no pé o peso
da mão direita, inclinando-o para frente, usando o peso do seu corpo para dar no tendão de Aquiles um bom estiramento. Em seguida, ponha a sua mão direita sobre
o meio do peito do pé e puxe para baixo até que o joelho levante uns quatro centímetros da mesa. Puxe suavemente. Repita isso algumas vezes.
<49>
Comentário: Você pode usar bastante força no movimento para frente. No entanto, no movimento para baixo seja bem suave. Verifique com seu amigo como ele se sente.
<50>
Posição 6 - Pressão na Parte Interior do Calcanhar
Segure o calcanhar do pé direito com os dedos da mão direita. Com o polegar direito, encontre um ponto sensível na parte interna do calcanhar. Pressione de maneira
firme, delicada e ininterrupta. Não massageie este ponto. Sua mão esquerda deve segurar levemente o pé em posição vertical. Comentário: Pontos que são sensíveis
e doloridos (não por lesão) nos pés ou em outras partes do corpo refletem bloqueios no fluxo de força vital através dos vários órgãos e sistemas. Aplicar pressão
nesses pontos sensíveis estimulará o fluxo de energia através dos seus órgãos correspondentes. (Informações mais detalhadas de como trabalhar com pontos sensíveis
e suas áreas correspondentes encontram-se na sessão de movimentos específicos.) Tenha o cuidado de manter as unhas do polegar curtas. Talvez seja necessária uma
busca sistemática para que se localize corretamente o ponto sensível. (Precaução: Veja página 91.) Muitas pessoas têm um ou mais pontos sensíveis. Por isso, investigue
a área e trabalhe cada um deles. Você pode ter que empregar uma pressão profunda para encontrar pontos doloridos. Quando seu amigo reconhece um ponto que dói, pressione
somente com a intensidade que ele possa tolerar. Encoraje seu amigo a relaxar e respirar profundamente, deixando que as sensações do pé vão pelo resto do corpo.
À medida que a dor diminui você pode, sem medo, aumentar a pressão dentro de poucos minutos.
Se você sente pulsar o seu polegar, mova para outro ponto dolorido, Não ponha pressão direta sobre uma veia.
Este movimento é para equilibrar a área pélvica baixa no centro do corpo, e é bom especialmente para mulheres com cólicas menstruais.
<53>
Posição 7 - Rotação do Calcanhar para o Lado de Fora
Mova o pé direito num ângulo de 45°. Segure o calcanhar do pé direito com os dedos da mão esquerda. Com o seu polegar esquerdo, procure um ponto dolorido no lado
de fora da área do calcanhar. Seja sensível, faça uma pressão firme, não massageie. Com a mão direita segure as pontas dos pés e faça rotação. Comentário: Tenha
o mesmo cuidado que você teve no último movimento com os pontos delicados. Trabalhe os pontos delicados tantas vezes quantas você encontrar no lado de fora do calcanhar.
Mova o seu corpo para uma posição mais confortável, se você não conseguir fazer a rotação no pé.
Este movimento também tem influência sobre as áreas pélvicas baixas, mais na direção dos lados do corpo, do que a Posição 6.
<54>
Posição 8 - Estiramento do Dedo do Pé
Comece pelo dedo menor. A base deste dedo descansa sobre o dedo indicador da mão direita. O polegar é colocado levemente abaixo de onde o dedo se liga com o pé.
Sua mão esquerda é colocada sobre a direita como reforço. Puxe direto para trás, enquanto levanta e balança o pé ritmicamente algumas vezes. Os dedos podem ou não
estalar. Faça isso em cada dedo. Seja suave. Nota: Não puxe os dedos se a pessoa sofrer de artrite ou se tiver problemas nas costas.
<55>
Comentário: Segure cada dedo suficientemente firme para que ele não escorregue dos seus dedos. Se ele estiver suado, você pode usar uma meia sobre os dedos e então
puxá-los.
Não se preocupe se os dedos não estalarem. E o puxão que é importante. Vá com cuidado no dedão:
Enquanto você balança o pé, ondas de energia vão através do corpo. E como sacudir um esguicho de jardim. Você sacode uma ponta, e uma onda vai pela borracha até
a outra extremidade. Se este movimento for feito apropriadamente, não será doloroso, e você perceberá a cabeça do seu amigo mover-se com a sacudida.
<56>
Posição 9 - Fricção com os Nós dos Dedos
Feche a mão direita e massageie profundamente toda a sola do pé direito com os nós dos dedos da sua mão direita. Trabalhe um tempo em qualquer ponto delicado que
você descubra.
Sugestão: Pratique a Lição Um antes de continuar.
<58>
Lição dois
Posição 10 - Pressão que flexiona o Tendão
0 punho da mão esquerda empurra para trás a parte superior do pé direito, para que o grande tendão sob o dedão seja flexionado. Enquanto o tendão estiver estirado,
pressione-o para dentro com o polegar direito. Comece no alto do tendão e vá pressionando profundamente até embaixo. Faça isto algumas vezes, pondo atenção e pressão
especiais nos lugares sensíveis.
<59>
Comentário: Neste movimento os dedos não são pressionados para trás; somente a parte gorda do pé vai para trás a fim de que o tendão seja estirado. Uma série de
pressões rápidas no tendão não serão tão doloridas quanto movimentos muito vagarosos. ' Se você colocar os dedos da sua mão direita sobre a parte gorda do pé, seu
polegar terá mais força de alavanca e poder por trás dele. Se o seu polegar ficar cansado ou se você quiser pressionar profundamente, com bastante cuidado feche
a mão e use a dobra dos dedos nos pontos sensíveis.
<60>
Posição 11 - Pressão no Cubóide, Rotação do Calcanhar
Coloque-se no ângulo de 45 graus em relação ao pé. No meio do pé, entre o calcanhar e os dedos, do lado de fora do pé, você encontrará um pequeno osso. Este osso
é o cubóide. Ponha seus polegares sob os dois lados desse osso. O resto dos seus dedos devem envolver o peito do pé. Pressione com seus polegares enquanto você faz
rotação no calcanhar.
<61>
Comentário: Endireite a sua posição para que você fique confortável enquanto faz a rotação do calcanhar.
O trabalho nos pés pretende basicamente liberar energia bloqueada. Como estamos somente trabalhando no pólo sul do corpo, não nos preocuparemos aqui com polarização
da força vital. Não tem importância que mão você use, exceto para o seu próprio conforto. Complete todos os movimentos no pé direito da pessoa, e depois todos os
movimentos no pé esquerdo. Se você conhece reflexologia, ou qualquer outra massagem para o pé, seria uma hora ideal para incluí-la. Sugestão: Pare aqui e tente
o que você acabou de ler.
<62>
Posição 12 - Pressão nos Lados Direito e Esquerdo do Occipital Vire a cabeça da pessoa para a esquerda, inclinada num ângulo de 45 graus. Coloque a sua mão esquerda
de tal maneira que ela afirme a cabeça nessa posição, sobre a testa. 0 dedo médio da mão direita pressiona a base do lado direito do osso occipital. Mantenha a pressão
por alguns minutos, e então vire a cabeça para a mesma posição no outro lado, com as mãos inversas.
<63>
Comentário: Fazendo a pressão, seu dedo médio deveria sentir a base do osso occipital. A mão que está sobre a testa não deve fazer pressão. Para maior intensidade
no dedo médio, use a posição da mão que está na ilustração.
<64>
Posição 13 - Estímulo do Antebraço e do Tecido entre o Polegar e Indicador Estando ao lado direito do seu amigo, tome sua mão direita e aperte o tecido entre o polegar
e o indicador. Use o polegar e o Indicador da sua mão direita e procure aí um ponto sensível. Com a sua mão esquerda, use pressão para encontrar um ponto dolorido
bem embaixo do cotovelo, no lado de fora do braço. Alternativamente, estimule as áreas doloridas na mão e no antebraço. Comentário: Para encontrar o ponto dolorido
no antebraço, olhe mais ou menos três centímetros abaixo da prega no cotovelo, e três centímetros do lado de fora do braço.
Será mais confortável para o seu amigo se você colocar os dedos da mão esquerda sob o cotovelo para apoiá-lo enquanto você estimula o antebraço.
<66>
Posição 14 - Estiramento do Dedo
Segure solidamente a base de cada dedo com sua mão direita. Puxe o dedo até que o braço fique completamente esticado, fora da mesa, e empurre de volta o braço com
a mão esquerda. Puxe cada dedo uma vez. Comentário: Este movimento leva apenas alguns segundos. Não se importe se os dedos estalam ou não; apenas dê-lhes um bom
puxão. Agora faça as posições 12, 13 e 14 no lado esquerdo do seu amigo.
<68>
Posição 15 - Movimento no Plexo Solar e Clavícula
Ficando do lado direito do seu amigo, coloque a palma da sua mão direita sobre o plexo solar, bem sob o centro da caixa torácica. Sua mão esquerda' deve formar um
punho, com o polegar apontando para baixo. Pressione seu polegar no lado de baixo da clavícula do seu amigo. Agora, oscile com as duas mãos. Gradualmente mova seu
polegar esquerdo ao longo de toda a área das clavículas, em ambos os lados, direito e esquerdo. Por causa da sua mão esquerda estar em cima e a direita embaixo,
no centro do corpo, sua mão esquerda está livre para trabalhar ambas as clavículas, direita e esquerda, e pode ainda polarizar energia.
<69>
Comentário: A maior parte da pressão e da oscilação é feita com a mão esquerda.
À medida que você balança, afirme o seu dedo esquerdo para que ele não escorregue sobre a clavícula.
Quando você encontrar lugares doloridos sob as clavículas, trabalhe-os por um pouco mais de tempo. Depois de você ter trabalhado um lugar muito dolorido aí, pare
de oscilar e deixe suas mãos no lugar, e sinta a força vital surgindo entre suas mãos.
Sugestão: Pratique a LIÇÃO DOIS antes de continuar.
<70>
Lição Três

MOVIMENTOS FINAIS
Agora que o trabalho de alívio profundo liberou a força vital que estava bloqueada, usaremos técnicas de toque sutil para polarizar a energia. Friccione suas mãos
ativamente antes de cada movimento, e jogue fora a energia estática antes de cada movimento, sacudindo as mãos, como se você estivesse espirrando água.
Posição 16 Mão e Pé
Estando do lado direito, sua mão direita deve segurar o pé esquerdo da pessoa, e sua mão esquerda, a mão direita da pessoa. Pelo lado esquerdo, sua mão esquerda
deve segurar o pé direito da pessoa, e sua mão direita, a mão esquerda da pessoa.
Comentário: Antes de começar, friccione suas mãos vigorosamente. Deixe suas mãos no lugar enquanto nelas sentir qualquer formigamento de energia. Seu amigo ainda
está respirando fundo?
Esta posição é a mesma que as posições 5 e 6 do círculo de polaridade.
<73>
Posição 17 - Balanço do Quadril e Mão no Ombro
Fique do lado direito da pessoa. Descanse sua mão direita sobre o osso do quadril esquerdo, e sua mão esquerda no ombro direito. Balance os quadris para frente e
para trás ritmicamente por alguns minutos, e então pare. Deixe suas mãos no lugar enquanto a energia estiver forte.
Em seguida, faça o mesmo movimento do lado esquerdo da pessoa. Inverta as posições da mão, ficando a sua mão direita sobre o ombro esquerdo, e sua mão esquerda sobre
o quadril direito.
Comentário: Assegure-se de que movimenta apenas os quadris e não os ombros. Quando o movimento terminar, você e seu amigo sentirão um fluir enorme de energia vital.
Você a sentirá em suas mãos e seu amigo, por todo o corpo. Eu comumente experimento o formigamento nas mãos por um a cinco minutos. Esta posição é a mesma que as
posições 3 e 4 do círculo de polaridade.
<75>
Posição 18 Testa e Umbigo
Fique do lado direito do seu amigo, feche as mãos e aponte ambos os polegares para baixo. Delicadamente toque o polegar direito num ponto um pouco abaixo do umbigo.
O polegar esquerdo, também apontando para baixo, não entra em contato físico e é colocado no centro da testa, a um centímetro acima das sobrancelhas. Fique com suas
mãos no lugar por alguns minutos. Comentário: Preste atenção para que a mão esquerda não toque a testa. A energia é melhor contatada quando o polegar está a alguns
mil ímetros da testa. Você pode sentir um formigamento agudo no seu polegar esquerdo. Não é difícil para as pessoas que estão recebendo este toque ver cores bonitas
e dormir. Fique tão confortável quanto possível nesta posição.
<76>
Posição 19 - Expansão do Alto da Cabeça
De maneira suave, abra seus dedos por sobre a testa, enquanto seus polegares devem estar sobre o topo da cabeça. Os polegares não se tocam e não há contato físico
neste movimento.
Comentário: Fique numa posição confortável. Este é um movimento muito relaxante e poderoso. Permaneça com as mãos no lugar enquanto , você sentir uma forte troca
de energia. Lembre-se de friccionar suas mãos antes de começar e de pôr fora a energia estática quando você acabar.
<78>
Posição 20 Carregar a Espinha
Faça seu amigo ficar deitado de bruços..Friccione suas mãos vigorosamente e então ponha sua mão direita na base da espinha da pessoa, e sua.mão esquerda no começo
do pescoço. Faça movimentos suaves com a sua mão direita durante alguns minutos, deixando então suas mãos no lugar enquanto você sentir a energia vital, Comentário:
Este movimento é especialmente importante nesta série se seu amigo tem problemas nas costas.
Movimente do mesmo modo que no movimento da barriga. Depois de um ou dois minutos com suas mãos nessa posição, levante-as levemente acima das costas da pessoa e
permaneça com elas assim no lugar em que você sentir maior carga.
<81>
Posição 21 - Carregar o Centro
Faça seu amigo deitar de costas. Friccione suas mãos vigorosamente e, quando você sentir uma carga forte em suas mãos, ponha sua mão direita sobre o coração a uns
três ou cinco centímetros de distância do corpo e sua mão esquerda levemente acima da testa. Fique nessa posição durante todo o tempo em que a troca de energia seja
forte.
Comentário: Conserve as suas mãos no nível em que você sentir a maior carga de energia vital.
Deixe que seu amigo descanse quanto quiser. Esta é uma boa hora para você lavar suas mãos em água fria. Quando você sentir que seu amigo está pronto, vá para as
posições 22 e 23.
<82>
Posição 22 - Limpeza das Costas
Ajude seu amigo a se sentar quando você sentir que ele está pronto.
Delicadamente, passe os dedos nas costas seguindo este modelo:
Comece com a mão direita no ombro direito, e a mão esquerda no ombro esquerdo. Passe os dedos atravessando as costas de maneira que as mãos se cruzem na base do
pescoço e continue nos ombros. Agora, leve a sua mão direita abaixo do lado esquerdo do corpo, enquanto sua esquerda vai do lado direito, para baixo. Suas mãos se
cruzam novamente debaixo da cintura. Faça isto umas dez vezes.
<83>
Comentário: Comece com firmeza até que o toque fique cada vez mais leve, até que você quase não toque. Continue fazendo esse movimento sem tocar. Ponha fora a energia
estática cada vez que você fizer o movimento. Este é um movimento que você pode fazer em amigos quando dispõe de apenas alguns minutos.
<85>
Posição 23 Limpeza da Fronte
Limpeza da testa, começando do alto da cabeça. Sua mão direita desce pelo lado esquerdo e sua mão esquerda desce pelo lado direito do seu amigo. Faça isso umas dez
vezes.
Comentário: Use as mesmas técnicas de toque usadas nos movimentos anteriores.
Neste ponto, deixe que seu amigo descanse o quanto ele quiser. Lave as suas mãos em água fria para remover a energia estática. Dê ao seu amigo um copo de água, suco
ou chá de ervas.
Recomendo que você pratique as três lições da sessão de polaridade geral antes de prosseguir com os movimentos específicos. Os movimentos específicos funcionam melhor
quando feitos juntamente com a sessão geral de polaridade.
<86>
SIMPLICIDADE
Há muito tempo que existe a suposição popular de que o bom remédio tem que ser amargo, que um tratamento tem que ser doloroso para ser eficiente, e que um sistema
inteligente tem que ser complicado. 0 sistema de equilíbrio através da energia polarizada quebra essa tradição, pois ela é simples e, ainda assim, eficiente. Não
se impressione mal por causa da simplicidade do sistema. Ao mesmo tempo em que ele possa parecer tão simples quanto uma maçã na árvore, é tão misterioso quanto a
própria vida dentro de uma célula. 0 sistema de polaridade, um método para restaurar o fluxo natural de energia vital, proporciona novas ferramentas para cura e
transformação pessoal, e poderia facilmente criar um impacto revolucionário na consciência da saúde.
<88>
Seção III
Movimentos específicos
Depois que você dominou a sessão geral de polaridade, está pronto para começar com os movimentos específicos. A sessão geral de polaridade é excelente para movimentar
a força vital através do corpo e para modificar padrões antigos de energia estática. Os movimentos específicos são destinados a concentrar o fluxo de força vital
através daquelas partes do corpo que apresentam maior bloqueio. Use movimentos específicos depois da Posição 15, que está antes do término dos movimentos da sessão
gera/ um-a-um.
Harmonia Reflexiva
Em nosso dia-a-dia tendemos a pensar que a ciência já descobriu tudo. Esquecemo-nos que as forças mais básicas em nossas vidas são ainda mistérios inexplicáveis.
Por exemplo, não conhecemos as bases fundamentais científicas do magnetismo, gravidade ou mesmo eletricidade - e nem precisamos conhecê-las a fim de fazer um uso
efetivo delas. A força vital é um mistério tão grande quanto 0 magnetismo, gravidade ou eletricidade. Do mesmo modo que aprendemos a usar essas forças, podemos aprender
a usar a força vital, a nossa fonte natural disponível. Cada célula no corpo é um reflexo do corpo todo e contém a informação genética necessária para fazer um
corpo completo. Num certo sentido de relação, uma intrincada ação harmônica reflexiva liga áreas específicas da anatomia.* 0 Corpo parece ter uma rede de comunicação
invisível. Isto é o que Randolph Stone chamou de Nota: reflexo: resposta involuntária a um estimulo; refletir: mandar de volta uma imagem.
"Anatomia Sem Fio". Como no caso do magnetismo, você não precisa entender por que ela está lá para usá-la. Vamos examinar como isso se aplica aos movimentos específicos.
<89>
Nossos corpos podem ser divididos horizontalmente em zonas eletricamente carregadas positivas (+), neutras (0) e negativas (-). Zonas carregadas positivamente refletem
harmonicamente a condição de outras zonas carregadas positivamente. O mesmo é verdade para zonas carregadas neutra e negativamente. A aplicação de uma pressão estimuladora
ou introdução de força vital numa zona positiva, negativa ou neutra será transmitida e harmonicamente refletida em outras zonas carregadas de maneira similar.
Zonas de Polaridade Horizontal
Toda porção do corpo pode ser dividida horizontalmente em zonas carregadas positiva, neutra e negativamente. A área que vai dos ombros até o topo da cabeça pode
ser dividida em zonas carregadas positiva, neutra e negativamente. A região que vai da pélvis aos ombros e dos pés aos quadris pode ser classificada da mesma maneira.
As palmas das mãos e as solas dos pés estão também divididas nessas mesmas três zonas.
Zonas carregadas positivamente harmonicamente refletem (dão uma resposta involuntária) outras zonas carregadas positivamente. O mesmo é verdade para zonas carregadas
neutra e negativamente.
Linha Central
O corpo pode também ser dividido verticalmente. Podemos desenhar uma linha reta que vai do nariz à base da barriga, e chamá-la linha central do corpo. Se você ficar
em pé, com os pés juntos, verá que os dedos grandes estão perto da linha central do seu corpo, enquanto que os dedinhos estão do lado de fora do corpo. Os dedões
refletirão as áreas próximas ao centro do corpo, enquanto que os dedinhos refletirão as áreas afastadas da linha central.
<91>
Localizando Pontos Doloridos - Princípios
PRINCÍPIO 1: Pontos doloridos serão encontrados em correspondência à localização de zonas carregadas.
Você pode usar as zonas verticais e horizontais para formular movimentos específicos. Digamos que, quando massageando o pé do seu amigo, você encontrou um ponto
dolorido no lugar marcado com um X no pé. Este lugar está a dois terços do caminho acima da seção carregada positivamente do pé, perto da linha central do corpo.
Agora, vamos ver o peito que tem também uma carga positiva, e marcaremos um X dois terços acima perto da linha central do corpo. Se você investigar essa área, provavelmente
encontrará também um ponto bem dolorido no peito. Haverá um ponto bem dolorido na perna dois terços acima na zona positiva, em direção à linha central, e um lugar
na testa, assim como na mão também. Todos os pontos marcados com X devem ser doloridos.
PRINCÍP10 2: 0 que é verdadeiro para o lado esquerdo é muitas vezes verdadeiro para o lado direito.
Quando você encontrar um ponto dolorido do lado esquerdo do corpo, provavelmente encontrará outro ponto dolorido no lado direito do corpo. Todos os lugares marcados
com - correspondem a lugares que serão doloridos no lado esquerdo, refletindo aqueles pontos doloridos já encontrados no lado direito do corpo.
<93>
PRINCÍPI0 3: O que é verdade para a frente é muitas vezes verdade para as costas.
Quando você encontra um ponto dolorido na frente de uma pessoa, provavelmente encontrará outro ponto dolorido nas costas da pessoa. PRINCÍPI0 4: Pontos doloridos
muitas vezes serão encontrados à volta das juntas principais do corpo.
As juntas principais são os tornozelos, joelhos, quadris, pulsos, cotovelos, ombros e pescoço. As juntas principais são como cruzamentos para a força vital e muitas
vezes tornam-se congestionadas. Comumente você encontra áreas sensíveis perto dessas juntas principais.
<94>
Identificando os Pontos Doloridos
Pontos doloridos estão muitas vezes relacionados com desequilíbrios na pele, músculos, ossos, órgãos, sangue e linfa. Olhando no quadro fisiológico dos órgãos, você
pode ver suas localizações no corpo, e pode associá-los com os lugares doloridos correspondentes. Por exemplo, para encontrar onde o fígado reflete, olhe no quadro
fisiológico e verá que o fígado está do lado direito do corpo, bem atrás da parte mais baixa da caixa torácica. Olhe em relação à linha central do corpo. Note que
a sua localização está ao pé da zona do peito que está carregada positivamente. Agora, olhe o quadro do pé, e você poderá ver claramente por que o fígado é refletido
naquela parte do pé. Você pode encontrar pontos onde a força vital está bloqueada, e saber que alguma coisa está acontecendo nessa área. Porém, a menos que você
seja um médico, não terá informações suficientes para dizer mais que isso. Todas as vezes evite fazer diagnósticos.
Quando alguém está numa condição de enfraquecimento, pode ser altamente suscetível à sugestão. ~ perigoso dizer a alguém o que você pensa que há de errado com ele.
Pode ser que ele acredite em você. Algumas pessoas estão esperando por uma oportunidade para se atirar em algum sintoma e ampliá-lo numa completa doença ou inabilidade.
A sugestão de doença pode fazer uma pessoa preocupada e a crença de que se está doente pode ir longe e criar mesmo uma doença.* Nota: Pela lei, em todos os 50 estados,
você não deve reivindicar o direito de tratar, fazer diagnose, receitar ou dar terapia de cura. De acordo com a lei, pessoas doentes devem ser informadas que elas
deveriam consultar um médico especialista no caso necessário. Você pode recomendar que elas consultem um médico que esteja envolvido com práticas de cura integral,
como um médico naturopático, um quiroprático ou osteopático que seja experiente em terapia nutriciona) ou jejum. Uma boa sugestão é escrever para a Associação Americana
de Medicina Integral, Estrada 2, Welch Coulee, La Crosse, Wisconsin - 54601, solicitando uma recomendação para alguém na sua área. Você por dar sessões de polaridade
com finalidade educacional, recreativa ou de pesquisa, ou como parte da sua religião. Por motivos legais, não anuncie que você trata, diagnostica, receita, dá terapia
ou cura.
<96>
Os Princípios dos Movimentos Específicos
A nota principal a ser lembrada quando se aplicam movimentos específicos é encontrar pontos do%ridos em um ou ambos os lados do bloqueio, e polarizar a energia através
dele.
Eis como se faz:
1. Determine onde o bloqueio de força energética acontece. Primeiro, encontre o ponto dolorido no pé, e então olhe no Quadro de Zonas de Polaridade e determine
qual órgão ou área geral do corpo que ele reflete.
2. Planeje polarizar a energia pelas linhas de força vertical ou diagonal. Se você percebe o corpo como sendo um ímã, verá que há uma carga positiva no topo
e uma carga negativa embaixo. A maior diferença em cargas polares é entre o topo e a extremidade oposta. Você pode polarizar a energia pela linha central verticalmente
ou através do corpo em diagonal, com sucesso. As correntes de linhas horizontais não são tão eficientes.
Precaução: Não pressione os pontos que estão machucados ou infeccionados. Isto significa que se alguém quebrou o pulso ou tem um ponto infeccionado, não o pressione.
No entanto, você pode fazer três coisas: Primeiro, pode aplicar na pessoa a sessão geral de polaridade. Segundo, pode canalizar energia através de lugares sensíveis
sem tocá-los. Terceiro, se existe um pulso quebrado, pode massagear profundamente 0 outro pulso que está bom porque um reflete o outro. Também não pressione profundamente
órgãos internos, isto é, intestino grosso, intestino delgado, bexiga, etc. Aplique pressão somente em tecido muscular e ossos.
<97>
Aplicando os Princípios
Vejamos como.podemos aplicar os princípios dos movimentos específicos.
1. Identifique os pontos doloridos com seus órgãos correspondentes ou áreas do corpo.
Começamos enquanto estamos massageando o pé. Preste atenção em qualquer ponto dolorido no pé. Marque onde eles estão e que outra área eles refletem. Como exemplo,
digamos que encontramos um ponto dolorido na parte superior da zona neutra na sola de um ou dos dois pés. Olhe no quadro e você verá que esse ponto reflete a área
do colo transverso.
<98>
2. Identifique e localize os pontos doloridos reflexos correspondentes.
Os pontos doloridos correspondentes em nosso exemplo serão no outro pé e na parte superior da zona neutra da barriga da perna. Em seguida, você pode igualmente encontrar
pontos doloridos na palma da mão na direção da parte superior da zona neutra. Um ponto dolorido também poderia ser encontrado na parte superior da zona neutra do
antebraço. Procure pontos doloridos nos ossos da face e nas costas. Todas essas áreas são igualmente sujeitas a pontos doloridos.
<99>
3. Polarize os pontos doloridos para desbloquear a força vital.
Você pode ser muito criativo canalizando a energia entre os pontos doloridos. Aqui estão algumas das possíveis variações:
Sua mão direita segura o ponto reflexivo dolorido no pé esquerdo, e sua mão esquerda segura o ponto reflexivo dolorido do intestino na mão direita. Neste movimento
há uma boa corrente cruzada que se moverá através da perna e de todo o dorso, incluindo o intestino, até os ombros, descendo até as mãos. Em seguida, faça isso do
outro lado, para conservar ambos os lados em equilíbrio. Trabalhe os lados direito e esquerdo do corpo igualmente para conservar a força vital em equilíbrio.
Outra variação seria a pessoa deitar sobre o estômago, com os joelhos dobrados, de modo que os pés fiquem para cima, no ar. Sua mão direita estimula os pontos doloridos
nos pés direito e esquerdo, enquanto sua mão esquerda trabalha os pontos reflexivos doloridos no lado de baixo do pômulo. Isto faz com que as correntes longas do
corpo sejam trabalhadas. Elas são chamadas longas porque cobrem longas distâncias. Movimentos de corrente curta são benéficos em uma área pequena, enquanto que movimentos
de corrente longa têm um benefício mais geral sobre todo o corpo. E uma boa idéia,quando você estiver criando movimentos específicos, incluir ambos os movimentos
de corrente longa e curta.
Seu amigo está deitado de costas. Ponha sua mão esquerda sobre os intestinos (não use pressão) e com a sua mão direita localize e estimule pontos doloridos no ventre.
Ponha tanta pressão quanto seu amigo puder suportar. (Nota: sua mão esquerda está sobre o centro do corpo; então sua mão direita está livre para polarizar ambos
os lados esquerdo e direito.)
Sua mão esquerda não está aplicando pressão, portanto preste atenção e friccione suas mãos antes de fazer contato com o campo de energia da pessoa. Quando você
acabar com qualquer movimento sem pressão, assegure-se de sacudir suas mãos para remover a energia estática.
<100>
Estimule os pontos doloridos no lado esquerdo da face com sua mão direita, enquanto sua mão esquerda contata os pontos doloridos na perna direita debaixo do joelho.
Isso feito, faça o mesmo no outro lado do corpo para conservar ambos os lados equilibrados.
Cada uma das variações acima canaliza energia através de centros reflexivos importantes para os intestinos.
4. Canal entre pontos doloridos de diferentes origens.
Se você encontra pontos doloridos relacionados com outros órgãos ou áreas do corpo, você pode trabalhar pontos não relacionados entre si. Faça com que as correntes
de energia vão pelas partes do corpo onde haja maior bloqueio. Por exemplo, você poderia polarizar o ponto reflexo do intestino que está na barriga com os pontos
reflexos dos pulmões, no peito. A idéia principal é trabalhar os pontos doloridos e polarizar a energia através dos lugares que apresentam maior bloqueio.
<101>
Sumário
Em qualquer hora que suas mãos estejam polarizando força vital através de áreas que expressam bloqueio, o movimento será de beneficio.
Os meios básicos de canalizar força vital nos movimentos específicos são:
1. Procure e trabalhe os pontos reflexos que estão acima e abaixo da área que manifesta bloqueio.
2. Procure e trabalhe um ponto reflexo acima do bloqueio, enquanto você canaliza diretamente na área bloqueada com sua mão sem usar pressão.
3. Com uma mão encontre e trabalhe um ponto reflexo abaixo do ponto de bloqueio, enquanto que a outra mão canaliza diretamente no bloqueio.
4. Trabalhe dois pontos reflexos juntos que estão diretamente no caminho do bloqueio.
5. Combine pontos reflexos não relacionados que estão em cima e embaixo das áreas de bloqueio. Centros Dinâmicos
Há certos centros do corpo que são altamente receptivos ao fluxo de força vital. Esses centros podem ser usados com qualquer outro ponto reflexo dolorido.
Esses centros são:
* 0 cóccix
* 0 umbigo
* A base do osso occipital <102> O Cóccix
O cóccix (extremidade do osso do rabinho) é um dos mais importantes centros de polaridade. Seu valor não pode ser dimensionado Por causa da sua localização bem no
fim da espinha, o cóccix tem a polaridade negativa maior do que qualquer lugar da espinha. Você pode pôr o dedo médio da sua mão direita* bem na extremidade do osso
final da espinha, e ligar sua mão esquerda a qualquer ponto dolorido acima do cóccix. Este movimento é ótimo para problemas das costas, facilitar partos, relaxar
tensão relacionada com doença e é uma grande ajuda para as sessões gerais.
<103>
Nota: Cada um dos seus dedos tem uma carga.
O dedinho tem carga positiva.
O anular tem carga negativa.
O médio tem carga positiva.
O indicador tem carga negativa. O polegar tem carga neutra. Você pode mandar uma corrente carregada positivamente ao máximo através de uma zona negativa, como o
cóccix, usando o dedo médio da mão direita. Igualmente, use o dedo indicador da mão esquerda quando estiver trabalhando uma zona carregada positivamente ao máximo,
como a cabeça. Para obter mais teoria, procure o livro do Dr. Stone.
<104>
Não use este ponto em pessoas que tem pressão muito alta, ou naquelas que têm propensão para epilepsia.
Aqui estão alguns bons movimentos gerais que você pode fazer usando o cóccix:
Posição 1: Faça o seu amigo deitar do lado esquerdo. A ponta do seu dedo médio da sua mão direita estimula delicadamente e massageia a ponta do cóccix. Você pode
usar uma massagem delicada e vibrante com seu dedo direito. Sua mão esquerda fica na parte de trás do pescoço. Balance a pessoa bem delicadamente, usando as palmas
das suas mãos. Você pode balançar um longo tempo, deixando suas mãos no lugar por tanto tempo quanto você sentir a força vital. Comentário: Este movimento é excelente
para aliviar tensão na espinha. ~ um bom movimento para se incluir como parte da sessão geral. Para dor nas costas, muitas vezes leva vinte e quatro horas para que
os resultados totais se tornem aparentes.
A fim de alcançar a ponta do cóccix é necessário que a pessoa que recebe a polaridade esteja parcialmente vestida. 0 benefício máximo é obtido no movimento do cóccix
se o dedo médio estiver bem na ponta do cóccix. Porque o cóccix está perto do ânus, muitas pessoas gostam de cobrir o dedo com um tecido por razões de higiene.
E comum que esse ponto seja dolorido, portanto seja bem delicado no começo. Posição 2: Com seu amigo deitado sobre o estômago, o dedo médio da sua mão direita toca
a ponta do cóccix. 0 resto da sua mão direita fica cobrindo parte das nádegas. Sua mão esquerda pode estar estimulando pontos reflexos doloridos nas costas. Faça
o balanço com a mão direita.
Comentário: Muitas vezes você encontrará pontos reflexos doloridos cerca de meio centímetro em ambos os lados da espinha. Pressione esses pontos usando o polegar
e o indicador da sua mão esquerda.
<105>
Balance de maneira rítmica e suave como nos outros movimentos de balanço. Quando você parar o balanço, permaneça com suas mãos no lugar enquanto você sentir a troca
de força vital entre elas.
Este movimento ajuda a aliviar tensões e equilíbrios correspondendo aos órgãos reflexivos.
<106>
Posição 3: Novamente ponha o seu dedo médio direito na ponta do cóccix, e sua mão esquerda pode estimular os pontos doloridos à volta da parte mais alta do occipital.
Fica opcional o balanço com a sua mão direita. Comentário: Aqui nós estamos ligando dois centros dinâmicos, o que cria um efeito muito poderoso. Este movimento
é bom para equilibrar a força vital através da espinha e todos os órgãos reflexivos. Toda vez que suas mãos estão mandando energia através da espinha, como aqui,
ela será de ajuda para as dores nas costas.
Se você balança o corpo neste movimento, balance somente com a palma da mão direita.
<107>
Posição 4: Fique do lado esquerdo do seu amigo, que está de bruços, com a face voltada para a esquerda. Toque o dedo médio da sua mão direita na extremidade do cóccix,
e ponha seu indicador esquerdo em contato de energia um centímetro e meio afastado do centro da testa, Comentário: Permaneça com seu dedo indicador a cerca de um
centímetro da pele com seu polegar tocando a base do indicador, e todos os outros dedos juntos frouxos, a mão um pouco fechada. Esta posição aumenta o poder de canalizar
através da mão esquerda.
O Centro do Umbigo
0 centro do umbigo também tem um especial valor. Você pode polarizar e ligar esse centro a inúmeros pontos ou a outros centros-chave do corpo. Lembre-se de que para
atingir qualquer órgão particular ou área do corpo o essencial é mandar energia através daquela parte do corpo. 0 umbigo é central para o dorso e é altamente receptivo
ao fluxo de força vital.
Aqui vão alguns exemplos de movimentos gerais usando o centro do umbigo:
Posição 1: A pessoa se deita de costas, com as solas dos pés juntas e os joelhos dobrados. Sua mão direita segura os dedões de ambos os pés, enquanto sua mão esquerda
descansa sobre o umbigo.
<108>
Comentário: Este movimento manda um forte fluxo de energia para o centro do corpo e será útil para qualquer distúrbio na parte baixa pélvica central. Posição 2:
Usando sua mão direita, pressione a parte interna ou externa do calcanhar do pé esquerdo ou direito. Sua mão esquerda fica no centro do umbigo. Comentário: Este
é outro movimento excelente para distúrbios na parte baixa da pelve. Acomode-se para que a posição da sua mão seja confortável.
<109>
Posição 3: Friccione suas mãos, e ponha sua mão direita sobre o centro do umbigo de maneira que o polegar fique no umbigo (não use pressão), Ponha a sua mão esquerda
sob a parte traseira do pescoço.
Comentário: Este movimento é muito confortável e relaxante, beneficiando totalmente todos os órgãos entre suas mãos.
Posição 4: Faça seu amigo ficar no lado esquerdo. Ficando atrás da pessoa, você põe seu dedo médio direito no cóccix, e sua mão esquerda levemente acima do centro
do umbigo. Não use pressão.
Comentário: Este movimento é bom especialmente para a área pélvica através da qual a força vital está sendo canalizada. Esta posição pode ser extremamente benéfica
para mulheres grávidas ou mulheres que trabalham, assim como para pessoas com problemas urinários ou outros distúrbios pélvicos.
A Base do Osso Occipital
A base do osso occipital, nó alto da espinha, tem uma carga positiva muito poderosa. Você pode usar este ponto de ligação para trazer relaxamento para a espinha
e órgãos do corpo. Ligue a base do osso occipital, ou mesmo a parte de trás do pescoço, a outros pontos doloridos que você descobrir.
<110>
Posição 1: Com seu amigo deitado de bruços, friccione suas mãos e ponha sua mão esquerda sobre a base do osso occipital, atrás do pescoço. Com a sua mão direita
faça o balanço do ventre.
Comentário: Este movimento é de grande benefício para o aparelho respiratório e digestivo, assim como para o coração e parte superior das costas. Todos os órgãos
entre suas mãos tirarão proveito através da polaridade. Posição 2: Com seu amigo de bruços, ponha sua mão esquerda atravessando a base do osso occipital. Com sua
mão direita estimule quaisquer pontos doloridos nos pés, barriga da perna, pernas, costas ou à volta das juntas principais do corpo.
Comentário: Há muitas maneiras possíveis de canalizar energia de maneira polarizada. Cada ponto dolorido, quando polarizado, libera mais energia bloqueada no organismo.
A energia polarizada irá onde for necessário e fará o que for preciso; tudo o que você tem a fazer é liberar a força vital.
<111>
Posição 3: Com seu amigo deitado de bruços, coloque sua mão esquerda sobre o occipital, e com sua mão direita procure pontos doloridos nas nádegas. Comentário:
Se você apalpar os lados dos órgãos genitais, encontrará uma saliência óssea que é a base do osso púbico. Muitas vezes há muitos pontos doloridos nessa saliência.
Não se atrapalhe com o grande tendão que se localiza em cima do osso púbico. Pode ser mais confortável trabalhar esta área com seu amigo deitado de costas.
Este movimento é muito poderoso porque você está trabalhando uma corrente entre uma forte zona positiva e uma negativa do corpo.
Revisão dos Movimentos Específicos
1. Localize os pontos doloridos.
2. Trace seus pontos reflexos.
3. Trabalhe os pontos-doloridos principais.
4. Polarize-os com correntes verticais e diagonais.
5. Mande energia através daqueles órgãos e áreas do corpo que refletem o maior bloqueio.
6. Use os centros dinâmicos e ligue-os aos pontos doloridos espec í f icos.
7. Finalize a polaridade com os movimentos finais da sessão um-a-um Seja criativo e sinta-se livre para usar sua intuição.
8. Dê ao seu amigo um copo grande de chá de ervas, suco ou água depois de sessões fortes.
Lembre-se:
Uma série de sessões é muito mais valiosa do que uma sessão ocasional, a força vital no seu estado natural flui através de caminhos bem definidos. Tudo o que você
tem a fazer é circular através dessas áreas que revelam maior bloqueio, e a força vital fará o resto.
<112>
O AMOR É O MELHOR CURADOR
Por séculos, muitos disseram que o 'amor é o melhor curador. Amor é o poder da força vital. Se o amor se torna bloqueado, a força vital será bloqueada, e o corpo
refletirá isso.
Não precisamos, porém, tentar criar amor, pois o amor é nossa natureza verdadeira e natural.
<114>
Seção IV
O CIRCULO DE POLARIDADE
O círculo de polaridade é uma inovação no sistema de polaridade. Tem a vantagem de não usar pressão e toque físico como técnicas, sendo totalmente sem dor. As crianças
adoram o círculo de polaridade, e é tão simples de se aprender que uma criança de seis anos pode fazê-lo perfeitamente em apenas alguns minutos.Em termos de alívio,
o círculo pode ser tão ou mais poderoso que a sessão de polaridade um-a-um.
O círculo de polaridade é composto de seis pessoas que formam um circuito para canalizar sua energia amorosa numa sétima pessoa. A pessoa que recebe a polaridade
é o centro do círculo, e não tem nada a fazer senão relaxar, fazer algumas respirações profundas e estar desejando experimentar um crescente sentido de bem-estar.
Para maior comodidade pode ser útil usar uma mesa de massagem para o círculo de polaridade, que também pode ser feito no chão.
<115>
O som sânscrito "OM" tem sido usado na Índia por milhares de anos, criando um benéfico efeito de harmonia, vibração e relaxamento. Durante o círculo de polaridade,
é de ajuda se cada um cantar o som "OM". Quando cantado, o "0" é longo e o "M", curto, assim: "00000000000000000000000000 OOOMMM". 0 efeito parece maior se houver
harmonia nas vozes.
A pessoa que recebe, porém, só ouve.
<11>
Posições do Circulo de Polaridade
Pessoa nº 1: Balance a cabeça sem usar pressão. E melhor quase não tocar a pessoa, enquanto deixa suas mãos relaxadas. O dedo indicador e médio ficam para baixo,
ao lado do pescoço, enquanto O polegar fica ao lado da orelha. (Veja página 40.)
Pessoa nº 2: Fique do lado direito da pessoa. Delicadamente ponha sua mão esquerda na testa e coloque sua mão direita no começo da caixa torácica no centro do corpo.
Não use pressão.
<117>
Pessoa nº 3: Fique do lado direito da pessoa. Ponha sua mão direita no osso do quadril esquerdo e sua mão esquerda no ombro direito. (Veja página 73.) Pessoa nº
4: Fique do lado esquerdo da pessoa. Ponha sua mão esquerda no quadril direito da pessoa e sua mão direita no ombro esquerdo. (Veja página 73.) Pessoa nº 5: Fique
do lado direito da pessoa. Sua mão direita segura o pé esquerdo da pessoa e sua mão esquerda segura a mão direita. (Veja página 70.) Pessoa nº 6: Fique do lado esquerdo
da pessoa. Sua mão esquerda segura o pé direito, e sua mão direita segura a mão esquerda da pessoa. (Veja página 70.)
<119>
Procedimento no Círculo de Polaridade
1. Diga à pessoa que recebe a polaridade que relaxe. Faça-a realizar doze respirações lentas e profundas, relaxando um pouco mais em cada uma.
2. Quando se aplica a polaridade, é importante para todos friccionai suas mãos vigorosamente por meio minuto. Agora, ponha-as a alguns centímetros de distância
da pessoa perto de você, com as palmas de frente uma para a outra. Quando a energia estiver forte, comece.
3. Ponha as mãos nas posições indicadas tocando somente a pessoa que recebe a polaridade.
4. As pessoas em posição número três e quatro balançarão os quadris da pessoa para frente e para trás, ritmicamente. Trabalhe junto para balançar suave e
delicadamente. Não balance os ombros.
5. Comece o "OM". Lembre-se de enviar seu amor. Continue com o balanço por cinco a quinze minutos. As sessões longas são muitas vezes as melhores. Então,
use sua própria intuição como guia.
6. Pare o "OM" e o balanço e deixe suas mãos no lugar. Continue vibrando amor. Neste ponto, a energia deve estar circulando através da pessoa que está recebendo
a polaridade, enquanto aqueles que estão dando a polaridade podem sentir a energia fluindo através das suas mãos. Enquanto a sensação de energia for forte, todas
as pessoas deverão deixar suas mãos no lugar. Quando a força vital não for mais sentida, o trabalho estará feito.
7. Agora retire as suas mãos da pessoa, conservando-as de dois a quinze centímetros acima da posição original. Sinta o espaço no qual a energia é mais forte
e conserve suas mãos nessa posição até que a energia tenha praticamente se dissipado.
8. Tire suas mãos e deixe a pessoa descansar por tanto tempo quanto ela queira. Sacuda suas mãos como se estivesse borrifando água, e então lave-as com água
fria. Isto elimina e remove energia estática.
A energia estática pode ser sentida como um peso ou inchaço em suas mãos.
9. Dê à pessoa que recebeu a polaridade um copo de água, suco ou chá de
ervas.
<120>
A INTEGRIDADE DA NATUREZA
Até que o homem possa copiar uma folha de grama, a Natureza pode rir de seu assim chamado conhecimento científico. Remédios da química nunca estarão em nível de
igualdade com os produtos da Natureza - as células vivas das plantas, o resultado final dos raios do sol, mãe de toda a vida.
- Thomas Edison
<122>
Seção V
CURA NATURAL COM FORÇA VITAL
A Célula
Toda vida é constituída de células. "Cada célula da corrente sanguínea, cada corpúsculo é um universo total em si", escreveu Edgar Cayce em seu livro Dieta e Saúde.
O corpo humano contém mais de 100 trilhões de células. Cada célula tem aproximadamente 100.000 genes diferentes. Esses genes são feitos das cadeias espiraladas de
DNA, que contém em código genético uma cópia de todo o corpo. Isto significa que cada célula microscópica tem um mapa genético de todo o corpo humano, que contém
100 trilhões de células vivas, reprodutoras autocuradoras. Essas moléculas de DNA são tão incrivelmente enroladas estreitamente que se elas fossem desenroladas,
emendadas e esticadas, cobririam a distância de 74 bilhões e 320 milhões de milhas, distância suficiente para ir da terra ao sol e voltar 400 vezes. Ainda assim
este DNA pode caber no espaço do tamanho de um cubo de gelo.
A todo momento há milhares de mudanças acontecendo a nível molecular dentro de cada célula, sendo que muitos desses acontecimentos se processam num milionésimo de
segundo.
Tentar compreender a complexa e intrincada precisão de uma única célula é humilhante para o intelecto.
Eu sugiro que você pare e pense sobre isto.
Medicina Moderna e Consciência Integral de Saúde <123> A medicina moderna é a ciência e a arte de diagnosticar e tratar doenças. Mais de 50.000 doenças já foram
catalogadas.
O cuidado da saúde integral é baseado no estudo da saúde e da totalidade. A visão integral é a de que quando todas as partes da pessoa corpo, intelecto, emoções
e espírito -estão em equilíbrio, a pessoa está externando saúde. E para aprender tudo sobre saúde, o melhor a se fazer é estudar pessoas saudáveis. A intenção do
curador integral está focada no cuidado preventivo, tratamentos naturais e a responsabilidade pessoal de cada pessoa por sua própria saúde.
Quando uma pessoa tem um resfriado, a pergunta típica é:
"Como você elimina esses sintomas desagradáveis?" Os sintomas indicam uma condição que está fora do equilíbrio e expressam a tentativa do corpo de corrigir a si
mesmo. A supressão dos sintomas pode ser uma "cura" superficial e perigosa, por tratar os efeitos e passar por cima da verdadeira causa. Que tal perguntar assim:
"Por que o corpo escolheu eliminar mucosa ou ter febre? Como poderemos restaurar a saúde para as células?" A infinita complexidade do corpo expressa uma sabedoria
acima da compreensão intelectual. As drogas podem somente estimular quimicamente ou suprimir a ação das células. E nosso conhecimento sobre drogas é baseado em
evidências empíricas, isto é, pela triagem e observação do efeito de cada droga. As drogas não curam as pessoas, somente a célula é capaz de curar a si mesma. 0
melhor que podemos fazer é respeitar a sabedoria da célula. Se criarmos o meio correto para nossas células, elas se curarão a si mesmas!
De qualquer forma, a medicina moderna merece grande respeito. Conseguiu grande sucesso ajudando as pessoas em tempos de crise. Em casos de defeitos congênitos,
doenças infecciosas, danos traumáticos e muitas outras condições, a medicina e cirurgia alopáticas fazem milagres. A longo prazo, entretanto, cuidado preventivo
é mais fácil, menos doloroso, mais barato e muito mais eficiente do que o trabalho em crise.
<124>
Entremos em Concordância
É a natureza do corpo que cura a si mesmo. O impulso de autopreservação é biologicamente muito forte, e o corpo humano fará todo o possível para manter e curar a
si mesmo.
A saúde e a cura precisam acontecer a um nível celular. Portanto, para se ter um tecido saudável é necessário ter células saudáveis. As células sararão e se regenerarão
rapidamente se lhes for dado um meio favorável Assim como uma planta precisa da luz do sol, de solo bom e de água, nossas células têm necessidades específicas.
Um meio favorável para nossas células tem:
pensamentos e sentimentos de alta qualidade;
alimento de alta qualidade;
exercício vigoroso regular.
A Qualidade de Pensamentos e Sentimentos
A polaridade é um método eficiente para recarregar a força vital e para equilibrar os nossos estados físico e emocional. Conservar-se saudável, no entanto, requer
mais. Para que se obtenham resultados duradouros, também precisamos lidar com as causas do desequilíbrio que podem muitas vezes ser descobertas para que se trabalhe
as condições, relações pessoais ou estilo de vida. Relaxar uma pessoa tensa é benéfico. Mas para ser curada, aquela pessoa deve também corrigir as causas do desequilíbrio.
Em primeiro lugar está nosso equilíbrio emocional. Nossos pensamentos e sentimentos afetam nossa saúde. A medicina psicossomática mostrou que a maior parte das doenças
é auto-induzida mentalmente. Durante um trauma emocional, é comum que as pessoas adoeçam. Esposos idosos muitas vezes morrem um logo após o outro. Depois de deixarem
seus trabalhos, pessoas que não encontram alguma nova atividade que as interesse tornam-se aborrecidas e deprimidas, e podem morrer de alguma doença. Por outro lado,
você já prestou atenção como as pessoas "tornam-se vivas" quando elas estão sentindo bastante amor? As indisposições físicas desaparecem, a pessoa brilha, refletindo
sentimentos mais brilhantes. Quando as pessoas estão felizes e entusiasmadas, as possibilidades de adoecerem são muito ligeiras.
As atitudes e emoções afetam não somente nossa saúde pessoal, mas também a duração da vida. Portanto, é necessário cultivar a mais alta qualidade de atitudes e emoções.
<125>
A questão surge: "Por que o esgotamento emocional afeta adversamente nossa saúde?". Primeiro compreendamos que nossos pensamentos ocasionam mudanças definitivas
em nossas células. Isto porque os efeitos de cada pensamento e sentimento ressoam dentro de cada célula. A doença causada pela mente é uma realidade física.
O amor é o poder da força vital. Diz-se muitas vezes que estar amando faz uma pessoa se sentir toda hilariante e radiante por dentro. Este sentimento de hilariedade
é um estado de abertura no qual a força vital surge livremente através do corpo. O amor é tido como o melhor curador. Se o amor se torna bloqueado, o corpo refletirá
esse bloqueio. Pensamentos positivos e relaxados permitem que o máximo de força vital circule, resultando em melhora de saúde, energia e felicidade. Sentimentos
de depressão ou ódio obstruem o fluxo de força vital. Quando seus pensamentos e sentimentos são de amor ou ódio, sobre o passado, o presente ou o futuro, sobre outras
pessoas ou sobre você mesmo, suas células experimentam pessoalmente a qualidade vibratória que repercute como resultado, e isso afeta diretamente o seu bem-estar.
Nós, naturalmente, acreditamos que o que nossa mente nos diz é verdade. No entanto, as mensagens da mente são muitas vezes coloridas pelos condicionamentos que recebemos
durante nosso crescimento. Temos a habilidade de superar esse condicionamento se escolhermos exercitar nossa vontade. Há muitos instrumentos para nos ajudar.
Aqui estão algumas indicações:
Pensamentos Positivos: Preste atenção em cada um dos seus pensamentos, como se você estivesse assistindo a um programa de televisão. Você não compra tudo o que vê
na tela. Assim, não há necessidade de comprar tudo o que aparece na sua mente. O modo como nós sentimos a nós mesmos molda dinamicamente nossas vidas, e nossas crenças
estruturam nossa realidade. Se um homem acredita que é atraente e merecedor de amor, ele projetará isso e as pessoas o confirmarão. Da mesma forma, o oposto é verdadeiro.
Você não tem que se identificar ou se sentir vítima das suas formas já gastas de pensamentos. Você pode escolher seus pensamentos. Pergunte a si mesmo: "Este pensamento
me traz amor e harmonia?" Se traz, ótimo. Se não, reconheça que os pensamentos podem ser úteis ensinando a você mais sobre você mesmo - incluindo o que precisa ser
mudado.
<126>
Quanto mais você se identifica com um pensamento, mais poder ele tem e mais ligado a você ele se torna. Digamos, por exemplo, que o pensamento "eu não sou atraente"
entre na sua mente. Se você acreditar nesse pensamento, estará ligando uma carga de 100 volts de desapontamento nele. Uma maneira alternativa de lidar com o negativo
é deixar que você experimente gratidão e diga: "Obrigado pensamento, por me mostrar o que eu estava sendo treinado para acreditar. Obrigado por me proteger das
situações sociais que me amedrontavam no passado. Obrigado por me ajudar a saber o que é não amar a mim mesmo, pois agora eu posso ter mais compreensão, amor e
perdão para mim e para os outros. Mas agora eu não preciso mais de você. Obrigado e adeus." Gratidão é um antídoto para o esgotamento.
Não mais se identificar com um pensamento pode fazer você livre dele. Desacredite das figuras negativas que você tem sobre você mesmo. Elas só são verdadeiras se
você acredita que elas assim o sejam. Você não é os pensamentos que você tem, por que você tem o poder de conservar um pensamento ou de deixá-lo ir. Não seja escravo
dos seus condicionamentos e treinamentos de infância. Conscientemente crie um pensar positivo. Logo seus pensamentos positivos serão mais reais do que os negativos.
As dificuldades que experimentamos hoje nos ajudam a crescer, pois elas nos ensinam compaixão e perdão. Nossas dificuldades nos oferecem uma preciosa oportunidade
de escolher o amor novamente. Podemos tirar carga de nossas vidas ousando sintonizar nossas mentes numa estação positiva. Já podemos assumir o ponto de vista de
que nós já amamos a nós mesmos, e sempre o faremos, incondicionalmente. Nós amamos quem nós somos, onde estamos, as pessoas com as quais convivemos e o que estamos
fazendo. Você se torna o que você pensa. Então, por que não se sentir corajoso, inspirado, bem-sucedido, feliz, saudável e amoroso? Consciente e ativamente crie
pensamentos positivos. A vida não é difícil, é desafiadora. Não há erros ou problemas, somente oportunidades para aprender. Ser positivo é uma escolha e nós temos
o poder para ver toda situação como uma experiência de aprendizado, que contribui para nosso crescimento pessoal.
Falar Positivo: A palavra falada é muitas vezes mais poderosa do que o pensamento. Ouça o que você e os outros falam. Com prática, você pode criar um falar totalmente
positivo para caminhar junto com pensamentos e atitudes positivas.
<127>
Companhia Positiva: As pessoas com as quais interagimos têm uma influência importante em nossas vidas. Para provar isso por si mesmo, apenas observe como você muda
ao lado de pessoas muito positivas ou negativas. E nossa escolha se queremos ser positivos, inspirados, entusiasmados e felizes - e também é nossa escolha se conservamos
a companhia de pessoas que reforçam ou inibem essas qualidades em nós.
Ambiente Positivo: A atmosfera em que vivemos nos afeta. Usando decorações atrativas, o humor de uma $ala pode ser mudado. Existe uma sensação boa quando se vive
num ambiente que é agradável a você e aos outros é convidativo. Nosso ambiente pessoal é muitas vezes um reflexo dos nossos sentimentos mais íntimos. É bom que
se trabalhe em todos os níveis.
Ações Positivas: Ajudar aos outros sem egoísmo faz com que todos se sintam melhor. Quando você se vê praticando boas ações, você se sente melhor consigo mesmo. 0
meio mais seguro de parar de pensar sobre sua própria situação é ajudar alguém que realmente necessite de ajuda. Se você usar sua criatividade, inúmeros meios de
servir aos outros vêm à sua mente. Por exemplo, você pode levar flores, baralhos, música ou mesmo um sorriso e conversa para casas de repouso. Você pode oferecer,
voluntariamente, seu tempo para alguma organização beneficente. Você pode escrever mensagens positivas em cartões 3 x 5 e entregá-las nas imediações de escritórios,
de casas ou em supermercados. Você pode dizer alô e enviar amor a todo mundo que você vê, ou comprar livros que lhe dão inspiração e dá-los a amigos. As possibilidades
são sem limites. E é muito divertido fazer isso. Você pode criar uma vida positiva através dos seus pensamentos, do seu falar, da companhia, do meio ambiente e
de ações. Para ajudá-lo estes livros são altamente recomendáveis:
I DESERVE LOVE, por Sondra Ray
Les Femmes Publishing
HANDBOOK TO HIGHER CONSCIOUSNESS, por Ken Keyes Jr.
Living Love Center
THE LAZY MAN'S GUIDE TO ENLIGHTENMENT, por Thadeus Galas
The Seed Center

<128>
Nutrição e Atitudes
Para que se permaneça com força vital, é necessário comer alimentos de alta qualidade natural e ter atitudes positivas. É mais fácil manter uma boa dieta quando
ela é alicerçada em boas atitudes. Igualmente, é mais fácil manter atitudes positivas enquanto se mantém uma boa dieta. Mudar hábitos alimentares antigos em alguns
casos pode causar esgotamento e o esgotamento pode anular os benefícios de uma dieta aperfeiçoada. A melhor maneira na mudança de hábitos dietéticos é caminhar suave
e calmamente nos novos modelos de saúde e de vida. Se a mudança da sua dieta lhe causa desequilíbrio emocional ou físico, vá mais devagar e deixe a mudança acontecer
numa velocidade que você possa controlar. Sinta prazer em cada passo do caminho.
Os três primeiros princípios da boa nutrição estão relacionados com as próprias atitudes.
1. Coma quando você estiver num estado de mente relaxado. A fim de obter o máximo valor do alimento que você ingere, não coma quando estiver cansado ou muito
excitado. Se você precisa ingerir alguma coisa, tome um suco ou um chá de ervas.
2. Goste do que você come e nunca critique seu alimento. Para a maioria das pessoas, o alimento satisfaz algumas necessidades emocionais. Se você vai comer
alguma coisa que você acredita que não vai ser boa para você, pelo menos sinta no que você come. Se você sente máximo prazer, o alimento tem maior possibilidade
de ser digerido. Ainda mais, você não fará gulodice, nem se sentirá culpado por comê-lo.
3. Permita-se comer aquilo que você deseja e quando quer. Quando você começa um novo programa dietético, é importante não se privar das coisas especiais que
você possa desejar. Se você se condena por alguma coisa, ela será mais desejada. Nós atraímos as coisas das quais mais resistimos. Como exemplo, suponha que uma
pessoa queira tomar sorvete, mas sente que não deveria fazê-lo. Então, toda vez que ele diz não ao seu desejo por sorvete, esse desejo aumenta. Em níveis emocionais
ele sente como se estivesse se privando daquilo que ele quer. Finalmente, quando o desejo vence, ele pode acabar comendo sorvete excessivamente e com sentimentos
de culpa. A culpa é provavelmente pior do que o sorvete. Se você sabe que pode ter o que quiser, quando quiser, não haverá sentimentos de culpa que possam fazer
alguma coisa. Sinta-se bem consigo mesmo, independente do que você faça, e a moderação virá facilmente.
<129>
4. Inclua alimentos naturais gradualmente na sua dieta. Se você está pensando em acrescentar alimentos naturais que você apreciaria em sua dieta, não haverá
necessidade de se sentir prejudicado ou privado de alguma coisa. Toda vez que você acrescenta alguma coisa de que gosta na sua dieta, você tem uma boa sensação,
sem sentir falta de coisas que comia antigamente. Ainda, coisas saudáveis acrescentadas automaticamente significam que você não comeu outra coisa de qualidade provavelmente
inferior. Isto ajuda na segurança de que novas mudanças podem acontecer.
Outro modo de usar substituições é em situações de muita fome. Se você deseja de maneira muito forte um alimento que você pensa que não deveria comer, eis aqui uma
opção. Primeiro, saiba que você pode tê-lo no momento em que você quiser. Depois, verifique consigo mesmo e veja se há alguma coisa a mais de melhor qualidade que
você preferiria mais. Por exemplo, se alguém deseja intensamente sorvete, mas pára e pensa por um momento, poderia pôr no lugar do tão desejado sorvete um forte
desejo por morango com iogurte. Adicionando alimentos de qualidade superior, satisfazemos as necessidades emocionais e físicas num nível mais alto de satisfação.
5. O alimento precisa ser digerido para ser assimilado. O alimento precisa ser digerido em primeiro lugar, antes que ele seja de valor para as células. Amidos
não-digeridos podem fermentar e proteínas não-digeridas podem se putrefazer. Isto pode ser pesado para o fígado e pode poluir o corpo. Aqui vão algumas sugestões
básicas para a fácil digestão:
<130>
Coma quando você estiver com fome. Quando seu corpo lhe diz para comer, seu organismo está preparado para ingerir comida. Seu sucos digestivos estão prontos para
agir. Espere até você ter fome para fazer uma refeição. Os alimentos ingeridos quando você tem fome são mais satisfatórios e mais digeríveis e, portanto, mais nutrientes
e mais gratificantes. Comer um sólido desjejum antes de sentir fome não é benéfico.
Coma moderadamente. Moderação é essencial para uma digestão eficiente, boa assimilação e boa saúde. Se o seu organismo está sobrecarregado, ele não pode funcionar
num alto nível. Tente comer um pouco menos a cada refeição, no princípio. Quando você se sente entusiasmado pela vida, comer pode ser divertido, mas não é o centro
da atividade. Alimentos altamente nutritivos são mais satisfatórios. Então, suas células não mais lhe mandarão aquela mensagem de "sempre com fome".
6. Coma alimentos naturais de alta qualidade. Os alimentos da mais alta qualidade são aqueles que vêm a nós na sua forma mais natural. Como assinalamos, há
um universo de complexidade dentro de uma célula. Quando o homem ousa modificar seu alimento, ele corre o risco de mudar coisas que ele não entende. Através dos
tempos, os animais e seus alimentos têm-se desenvolvido juntos num equilíbrio delicado. Nenhum outro animal que não seja o homem modificou radicalmente a natureza
do seu alimento com fogo, processos, preservativos, etc. Os animais comem o que está disponível em seu meio, na sua forma crua, natural.
Para muitos, a dieta é muito simples.
A ciência da nutrição ainda está na infância. Sabemos que há carboidratos, proteínas, gorduras, vitaminas, minerais, enzimas e fibras, mas a maior parte do alimento
parece ter sido negligenciada. Esta é a essencial força vital no alimento. Quase todos os animais ingerem seus alimentos em estado vivo. Os herbívoros comem capim,
sementes, arbustos. Os carnívoros matam sua carne e a comem fresca e crua. Fazendo isto, os animais asseguram para si a obtenção da máxima força vital do seu alimento.
A força vital é um fator essencial na alta qualidade da nutrição.
Há uma diferença principal entre alimentos naturais e os artificiais. E comum os cientistas dizerem que não há diferença entre o ácido ascórbico sintético e aquele
encontrado naturalmente nas frutas. Talvez eles estejam deixando de ver o ponto principal. Os nutricionistas integrais diriam que há alguma coisa a mais a descobrir.
Por exemplo, os métodos comuns de detecção não encontraram nenhuma diferença química entre uma pessoa viva e uma imediatamente após a morte.
<131>
A diferença está na força vital, não na química. Comer alimentos frescos, ricos em força vital, é diferente de comer comida enlatada, embora elas possam ser quimicamente
idênticas.
Cozer, processar e preservar alimentos muda a estrutura complexa do alimento que comemos, de muitas maneiras:
* a força vital é destruída.
* as enzimas delicadas são destruídas.
* a fibra (necessária para uma eliminação saudável) é destruída.
* açúcares simples no alimento são muitas vezes convertidos em amidos mais complicados.
* muitas vitaminas são destruídas.
* os minerais podem ser perdidos.
* óleos naturais tornam-se gorduras saturadas.
Um primeiro passo para melhorar a sua dieta é aumentar a quantidade de frutas e vegetais frescos e crus que você come. Pelo menos uma vez por dia coma uma boa salada
de vegetais variados. Enquanto faz isso, diminua a quantidade de açúcar, mel e álcool, assim como alimentos em conserva e refinados. Para maior informação, recomendo
ler os trabalhos de Paavo Airola e Bernard Jensen. Estes homens contribuíram muito no campo da nutrição. DOCTOR-PATIENT HANDBOOK, por Bernard Jensen D.C., N.D.
Route 1, Box 52, Escondido, Califórnia 92025 ARE YOU CONFUSED, por Paavo Airola N.D., Ph. D.
HOW TO GET WELL, por Paavo Airola
Health Plus Publishers, Box 22001, Phoenix, Arizona 85028
<132>
REPARTIR A DÁDIVA
Agora que você teve a oportunidade de trabalhar
com a força vital - de experimentá-la, de ajudar
e de amar
Agora que você sabe...
. você pode começar a repartir.
Agora você tem as ferramentas pára fazer o que nunca foi feito antes atravessar a ponte do espírito para a ciência.
<134>
Seção VI
Ciência e força vital
O uso da força vital é conhecimento antigo, mas até recentemente a ciência moderna ignorou ou se afastou desse fenômeno por causa da sua associação com a religião
ou espiritualismo esotérico. A física de Newton estava ligada com o comportamento mecânico da substância material e mesmo o próprio Newton não se sentia à vontade
sobre as implicações espirituais da força invisível da gravidade. Contudo, a visão mecanicista foi adotada pela profissão médica. As aulas de anatomia, na maior
parte das escolas de medicina, vêem o corpo humano como uma máquina altamente sofisticada.
Quando Albert Einstein desenvolveu sua famosa fórmula E = mc2 e mostrou que a matéria poderia ser convertida em energia, a dominante visão materialista começou a
mudar na comunidade científica. Mas a ciëncia médica ficou atrasada, atada ao conceito mecânico do corpo humano e ignorando a interação da energia do corpo. A idéia
de força vital foi levada a sério somente pelos médicos praticantes do movimento de saúde integral não estabelecido, um grupo tolerado mas dificilmente reconhecido
pela maior parte dos médicos. Nos últimos anos mudanças radicais de atitudes começaram a acontecer por causa de poderes extraordinários revelados por alguns indivíduos.
Os feitos telecinéticos de Uri Geller, que é capaz de mentalmente mover ou entortar objetos como chaves ou colheres de metal, têm sido investigados por pesquisadores
do Instituto de Pesquisas Stanford, do King's College, em Londres, da Universidade de Kent State e o do Departamento de Defesa Americano. Olga Worrall, a curadora
espiritual, internacionalmente conhecida, provou num certo número de laboratórios científicos de universidades que ela pode criar ondas de turbulência dentro de
quartos enevoados, sem tocá-los. Fora de dúvida, ficou provado que algumas pessoas têm a habilidade de fazer uso da força vital de um modo que afeta a matéria física.
É também interessante que desde que Uri Geller começou a fazer aparições públicas, muitas pessoas descobriram que têm a mesma habilidade.
<135>
A tradição de curar por "imposição das mãos" remonta pelo menos desde os tempos bíblicos. Isto não é surpresa, pois a força vital tem estado aí há tanto tempo quanto
a própria vida! E é só porque os cientistas ocidentais tem estado preocupados em ver as propriedades da matéria que eles subestimaram as qualidades mais sutis da
força vital. "Não há 'coisas'; há somente interligações", diz Fritjof Capra, Ph. D., um físico que trabalhou nos laboratórios de pesquisa da Universidade da Califórnia
e da Universidade de Stanford. No seu livro "O Tao da Física", o Dr. Capra discute como os relacionamentos da energia são a base do fenômeno tanto físico como mental.
Agora que os cientistas reconheceram e começaram a fazer experiências com a força vital, não demorará muito para que a profissão médica comece a olhar para esta
oportunidade excelente.
Os entendidos dizem que a profissão de cuidado com a saúde neste país está numa encruzilhada crítica. Os altos custos com os cuidados com a saúde e o aumento da
prática descuidada estão preocupando ambos, médicos e pacientes, e nenhum dos grupos parece saber o que fazer a respeito. Historicamente, as crises têm servido para
abrir caminho para novas descobertas. Desde que muitos médicos são pragmáticos, pessoas práticas querendo encontrar soluções práticas para os problemas, pode-se
esperar que eles eventualmente adotem seriamente processos eficientes como o equilíbrio de energia polarizada.
A força vital é uma fonte inestimável e inesgotável - e está livre. Os médicos profissionais que a usam juntamente com a terapia convencional estão experimentando
um maior grau de satisfação entre seus pacientes ao mesmo tempo que uma diminuição nos perigos dos processos mal praticados. Os doentes deveriam certamente poder
esperar que os cuidados com a saúde diminuíssem drasticamente de preço em casos de doenças graves ou ferimentos. Todos seriam beneficiados.
<136>
"Os princípios de polaridade como um inteligente fator fundamental de concordância e método em todos os campos de terapia" escreveu o Dr. Randolph Stone, o fundador
do sistema moderno de polaridade. Porque a polaridade alivia sofrimentos tanto físicos como emocionais, e seu potencial parece quase que ilimitado.
Aplicações
Imaginando um pouco, é fácil sugerir possíveis aplicações da polaridade que beneficiariam ambos, saúde e sociedade. Eis aqui alguns exemplos de aplicações que me
vêm à mente:
Para as famílias usarem como um cuidado preventivo, ou antes da atenção do médico em crises ou emergências.
Nos consultórios médicos antes e depois do tratamento com remédios.
Nos hospitais para aliviar sofrimento e relaxar tensão. Nas cadeias e instituições mentais, onde os residentes poderiam praticar uns nos outros a fim de restabelecer
e manter um sentido de bem-estar. Nas escolas, como educação básica, conjuntamente com os métodos de primeiros socorros. Mais ainda, quando uma criança está se
comportando mal, o professor poderia sugerir uma polaridade. Em vez de punição, a criança deveria receber o amor de seus colegas.
Demonstração
Para demonstrar a polaridade e seus efeitos de força vital aos descrentes, aos curiosos ou àqueles simplesmente interessados em experimentá-la, as técnicas que não
envolvem pressão ou toque físico são as melhores. Eu sugiro as seguintes:
O embalo (veja página 40).
O balanço do ventre (veja página 44).
<137>
O movimento da dor de cabeça (veja página 24).
Os movimentos finais (veja página 70).
O círculo de polaridade (veja página 114).
Para aumentar os resultados da sua demonstração ao máximo, aqui estão três palpites valiosos:
1. Trabalhe em pessoas que estão com dores. Aqueles que estão fortes e saudáveis podem sentir facilmente a força vital, mas as pessoas com dores estão prontas
para ter alívios dramáticos das aflições físicas ou emocionais.
2. Para resultados ótimos, dê sessões de polaridade quando você estiver se sentindo forte e saudável.
3. Não aplique uma polaridade depois que você ou a outra pessoa com a qual está trabalhando tenha feito uma refeição pesada. Alguma força vital é usada na
digestão de alimentos, por isso a eficiência da sessão poderia ser reduzida. A polaridade e o estudo da força vital são campos relativamente novos para investigação.
Muitas novas descobertas estão esperando por aqueles que decidam fazer a pesquisa. Assim, também, há inúmeras perguntas básicas a serem respondidas. Aqui estão algumas
que eu sinto que merecem exame:
Será que o círculo de polaridade ajudará pessoas que estão morrendo a ter paz nas suas horas finais?
Uma série de polaridades pode controlar o câncer?
Por que algumas pessoas são mais receptivas à terapia da polaridade do que outras?
Quais as mudanças fisiológicas que ocorrem durante uma sessão de polaridade? Quão eficiente seria um programa de polaridade total e contínuo para conservar uma
saúde excelente - particularmente aqueles com dores crônicas e doenças freqüentes?
<138>
Durante anos, quando Benjamin Franklin fez seu papagaio voar e teve sua famosa experiência com iluminação, a força da iluminação sempre esteve presente - mas ninguém
anteriormente tinha sido capaz de captá-la. Quando ele o fez, as pessoas disseram: "Bem, bem, mas de qualquer forma, para que serve esta eletricidade?"
A força vital parece ser uma forma sutil de eletricidade que tem o mesmo nível de compreensão que a eletricidade em bruto teve, há duzentos anos atrás. Os possíveis
usos da força vital poderiam facilmente remodelar a consciência da humanidade nos próximos cem anos, mais profundamente do que o uso da eletricidade jamais será.
<139>
Para mais informações sobre polaridade, as seguintes organizações e indivíduos são sugeridos:
PIERRE PANNETIER POLARITY THERAPY CENTER 401 N. Glassell. Orange. Califórnia
92666
(Pannetier é o sucessor do Dr. Randolph Stone, fundador da, terapia da polaridade.)
Os seguintes livros do Dr. Stone, podem ser obtidos com Pierre Pannetier:
Para o leitor amador, que deseja informação sobre manutenção da saúde:
EDIFICANDO A SAÚDE; SUMÃRIO; DIETA PURIFICADORA e POSTURAS FQCEIS DE
ESTIRAMENTO (4 livros).
As publicações restantes são livros técnicos.
Livro I, ENERGIA, é um trabalho introdutório que diz respeito à filosofia da polaridade.
Livro III, TERAPIA DE POLARIDADE, sobre a prática da terapia de polaridade.
FUNDAÇÃO INTERNACIONAL DE POLARIDADE 511 Main Street, Fort Lee, New Jersey
07024
DR. ED JARVIS (liderando a prática de polaridade) 572 Gibson, Pacific Grove, Califórnia 93950 O autor, Richard Gordon, pode também ser contatado através da Unity
Press por aqueles que desejarem mais informações.
<140>
Nossas mãos são uma dádiva
Através delas podemos canalizar o amor
Dos nossos corações para aliviar
O sofrimento daqueles que estão
À nossa volta.
<143>
NOTA BIOGRÁFICA
Richard Gordon
é um explorador criativo no campo da saúde integral, trazendo uma dádiva em conceitos pouco conhecidos e ajudando as pessoas a ter experiências de seu próprio potencial
como curadores. Como pessoa que pratica o equilíbrio pela energia polarizada, Richard desenvolveu métodos tradicionais de polaridade, combinando-os com técnicas
inovadas como o "Circulo de Polaridade", agora largamente aceito desde a sua introdução pelo Sr. Gordon. Richard viajou muito fazendo palestras para profissionais
no campo da medicina, saúde mental, educação e consciência integral. Atualmente, ele está participando de um projeto de dissertação de Ph. D. para demonstrar as
aplicações terapêuticas da força vital usando as técnicas de diagnóstico.
Este livro foi transcrito para o braille por:
Flávio Emerson Dias Ferreira Bill;
Valmir de Barros.Polêmicas e Reflexões - Machado de Assis
LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Polêmicas e Reflexões
Machado de Assis



Texto de referência:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994

Carta ao Sr. Bispo do Rio de Janeiro
Carta à Redação da Imprensa Acadêmica
O Visconde de Castilho
Um Cão de Lata ao Rabo
Filosofia de um Par de Botas
Elogio da Vaidade
Cherchez la Femme
Metafísica das Rosas
José de Alencar
Carta a um Amigo
Pedro Luís
Artur Barreiros
Antes a Rocha Tarpéia
O Futuro dos Argentinos
Joaquim Serra
A Morte de Francisco Otaviano
Secretaria da Agricultura
Henrique Lombaerts
Ferreira de Araújo
A Paixão de Jesus









CARTA AO SR. BISPO DO RIO DE JANEIRO []
Ex.mo Rev.mo Sr. -- No meio das práticas religiosas, a que as altas funções de
prelado chamam hoje V. Ex.ª., consinta que se possa ouvir o rogo, a queixa, a
indignação, se não é duro o termo, de um cristão que é dos primeiros a admirar
as raras e elevadas virtudes, que exornam a pessoa de V. Exª.
Não casual, senão premeditada e muito de propósito, é a coincidência desta
carta com o dia de hoje. Escolhi. como próprio, o dia da mais solene
comemoração da igreja, para fazer chegar a V. Ex ª algumas palavras sem
atavios de polêmica, mas simplesmente nascidas do coração.
Estou afeito desde a infância a ouvir louvar as virtudes e os profundos
conhecimentos de V. EXª. Estes verifiquei-os mais tarde pela leitura das
obras, que aí correm por honra de nossa terra; as virtudes se as não apreciei
de perto, creio nelas hoje como dantes, por serem contestes todos quantos têm
a ventura de tratar de perto com V. Exª.
É fiado nisso que me dirijo francamente à nossa primeira autoridade
eclesiástica.
Logo ao começar este período de penitência e contrição, que está a findar,
quando a Igreja celebra a admirável história da redenção, apareceu nas colunas
das folhas diárias da Corte um bem elaborado artigo, pedindo a supressão de
certas práticas religiosas do nosso país, que por grotescas e ridículas,
afetavam de algum modo a sublimidade de nossa religião.
Em muitas boas razões se firmavam o articulista para provar que as procissões,
derivando de usanças pagãs, não podiam continuar a ser sancionadas por uma
religião que veio destruir os cultos da gentilidade.
Mas a quaresma passou e as procissões com ela, e ainda hoje, Ex.mo. Sr., corre
a população para assistir à que, sob a designação de Enterro do Senhor, vai
percorrer esta noite as ruas da capital.
Não podem as almas verdadeiramente cristãs olhar para essas práticas sem
tristeza e dor.
As conseqüências de tais usanças são de primeira intuição. Aos espíritos menos
cultos, a idéia religiosa, despida do que tem mais elevado e místico,
apresenta-se com as fórmulas mais materiais e mundanas. Aos que, meros
rústicos, não tiveram, entretanto, bastante filosofia cristã para opor a esses
espetáculos, a esses entibia-se a fé, e o cepticismo invade o coração.
E V. Exª. não poderá contestar que a nossa sociedade está afetada do flagelo
da indiferença. Há indiferença em todas as classes, e a indiferença melhor do
que eu sabe V. Exª., é o veneno sutil, que corrói fibra por fibra um corpo
social.
Em vez de ensinar a religião pelo seu lado sublime, ou antes, pela sua
verdadeira e única face, é pelas cenas impróprias e improveitosas que a
propagam. Os nossos ofícios e mais festividades estão longe de oferecer a
majestade e a gravidade imponente do culto cristão. São festas de folga,
enfeitadas e confeitadas, falando muito aos olhos e nada ao coração.
Neste hábito de tornar os ofícios divinos em provas de ostentação, as
confrarias e irmandades, destinadas à celebração dos respectivos órgãos, levam
o fervor até uma luta vergonhosa e indigna, de influências pecuniárias; cabe a
vitória, à que melhor e mais pagãmente reveste a sua celebração. Lembrarei,
entre outros fatos, a luta de duas ordens terceiras, hoje em tréguas,
relativamente à procissão do dia de hoje. Nesse conflito só havia um fito -- a
ostentação dos recursos e do gosto, e um resultado que não era para a
religião, mas sim para as paixões e interesses terrestres.
Para esta situação deplorável, Ex.mo. Sr., contribui imensamente o nosso
clero. Sei que toco em chaga tremenda, mas V. Exª. reconhecerá sem dúvida que,
mesmo errando, devo ser absolvido, atenta a pureza das intenções que levo no
meu enunciado.
O nosso clero está longe de ser aquilo que pede a religião do cristianismo.
Reservadas as exceções, o nosso sacerdote nada tem do caráter piedoso e nobre
que convém aos ministros do crucificado.
E, a meu ver, não há religião que melhor possa contar bons e dignos levitas.
Aqueles discípulos do filho de Deus, por promessa dele tornados pescadores de
homens, deviam dar lugar a imitações severas e dignas; mas não é assim, Ex.mo.
Sr., não há aqui sacerdócio, há ofício rendoso, como tal considerado pelos que
o exercem, e os que o exercem são o vício e a ignorância, feitas as
pouquíssimas e honrosas exceções. Não serei exagerado se disser que o altar
tornou-se balcão e o evangelho tabuleta. Em que pese a esses duplamente
pecadores, é preciso que V. Exª. ouça estas verdades.
As queixas são constantes e clamorosas contra o clero; eu não faço mais que
reuni-las e enuncia-las por escrito.
Fundam-se elas em fatos que, pela vulgaridade, não merecem menção. Merca-se no
templo, Ex.mo Sr., corno se mercava outrora quando Cristo expeliu os
profanadores dos sagrados lares; mas a certeza de que um novo Cristo não virá
expeli-los, e a própria tibieza da fé nesses corações, anima-os e põe-lhes na
alma a tranqüilidade e o pouco caso pelo futuro.
Esta situação é funesta para a fé, funesta para a sociedade. Se, corno creio,
a religião é uma grande força, não só social, senão também humana, não se pode
contestar que por esse lado a nossa socie-dade contém em seu seio poderosos
elementos de dissolução
Dobram, entre nos , as razões pelas quais o clero de todos Os Países católicos
tem sido acusado.
No meio da indiferença e do cepticismo social, qual era o papel que cabia ao
clero? Um: converter-se ao Evangelho e ganhar nas consciências o terreno
perdido. Não acontecendo assim, as invectivas praticadas pela imoralidade
clerical, longe de afrouxarem e diminuírem, crescem de número e de energia.
Com a situação atual de chefe da Igreja, V. Ex.a compreende bem que triste
resultado pode provir daqui.
Felizmente que a ignorância da maior parte dos nossos clérigos evita a
organização de um partido clerical, que, com o pretexto de socorrer a Igreja
nas suas tribulações temporais, venha lançar a perturbação nas consciências,
nada adiantando à situação do supremo chefe católico.
Não sei se digo uma heresia, mas por esta vantagem acho que é de apreciar essa
ignorância.
Dessa ignorância e dos maus costumes da falange eclesiástica é que nasce um
poderoso auxílio ao estado do depreciamento da religião.
Proveniente dessa situação, a educação religiosa, dada no centro das famílias,
não responde aos verdadeiros preceitos da fé. A religião é ensinada pela
prática e como prática, e nunca pelo sentimento e como sentimento.
O indivíduo que se afaz desde a infância a essas fórmulas grotescas, se não
tem por si a luz da filosofia, fica condenado para sempre a não compreender, e
menos conceber, a verdadeira idéia religiosa.
E agora veja V. Exª. mais: há muito bom cristão que compara as nossas práticas
católicas com as dos ritos dissidentes, e, para não mentir ao coração, dá
preferência a estas por vê-las símplices, severas, graves, próprias do culto
de Deus.
E realmente a diferença é considerável.
Note bem, Ex.mo Sr., que eu me refiro somente às excrescências da nossa Igreja
Católica, à prostituição do culto entre nós. Estou longe de condenar as
práticas sérias. O que revolta é ver a materialização grotesca das cousas
divinas, quando elas devem ter manifestação mais elevada, e, aplicando a bela
expressão de S. Paulo, estão escritas não com tinta, mas com o espírito de
Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne do coração.
O remédio a estes desregramentos da parte secular e eclesiástica empregada no
culto da religião deve ser enérgico, posto que não se possa contar com
resultados imediatos e definitivos.
Pôr um termo às velhas usanças dos tempos coloniais, e encaminhar o culto para
melhores, para verdadeiras fórmulas; fazer praticar o ensino religioso como
sentimento e como idéia e, moralizar o clero com as medidas convenientes, são
Ex.mo Sr., necessidades urgentíssimas.
É grande o descrédito da religião, porque é grande o descrédito do clero. E V.
Exa deve saber que os maus intérpretes são nocivos aos dogmas mais santos.
Desacreditada a religião, abala-se essa grande base da moral, e onde irá parar
esta sociedade?
Sei que V. Exª. se alguma cousa fizer no sentido de curar estas chagas, que
não conhece, há de ver levantar-se em roda de si muitos inimigos, desses que
devem-lhe ser pares no sofrimento e na glória. Mas V. Ex.ª é bastante cioso
das cousas santas para olhar com desdém para as misérias eclesiásticas e
levantar a sua consciência de sábio prelado acima dos interesses dos falsos
ministros do altar.
V. Exª receberá os protestos de minha veneração e me deitará a sua bênção.


CARTA À REDAÇÃO DA IMPRENSA ACADÊMICA [Corte, 21 ago. 1864.]


MEUS BONS AMIGOS: -- Um cantinho em vosso jornal para responder duas palavras
ao Sr. Sílvio-Silvis, folhetinista do Correio Paulistano, a respeito da minha
comédia o Caminho da Porta.
Não é uma questão da susceptibilidade literária, é uma questão de probidade.
Está longe de mim a intenção de estranhar a liberdade da crítica, e ainda
menos a de atribuir à minha comédia um merecimento de tal ordem que se lhe não
possam fazer duas observações. Pelo contrário eu não ligo ao Caminho da Porta
outro valor mais que o de um trabalho rapidamente escrito, como um ensaio para
entrar no teatro.
Sendo assim, não me proponho a provar que haja na minha comédia -- verdade,
razão e sentimento, cumprindo-me apenas declarar que eu não tive em vista
comover os espectadores, como não pretendeu fazê-lo, salva a comparação, o
autor da Escola das Mulheres.
Tampouco me ocuparei com a deplorável confusão que o Sr. Sílvio-Silvis faz
entre a verdade e a verossimilhança; dizendo: "Verdade não tem a peça que até
é inverossímil."-- Boileau, autor de unia arte poética que eu recomendo à
atenção do Sílvio-Silvis, escreveu esta regra: Le vrai peut quelquefois n'être
pas vraisemblable.
O que me obriga a tomar a pena é a insinuação do furto literário, que me
parece fazer o Sr. Sílvio-Silvis, censura séria que não pode ser feita sem que
se aduzam provas. Que a minha peça tenha urna fisionomia comum a muitas outras
do mesmo gênero, e que, sob este ponto de vista, não possa pretender uma
originalidade perfeita, isso acredito eu; mas que eu tenha copiado e assinado
uma obra alheia, eis o que eu contesto e nego redondamente.
Se, por efeito de uma nova confusão, tão deplorável como a outra, o Sr.
Sílvio-Silvis chama furto à circunstância a que aludi acima, fica o dito por
não dito, sem que eu agradeça a novidade. Quintino Bocaiúva, com a sua frase
culta e elevada, já me havia escrito: "As tuas duas peças, modeladas ao gosto
dos provérbios franceses, não revelam mais do que a maravilhosa aptidão do teu
espírito, a própria riqueza do teu estilo." E em outro lugar: "O que te peço é
que apresentes neste mesmo gênero algum trabalho mais sério, mais novo, mais
original, mais completo.
É de crer que o Sr. Sílvio-Silvis se explique cabalmente no próximo folhetim.
Se eu insisto nesta exigência não e para me justificar perante os meus amigos
pessoais, ou literários, porque esses, com certeza, julgam- me incapaz de uma
má ação literária. Não é também para desarmar alguns inimigos que tenha aqui,
apesar de muito obscuro, porque eu me importo mediocremente como o juízo
desses senhores.
Insisto em consideração ao público em geral.
Não terminarei sem deixar consignado todo o meu reconhecimento pelo agasalho
que a minha peça obteve da parte dos distintos acadêmicos e do público
paulistano. Folgo de ver nos aplausos dos primeiros uma animação dos soldados
da pena aos ensaios do recruta inexperiente.
Nesse conceito de aplausos lisonjeia-me ver figurar a Imprensa Acadêmica e,
com ela, um dos seus mais amenos e talentosos folhetinistas.
Reitero, meus bons amigos, os protestos da minha estima e admiração.


MACHADO DE ASSIS


O VISCONDE DE CASTILHO []
NÃO, NÃO ESTÁ de luto a língua portuguesa; a poesia não chora a morte do
Visconde de Castilho. O golpe foi, sem dúvida, imenso; mas a dor não pôde
resistir à glória; e ao ver resvalar no túmulo o poeta egrégio o mestre da
língua, o príncipe da forma, após meio século de produção variada e rica, há
um como deslumbramento que faria secar todas as lágrimas.
Longa foi a vida do Visconde de Castilho; a lista de seus escritos
numerosíssima. O poeta dos Ciúmes de Bardo e da Noite do Castelo, o tradutor
exímio de Ovídio, Virgílio e Anacreonte, de Shakespeare, Goethe e Molière, o
contemporâneo de todos os gênios familiar com todas as glórias, ainda assim
não sucumbiu no ócio a que lhe davam jus tantas páginas de eterna beleza. Caiu
na liça, às mãos com o gênio de Cervantes, seu conterrâneo da península, que
ele ia sagrar português, a quem fazia falar outra língua, não menos formosa e
sonora que a do Guadalquivir.
A Providência fê-lo viver bastante para opulentar o tesouro do idioma natal,
o mesmo de Garret e G. Dias, de Herculano e J. F. Lisboa, de Alencar e Rebelo
da Silva. Morre glorificado, deixando a imensa obra que perfez à contemplação
e exemplos das gerações vindouras. Não há lugar para pêsames, onde a
felicidade é tamanha.
Pêsames, sim, e cordiais merece aquele outro talento possante, último de seus
irmãos, que os viu morrer todos, no exílio ou na Pátria, e cuja alma, tão
estreitamente vinculada à outra, tem direito e dever de pranteá-lo.
A língua e a poesia cobrem-lhe a campa de flores e sorriem orgulhosas do
lustre que ele lhes dera. É assim que desaparecem da terra Tem entrada no
paço, e reina no salão os homens imortais.


UM CÃO DE LATA AO RABO []
ERA UMA VEZ um mestre-escola, residente em Chapéu d'Uvas, que se lembrou de
abrir entre os alunos um torneio de composição e de estilo; idéia útil, que
não somente afiou e desafiou as mais diversas ambições literárias, como
produziu páginas de verdadeiro e raro.
merecimento.
-- Meus rapazes, disse ele. Chegou a ocasião de brilhar e. mostrar que podem
fazer alguma coisa. Abro o concurso, e dou quinze dias aos concorrentes. No
fim dos quinze dias, quero ter em minha mão os trabalhos de todos; escolherei
um júri para os examinar, comparar e premiar.
--Mas o assunto? perguntaram os rapazes batendo palmas alegria.
--Podia dar-lhes um assunto histórico; mas seria fácil, e eu quero
experimentar a aptidão de cada um. Dou-lhes um assunto simples, aparentemente
vulgar mas profundamente filosófico.
--Diga, diga.
--O assunto é este: -- UM CÃO DE LATA AO RABO. Quero vê-los brilhar com
opulências de linguagem e atrevimentos de idéia. Rapazes, à obra! Claro é que
cada um pode apreciá-lo conforme o entender.
O mestre-escola nomeou um júri, de que eu fiz parte. Sete escritos foram
submetidos ao nosso exame. Eram geralmente bons; mas três, sobretudo mereceram
a palma e encheram de pasmo o júri e o mestre, tais eram-- neste o arrojo do
pensamento e a novidade do estilo, -- naquele a pureza da linguagem e a
solenidade acadêmica -- naquele outro a erudição rebuscada e técnica, -- tudo
novidade, ao menos em Chapéu d' Uvas.
Nós os classificamos pela ordem do mérito e do estilo. Assim, temos:
1.º Estilo antitético e asmático.
2.º Estilo ab ovo.
3.º Estilo largo e clássico.
Para que o leitor fluminense julgue por si mesmo de tais méritos, vou dar
adiante os referidos trabalhos, até agora inéditos, mas já agora sujeitos ao
apreço público.

I -- ESTILO ANTITÉTICO E ASMÁTICO
O cão atirou-se com ímpeto. Fisicamente, o cão tem pés, quatro; moralmente,
tem asas, duas. Pés: ligeireza na linha reta. Asas: ligeireza na linha
ascensional. Duas forças, duas funções. Espádua de anjo no dorso de uma
locomotiva.
Um menino atara a lata ao rabo do cão. Que é rabo? Um prolongamento e um
deslumbramento. Esse apêndice, que é carne, é também um clarão. Di-lo a
filosofia? Não; di-lo a etimologia. Rabo, rabino: duas idéias e uma só raiz. A
etimologia é a chave do passado, como a filosofia é a chave do futuro.
O cão ia pela rua fora, a dar com a lata nas pedras. A pedra faiscava, a lata
retinia, o cão voava. Ia como o raio, como o vento corno a idéia. Era a
revolução, que transtorna, o temporal que derruba, o incêndio que devora. O
cão devorava. Que devorava o cão? O espaço. o espaço é comida. O céu pôs esse
transparente manjar ao alcance dos impetuosos. Quando uns jantam e outros
jejuam; quando, em oposição às toalhas da casa nobre, há os andrajos da casa
do pobre; quando em cima as garrafas choram lacrimachristi, e embaixo os olhos
choram lágrimas de sangue, Deus inventou um banquete para a alma. Chamou-lhe
espaço. Esse imenso azul, que esta entre a criatura e o criador, é o caldeirão
dos grandes famintos. Caldeirão azul: antinomia, unidade.
O cão ia. A lata saltava como os guizos do arlequim. De caminho envolveu-se
nas pernas de um homem. O homem parou; o cão Parou: pararam diante um do
outro. Contemplação única! Homo, canis. Um parecia dizer:
-- Liberta-me! O outro parecia dizer:--Afasta-te! Após alguns instantes,
recuaram ambos; o quadrúpede deslaçou-se do bípede. Canis levou a sua lata;
homo levou a sua vergonha. Divisão eqüitativa. A vergonha é a lata ao rabo do
caráter.
Então, ao longe, muito longe, troou alguma coisa funesta e miste-riosa. Era o
vento, era o furacão que sacudia as algemas do infinito e rugia como uma
imensa pantera. Após o rugido, o movimento, o ímpeto, a vertigem. O furacão
vibrou, uivou, grunhiu. O mar catou o seu tumulto, a terra calou a sua
orquestra. O furacão vinha retor-cendo as árvores, essas torres da natureza,
vinha abatendo as torres, essas árvores da arte; e rolava tudo, e aturdia
tudo, e ensurdecia tudo. A natureza parecia atônita de si mesma. O condor, que
é o colibri dos Andes, tremia de terror, como o colibri. que é o condor das
rosas. O furacão igualava o píncaro e a base. Diante dele o má-ximo e o mínimo
eram uma só coisa: nada. Alçou o dedo e apagou o sol. A poeira cercava-o todo;
trazia poeira adiante, atrás, à esquer-da, à direita; poeira em cima, poeira
embaixo. Era o redemoinho, a convulsão, o arrasamento.
O cão, ao sentir o furacão, estacou. O pequeno parecia desafiar o grande. O
finito encarava o infinito, não com pasmo, não com medo; &#8212; com desdém. Essa
espera do cão tinha alguma coisa de sublime. Há no cão que espera uma
expressão semelhante à tranqüilidade do leão ou à fixidez do deserto. Parando
o cão, parou a lata. O furacão viu de longe esse inimigo quieto; achou-o
sublime e desprezível. Quem era ele para o afrontar? A um quilômetro de
distância, o cão investiu para o adversário. Um e outro entraram a devorar o
espaço, o tempo, a luz. O cão levava a lata, o furacão trazia a poeira. Entre
eles, e em redor deles, a natureza ficara extática, absorta, atônita.
Súbito grudaram-se. A poeira redemoinhou, a lata retiniu com o fragor das
armas de Aquiles. Cão e furacão envolveram-se um no outro; era a raiva, a
ambição, a loucura, o desvario; eram todas as forças, todas as doenças; era o
azul, que dizia ao pó: és baixo; era o pó, que dizia ao azul: és orgulhoso.
Ouvia-se o rugir, o latir, o retinir; e por cima de tudo isso, uma testemunha
impassível, o Destino; e por baixo de tudo, uma testemunha risível, o Homem.
As horas voavam como folhas num temporal. O duelo prosseguia sem misericórdia
nem interrupção. Tinha a continuidade das grandes cóleras. Tinha. a
persistência das pequenas vaidades. Quando o fura-cão abria as largas asas, o
cão arreganhava os dentes agudos. Arma por arma; afronta por afronta; morte
por morte. Um dente vale uma asa. A asa buscava o pulmão para sufocá-lo; o
dente buscava a asa para destruí-la. Cada uma dessas duas espadas implacáveis
trazia a morte na ponta.
De repente, ouviu-se um estouro, um gemido, um grito de triunfo. A poeira
subiu, o ar clareou, e o terreno do duelo apareceu aos olhos do homem
estupefato. O cão devorara o furacão. O Pó Vencera o azul. O mínimo derrubara
o máximo. Na fronte do vencedor havia uma aurora; na do vencido negrejava uma
sombra. Entre ambas jazia, inútil, uma coisa: a lata.

II -- ESTILO AB OVO
Um cão saiu de lata ao rabo. Vejamos primeiramente o que é o cão, o barbante e
a lata; e vejamos, se é possível saber a origem do uso de pôr uma lata ao rabo
do cão.
O cão nasceu no sexto dia. Com efeito, achamos no Gênesis, cap. 1, v. 24 e 25,
que, tendo criado na véspera os peixes e as aves, Deus criou naqueles dias a
bestas da terra e os animais domésticos, entre os quais figura o de que ora
trato.
Não se pode dizer com acerto a data do barbante e da lata. Sobre o primeiro,
encontramos no Êxodo, cap. XXVII, v.1, estas palavras de Jeová: "Farás dez
cortinas de linho retorcido", donde se pode inferir que ia se torcia o linho,
e por conseguinte se usava o cordel. Da lata as induções são mais vagas. No
mesmo livro do Êxodo, cap. -XXVII, v. 3, fala o profeta em caldeiras; mas logo
adiante recomen-da que sejam de cobre. O que não é o nosso caso.
Seja como for, temos a existência do cão, provada pelo Gênesis, e a do
barbante citada com verossimilhança no Êxodo. Não havendo prova cabal da lata,
podemos crer, sem absurdo, que existe, visto o uso que dela fazemos.
Agora: --donde vem o uso de atar uma lata ao rabo do cão? Sobre este ponto a
história dos povos semíticos é tão obscura como a dos povos arianos. O que se
pode afiançar é que os Hebreus não o tiveram. Quando Davi (Reis, cap. V, v.
16) entrou na cidade a bailar defronte da arca, Micol, a filha de Saul, que o
viu, ficou fazendo má idéia dele, por motivo dessa expansão coreográfica.
Concluo que era um povo triste. Dos Babilônios suponho a mesma coisa, e a
mesma dos Cananeus, dos Jabuseus, dos Amorreus, dos Filisteus, dos Fariseus,
dos Heteus e dos Heveus.
Nem admira que esses povos desconhecessem o uso de que se trata. As guerras
que traziam não davam lugar à criação o município, que é de data relativamente
moderna; e o uso de atar a lata ao cão, há fundamento para crer que é
contemporâneo do município, porquanto nada menos é que a primeira das
liberdades municipais.
O Município é o verdadeiro alicerce da sociedade, do mesmo modo que a família
o é do município. Sobre este ponto estão de acordo os mestres da ciência. Daí
vem que as sociedades remotís-simas, se bem tivessem o elemento da família e o
uso do cão, não tinham nem podiam ter o de atar a lata ao rabo desse digno
compa-nheiro do homem, por isso que lhe faltava o município e as liberdades
correlatas.
Na Ilíada não há episódio algum que mostre o uso da lata atada ao cão. O mesmo
direi dos Vedas, do Popol-Vuh e dos livros de Confúncio. Num hino a Varuna
(Rig-Veda, cap. I v. 2), fala-se em um "cordel atado embaixo". Mas não sendo
as palavras postas na boca do cão, e sim na do homem, é absolutamente
impossível ligar esse texto ao uso moderno.
Que os meninos antigos brincavam, e de modo vário, é ponto incontroverso, em
presença dos autores. Varrão, Cícero, Aquiles, Aúlio Gélio, Suetônio, Higino,
Propércio, Marcila falam de diferen-tes objetos com que as crianças se
entretinham, ou fossem bonecos, ou espadas de pau, ou bolas, ou análogos
artifícios. Nenhum deles, entretanto, diz uma só palavra do cão de lata ao
rabo. Será crível que, se tal gênero de divertimento houvera entre romanos e
gregos, nenhum autor nos desse dele alguma notícia, quando o fator de haver
Alcibíades cortado a cauda de um cão seu é citado solenemente no livro de
Plutarco?
Assim explorada a origem do uso, entrarei no exame do assunto que... (Não
houvera tempo para concluir)

III -- ESTILO LARGO E CLÁSSICO
Larga messe de louros se oferece às inteligências altíloquas, que, no prélio
agora encetado, têm de terçar armas temperadas e finais, ante o ilustre mestre
e guia de nossos trabalhos; e, porquanto os apoucamentos do meu espírito me
não permitem justar com glória, e quiçá me condenam a pronto desbaratamento,
contento-me em seguir de longe a trilha dos vencedores, dando-lhes as palmas
da admiração.
Manha foi sempre puerícia atar uma lata ao apêndice posterior do cão: e essa
manha, não por certo louvável, é quase certo que a tiveram os párvulos de
Atenas, não obstante ser a abelha-mestra da antigüidade, cujo mel ainda hoje
gosta o paladar dos sabedores.
Tinham alguns infantes, por brinco e gala, atado uma lata a um cão, dando
assim folga a aborrecimentos e enfados de suas tarefas escolares. Sentindo a
mortificação do barbante, que lhe prendia a lata, e assustado com o soar da
lata nos seixos do caminho, o cão ia tão cego e desvairado, que a nenhuma
coisa ou pessoa parecia atender.
Movidos da curiosidade, acudiam os vizinhos às portas de suas vivendas, e,
longe de sentirem a compaixão natural do homem quando vê padecer outra
criatura, dobravam os agastamentos do cão com surriadas e vaias. O cão
perlustrou as ruas, saiu aos campos, aos andurriais, até entestar com uma
montanha, em cujos alcantilados píncaros desmaiava o sol, e ao pé de cuja base
um mancebo apascoava o seu gado.
Quis o Supremo Opífice que este mancebo fosse mais compassivo que os da
cidade, e fizesse acabar o suplício do cão. Gentil era ele, de olhos brandos e
não somenos em graça aos da mais formosa donzela. Com o cajado ao ombro, e
sentado num pedaço de rochedo, manuseava um tomo de Virgílio, seguindo com o
pensamento a trilha daquele caudal engenho. Apropinquando-se o cão do mancebo,
este lhe lançou as mãos e o deteve. O mancebo varreu jogo da memória o poeta
e o gado, tratou de desvincular a lata do cão e o fez em poucos minutos, com
mor destreza e paciência.
O cão, aliás vultoso, parecia haver desmedrado fortemente, depois a malícia
dos meninos o pusera em tão apertadas andanças. Livre da lata, lambeu as mãos
do mancebo, que o tomou Para si, dizendo: -- De ora avante, me acompanharás ao
pasto.
Folgareis certamente com o caso que deixo narrado, embora não possa o apoucado
e rude estilo do vosso condiscípulo dar ao quadro os adequados toques.
Feracíssimo é o campo para engenhos de mais alto quilate; e, embora abastado
de urzes, e porventura coberto de trevas, a imaginação dará o fio de Ariadne
com que sói vencer os mais complicados labirintos.
Entranhado anelo me enche de antecipado gosto, por ler os produtos de vossas
inteligências, que serão em tudo dignos do nosso digno mestre, e que
desafiarão a fouce da morte colhendo vasta seara de louros imarcessíveis com
que engrinaldareis as fontes imortais.
Tais são os três escritos; dando-os ao prelo, fico tranqüilo com a minha
consciência; revelei três escritores.


FILOSOFIA DE UM PAR DE BOTAS []
UMA DESTAS TARDES, como eu acabasse de jantar, e muito, lembrou-me dar um
passeio à Praia de Santa Luzia, cuja solidão é propícia a todo homem que ama
digerir em paz. Ali fui, e com tal fortuna que achei uma pedra lisa para me
sentar, e nenhum fôlego vivo nem morto. -- Nem morto, felizmente. Sentei-me,
alonguei os olhos, espreguicei a alma, respirei à larga, e disse ao estômago:
-- Digere a teu gosto, meu velho companheiro. Deus nobis haec otia fecit.
Digeria o estômago, enquanto o cérebro ia remoendo, tão certo é, que tudo
neste mundo se resolve na mastigação. E digerindo, e remoendo, não reparei
logo que havia, a poucos passos de mim, um par de coturnos velhos e
imprestáveis. Um e outro tinham a sola rota, o tacão comido do longo uso, e
tortos, porque é de notar que a generalidade dos homens camba, ou para um ou
para outro lado. Um dos coturnos (digamos botas, que não lembra tanto a
tragédia), uma das botas tinha um rasgão de calo. Ambas estavam maculadas de
lama velha e seca; tinham o couro ruço, puído, encarquilhado.
Olhando casulmente para as botas, entrei a considerar as vicitudes humanas, e
a conjeturar qual seria a vida daquele produto social. Eis senão quando, ouço
um rumor de vozes surdas; em seguida, ouvi sílabas, palavras, frases,
períodos; e não havendo ninguém, imaginei que era eu, que eu era ventríloquo;
e já podem ver se fiquei consternado. Mas não, não era eu; eram as botas que
falavam entre si, suspiravam e riam, mostrando em vez de dentes, umas Pontas
de tachas enferrujadas. Prestei o ouvido; eis o que diziam as botas:
BOTA ESQUERDA -- Ora, pois, mana, respiremos e filosofemos um pouco.
BOTA DIREITA-- Um pouco? Todo o resto da nossa vida, que não há de ser muito
grande; mas enfim, algum descanso nos trouxe a velhice. Que destino! Uma
praia! Lembras-te do tempo em que brilhávamos na vidraça da Rua do Ouvidor?
BOTA ESQUERDA -- Se me lembro! Quero até crer que éramos as mais bonitas de
todas. Ao menos na elegância...
BOTA DIREITA -- Na elegância, ninguém nos vencia.
BOTA ESQUERDA -- Pois olha que havia muitas outras, e presumidas, sem contar
aquelas botinas cor de chocolate ... aquele par ...
BOTA DIREITA -- O dos botões de madrepérola?
BOTA ESQUERDA --Esse.
BOTA DIREITA-- O daquela viúva?
BOTA ESQUERDA -- O da viúva.
BOTA DIREITA -- Que tempo! Éramos novas, bonitas, asseadas; de quando em
quando, uma passadela de pano de linho, que era uma consolação. No mais, plena
ociosidade. Bom tempo, mana, bom tempo! Mas, bem dizem os homens: não há bem
que sempre dure, nem mal que se não acabe.
BOTA ESQUERD -- O certo é que ninguém nos inventou para vivermos novas toda
vida. Mais de uma pessoa ali foi experimentar nós; éramos calçadas com
cuidado, postas sobre um tapete, até que um dia, o Dr. Crispim passou,
viu-nos, entrou e calçou-nos. Eu, de raivosa, apertei-lhe um pouco os dois
calos.
BOTA DIREITA -- Sempre te conheci pirracenta.
BOTA ESQUERDA -- Pirracenta, mas infeliz. Apesar do apertão, o Dr. Crispim
levou-nos.
BOTA DIREITA -- Era bom homem, o Dr. Crispim; muito nosso amigo. Não dava
caminhadas largas, não dançava. Só jogava o voltarete até tarde, duas e três
horas da madrugada; mas, como o divertimento parado, não nos incomodava muito.
E depois na pontinha dos pés, para não acordar a mulher. Lembras-te?
BOTA ESQUERDA -- Ora! por sinal que a mulher fingia dormir para lhe não tirar
as ilusões. No dia seguinte ele contava que estivera na maçonaria. Santa
senhora!
BOTA DIREITA -- Santo casal! Naquela casa fomos sempre felizes, sempre! E a
gente que eles freqüentavam? Quando não havia tapetes, havia palhinha;
pisávamos o macio, o limpo, o asseado. Andávamos de carro muita vez, e eu
gosto tanto de carro' Estivemos ali uns quarenta dias, não?
BOTA ESQUERDA -- Pois então! Ele gastava mais sapatos do que a Bolívia gasta
constituições.
BOTA DIREITA -- Deixemos nos de política.
BOTA ESQUERDA --Apoiado.
BOTA DIREITA (com força) -- Deixemo-nos de política, já disse!
BOTA ESQUERDA (sorrindo)-- Mas um pouco de política debaixo da mesa?... Nunca
te contei... contei, sim... o caso das botinas cor de chocolate... as da
viúva...
BOTA DIREITA -- Da viúva, para quem o Dr. Crispim quebrava muito os olhos?
Lembra-me que estivemos juntas, num jantar do Comendador Plácido. As botinas
viram-nos logo, e nós daí a pouco as vimos também, porque a viúva, como tinha
o pé pequeno, andava a mostrá-lo a cada passo. Lembra-me também que, à mesa,
conversei muito com uma das botinas. O Dr. Crispim. sentara-se ao pé do
comendador e defronte da viúva; então, eu fui direita a uma delas e falamos,
falamos pelas tripas de Judas... A princípio, não; a princípio ela fez-se de
boa; e toquei-lhe no bico, respondeu-me zangada "Vá-se, me deixe!" Mas eu
insisti, perguntei-lhe por onde tinha andado, disse-lhe que estava ainda muito
bonita, muito conservada; ela foi-se amansando, buliu com o bico, depois com o
tacão, pisou em mim, eu pisei nela e não te digo mais...
BOTA ESQUERDA-- Pois é justamente o que eu queria contar...
BOTA DIREITA --Também conversaste?
BOTA ESQUERDA -- Não; ia conversar com a outra. Escorreguei devagarinho, muito
evagarinho, com cautela, por causa da bota do comendador.
BOTA DIREITA--Agora me lembro: Pisaste a bota do comendador.
BOTA ESQUERDA-- A bota? Pisei o calo. O comendador: Ui! As senhoras: Ai! Os
homens: Hein? E eu recuei; e o Dr. Crispim ficou muito vermelho, muito
vermelho ...
BOTA DIREITA -- Parece que foi castigo. No dia seguinte o Dr. Crispim deu-nos
de presente a um procurador de poucas causas.
BOTA ESQUERDA-- Não me fales! Isso foi a nossa desgraça! Um procurador! Era o
mesmo que dizer: mata-me estas botas; esfrangalha-me estas botas!
BOTA DIREITA -- Dizes bem. Que roda viva! Era da Relação para os escrivães,
dos escrivães para os juízes, dos juízes para os advogados, dos advogados para
as partes (embora poucas), das partes para a Relação, da Relação para os
escrivães...
BOTA ESQUERDA -- Et caetera. E as chuvas! E as lamas! Foi o procurador quem
primeiro me deu este corte para desabafar um calo. Fiquei asseada com esta
janela à banda.
BOTA DIREITA --Durou pouco; passamos então para o fiel de feitos, que no fim
de três semanas nos transferiu ao remendão. O remendão (ali! já nãoera a Rua
do Ouvidor!) deu-nos alguns pontos, tapou-nos este buraco, e impingiu-nos ao
aprendiz de barbeiro do Beco dos Aflitos.
BOTA DIREITA -- Com esse havia pouco que fazer de dia, mas de noite...
BOTA ESQUERDA -- No curso de dança; lembra-me. O diabo do rapaz valsava como
quem se despede da vida. Nem nos comprou para outra coisa, porque para os
passeios tinha um par de botas novas, de verniz e bico fino. Mas para as
noites... Nós éramos as botas do curso...
BOTA DIREITA -- Que abismo entre o curso e os tapetes do Dr. Crispim ...
BOTA ESQUERDA -- Coisas!
BOTA DIREITA -- Justiça, justiça; o aprendiz não nos escovava, não tínhamos o
suplício da escova. Ao menos, por esse lado, a nossa vida era tranqüila.
BOTA ESQUERDA -- Relativamente creio. Agora, que era alegre não há dúvida; em
todo caso, era muito melhor que a outra que nos esperava.
BOTA DIREITA -- Quando fomos parar às mãos...
BOTA ESQUERDA -- Aos pés.
BOTA DIREITA -- Aos pés daquele servente das obras públicas. Daí fomos
atiradas à rua, onde nos apanhou um preto padeiro, que nos reduziu enfim a
este último estado! Triste! triste!
BOTA ESQUERDA --Tu queixas-te, mana?
BOTA DIREITA -- Se te parece!
BOTA ESQUERDA -- Não sei; se na verdade é triste acabar assim tão
miseravelmente, numa praia, esburacadas e rotas, sem tacões nem ilusões, por
outro lado, ganhamos a paz, e a experiência.
BOTA DIREITA -- A paz? Aquele mar pode lamber-nos de um relance.
BOTA ESQUERDA -- Trazer-nos-á outra vez à praia. Demais, está longe.
BOTA DIREITA -- Que eu, na verdade, quisera descansar agora estes últimos
dias; mas descansar sem saudades, sem a lembrança do que foi. Viver tão
afagadas, tão admiradas na vidraça do autor dos nossos dias; passar uma vida
feliz em casa do nosso primeiro dono, suportável na casa dos outros; e
agora...
BOTA ESQUERDA -- Agora quê?
BOTA DIREITA -- A vergonha, mana.
BOTA ESQUERDA -- Vergonha, não. Podes crer, que fizemos felizes aqueles a quem
calçamos; ao menos, na nossa mocidade. Tu que pensas? Mais de um, não olha
para suas idéias com a mesma satisfação com que olha para suas botas. Mana, a
bota é a metade da circunspecção; em todo o caso é a base da sociedade
civil...
BOTA DIREITA -- Que estilo! Bem se vê que nos calçou um advogado.
BOTA ESQUERDA -- Não reparaste que, à medida que íamos envelhecendo, éramos
menos cumprimentadas?
BOTA DIREITA -- Talvez.
BOTA ESQUERDA -- Éramos, e o chapéu não se engana. O chapéu fareja a bota...
Ora, pois! Viva a liberdade! Viva a paz! Viva a velhice! (A Bota Direita abana
tristemente o cano). Que tens?
BOTA DIREITA -- Não posso; por mais que queira, não posso afazer-me a isto.
Pensava que sim, mas era ilusão ... Viva a paz e a velhice, concordo; mas há
de ser sem as recordações do passado...
BOTA ESQUERDA -- Qual passado? O de ontem ou o de anteontem? O do advogado ou
o do servente?
BOTA DIREITA -- Qualquer; contanto que nos calçassem. O mais reles pé de homem
é sempre um pé de homem.
BOTA ESQUERDA -- Deixa-te disso; façamos da nossa velhice uma coisa útil e
respeitável.
BOTA DIREITA -- Respeitável, um par de botas velhas! Útil, par de botas
velhas! Que utilidade? Que respeito? Não vês que os homens tiraram de nós o
que podiam, e quando não valíamos um caracol mandaram deitar-nos à margem?
Quem é que nos há de respeitar? - aqueles mariscos?
(olhando para mim) Aquêle sujeito- que está ali com os olhos assombrados?
BOTA ESQUERDA -- Vanitas! Vanitas!
BOTA DIREITA -- Que dizes tu?
BOTA ESQUERDA -- Quero dizer que és vaidosa, apesar de muito acalcanhada, e
que devemos dar-nos por felizes com esta aposentadoria, lardeada de algumas
recordações.
BOTA DIREITA -- Onde estarão a esta hora as botinas da viúva?
BOTA ESQUERDA -- Quem sabe lá! Talvez outras botas conversem com outras
botinas... Talvez: é a lei do mundo; assim caem os Estados e as instituições.
Assim perece a beleza e a mocidade. Tudo botas, mana; tudo botas, com tacões
ou sem tacões, novas ou velhas, direita ou acalcanhadas, lustrosas ou ruças,
mas botas, botas, botas!
Neste ponto calaram-se as duas interlocutoras, e eu fiquei a olhar para uma e
outra, a esperar se diziam alguma coisa mais. Nada; estavam pensativas.
Deixei-me ficar assim algum tempo, disposto a lançar mão delas, e levá-las
Para casa com o fim de as estudar, interrogar, e depois escrever uma memória,
que remeteria a todas as academias do mundo. Pensava também em as apresentar
nos circos de cavalinhos, ou ir vendê-las a Nova Iorque. Depois, abri mão de
todos esses projetos. Se elas queriam a paz, uma velhice sossegada, por que
motivo iria eu arrancá-las a essa justa paga de uma vida cansada e laboriosa?
Tinham servido tanto! Tinham rolado todos os degraus da escala social;
chegavam ao último, a praia, a triste Praia de Santa Luzia... Não, velhas
botas! Melhor é que fiqueis aí no derradeiro descanso.
Nisto vi chegar um sujeito maltrapilho; era um mendigo. Pediu-me urna esmola;
dei-lhe um níquel.
MENDIGO -- Deus lhe pague meu senhor! (Vendo as botas) Um par de botas! Foi um
anjo que as pôs aqui...
EU (ao mendigo) -- Mas, espere...
MENDIGO -- Espere o que? Se lhe digo que estou descalço! (Pegando tias botas)
Estão bem boas! Cosendo-se isto aqui, com um barbante...
BOTA DIREITA -- Que é isto, mana? Que é isto? Alguém pega em nós... Eu
sinto-me no ar...
BOTA ESQUERDA -- É um mendigo.
BOTA DIREITA-- Um mendigo? Que quererá ele?
BOTA DIREITA (alvoroçada) -- Será possível?
BOTA ESQUERDA -- Vaidosa!
BOTA DIREITA -- Ah! Mana! Esta é a filosofia verdadeira: -- Não há bota velha
que não encontre um pé cambaio.


ELOGIO DA VAIDADE []
LOGO QUE A MODÉSTIA acabou de falar, com os olhos no chão, a Vaidade
empertigou-se e disse:
I
Damas e cavalheiros, acabais de ouvir a mais chocha de todas as virtudes, a
mais peca, a mais estéril de quantas podem reger o coração dos homens; e ides
ouvir a mais sublime delas, a mais fecunda, a mais sensível, a que pode dar
maior cópia de venturas sem contraste.
Que eu sou a Vaidade, classificada entre os vícios por alguns retóricos de
profissão; mas na realidade, a primeira das virtudes. Não olheis para este
gorro de guizos, nem para estes punhos carregados de braceletes, nem para
estas cores variegadas com que me adorno. Não olheis, digo eu, se tendes o
preconceito da Modéstia; mas se o não tendes, reparai bem que estes guizos e
tudo mais, longe de ser uma casca ilusória e vã, são a mesma polpa do fruto da
sabedoria; e reparai mais que vos chamo a todos, sem os bicocos e meneios
daquela senhora, minha mana e minha rival.
Digo a todos, porque a todos cobiço, ou sejais formosos como Paris, ou feios
como Tersites, gordos como Pança, magros como Quixote, varões e mulheres,
grandes e pequenos, verdes e maduros, todos os que compondes este mundo, e
haveis de compor o outro; a todos falo, como a galinha fala aos seus
pintinhos, quando os convoca à refeição, a saber, com Interesse, com graça,
com amor. Porque nenhum, ou raro, poderá afirmar que eu o não tenha alçado ou
consolado.
II
Onde é que eu não entro? Onde é que eu não mando alguma coisa? Vou do salão do
rico ao albergue do pobre, do palácio ao cortiço, da seda fina e roçagante ao
algodão escasso e grosseiro. Faço exceções, é certo (infelizmente!); mas, em
geral, tu que possuis, busca-me no encosto da tua otomana, entre as porcelanas
da tua baixela, na portinhola da tua carruagem; que digo? Busca-me em ti
mesmo, nas tuas botas, na tua casaca. no teu bigode; busca-me no teu próprio
coração. Tu, que não possuis nada, perscruta bem as dobras da tua estamenha,
os recessos da tua velha arca; lá me acharás entre dois vermes famintos; ou
ali, ou no fundo dos teus sapatos sem graxa, ou entre os fios da tua grenha
sem óleo.
Valeria a pena ter, se eu não realçasse os teres? Foi para escondê-lo ou
mostrá-lo, que mandaste vir de tão longe esse vaso opulento? Foi Para
escondê-lo ou mostrá-lo, que encomendaste à melhor fábrica o tecido que te
veste, a safira que te arreia, a carruagem que te leva? Foi para escondê-lo ou
mostrá-lo, que ordenaste esse festim babilônio e pediste ao pomar os melhores
vinhos? E tu, que nada tens, por que aplicas o salário de uma semana ao jantar
de uma hora, senão porque eu te possuo e te digo que alguma coisa deves
parecer melhor do que és na realidade? Por que levas ao teu casamento um
coche, tão rico e tão caro, como o do teu opulento vizinho, quando podias ir à
igreja com teus pés? Por que compras essa jóia e esse chapéu? Por que talhas o
teu vestido pelo padrão mais rebuscado, e por que te remiras ao espelho com
amor, senão porque eu te consolo da tua miséria e do teu nada, dando-te a
troco de um sacrifício grande um benefício ainda maior?
III
Quem é esse que aí vem, com os olhos no eterno azul? É um poeta; vem compondo
alguma coisa; segue o vôo caprichoso da estrofe. -- Deus te salve, Píndaro!
Estremeceu; moveu a fronte, desabrochou em riso. Que é da inspiração?
Fugiu-lhe; a estrofe perdeu-se entre as moitas; a rima esvaiu-se-lhe por entre
os dedos da memória. Não importa; fiquei eu com ele, -- eu, a musa décima, e,
portanto, o conjunto de todas as musas, pela regra dos doutores, de
Sganarello. Que ar beatífico! Que satisfação sem mescla! Quem dirá a esse
homem que uma guerra ameaça levar um milhão de outros homens? Quem dirá que a
seca devora uma porção do país? Nesta ocasião ele nada sabe, nada ouve.
Ouve-me, ouve-se; eis tudo.
Um homem caluniou-o há tempos; mas agora, ao voltar a esquina, dizem-lhe que
o caluniador o elogiou.
-- Não me fales nesse maroto.
-- Elogiou-te; disse que és um poeta enorme.
-- Outros o têm dito, mas são homens de bem, e sinceros. Será ele sincero?
-- Confessa que não conhece poeta maior.
-- Peralta! Naturalmente arrependeu-se da injustiça que me fez. Poeta enorme,
disse ele.
-- O maior de todos.
-- Não creio. O maior?
-- O maior.
-- Não contestarei nunca os seus méritos; não sou como ele que me caluniou;
isto é, não sei, disseram-mo. Diz-se tanta mentira! Tem gosto o maroto; é um
pouco estouvado às vezes, mas tem gosto. Não contestarei nunca os seus
méritos. Haverá pior coisa do que mesclar o ódio às opiniões? Que eu não lhe
tenho ódio. Oh! nenhum ódio. É estouvado, mas imparcial.
Uma semana depois, vê-lo-eis de braço com o outro, à mesa do café, à mesa do
jogo, alegres, íntimos, perdoados. E quem embotou esse ódio velho, senão eu?
Quem verteu o bálsamo do esquecimento nesses dois corações irreconciliáveis?
Eu, a caluniada amiga do gênero humano.
Dizem que o meu abraço dói. Calúnia, amados ouvintes! Não escureço a verdade;
às vezes há no mel uma pontazinha de fel; mas como eu dissolvo tudo! Chamai
aquele mesmo poeta, não Píndaro, mas Trissotin. Vê-lo-eis derrubar o carão,
estremecer, rugir, morder-se como os zoilos de Bocage. Desgosto. Convenho,
mas desgosto curto. Ele irá dali remirar-se nos próprios livros. A justiça que
um atrevido lhe negou, não lha negarão as páginas dele. Oh! A mãe que gerou o
filho, que o amamenta e acalenta, que põe nessa frágil criaturinha o mais puro
de todos os amores, essa mãe é Medéia, se a compararmos àquele engenho, que se
consola da injúria, relendo-se: porque se o amor de mãe e a mais elevada forma
do altruísmo, o dele é a mais profunda forma de egoísmo, e só há uma coisa
mais forte que o amor materno, é o amor de si próprio.
IV
Vede estoutro que palestra com um homem público. Palestra, disse eu? Não; é
o outro que fala; ele nem fala, nem ouve. Os olhos entornam-se-lhe em roda,
aos que passam, a espreitar se o vêem, se o admiram, se o invejam. Não
corteja as palavras do outro; não lhes abre sequer as portas da atenção
respeitosa. Ao contrário, parece ouvi-las com familiaridade, com indiferença,
quase com enfado. Tu, que passas, dizes contigo:
-- São íntimos; o homem público é familiar deste cidadão; talvez parente. Quem
lhe faz obter esse teu juízo, senão eu? Como eu vivo da opinião e para a
opinião, dou àquele meu aluno as vantagens que resultam de uma boa opinião,
isto é, dou-lhe tudo.
Agora, contemplai aquele que tão apressadamente oferece o braço a uma senhora.
Ela aceita-lho; quer seguir até a carruagem, e há muita gente na rua. Se a
Modéstia animara o braço do cavalheiro, ele cumprira o seu dever de
cortesania, com uma parcimônia de palavras, uma moderação de maneiras, assaz
miseráveis. Mas quem lho anima sou eu, e é por isso que ele cuida menos de
guiar a dama, do que de ser visto dos outros olhos. Por que não? Ela é bonita,
graciosa, elegante; a firmeza com que assenta o pé é verdadeiramente senhoril.
Vede como ele se inclina e bamboleia! Riu-se'? Não vos iludais com aquele riso
familiar, amplo, doméstico; ela disse apenas que o calor é grande. Mas é tão
bom rir para os outros! É tão bom fazer supor uma intimidade elegante.
Não deveríeis crer que me é vedada a sacristia? Decerto; e contudo, acho meio
de lá penetrar, uma ou outra vez, às escondidas, até às meias roxas daquela
grave dignidade, a ponto de lhe fazer esquecer as glórias do céu pelas
vanglórias da terra. Verto-lhe o meu óleo no coração, e ela sente-se melhor,
mais excelsa, mais su-blime do que esse outro ministro subalterno do altar,
que ali vai queimar o puro incenso da fé. Por que não há de ser assim, se
agora mesmo penetrou no santuário esta garrida matrona, ataviada das melhores
fitas, para vir falar ao seu, Criador? Que farfalhar! Que voltear de cabeças!
A antífona continua, a música não cessa; mas a matrona suplantou Jesus, na
atenção dos ouvintes. Ei-la que dobra as curvas, abre o livro, compõe as
rendas, murmura a oração, acomoda o leque. Traz no coração duas flores, a fé e
eu; a celeste, colheu-o no catecismo, que lhe deram aos dez anos; a terrestre
colheu-a no espelho, que lhe deram aos oito; são os seus dois testamentos e eu
sou o mais antigo.
V
Mas eu perderia o tempo, se me detivesse a mostrar um por um todos os meus
súditos; perderia o tempo e o latim. Omnia vanitas. Para que citá-los,
arrolá-los, se quase toda a terra me pertence? E digo quase, porque não há
negar que há tristezas na terra e onde há tristezas aí governa a minha irmã
bastarda, aquela que ali vedes com os olhos rio chão. Mas a alegria sobrepuja
o enfado e a alegria sou eu. Deus dá um anjo guardador a cada homem; a
natureza dá-lhe outro, e esse outro é nem mais nem menos esta vossa criada,
que recebe o homem no berço, para deixá-lo somente na cova. Que digo? Na
eternidade; porque o arranco final da modéstia, que aí lês nesse testamento,
essa recomendação de ser levado ao chão por quatro mendigos, essa cláusula sou
eu que a inspiro e dito; última e genuína vitória do meu poder, que é imitar
os meneios da outra.
Oh! A outra! Que tem ela feito no mundo que valha a pena de ser citado? Foram
as suas mãos que carregaram as pedras das Pirâmides? Foi a sua arte que
entreteceu os louros de Temístocles? Que vale a charrua do seu Cincinato, ao
pé do capelo do meu cardeal de Retz? Virtudes de cenóbios, são virtudes?
Engenhos de gabinete, são engenhos? Traga-me ela uma lista de seus feitos, de
seus heróis, de suas obras duradouras; traga-me, e eu a suplantarei,
mostrando-lhe que a vida, que a história, que os séculos nada são sem mim.
Não vos deixeis cair na tentação da Modéstia: é a virtude dos pecos. Achareis
decerto, algum filósofo, que vos louve, e pode ser que algum poeta, que vos
cante. Mas, louvaminhas e cantarolas têm a existência e o efeito da flor que a
Modéstia elegeu para emblema; cheiram bem, mas morrem depressa. Escasso é o
prazer que dão, e ao cabo definhareis na soledade. Comigo é outra coisa:
achareis, é verdade, algum filósofo que vos talhe na pele; algum frade que vos
dirá que eu sou inimiga da boa consciência. Petas! Não sou inimiga da
consciência, boa ou má; limito-me a substituí-la, quando a veio em frangalhos;
se é ainda nova, ponho-lhe diante de um espelho de cristal, vidro de aumento.
Se vos parece preferível o narcótico da Modéstia, dizei-o; mas ficai certos de
que excluireis do mundo, o fervor, a alegria, a fraternidade.
Ora, pois, cuido haver mostrado o que sou e o que ela é; e nisso mesmo
revelei a minha sinceridade, porque disse tudo, sem vexame, nem reserva; fiz o
meu próprio elogio que é vitupério, segundo um antigo rifão: mas eu não faço
caso de rifões. Vistes que sou a mãe da vida e do contentamento ' o vínculo da
sociabilidade, o conforto, o vigor a ventura dos homens; alço a uns, realço a
outros, e a todos amo; e quem é isto é tudo, e não se deixa vencer de quem não
é nada.
E reparai que nenhum grande vício se encobriu ainda comigo; ao contrário,
quando Tartufo entra em casa de Orgon dá um lenço a Dorina para que cubra os
seios. A modéstia serve de conduta a seus intentos. E por que não seria assim,
se ela ali está de olhos baixos rosto caído, boca taciturna? Poderíeis afirmar
que é Virgínia e não Locusta? Pode ser uma ou outra, porque ninguém lhe vê o
coração. Mas comigo? Quem se pode enganar com este riso franco, irradiação do
meu próprio ser; com esta face jovial, este rosto satisfeito, que um quase
nada obumbra, que outro quase nada ilumina; estes olhos, que não se escondem,
que se não esgueiram por entre as pálpebras, mas fitam serenamente o sol e as
estrelas?

VI
O quê? Credes que não é assim? Querem ver que perdi toda a minha retórica, e
que ao cabo da pregação, deixo um auditório de relapsos? Céus! Dar-se-á caso
que a minha rival vos arrebatasse outra vez? Todos o dirão ao ver a cara com
que me escuta este cavalheiro; ao ver o desdém do leque daquela matrona. Uma
levanta os ombros; outro ri de escárnio. Vejo ali um rapaz a fazer-me figas:
outro abana tristemente a cabeça; e todas, todas as pálpebras parecem baixar,
movidas por um sentimento único. Percebo, percebo! Tendes a volúpia suprema da
vaidade, que é a vaidade da modéstia.


CHERCHEZ LA FEMME []
QUEM INVENTOU esta frase, como uma advertência própria a devassar a origem de
todos os crimes, era talvez um ruim magistrado, mas, com certeza, excelente
filósofo. Como arma policial, a frase não tem valor, ou pouco e restrito; mas
aprofundai-a, e vereis tudo que ela abrange; vereis a vida inteira do homem.
Antes da sociedade, antes da família, antes das artes e do conforto, antes das
belas rendas e sedas que constituem o sonho da leitora assídua deste jornal,
antes das valsas de Strauss, dos Huguenotes, de Petrópolis, dos landaus e das
luvas de pelica; antes, muito antes do primeiro esboço da civilização, toda a
civilização estava em gérmen na mulher. Neste tempo ainda não havia pai, mas
já havia mãe. O pai era o varão adventício, erradio e fero que se ia, sem
curar da prole que deixava. A mãe ficava; guardava consigo o fruto do seu amor
casual e momentâneo, filho de suas dores e cuidados; mantinha-lhe a vida. Não
desvie a leitora os seus belos olhos desse infante bárbaro, rude e primitivo;
é talvez o milionésimo avô daquele que lhe fabricou agora o seu véu de Malines
ou Bruxelas; ou -- provável conjetura!-- é talvez o milionésimo avô de
Meyerbeer, -- a não ser que o seja do Sr. Gladstone ou da própria leitora.
Se quereis procurar a mulher, é preciso ir até lá, até esse tempo, d'ogni luce
mutto, antes dos primeiros albores. Depois, regressai. Vinde, rio abaixo dos
séculos, e onde quer que pareis, a mulher vos aparecerá, com o seu grande
influxo, algumas vezes maléfico, mas sempre irrecusável; achá-la-eis na origem
do homem e no fim dele; e se devemos aceitar a original teoria de um filósofo,
ela é quem transmite a porção intelectual do homem.
Assim, amável leitora, quando alguém vier dizer-vos que a educação da mulher é
uma grande necessidade social, não acrediteis que é a voz da adulação, mas da
verdade. O assunto é decerto prestádio à declamação; mas a idéia é justa. Não
vos queremos para reformadoras sociais, evangelizadoras de teorias abstrusas,
que mal entendeis, que em todo caso desdizem do vosso papel; mas entre isso e
a ignorância e a frivolidade, há um abismo; enchamos esse abismo.
A companheira do homem precisa entender o homem. A graça da sociedade deve
contribuir para ela mais do que com o influxo de suas qualidades tradicionais.
Enfim, é preciso que a mulher se descative de uma dependência, que lhe é
imortal, que não lhe deixa muita vez outra alternativa entre a miséria e a
devassidão.
Vindo à nossa sociedade brasileira, urge dar à mulher certa orientação que lhe
falta. Duas são as nossas classes feminis, -- uma crosta elegante fina,
superficial, dada ao gosto das sociedades artificiais e cultas; depois a
grande massa ignorante, inerte e virtuosa, mas sem impulsos, e em caso de
desamparo, sem iniciativa nem experiência. Esta tem jus a que lhe dêem os
meios necessários para a luta da vida social; e tal é a obra que ora empreende
uma instituição antiga nesta cidade, que não nomeio porque está na boca de
todos, e aliás vai antiga noutra parte desta publicação.
A ocasião é excelente para uns apanhados de estilo, uma exposição grave e
longa do papel da mulher no futuro, para uma dissertação acerca do valor da
mulher, como filha, esposa, mãe, irmã, enfermeira e mestra, tudo antiga dos
nomes de Rute e Cornélia, Récamier e a Marquesa de Alorna. Não faltaria
dizer que a mulher é a estrela que leva o homem pela vida adiante, e que
principalmente as leitoras d&#8217;A Estação a merecem o culto de todos os
espíritos elegantes. Mas estas cousas subentendem-se e não se dizem por
ociosas. Baste-nos isto: educar a mulher é educar o próprio homem, a mãe
completará o filho.


METAFÍSICA DAS ROSAS []
Pour la rose, le jardinier est immortel,
car de mémoire de rose, on n'a pas vu mouir un jardinier.
FONTENELLE

LIVRO PRIMEIRO
NO PRINCÍPIO era o Jardineiro. E o Jardineiro criou as Rosas. E tendo criado
as Rosas, criou a chácara e o jardim, com todas as coisas que neles vivem para
glória e contemplação das Rosas. Criou a palmeira, a grama. Criou as folhas,
os galhos, os troncos e botões. Criou a terra e o estrume. Criou as árvores
grandes para que amparassem o toldo azul que cobre o jardim e a chácara e ele
não caísse e esmagasse as Rosas. Criou as borboletas e os vermes. Criou o
sol, as brisas, o orvalho e as chuvas.
Grande é o Jardineiro! Suas longas pernas são feitas de tronco eterno. Os
braços são galhos que nunca morrem; a espádua é como um forte muro por onde a
erva trepa. As mãos, largas, espalham benefícios às Rosas.
Vede agora mesmo. A noite voou, amanhã clareia o céu, cruzam-se as borboletas
e os passarinhos, há uma chuva de pilipos e trimados no ar. Mas a terra
estremece. É o pé do Jardineiro que caminha para as Rosas. Vede: traz nas mãos
o regador que borrifa sobre as Rosas a água fresca e pura, e assim também
sobre as outras plantas, todas criadas para glória das Rosas. Ele o formou no
dia em que, tendo criado o sol que dá vida às Rosas, este começou a arder
sobre a terra. Ele o enche de água todas as manhãs, uma, duas, cinco, dez
vezes. Para a noite, pôs ele no ar um grande regador invisível que peneira
orvalho e quando a terra seca e o calor abafa, enche o grande regador das
chuvas que alagam a terra de água e de vida.


LIVRO II
Entretanto, as Rosas estavam tristes, porque a contemplação das coisas era
muda e os olhos dos pássaros e das borboletas não se ocupavam bastantemente
das Rosas. E o Jardineiro, vendo-as tristes, perguntou-lhes:
-- Que tendes vós, que inclinais as pétalas para o chão? Dei-vos a chácara e o
jardim; criei o sol e os ventos frescos; derramo sobre vós o orvalho e a
chuva; criei todas as plantas para que vos amem e vos contemplem. A minha mão
detém no meio do ar os grandes pássaros para que vos não esmaguem ou devorem.
Sois as princesas da terra. Por que inclinais as pétalas para o chão?
Então as Rosas murmuraram que estavam tristes porque a contemplação das coisas
era muda, e elas queriam quem cantasse os seus grandes méritos e as servisse.
O Jardineiro sacudiu a cabeça com um gesto terrível; o jardim e a chácara
estremeceram até aos fundamentos. E assim falou ele, encostado ao bastão que
trazia:
-- Dei-vos tudo e não estais satisfeitas? Criei tudo para vós e pedis mais?
Pedis a contemplação de outros olhos; ides tê-la. Vou criar um ente à minha
imagem que vos servirá, contemplará e viverá milhares e milhares para que vos
sirva e ame.
E, dizendo isto, tomou de um velho tronco de palmeira e de um tronco de
palmeira e de um facão. No alto do tronco abriu duas fendas iguais aos seus
olhos divinos, mais abaixo outra igual à boca; recortou as orelhas, alisou o
nariz, abriu-lhe os braços, as pernas, as espáduas. E, tendo feito o vulto,
soprou-lhe em cima e ficou um homem. E então lançou mão de um tronco de
laranjeira, rasgou os olhos e a boca, contornou os braços e as pernas e
soprou-lhe também em cima, e ficou uma Mulher.
E como o homem e a mulher adorassem o Jardineiro, ele disse-lhes:
-- Criei-vos para o único fim de amardes e servirdes as Rosas, sob a pena de
morte e abominação, porque eu sou o Jardineiro e elas são as senhoras da
terra, donas de tudo o que existe: o sol e chuva, o dia e a noite, o orvalho e
os ventos, os besouros, os colibris as andorinhas, as plantas todas, grandes
e pequenas, e as flor e as sementes das flores, as formigas, as borboletas, as
cigarras os filhos das cigarras.


LIVRO III
O homem e a mulher tiveram filhos e os filhos outros filhos, disseram eles
entre si:
-- O Jardineiro criou-nos para amar e servir as Rosas; façam festas e danças
para que as Rosas vivam alegres.
Então vieram à chácara e ao jardim, e bailaram e riram, e giraram em volta
das Rosas, cortejando-as e sorrindo para elas. Vieram também outros e cantaram
em verso os merecimentos das Rosas. E quando queriam falar da beleza de
alguma filha das mulheres faziam comparação com as Rosas, porque as Rosas são
as maiores belezas do Universo, elas são as senhoras de tudo o que vive e
respira.
Mas, como as Rosas parecessem enfaradas da glória que tinham no jardim,
disseram os filhos dos homens às filhas das mulheres: Façamos outras grandes
festas que as alegrem. Ouvindo isto, o jardineiro disse-lhes: - Não; colhei-as
primeiro, levai-as depois a lugar de delícias que vos indicarei.
Vieram então os filhos dos homens e as filhas colheram as Rosas, não só as
que estavam abertas como algumas ainda não desabrochadas; e depois as puseram
no peito, na cabeça ou em grandes molhos, tudo conforme ordenara o
Jardineiro. E levando-as para fora do jardim, foram com elas a um lugar de
delícias, misterioso e remoto, onde todos os filhos dos homens e todas as
filhas das mulheres as adoram prostrados no chão. E depois que o jardineiro
manda embora o sol, pega as Rosas cortadas pelos homens e pelas mulheres, e
uma por uma prega-as no toldo azul que cobre a chácara e o jardim, onde elas
ficam cintilantes durante a noite. E é assim que não faltam luzes que clareiem
a noite quando o sol vai descansar por trás das grandes árvores do acaso.
Elas brilham, elas cheiram, elas dão as cores mais lindas da terra.
Sem elas nada haveria na terra, nem o sol, nem o jardim, nem a chácara, nem os
ventos, nem as chuvas, nem os nem os homens, nem as mulheres, nada mais do que
o Jardineiro, que as tirou do seu cérebro porque elas são os pensamentos do
Jardineiro, desabrochadas no ar e postas na terra, criada para elas e para
glória delas. Grande é o Jardineiro! Grande e eterno é o pai sublime das rosas
sublimes.



JOSÉ DE ALENCAR []
CADA ANO que passa é uma expansão da glória de José de Alencar.
Outros apagam-se com o tempo; ele é dos que fulguram a mais e mais,
serenamente, sem tumulto, mas com segurança.
São assim as glórias definitivas.
Na história do romance e na do teatro, para não sair das letras, José de
Alencar escreveu as paginas que todos lemos, e que há de ler a geração futura.

O futuro nunca se engana.


CARTA A UM AMIGO [RJ. Jun. 1884.]
MEU AMIGO, -- Prometia-lhe um artigo para o livro que se vai imprimir,
comemorando mais um progresso do Liceu Literário Português, e sou obrigado a
não lhe dar nada do que era minha intenção. Tinha planeado uma apreciação
longa e minuciosa das instituições literárias e outras dos portugueses no
Brasil, faltou-me o tempo e descanso do espírito.
Escrever somente algumas reflexões acerca do papel dos portugueses na América
é cair na repetição. Louvar o ardor com que eles se organizam em associações
de beneficência, de leitura e de ensino, a tenacidade dos seus esforços, a
dedicação de todos constante e obscura, com os olhos no bem comum e no lustre
do nome coletivo, é dizer, o menos bem, o que em todos os tempos se tem
escrito, pouco depois que o Brasil se separou da mãe-pátria para continuar na
América o que a nossa língua produziu na Europa.
Não é menos sabido, -- e, porventura, é ainda mais notável, no que respeita às
associações de ensino e leitura, -- que todos esses esforços e trabalhos saem
das mãos de uma classe de homens geralmente despreocupada da vida mental.
Tem-se por efetiva e constante a incompatibilidade do ofício mercantil com os
hábitos do espírito puro; os portugueses na América não raro mostram que as
duas cousas podem ser paralelas, não inimigas, que há um arrabalde em Cartago
por uma aula de Atenas.
Desenvolver essa observação por meio de um estudo minucioso e individual das
instituições portuguesas, entre nós, -- tal era a minha idéia. Entre elas
ocuparia brilhante lugar o Liceu Literário Português, uma das mais antigas e
notáveis. Há longos anos criada, trabalhando na sombra, com diversa fortuna,
ao que parece, mas nunca extinta, nem desamparada, veio galgando os tempos até
o grau próspero em que a vemos. Homens, em cujos ombros pesam cuidados de
outra ordem e vária espécie, deram a esse grêmio o melhor das afeições, a
devoção do espírito, e um zelo que, se alguma vez afrouxou, não morreu nunca,
nem lhe entrou o desalento, e a prova e que do tronco pujante brotam novos
galhos, onde circula a mesma vida donde penderão frutos de saúde, que
incitarão a outros e ainda a outros. Cultores do pão, sabem que nem só de pão
vive o homem.
Desculpe se não acudo como quisera ao seu amável convite e creia na afeição e
estima do

MACHADO DE ASSIS


PEDRO LUIS []
JORNALISTA, poeta, deputado, administrador, ministro e homem da mais fina
sociedade fluminense, pertencia este moço à geração que começou por 1860.
Chamava-se Pedro Luís Pereira de Sousa e nasceu no município de Araruama,
Província do Rio de Janeiro, a 15 de dezembro de 1839, filho do Comendador
Luís Pereira de Sousa e de D. Maria Carlota de Viterbo e Sousa. Era formado em
ciências sociais e jurídicas pela Faculdade de S. Paulo.
Começou a vida política na folha de Flávio Farnese, a Atualidade, de
colaboração com Lafayette Rodrigues Pereira, atualmente senador, e com
Bernardo Guimarães, mavioso poeta mineiro, há pouco falecido. Ao mesmo tempo
iniciou vida de advogado no escritório de F. Otaviano.
Essa primeira fase da vida de Pedro Luís dá vontade de ir longe.
A figura de Flávio Farnese surge debaixo da pena e incita a recompor com ela
uma quadra inteira de fé e de entusiasmo liberal. Ao lado de Farnese, de
Lafayette, de Pedro Luís, vieram outros nomes que, ou cresceram também, ou
pararam de todo, por morte ou por outras causas. Sobre tal tempo é passado um
quarto de século, o espaço de uma vida ou de um reinado. Olha-se para ele com
saudade e com orgulho.
Conheci Pedro Luís na imprensa. Íamos ao Senado tomar nota dos debates, ele,
Bernardo Guimarães e eu, cada qual para o seu jornal. Bernardo Guimarães era
da geração anterior, companheiro de Álvares de Azevedo, mas realmente não
tinha idade; não a teve nunca. A nota juvenil era nele a expressão de humor e
do talento,
Nem Bernardo nem eu íamos para a milícia política; Pedro Luís dentro de pouco
foi eleito deputado pelo 2.º distrito da Província do Rio de Janeiro com os
conselheiros Manuel de Jesus Valdetaro e Eduardo de Andrade Pinto. A estréia
de Padre Luís na tribuna foi um grande sucesso do tempo, e está comemorada nos
jornais com a justiça que merecia. Tratava-se de um projeto concedendo um
pedaço de terra a um Padre Janrard, lazarista. Padre Luís fez desse negócio
insignificante uma batalha de eloquência, e proferiu um discurso cheio de
grande alento liberal. Surdiram-lhe em frente dous adversários respeitáveis:
Monsenhor Pinto de Campos, que reunia aos sentimentos de conservador o caráter
sacerdotal e o Dr. Junqueira queira, atual senador: eram dous nomes feitos e
tanto bastava a honrar o estreante orador.
As vicissitudes políticas fizeram-se sentir em breve.
Pedro Luís não foi reeleito na legislatura seguinte. Em 1868 a situação
liberal, o Conselheiro Otaviano tratou da funda Reforma, e convidou Padre
Luís, que ali trabalhou ao lado flor do partido.
Então, como antes, cultivou as letras, deixando algumas composições notáveis,
como "Os Voluntários da Morte", "Terribilis Dea "Tiradentes" e "Nunes
Machado". A primeira destas tinha sido r citada por ele mesmo em uma casa da
Rua da Quitanda, onde se reuniam alguns amigos e homens de letras; e foi uma
revelação de primeira ordem. Recitada pouco depois no teatro e divulgada pela
imprensa, correu o império e atravessou o oceano, sendo reproduzida em
Lisboa, donde o Visconde de Castilho escreveu ao poeta dizendo-lhe que essa
ode era um rugido de leão.
Todas as demais composições tiveram o mesmo efeito. São, na verdade, cheias de
grande vigor poético, raro calor e movimento lírico.
Não tardou que a política ativa o tomasse inteiramente. Em 1877 subiu ao poder
o Partido Liberal e ele tornou à Câmara dos Deputado, representando a
Província do Rio de Janeiro. A 28 de março de 1880, organizando o Sr. Senador
Saraiva o seu ministério, confiou a Pedro Luís a pasta dos negócios
estrangeiros, para a qual parecia indicá-lo especialmente as qualidades
pessoais. Nem ocupou somente essa pasta: foi sucessivamente ministro interino
da marinha, do império e da agricultura.
No ministério da agricultura, que ele regeu duas vezes, e a segunda por morte
do Conselheiro Buarque de Macedo, encontramo-nos os dous, trabalhando
juntos, como em 1860, mas ele agora era ministro de Estado, e eu tão-somente
oficial de gabinete. Cito esta circunstância para afirmar com o meu testemunho
pessoal, que esse moço suposto sibarita e indolente, era nada menos que um
trabalhador ativo, zeloso do cargo e da pessoa; todos os que o praticaram de
perto podem atestar isto mesmo. Deixou o seu nome ligado a muitos atos de
administração interior ou de natureza diplomática.
Posta em execução a reforma eleitoral, obra do próprio ministério dele, o
Conselheiro Pedro Luís, que então era ministro de duas pastas, não conseguiu
ser eleito. Aceitou a derrota com o bom humor que lhe era próprio, embora
tivesse de padecer na legítima ambição política; mas estava moço e forte, e a
derrota era das que laureiam. Não ter algumas centenas de votos é apenas não
dispor da confiança de outras tantas pessoas, cousa que não prejulga nada. O
desdouro seria cair mal, e ele caiu com gentileza.
Pouco tempo depois foi nomeado presidente da província da Bahia donde voltou
enfermo, com a morte em si. Na Bahia deixou verdadeiras saudades; era estimado
de toda a gente, respeitado e benquisto.
O organismo, porém, começou a deperecer, e o repouso e tratamento
tornaram-se-lhe indispensáveis; alcançou a demissão do cargo e regressou à
vida particular.
Faleceu na sua fazenda da Barra Mansa, às 4 horas da madrugada do dia 16 de
julho do corrente ano de 1884.
Era casado com D. Amélia Valim Pereira de Sousa, filha Comendador Manuel de
Aguiar Valim, fazendeiro do município Bananal e chefe ali do Partido
Conservador. Um dos jornais Rio de Janeiro mencionou esta circunstância:
Tal era a amenidade do caráter de Pedro Luís, que, a despeito de suas
opiniões políticas, seu sogro o prezava e distinguia muito, assim como outros
muitos fazendeiros importantes daquele município, sem distinção de partido.
Ninguém que o praticou intimamente deixou de trazer a impressão de uma
verdadeira personalidade, podendo acrescentar-se que e não deu tudo que era de
esperar do seu talento, e que valia ainda mais do que a sua reputação.
Posto que um tanto céptico, era sensível, profundamente sensível; tinha
instrução variada, gosto fino e puro, nada trivial nem choco era cheio de bons
ditos, e observador como raros.


ARTUR BARREIROS []
MEU CARO VALENTIM MAGALHÕES. -- Não sei que lhe diga que possa adiantar ao que
sabe do nosso Artur Barreiros. Conhecemo-lo: tanto basta para dizer que o
amamos. Era um dos melhores da sua gera geração inteligente, estudioso, severo
consigo, entusiasta das cousas belas dourando essas qualidades com um caráter
exemplar e raro: e se não deu tudo o que podia dar, foi porque cuidados de
outra ordem lhe tomaram o espírito nos últimos tempos. Creio que, em tendo a
vida repousada, aumentaria os frutos do seu talento, tão apropriado aos
estudos longos e solitários e ao trabalho polido e refletido.
A fortuna, porém, nunca teve grandes olhos benignos para o nosso amigo; e a
natureza, que o fez probo, não o fez insensível. Daí algumas síncopes do
animo, e umas intermitência de misantropia a que vieram arrancá-lo ultimamente
a esposa que tomou e os dois, filhinhos que lhe sobrevieram. Essa mesma
fortuna parece ter ajustado as cousas de modo que ele, tão austero e
recolhido, deixasse a vida em pleno carnaval. Não era preciso tanto para
mostrar contraste e a confusão das cousas humanas.
Não posso lembrar-me dele, sem recordar também outro Artur, o Artur de
Oliveira, ambos tão meus amigos. A mesma moléstia os levou, aos trinta anos,
casados de pouco. A feição do espírito era
diferente neles, mas uma cousa os aproxima, além da minha saudade, é que
também o Artur de Oliveira não deu tudo o que podia, e podia muito.
Ao escrever-lhe as primeiras linhas desta carta, chovia copiosamente, e o ar
estava carregado e sombrio. Agora, porém, urna nesga azul do céu, não sei se
duradoura ou não, parece dizer-nos que nada está mudado para ele, que é
eterno. Um homem de mais ou de menos importa o mesmo que a folha que vamos
arrancar à árvore para juncar o chão das nossas festas. Que nos importa a
folha?
Esta advertência, que não chega a abater a mocidade tinge de melancolia os que
já não são rapazes. Estes têm atrás de si uma longa fileira de mortos. Cada um
dos recentes lembra-lhe os outros. Alguns desses mortos encheram a vida com
ações ou escritos, e fizeram ecoar o nome além dos limites da cidade. Artur
Barreiros ( e não é dos menores motivos de tristeza) gastou o aço em
labutações estranhas ao seu gosto particular; entre este e a necessidade não
hesitou nunca, e acanhou em parte as faculdades por um excessivo sentimento de
modéstia e desconfiança. A extrema desconfiança não e menos perniciosa que a
extrema presunção. "As dúvidas são traidoras", escreveu Shakespeare; e pode-se
dizer que muita vez o foram com o nosso amigo. O tempo dar-lhe-ia a completa
vitória; mas o mesmo tempo o levou, depois de longa e cruel enfermidade. Não
levará a nossa saudade nem a estima que lhes devemos.

MACHADO DE ASSIS


ANTES A ROCHA TARPÉIA ... []
COMO É que me achei ali em cima? Era um pedaço de telhado, inclinado, velho,
estreitinho, com cinco palmos de muro por trás. Não sei se fui ali buscar
alguma coisa; parece que sim, mas qualquer que ela fosse, tinha caído ou
voado, já não estava comigo. Eu é que fiquei ali no alto, sozinho, sem nenhum
meio de voltar abaixo.
Começara a entender que era pesadelo. Já lá vão alguns anos. A rua ou estrada
em que se achava aquela construção era deserta. Eu, do alto, olhava para todos
os lados sem descobrir sombra de homem. Nada que me salvasse; pau nem corda.
Ia aflito de um para outro lado, vagaroso, cauteloso, porque as telhas eram
antigas, e também porque o menor descuido far-me-ia escorregar e ir ao chão.
Continuava a Olhar ao longe, a ver se aparecia um salvador; olhava também para
baixo, mas a idéia de dar um pulo era impossível; a altura era grande, a morte
certa.
De repente, sem saber donde tinham vindo, vi embaixo algumas pessoas, em
pequeno número, andando, umas da direita, outras da esquerda. Bradei de cima à
que passava mais perto.
-- Ó senhor acuda-me!
Mas o sujeito não ouviu nada, e foi andando. Bradei a outro e outro; todos iam
passando sem ouvir a minha voz. Eu, parado, cosido ao muro, gritava mais alto,
como um trovão. O temor ia crescendo, a vertigem começava; e eu gritava que me
acudissem, que me salvassem a vida, pela escada, corda, um pau, pedia um
lençol, ao menos, que me apanhasse na queda. Tudo era vão. Das pessoas que
passavam só restavam três, depois duas, depois uma. Bradei a essa última com
todas as forças que me restavam:
-- Acuda! Acuda!
Era um rapaz, vestido de novo, que ia andando e mirando as botas e as calças.
Não me ouviu, continuou a andar, e desapareceu.
Ficando só, nem por isso cessei de gritar. Não via ninguém, mas via o perigo.
A aflição era já insuportável, o terror chegara ao paroxismo...Olhava para
baixo, olhava para longe, bradava que me
acudissem, e tinha a cabeça tonta e os cabelos em pé...Não sei se cheguei a
cair; de repente, achei-me na cama acordado.
Respirei à larga, com o sentimento da pessoa que sai de um pesadelo. Mas aqui
deu-se um fenômeno particular; livre de perigo, entrei a saboreá-lo. Em
verdade, tivera alguns minutos ou segundos de sensações extraordinárias; vivi
de puro terror, vertigem e desespero, entre a vida e a morte, como uma peteca
entre as mãos destes dois mistérios. A certeza, porém, de que tinha sido sonho
dava agora outro aspecto ao perigo, e trazia à alma o desejo vago de achar-me
nele outra vez. Que tinha, se era sonho?
Ia assim pensando, com os olhos fechados, meio adormecido; não esquecera as
circunstâncias do pesadelo, e a certeza de que não chegaria a cair acendeu de
todo o desejo de achar-me outra vez no alto do muro, desamparado e aterrado.
Então apertei muito os olhos para não despertar de todo, e para que a
imaginação não tivesse tempo de passar a outra ordem de visões.
Dormi logo. Os sonhos vieram vindo, aos pedaços, aqui uma voz, ali um perfil,
grupos de gente, de casas, um morro, gás, sol, trinta, mil coisas confusas que
se cosiam e descosiam. De repente vi um telhado, lembrei-me do outro, e como
dormira com a esperança de reatar o pesadelo, tive uma sensação misturada de
gosto e pavor. Era o telhado de uma casa: a casa tinha uma janela; à janela
estava um homem; este homem cumprimentou-me risonho, abriu a porta, fez-me
entrar, fechou a porta outra vez e meteu a chave no bolso.
-- Que é isto? Perguntei-lhe.
-- É para que nos não incomodem, acudiu ele risonho.
Contou-me depois que trazia um livro entre mãos, tinha uma demanda e era
candidato a um lugar de deputado: três matérias infinitas. Falou-me do livro,
trezentas páginas, com citações, notas, apêndices: referiu-me a doutrina, o
método, o estilo, leu-me três capítulos. Gabei-os, leu-me mais quatro. Depois,
enrolando o manuscrito disse-me que previa as críticas e objeções; declarou
quais eram e refutou-as por uma.
Eu sentado, afiava o ouvido, a ver se aparecia alguém; pedia a Deus um
salteador ou a justiça, que arrombasse a porta. Ele, se falou em justiça, foi
para contar-me a demanda, que era uma ladroeira do adversário, mas havia de
vencê-lo a todo custo. Não me ocultou nada; ouvi o motivo e todos os trâmites
da causa, com anedotas pelo meio, uma do escrivão que estava vendido ao
adversário, outra de um procurador, as conversações com os juízes, três
acórdãos e os respectivos fundamentos. À força de pleitear, o homem conhecia
muito texto, decretos, leis, ordenações, citava os livros e os parágrafos,
salpicava tudo de perdigotos latinos. Às vezes, falava andando para descrever
o terreno, - era uma questão de terras - aqui o rio, descendo por ali. pegando
com o outro mais abaixo: deste lado as terras de Fulano, daquele as de
Sicrano. . . Uma ladroeira clara, que me parecia?
-- Que sim.
Enxugou a testa, e passou à candidatura. Era legítima; não negava que pudesse
haver outras aceitáveis; mas a dele era a mais legítima. Tinha serviços ao
partido, não era aí qualquer coisa, não vinha pedir esmola de votos. E contava
os serviços prestados em vinte anos de lutas eleitorais, luta de imprensa,
apoio aos amigos, obediência aos chefes. E isso não se premiava? Devia ceder o
seu lugar a filhos? Leu a circular; tinha três páginas apenas; com os
comentários verbais, sete. E era a um homem destes que queriam deter o passo?
Podiam intrigá-lo; ele sabia que o estavam intrigando, choviam cartas
anônimas... Que chovessem! Podiam vasculhar no passado dele, não achariam
nada, nada mais que uma vida pura, e, modéstia à parte, um modelo de
excelentes qualidades. Começou pobre, muito pobre; se tinha alguma cousa era
graças ao trabalho e à economia, &#8212; as duas alavancas do progresso.
Uma só dessas velhas alavancas que ali estivesse bastava para deitar a porta
abaixo; mas nem uma nem outra, era só ele, que prosseguia, dizendo-me tudo o
que era, o que não era, o que seria, e o que teria sido e o que viria a ser,
um Hércules, que limparia a estrebaria de Augias, &#8212; um varão forte, que não
pedia mais que tempo e justiça. Fizessem-lhe justiça, dando-lhe votos e ele se
incumbiria do resto. E o resto foi ainda muito mais do, que pensei. . . Eu,
abatido, olhava para a porta, e a porta calada, impenetrável, não me dava a
menor esperança. Lasciati ogni speranza...
Não, cá está mais que a esperança; a realidade deu outra vez comigo acordado,
na cama. Era ainda noite alta; mas nem por isso tentei, como da primeira vez,
conciliar o sono. Fui ler para não dormir. Por quê? Um homem, um livro, uma
demanda uma candidatura, porque é que temi reavê-los, se ia antes, de cara
alegre, meter-me outra vez no telhado em que... ?
Leitor, a razão é simples. Cuido que há na vida em perigo um sabor particular
e atrativo; mas na paciência em perigo não há nada. A gente recorda-se de um
abismo com prazer; não se pode recordar de um maçante sem pavor. Antes a rocha
Tarpéia que um autor de má nota.


O FUTURO DOS ARGENTINOS []
QUANDO hoje contemplo o rápido progresso da nação Argentina, recordo-me sempre
da primeira e única vez que vi o Dr. Sarmiento, presidente que sucedeu ao
General Mitre no governo da república.
Foi em 1868. Estávamos alguns amigos no Club Fluminense, Praça da
Constituição, casa onde é hoje a Secretaria do Império. Eram nove horas da
noite. Vimos entrar na sala do chá um homem que ali se hospedara na véspera.
Não era moço; olhos grandes e inteligentes, barba raspada, um tanto cheio.
Demorou-se pouco tempo; de quando em quando, olhava para nós, que o
examinávamos também, sem saber quem era. Era justamente o Dr. Sarmiento, vinha
dos Estados Unidos, onde representava a Confederação Argentina, e donde saíra
porque acabava de ser eleito presidente da república. Tinha estado com o
imperador, e vinha de uma sessão científica. Deus ou três dias depois, seguiu
para Buenos Aires.
A impressão que nos deixara esse homem foi, em verdade, profunda. Naquela
visão rápida do presidente eleito pode-se dizer que nos aparecia o futuro da
nação Argentina.
Com efeito, uma nação abafada pelo despotismo, sangrada pelas revoluções, na
qual o poder não decorria mais que da força vencedora e da vontade pessoal,
apresentava este espetáculo interessante: um general patriota, que alguns anos
antes, após uma revolução e uma batalha decisiva, fora elevado ao poder e
fundara a liberdade constitucional, ia entregar tranqüilamente as rédeas do
Estado não a outro general triunfante, depois de nova revolução, mas a um
simples legista, ausente da pátria, eleito livremente por seus concidadãos.
Era evidente que esse povo, apesar da escola em que aprendera, tinha a aptidão
da liberdade; era claro também, que os seus homens públicos, em meio das
competências que os separavam, e porventura ainda os separam, sabiam unir-se
para um fim comum e superior.
Sarmiento chegou a Buenos Aires o General Mitre entregou-lhe o poder, tal qual
o constituíra e preservara da violência e do desânimo. Então os amigos deste
claro e subido espírito lembraram-se (se a minha reminiscência é exata) de lhe
dar uma prova de afeto e admiração, um como prêmio da sua lealdade política, e
criaram-lhe um jornal, essa mesma Nación, que é hoje uma das primeira folhas
da América do Sul. Fato não menos expressivo que o outro.
Vinte anos depois, a nação Argentina chegou ao ponto em que se acha, próspera,
rica, pacífica, naturalmente ambiciosa de progresso e esplendor. Esqueceu a
opressão, desaprendeu a caudilhagem; conhece os benefícios da liberdade e da
ordem. Vinte anos apenas; digamos vinte e oito, porque a campanha de Mitre foi
o primeiro passo dessa marcha vitoriosa.
Agora, no dia em que os argentinos celebram a sua festa constitucional
lembro-me daqueles tempos, e comparo-os com estes, quando, em vez de soldados
que os vão auxiliar a derrocar uma tirania odiosa, mandamos-lhe uma simples
comissão de jornalistas, uma em baixada da opinião à opinião; tão confiados
somos de que não há já entre nós melhor campo de combate. Oxalá caminhem
sempre o Império e a República, de mãos dadas, prósperos e amigos.


JOAQUIM SERRA []
QUANDO HÁ DIAS fui enterrar o meu querido Serra, vi que naquele féretro ia
também uma parte da minha juventude. Logo de manhã relembrei-a toda. Enquanto
a vida chamava ao combate diurno todas as suas legiões infinitas, tão alegre e
indiferente, com. se não acabasse de perder na véspera um dos mais robustos
legionários, recolhi-me às memórias de outro tempo, fui reler algumas cartas
do meu amado amigo.
Cartas íntimas e familiares, mais letras que política. As primeiras embora
velhas, eram ainda moças, daquela mocidade que ele sabia comunicar às coisas
que tratava. Relê-las era conversar com o morto cuja alma ali estava derramada
no papel, tão viçosa como no primeiro dia. A cintilação do espírito era a
mesma; a frase brotava e corria pela folha abaixo, como a água de um córrego,
rumorosa e fresca.
Os dedos que tinham lavrado aquelas folhas de outro tempo, quando os vi depois
cruzados, sobre o cadáver, lívidos e hirtos, não pude deixar de os contemplar
longamente, recordando as páginas públicas que trabalharam, e que ele soltou
ao vento, ora com o desperdício de um engenho fértil, ora com a tenacidade de
apóstolo. Versos sobre versos, prosa e mais prosa, artigos de toda casta,
políticos,
literários, o epigrama fino, o epíteto certo ou jovial, e, durante os últimos
anos, a luta pela abolição, tudo caiu daqueles dedos infatigáveis prestadios,
tão cheios de força como de desinteresse.
A morte trouxe ao espírito de todos o contraste singular entre os méritos de
Joaquim Serra e os seus destinos políticos. Se a vida política é, como a
demais vida universal, uma luta em que a vitória há de caber ao mais
aparelhado, aí deve estar a explicação do fenômeno. Podemos concluir então,
que não bastam o talento e a dedicação, se não é que o próprio talento pode
faltar, às vezes, sem dano algum para a carreira do homem. A posse de outras
qualidades pode ser também negativa para os efeitos do combate. Serra possuía
a virtude do sacrifício pessoal, e mui cedo a aprendeu e cumpriu, segundo o
que ele próprio mandou me dizer um dia da Paraíba do Norte, em 10 de março de
1867:
Já te escrevi algumas linhas acerca da minha adiada viagem em maio. Foi
mister. . . Não sei mesmo como se exigem sacrifícios da ordem daqueles que
ultimamente se me têm exigido. Se eu contasse tudo, talvez não o acreditarias.
Enfim, não te verei em maio, mas hei de ir ao Rio este ano.
Não me referiu, nem então, nem depois, outras particularidades, porque também
possuía o dom de esquecer, -- negativo e impróprio da vida política.
Era modesto até à reclusão absoluta. Suas idéias saíam todas endossadas por
pseudônimos. Eram como moedas de ouro, sem efígie, com o próprio e único valor
do metal. Daí o fenômeno observado ainda este ano. Quando chegou o dia da
vitória abolicionista, todos Os seus valentes companheiros de batalha citaram
gloriosamente o nome de Joaquim Serra entre os discípulos da primeira hora,
entre os mais estrênuos, fortes e devotados; mas a multidão não o repetiu não
o conhecia. Ela, que nunca desaprendeu de aclamar e agradecer os benefícios,
não sabia nada do homem que, no momento em que a nação inteira celebrava o
grande ato, recolhia-se satisfeito ao seio da família. Tendo ajudado a
soletrar a liberdade, Joaquim Serra ia continuar a ler o amor aos que lhe
ensinavam todos os dias a consolação.
Mas eu vou além. Creio que Joaquim Serra era principalmente um artista. Amava
a justiça e a liberdade, pela razão de amar também o arquitrave e a coluna,
por uma necessidade de estética social.
Onde outros podiam ver artigos de programa, intuitos partidários, revolução
econômica, Joaquim Serra via uma retificação e um complemento; e, porque era
bom e punha em tudo a sua alma inteira, pugnou pela correção da ordem pública,
cheio daquela tenacidade silenciosa, se assim se pode dizer, de um escritor de
todos os dias, intrépido e generoso, sem pavor e sem reproche.
Não importa, pois, que os destinos políticos de Joaquim Serra hajam desmentido
dos seus méritos pessoais. A história destes últimos anos lhe dará um couto
luminoso. Outrossim, recolherá mais de uma amostra daquele estilo tão dele,
feito de simplicidade, e sagacidade, correntio, franco, fácil, jovial. sem
afetação nem reticências. Não era o humour de Swift, que não sorri, sequer. Ao
contrário, o nosso querido morto ria largamente, ria como Voltaire, com a
mesma graça transparente e fina, e sem o fel de umas frases nem a vingança
cruel de outras, que compõem a ironia do velho filósofo.


A MORTE DE FRANCISCO OTAVIANO []
MORREU um homem. Homem pelo que sofreu; ele mesmo o definiu, em belos versos,
quando disse que passar pela vida sem padecer, era ser apenas um espectro de
homem, não era ser homem. Raros terão padecido mais; nenhum com resignação
maior. Homem ainda pelo complexo de qualidades superiores de alma e de
espírito, de sentimentos e de raciocínio, raros e fortes, tais que o
aparelharam para a luta, que o fizeram artista e político, mestre da pena
elegante e vibrante. Vous êtes un homme, monsieur Goethe, foi à saudação de
Napoleão ao criador do Fausto. E o nosso Otaviano, que não trocara a alma pela
juventude, como o herói alemão, mas que a trouxera sempre verde, a despeito da
dor cruel que o roía, que não desaprendera na alegria boa e fecunda, nem a
faculdade de amar de admirar e de crer, que adorava a pátria como a arte, o
nosso Otaviano era deveras um homem. A melhor homenagem àquele egrégio
espírito é a tristeza dos seus adversários.


SECRETARIA DA AGRICULTURA [11 set. 1890]
O SR. DR. JOÃO BRÍGID0 escreveu no Libertador do Ceará, de 20 do mês findo, um
artigo, a que é mister dar alguma resposta. Não recebi a folha, mas várias
pessoas a receberam, naturalmente o artigo marcado, como está no exemplar que
um amigo me fez chegar às mãos. Este sistema não é novo, mas é útil; é o que
se pode chamar uma carta anônima assinada.
Trata-se das minas da Viçosa. O Sr. João Brígido é advogado de Antônio
Rodrigues Carneiro, que contende com o Barão de Ibiapaba. De duas petições
deste há certidões, uma do Sr.Guimarães, meu respeitável antecessor, datada
de 9 de janeiro de 1889, e outra minha, datada de 18 de maio. Pouco depois
de expedida, escreveu-me o Sr. Dr. João Brígido, dizendo que a certidão de
janeiro dava as duas petições assinadas pelo Sr. Conselheiro Tristão de
Alencar Araripe, como procurador, e a de maio pelo Dr. Artur de Alencar
Ararípe, filho daquele cidadão.
Concluía assim:
Uma das duas certidões, portanto, há de não ser verdadeira e dá-se o caso de
ter sido induzido em erro, ou V. ou o Sr. Barão de Guimarães, pelo oficial que
extraiu uma das duas certidões. Trazendo este fato ao conhecimento de V., cuja
probidade folgo de reconhecer, peço-lhe a explicação que julgar razoável, e
sendo preciso me obrigo a produzir os dous documentos que estão a se
desmentirem.
Respondi que, tendo verificado nas petições aludidas que a assinatura era
justamente a do Dr. Artur de Alencar Ararípe, não podia suspeitar do oficial
que extraiu a certidão; acrescentei que o empregado que extraíra a primeira já
não estava na secretaria, e concluí que não podia adiantar mais nada.
Contentou-se o Sr. Dr. João Brígido com a resposta, tanto que, chegando do
Ceará, para tratar da questão das minas, veio ter comigo e falou-me, não uma,
nem duas, mas muitas vezes, e sempre o achei cortês e afável. Ouvi-lhe a
história do litígio da Viçosa, sobre a qual me deu vários folhetos. Pediu-me
umas certidões; e dizendo-lhe o Sr. Dr. Tomás Cochrane chefe da seção por
onde corre a questão, que as certidões só podiam ser dadas depois que os
papéis baixassem do gabinete do Sr. ministro, aceitou a resposta naturalmente,
sem fazer nenhuma objeção, que seria escusada. Ao retirar-se para o Ceará,
veio despedir-se, sem ressentimento, menos ainda indignação.
Eis aparece agora o artigo do Libertador, em que o Sr. Dr. João Brígido me
acusa pela carta que lhe escrevi, há um ano, pela demora das certidões, diz
que os créditos da secretaria desceram tanto, no regime anterior que muitos
ministros saíram com reputação prejudicada; e, finalmente, escreve isto: que
eu, ao passo que lhe guardava sigilo inviolável acerca das conclusões do meu
parecer, não o guardava para o plutocrata, que, pelo vapor de 30 de junho ou
outro, assegurara que o meu parecer era a seu favor.
Não sei o que assegurou o Sr. Barão de Ibiapaba, a quem só de vista conheço.
Desde, porém, que eu afirmo que jamais confiei a ninguém, sobre nenhum negócio
da secretaria, a minha opinião dada ou por dar nos papéis que examino &#8212; e
desafio a que alguém me diga o contrário &#8212; creio responder suficientemente ao
artigo do Sr Dr. João Brígido.
Plutocrata exprime bem a insinuação maliciosa do Sr. Dr. João Brígido; e o
processo de Filipe de Macedônia, frase empregada no mesmo período, ainda
melhor exprime o seu pensamento. Eu sou mais moderado; faço ao Sr. Dr. João
Brígido a justiça de crer que em tudo o que escreveu contra mim não teve a
menor convicção.


HENRIQUE CHAVES []
HENRIQUE CHAVES é um desmentido a duas velhas superstições. Nasceu em dia 13 e
sexta-feira. Não podia nascer pior e, entretanto, é um dos homens felizes
deste mundo. Em vez de ruins fadas, em volta do berço, cantando-lhe o coro
melancólico dos caiporas, desceram anjos do céu, que lhe anunciaram muitas
coisas futuras. Para os que nunca viram Lisboa, e têm pena, como o poeta,
Henrique Chaves é ainda um venturoso: nasceu nela. Enfim, conta apenas
quarenta e quatro anos, feitos em janeiro último.
Um dia, tinha apenas vinte anos, transportou-se de Lisboa ao 1 de Janeiro.
Para explicar esta viagem, é preciso remontar ao primeiro consulado de César.
Este grande homem, assumindo aquela magistratura, teve idéia de fazer publicar
os trabalhos do seriado romano. Não era ainda a taquigrafia; mas, com boa
vontade, boa e muita podemos achar ali o gérmen deste invento moderno. A
taquigrafia trouxe Henrique Chaves ao Rio de Janeiro. Foi essa arte mágica de
pôr no papel, integralmente, as idéias e as falas de um orador que o fez
atravessar o oceano, pelos anos de 1869.
Refiro-me à taquigrafia política. Ela o pôs em contacto com nossos
parlamentares dos últimos vinte anos. Há de haver na vida do taquígrafo
parlamentar uma boa parte anedótica, que merece só por si a pena de umas
memórias. As emendas, bastam as emendas dos discursos, as posturas novas, o
trabalho do toucador, as trunfas desfeitas e refeitas, com os grampos de
erudição, ou os cabelos apenas alisados, basta só isso para caracterizar o
modo de cada orador, e dar-nos perfis interessantes. Um velho taquígrafo conto
me, quase com lágrimas, um caso mui particular. Passou-se há trinta anos. Um
senador, orador medíocre, fizera um discurso mais que medíocre, trinta dias
antes de acabar a sessão. Recebeu as notas taquigráficas no dia imediato, e só
as restituiu três meses depois sessão acabada. O discurso vinha todo por letra
dele, e não havia uma só palavra das proferidas; era outro e pior. Ajuntai a
esta parte anedótica aquela outra de psicologia que deve ser a principal, com
uma estatística das palavras, um estudo dos oradores cansativos, apesar de
pausados, ou por isso mesmo, e dos que não cansam, posto que velozes.
Mas uma coisa é o ganha-pão, outra é a vocação. Henrique Chaves trazia nas
veias o sangue do jornalismo. Tem a facilidade, a naturalidade, o gosto e o
tato precisos a este ofício tão árduo e tão duro. Pega de um assunto, o
primeiro à mão, o preciso, o do dia e compõe o artigo com aquela presteza e
lucidez que a folha diária exige, e com a nota própria da ocasião. Não lhe
peçam longos períodos de exposição, nem deduções complicadas. Cai logo in
medias res, como a regra clássica dos poemas. As primeiras palavras parecem
uma conversação. O leitor acaba supondo ter feito um monólogo.
Não esqueçamos que o seu temperamento é o da própria folha em que escreve, a
Gazeta de Notícias, que trouxe ao jornalismo desta cidade outra nota e diversa
feição. Vinte anos antes de encetar a car-reira, não sei se o faria, &#8212; ao
menos, com igual amor. A imprensa de há trinta anos não tinha este movimento
vertiginoso. A notícia era como a rima de Boileau, une esclave et ne doit
qu'obéir. Teve o seu Treze de Maio, e passou da posição subalterna à sala de
recepção.
Os quarenta e quatro anos de Henrique Chaves podem subir a sessenta e
seis; nunca passarão dos vinte e dous. Não falo por causa de ilusões; ninguém
lhas peça, que é o mesmo que pedir um santo ao diabo. Uma das feições do seu
espírito é a incredulidade a res-peito de um sem-número de coisas que se
impõem pela aparência. Outra das feições é a alegria; ele ri bem e largo,
comunicativamente. A conversação é viva é lépida. Considerai que ele é o
avesso do medalhão. Considerai também que é difícil saber aturar uma narração
enfadonha com mais fina arte. Não se impacienta, não suspira, puxa o bigode; o
narrador cuida que é um sinal de atenção, e ele pensa em outra coisa.


HENRIQUE LOMBAERTS []
DURANTE MUITOS anos entretive com Henrique Lombaerts as mais amistosas
relações. Era um homem bom, e bastava isso para fazer sentir a perda dele; mas
era também um chefe cabal da casa herdada de seu pai e continuada por ele com
tanto zelo e esforço. Posto que enfermo, nunca deixou de ser o mesmo homem de
trabalho. Tinha amor ao estabelecimento que achou fundado, fez prosperar e
transmitiu ao seu digno amigo e parente, atual chefe. A Estação e outras
publicações acharam nele editor esclarecido e pontual. Era desinteressado, em
prejuízo dos negócios a cuja frente esteve até o último dia útil da sua
atividade.
Não é demais dizer que foi um exemplo a vida deste homem, um exemplo especial,
por que no esforço continuado e eficaz, ao trabalho de todos os dias e de
todas as horas não juntou o ruído exterior. Relativamente expirou obscuro; o
tempo que lhe sobrava da direção da casa era dado à esposa, e, quando perdeu a
esposa, às suas recordações de viúvo.


FERREIRA DE ARAÚJO [RJ, 20 set. 1900.]
MEU CARO HENRIQUE.-- Esqueçamos a morte do nosso amigo. Nem sempre haverá
tamanho contraste entre a vida e a morte de alguém. Araújo tinha direito de
falecer entre uma linha grave e outra jovial, como indo a passeio risonho e
feliz. A sorte determinou outra cousa.
Quem o via por aquelas noitadas de estudante, e o acompanhou de perto ou de
longe, na vida de escritor, de cidadão e de pai de família, sabe que não se
perdeu nele somente um jornalista emérito e um diretor seguro; perdeu-se
também a perpétua alegria. Ninguém desliga dele essa feição característica.
Ninguém esqueceu as boas horas que ele fazia viver ao pé de si. Nenhum
melancólico praticou com ele que não sentisse de empréstimo outro
temperamento. Vimo-lo debater os negócios públicos, expor e analisar os
problemas do dia, com a gravidade e a ponderação que eles impunham, mas o riso
vinha prestes retomar o lugar que era seu, e o bom humor expelia a cólera e a
indignação deste mundo.
Tal era o condão daquela mocidade. A madureza não alterou a alegria dos anos
verdes. Na velhice ela seria como a planta que se agarra ao muro antigo. E por
que esta virtude é ordinariamente gêmea da bondade, o nosso amigo era bom. Se
teve desgostos , -- e devias tê-los porque era sensível, -- esqueceu-os
depressa. O ressentimento era-lhe insuportável. Era desses espíritos feitos
para a hora presente, que não padecem das ânsias do futuro, e escassamente
terão saudades terão saudades do passado; bastam-se a si mesmos, na mesma
hora que vai passando, viva e garrida, cheia de promessas eternas.
Mal se compreende que uma vida assim acabasse tão longa e doloridamente;
mas, refletindo melhor, não podia ser de outra maneira. A inimizade entre a
vida e a morte tem gradações; não admira que uma seja feroz na proporção da
lepidez da outra. É o modo de balancear as duas colunas da escrita.
Agora que ele se foi, podemos avaliar bem as qual homem. Esse polemista não
deixou um inimigo. Pronto, fácil, franco, não poupando a verdade, não
infringindo a cortesia, liberal sem partido, patriota sem confissão, atento
aos fatos e aos homens, cumpriu o seu ofício com pontualidade, largueza de
ânimo e aquele estilo vivo e conversado que era o encanto dos seus escritos.
As letras foram os primeiros ensaios de uma pena que nunca as esqueceu
inteiramente. O teatro foi a sua primeira sedução de autor.
Vindo à imprensa diária, não cedeu ao acaso, mas à própria inclinação do
talento. Quando fundou esta folha, começou alguma cousa que, trazendo vida
nova ao jornalismo, ia também com o seu espírito vivaz e saltitante, de vária
feição, curioso e original. Já está dito redito o efeito prodigioso desta
folha, desde que apareceu; podia ser a novidade, mas foram também a direção e
o movimento que ele lhe imprimiu.
Nem se contentou de si e dos companheiros da primeira hora. Foi chamando a
todos os que podiam construir alguma cousa, os nomes feitos e as vocações
novas. Bastava falar a língua do espírito para vir a esta assembléia, ocupar
um lugar e discretear com os outros. A condição era ter o alento da vida e a
nota do interesse. Que poetasse, que contasse, que dissesse do passado, do
presente ou do futuro, da política ou da literatura, da ciência ou das artes,
que maldissesse também, contanto que dissesse bem ou com bom humor, a todos
aceitava e buscava, para tornar a Gazeta um centro comum de atividade.
A todos esses operários bastava fazê-los companheiros, mas era difícil viver
com Araújo sem acabar amigo dele, nem ele consigo que se não fizesse amigo de
todos. A Gazeta ficou sendo assim uma comunhão em que o dissentimento de
idéias, quando algum houvesse, não atacaria o coração, que era um para todos.
Tu que eras dos seus mais íntimos, meu caro Henrique Chaves, dirás se o nosso
amigo não foi sempre isso mesmo. Quanto à admiração e afeição públicas, já
todas as vozes idôneas proclamaram o grau em que ele as possuiu, sem quebra de
tempo, nem reserva de pessoa. O enterramento foi uma aclamação muda, triste e
unânime. As exéquias de amanhã dir-lhe-ão o último adeus da terra e da sua
terra.

MACHADO DE ASSIS


A PAIXÃO DE JESUS []
QUEM RELÊ neste dia os evangelistas, por mais que os traga no coração ou de
memória, acha uma comoção nova na tragédia do Calvário. A tragédia é velha;
os lances que a compõem passaram, desde a prisão de Jesus até a condenação
judaica e a sanção romana; as horas daquele dia acabaram com a noite de
sexta-feira, mas a comoção fica sempre nova; por mais que os séculos se tenham
acumulado sobre tais livros. A causa, independente da fé que acende o coração
dos homens, bem se pode dizer de duas ordens.
Não é preciso falar de uma. A história daqueles que, pelos tempos adiante,
vieram confessando a Jesus, padecendo e morrendo por Ele, e o grande espírito
soprado do Evangelho ao mundo antigo, a força da doutrina, a fortaleza da
crença, a extensão dos sacrifícios, a obra dos místicos, tudo se acumula
naturalmente diante dos olhos, como efeito daquelas páginas primitivas. Não
menos surge à vista o furor dos que combateram, pelos séculos fora, as máximas
cristãs ouvidas, escritas e guardadas, alguma vez esquecidas, outras
desentendidas, mas acabando sempre por animar as gerações fiéis. Tudo isso,
porém, que será a história ulterior, é neste dia dominado pela simples
narração evangélica.
A narração basta. Já lá vai a entrada de Jesus em Jerusalém escolhida para o
drama da paixão. A carreira estava acabada. Os ensinamentos do jovem profeta
corriam as cidades e as aldeias, e todos se podiam dizer compendiados naquele
sermão da montanha, que, por palavras simples e chãs, exprimia uma doutrina
moral nova, a humildade e a resignação, o perdão das injúrias, o amor dos
inimigos, a prece pelo que calunia e persegue, a esmola às escondidas, a
oração secreta. Nessa prédica da montanha a lei e os profetas são confessados,
mas a reforma é proclamada aos ventos da terra. Nela está a promessa do
benefício aos que padecem, a consolação aos que choram, a justiça aos que dela
tiverem fome e sede. Jerusalém destina-se a vê-lo morrer. Foi logo à entrada,
quando gente do povo correu a receber Jesus, juncando o chão de palmas e ramos
e aclamando o nome daquele que lhe vinha trazer a boa-nova, foi desde logo que
os escribas e fariseus cuidaram de lhe dar perseguição e morte, não o fazendo
sem demora, por medo do povo que recebia Jesus com hosanas de amor e de
alegria. Jesus reatou então os seus atos e parábolas, mostrando o que era e o
que trazia no coração. Os fariseus viram que ele expelia do templo os que lá
vendiam e compravam, e ouviram que pregava no templo ou fora dele a doutrina
com que vinha extirpar os pecados da terra. Alguma vez as imprecações que lhe
saiam da boca, eram contra eles próprios: &#8220;Ai de vós, escribas e fariseus
hipócritas, porque devorais as casas das viúvas, fazendo longas orações ... "
-- Ai de vós, escribas e fariseus, porque alimpais o que está por fora do copo
e do prato, e por dentro estais cheios de rapinas e de imundícies ... " -- Ai
de vós, escribas e fariseus hipócritas, por que rodeais o mar e a terra por
fazerdes um prosélito e depois de o terdes feito, o fazeis em dobro mais digno
do inferno do que vós". Era assim que bradava contra os que já dali tinham
saído alguma vez, a outras partes, a fim de o enganar e enlear e ouviram que
ele os penetrava e respondia com o que era acertado e cabido. As imprecações
seguiram assim muitas e ásperas, mas de envolta com elas a alma boa e pura de
Jesus voltava àquela doce e familiar metáfora contra a cidade de Jerusalém:
"Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados, quantas
vezes quis eu ajuntar teus filhos, do modo que uma galinha recolhe debaixo das
asas os seus pintos, e tu não o quiseste!"
A diferença que vai desta fala grave e dura àquele sermão da montanha, em que
Jesus incluiu a primeira e ingênua oração da futura igreja, claramente mostra
o desespero do jovem profeta de Nazaré. Não havia esperar de homens que a tal
ponto abusavam do templo e da lei, e, em nome de ambos, afivelavam a máscara
de piedade para atrair os que buscavam as doutrinas antigas de Israel. Sabendo
que tinha de morrer às mãos deles, não lhes quis certamente negar o perdão que
viessem a merecer, mas condenar neles a obra da iniqüidade e da perdição. Todo
o mal recente de Israel estava nos que se davam falsamente por defensores do
bem antigo.
A comoção nova que achamos na narração evangélica abrange o espaço contado da
ceia à morte de Jesus. Judeus futuros, ainda de hoje, ao passo que negam a
culpa da sua raça, confessam não poder ler sem mágoa essa página sombria. Em
verdade, a melancolia do drama é grande, não menor que a do próprio Cristo,
quando declara ter a alma mortalmente triste. Era já depois da ceia, naquele
horto de Gethsemani, a sós com Pedro e mais dous, enquanto outros discípulos
dormiam, foi ali que ele confessou aquela profunda aflição. Tinha já predito a
proximidade da morte. A aversão dos escribas e fariseus, indo a crescer com o
poder moral do Nazareno, punha em ação o desejo de o levar ao julgamento e ao
suplício cumprir assim o prenúncio do jovem Mestre. Tudo foi realizado: a
noite não acabou sem que, pela traição de Iscariotes, Jesus levado à casa de
Anás e Caifás e, pela negação de Pedro , se visse abandonado dos seus amigos.
Ele predissera os dois atos, que um pagou pelo suicídio e o outro pelas
lágrimas do arrependimento.
Talvez ambos pudessem ser dispensados, não menos o primeiro que o segundo, por
mais que o grupo dos discípulos escondesse o Mestre aos olhos dos inimigos. Se
assim fosse, o suplício seria igualmente certo, mas a tragédia divina não
teria aquela nota humana nem tudo é lealdade, nem tudo é resistência na mesma
família.
A parte humana nasceu ainda, não já naqueles que deviam amor a Jesus, se não
nos que o perseguiam; tal foi esse processo de poucas horas. Jesus ouviu o
interrogatório dos seus atos religiosos e políticos. Era acusado de querer
destruir a lei de Moisés e não aceitar a dominação romana fazendo-se Rei dos
Judeus. "Mestre, devemos pagar o imposto a César? ", Tinham-lhe perguntado
antes para arrastá-lo a alguma palavra de rebelião. A resposta (uma de tantas
palavras que passaram daqueles livros às línguas dos homens) foi que era
preciso dar a César o que era de César e a Deus o que era de Deus. Caifás e o
Conselho acabaram pela condenação; para o crime político e para a pena de
morte era preciso Pilatos. Segundo o sacerdote da lei, era preciso que um
homem morresse pelo povo.
Pilatos foi ainda a nota humana, e acaso mais humana que todas. Esse
magistrado romano, que, depois de interrogar a Cristo, não lhe acha delito
nenhum, que, ainda querendo salvá-lo da morte, pensa em soltá-lo pelo direito
que lhe cabia em tal ocasião, mas consulta ao povo, e ouve deste que solte
Barrabás, e condene a Jesus; que obedece ao clamor público, e faz a única
ressalva de lavar as mãos inocentes de tal sangue: esse homem não finge sequer
a convicção. A consciência brada contra o crime que lhe querem impor, mas a
fraqueza cede aos que lho pedem, e entrega o acusado à morte.
A morte, fecho da Paixão, termo de uma vida breve e cheia, foi cercada de
todos os elementos que a podiam fazer mais trágica. O riso deu as mãos à
ferocidade, e o açoite alternou com a coroa de espinhos. Fizeram do profeta um
rei de praça, com a púrpura aos ombros e a vara na mão. Vieram injúrias por
atos e palavras, agravação do suplício dado entre dois ladrões; mais ainda nos
falta alguma cousa para completar a parte humana daquela cena última.
As mulheres vieram rodear o instrumento do suplício. Com outro ânimo que
faltou alguma vez aos homens, elas trouxeram a consolação e a paciência aos
pés do crucificado. Nenhum egoísmo as conservou longe, nenhum tremor as fez
estremecer de susto. A piedade era como alma nova incutida naqueles corpos
feitos para ela. Com os olhos nos derradeiros lampejos de vida, que estavam a
sair daquele corpo, aguardavam que este fosse amortalhado e sepultado Para lhe
darem os bálsamos e os aromas.
Tal foi a última nota humana, docemente humana, que completou drama da
estreita Jerusalém. Ela, e o mais que se passou entre a noite de um dia e a
tarde de outro completaram o prefácio dos tempos. A doutrina produzirá os seus
efeitos, a história será deduzida de uma lei, superior ao conselho dos
homens. Quando nada houvesse ou nenhuma fosse, a simples crise da Paixão era
de sobra para dar uma comoção nova aos que lêem neste dia os evangelistas.














Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
Apoio
CNPq
UFSC/PRPG/FUNPESQUISA














Página de Entrada



PATKULL
Gonçalves Dias

PERSONAGENS:

PATKULL, gentil-homem da Livônia.
PAIK EL, alquimista.
NAMRY ROMHOR, noiva de Patkull.
BERTHA, namorada de Paikel.
WOLF, pajem.
UM CRIADO


ATO PRIMEIRO
Uma sala em casa de Namry Romhor – uma porta no fundo – portas laterais –
mobília da época.

CENA I
NAMRY ROMHOR senta a ao pé de uma mesa e BERTHA

NAMRY – Que horas são, Bertha?
BERTHA – Ainda há pouco anoiteceu, minha senhora.
NAMRY – Ainda há pouco! Pesado e triste corre agora o tempo, como um velho
enfermo e lento! (Pausa) Chove?
BERTHA – Não, minha senhora, não; neva somente. (Chegando-se à janela e
correndo pouco a cortina) Se quisésseis chegar a esta janela, veríeis que majestoso
espetáculo é prolongar os olhos por esta planície, que se estende a perder de vista, toda
prateada, e luzindo um pouco com a luz pálida e vacilante da lua... tão belo... que prazer
não é ver estes flocos de neve que vêm descendo sobre a terra e lento e lento ! quereis
vir, senhora?
NAMRY (Como falando consigo) – Houve tempo em que a vida também para
mim corria fagueira e leve. Minhas noites eram cheias de sonhos de inocência e de
ventura... Meus dias tranqüilos e felizes. – Nada mais desejava – ou brisa ou tempestade
sempre acharam meu coração venturoso e o prazer que se me ria nos lábios! E hoje?!...
Quem me dera ver-me longe deste céu tristonho – destas nuvens carregadas – desta
atmosfera de mau agouro.
BERTHA – Perdoai, Senhora – mas eu pensava que em parte nenhuma seria
melhor a vida que na terra, em que a provamos. Tem encantos a terra, onde na infância
gravamos passos mal seguros – têm encantos os sítios, que nos recordam dias mais
felizes, que todos nós gozamos – rico ou pobre – : o céu que nossos olhos primeiro
encontraram; o sol que nos afagou no berço, como olho vigilante de mãe; e a língua que
nós falamos e que outra língua nunca pode suprir!
NAMRY – Assim pensei, Bertha, assim pensei, e quem então me dissesse que
este seria o meu desejo de hoje, certo que em mim não acharia crédito. Mas eu já tenho
sobejos motivos para ser triste, para mais os desejar. Queria alguma coisa que me
distraísse! Queria ver essa terra tão antiga, e que mais que as outras, dizem bela, onde
reina contínua primavera, onde o céu rutila sempre grande, onde a noite equivale aos
nossos dias! Queria ver essa terra! Nápoles, a cidade afortunada, com seu vulcão
fumegando noite e dia; com seu golfo tão risonho e pitoresco; Veneza, a cidade de
encantos e prodígios, onde de contínuo se escuta ao longe o triste cantar dos gon-

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doleiros, e a barca que passa silenciosamente com o seu fanal na proa, e o mascara de
traje oriental, que se perde na arcadaria de um palácio inabitado; talvez que então
pensasse menos sobre mim, Bertha; e seria ainda uma fortuna.
BERTHA – Sois infeliz? !
NAMRY – Infeliz?! Vês tu que daria meus títulos de não sei quantos avós – meu
ducado que vale um reino – minhas terras, minhas jóias – meu brasão – tudo o que me
cerca de adulações, de lisonjas, de galanteios – tudo – tudo – e até o meu nome, para
que me chamasse simplesmente – Bertha. Foi meu nome quem me trouxe a desventura!
Na tua classe não há preconceitos de nomes, de brasões; não há lei dura e inflexível da
vontade de um pai severo e orgulhoso. Não há nada –, nada, absolutamente nada:
porque são menos os preconceitos quanto mais se aproximam da terra, e alguns palmos
abaixo nem uns!
BERTHA – Mal pecado que já fiz tão negra experiência e não desci de tão a1to.
Crede-me, Senhora – amargo é o pão do infortúnio e da sujeição. É viver para os outros
e não para si. Não é de mim que eu falo – amável para com todos muito mais o foste
para comigo – e tanto que mais lágrimas me fez derramar a vossa bondade, que meu
infortúnio. Mas sofrer insulto e repreensões, sempre curvada e humilhada aos pés do
mais rico. – Sempre de um para outro senhor – sem esperanças de melhor sorte, nem
minguadas – nem ao longe – muito ao longe – no extremo de uma vida de espinhos e de
sofrer – oh! que é uma vida bem triste esta assim vivida!
NAMRY – Também tu, Bertha? (Refletindo um pouco) Vem cá – senta-te bem
perto de mim... Estimo saber que és infiel, Bertha; por egoísmo? Que importa? Todo
este bulício de prazer e de alegria me pesa no coração – todo este arruído de passos, de
vozes, todos estes cantos de amor e de esperanças, me desesperam porque já não tenho
amor nem esperanças! Não me interrompas... aflige-me tudo isto que me cerca, que me
parece respirar ledice e contentamento; e eu só no meio de tudo isto?! Estimo saber que
és infeliz. – Eu precisava de alguém que me pudesse compreender: preciso desabafar o
que trago no coração, e que me tortura todos os momentos da vida. – Felizmente que te
encontrei!
Contar-me-ás tuas penas e eu te confiarei as minhas. – Ao menos no infortúnio
seremos irmãs.
BERTHA (Com a mão sobre o coração) – É meu segredo; não me pode livrar
dos desgostos por que tenho passado, mas pode poupar os novos.
NAMRY – Não tens ainda em mim bastante confiança?! É que tu não sabes o
que é guardar um segredo no mais fundo da alma. Um segredo que é o pensamento de
todos os dias, de todos os instantes, que nos prende alma e coração – que nos mina e
consome a existência, que nos esmaga e a martiriza. Falarei eu, Bertha; falarei; – porque
tenho necessidade de dizer o que encerra o meu pobre coração – falarei, porque preciso
de um peito sobre que possa derramar as lágrimas, que já não posso sorver. Escuta-me.
Outra que não fosse eu daria graças à sua boa estrela por lhe ter deparado com o amor
de Patkull. – É um homem patriota e nobre. Os reis se calaram na sua presença porque a
sua voz era de verdade e consciência. Seus inimigos o temeram na guerra, porque o seu
braço era de ferro e sua vontade inflexível. – Os seus compatriotas o adoram porque
sacrificou por eles seus bens que um rei invejaria e o seu futuro, que prometia ser tão
brilhante. E no exílio, na pobreza imerecida, no meio de quanto aviltamento lhe podia
arremessar a Suécia, sempre se ouviu a sua voz que chamava os seus patrícios à
liberdade, mais forte que a destruição de reinos e monarquias – do que o barulho das
armas de Carlos XII – Pedro I e do rei Augusto. E este homem trocou tudo por mim.
Meu pai, a quem ele mais que uma vez salvou a vida no meio dos combates me pediu no
seu leito de morte que lhe pagasse esta dívida de reconhecimento e de amizade E eu

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prometi, Bertha; prometi porque já tinha dado bastantes desgostos a meu pobre pai, para
lhe negar este último pedido ao despedir-se da vida – porque não queria que o pobre
velho saísse do mundo desesperado, com a maldição a esvoaçar nos lábios quando ele
julgava granjear-me um nome e um apoio...
E no entanto eu nunca amei este homem, que tanto me ama. Seus extremos me
enfastiam; e na minha consciência sinto de lhe não poder dar amor em troca de amor
tamanho. (Baixo)
– Eu amo a outrem Bertha: a outrem com quem vivi os primeiros anos da minha
vida, a outrem com quem troquei amor e juramentos, a outrem com quem talvez me não
casasse ainda não havendo estes impedimentos, porque meu pai lhe negou a minha mão,
e o chamou de cara um cavaleiro que deslustrava a sua nobreza com essa arte diabólica
de Alquimia. E ele calou-se – Paikel...
BERTHA (Indo para se levantar) – Pa ikel?!
NAMRY (Como admirada) – Paikel, sim, conheces-lo?... (Encarando-a)
BERTHA (Sentando-se) – Nada; não, minha senhora; parecia-me que já tinha
ouvido pronunciar esse nome; não sei por que me vem ele agora à memória!
NAMRY (Observando-a) – Paikel calou-se. Nesse instante agradeci
sinceramente essa delicadeza da parte dele: julguei então generosidade o que agora me
vem em dúvida de cobardia.
BERTHA – Dizem-no valente!
NAMRY – Ele desamparou-me, fugiu vergonhosamente sem mais se dar de
mim!
BERTHA – Presumiu talvez que as palavras do pai não eram sem o
consentimento da filha!
NAMRY – Talvez! Porém, quem tão breve se esquece de que ama – que assim a
traiu, também se esquecerá e trairá o seu amigo.
BERTHA – Ele é nobre.
NAMRY (Mais forte) – Ele jogaria o ducado de seu pai; venderia sua irmã se a
tivesse; seu brasão, se alguma coisa lhe rendesse para as consumir nas suas diabólicas
experiências – é um infame!
BERTHA – É um homem honrado.
NAMRY (Rindo-se) – Melhor o conheces que dizias – Bertha! E bastante
interessas por ele – vai – outro dia me contarás a tua história. (Bertha sai. Olhando-a
sair) Também o ama – minha ciada, minha riva1!... (Assenta-se e fica pensativa)

(Entra Patkull – manso – encosta-se à cadeira em que Namry está sentada. Fica
contemplando-a um pouco tristemente.)

CENA II

PATKULL – Sempre triste.
NAMRY ( Sobressaltada e levantando-se) – Senhor Patkull
PATKULL – Por que me tratas tu por senhor? Entre amantes que breve serão
esposos – tu – é um delicioso tratamento, que alimenta o amor e a confiança – Senta-te,
Namry (Ele também se assenta) Vinha eu com o peito cheio de prazer e de contenta-
mento, vinha ansioso por te ver, vinha feliz e venturoso – ao passar da tua porta –
quando te vi tão triste e pensativa, também eu me entristeci contigo, e pensei que o amor
de teu esposo mal supriria o deserto que teu pai te deixou no coração!
NAMRY – Meu pai era bom!
PATKULL – Nem eu te crimino o sofrimento: ele era meu amigo! senti a sua

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morte como se fora a de um irmão, como se fora a morte de um pai – bem que ele me
deixasse um legado a que mal se exaltariam as minhas esperanças nas minhas noites de
amor e de insônia. Deixou-me a tua mão, que eu não aceitaria por certo se julgasse que a
devia somente à obediência.
NAMRY – És generoso, Patkull!
PATKULL – Por que me falas tu em generosidade? Quem te pede
agradecimentos? Nada faço por ti que o não deva fazer. – Olha, por vezes uma idéia de
amor e de egoísmo me atravessa o pensamento. Eu quisera conhecer-te aldeã humilde e
simples – só – com a tua pureza e formosura – e eu quisera ser o homem rico e poderoso
por que tudo se curvasse às tuas ordens, para que te pudesse transportar para um palácio
de maravilha e de encantos, para que eu fizesse da tua vida um paraíso, e da minha alma
um templo para a tua alma.
NAMRY – Tens mais do que te posso merecer. Teu amor é o amor com que se
adora a Deus e aos anjos; demais para uma mulher que é uma frágil criatura.
PATKULL – Não é demais para ti. – E contudo eu te amo como neste mundo se
pode amar, como se ama a uma coisa pura e bela, como se ama uma flor encantadora,
como se ama o azul de um céu e de um lago, como se ama o sol e as estrelas – como se
ama um instrumento que se escuta no silêncio da noite – como se ama o perfume e a
harmonia. Assim é que eu te amo – mais do que te posso dizer, mais do que te posso
explicar – mais do que pode exprimir um pensamento, que é teu; uma pulsação do peito,
que é tua. Oh! Que não possa exprimir a linguagem do coração o falar rude e franco de
um soldado que só tem vivido no meio do estrépito e da carnagem, vida de movimento e
de guerra. Oh! Que não possa minha alma estalar este invólucro de lodo, e trazer-me lá
dos céus a expressão do que eu sinto por ti?
Namry, tu verias; então o que é o amor deste homem já maduro e sério, e que até
hoje tem conservado sua alma virgem de todo amor; e debalde teu pensamento se
abismaria em sondar a profundidade desse seu sentir tão ardente, de que nem ele mesmo
conhece a intensidade.
NAMRY – Tu amas muito, Patkull! Esse teu amor me amedronta mais por ti que
por mim.
Dizem que o pensamento do homem gravita sempre em torno de fantasmas e de
ilusões.
Pensa bem, Patkull. Talvez que num dia, mesmo antes do matrimônio, se perca o
colorido dessas tuas quimeras de amor; – depois dele poderás achar que a vida
doméstica e prosaica é muito fria e insuficiente para uma alma sedenta de emoções,
como a tua – seria de perder a razão o acordar repentinamente desse sonho; e a culpa
seria tua porque foste tu quem o forjaste.
PATKULL – Como são feiticeiras essas tuas dúvidas do coração! És o amor que
o comprime, e tu julgas prudência minguar-lhe a força e a intensidade. Não – não é
quimera ver-te assim tão nobre e tão bela respirando melancolia e suavidade em todos
os teus movimentos. Não; não é ilusão o fogo tão puro e tão expressivo que dimana dos
teu olhos. Não; não é frieza que eu receio de ti. Quando te vi tão sentida e penalizada
com a perda de teu pai; quando vi com quanto apego tinhas ligado tua vida à vida dele;
então senti quamanha era a fonte de sensibilidade que encerravas, quão forte e enérgico
devia ser o teu amor, quando o tivesses – que cedo ou tarde despontaria; foi também
então que compreendi como a vida leve e graciosa escoaria nas asas do tempo, vivida a
sós contigo e com o teu amor! Então amei: então compreendi que havia outra felicidade
que não o arruído de um campo de batalha: outra magia numa voz de ternura, que eu
ansiava, que no estrondo ou no estertor de moribundos, outra embriaguez, que não a da
vitória: então compreendi a vida que até ali mal pudera decifrar: amei; e o tempo que

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dantes se arrastava vagaroso e lento – hoje passa sobre mim mal apercebido e todo
concentrado no amor; e a vida me parece mais radiante e mais afortunada – assim – do
que vista através duma atmosfera de pó e de sangue; radiante e mais bela passada a sós
contigo.
NAMRY (Abraçando-o) – Meu bom Patkull.
PATKULL (Retendo-a nos braços – encara-a um pouco, como extasiado) –
Ainda há pouco que eu teria nos lábios um sorriso de compaixão e incredulidade parar
aquele que me dissesse a embriaguez com que enleia os sentidos do homem um som
argentino de voz, que dos ouvidos resvala ao coração, uns olhos que entornam em
nossos olhos mágico fluido de amor; uns braços que nos cingem, que nos alteiam além
da terra, uns peitos que fogosos contra nós palpitam. Não – tal não crera; e hoje ... sinto
por ti o que se não diz no falar dos homens, no cantar dos bardos; uma coisa que na terra
não tem nome, e que os anjos nos céus, entre o coro dos astros talvez modulem nas suas
liras douro, quando à Virgem-Mãe levantam incensos de louvores.
PATKULL – Assim! Chama-me sempre por meu nome: nunca o julguei tão
lindo antes que a tua voz o pronunciasse. O teu... mesmo o teu – me parece despido de
encantos em comparação desse nome, que me enamora, quando tu o pronuncias –
Patkull?! Não – não era assim que tu dizias – Patkull!! Não – não era assim. Donde
roubas tu essa harmonia, que só encontro em ti? – Donde o roubas?! (Pensando) Namry,
às vezes me pergunto na minha consciência se não é possíve1 que um anjo se
transformasse em ser humano, conservando ainda resquícios da sua divindade, porque tu
és meu bom anjo – Namry ; paz do coração encontrei a teu lado como no silêncio de
uma noite puramente bela. – Então pesa-me do tempo já passado, não por feitos maus; o
que fiz foi bom, foi justo; mas por te não haver conhecido, Namry – porque a flor da
minha mocidade desfolhei-a eu em tropeços e barrancos, – nas intrigas de gabinete e em
lutas com reis, porque pouco tempo me resta para viver, porque em um dia meus
cabelos apareceram brancos como a neve, que embranquece o píncaro de um rochedo
num dia – ao principiar do inverno ; porque eu me tornarei velho e curvado com o peso
dos anos e dos trabalhos, quando tu brilharás com todo o esplendor da tua beleza, com
todo o fogo dos anos e da mocidade.
NAMRY – Estás triste, Patkull? Triste te afundaste em recordações do passado?!
Meu amigo, quem de nós que elevantar o sudário desse morto não encontrará debaixo
dele um pesar e um desacorçoamento?! Quem de nós?! Temos todos nossos pesares;
bem felizes quando nossos amigos o compreendem e nos podem consolar! Eu sofri
muito; derramei lágrimas tristes em silêncio e no retiro; meu pesar tinha – e no peito;
cansei-me de sofrer sozinha, disse-o a alguém; não achei piedade nem simpatia; mas fui
sobejamente recompensada; achei uma traição – inocente porque fui eu quem a pro-
voquei. – Breve seremos unidos, Patkull; talvez que a mulher saiba cumprir melhor os
deveres de esposa, do que a amante os de namorada. Então esqueçamo-nos do que foi, o
que em breve não tornará a voltar.
PATKULL – Em bem que não, voltará! Assim também se pudessem abismar no
esquecimento recordações do que amargou nossa vida, a memória sempre viva do que
foi, e um brado contínuo de vingança, que nos ferve na alma e não passa do
pensamento. Minha vida tem sido uma luta contra o sofrimento, um contraste de miséria
e de grandeza. Namry, não me recordo nem de jogos, nem de passatempos da infância,
nem de parceiros de folguedos, nem de passeios à margem dum regato, ou a corrida
afanosa e inocente por um prado florido entre flores e verdura atrás de uma borboleta,
ou de outro inseto brilhante – de nada disto me recordo, porque nada disto desfrutei. Um
dia quando me entendi, estava num lugar escuro e frio; era uma prisão de Estado; era
funda a prisão, a terra lodosa e encharcada, e alguns molhos de palha. Bem alto estava

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uma fresta, por onde enfiava um raio baço de sol de inverno. Ao meu lado uma mulher
que seria bela em outros tempos, porém que eu via descorada e miserável com as faces
fundas, e o cabelo enxovalhado e solto. Além, um homem alto – magro – pálido – com
os olhos vacilantes e luzentes, o cabelo em desordem e braços cruzados. Seu rosto metia
medo; às vezes uma contração nervosa lhe abalava o corpo inteiro, e tão seus cabelos se
eriçavam, e caíam pouco depois como árvores que o vento curva a seu bom grado; e os
dentes rangiam e batiam com força como num acesso de febre. Era horrível vê-lo assim,
e contudo, tirante disso, o dirias um espectro. Esse homem doido era meu pai, essa
mulher morta, minha mãe e nada mais sei deles. E eles ambos me bradam vingança
porque morreram ambos de fome; e eu ainda os não vinguei! À noite, em alguma
marcha forçada e silenciosa eu tenho visto essa visão, que caminha sempre diante de
mim – Quando deitado na tenda – à espera da batalha, um pouco repousava – ainda via
essa visão. Quando contigo, ainda me aparece a sombra de meu pai, que me pede contas
do que fiz e do que poderia ter feito. Pois bem, Namry, eu direi como tu: esqueçamo-nos
do que foi esqueçamo-nos de tudo, seja nossa vida o amor – sejam nossos dias instantes
de ventura – vivamos sós, só nós – E quando à noite me sentires ansioso e delirante com
a fronte banhada em suor, e com o peito oprimido de um horrível pesadelo – tu me
chamarás, não é assim? E eu acordarei num paraíso, acordarei feliz quando vir teus
olhos sobre meus olhos; e um sorriso nos teus lábios, e tua mão, que me enxuga as
bagas de suor.
NAMRY – Patkull, meu amigo, por que te deixas levar destas idéias, que me
aterrorizam? Por que esses pensamentos de vingança? Não estás cansado de sofrer? –
Crê-me; é curta a vida para ser desperdiçada em ódios e tormentos. Patkull, teu pai
mesmo que agora ressurgisse do sepulcro certo se doeria de ti – e te pedira o perdão
daqueles que o
maltrataram, porque se os mártires se recordam nos céus do que na terra
padeceram, também se esquecem dos que fizeram padecer; Patkull – esquece-te disso.
PATKULL – Eu já te disse, minha alma é tua; são teus meus pensamentos,
minha vida é tua. (Abraçados)

CENA III
Os mesmos e WOLF

WOLF – Senhor Patkull?
PATKULL – Entra, Wolf – entra – que novas trazes?
WOLF – É chegado o estrangeiro que me dissestes conduzisse aqui – Aqui está e
vos aguarda.
PATKULL – Dize-lhe que entre. (O pajem sai) Namry tinha-me esquecido de te
prevenir disto e contudo era essa minha intenção quando te vim falar. É um meu amigo.
Diz que me traz notícias importantes, e que mas quisera comunicar em lugar seguro. –
Escolhi a tua casa: porque a minha, afora este pajem, está cheia de espiões do rei Carlos.
NAMRY – Escusas pedir, quando podes mandar. – Faz o que te aprouver –
Patkull

CENA IV
Os mesmos e PAIKEL, vestido de jornada. Patkull vai recebê-lo, Paikel e Namry páram, encarando-se.

PATKULL – Entra, meu amigo – entra sem receios – certo que não me
esperavas achar de companhia. – Entra! – Quê? Dar-se-á acaso que vos conheçais.
PAIKEL – Sim – conheço-a, porém é possível que outro tanto não aconteça à
senhora Duquesa. As pessoas indiferentes usam deixar pouca impressão.

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NAMRY – Bem vindo sejais, Senhor Paikel.
PATKULL – Melhor – estimo bem que a conheças, Paikel – estimo-o muito.
Escusado será elogiá-la; porque quem uma vez tratou com a Duquesa de Mecklenburg
conhece quão insuficientes são as palavras para a retratar. – É minha mulher, Palkel.
PAIKEL – Tua mulher?!
PATKULL – Brevemente o será, e tão boa estréia foi a tua que assistirás aos
desposórios do teu amigo – dar-me-ás este prazer?
PAIKEL – Sim, sim, mas primeiro deixa-me congratular contigo pela tua boa
fortuna; mais feliz do que eu; só a ti poderia eu dar parabéns duma dita que não pude
gozar. (Com intenção) Aceitareis meus parabéns, senhora Duquesa?
NAMRY – Por que não, Senhor Paikel? De tão bom grado os destes ao vosso
amigo – tão francamente lhe cedestes uma fortuna que poderia ser a vossa – dissestes
que seria faltar ao reconhecimento não vô-los aceitar – mil vezes obrigada, Senhor
Paikel.
PATKULL – Basta de civilidades. Paikel, serás tão amigo da esposa como o és
do esposo: e certo que algumas vezes te acontecerá esquecer-te das tuas locubrações
científicas e do ouro que procuras, quando topares com um verdadeiro diamante.
PAIKEL – Mas já te esqueceste que tinha de te falar?
PATKULL – Pelo contrário, lembro-me tanto que já pedi esta casa a Namry;
estaremos aqui mais à nossa vontade, e como querias, longe de suspeitas.
PAIKEL – Bom será, porque é de segredo o que tenho de te comunicar; e
contudo a senhora Duquesa poderá assistir à nossa prática.
NAMRY – Ainda quando eu vos pudesse ouvir, sem dúvida que tereis muito que
vos dizer, depois de tantos anos de separação; assim estareis com mais franqueza. Se de
alguma coisa careceres – chamarás, Patkull.

CENAV

PATKULL (Vê-a sair) – É um anjo, Paikel – esta mulher é um anjo de bondade
e candura.
PAIKEL – Dize antes que é uma Armida. – Aqui estás tu novo Reinaldo, no teu
jardim de encantos – a descansar das fadigas da guerra no seio da moleza e da
voluptuosidade. E mal pecado, que eu não tenho o espelho onde possas ver quanto
caíste de tão alto que estavas.
PATKULL – Tenho eu, Paikel; tenho no coração alegria e contentamento –
tenho na alma tranqüilidade e descanso – tenho amor que me embeleza todos os
momentos da vida; sou feliz, e quem fosse meu amigo não me quisera ver desgraçado.
PAIKEL – É certo quanto me tinham dito!... E na minha consciência, eu que te
conhecia de bem perto, apelidei calúnia quanto de ti me diziam.
PATKULL – Fizeste mal. O que há no mundo tão seguro e inabalável por que
nos possamos constituir seus garantes? Não há prudente que diga: deste pão não
comerei: é uma palavra de verdade, entre todas as verdades que prega o Evangelho. Há
pouco tempo um rei desceu do trono ao cadafalso; e era um bom rei Carlos I. À árvore
gigante que do cimo de um rochedo derrama a sombra até a profundez do vale, em
alguns momentos baqueia em terra mais humilde que os bustos que a cercavam.
Que muito?
PAIKEL – Há contudo, um povo que te adora, e que pensa que o seu nome te
faria estremecer na sepultura. Dize, Patkull, neste retiro – não chegaram ainda aos teus
ouvidos seus sofrimentos, não retumbou um grito desesperado – não ouviste teus
irmãos, que te chamavam em auxílio?

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PATKULL – Que mais querem de mim? Dei por eles quarenta anos da minha
vida – sacrifiquei por eles meus bens e o meu repouso. Sofri por eles o degredo e traguei
o negro pão de um mendigo: derramei por eles meu sangue no campo da batalha – que
mais querem de mim?
PAIKEL – Fizeste muito, Patkull, mas não tudo. Quererias tu perder quanto tens
feito? Que importa se por um instante livraste o escravo da cólera de um senhor
impiedoso, se o deixas na mesma escravidão, mais dura porque incitaste as iras do
senhor.
PATKULL – Que façam como eu fiz.
PAIKEL – Porém tu eras só; sem família, qualquer lugar te oferecia uma pátria;
qualquer distração um prazer.
Quererias tu que todos abandonássemos nossos lares, nossas terras; e só com
nossas famílias e miséria, fôssemos pelo mundo como uma tribo errante de judeus,
esmolando um asilo?
PATKULL – Quem quer ser livre peleja: Paikel, esqueçamo-nos deles.
PAIKEL – E eles se nã o esquecem de ti, Patkull. Eu vi por mais de uma vez uma
livônia que mal balbuciava o nome de sua mãe, pronunciar o teu, como se fora um nome
de família. Eu vi por mais de uma vez o mancebo que sofria a tortura sem lamentações,
nem lágrimas, invocar o teu nome, como se fora o nome de Deus. Mais de uma vez o
velho calvo de cãs venerandas e de rosto engelhado, de quem tinham recrutado a filha
para o leito de um Boiardo, e o filho para vir morre r nas guerras da Polônia, pronunciar
teu nome como se por si só for uma vingança. – Patkull, um homem que um povo
venera tanto, é um homem grande. Mas o que despreza tantas preces, não merece tanto
amor.
PATKULL – Por mais de uma vez eu chamei por eles. Chamei-os para a vitória
e liberdade; disse-lhes: tereis armas e munições; forragens e mantimentos para uma –
para mil campanhas; e eles ficaram frios e gelados, como se eu falasse a um cadáver. –
Não me fales neles, Paikel, esse povo é um povo de cobardes.
PAIKEL – Tu mesmo o disseste: não há prudente que diga: deste pão não
comerei. Tu, que eras um lidador valente, cansaste – tu que eras um bom patriota,
renegaste a tua pátria, e a não teres dado tantas provas de ambas, os nossos vindouros
poderiam pôr em dúvida a tua coragem e o teu patriotismo. Não fales pois de coragem e
patriotismo, que mal viste experimentada.
PATKULL – E que resultaria de me empenhar de novo em coisas de mau
agouro?
PAIKEL – A glória.
PATKULL – Foi a ilusão dos meus primeiros amores; e por ela sacrifiquei
minha vingança, que me devera ser sagrada. Sabes tu, Paikel, o que lucrei dos meus
quarenta anos, com que a julgava sobejamente recompensada – o nome do egoísta. –
Assim me chamaram uma caterva de escrivinhadores que formigam em todos os tempos
e por toda a parte. Disseram que se eu sofria era por amor de mim! Almas pequenas, que
não compreendiam o sacrifício de um ao bem-viver de muitos: Satíricos incoerentes e
absurdos que me viam pôr em desleixo meus haveres e me chamaram – egoísta!
Quisesse eu permanecer tranqüilo espectador da escravidão dos meus! Pudesse cruzar os
braços em vez de manejar a espada ou pena, dignidade e honras, e favores cairiam sobre
mim como uma chuva de inverno. Oh! Quão diversamente me julgava meu gracioso
soberano Carlos XI!
PAIKEL – E é de Carlos XI que data o teu favor no entusiasmo dos teus irmãos.
Certo que toda a Livônia estremeceu, como se ainda fosse hora do seu livramento,
quando te escutou conciso e forte expondo as regalias dos teus compatriotas que a

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Suécia abocanhava como um povo de Ilotas. O opressor mesmo não pôde negar um
bravo de entusiasmo e admiração aos 19 anos de tão leal representante.
PATKULL – E ainda se não tinha apagado o murmúrio que a minha voz fizera
alevantar, quando um pregoeiro pelas ruas de Estocolmo declarava Patkull – réu de lesa-
majestade condenado a ter as mãos cortadas; e o carrasco quebrava publicamente sobre
um cepo meu braço tão nobre – e queimava os artigos do meu mandato tão aplaudido! E
tudo isto para quê? Hoje os livônios dormem tranqüilos na sua ignomínia e o fel da
calúnia se derramou sobre o meu nome. Paikel, o homem pode resistir a perigos e a
embaraços, porém não resiste à calúnia.
PAIKEL – O homem virtuoso geme da cegueira dos outros homens. Se a calúnia
lhe enegrece uma virtude – outra virtude que responda aos gritos da sua satânica vitória.
– Há uma coisa grande – Patkull – virtude – há uma coisa santa – o dever: – De ambas
elas, nasce a glória que dura mais que a inveja. – E ao homem que pesa suas ações no
foro da consciência – pouco se lhe deve dar do maldizer dos perversos.
PATKULL – Deixemo-nos disso, Paikel!
PAIKEL – Pelo contrário, falemos nisto!
PATKULL – Mas que queres tu que eu faça?
PAIKEL – Salva-os.
PATKULL – Salva-os?! Lindas Palavras, Paikel, lindas palavras de tragédia, que
parecem dizer alguma coisa e não dizem nada – salva-os?! (Com impaciência) Julgas-
me tu algum Deus, para que ao meu aceno se faça um mundo ou rebente água de um
rochedo. – Tua idade indica mais experiência, Paikel!
PAIKEL – Salva-os; porque os podes salvar.
PATKULL (Pensativo) – Como?
PAIKEL – E quererias tu fazê-lo?!
PATKULL – Não é verdade que isto é uma simples conversação entre amigos?
PAIKEL – Um dia será pesado na balança da justiça eterna, não o bem que
fizemos, mas o bem que poderíamos ter feito – Queres tu salvar teus irmãos?
PATKULL – Se a minha vida a mim só pertencesse de bom grado a dera ao
primeiro que ma pedisse. De sangue e bens fui sempre largo – Mas vês tu? Eu prometi a
um homem no ato mais solene da vida – o da morte – defender sua filha, que eu amo,
que sem ele ficou órfã, e ficaria viúva sem mim. Dei-lhe a minha palavra de cavalheiro
a ele e a ela, e deixá-la penhorada, seria justificar a sentença de Carlos XII quando
mandou ao carrasco espedaçar as minhas armas em praça pública.
PAIKEL – Dou-te minha palavra que não há risco nem perigo – terás o poder de
um rei: queres tu salvar teus irmãos?
PATKULL – Fala.
PAIKEL – A Dieta de Varsóvia declarou vago o trono da Polônia: e por vontade
de Carlos XII elegeu rei a Jaques Sobieski a quem devia pertencer o trono, se o trono da
Polônia fosse hereditário. Jaques Sobieski e o príncipe Constantino aguardavam com
impaciência o mensageiro, que lhe trouxesse novas da sua eleição. Um dia, quando
caçava nas vizinhanças de Breslau – saíram de emboscada 50 cavaleiro saxônicos que
os prenderam. O chefe dos cavaleiros fui eu – tínhamos cavalos folgados e de muda; e
assim os conduzi a Leipzig antes que em Breslau corresse a notícia de sua prisão. A
Dieta não o pode declarar incapaz de reinar porque ainda ontem o elegeu – não o podem
destituir, porque nem lhe podem forjar culpas. Outra Dieta poderia revogar aquela –
porém a pertinácia e inflexibilidade do rei Carlos não o deixarão mudar de propósito. E
o reino ficará sempre nas mãos do rei Augusto. Talvez que Augusto pretenda fazer as
pazes, porque a sua Saxônia também pára nas mãos o vencedor. Fleming assim mo deu
a entender; e eu o creio. O rei da Suécia tem já parte do seu acampamento dentro do

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Império; presume-se que pretende destronar também a casa d'Áustria. Neste caso uma
paz com a Rússia torna-se necessária; no turbilhão de tantos e tamanhos interesses a
Livônia pouco avulta. Talvez por estes tratados se firme a sua liberdade, se houver um
político esperto e diligente que a defenda; serás tu. – Se falhar a política – 80.000
homens cobrem as fronteiras da Livônia – poderás pôr uma contradição a Carlos XII; e
será desfeito o tratado com a Rússia. E então ver-te-ás generalíssimo de Grão Czar. –
80.000 guerreiros cobrem a Polônia palmo a palmo, e se vivos não a pudermos
defender, nossos cadáveres formarão uma muralha mais impenetrável que as da China.
PATKULL – Muito bem, Paikel, e agora tenho de me ir apresentar a Carlos XI
como ministro da Livônia?
PAIKEL – Não; irás a Dresde ter com Augusto – como plenipotenciário do Tzar
Pedro – Imperador de todas as Rússias.
PATKULL – E as provas?!
PAIKEL – Ei-las – É o diploma selado com as armas do Império, e do próprio
punho do Imperador.
PATKULL – Vamos: será o derrade iro esforço! Far-me-ás tu um favor?
PAIKEL – Fala.
PATKULL – Ficarás aqui com Romhor.
PAIKEL – Patkull.
PATKULL – É um favor, meu amigo, poré m que eu só de ti aceitaria.
PAIKEL – És generoso.
PATKULL – Generoso?! Tu brincas? Se o que ora vou fazer fosse por ti – seria
falta de generosidade pedir como um salário do serviço não prestado, mas ainda assim
eu te pediria o mesmo favor, que em iguais circunstâncias também to faria.
PAIKEL – Ta lvez que não!
PATKULL – Não mo queres fazer?
PAIKEL – Não te posso dizer que não; mas se houvesse outro meio...
PATKULL – Já te disse que só de ti a fiava.
PAIKEL – Fico.
PATKULL – Obrigado, meu amigo (Tocando uma campainha. Entra um pajem)
Que é do meu pajem?
O PAJEM – Aqui está!
PATKULL – Dize-lhe que o chamo (Continuando. – O pajem sai.) Não me
posso despedir dela, Paikel, que certo não partira – levo rasgado o coração por ter de a
deixar, dize-lhe o porque parti – que não há perigos, que não há riscos, que breve serei
dela. (Entra WoIf) Wolf, eu parto, não sei quando serei de volta, tu aqui ficarás.
WOLF – Por que me não le vais, Senhor?
PATKULL – Fica, Wolf; para nós ambos é melhor que fiques. – Ficarás com a
Senhora Duquesa, e se alguma novidade ocorrer – que me seja importante saber – algum
infortúnio – alguma fatalidade – virás ter comigo a Dresde. – Traze o meu manto.
WOLF – Neva muito, Senhor; algum temporal estará próximo a rebentar porque
relampeja para o norte e a noite tornou-se escura e feia.
PATKULL – Não importa, bom pajem (O paje m sai. Ele a Paikel) Pressinto
alguma desgraça, Paikel.
PAIKEL – Não será nada: são saudades que levas, e que minguarão a distância e
o nojo da jornada. (Entra o pajem, põe o manto)
PATKULL – Adeus Wolf – abraça teu amo. (Wolf chega-se e ele o abraça)
Adeus Paikel. (Estende-lhe a mão)
PAIKEL (Vê-o sair – fica um pouco a olhar para a porta que se tem fechado,
olha para a câmara de Romhor – dá dois passos para ela apertando as mãos contra os

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peitos) E eu fico.


ATO SEGUNDO

PERSONAGENS

NAMRY ROMHOR
BERTHA
PAIK EL
WOLF
Um pajem
A cena se passa no Ducado de Mecklenburg


ATO SEGUNDO

A mesma sala que a do ato primeiro

CENA I

PAIKEL (Entra) – Ainda a não pude ver um só instante – ontem passei o dia
silencioso e tristonho à espera de mensagem dela... e esperei debalde: hoje me recusou
ela uma entrevista pretextando incômodo... Hei-de falar-lhe. (Toca a campainha)
Abusar assim da confiança de um amigo, da sua cordialidade e franqueza, é uma
infâmia. – Mas por que me roubou ele o coração de Namry – por que se veio interpôr no
meu caminho? (Entra o pajem) Que me queres?
O PAJEM – Pensei que éreis vós quem chamáveis! (Indo para sair) Perdoai!
PAIKEL – Sim, fui eu: dize-me – poderei falar à senhora duquesa?
O PAJEM – Dizem que amanheceu doente.
PAIKEL – Quanto o ama! (Á parte) E tu, pajem, podes-lhe falar?
O PAJEM – Nada. Senhor, não.
PAIKEL – Quem então?
O PAJEM – A sua dama, Senhor.
PAIKEL – E ela?...!
O PAJEM – Está também doente.
PAIKEL – Por Deus que é muita moléstia num dia. Pajem, faze o que quiseres,
avém-te lá como puderes – hás-de fazer chegar aos ouvidos da senhora duquesa que eu
tenho que lhe dizer da parte do senhor Patkull, e que talvez daqui a uma hora já tenha
partido. (Faz-lhe sinal com a mão que saia) Vai bem diverso o tempo de quando a todos
os instantes me esperavam, apesar de estranha vigilância, Namry?! ( Ent ra Wolf )
WOLF – Senhor Paikel! Senhor Paike l!
PAIKEL – Que tens tu, pajem?
WOLF – Notícias de meu amo, mandou-as ainda de caminho, e que a esta hora
estaria em Desdre!
PAIKEL – Tu amas muito meu amo, Wolf!
WOLF – Ele também me ama muito!! Ainda pequeno fiquei sem pai, nem mãe;
passou ele acaso por Casimir onde era meu tio carcereiro da prisão do rei. Ele viu-me e
como meu tio de pouco me poderia servir, cedeu-me ao senhor Patkull que disse me
havia de fazer feliz. Meu bom tio se despediu de mim chorando, porque me amava

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muito o bom Sally! Depois desse tempo tenho sempre vivido com ele: se soubésseis
quanto é meu amigo!! Quanto o amo...
PAIKEL – Tens razão, Wolf, ama-o muito e não terás de que te arrepender. Ele é
um amigo que não atraiçoa o seu amigo, sua palavra é santa e pura. Tu és novo, Wolf,
na tua idade ainda há reconhecimento para um sorriso, e amor para o mimo que nos
mostram. (Entra a duquesa um pouco pálida e vagarosa ) Vai, bom pajem, logo mais
falaremos.

CENA II
NAMRY ROMHOR e PAIKEL

NAMRY – Mandastes-me dizer, Senhor, que tínheis recados para mim da parte
do vosso amigo!
PAIKEL – E a não ser isso, não é verdade que nem sequer uma vez, vos
dignaríeis de mostrar-vos ao vosso hóspede?
NAMRY – Ninguém vos mandou aceitar a sua hospedagem, Senhor.
PAIKEL – Foi a única desculpa que me não veio à mente. Patkull rir-se-ia se eu
lha desse; e eu talvez que outro tanto fizesse ao sensato que a sonhasse!
NAMRY – Nem era mister que lhe désseis precisamente esta: bastava recusar.
Um pretexto de negócio ou de interesse nunca falta ao homem; é um motivo que todos
compreendem!
PAIKEL – Todos! Senhora!! É certo que não daríeis crédito ao homem que vos
dissesse: interesse e glória tenho eu sacrificado para seguir a ilusão de um tempo que já
passou, memórias de amor correspondido, sonhos ditosos da infância que o acordar dos
anos dissiparam na mulher que então me amava.
NAMRY – Senhor Paikel!
PAIKEL – Quando ele vos dissesse; soube que estavas presa em novo enleio, e
esta certeza não deu quebranto ao meu amor, não o acreditareis por que não é do
interesse do homem o aviltar-se?
NAMRY – Sim.
PAIKEL – Não o acreditaríeis quando ele vos dissesse, sacrifiquei o meu
repouso; vaguei noite e dia ao vento e à chuva – aos raios do sol e ao frio de inverno
para demorar ao menos por um dia um casamento, que se ia concluir, e roubar-me para
todo sempre esperanças de ventura tão mimosa que a existência me douravam!
NAMRY – Paikel!
PAIKEL – Se ele vos dissesse eu tenho um amigo; amava-o como se ele fora
meu irmão, como a mim próprio: Estivesse eu a rezar sobre o túmulo de meu pai – iria
para ele quando a sua voz me chamasse. Estivesse eu a morrer de fome e de sede – dar-
lhe-ia o único pedaço de pão que me pudesse aliviar a fome – dar-lhe-ia a sede de água
que me pudesse umedecer as fauces! Eu amava-o; e para ver a mulher que amava
manchei a minha honra, e trai a amizade! Também o não acreditaríeis, porque a honra e
amizade valem mais que o ouro, mais que o sangue!
NAMRY – Se Patkull vos ouvisse!!
PAIKEL – Foi por isso que o mandei para longe. Mas em troco de um momento,
que seria de delícias para ele e nada mais para mim que absinto e fel, dei-lhe honras e
consideração. Eu bem sabia que ele tinha no coração uma corda inteira, que vibraria a
todo o momento como uma harpa vaporosa; bem sabia eu que o nome da Livônia ainda
era para ele mais que um nome. Vali-me dessa virtude – e em recompensa do amor lhe
dei a glória!
Há homens bem afortunados neste mundo; quando a desgraça como um céu

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grávido de tempestade paira sobre eles; então lhes sorri a fortuna mais brilhante, como o
raiar de um sol de primavera.
NAMRY – Por que falais assim, Senhor?
PAIKEL – Por quê?... Porque eu não sou desses homens, e no entanto pouco me
bastava para o ser. Porém minhas palavras são um enigma que pareceis não
compreender!... Quem o dissera!... Se algum venerável astrólogo lesse nos astros tão
incrível horóscopo, certo que eu me rira da sua ciência, e deixaria o velho ausentar-se
impune, condoído de tanta loucura! Hoje não me entendeis, Namry – minhas palavras
ferem os vossos ouvidos como se foram um monumento de pedra, que mas repercutisse
em eco; minha presença vos escandaliza; e para mim até deslembrastes a polidez com
que tratais a todos.
NAMRY – Quereis perder-me, Senhor?
PAIKEL – Senhor! Sempre Senhor! A pouco resumes a tua civilidade, Namry...
Quero-te contar uma história. Havia um duque... não sei onde! Poderoso e nobre era o
duque – cheio de altivez e de orgulho – porém severo guardador da sua palavra – um
pobre cavaleiro amava a filha do duque, julgando haver na filha tanta religião de
palavra, como no pai: tal não era. Amavam-se ambos! Porém de que vale o amor
quando reina o interesse! Por interesse o duque negou sua filha ao cavaleiro e a filha
chorou porque nesse tempo também o amava. Depois... familiarizou-se com a sua sorte;
pouco a pouco abraçou as opiniões do pai – e renegou o amante, como o pai tinha
rejeitado o amigo. É bem verdade o que dizeis, Senhora: o interesse é um motivo que
todos compreendem!
NAMRY – Não mais – Senhor. – Promessas da infância, dita-as a imprudência –
hoje o dever se opõe a elas. – Eu não vos iria pedir contas do que houvésseis feito; não
mas vinde também pedir – a mim.
PAIKEL – Não vos peço contas – somente como talvez seja a última vez que nos
veremos – conto-vos uma história – coisas de que me pareceis esperta – eu vos dizia,
Namry, que a filha do duque e o cavaleiro se amavam. Não se tratavam como nós por
Senhor: esse véu grosseiro de civilidade que não diz amor, nem gratidão porque
indistintamente se confere a todos; tratavam-se por tu. A filha do duque... não me
acorda o seu nome – chamá-la-emos Namry – Namry, essa moça inocente e pura, que a
não acharíeis mais. O cavaleiro pensava que dificultosamente a possuiria: e em um dia
pensando nisto, chamava-lhe a senhora duquesa – então a pobre moça chorava e
soluçava, que não havia acabar com tais soluços porque se julgava menos amada.
NAMRY – Por piedade!
PAIKEL – Como ela se enganava a si própria! Criatura inocente? Como a fé do
seu coração se debateria em um caos de sombras e de trevas, se lhe dissessem então que
ela um dia não compreenderia as palavras daquele de quem até adivinhava os
pensamentos! Um caso mal apercebido – um volver de olhos insignificante – uma flor
colhida há pouco – e lançada no meio duma leiva de flores – uma pegada simples no
meio de uma alameda – tudo tinha um nome – uma significação – uma lembrança.
Acreditareis isto, Namry!
NAMRY – Quereis perder-me?
PAIKEL – Perder-vos, Senhora ! Brincais comigo! Perder-vos – a mulher sisuda
e grave que lançou o esquecimento sobre o passado, como se lança uma mortalha sobre
as feições decompostas de um cadáver – a mulher que tem tão gravados na sua
consciência seus deveres de hoje – que nem se lembra dos de ontem!... Perder-vos! Se
outra pessoa me dissesse estas palavras no meio do rumor e do giro de regozijo e festa,
sem dúvida que eu as aceitaria como uma delicada galanteria.
NAMRY – E no entanto tu bem vês que eu luto comigo mesma para não ceder –

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Não sabes que horrível seria atraiçoar assim: eu, o esposo tão amante – tu, o amigo tão
sincero.
Tem piedade de mim!
PAIKEL – E o que pediria a vítima, a quem o carrasco martirizasse a golpes de
mal afiada segure? Em breve te cingirão os braços do teu esposo, e te esquecerás do
malfadado que se irá por terras de estranhos com a dor no coração – e as lágrimas nos
olhos. E o que pediria eu, Namry?
Ainda há pouco apareceste diante de mim com as sobrancelhas carregadas de
increpações, e me endereçaste palavras de amargor e de cólera que eu duvidei por um
instante, se eu era verdadeiramente Paikel – e tu verdadeiramente Namry Romhor – e se
ambos nós nos tínhamos amado em outros tempos.
NAMRY – Por Deus, Paikel – que queres tu que eu faça?
PAIKEL – Nada, Namry; não quero nada. E se tu soubesses?... Quando soube
que já me não amavas – quando mais não pude duvidar – fiquei estúpido e frio como
uma rocha batida pelas vagas – Depois mil pensamentos remoinharam em minha alma;
eu me julguei doido, e a cabeça se me estalava com dores. Quis te ver ainda uma vez,
porque visse se eras tão bela como dantes, do que eu duvidava. Trazia mil coisas para te
dizer – mil palavras de furor e desespero – de injúria e de insultos – e tudo se acabou
quando te avistei. Se estivéssemos sós, eu me lançaria a teus pés para te pedir perdão de
ter desconfiado de ti e hoje mesmo, ainda o faria se me não viesse gelar a voz nos lábios
com tua voz fria e grave.
NAMRY – Meu Deus, meu Deus!
PAIKEL – Uma palavra só, e eu me retiro pa ra sempre: Namry, por nosso amor
tão formoso de outras eras – pelo amor que hoje tens se te não acordas do pobre homem
que te adorava com todas as veras do seu coração, Namry, já me não amas?
NAMRY – Por que mo perguntas, Paikel?
PAIKEL – Por Deus – eu to suplico – Dize-me uma palavra só – e eu me irei,
Namry; e nem mais ouvirás falar de mim se notícias minhas te importunam – não me
amas?
NAMRY – Mas seria fazer-te uma confissão!
PAIKEL – E é o que te peço – livra-me desta dúvida que me esmaga o coração:
Dize-me que sim ou que não – pouco será para ti dizeres uma palavra – só – nada mais
que uma palavra. – porque não me posso persuadir que em tão pouco tempo te
esquecesses de tudo. Livra-me desta incerteza que me endoidece – por quem és – e eu te
beijarei as mãos e os pés – e o sítio em que pisas – dar-te-ei minha vida se ma pedires, e
bendirei o teu nome.
NAMRY – Basta! Basta! Meu amigo. (Abraçando-o)
PAIKEL (Apertando-a nos braços) – Meu amigo!
NAMRY – Deixa-me chorar – deixa-me chorar de prazer nos teus braços, meu
Paikel, custava-me tanto ver-te sofrer! (Abraçados)
PAIKEL – Eu bem sabia que tu eras sempre a minha Namry – e que o meu
coração não me enganava. (Ela tem a cabeça nos ombros dele)
NAMRY – Vem gente!
PAIKEL – Não é ninguém – deixa-te estar sobre o meu coração – deixa-me ver o
teu rosto – há tanto tempo que não via – precisava tanto de ti! Precisava tanto do teu
amor! (Abre-se a porta e aparece Bertha)

CENA III
Paikel tem as costas para a porta da esquerda do espectador, por onde entrou Bertha –
Bertha traz um véu e pára um pouco à porta. Paikel, que ficou a olhar para o sítio por

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onde desapareceu Namry, olha repentinamente para trás – e dá com Bertha.

PAIKEL e BERTHA

BERTHA – Muito sinto de vos ter surpreendido, Se nhor!
PAIKEL – Como deveis saber, a casa não é minha – tendes direito de entrar nela
e disto nada estranho. – Mas como agora me parece que tendes de me falar – dar-me-ia
por mui feliz se em alguma coisa vos pudesse ser agradável.
BERTHA – Obrigadíssimo, Senhor – porém não vim para vos pedir favores.
PAIKEL – Não tendes que me agradecer, a não ser a minha boa vontade; e
apesar de tudo ser-me-á permitido pedir-vos um favor com tanta franqueza com quanta
recusaste o meu préstimo.
BERTHA – Podeis pedir, Senhor – porém desde já tende a certeza de que não
vô-lo faço.
PAIKEL – E por quê , Senhora?
BERTHA – Porque nada me poderia pe dir Paikel que e u lho pudesse fazer.
PAIKEL – Oh! Mas parece que já nos conhecemos.
BERTHA – Tendes tido o cuidado de escrever o vosso nome por tanto lugar
imundo e sórdido, que não é muito que eu vos conheça.
PAIKEL – Perdoai, Senhora – porém para ter tido o meu nome em ta is lugares –
seria preciso ter-vos abaixado até eles.
BERTHA – Vós o dizeis, Senhor! (Descobre-se)
PAIKEL – Bertha!!!
BERTHA – Já me conheceis, Senhor? Julguei que já vos teríeis esquecido das
minhas feições como já vos esquecestes da minha voz. Ora pois, agora que me
conheceis – dizei-me: não é verdade que já desci bem baixo, aos mais ínfimos degraus
da sociedade – aos lugares mais torpes e obscenos? Dizei-me!
PAIKEL – Que vieste aqui fazer, Bertha?
BERTHA – Essa pergunta deveria ser a minha; mas... responder-vos-ei; inquiri a
vossa consciência se ainda a tendes, e ela vos dirá o que aqui vim fazer. – Pesai as
vossas intenções, Senhor, e concluireis depois que por amor de vós e por amor de mim –
livrei-vos de ser um infame sedutor por mais uma vez – e um amigo ingrato e refalsado,
se já o não fostes.
PAIKEL – Quem te disse que eu a queria seduzir, Bertha?
BERTHA – Digo-to eu, Paikel – porque conheço-te mais a ti do que a mim
própria. Digo-to eu, porque sei que o farias de bom grado sem te dares da mulher que
desonravas – sem te dares, nem da sua honra, nem da tua, porque essa pobre mulher
também te ama. E finalmente, Paikel, digo-to eu porque conheço os teus projetos.
PAIKEL – Bertha, sempre é bem feliz uma mulher com ser fraca, porque pode
impunemente com o que lhe vem à fantasia atirar à cara de um homem, e insultá-lo
como lhe apraz.
BERTHA – É o que eu disse, Paikel – é bem feliz a mulher; dize, não te parece
que é bem feliz quando compra, como eu comprei, a liberdade de um homem; e quando
o insulta, como ora faço? Dir-te-ei mais, Paikel, mente – quem emprega manhas e
artifícios para enganar a uma mulher – é um embusteiro: – e quem depois de a ter
humilhado a abandona, sem se lhe dar do seu futuro é um cobarde – um infame.
Oh! Como eu sou bem feliz em te poder lançar em rosto todas estas baixezas,
que fariam corar o mais vil lacaio, e que te não podem fazer subir a cor às faces!
PAIKEL – Já vejo que de propósito vieste para me insultar.
BERTHA – Já vos disse para o que vim – livrar-vos de uma infâmia e facilitar-

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vos a reparação de outra.
PAIKEL – Dizei – bem vedes que estou benévolo e tranqüilo, e que ouvirei
paciente de uma senhora tão polida a negra relação dos meus delitos – sentai-vos!
PAIKEL – Então falai breve – porque me arreceio de que a minha impaciência
afugente a minha civilidade – e neste caso – sentiria não vos poder escutar até o fim.
BERTHA – Como quiserdes!
PAIKEL (Gesto de impaciência) – Trata rei de vos inte rrogar, Bertha, a ver se
mais depressa nos aviamos. Tereis a bondade de me informar dos meus projetos?
BERTHA – Seria inútil – porém eu vô-los direi – para vos diminuir a vaidade de
pensardes que ninguém aventa as vossas intenções. – Não foi por amor da Livônia ou
pela glória do vosso amigo – que o fizestes sair daqui: precisáveis de estar só para
melhor levar ao cabo a vossa empresa e vistes com a máscara na cara – e o fingimento
nos lábios atraiçoar o vosso amigo, se me não interpusesse entre vós ambos, mais forte
do que a inocência de Romhor, mais vigilante do que a credulidade de Patkull.
PAIKEL – E sem dúvida terei tramado contra ele alguma horrível emboscada!
BERTHA – Que dúvida?
PAIKEL – Oh! Meu Deus!
BERTHA – Tremo por alguém. Paikel, quando te sorris para ele – quando lhe
endereças palavras sedutoras, quando espontaneamente obsequeias. – Armastes ao teu
amigo alguma horrível emboscada – tu o disseste.
PAIKEL – Bertha, Deus te livre de amigos que assim pensem de ti.
BERTHA – Deus me perdoe, se me engano; porque já me tens dado razões
sobejas para duvidar do bem que pareces fazer.
PAIKEL – E não rece ias que pensem ma l de ti, quando pensas mal de todos?
BERTHA – Não. Porque ainda conheço corações inocentes e virtuosos. Somente
agora não sou tão fácil de enganar, como já o fui em outros tempos: tu bem o sabes,
Paikel.
PAIKEL – Bertha, por que havemos de estar assim a estomagar-nos cruelmente
um ao outro? – Eu bem sei que tu tens razão – muita razão – para me tratares com tanta
dureza: eu mesmo me condeno porque baixamente me portei contigo – portei-me como
um peão, como um servo. – Eu bem o sei, Bertha. Ainda que eu me lançasse de joelhos
a teus pés, não me quererias perdoar, e contudo nunca te deixei de amar, Bertha: ainda
hoje te amo; ainda te amo como sempre; como no dia em que abandonaste teus pais,
teus lares, para seguires o simples cavaleiro Paikel – que nada mais tinha para te
oferecer que o seu amor.
BERTHA – Já uma vez me enganaste!
PAIKEL – Não! Nunca te enganei porque o teu amor ficou sempre comigo. –
Crês tu que um homem possa esquecer momentos tão deleitosos, como os que eu passei
ao teu lado? Esquece-los-ás tu, Bertha? Não, não os esquecerás porque também eu me
não esqueci deles.
Quando o amor é tão ardente e tão profundo como o nosso, Bertha, dura por toda
a vida e o coração não pode amar duas vezes por igual modo.
BERTHA – Mas tu amas a esta mulher, Paikel.
PAIKEL – Não o creias. É uma distração – uma ilusão – um passatempo, porém
nunca será o amor. Se tu me amasses ainda? Tu verias se o meu coração se tem
envilecido – Bertha, ainda poderíamos ser felizes como no tempo em que eu te dizia: eu
te amo. – E tu me abraç avas e com teus lábios, que se sorriam, derramavas sobre os
meus um prazer indizível, inefável, que – que nunca igual experimentei.
BERTHA – Falas tu verdade, Paikel?
PAIKEL – Meu Deus, meu Deus – como te poderei eu persuadir? Dize o que

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queres tu que eu diga ou faça, para que me possas acreditar. – Eu o farei, Bertha eu o
direi – oh! Se eu pudesse dizer tudo quanto sinto por ti! – tudo quanto me enche o
coração, e que eu mal posso traduzir – tu me perdoarias – Bertha, tu me amarias.
BERTHA – E esta mulher?
PAIKEL – Já te disse que a não amo – não amo senão a ti, minha Bertha. –
Queres tu? Deixemos esta casa – esta terra – iremos nós ambos, nós sozinhos para longe
– para muito longe – para a nossa casinha de Olitta, Bertha; e ali acharemos o prazer
que ali deixamos, que ali nos sorria e o nosso amor tão puro e tão terno.
Tu bem sabes o amor que eu tenho à ciência – o amor da glória, que me não
podia fazer esquecer. – Pois bem – Bertha – deixar-me-ei das minhas experiências que
tanto te assustavam, e nem me ouvirás falar de alquimia ou de pedra filosofal – Queres
tu? Oh meu Deus, não terás tu unicamente direito ao coração. – Já me não amas,
Bertha?
BERTHA – Paikel.
PAIKEL – Fujamos daqui, meu anjo, meu a mor; Bertha. (Pegando-!he nas
mãos) Iremos para onde te aprouver – sempre amantes – sempre unidos, na vida como
na morte – Bertha?!
BERTHA – Seria verdadeiramente horrível que me enganasses segunda vez –
Paikel! – Eu conheço que é possível – que um dia o farás talvez. – Não importa, Paikel;
– eu também te amo. (Vai para o abraçar – ele pega-lhe nas mãos e recua, para que ela
o não abrace e ela cai de joelhos)
PAIKEL (A rir-se) – Sois bem difícil de enganar, Bertha!
BERTHA (Com a cara escondida no seio) – Desgraçada que eu sou!
PAIKEL – Desgraçada que tu és, Bertha. – Vês tu que eu poderia fazer de ti tudo
quanto me aprouvesse. – Vês tu que estás a meus pés como se foras a criminosa. – Vês
tu que eu sei que ainda me amas, e que rejeitei o teu abraço, como rejeitei o teu amor.
BERTHA (Tapando os olhos) – Paikel!
PAIKEL – Desgraçada mulher, chamaste-me vil – infame – cobarde – chamaste-
me que sei – eu... E conclues dizendo – eu te amo: por Deus que é incrível o teu amor!
Amares qualidades tão infames!
BERTHA – Tem piedade de mim!
PAIKEL – Não mereces nem amor, nem piedade; mas terei compaixão de ti, se
vir que as tuas faces ainda se não esqueceram de corar.
BERTHA (Levantando-se resoluta) – Só esta vez, Senhor. – Não vos falarei
agora porque não terei palavras para vos dizer quanto foi baixo e vergonhoso o modo
por que me haveis tratado: – Paikel – eu era rica e nova – tinha pais que me amavam,
teria mil amantes se os quisesse, e tudo abandonei por amor de ti. – É da tua honra
salvar a mulher que deixaste em tal abandono – queres salvar-me?
PAIKEL – Não.
BERTHA – Paikel, medita bem – tu me desonraste, humilhaste-me aos olhos de
minha própria mãe – tu me seduziste no tempo em que me chamavas bela. – Esse tempo
passou, bem o sei, mas foi o teu amor fatal quem me pôs a palidez nas faces, e o
desespero no coração. – Fatigado com o meu amor me lançaste no mundo com a fronte
cingida de vergonha e de opróbrio – Paikel! – queres tu salvar-me desta vergonha e
deste opróbrio?
PAIKEL – Não.
BERTHA – Se não por amor de mim ao menos por amor de ti. Já sabes como eu
amo – vê se me saberei vingar. – Não te iludas. – Não creias mais em amor de minha
parte porque o acabaste de assassinar. – Mas, terrível é a vingança da mulher que nada
respeita, e tu nada me deixaste de sagrado. – Não queres?

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PAIKEL – Não.
BERTHA – Paikel, ainda uma vez.
PAIKEL – Não, mil vezes não.
BERTHA – Nada mais tenho que vos dizer, Senhor! (Paikel encara-a um pouco
com ar de triunfo e sai)
Como pude eu amar a este homem, meu Deus. Paikel?! Paikel?! Oh! Que em
breve te arrependerás. (Ela pensa um pouco. – Aparece Wolf) Estou vingada! Wolf.

CENA IV
WOLF e BERTHA

WOLF – Que tens tu?
BERTHA – Não me disseste que o Senhor Patkull te ordenara de o ir avisar se
por aqui acontecesse alguma fatalidade?
WOLF – Disse sim, mas que tens tu?
BERTHA – Nada, Wolf – tens de ir ter com teu amo.
WOLF – Eu!
BERTHA – Tu, Wolf – porque lhe aconteceu uma desgraça.
WOLF – Uma desgraça – Bertha?
BERTHA – Sim – Wolf – partirás agora mesmo, sem dizer nada a ninguém, e
dirás ao Senhor Patkull que Romhor o não ama.
WOLF – Quê?
BERTHA – Que ama outrem.
WOLF – Ela?
BERTHA – E que Paikel é o seu rival.


(Cai o pano)


ATO TERCEIRO

PERSONAGENS

NAMRY ROMHOR
PAIK EL
BERTHA
UM MENSAGEIRO
UMA CRIADA


ATO TERCEIRO

QUADRO I

A mesma sala que a do ato segundo.

CENA I

NAMRY ROMHOR (Vestida de preto) – Patkull?! Meu Deus, por que o

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prenderiam? É uma coisa inaudita, absurda, impossível – um embaixador de um aliado –
um amigo de Augusto!!
CRIADA (Entrando) – Senhora, acaba de chegar um mensageiro que vos
pretende falar.
NAMRY – Que entre já – não te demores. (A criada sai) Ao menos agora
saberei alguma coisa com mais certeza. (Entra o mensageiro)
O MENSAGEIRO (Ajoelha-se e beija-lhe a mão) – Saúde e contentamento à
Senhora Duquesa.
NAMRY – Deus te dê saúde e contentamento e eu te darei o que me pedires e o
que eu te puder dar, se me trouxeres notícias de paz e contentamento.
O MENSAGEIRO – Nem de paz, nem de contentamento. – São novas de mau
agouro, Senhora. – É pesado ouvi-las e triste o ter de as dizer.
NAMRY – Fala sem receio. É verdade que Patkull foi preso?
O MENSAGEIRO – Sim, Senhora Duquesa.
NAMRY – Está já morto?
O MENSAGEIRO – Condenado à morte.
NAMRY – Condenado à morte! Sabes tu o que dizes, homem? Condenado à
morte!! E por quê? Sa bes tu por quê?
O MENSAGEIRO – Não o sei e ninguém o sabe com certeza. – Ele mesmo é
quem o disse – quando o prenderam. O rei Augusto não lhe quis falar, e ele está na
prisão de Roenigstads.
NAMRY – E o rei Augusto?
O MENSAGEIRO – Está por ora em Dresde.
NAMRY – Sabes um caminho seguro e breve.
O MENSAGEIRO – Poderei lá estar em duas jornadas.
NAMRY – Descansa que partiremos ambos.
O MENSAGEIRO – Vós, Senhora?
NAMRY – Descansa, e não haja demora na partida – vai. (Ele sai )

CENA II

NAMRY – Dizem que o rei Augusto é um bom rei – eu lhe irei falar. – Dizem
que é desgraçado? Tanto melhor, que mais depressa se condoerá de mim – e mandará
soltar o pobre Patkull – que o serviu tantas vezes – de conselhos – e com o seu braço –
Patkull? Por muito tempo me tenho esquecido dele! Pobre homem – que tanto me
amava. (Entra Bertha)

CENA III
BERTA ajoelha-se aos pés de ROMHOR

NAMRY – Que fazes tu, Bertha?
BERTHA – Vosso perdão, Senhora.
NAMRY – Sou eu que te falo, Bertha; não me conheces?
BERTHA – Vosso perdão, Senhora.
NAMRY – Ora vamos! Que me poderás ter tu feito, para que me venhas assim
pedir perdão? Levanta-te e eu também te pedirei perdão porque te chamei minha amiga
e por muito tempo me tenho esquecido de ti... e não só de ti, minha amiga! – Vamos.
BERTHA – Não vos mereço tanta bondade.
NAMRY – Estás-me a inquietar seriamente – que tens tu, Bertha?
BERTHA – Remorsos do que fiz, Senhora.

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NAMRY – E é coisa que eu te possa perdoar? Como me poderias fazer mal?
BERTHA – Eu o fiz, Senhora .
NAMRY – Olha – Bertha – talvez que fosse melhor que deixasses para outra vez
o que agora tens para me dizer porque tenho deveres a cumprir que me chamam longe
daqui. – Mas não te posso deixar assim, Bertha – fala, se o teu perdão depende de mim,
estás perdoada – não tenhas vergonha nem receios, porque bem sabes que eu sou tua
amiga.
BERTHA – Eu amava, Senhora.
NAMRY – Bem o sei.
BERTHA – Oh! Como haveis de me odiar!
NAMRY – Sê breve.
BERTHA – Ao vosso amigo.
NAMRY – Bem o sei.
BERTHA – Como! Sabíeis! (Encarando-a e levantando-se)
NAMRY – Sim – era só o que me querias dizer? Estavas com tanto mistério para
nada.
BERTHA – Não era só isto.
NAMRY – Então acaba.
BERTHA – A minha história é longa.
NAMRY – Queres matar-me de impaciência!
BERTHA – Sabeis quem sou eu?
NAMRY – Filha não sei donde – educada por caridade de não sei quem: – e
depois.
BERTHA – Não, Senhora. – Nasci feliz e rica. – Meus pais me amavam – e
faziam o que lhes eu pedisse. – Nunca contei com piedade – porque nunca supus carecer
dela. – Então me apareceu Paikel – e disse que me amava – eu o acreditei enquanto não
fui traída. Finalmente deixou-me só e abandonada.
NAMRY – Que te importa! Crê-me, Bertha, por mais forte que seja o amor
nunca dura por toda a vida. – Esquece-te dele.
BERTHA – Fugi com ele – e por ele abandonei tudo quanto neste mundo me era
mais caro. Abandonei meus pais e minha fortuna – e depois ele pretextou uma viagem e
partiu – nem mais ouvi falar dele.
NAMRY – Falas de Paikel – Bertha?
BERTHA – Sozinha e fraca não tinha meios para ganhar a vida. Lembrei-me de
meus pais mas eu não queria entrar em casa com a vergonha no rosto – e manchar os
últimos instantes de quem me tinha cercado a meninice de tanto amor e carinhos. Não –
eu queria antes morrer do que encontrar meus olhos com os olhos de meu pai – que
morreu de vergonha. Seria longo dizer-vos os transes que passei – o que eu sofri de
baixeza – de insultos e de orgulho – de homens e mulheres – chorei lágrimas de
desespero quando nem uma esperança me restava sobre a terra – por acaso encontrei
vosso pai, e desde esse momento vos tenho servido.
NAMRY – Falaste a Paikel?
BERTHA – Foi generoso em demasia – ajuntou o insulto ao abandono. – Tentei
tudo para o comover, mas nada achei do que eu buscava. Foi então que para me vingar
dele revelei tudo a Wolf – que já partiu para ir ter com seu amo – e para lhe contar o
vosso amor.
NAMRY – Eu o mereci...! Porque me abaixei a amar esse homem. – Os homens!
Os homens! – Não chores, Bertha – o teu núncio de mau agouro não dará essas novas
porque certamente não poderá falar com Patkull – que queres tu fazer?
BERTHA – Vingar-me.

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NAMRY – Vingar-te! E que ganharás tu com isso?
BERTHA – A vingança.
NAMRY – E podes tu gozá-la?
BERTHA – Talvez.
NAMRY – Eu verei se podemos arranjar uma reparação: vai – faz saber a Paikel
que lhe pretendo falar. (Bertha sai) Quem nos dirá a nós outras pobres mulheres o que
se passa no coração de um homem. – Só palavras têm nos lábios – palavras que mentem
– olhos que mentem, que dizem virtude quando a consciência diz crime. Os homens!
Onde haverá mais falsidade? Eles que são mais fortes! Empregarem assim mentira!
Perpetrarem assim vilezas! (Entra o mensageiro)

CENA IV

O MENSAGEIRO – Aqui estou, Senhora Duquesa.
NAMRY – Estás pronto?
O MENSAGEIRO – Às ordens da Senhora Duquesa.
NAMRY – E a carruagem?
O MENSAGEIRO – Também pronta.
NAMRY – Vai – brevemente serei contigo. (Ele sai)
Vejamos se posso tirar uma boa ação do que a consciência me exprobrava como
um crime – certo que o farei. – Paikel ama-me, ainda há pouco mo disse. – O amor nada
pode recusar, dizem. – Oh! Eu o farei!! (Entra Pai kel)

CENA V

PAIKEL – E o que não farias tu – Namry. – Tudo quanto cabe nas forças de um
homem ele o faria se a tua voz o dissesse – se teus olhos lho pedissem, se teus lábios lhe
sorrissem!
NAMRY – Eu te esperava, Paikel.
PAIKEL – E e u, Namry! Eu aqui vinha a teus pés verificar tamanha dita , porque
acabo de conhecer que realmente me amas – que não podes estar sem mim, como eu não
posso estar sem ti. – E como no outro tempo – em que te ouvia dizer-me de contínuo:
vem – como agora, Namry – eu vinha cheio de prazer e de contentamento – para te ver,
como agora – para como agora te dizer: eu te amo, Namry.
NAMRY – Paikel, não é verdade que a mentira deslustra a honra de cavaleiro?
PAIKEL – Namry – o homem que mente é um mau cristão – o cavaleiro que
mente é indigno de calçar esporas de ouro – e de lidar em justas e torneios com o seu
nome de guerra. – Pela fé de um cristão e pela honra de um cavaleiro – Namry – eu te
amo.
NAMRY – Não te recordas, Paikel, de ter dado a tua palavra a outra – de lhe
teres empenhado a tua honra – como ora acabas de fazer por meu respeito?
PAIKEL – Negar-to fora mentir: – Namry – nã o há um homem da minha idade
que derramando um olhar sobre o passado não encontre nele um remorso para a sua
consciência. – Isso que dizes – Namry – eu o fiz – e talvez mais do que uma vez. – Mas
– um cavaleiro que mal fez concede reparação leal e franca, a quem quer que lha peça.
Eu sou cavaleiro, e que o não fosse, Namry – ser-me-ia penoso ter a consciência de não
merecer o teu amor. – Alto soa o meu nome. – Quem se der por ofendido que venha ter
comigo – e certo que voltará contente e satisfeito. – Tenho mais honra que dinheiro –
mas o sangue e fazendas de Paikel, serão de sobra para o mais sedento e ambicioso.
NAMRY – E quando forem dívidas que se não pagam nem com dinheiro, nem

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com o sangue?
PAIKEL – Que Deus se condoa de mim – porque tudo lhe poderia dar – e lhe
daria tudo, menos o meu amor que não é meu.
NAMRY – Eu cria que o amor era sujeito ao dever.
PAIKEL – Crês tu – Namry!
NAMRY – Creio que o cavaleiro que é o mais forte deve dar exemplo à mulher
que é mais fraca.
PAIKEL – E porque nos vês envergar couraça e saia de guerra ou – porque nos
vês cobertos de aço e ferro – de aço e ferro, julgas tu que temos os corações?
NAMRY – Julgo-os demasiadamente sensíveis, a serem como o teu. – Mas dize?
Quando uma mulher pode fazer calar o seu amor por que não poderá um cavaleiro
acabar com ele?
PAIKEL – Porque ele se esquece de tudo para pensar nela e ela se lembra de
tudo para o esquecer a ele.
NAMRY – Paikel, como se apelida entre vós outros uns cavaleiro que falta à sua
palavra?
PAIKEL – Um felão.
NAMRY – E tu queres ser um cavaleiro felão?
PAIKEL – Serei. (Gesto de desprezo de Namry ) Serei, Namry, só por teu
respeito. – Ainda quando o arauto me negasse a entrada na liça dos combates por esta
ação – quando todos me repreendessem, não o deverias tu fazer, Namry – porque é por
ti que eu o faço.
Mas não será eterna a exprobração – quando eu mostrar um dia o que era o meu
amor de hoje – o meu amor de sempre: – meus pares dirão cheios de assombro – só o
amor de Paikel podia vencer a sua honra.
NAMRY – Já que te esqueces de tudo para só te lembrares de mim – quero
corresponder-te por igual modo.
Também me esquecerei de mim para só pensar em ti. – Tratemos da tua honra,
Paikel.
PAIKEL – E desde quando te importas com ela?
NAMRY – Desde que dela te esqueceste. – Há uma mulher a quem chamo
minha amiga – Paikel – bem sabes quanto perdeu por teu respeito – bem sabes – porque
a conheces há mais tempo do que eu; – e porque ela mesma to disse antes que mo
dissesse a mim.
É a primeira coisa que te peço – Paikel – repara o mal que fizeste, e eu serei
contente de mim mesma por ver que amava um homem que merecia ser amado.
PAIKEL – Não posso.
NAMRY – E porquê?
PAIKEL – Porque a sua família não é nobre.
NAMRY – Devias ver isso quando a desonraste.
PAIKEL – Mas estas alianças sabes, bem o sabes, têm pouco uso entre nós.
NAMRY – Também entre vós outros é de pouco uso deixar penhorada a sua
palavra.
PAIKEL – Bem o sei. – Mas eu não amo a essa mulher. Inda há pouco me veio
ela injuriar face a face – chamou-me nomes de desprezo e de injúria, que eu me
envergonharia de os repetir. Tivesse ela um parente que cingisse uma espada – e a esta
hora ela não teria este parente. Não fosse vilania assassiná-la – a esta hora não terias
mais amiga.
NAMRY – Ela te defendeu em minha presença como eu talvez o não fizesse
agora – eram palavras de ciúme que não mancham porque são filhas do amor.

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PAIKEL – A vingança de que um para o outro éramos capazes, nós a temos
praticado. – Insulto por insulto: somos pagos.
NAMRY – Estás pago – e ela punida – muito bem, Paikel. – Já não restam
lembranças de recíprocos insultos – nada mais terás que objetar.
PAIKEL – Nem e la que me pedir.
NAMRY – Deixemo-nos de razões, Paikel – por esse modo não posso lutar
contigo. Por que me não fazes tu o que eu te peço?
PAIKEL – Porque eu te amo! Namry – porque te amo de todo o meu coraçã o.
NAMRY – Oh! – Mas seria eu verdadeiramente pobre – roubar à fortuna da
minha criada – pensas em tal, Paikel.
PAIKEL – Da tua criada?
NAMRY – Da minha amiga – como também tu ao teu amigo. Já bastante
erramos – é preciso que ao menos uma vez na vida andemos por caminho seguro e
plano. Temos hoje mais que fazer do que o papel de amantes. – Tu és o cavaleiro Paikel
– que tens um brasão ilustre, um dragão lavrado em sinople que despedaça uma
serpente. – Tens por divisa o valor pela virtude. Eu sou a Duquesa de Mecklembourg. –
Lembremo-nos do que somos, e façamos o que devemos.
PAIKEL – Pede-me tudo quanto quiseres – Namry – tudo, e eu farei tudo – mas
não me peças que te deixe de amar porque de certo o não pudera fazer. Eu daria quanto
tenho de mais precioso a quem me reduzisse o meu amor à têmpera do teu – é um amor
brando e fácil que se turva como a mais pequena nuvem, que mostra mil aspectos, como
as asas da borboleta adejando ao sol.
NAMRY – Não mo queres fazer?
PAIKEL – Não posso.
NAMRY – Paikel – meu pai dizia que um nobre que se debruça sobre uma mesa
para ter um livro ou pergaminho – era da nação efeminada dos franceses, que hoje não
conta um cavaleiro: que um cavaleiro que se compraz em rabiscar papel, em vez de ma-
nejar a espara, descaía da sua nobreza – que um cavaleiro que consome dias e noites em
busca de ouro, tinha o gênio de um vilão.
PAIKEL – Teu pai na sceu 200 a nos depois de que deve ria ter vivido.
NÁMRY – Meu pai era um Duque honrado e nobre – se ele te dissesse – farei
isto; podias dormir descansado como debaixo da folha da sua espada, porque ele
cumpriria a sua promessa sem que fosse mister lembrar-lha.
PAIKEL – Tu me enganaste, Namry – quando me disseste que me amavas.
NAMRY – Era eu que me enganava a mim própria. Deves confessar que não
posso satisfazer a tudo quanto por mim tens feito.
PAIKEL – Talvez.
NAMRY – Talvez!! Bem – será mais uma dívida, Paikel – que eu te não poderei
pagar. Salva a honra de Bertha – eu me esquecerei de tudo.
PAIKEL (A rir-se) – Esquecer-te-ás de tudo? Como é s ge nerosa...
NAMRY – E mais do que mereceis, Senhor, sois um infame.
PAIKEL – Namry!
NAMRY – Agradeço-vos amor tão alto. Poré m tenho orgulho sobejo para me
contentar com os restos de outra, e não deixei de ser nobre para me casar com um
assassino. Destes a vossa palavra a vossa amante, de que ela seria a vossa esposa – e ela,
porque fiou de vós, serve hoje para ganhar a vida. Destes vossa palavra ao vosso amigo
– e porque ele acreditou na vossa palavra, vai ser assassinado.
PAIKEL – Patkull? Fala s de Patkull?
NAMRY – Ide a Romgstads e lá o vereis subir ao cadafalso que para ele
mandastes aparelhar.

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PAIKEL – Eu o salvare i, Namry, eu pa rto já, sem demora.
NAMRY – Fazeis bem, Senhor – porque se ele entrar uma vez nesta casa, não
lhe seria gostoso o encontrar-vos nela; e quando ele não viesse – não me seria vossa
presença muito para desejar.
PAIKEL (Saindo) – Fleming!! Fle ming!! Tu mo pagarás, Fleming!
NAMRY – Hipócrita.


ATO QUARTO

PERSONAGENS

FLEMING
O REI AUGUSTO
NAMRY


ATO QUARTO

QUADRO II

Uma sala de palácio em Dresde, uma mesa e cadeiras.

CENA I
O REI AUGUSTO e FLEMING

AUGUSTO – O que há de novo, Fleming?
FLEMING – Saberá Vossa Majestade...
AUGUSTO – Já não sou Majestade.
FLEM1NG – Saberá Vossa Alteza que é chegado o correio que foi de vossa
parte dar a Estanislau os parabéns da sua elevação ao vosso trono da Polônia.
AUGUSTO – Maldito seja ele... Que mais.
FLEMING – O correio de Carlos XII espera a vossa decisão quanto aos artigos
que deveis assinar para o tratado de paz.
AUGUSTO – Lê-os – Fleming – lê-os de novo que me quero fartar de minha
vergonha – lê-os.
FLEMING (Lendo) – Darei paz a Augusto – rei que foi da Polônia – debaixo das
condições seguintes, que serão cumpridas à risca sem alteração alguma:
1º O Rei Augusto renunciará ao trono da Polônia – reconhecerá Estanislau por
seu legítimo rei – e prometerá jamais pretender elevar-se ao trono, mesmo depois da
morte de Estanislau.
2º Renunciará a toda aliança com nações estrangeiras – principalmente com a
Rússia.
3º Mandará para o meu campo os príncipes Sobieski – com uma guarda de honra
e todos os prisioneiros que me houver feito.
4º o último. Entregar-me-á todos os desertores que passaram do meu serviço – e
expressamente João Reginoh, Patkull – e dará anistia a todos que passaram do seu para
o meu serviço.
AUGUSTO – Só?
FLEMING – Nada mais se contém neste rascunho que nos mandou o conde

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Pipe r.
AUGUSTO – Aceito. – O Rei Carlos é um rei magnânimo e generoso... Porque
me não mandou ir ele à sua presença descalço com as insígnias reais, com uma corda
nos rins, e o knout nas mãos. Por Deus que eu lhe iria beijar os pés para envilecer e
abaixar esta maldita Polônia, já tão vil e tão baixa – Polônia! – Povo de escravos
orgulhosos – povo de cobardes – povo lançado no meio da Europa para ser vendido ao
que mais dá e que mais promete – Polônia! – Folga e ri satisfeita na tua prostituição –
enche o céu com fogos de vista e gritos de alegria – ilumina teus palácios e habitações
de escravos – alegra-te, que em breve gemerás aflita sob o azorrague da infâmia.
FLEMING – Rei Augusto!
AUGUSTO – Não me fales, Fleming – não – não me fales – ou dá que eu veja
esta Polônia ardendo em fogo, como Sodoma ou Gomorra – Carlos XII! Quem me dera
te r vida para te ve r um dia miserável e mendigo, roído de ambições e de remorsos! –
Não – não serás o único conquistador que avistarás o destino dos teus. – Por que não
lutei até esse tempo?
FLEMING – Perderíeis vosso ducado como perdestes a Polônia.
AUGUSTO – E que me importa a mim um ducado, ou a Polônia? (Entra um
soldado).
O SOLDADO – O Príncipe de Mensicoff deseja falar a Vossa Majestade.
AUGUSTO – Não lhe posso falar.
O SOLDADO – Vem para vos falar a respeito de Patkull.
AUGUSTO – Não ouviste? (Pausa por aIgum tempo) Fleming, que é feito de
Patkull?
FLEMING – Foi conduzido de Keenigstadt para Casimir, e deve ser entregue
aos soldados de Carlos XII, segundo a convenção.
AUGUSTO – O César quis saber o que eu fiz do seu plenipotenciário – e tem
razão – que lhe hei-de eu dizer? Ele era o meu único aliado, o único verdadeiro amigo.
FLEMING – Mas ganhastes a vossa Saxônia.
AUGUSTO – Mas perdi a honra, Fleming. – Se eu tivesse ainda em meu poder
esse homem, a quem agradeço tão mal – oh! Não sei de certo se o entregaria ainda
quando me rendesse o cêntuplo, do que ora me rende.
FLEMING – E fareis ma l.
AUGUSTO – És um bom político, F1eming – porém tens uma alma bem
pequena. – Tens ocasião de te vingar de um inimigo e pouco te importa que ele seja
desgraçado. – Eu estimaria mais que o defendesses.
FLEMING – Nem que ele fosse meu irmão – pediria eu por ele quando se trata
dos interesses de Vossa Majestade.
AUGUSTO – Escusas lisonjas – vês que sou um rei sem trono ou Majestade; um
poder sem alçada.
FLEMING – Não é lisonja, Senhor – quando vos digo que a rebelião é um crime
– e que um rei nunca deve proteger um rebelde. – Um duque espanhol jurou ao seu rei
que faria queimar seu palácio se o Duque de Bombonde se demorasse nele por espaço
de uma hora, porque o Duque se tinha rebelado contra o seu rei – Francisco I. – E o rei
louvou a nobreza do vassa1o. – Ora, Patkull é um rebelde – era um dever real puni-lo –
vós o fizestes, senhor. E nem vos fica menos airoso que a sua morte vos renda um
ducado – que já era vosso, e para mim, o chamais uma vingança, que nunca tencionei
tomar.
AUGUSTO – Seja como dizes. (Faz-lhe sinal com a mão que saia. Ouvem-se
passos) Já devem ser seis horas; para que me pediu uma audiência a Duquesa de
Meklembourg? – Que me pretenderá!! – Veremos. – Algum capricho de Senhora?! Que

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importa?! – Não negarei um favor ao descer do trono à filha de quem era meu amigo,
antes que alguém sonhasse que Augusto seria rei um dia.
Um dia!... O que é um dia? – Às vezes se passam eles serenos e mansos sem que
nem ao menos a sombra de um acontecimento escureça alguma parte dele. – Outras
vezes a vida pende do resultado de um dia, e a alma tem a vista pregada no que vai
acontecer que lhe trará ventura ou desventura. – É um lago tranqüilo e manso,
representando o azul do céu e das nuvens. São ondas negras e revoltas que se embatem,
que se cruzam, que se repelem mal ditas da esperança. – E a vida aí está como no
aspecto fagueiro ou terrível da superfície do lago. – Somente a alma guarda mais
constantemente para todo o resto da sua existência neste mundo o que por ela passou
uma vez. – O pesar dura eterno como o seixo lançado na corrente. – E o prazer também
lá permanece, e por vezes se nos acorda feiticeiro e saudoso – como a imagem da
donzela que uma vez topamos para mais não voltar.

CENA II
Batem. – Ele pára como despertado de seus pensamentos – e de repente vai à porta –
abre e entra Namry Romhor.

NAMRY – Senhor!
AUGUSTO – Que pretendeis, Senhora?
NAMRY – Falar ao rei Augusto.
AUGUSTO – Sou eu.
NAMRY – Vós? (Como consigo) Parecia-me que a presença de um rei deveria
de ser terríve l e majestosa.
AUGUSTO – Nada disso – nem majestosa nem terrível – porém benevolente
quando a vida de um rei se fita num profil gracioso e belo de formosura como a vossa.
NAMRY – Não mereço que sejais homem para vos abaixar até mim.
AUGUSTO – Também nós somos homens: – também! Com diferença de que o
coração de um rei parece ter mais força para a dor e maior espaço para conter lágrimas
que se não podem deslizar impunes pelas faces do monarca – mas eu já não sou
monarca – não, já o não sou! Podeis falar sem receios. – O Rei Augusto morreu – mas
ainda vive o amigo de vosso pai, Senhora Duquesa.
NAMRY – Não contava com mais esse título para me apresentar diante de vós,
Rei Augusto. – É um bom agouro da minha boa fortuna. – Recordei-me de que meu pai
vos chamava justo e bom – e eu vim ter convosco fiada na justiça e na bondade que meu
pai tanto exaltava.
AUGUSTO – Não praza a Deus que eu desminta conceito para mim tão
lisonjeiro – podeis falar, Senhora Duquesa.
NAMRY – Meu Deus! Não sei por que me acanho tanto para vos pedir o que
tenho de vos pedir.
AUGUSTO – Quereis muito. (A sorrir-se)
NAMRY – Muito! Muito!
AUGUSTO – Oh! Tanto melhor – certo que eu não quisera tão somente
conceder à filha do meu velho amigo o que outro qualquer também pudesse. – Já não
sou rei, Senhora Duquesa, mas ainda me não esqueci de o ser.
NAMRY – Confio nisso, – e é por isso que vos venho pedir a liberdade de
Patkull.
AUGUSTO – Patkull? Patkull! Que vos importa esse homem?
NAMRY – Peço-vos uma graça, Senhor.
AUGUSTO – Patkull! Vejamos, Senhora Duquesa. –– Eu vos quisera servir –

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pedi-me qualquer coisa possível, e eu vô-la farei. – A minha Saxônia é bastante vasta –
escolhei uma cidade – uma vila – um castelo e eu vô-lo darei. – Vede de Leipzig de
Blauzou – de Zillan a Plauen – escolhei o que quiserdes, – Vistes vós Altenbourg
molemente deitada à margem do seu rio como uma otomana voluptuosa? Gera – a
cidade do comércio e da riqueza. – Leipzig – a cidade das artes e das ciências – e Plauen
– campeando no cimo de uma rocha como um guerreiro noturno que vigia firmado na
sua espada. – Plauen austera e forte como um castelo esquecido do perpassar dos anos,
vigiando a Áustria, sombrio e grave – tudo – tudo o que vos aprouver não vos ireis
queixosa do rei Augusto que foi amigo de vosso pai.
NAMRY – Não, Senhor – pela melhor das vossas cidades não vos viera eu
importunar – ve nho pedir-vos a vida de um homem que não mereceu perdê -la .
AUGUSTO – Quem vos disse que ele o não tinha merecido?
NAMRY – Era vosso, todo vosso – de alma e coração – ele vos aconselhou
como amigo – e vos serviu como escravo.
AUGUSTO – Era um rebelde!
NAMRY – Não a vós que só podeis puni-lo por vos haver bem servido. –
Perdoai se vos falo assim. – Durante o caminho tão breve da minha vida não pude ainda
aprender como se fala aos reis – peço-vos a vida desse homem – que meu pai me deu
por esposo – meu pai era amigo de vós ambos. Certo que se o pobre velho ainda
existisse, ele se curvaria diante de vós, Senhor – para que lhe désseis a vida do esposo
de sua filha – e o rei Augusto não seria surdo às vozes do infortúnio. – Senhor, é a vida
do meu esposo que vos peço, que vos peço de joelhos – que vos peço pelo que há de
mais santo, pelo que tendes mais precioso e mais caro.
AUGUSTO – Levantai-vos, Senhora – bem me custa ver-vos assim a chorar sem
poder enxugar vossas lágrimas!
NAMRY – Por que o não podeis, Senhor – é vossa a prisão – é vosso o
carcereiro – os soldados que o guardam são vossos; os ferros que o prendem são vossos.
– Uma palavra só, e ele será livre e feliz – e eu agradecida e contente, e vós satisfeito
com a ventura que fazeis nascer. – Como é belo ser rei para fazer o bem, livre e
grandemente – para ter palavras que dão vida e alegria. Meu Deus, como poderia eu
resistir a quem me pedisse a vida de uma criatura?
AUGUSTO – Pedi outra coisa, Senhora Duquesa.
NAMRY – Nada mais, Senhor, nada mais que a vida do meu esposo e sereis
para mim como um Deus. – Que mal vos pode ele fazer? Ele que vos amava tanto. –
Que mal vos pode fazer – ver-nos alegres e felizes – quando vos devermos alegria e
felicidade?
AUGUSTO – Não alcançareis nada, Senhora Duquesa: – quanto vos podia dar,
eu vô-lo ofereci – nada mais tenho que vos sirva.
NAMRY – Senhor, como vos hei-de eu falar para vos mostrar que me podeis
fazer o que vos peço, que mo deveis fazer – Senhor. – Senhor, não vos incomoda acaso
ver em roda de vosso trono um rio de sangue? – Vós me pareceis tão bom, rei Augusto.
Podereis acaso pensar tranqüilamente de que às tantas um homem será de menos – e isto
porque vós o quisestes – porque vós mandastes – Senhor? – Tende piedade de mim!
AUGUSTO – Ele tem de ser entregue a Carlos XII.
NAMRY – Por Deus, Senhor – por Deus – não façais tal – sabeis vós que é um
verdadeiro assassinato – que ele o mataria sem compaixão nem piedade – esse homem
de sangue e de carnagem – vós o não fareis, rei Augusto – Carlos XII também é vosso
inimigo cruel, que vos tem perseguido e ultrajado vergonhosamente. – Quereis
condescender com ele, rei Augusto – quereis dar-lhe o vosso amigo em recompensa de
vos haver roubado a vossa Polônia. – Vós o não fareis. – E depois não podeis sem

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desonra tocar na cabeça de um embaixador. Tencionais fazê-lo, Rei Augusto.
AUGUSTO – Já vos disse que ele era um rebelde.
NAMRY – Rei Augusto, o que ides fazer era demais para desonrar um homem.
– É uma coisa verdadeiramente baixa – um rei ser constrangido por outro rei como um
escravo – dois reis que se ligam para perder um homem. – Não é isto uma coisa vil e
infame?!
AUGUSTO – Duquesa, não faleis de razões que mal podeis compreender.
NAMRY – Nada mais vos direi. (Indo para sair.)
AUGUSTO – Vejamos, Duquesa, ainda uma vez, pedi-me uma coisa qualquer
que seja e eu vô-la farei – não, eu não quisera vos fôsseis descontente comigo.
NAMRY – Deus guarde a Vossa Majestade. (Sai)

CENA III

AUGUSTO (Depois de um momento de silêncio) – Acaso um dia se levantará a
voz da posteridade para dizer que o rei Augusto foi um traidor e um cobarde – traidor! e
cobarde! Fleming?
FLEMING – Senhor!
AUGUSTO – Quero que Patkull viva.
FLEMING – Mandai pedir a sua graça a Carlos XII.
AUGUSTO – São 6 horas. – Às 9 um correio pode estar em Keenigstadt – e
Patkull será livre.
FLEMING – Às 8 horas já deverá estar em poder de Carlos XII.
AUGUSTO – É já tarde. (Caindo numa cadeira)


ATO QUARTO

PERSONAGENS

PATKULL
SALTZ
WOLF
PAIK EL


ATO QUARTO

Um cárcere escuro com uma grade de ferro – uma mesa antiga e velha – uma cadeira.

CENA I

PATKULL – Como é triste uma prisão – como este silêncio é cheio de pavor e
de tristeza. – Aqui estou – eu, só eu, sepultado – eu, sem vida quando carecia tanto de
alguém que me falasse, de alguém que eu escutasse a cada instante – de alguém que me
enchesse o coração de sossego e de harmonias. – Nada, nada sinto em torno de mim
mais do que o silêncio, como o de um cemitério, que me gela o sangue nas veias – que
me enoitece a fantasia – só por vezes o coração me arqueja e pula – como que acordasse
– ainda em vida – ao derradeiro som da pedra que lhe esmaga a vida. – Meu Deus! –
Morrer assim seria passar a eternidade transido e desesperado. – Morrer! Por que tantas

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vezes penso nisto? – Não tenho eu tão vivo o sentir que bastaria para viver mil anos? –
Como é possível morrer com tanto amor. E no entanto foi o meu primeiro pensamento
quando me vi preso – meu primeiro pensamento quando passei o umbral desta porta. –
O último quando só me deixaram – quando se fechou aquela porta – quando o som de
passos se foi sumindo longe – mais longe – por entre as abóbadas dos corredores – mais
longe como uma quimera. – Morrer – (Andando – pára – cruza os braços no coração)
Morrer agora! – Vamos, que me aproveita sonhar torturas e tormentos?
Muitas vezes fatigado de alma e corpo sucumbi ao cansaço e dormi. – Negras
imagens esvoaçaram por minha alma perseguida por uma idéia – meu coração gemia
amargurado sob terrível pesadelo, e as bagas de suor corriam por todo o corpo. –
Despertava enfim. Eu via a lua que enfeitava o azul dos céus de Itália, a terra bela e
perfumada – e o mar que vinha preguiçoso beijar os pés de Nápoles. – O Vesúvio além
cuspindo o fumo como sombrio penacho de guerreiro – porque não haverá também –
quando os olhos vigiam – desses pesadelos do espírito, horríveis em sonho – mas
fagueiros – mas belos na realidade. – Oh! Quem me dera respirar o ar fresco e puro que
agora lá por fora adeja e sussurra na folhagem. (Chegando-se à janela) Quantas vezes
não vi eu a lua branquear este céu – vinha então espalhar neste silêncio da noite tão
amigo – o muito que eu sentia. – Era a noite tão bela como agora – talvez menos –
porém não tinha diante de mim estas grades de ferro, que me ofendem a vista. – Namry
– meu amor – minha alma – meu anjo tão puro e tão belo, se na terra existem anjos –
quem me dera ver-te como sempre – formosa e pensativa – como um anjo na terra se
le mbra de melhor pátria. Namry – Oh! Pudesse eu quebrar estes ferros – e ir daqui
lançar-me nós teus braços – Namry – pudesse eu ver-te uma vez sequer, uma vez nesta
vida e na outra a eternidade. – Vem, Namry – vem – eu serei calado e mudo bebendo a
vida dos teus lábios – bebendo o amor dos teus olhos. – Vem, cantar-me-ás essa cantiga
tão singela que tanto me aprazia ouvir-te. – Essa toada dos campos de amor e de ternura
da mulher tão extremosa – longe de quem ama. – Oh! Quantas vezes a terás soluçado
involuntariamente – desde que eu te deixei de ver – e eu dera a vida para ouvi-la – dera
tudo menos o meu amor! (Fica mudo e pensativo. – Entra Saltz)

CENA II
O mesmo e SALTZ

SALTZ – Como ides, Senhor?
PATKULL – Bem, Saltz – muito bem – melhor do que eu esperava passar numa
prisão.
SALTZ – Ce rto – bom senhor – que não estareis aqui tão bem como no vosso
palácio de Livônia – sempre é uma prisão – uma coisa bem feia e bem lúgubre, que até
me entristece a mim que não sou nem preso nem condenado. – Não posso dar um passo
sem surpreender lágrimas que vacilam nas pálpebras – ou insano desespero de quem
nada espera. Nos corredores por onde passo através das muralhas dos cárceres
transundam suspiros e agonias – vozes que se lamentam – que se enfurecem –, ou que
choram truncadas e sem força – que é dor do coração ouvi-las tão sentidas. – Quando
me deito, choro por esta pobre gente com quem tenho dever de parecer rigoroso – e
quando acordo sinto o rojar de grilhões do que vela toda a noite nas trevas e suspiros.
PATKULL – Bom Saltz.
SALTZ – Bom – Senhor – bom – mais do que devo e menos do que uso exige a
consciência. – Eu vim para este inferno com a alma pura – sem remorsos, sem pesares.
Alegre e satisfeito dormia e acordava feliz, porque vivia, porque sentia a vida – e hoje –
bem vedes que vos entristeço em vez de vos consolar, como eu tanto desejara – porque

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me parece que é mau quem se emprega neste ofício – e tenho pesar de tanta vida que se
perde – de tanta alma arrancada do corpo com violência.
PATKULL – Teu emprego é triste, Saltz.
SALTZ – E quando à s vezes tomamos a um preso – porque o conhecemos
generoso e bom – quando o amamos como se fora um parente – uma parte da nossa
alma – e sabemos que há-de morrer – que tem de morrer às mãos do carrasco em dois
dias – em duas horas e não ter forças para o salvar, quando daríamos a vida por ele?! –
É triste, bom senhor – é triste para quem pensa – para quem sente: – para o que morre –
algumas horas – e para o que vive, a vida inteira!
PATKULL – Tens razão, Salta – Talvez que eu te poupe esse dissabor – que
ta nto te pena liza.
SALTZ – E quem pode contar c om a vida?
PATKULL – O coração, Saltz – há esperanças que não mentem, há ilusões que
são esperanças. Há convicções de que não podemos separar de uma criatura mau grado
a violência – Tenho essa esperança – essa convicção profunda. Deixá-la? – Não vês tu
que é impossível.
SALTZ – E o que há impossível para Deus, Senhor?
PATKULL – A injustiça – a crueldade, a falta de misericórdia – tudo o que obsta
ao amor e à fé – tudo, porque Deus é o amor – é a vida, Saltz – é a esperança.
SALTZ – Que Deus vos ouça – que lho peço de todo o coração porque vós sois
bom, Senhor. – Careceis de alguma coisa.
PATKULL – Não, Saltz, deixa-me só.
SALTZ – E se alguém vos qui sesse falar?
PATKULL – Quem se lembra... Wolf!

CENA III
WOLF corre para ele – vai para lhe beijar a mão – Ele o impede e o abraça.

PATKULL – Wof, já me esquecia de ti, bom pajem – bem hajas tu que tão
gostosamente me vieste surpreender?
WOLF – Não tanto como pensais – meu bom amo.
PATKULL (Encarando-o) – Pois não vieste só para ver teu pobre amo – que
gemia aqui – sozinho.. – Tirante uma pessoa, Wolf, eras a quem mais desejava ver –
Não me trazes novas de alguém?...
WOLF – Tristes novas, Senhor.
PATKULL – De quem, Wolf?
WOLF – Da duquesa.
PATKULL – Morreu a Duquesa?
WOLF – Vive.
PATKULL – Está doente? Fala, Wolf – está doente, talvez próxima a morrer?
Por que mo não disseste mais cedo – que já agora estaríamos em caminho.
WOLF – Está boa.
PATKULL – Oh! Podes então fa lar, meu amigo.
WOLF – Meu tio!
PATKULL – Deixa-nos por um pouco, Saltz.
SALTZ – Não quere is ficar só?
PATKULL – Não, Saltz – não – quero primeiro ouvir teu sobrinho – e quando
voltares, por ventura que me encontrarás mais venturoso do que o condenado a quem
anuncias salvação.
SALTZ – Deus o queira.

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PATKULL – Pobre velho – que já não vê na vida um raio de esperança. –
(Pensa) Que me dizes tu, Wolf?
WOLF – Meu bom amo. (Lançando-se nos braços dele)
PATKULL – Que t ens tu?
WOLF – Nada, Senhor, nada.
PATKULL – Por que c hora, pajem!
WOLF – Eu não quisera mortifica-vos, Senhor.
PATKULL – Dize – Wolf – por que assim choras – o que te aconteceu, não vês
que esse teu silêncio me aflige?
WOLF – Por que me deixastes vós naquela casa, Senhor, quando eu vos pedia
que me trouxésseis convosco?
PATKULL – Quê? Fizeram-t e mal ?
WOLF – Senhor – não, mas não veria eu tanta traição.
PATKULL – Contra quem, Wolf?
WOLF – Contra vós, Senhor – contra vós mesmo.
PATKULL – Vamos, Wolf, endoideceste depois que me soubeste preso.
WOLF – Contra vós, e era vosso amigo!
PATKULL – Paikel!
WOLF – E a vossa noiva.
PATKULL – Namry! – Por que me exalto! Um delírio de criança.
WOLF – Foi Bertha quem mo disse.
PATKULL – Mentiu, Wolf!
WOLF – E eu que o vi?
PATKULL – Viste! Que viste tu! Por que me apareces aqui? – Quem te chamou,
Wolf? Infame! Sabes tu que eu, preso como estou, posso fazer saltar sobre estas paredes
teu sangue e cérebro? Que eu te poderia estalar a vida, calçando aos pés teu corpo?
Tanta mentira em tanta juventude!...
WOLF – Eu vi. (chorando) E disseram-me que Paikel vos mandara aqui para o
cadafalso.
PATKULL. – Paikel – oh! Sim, foi ele quem instou comigo para que aceitasse
este maldito emprego: foi ele quem mendigou por mim esta maldita embaixada – foi
ele...(Para de repente encara seriamente Wolf – vai sério para Wolf – pega-lhe nas
mãos) Wolf – um malvado pode se aproveitar da tua inocência e fazer-te perpetrar um
crime – uma violência. – Podem ainda iludir-te com esperanças de riquezas – de
palácios – de jogos – de prazer que fariam cair um anjo – Wolf – dar-te-ei riquezas
como nunca pudeste imaginar – riquezas com que podes comprar prazer e venturas –
riquezas que te assegurem um futuro real e brilhante. – Mas afirma que isso que disseste
é uma mentira – uma calúnia que algum te sugeriu. – Dize Wolf! – Bem sabes que sou
te u amigo! Por que me que ria s tu e nganar?
WOLF – Disse a verdade.
PATKULL (Com violência – apertando-lhe os braços com força) – Disseste
uma mentira.
WOLF – Ai! Que me matais.
PATKULL (Atirando-o para longe) – Criança – Oh! Que não sejas um homem!
– Maldito sejas tu – mataste-me a fé – e o coração – mataste-me o que eu tinha de mais
sagrado e inestimável – ingrato que assim pagas quanto hei feito por ti – vai-te – vai-te –
e nem mais eu te veja – mensageiro do inferno. (Wolf sai. Ele cai sobre uma cadeira.
Põe as mãos nos olhos fica mudo) Namry – eu te amava tanto – Paikel. (Levantando-se
e gritando furiosamente) Paikel – Oh! Não ter um instante só de liberdade – um
momento – um nada!! – Infame (Rindo) Que mal fiz a esta gente para que assim me

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martirizem – eu os amava tanto!! Meu coração era dela – meu sangue era dele – de
ambos eles minha vida! Que mal lhes pude fazer? (Pensa) Wolf era um bom pajem –
naquela idade não se fingem lágrimas – e a mentira não roça os lábios da inocência. –
Bertha tinha ciúmes. – O ciúme vê muito, vê longe. – certo! Por que deixou Paikel seu
negro laboratório – por quê? – Quando o demônio deixa as trevas não é para vir no
jardim do paraíso aliciar a criatura inocente? Não me disse ele que já se conheciam! – E
por que me pediu ele um lugar secreto para a conferência senão porque sabia que seria
em casa dela? Que empenho tinha de me ver segunda vez envolvido num vórtice de
guerras e de interesses, se não para se ver só com ela! (Ouve-se o rangir de uma
fechadura que se abre. – Patkull senta-se e vira as costas para a outra porta.)

CENA IV
Entra PAIKEL em trajes de criado do cárcere com um cesto

PAIKEL – Aqui tendes comida.
PATKULL – Está bom.
PAIKEL – Quereis alguma coisa?
PATKULL – Não; podes -te ir.
PAIKEL – Como sois triste!
PATKULL – Está bem!! Está bem!! Pode s-te ir.
PAIKEL – Não vos lembra de alguém?
PATKULL (Estremece – olha repentinamente para ele) – Oh! Lembrava-me de
ti.
PAIKEL – E não me esperavas?
PATKULL – Sim, eu te espe rava..
PAIKEL (Chegando-se para ele – e estendendo-lhe a mão – Patkull recua) –
Bem me custou chegar a ti; – e quase a tua e a minha esperança seriam baldadas.
PATKULL – Mas eu te esperava.
PAIKEL – E tinhas razão, esperavas um amigo.
PATKULL – Não, mas a ti – Paikel – A vítima que morre tem dores que
regozijam o coração do sacrificador – o coração tem tormentos que são como delicioso
manjar de vingança – e olhos de homem que vertem lágrimas têm mágico atrativo para
o homem que as faz verter. – Perder ocasião de espreitar dores lágrimas e tormentos –
Oh! Era supor-te bem pouco esquisito de gosto – tu vieste – eu te esperava.
PAIKEL – Vim para te sa lvar.
PATKULL – Oh! Melhor – melhor – ainda. – Quem morre – morre uma vez – já
se não sente – era pouco. – Era mais horrível ter vida – sentir a morte a cada hora, a
cada instante – a cada instante dores piores que a morte – que desesperam, que
elouquecem. – É mais deleitável! Mais belo! Tens razão de me quereres salvar – Paikel.
PAIKEL – Não te posso entender! Patkull. – Depois falarás à tua vontade – dir-
me-ás o que quiseres – o que te aprouver dizer – mas hei-de primeiro salvar-te – porque
eu dei a minha palavra que voltarias são e salvo.
PATKULL – És um homem de palavra, Paikel!
PAIKEL – Salvar-te-ei, Patkull. – Alguma s horas mais e será noite. –
Brevemente os soldados de Carlos XII tomarão conta deste castelo.
PATKULL – Be m o sei.
PAIKEL – No meio desta mudança poderás passar desapercebido – levarás esta
farda de lacaio, que me pôde conduzir até aqui – e que de certo te porá fora, incólume e
salvo.
PATKULL – E irei ter com Namry, não é assim, Paikel.

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PAIKEL – Irás onde quiseres, Patkull.
PATKULL – Dir-lhe-ei. "Paikel é um amigo nobre e honrado: conduziu-me à
borda do meu precipício, atirou-me nele e depois como lhe sobreviesse um resto de
compaixão, estendeu a mão a quem já não tinha esperanças de vida – e que endoideceria
de as ter".
PAIKEL – Dir-lhe-ás de mim o que quiseres, depois de te haver salvado –
Patkull.
PATKULL – E concluirei, dizendo: vosso amante é um homem grande e
generoso. – Podeis ser orgulhosa de ter um amante assim.
PAIKEL – E quem te disse que eu a amava?
PATKULL – Por que me aferrolhastes numa prisão? Por que me mandastes
talvez me aparelhar um cadafalso?
PAIKEL – Patkull, quando instei contigo para que aceitasses este maldito
emprego – por minha alma que não havia uma sombra de risco ou de perigo. – Eu dei-te
a minha palavra, e serás salvo.
PATKULL – Obrigado.
PAIKEL – Não há tempo para nos mostrarmos arrene gados. – Patkull, dentro de
algumas horas já a tua evasão será impossível. Troquemos trajes – tu serás o moço do
carcereiro – e eu serei o preso.
PATKULL – Não – vale mais que eu fique.
PAIKEL – Patkull – salva-te – salva-te, porque o podes fazer por amor de ti,
senão por amor de mim – salva-te por Deus. – Oh! Tu não sabes como eternamente me
pesaria sobre o coração a lembrança de que fui eu o que a meu amigo matei de morte
afrontosa e de tormentos.
PATKULL – Estranha compaixão!! E não sabias tu que eu a amava – Paikel?
PAIKEL – Por Deus – não nos demoraremos com vagares imprudentes Patkull –
fui culpado – fui criminoso – fui vil – fui infame – fui mau amigo – o que tu quiseres. –
Mas salva-te por amor dela – Patkull – e por amor de mim mesmo. – Não me
acreditarias agora por mais que to eu dissesse. – Mas salva-te – salva-te por amor dessa
nossa amizade tão antiga – tão extrema – tão sincera – salva-te – Patkull – e um dia
terás piedade do teu pobre amigo que comprou bem caro o extravio de um momento –
salva-te.
PATKULL – Por que me não deixas aca bar em paz!
PAIKEL – Patkull – por que és tu tão severo? Meu amigo. Oh! Deixa-me
chamar-te por este nome tão suave, que tantas vezes me deu alívio e prazer! – Meu
amigo, se soubesses quanto tenho sofrido para chegar até tua presença... Dormi ao frio e
ao relento sobre a terra – com a cabeça sobre uma pedra defronte deste castelo – a
pensar no meio de salvar-te – via lá de fora a tua sombra que me intercortava a luz de
espaço a espaço e eu chorava por ti – e só por ti – meu amigo – Oh! Por Deus te peço –
foge e deixa-me aqui sozinho – deixa-me – mas salva-te.
PATKULL – E eles te matarão!
PAIKEL – Oh! Que me importa a morte? Morrer, Patkull, morrer por ti, era a
ventura derradeira que me seria dado desfrutar sobre a terra. – Nada tenho, nada me
resta – não – nada – nem quem vá orar sobre minha sepultura – nem que possa sentir
escurecida a vista com lágrimas, vendo pender do infame cadafalso os restos do infeliz
Paikel. – Oh! Dá -me este prazer, Patkull – bem sei que não to mereço – que nada te
posso pedir. – Porém tu podes ainda contar com o amor, com a glória, com a fortuna.
PATKULL – Crês t u?
PAIKEL – Morra quem já não sente uma esperança, para quem morreu a vida e
coração – para quem nada mais sente do que o infortúnio.

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PATKULL – Ficarei, Paikel.
PAIKEL – Barbaramente me punes, Patkull – foge – foge, meu amigo – eu to
suplico de joelhos, e com lágrimas pelo que mais veneras neste mundo – pelo que tens
no outro de esperanças – de amor.
PATKULL – Não – Paikel, – para que viver – estou cansado de lutar, cansado de
sofrer – cansado de quanto me sorria. – Deixa-me pois – Levanta-te, Paikel – quem sabe
se não há uma força no mundo – que impele os homens para um fim – forçosamente –
irresistivelmente – Cumpriu-se o nosso fado. – Não tens culpa, talvez foste instrumento
e não causa do que me está preparado – seja como for – bem vês que não te culpo – não
te crimino – nada te peço – porém vai-te e sê feliz – se o puderes.
PAIKEL – Então morrerei contigo.
PATKULL – Para quê? – Que importa um nada depois da vida: que morramos
sós – ou acompanhados de mil homens? (Ouvem se estrépitos de soldados)
PAIKEL – Foge, Patkull, enquanto é tempo, foge. – Daqui a nada seria inútil o
arrependimento – serão inúteis queixas, rogos, prantos. – Foge. – Tu amas, Patkull – tu
és amado ardentemente – como só tu merecias sê-lo. – Foge ao menos por amor dela – e
nem terás que temer um rival que, antes de muito pouco, já não existirá. – Foge por
Deus. Já sinto o rumor dos soldados que se aproximam – os soldados de Carlos XII – do
teu inimigo, do matador de teu pai – de tua família, que daria sua coroa para te haver às
mãos. (Entra Bertha – coberta de preto – a porta fica aberta e ele continua) Vive ao
menos para tua vingança.

CENA V
Os mesmos e BERTHA

BERTHA (À parte) – Bem me compreendem.
PATKULL – Meu pai! (Continua) Por muito tempo me tenho esquecido do
muito que os vi sofrer – vamos, Paikel, vingarei meu pai que morreu num cadafalso –
minha mãe que morreu de miséria num calabouço imundo. (Agarra na mão de Paikel –
com força e vai a voltar-se) Fujamos.
BERTHA – Ainda não, Senhor!
PATKULL – Meu Deus. (Aparecem os soldados à porta. Ela descobre-se e
aponta para Paikel)
BERTHA – Bem vedes que é um traidor, prendei-o!


(Cai o pano)


ATO QUINTO

PERSONAGENS

PATKULL
NAMRY
UM PADRE
SOLDADOS



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ATO QUINTO
O mesmo cárcere – e mesmo arranjo de cena.

CENA I

PATKULL – Meu pobre coração?! Eu, mesmo eu, te desconheço – o que viste
tão coitado não são lágrimas – é fel é sangue! – Meus amores tão lindos, que são deles?!
Que é da amizade tão grande que encerravas?! De tão nobre sentir o que te resta, meu
pobre coração?! Eu amava!! Amava o meu amigo, a minha amante – e ele vendeu-me –
e ela, meu Deus – e ela?! Era dela meu sangue, meu coração – minha alma – era dela o
pensamento – o prazer – a tristeza – tudo – só por ela vivia – só por ela e para ela. – Que
lhes fiz eu?! Paikel?! Quê de vezes me chamaste teu amigo – mentias tu então?! Por que
me traíste, meu Paikel – por quê? Que se me dessem um reino – e agora mesmo, se me
dessem a liberdade – se alguém no mundo me pudesse dar o engano de outros tempos –
a ilusão e brilhantismo do primeiro amor... para que te eu traísse – talvez – talvez que o
não fizera – e tu?! Mas eu me calarei sobre ti – pobre amigo que te perdeste e me
perdeste contigo. Não inquietarei tua sombra, Paikel. Os homens te mandaram para
Deus – morreste. – Não, não serei eu que porei na balança da justiça eterna traição tão
feia e má.
Não serei eu – bem que tudo me roubaste – o amor e a vida – o amor que era o
meu paraíso – que era meu tesouro – tesouro de avarento – tesouro inesgotável de
venturas que ela enfeitava. – E a vida só para a gastar com ela – só com ela – aos pés
dela – para a ver sempre com um sorriso nos lábios, ou com lágrimas nos olhos –
Namry – bela estrela – farol tão meigo de esperanças – belo anjo de luz – também tu me
pudeste trair – Namry! A mim que te amava tanto. Oh! Que só por ti me pesa deixar a
vida – que serás tu sem mim? Agora que eu já sinto a morte esvoaçando sobre a minha
cabeça – não me pesa deixar a vida – mas pesa-me deixar-te a ti que eras meus amores.
– Mas por que choro assim? Não – não saberá ela que a chorei no agonizar da vida –
não saberá que talvez de mim se rira orgulhosa! Ela a escarnecer-me – a rir-se sobre o
meu sepulcro – a insultar-me no cadafalso – no cavalete, quando me ralo com dores!
Que mais me pode rás tu fazer!! Dir-me-ás talvez que me não amavas. – Demais o sei!
Meu Deus! Meu Deus! (Cai sobre a cadeira)
Por que me esqueci eu de meus pais? Certo que a morte seria então bela, chorada
por todo um povo. – E que me importa um povo!!
Loucuras que eu afaguei no entrar da vida – quimeras que se me esvaem no
entrar da morte.
Louco o homem neste mundo que diz na sua consciência: eu salvarei tal povo.
Louco o homem que diz: eu tenho um amigo – que é meu sangue – meu corpo.
Louco o homem que diz: eu tenho uma amante pura e bela como um anjo – uma mulher
que é minha alma – louco porque o povo está embriagado na sua vilania – porque o
amigo é falso – porque a mulher é víbora. – Oh! Não ter alguns dias mais para assistir
tranqüilo ao espetáculo de tanta baixeza – queria me rir do que se julga um libertador –
do que conta com a fé do amigo – e com o amor da amante. – E que mais merecemos
nós do que desprezo ou riso – crédulos como somos?
Não – mais vale morrer. Depois de tantas esperanças só nos resta a morte em
última recompensa. – Quem me de ra morrer – morrer com dores que me façam esquecer
o muito do que eu sofro! Morrer, que talvez debaixo da lousa fria de um sepulcro não
pulse o coração.

CENAII

35

Abre-se a porta. Aparece um padre.

O PADRE – Senhor.
PATKULL – Benvindo sejas, meu padre.
O PADRE – Como ides?!
PATKULL – Mal – muito mal – porém sinto que serei melhor quando me
houverdes falado – porque se para outro podiam ser fatais palavras – serão para mim de
contentamento.
O PADRE – Presunções do que vive sempre falham, meu filho, as esperanças
mentem, quando se não espera a morte.
PATKULL – Eu a espero, meu padre.
O PADRE – Que esperais?
PATKULL – Sim, meu Padre – espero a morte – espero-a breve – desejo-a como
se poderia desejar a vida. – E que Deus me perdoe esta esperança se resume um pecado.
O PADRE – Muito me apraz encontrar-vos neste estado – o que sofre encontra a
graça do Senhor que só consola àqueles que o mundo não pode consolar. – Porém se
não tendes apego à vida, também a não aborreceis, que o aborrecimento é mau
conselheiro – como vós, também sofri, também vaguei no mundo às tontas, e em bem
que o conheci – são mil caminhos enganosos, orlados de flores – banhados de perfumes
– onde contudo crescem cardos e os espinhos brotam; e a ovelha mansa que se desgarra
do rebanho do Senhor – deixa nos cardos e nos espinhos a maior porção de lã tão alva e
fina, e não encontra o pasto que deseja. – Somos todos nós como a ovelha imprudente –
e porque não trilhamos a senda da verdade – aborrecemos tudo, bem que de tudo não
tenhamos ciência.
Que merece a vida – sonho mais ou menos longo – alegre ou triste – é como o
fumo que um leve sopro do vento espalha nos ares.
PATKULL – Como falais be m, meu Padre.
O PADRE – Talvez vos pese deixar a vida pelo que deixais com ela!
Quem não sente o amor da vida? Quem não sente a amizade? – E o amor e a
amizade são ouropéis quando não manam do Senhor. Bem felizes aqueles que morrem
enganados! – Talvez amastes – mas o que não sabeis é que a humanidade é frágil, e os
afetos, movediços como a grimpa do campanário.
PATKULL – Tendes razão.
O PADRE – De tudo vos deveis esquecer, para que o Senhor seja convosco. –
Em breve tereis de aparecer na presença de Deus – segundo o crer dos homens. –
Trabalhai pois para que a morte vos não encontre desprevenido – porque lhe não podeis
dizer pára. – Preparai-vos.
PATKULL – Preparado me achais.
O PADRE – Talvez não tanto como será mister; dir-vos-ei, por que não fraquieis
quando carec erdes de toda a vossa coragem – vossa morte tem de ser horrível.
PATKULL – Como quiserem.
O PADRE – Cheia de ignomínia
PATKULL – Seja.
O PADRE – E de tormentos.
PATKULL – Seja ta mbém.
O PADRE – Serão vossos escritos queimados.
PATKULL – Já o foram.
O PADRE – Vosso brasão espedaçado pelo carrasco.
PATKULL – O mais nobre talvez que ele terá espedaçado.
O PADRE – Sereis depois rodado.

36

PATKULL – Que seja breve.
O PADRE – Não! Querem-vos paciente por muito tempo – ainda em vida tereis
a cabeça despedaçada.
PATKULL – Em bem! Que eu já desesperava de morrer.
O PADRE – Sereis depois esquartejado e vossos membros pendurados nos
quatro pontos da cidade. – Tal é a sentença de Carlos XII.
PATKULL – Calos XII – Carlos XII. – Oh! Por que me falais nesse homem? Já
que tanto me tenho esquecido ao menos me podereis deixar morrer sem ouvir
pronunciar o seu nome.
O PADRE – Tal ódio às bordas do sepulcro!!
PATKULL – Meu padre, dizei-me: não é verdade que o filho tem dever de
defender a vida do pai?
O PADRE – É um dever recíproco de um para com outro, e do homem para o
homem.
PATKULL – Não terá e le direito de vingar sua morte?
O PADRE – Não – que a vingança é do que nega a Providência.
PATKULL – Crede-o vós? Oh! É porque não sabeis como acreditais que ele me
perdoará nos céus de o ter esquecido por tanto tempo?
O PADRE – Por que não?
PATKULL – Oh! Sim, por que não? Um pai não se esquece de seu filho – e de
mais tenho sofrido para impetrar o seu perdão – sofri muito talvez, porque de tudo me
esqueci para me lembrar só da glória e do amor. – Oh! Meu padre, que se a vida é fonte
de venturas, não o foi para mim – que só achei tropeços e calamidades. – E hoje, quando
me lanço na história do passado – não encontro um quadro feliz em toda a existência –
que não tenha o acre do desengano. – Busquei o amor e a glória. – E o amor traiu-me e
enegreceu os últimos instantes da vida que a glória me faz perder no cadafalso e na
vergonha.
O PADRE – Consolai-vos que o sofrer é dos homens – não se vos dê do passado
– melhor para vós se ele foi áspero e terrível, porque o não chorareis no passar da
inquietação da vida para o sossego do túmulo.
PATKULL – Não serei eu quem a chore!
O PADRE – Estais preparado?
PATKULL – Já vô-lo disse.
O PADRE – Então – adeus, meu filho.
PATKULL – Adeus, meu Padre .
O PADRE (Pega-lhe nas mãos) – Bem me custa separar-me de vós – muito –
mas não quis Deus que o homem visse a dor do seu semelhante sem que despontasse em
seus olhos uma lágrima de simpatia.
PATKULL (Abraç ando-o) – Bom padre.
O PADRE – Adeus, meu filho. (Vai-se )

CENA III

PATKULL – Bom padre – como se compadeceu de mim? E se ele soubesse o
que encerra este meu peito, se ele o soubesse? Oh! Não derramaria lágrimas – não –
porque lágrimas não bastam para o que sofro!! E eu morro sozinho e abandonado na
morte, como na vida – Namry!! Sempre este nome; ao menos praza a Deus que dela não
me recorde noutra vida. – Oh! Se ainda a pudesse ver uma vez?! Bem sei que foi falsa,
que me enganou: não virá, não. – Que lhe importa Patkull que morre, e se alguém chora,
certo que não é por mim.

37

CENA IV
PATKULL E NAMRY

(PATKULL sentado com as mãos na cabeça. NAMRY entra e vai correndo para
ele. PATKULL desperta, encara-a – fica assentado – e ela pára.)

NAMRY – Sou eu – não me conheces, Patkull – eles me concederam este
momento, para que te eu visse antes da tua morte!! Não me conheces?!
PATKULL – Namry (Abraça-a, beija-a muitas vezes), tardaste tanto!
NAMRY – Quis ver se te salvava.
PATKULL – E eles disseram que tu não me amavas – Namry – e eu acreditei-os
– sim – tu mo perdoarás – tão boa que tu és – tu te lembraste do pobre homem que
morria, Namry – Oh! Bendita sejas tu – e possas ter na hora da tua morte a felicidade
que me fazes experimentar – meu anjo.
NAMRY – Por que te não pude eu apreciar de mais tempo?
PATKULL – Tu me amas.
NAMRY – Não mereço o teu amor.
PATKULL – Oh! Dizes bem – não respondas – Namry – não me respondas, que
me seria cruel tua resposta: Deixa-me acreditar que vieste aqui por amor e não por
piedade. – Deixa-me acreditar que foi mentira o que me disseram de ti – deixa-me acre-
ditar – para que morra consolado.
NAMRY – Por que te matam tão cedo!
PATKULL – Não é cedo, é tarde. – Eu quisera morrer aqui nos teus braços
deixando no teu peito meu último suspiro, e gravando na memória o teu nome
intercortado, que acabar não poderia.
NAMRY – Por que morres agora – ah! Se pudesses viver – se pudesses viver –
Patkull, se o pudesses – então talvez que eu fizesse esquecer a minha ingratidão doutros
tempos e o faria; dár-te-ia amor – não como o teu que não pudera – mas alma e coração
– eu tos daria e o que fosse em meu poder fazer-te – para te alegrar a vida e o
pensamento – eu o faria por gratidão, por amor e por mim mesma, Patkull!
PATKULL – Não vês que eu choro?!
NAMRY – Choras a vida que é tanto para ser chorada – quando como a tua se
empregou em obras de merecimento e de virtude.
PATKULL – Não – não choro a vida. – Muitas vezes me vi no campo da batalha
– vi a morte pairar sobre mim em nuvens de fumo e de pó, calquei meus companheiros
ainda quentes – e não chorei – não choraria a vida – não – mas choro por te deixar – e
conheço todavia que o devo fazer porque a minha Namry de hoje talvez que amanhã a
não encontre.
NAMRY – Sempre eu – sempre a tua Namry – Patkull. – Tua Namry –
desgraçada – que eternamente será viúva sem nunca ter sido esposa. Também me não
pesa de ficar só – que te não merecera – mas pesa-me deixar-te, Patkull.
PATKULL – Namry.
NAMRY – Meu Patkull!
PATKULL – Namry – vive feliz e venturosa – que eu morro – morro com
saudades tuas – e serei feliz se depois da morte acudirem lembranças do passado por
saber que me choravas depois de morto – por ter visto que choravas a minha morte.
NAMRY – Meu bom Patkull.
PATKULL – Namry – olha, eu tenho um pajem – tu o conheces, talvez que há
pouco com palavras mal pensadas ofendesse o meu pobre pajem. – Toma-o para te
servir – Namry – que é fiel e honrado – muito me amava e é uma dívida que pagarás por

38

mim. (NAMRY nos braços dele chora)

CENA V
SOLDADOS e os mesmos

SOLDADO – Temos ordem de vos levar daqui.
NAMRY – Já! Já! Meu Patkull.
PATKULL – Corage m, Namry!
NAMRY – Oh! Eu teria coragem – mas que ao menos por um momento mais me
deixassem contigo.
PATKULL – Tem de ser já.
NAMRY – Oh! Como sois cruel – Patkull! – meu Patkull – meu amigo, tu não
me deixarás, não – eu morreria sem ti.
PATKULL – Namry – meu amor! – meu anjo – deixa-me partir. (Abraçando-a e
beijando-a)
O SOLDADO – Diziam-nos que éreis valente!
PATKULL – Não vos mentiram.
O SOLDADO – E chorais!
PATKULL – São lágrimas nascidas de um coração que ama – nunca as derramei
no travado das pelejas, nem ora me oprime – e acabrunha o aspecto da morte!...
O SOLDADO – Apressai-vos. O tempo urge!
PATKULL (Abraçando Namry) – Adeus! Narnry! (Arrancando-se dos braços
dela)
NAMRY– Meu Patkull! Ah! (Cai, Patkull retira-se entre os soldados)


(Cai o pano)

39 A Marca do Chicote
Henry Keystone




Naquela noite de muita dor, Keit leit, tinha apenas uma certeza, iria voltar a Rio Muerto para concretizar a sua vingança. Tinha apenas um objectivo matar: matar Dextor Clinton, um poderoso rancheiro do Novo México e cinco dos seus vaqueiros, que obedecendo às ordens do seu patrão controlavam a maioria dos ranchos vizinhos. Quando Keit voltou a Rio Muerto, foi-lhe atribuido o cargo de agente federal, e com todos os poderes que lhe são inerentes conseguiu, fazer cumprir a lei, não se tornando um assassino apenas um homem da lei que a respeitava e fazia respeitar: "A violência nunca se justifica, e nem a vingança, são dignas de um homem honrado." sempre repetindo estas palavras de seu pai, na hora do seu ultimo suspiro.



Título original: "LATIGAZOS"




Disponibilização: Luka
Digitalização: Marina
Revisora: Ana Marques
Formatação: Edina




PRIMEIRA PARTE

RIO MUERTO - Território do Novo México

ANO 1860



Aiken Clark tinha quarenta anos e era capataz do Círculo Barrado, um pequeno rancho de propriedade de Dexter Clinton. E foi Dexter Clinton que falou a Aiken, secamente:
- Prepare a corda.
Ele se afastou do grupo e tirou uma corda grossa de cânhamo que pendia da sela de seu cavalo. Voltou com passos lentos para o grupo formado por outros cinco vaqueiros do Círculo Barrado, o dono do rancho, um homem de uns cinquenta anos e um rapazola de quatorze.
- Acho que vai cometer um engano, patrão - disse o capataz, colocando-se à esquerda de Dexter Clinton.
- Cale-se, Aiken! Você sabe que nessa região, os ladrões de gado são enforcados.
Dexter Clinton tinha vinte e sete anos, ombros largos e músculos fortes. Suas feições eram bem feitas, curtidas pelo sol do Novo México e refletiam grande frieza.
Ele era um homem cruel e selvagem, com uma ambição sem limites.
Só conhecia a lei ditada por ele mesmo, imposta por sua força e suas armas. Uma vida humana nada valia para Dexter Clinton. E na categoria de humanos não incluía mexicanos, peles-vermelhas ou chineses.
O capataz sabia que nada era capaz de deter seu patrão. Ele não desperdiçaria uma ocasião para usar sua crueldade. Apesar disso, fez nova tentativa,
- Não acho que sejam ladrões, patrão. Tanto o homem como o menino parecem mesmo ter passado fome.
- São ladrões de gado. Mataram uma das minhas reses - respondeu Clinton secamente.
Aiken calou-se. Contemplou o homem que ia ser enforcado.
Ele estava em pé ao lado de uma carroça velha, puxada por dois cavalos esqueléticos, com as mãos amarradas nas costas e cabeça erguida, como se fitasse os galhos do frondoso olmo.
Desviou o olhar da árvore e fixou-o em Dexter Clinton. Era um olhar calmo e sereno como se a ideia de morrer não lhe desse nenhuma emoção.
Também a voz era pausada e tranquila quando se dirigiu ao rancheiro.
- Já lhe disse que a rês estava morta quando a encontramos. O animal tinha quebrado o pescoço ao cair na ribanceira. Além disso, não tinha qualquer marca.
- Essas terras as minhas e tudo o que há nelas me pertence. Não estou disposto a me deixar roubar pelo primeiro par de vagabundos.
- Não sabia que a estrada passava por terras particulares. Meu filho Keit e eu saímos de Kansas porque aquele território está sacudido por violentas lutas entre os partidários da abolição e os escravagistas, íamos para a fronteira do Sul mas nos extraviamos nos Black Rangers e nossas provisões terminaram.
- Uma boa história e você a decorou bem. Já me contou três vezes a mesma coisa - troçou Clinton.
- Nunca menti, nem jamais matei ninguém. Odeio a violência e por isso abandonei Kansas com meu filho. Não quero que ele veja os homens se matando - disse o acusado, olhando para o menino.
O menino estava a pouca distância de seu pai, imobilizado pelos braços fortes de um vaqueiro chamado Alvin Peach que se divertia com os seus desesperados esforços para se soltar.
O menino não gritava nem pedia nada mas seus olhos cinzentos faiscavam de raiva.
- Já falámos demais. Prepare o nó corrediço, Aiken - falou Clinton.
O capataz não se moveu. Apesar de conhecer a falta de sentimentos de seu patrão, ainda tinha ousado pensar que no último instante ele não teria coragem para enforcar um homem pelo simples fato de ter comido carne de uma rês que tinha encontrado morta.
Tinha passado a maior parte da vida vendo coisas desagradáveis e até horríveis.
Tinha visto o enforcamento de mais de vinte homens e ele mesmo tinha mandado meia dúzia deles para o inferno mas sempre em igualdade de condições.
Sempre frente a frente, com armas nas mãos. Tinha tido sorte e os mortos eram sempre seus inimigos. Entretanto, tinha dado a eles oportunidade de tentar o contrário.
Aiken Clark tinha vivido muitos anos como foragido da lei. Não era nenhum santo. Não havia santos no Novo México. Mas havia mártires.
Mártires da violência, do ódio, da ambição e de um desejo insano de destruir pelo simples prazer da destruição.
Dexter Clinton além de ambicioso era destruidor. Recordava uma raposa. Uma raposa não se contentava em entrar num galinheiro e matar os animais necessários para saciar sua fome, dava dentadas à direita e esquerda, semeando destruição.
- O nó, Aiken! - repetiu o rancheiro com impaciência.
O capataz sentiu a intensidade dos olhares do pai e do filho. Suas mãos suaram apesar da brisa fresca que vinha dos lados do rio Gila.
O homem que ia morrer tinha dito que se chamava Jeff Leit e era um agricultor - Aiken sabia que ele falava a verdade porque tinha visto suas mãos cheias de calos.
Também tinha examinado o interior da carroça. Tinha visto um arado, ancinho, pás e sacos de sementes. Mas não tinha encontrado víveres nem fumo apesar de Jeff Leit ter um cachimbo bem usado.
Sem dúvida tinham cruzado os Black Rangers e se perdido e ficado sem previsões. Nenhum fumante ficava sem fumo á não ser por motivos muito importantes.
- Estou esperando, Aiken - disse Dexter Clinton.
- Não sei atar um nó corrediço, patrão. Não sou carrasco. Sou vaqueiro.
O rancheiro arrancou a corda das mãos dele.
- Eu mesmo faço.
- Aiken Clark está muito velho - disse um dos vaqueiros chamado Bud Stern, em tom de troça.
O capataz lançou um olhar cheio de indiferença a Stern. Sabia que ele queria ocupar seu lugar. Pouco lhe importava pois estava ficando cansado daquilo tudo.
Jeff Leit ficou quieto quando o rancheiro enfiou o nó em sua cabeça.
- Você mesmo vai me enforcar? - perguntou com calma.
- Não. Só me encarrego dos preparativos e darei a ordem - respondeu Clinton, ajustando o nó sob a orelha esquerda de Leit.
- Você é um desses homens que destroem tudo. Como se chama?
- Dexter Clinton. Mande minhas lembranças ao diabo.
- Pode me matar, Clinton. Mas antes quero fazer dois pedidos. Tenho direito ou não?
- Pode falar - disse Clinton querendo demonstrar aos vaqueiros que podia ser tão calmo como o condenado.
- Não maltrate meu filho. Quando um homem morre é bom saber que sua vida não foi infrutífera. Um filho é a continuação de nós mesmos, não acha?
- Não tenho filhos.
- Mas terá um dia... embora seja difícil - Jeff Leit deu um meio sorriso
O sorriso irritou Dexter Clinton mas ele se conteve e perguntou.
- Qual o segundo pedido?
- Deixe eu falar com meu filho. Não quero que se transforme num assassino. A violência nunca se justifica. Nem a vingança, são dignas de um homem honrado.
- Traga o garoto, Alvin - ordenou o rancheiro.
Jeff estava com o laço no pescoço mas as botas grossas de camponês continuavam firmes no chão úmido da pradaria..
No outro extremo da corda estavam as mãos de Clinton e Aiken tinha recuado um pouco, observando a cena. Receava alguma crueldade do patrão.
Não se enganou. Quando Alvin Peach empurrou o pequeno Keit para diante, Clinton deu um puxão na corda e Jeff Leit caiu ao chão sobre o ombro direito. Seu rosto se contorceu de dor.
Alvin Peach desatou a rir e afrouxou suas mãos sobre o menino. Keit aproveitou para desvencilhar-se dele e correu para perto do pai, ajoelhando-se junto dele, tentando desamarrá-lo.
- Lembre-se que a vingança não é própria dos homens honrados, meu filho - disse Jeff Leit.
Alvin Peach tirou o revólver do coldre e desfechou um golpe com a coronha na cabeça de Keit. O menino deu um salto para trás e caiu pesadamente no chão.
- Menino imbecil! - xingou Alvin. Jeff Leit conseguiu se levantar e pela primeira vez perdeu a serenidade. Seu rosto empalideceu e olhou Alvin com ódio. Sua perna direita foi impulsionada com força e atingiu o vaqueiro no baixo ventre.
Alvin Peach se dobrou mas não chegou a cair. Clinton deu outro puxão na corda e Jeff Leit caiu de costas.
- Vamos acabar logo com isso! - gritou o rancheiro.
Alvin, já recuperado do golpe, foi o primeiro a aproximar-se de Jeff para levantá-lo. Os outros vaqueiros do Círculo Barrado foram ajudá-lo. Só Aiken Clark ficou onde estava.
Os cinco homens empurraram Jeff Leit para a árvore que serviria de forca.
Clinton entregou a corda a Stern e ele a jogou habilmente por cima de um galho alto e forte, recuperando a ponta livre.
- Boa viagem, ladrão - disse o rancheiro.
Jeff Leit não disse nada. Seus olhos percorreram a extensa planície coberta de relva, a impressionante Meseta de Mongollon, à esquerda, as colinas de San Agustin à direita e depois pousaram no corpo do filho caído de bruços no chão úmido e verde.
- Adeus, filho - murmurou.
- Puxe! - gritou Clinton.
Um forte puxão e a corda se retezou. Os cincos vaqueiros ficaram sustentando a corda até que as botas de Jeff Leit ficaram no ar, a cerca de meio metro do chão.
Leit contorceu-se violentamente agitando as pernas, procurando um ponto de apoio. Após algum tempo, ficou imóvel.
Alvin Peach e Bud Stern amarraram a corda ao tronco da árvore, deixando o corpo pendurado.
- Um ladrão a menos - comentou friamente Dexter Clinton.
O capataz não disse nada. Apenas imaginava o que seu patrão faria com o menino.
- Destruam a carroça e matem os cavalos - falou Clinton.
Os homens obedeceram prontamente porque também gostavam de destruir.
Aiken Clark não se movia. Contemplava a sombra negra do cadáver sobre o solo.
- E o garoto? - quis saber Bud Stern.
- É muito pequeno para ser enforcado - falou o capataz. - Em Rio Muerto ninguém nos perdoaria o enforcamento de um menino.
- Não me importa a opinião dos cidadãos de Rio Muerto - disse Clinton.
Mas, no íntimo, sabia que Aiken Clark tinha sua razão. Rio Muerto era a capital da província de Medina e tinha um xerife e um juiz. Não valia a pena arranjar complicações com eles.
O rancheiro tinha seus planos e para alcançar êxito precisava manter uma fachada de homem honrado e virtuoso.
- Você tem razão, Aiken. Ele não tem idade para ser enforcado - falou Clinton. - Mas deve ser castigado. Vai saber que gosto tem um chicote de couro traçado.
- Não acha que ele já recebeu um castigo bem grande? - ponderou Aiken, apontando o cadáver.
- Não. Ele tem que sentir a dor na própria carne - disse Clinton exibindo uma fileira de dentes brancos.
- Não conte comigo para esse trabalho sujo - falou Aiken, afastando-se.
- Ele está se transformando num velho sentimental, patrão - disse Bud Stern. - Não serve mais para nada.
- Você se sairia melhor que ele? - falou Clinton.
- Pode tirar a prova - disse o vaqueiro.
Dexter Clinton pensou consigo mesmo que Aiken Clark estava se transformando num sério problema. Um homem com escrúpulos podia representar um grande perigo.
- Farei a prova com você no dia em que Aiken sofrer um lamentável acidente.
Stern compreendeu rapidamente o desejo do patrão. Em outras palavras ele tinha dito: "Acabe com Aiken e será o capataz do Círculo Barrado".
Clinton chegou perto do menino e rodou seu corpo com a ponta da bota.
- Joguem água nele para que acorde de uma vez!
Outro vaqueiro, chamado Amos Waltis encheu um balde com água barrenta e jogou-a no rosto de Keit.
O menino estremeceu e deu um leve gemido. Seu aspecto era deplorável. As pernas de suas calças estavam esfarrapadas, as botas já não tinham mais forma e a camisa era um punhados de tiras presas na frente por dois botões. O rosto estava pálido, os olhos fundos. O golpe desfechado por Alvin Peach tinha aberto um sulco em sua fronte e o sangue escorria para o chão.
- Levante-se, ladrão - disse Clinton.
O rapaz sacudiu a cabeça e levantou-se com esforço. A primeira coisa que viu foi o corpo do pai pendurado na corda. Um sofrimento intenso ensombreou seu rosto e nos olhos cinzentos não apareceu nenhuma lágrima. Ele apenas apertou os punhos até os nós dos dedos ficarem brancos.
Olhou em volta e viu que estava rodeado de homens sujos, suarentos e de rostos selvagens.
- Começou cedo a roubar, garoto miserável - falou Clinton. - Mas vou ensinar você a ser honesto. Tire a camisa dele, Bud!
Keit sentiu nojo daquele homem de olhos frios. Seu aspecto lhe recordava uma serpente. Sentia nojo e ódio. Bud Stern arrancou sua camisa com um puxão fazendo saltar os dois únicos botões. Keit sentiu um frio no estômago e empalideceu mais ainda. Estava com medo.
Clinton sorriu satisfeito. Gostava de aterrorizar seus inimigos, mesmo que tivessem apenas quatorze anos. Tinha sentido uma grande decepção quando Jeff Leit tinha morrido sem pedir clemência nem demonstrar pânico.
Felizmente ainda restava o menino.
- Sabe o que é um chicote? Sabe para que serve?
Keit balançou a cabeça afirmativamente.
- Seu pai usava chicote para fazer o quê? - insistiu.
O rancheiro adorava ver o pânico nos olhos de Keit.
- Para... fazer andar... os cavalos - respondeu o menino, tremendo!
- Isso seria no Kansas, garoto. No Novo México, usamos o chicote para castigar ladrões que não têm idade para ser enforcados.
Ele estendeu a mão direita e Bud Stern entregou a ele um chicote de couro trançado.
Keit estremeceu ainda mais subitamente o pânico sumiu de seus olhos e só o ódio transparecia neles. Levou a mão à cintura e tirou uma pequena faca. Seu gesto arrancou uma gargalhada geral dos vaqueiros do Círculo Barrado.
- O ladrãozinho quer lutar - troçou Clinton.
- É melhor enforcar ele - disse Maike Kendall.
- Como o ladrão de seu pai - concordou Bud Stern.
Keit, empunhando a faca, olhou fixamente o vaqueiro.
- Como se chama?
- Bud Stern. Por quê?
- Porque vou voltar um dia e matar todos os assassinos de meu pai. Quero saber os nomes de todos!- ele já não sentia nenhum medo.
Os vaqueiros deram novas gargalhadas.
- Meu nome é Alvin Peach - disse o vaqueiro que o tinha segurado.
- Eu sou Amos Waltis e este é Alec Dodds.
- Meu nome é Maike Kendall, valentão - riu o outro.
Keit olhou os cinco vaqueiros demoradamente como se quisesse gravar seus rostos em sua mente.
- Eu sou... - ia dizendo Aiken Clark mas o menino o interrompeu.
- Você não. Você não é assassino como os outros.
O capataz se afastou novamente e ficou observando de longe.
- O meu nome você já sabe? - zombou Dexter Clinton.
- Não vou esquecer nunca. Um dia voltarei a Rio Muerto para matar você.
Todos riram novamente, menos Aiken Clark. O capataz tinha certeza de que o menino falava sério.
- O melhor é amarrar o menino na árvore, patrão - disse Bud Stem.
- Na mesma árvore onde está enforcado o ladrão do pai dele - acrescentou Clinton.
- Se chamar meu pai de ladrão novamente eu vou matar você - avisou o menino.
- Trinta chicotadas tirarão dele a vontade de roubar reses e de se fazer de valente - troçou Clinton.
Aiken Clark estremeceu. Trinta chicotadas matariam o garoto! Resolveu se aproximar e intervir
- Patrão... trinta chicotadas matarão o menino.
- Pior para ele.
- Será um assassinato. Teremos complicações com o xerife e com o juiz. Logan Ring é severo quando se trata de respeitar a lei.
Quem vai contar a Ring o que se passou aqui? Essas terras são minhas e eu mando nelas.
- Eu sei, patrão. Mas não deve matar o menino com chicotadas.
Olhou em volta para ver se tinha algum apoio dos companheiros mas só encontrou indiferença.
- Tem mais alguma coisa a dizer, Aiken? - disse Clinton, apoiando a mão na culatra do revólver.
- Não.
Aiken Clark sabia que se dissesse alguma coisa mais, Clinton meteria uma bala nele. Ficou atrás do rancheiro e esperou o desenrolar dos acontecimentos. Só lamentava não ser mais tão rápido como era há dez anos.
- Não me toque com esse chicote sujo, Clinton... ou mato você! - seu corpo magro se curvou como um arco apache.
Um violento bofetão de Clinton jogou-o no chão, de bruços, sobre o lugar onde os vaqueiros costumavam marcar reses. Seu rosto caiu sobre terra e pedras.
- Coma terra, maldito filho do diabo!
Aiken Clark levou a mão ao revólver. Mas deu com o olhar atento de Bud Stern. Compreendeu que se segurasse a culatra do revólver, não chegaria a sacá-lo do coldre. Ficou imóvel, o gesto parado no ar, considerando-se um dos homens mais covardes do território do Novo México.
Dexter Clinton, no entanto, estava muito satisfeito naquela manhã de primavera. Tinha enforcado um homem, seus vaqueiros tinham destruído uma carreta e matado dois cavalos e ele agora se divertia com o menino imbecil a quem acabava de esbofetear.
Só que ele não contava com a coragem de Keit Leit. O menino era tão valente como seu pai. Sabia dominar o medo. Clinton não sabia disso e virou-se um pouco para dar uma ordem a Bud Stern. Mas não chegou a dizer nada.
Keit se ergueu de um salto e avançou para o rancheiro com a faca na mão. Sua cabeça atingiu o peito do inimigo com força impressionante.
A fome, o sangue escorrendo da testa e dos lábios, o peso leve e a pouca idade perderam seu valor. Naquele momento, Keit tirava sua força do ódio e do nojo.
Clinton recebeu o golpe e caiu de costas. Keit Leit caiu sobre ele e enfiou a faca em seu rosto.
Quando Bud Stern conseguiu separar o menino do patrão, este estava com um corte profundo na face esquerda.
- É uma pena - murmurou Keit, louco de raiva. - Eu queria matar você!
- Eu é que vou matar você, diabo! - gritou Clinton, procurando conter a hemorragia do rosto com um lenço.
- Enforcamos ele, patrão? - falou Bud.
- A forca seria boa demais para ele.
- Então que vamos fazer? - perguntou Alvin Peach.
- Vamos matá-lo a chicotadas! Amarrem o menino na árvore!
Os dois arrastaram o menino e as cordas que sustentavam ainda o cadáver de seu pai.
- Sou perito no chicote - falou Clinton. - Vou levar mais de uma hora para matar você;
O primeiro golpe arrancou uma tira de pele das costas magras de Keit... mas nenhum grito de sua garganta.
O segundo, o terceiro, o quarto e o quinto golpe tiveram o mesmo resultado. Os outros, até o décimo, abriram novos sulcos sem arrancar um só gemido do menino.
Clinton estava morto de raiva. Keit Leit resistia com os lábios apertados e quando Clinton fez uma pausa ainda conseguiu balbuciar:
- Não poderá me matar, Dexter Clinton. E eu vou voltar a Rio Muerto e acabar com você... e com seus cães também. .. todos morrerão... todos...
O menino não gritou nem gemeu mais perdeu os sentidos por causa da dor em suas costas transformadas em chaga viva.
Dexter Clinton secou o suor da testa e entregou o chicote a Bud Stern.
- Será um bom aviso para todos os ladrões de gado.
- Que fazemos com ele?
- Jogue ele num charco qualquer para que se refresque.
- Eu cuido dele - disse Aiken Clark. - Não perca muito tempo. Temos muitas reses para marcar ainda - disse Clinton.
O capataz cortou as cordas que prendiam o corpo do menino ao tronco da árvore. Depois colocou o frágil corpo ensanguentado sobre a sela de seu cavalo. Deixou-o uns duzentos metros adiante, perto de uma poça de água porque sabia que ele teria muita sede ao acordar, se é que ia acordar.
- Espero que saia dessa com vida, menino. Deixo você perto da água mas não posso fazer mais nada além disso - murmurou.
Montou no cavalo e afastou-se.
Keit Leit recobrou a consciência pouco depois da meia-noite. Abriu os olhos e viu acima de sua cabeça um grande galho de uma árvore. Nos primeiros momentos pensou que era o braço de Dexter Clinton empunhando um chicote. É sua mente atormentada pela febre, o galho se transformou numa gigantesca mão prestes a sufocá-lo para terminar a obra destrutiva de Clinton.
O céu estava cheio de nuvens mas quando uma rajada de vento empurrou-as para o Sul, Keit viu as folhas e um pedaço de céu com estrelas.
- É apenas um galho de árvore - murmurou.
O corpo ardia como brasa e ele sentia arrepios da cabeça aos pés. Os lábios estavam ressecados e a língua inchada.
Tentou se levantar e começou a se arrastar para dentro da água. Afundou o rosto na poça e bebeu o líquido refrescante até que seus ouvidos começaram a zumbir.
Após uns momentos de descanso reuniu todas as suas forças e levantou-se, caminhando aos tropeções para o local onde o pai tinha sido assassinado.
- Tenho que enterrar você, pai... tenho que cortar a corda...
Não sabia calcular quanto tempo tinha andado. Ofegava, cambaleava. Finalmente tropeçou numa raiz e caiu de braços. Ficou ali durante bastante tempo. Quando se levantou viu os restos da carroça a curta distância. Viu o olmo e o cadáver oscilante de seu pai.
- Papai!
Arrastou-se até a carroça e achou entre os destroços a pá e a picareta. Dali foi até a árvore. Levou um tempo enorme para desfazer o nó na árvore. O corpo caiu com um baque. Ele se ajoelhou e com as mãos trêmulas, acariciou o rosto do pai.
- Não poderei obedecer você desta vez, meu pai. Um dia eu voltarei a Rio Muerto e matarei os homens que tiraram sua vida sem motivo... perdoe-me, pai, mas não vou obedecer você.
Levantou-se, pegou a picareta e começou a cavar uma sepultura, ali mesmo ao pé da árvore.
Pouco depois, completamente, esgotado, sentido calafrios nas costas, caiu de bruços sobre a terra que ele mesmo tinha removido.
Não chegou a desmaiar mas os ruídos da noite chegavam até ele como se atravessassem uma densa névoa.
Ouviu o uivo doloroso de um coiote, o pio assustador de uma coruja, o relincho de um cavalo, a tosse seca de um homem e o ruído das rodas de uma carroça.
Imaginou que Dexter Clinton voltava para matá-lo e o terror se apoderou dele. Tinha aprendido a temer os homens quê habitavam aquelas terras.
Quis se levantar novamente mas o corpo esgotado não obedecia ao seu comando. De repente todos os sons desapareceram e ele mergulhou num abençoado silêncio.
- É um menino - disse alguém a seu lado.
Quis gritar quando sentiu as mãos virando seu corpo mas não saiu nenhum som de sua garganta.
Entre sombras que se moviam como loucas, viu a luz de um lampião.
- É um menino. E foi chicoteado como um cão danado.
- Pai! Aqui há um homem morto! - falou a primeira voz.
- Virgem de Guadalupe! - disse a voz rouca.
- O menino vai morrer? - perguntou uma terceira voz.
O cérebro de Keit, mesmo nublado, raciocinou que não eram os vaqueiros de Clinton. Pelas vozes, pareciam mexicanos. Um rosto chegou bem perto dele.
- Ele não vai morrer, minha filha.
- Pai, acho que ele queria enterrar o enforcado.
- Ninguém poderá dizer que Antônio Hidalgo deixou um homem morto na pradaria. Vamos continuar o trabalho do menino, Pedro. Mercedes! Você fica cuidando dele.
A família Hidalgo, constituída do pai e dois filhos, voltava para suas terras quando encontrou Keit Leit.
Eram mexicanos, nascidos no Novo México quando aquele território ainda pertencia ao México.
Keit Leit ouviu o ruído das ferramentas e tentou erguer a cabeça para ver o que estava acontecendo mas uma pequena e delicada mão apoiou em seu ombro.
- Não se mexa, menino. Meu pai e meu irmão estão cavando a sepultura.
- Ele... era... meu pai - murmurou fracamente Keit.
Fechou os olhos e deixou-se levar pela febre. Tinha impressão de flutuar num mar espesso e negro.
Algum tempo depois, ouvia a voz de Antônio Hidalgo.
- Outro dia viremos até aqui para colocar uma cruz na tumba. Agora vamos voltar para casa e cuidar desse menino.
- Vamos logo, pai - concordou Pedro.
Keit sentiu que o levantavam e o colocavam sobre mantas grossas. As mãos de Mercedes acariciaram seu rosto. Ele ouviu o relincho do cavalo, a tosse seca de Antônio e o matraquear da carroça.
Antes de perder novamente a consciência, ouviu o uivo doloroso do coiote. Mas o uivo estava tão longe... tão longe... talvez fosse o uivo de Dexter Clinton.
Quando voltou a si estava num aposento de pequenas dimensões sobre uma cama limpa, rodeado de paredes de barro caiado de branco.
- Que aconteceu a você, menino? - indagou a voz de Antônio Hidalgo.
- Dexter Clinton... Ele enforcou meu pai e me castigou com chicotadas. Encontramos uma rês morta... e comemos sua carne - falou Keit com voz insegura.
- Clinton é um selvagem que finge ser um homem honrado - disse Pedro.
- É melhor que não se depare com ele de novo - ponderou Mercedes. - Suas costas são uma ferida só.
- Tem razão, filha. Ficará aqui em nossa casa até melhorar - disse Antônio, inclinando-se sobre o rosto de Keit. - Aqui você estará seguro. Mas depois será melhor sair da província de Medina.
- Não quero... ser... um peso... para vocês - balbuciou Keit.
- Sou pobre, tenho dois filhos, mas sou honrado e cristão. Nas minhas terras há muita água e podemos ganhar o sustento para todos. Você ficará aqui até que possa andar novamente.
Keit fechou os olhos e a febre tomou conta dele. Durante dois dias, Antônio, Pedro e Mercedes Hidalgo, trataram dele como se fosse um membro da família e estremeciam temerosos sempre que, em seus delírios, Keit gritava:
- Vou matar você, Clinton!
- Esse menino pode fazer uma tolice quando se sentir mais forte - ponderou Antônio. - Ele jamais conseguiria chegar a Clinton. Os vaqueiros dele o matariam quando pisasse em terras do Círculo Barrado. Pobre menino.
- Ele tem a mesma idade que eu - falou Pedro.
- O melhor que fazemos é tirá-lo daqui o mais depressa possível. Dentro de uma semana Manuel passará por aqui a caminho de Socorro e poderá levá-lo dentro da carroça.
- Acho que tem razão, pai - disse Pedro.
Enquanto Antônio e Mercedes mudavam as gases dos ferimentos, Pedro pensava consigo mesmo que aquele menino teria que carregar para sempre aquelas cicatrizes.
Uma semana depois, Manuel, um mexicano velho e sem dentes, parou sua carroça nas terras dos Hidalgo e Antônio explicou a ele o que estava acontecendo.
- Leve o menino para Socorro - pediu Antônio.
A pequena Mercedes, com doze anos, acomodou um colchão dentro da carreta e Keit foi levado para lá por Antônio e Pedro.
-Não estará muito confortável mas estará seguro - disse Antônio. Manuel vai deixar você em Socorro, à margem do Rio Grande... lá estará longe deste lugar e de Dexter Clinton.
- Vou deixar o menino na casa de um irmão que tem um bar. Ele pode trabalhar lá - explicou Manuel.
- Muito obrigado - disse Keit aos dois.
- Não sabemos seu nome, amigo - sorriu Antônio.
- Keit Leit... um dia eu vou voltar para matar Clinton.
- Não vale a pena alimentar o ódio, menino. A vingança não leva a nada.
- Não será vingança. Será justiça.
- Está pronto, menino? - perguntou Manuel, sentando-se na carroça.
- Estou... Senhor Antônio, gostaria de pagar por tudo o que fez por mim.
- Talvez um dia nos encontremos, garoto - disse Antônio. O mundo é pequeno. Hoje eu ajudo você, amanhã você me ajuda.
Os três ficaram vendo a carroça se afastar. Depois de algum tempo, Antônio comentou:
- Keit Leit voltará a Rio Muerto. Ele matará Dexter Clinton.
O velho mexicano apoiou as mãos nos ombros de seus filhos e os três entraram na singela casa branca enquanto a carroça continuava seu lento avanço na direção de Socorro.
Deitado nas mantas, com os olhos fechados, Keit ia murmurando como se recitasse uma ladainha:
* Eu vou voltar, Clinton. Vou matar você como se fosse um cachorro danado. Você vai maldizer a hora em que enforcou meu pai e me açoitou com o chicote.








SEGUNDA PARTE

RIO MUERTO Território do Novo México

ANO 1876

O juiz Logan Ring morava há vinte e cinco anos na cidade de Rio Muerto, capital da província de Medina.
Estava já com setenta anos e imobilizado numa cadeira de rodas. Mas não era a idade nem a doença que o mantinha imóvel.
Era a bala de chumbo alojada em sua coluna vertebral.
Logan Ring tinha chegado a Rio Muerto acompanhando as tropas do General Kearney e quando se fez o tratado de Guadalupe Hidalgo, ficou no Novo México.
Organizou a província de Medina e com todas as forças tentou defender as vidas e fazendas dos homens que em pouco tempo tinham conhecido três bandeiras diferentes.
A da Espanha, a do México e finalmente a dos Estados Unidos da América do Norte.
Depois de vinte e cinco anos de lutas defendendo a justiça, o juiz Ring começava a crer que tinha fracassado completamente.
Anos antes, um atirador emboscado tinha acertado duas balas em suas costas e só vivia ainda devido à perícia do Doutor Bryan Hardison.
Naquela tarde de verão de 1876, o juiz e o médico estavam sentados na varanda da casa.
- A cidade mudou muito nesses últimos dez anos - comentou Hardison, tragando a fumaça no seu cachimbo.
- É verdade. Agora temos um banco dos criadores de gado, uma prisão ladrilhada e um juiz inválido - disse Ring sem esconder sua amargura.
Ele sempre tinha sido um homem conciso, duro e fanático defensor da lei, da ordem e da justiça. E naquele momento, tinha que admitir que nenhuma das três coisas existia em Rio Muerto.
- A província pode vir a ser uma das mais ricas do território. Tem pastos abundantes para o gado.
Hardison fez o comentário sem ligar para a amargura do juiz. Eles costumavam se reunir no final da tarde, ria varanda ou dentro de casa quando o tempo estava ruim.
E a conversa de cada dia era mais ou menos a mesma.
- Uma região rica, sem dúvida. Mas só um homem manda nela, Hardison. E é Dexter Clinton.
- Bem, ele é um rancheiro importante e é o dono do banco do gado.
- ... e um perfeito canalha.
- Se acha isso, podia mandar que o prendessem - disse Hardison.
O médico não tinha dúvidas sobre o verdadeiro caráter de Clinton mas gostava de irritar o velho amigo. Achava que assim contribuía para estimular sua circulação sanguínea.
- Como quer que eu prenda esse sujeito? O "xerife" é amigo dele, comprado naturalmente. Está sempre do lado dele. Além disso, está sempre cercado por cinco vaqueiros fortemente armados. Sabe o que está fazendo agora?
- Contratando pistoleiros profissionais - respondeu Hardison.
- Isso mesmo! - exclamou Logan Ring, batendo com a mão direita na roda da sua cadeira.
- Acho até que já temos alguns andando aqui por Rio Muerto.
- Tem idéia de qual é o plano dele? Hardison negou com um movimento de cabeça. Não queria tirar do amigo o prazer de explicar... embora tivesse feito isso na véspera.
- Fara expulsar dos mananciais as poucas famílias que ainda têm suas terras, entre elas, os Hidalgos e os Salinas - disse o juiz.
Quando Ring tinha chegado a Rio Muerto, a cidade contava com quinhentas famílias mexicanas que se dedicavam ao cultivo da terra e à criação de gado em pequena escala.
Mas com os soldados de Kearney tinham chegado também os homens do Norte, ansiosos para se estabelecer nas terras recém-conquistadas ao México.
Os mexicanos foram expulsos de suas terras, as melhores da região, e lentamente foram surgindo ranchos de propriedade dos homens do norte.
Os mexicanos, em sua maior parte, tinham abandonado Rio Muerto e a província de Medina para voltar ao México. Compreenderam rapidamente que a justiça dos vencedores não era justa com eles.
Os que ficaram dedicaram-se à criação de ovelhas e alguns, dentre eles os Hidalgo e os Salinas, conseguiram conservar suas terras.
O Doutor Hardison tinha razão ao dizer que a cidade tinha mudado muito nos últimos dez anos.
Dexter Clinton, o dono do pequeno Círculo Barrado, tinha se transformado no homem mais rico e importante da província. Suas terras, pastos e gado aumentavam constantemente.
Durante a guerra entre o Norte e o Sul, Clinton tinha vendido gado aos dois lados e Logan Ring tinha certeza de que a maior parte do gado tinha sido roubada.
Mas ele não podia provar nada porque Dexter Clinton sabia como fazer as coisas.
Dois xerifes que não quiseram apoiar seus planos, tinham sofrido lamentáveis acidentes.
Rio Muerto tinha crescido e também seu cemitério. Tinha agora mais largura e comprimento e muito mais túmulos.
Os dois xerifes estavam em duas delas. Em outra estava o corpo de um homem chamado Aiken Clark e na pedra estava gravado que morrera no ano de 1860, embora não dissesse o motivo.
Mas Aiken Clark tinha sido enterrado com duas balas nas costas.
Também havia mais sete tumbas pertencentes a outros tantos mexicanos cujas terras faziam limite com as do Círculo Barrado e onde havia importantes nascentes.
Os mexicanos tinham morrido e suas terras e nascentes tinham passado para Dexter Clinton.
O rancheiro aumentara ainda mais sua fortuna vendendo armas aos homens de Benito Juarez que lutavam contra o Imperador Maximiliano... embora tivesse vendido também armas ao último.
O Juiz Logan Ring sabia disso tudo mas estava de mãos atadas porque não tinha provas. Quando começou a procurá-las, não as encontrou mas levou duas balas calibre 44 nas costas.
O terceiro xerife de Rio Muerto chamava-se Lew Ramsay e como era homem esperto, compreendeu que se queria poupar trabalho ao coveiro, era melhor obedecer as ordens de Clinton.
- Das quinhentas famílias de Rio Muerto que estavam aqui quando cheguei, restam apenas cem... e receio que Clinton esteja se preparando para exterminá-las ou expulsá-las de suas terras - comentou o juiz.
O Doutor Bardison acendeu seu cachimbo e depois de lançar algumas baforadas de fumo, respondeu:
- Estou de acordo com você.
- É fácil adivinhar o plano dele. Contratou pistoleiros profissionais porque, em caso de encrenca, poderá sempre afirmar que não pode ser responsabilizado por atos de homens que não pertencem a seu rancho.
- Mas você pode ordenar ao xerife que expulse esses pistoleiros da cidade.
- Ele não fará isso. Ramsay obedece as ordens de Clinton.
- Você pode telegrafar ao governador do território e pedir a demissão dele - disse o médico.
Logan Ring moveu a cabeça negativamente.
- Não adiantaria. Clinton é o dono do banco e tem sob seu controle a maior parte da população da província. Além disso, o afastamento de Ramsay não seria solução.
- Por quê?
- Nenhum homem ousaria ocupar seu lugar. Todos se lembram perfeitamente do que aconteceu aos xerifes anteriores.
- Pode pedir a intervenção do exército.
- Em todo o território há apenas meia dúzia de companhias de cavalaria e estão todas no sul, patrulhando e vigiando os apaches.
- Ah! Então o que pensa fazer? - quis saber Hardison, sem largar o cachimbo da boca.
- Só posso esperar. Talvez os mexicanos decidam se unir para lutar contra Clinton... e teriam então todo o apoio da lei.
Dois dias depois daquela conversa morria um dos homens de confiança de Dexter Clinton.
Sua morte tinha sido natural... o mais natural que podia ser em Rio Muerto.
Alec Dodds morreu com um punhal enfiado no ventre, manejado pela mão perita de um mexicano.
O coveiro e mesmo o Doutor Hardison, consideravam que morrer de uma punhalada era morte natural. Quando alguém morria de dogolado, diziam que se tratava de um acidente.
Essa idéia tinha seu fundamento porque nos anos em que trabalhavam ali como coveiro e como médico, os dois tinham visto mais cadáveres com furos de balas e de punhais do que homens falecidos calmamente em suas camas.
Uma mulher tinha sido a causa da morte de Alec Dodds. É que o vaqueiro de confiança de Clinton, achando-se dono da cidade, tinha abusado de uma jovem mexicana. O pai e seus dois irmãos trataram de fazer justiça por sua própria conta.
Justiça rápida e certeira.
O Xerife Lew Ramsay ficou pálido de terror ao ver o cadáver de Dodds na sarjeta.
- Clinton vai ficar furioso - murmurou.
Mandou um menino ao Círculo Barrado e mandou o coveiro cuidar do cadáver.
Depois foi até seu escritório. Ao passar diante do banco viu Herbert Pearson, o testa-de-ferro que Clinton tinha à frente do estabelecimento bancário.
- Alguma novidade? - disse Pearson.
- Assassinaram Dodds - respondeu Ramsay.
- Hum! Dexter vai ficar furioso. Não queria estar no seu lugar.
Ramsay se afastou sem dizer mais nada. Achava que Pearson estava se divertindo com o apuro dele. Foi esperar a chegada de Dexter Clinton em seu escritório.
Quando o viu chegar com seus quatro vaqueiros, murmurou para si mesmo:
- Vou ter que suportar uma tempestade de raios, trovões e chuva de pedra.
- Mas estava enganado.
Clinton, acompanhado de Bud Stern, Alvin Peach, Amos Waltis e Make Ken-dall, entrou na oficina com atitude serena.
- Quer dizer que finalmente Dodds se deixou matar como o que era, um perfeito idiota - foi seu comentário.
Haviam se passado dezesseis anos desde o dia em que Clinton tinha mandado enforcar Jeff Leit e ele próprio tinha açoitado o pequeno Keit. Naqueles anos todos, o ranchehceiro não tinha sofrido grandes transformações físicas. Notava-se apenas entradas mais pronunciadas na testa, umas poucas rugas ao redor dos olhos e um traço mais cruel nos lábios. Continuava forte e musculoso e tinha prosperado depressa mas sua ambição não tinha limites.
Queria se transformar no dono absoluto de toda a província de Medina.
- Foi morto à traição, Senhor Clinton - falou Ramsay.
- Certo. Agora quero saber o que você fez para achar os assassinos dele. Pago quinhentos dólares a você por mês para velar pelos meus interesses. É uma quantia bem alta... tendo-se em conta que um simples vaqueiro cobra apenas trinta dólares.
- Até agora só sei que foram três mexicanos. Disseram-me que eles esperavam Dodds à saída do saloon e deram apenas uma punhalada - explicou o xerife.
- Dodds se meteu com uma garota mexicana, patrão - disse Bud Stern, que desde a morte de Aiken Clark era o capataz do Círculo Barrado.
- Era filha de Juan Martinez - revelou Make Kendall.
- Muito bem, Ramsay. Há uns duzentos mexicanos na província e você só precisa localizar três. Quando encontrar esses três, trate de enforcá-los.
- E o juiz Ring? - perguntou Ramsay, assustado.
- Diga a ele que foram linchados... o que será verdade. Meus homens ajudarão você. Logan Ring não vai abrir o bico, é um velho que já está com um pé na sepultura.
- Alguma coisa mais, Senhor Clinton? - indagou Ramsay, servilmente.
- Quero que deixe os corpos pendurados na rua central da cidade. Você e Make Kendall cuidarão para que ninguém os tire de lá. Quero que todos os mexicanos da província vejam eles.
- Certo - disse Ramsay.
- Vamos sair de uma vez? - convidou Bud Stern.
- Imediatamente - ordenou Dexter Clinton.
- Estamos todos prontos - falou Stern.
- Eu também - concordou Ramsay.
- Enquanto vocês capturam os assassinos do idiota do Dodds, eu vou até o banco. Tenho que falar com Pearson porque a hipoteca sobre o rancho dos Hidalgo está para vencer - disse Clinton.
- Duvido que o velho Antônio possa pagá-la - comentou Stern.
- Engana-se. Soube que desde o início da semana os mexicanos andam se reunindo e está havendo uma coleta. Mas vou tomar minhas precauções - disse Clinton.
- Parece que os mexicanos estão querendo fazer frente a nós - disse Stern.
- Alguma coisa está havendo. Falarei com vocês depois - disse Clinton, saindo para o banco.
De uma das janelas de sua casa, Logan Ring viu Clinton atravessando a rua para entrar no banco. Depois viu o xerife e os quatro homens do Círculo Barrado montando em seus cavalos e saindo da cidade.
Rodou a cadeira até seu gabinete, murmurando.
- Malditas balas que me deixam sem capacidade para impor a lei. Tenho que achar depressa uma solução ou essa província vai se transformar num campo de batalha...
No gabinete, ajeitou a cadeira de forma que pudesse consultar os livros sobre a mesa. Enquanto os manuseava, ia murmurando:
- Se encontrasse um homem de verdade que não temesse Dexter Clinton, teria a solução perfeita. Este é um território e tenho poderes legais que num estado me seriam negados.
O juiz Logan Ring passou três horas no gabinete, estudando leis.
Quando terminou, tinha um sorriso de satisfação no rosto enrugado.
Só então percebeu que reinava estranho silêncio lá fora, muito impróprio de uma cidade agitada como era Rio Muerto.
Rodou a cadeira para fora do escritório e com grande habilidade, abriu a porta para a rua. Saiu na varanda coberta e lançou uma maldição ao ver o espetáculo deprimente.
No centro da rua principal da cidade reunia-se um grupo de curiosos contemplando silenciosamente três homens pendurados em cordas que pendiam de uma viga que sobressaía da fachada de um armazém de cereais.
- Agora está explicada a saída de Ramsay com os amigos do Círculo Barrado - murmurou Ring.
Rodou a cadeira até diante dos três degraus que separavam a varanda da rua poeirenta e quando um homem passou, pediu:
-Desça-me daqui, Sam. Sam era o ferreiro de Rio Muerto e tinha braços fortes.
- Acho melhor ficar aí mesmo, juiz. As coisas não andam muito boas na cidade esta manhã.
- Desça-me ou mandarei prender você por desobedecer uma ordem! - irritou-se Ring.
Sam obedeceu. Conhecia o mau gênio do juiz e não queria enfurecê-lo. Quando o deixou na rua, perguntou ainda:
- Quer que o empurre?
— Vá para o inferno! Minhas pernas estão inúteis mas meus braços ainda funcionam!
Agilmente ele rodou a cadeira para o centro da rua.
- Com licença! - gritou para o grupo de curiosos, para que abrissem caminho.
Vários homens se afastaram e Ring chegou perto dos três enforcados.
- Juan Martinez e seus dois filhos - murmurou ao reconhecê-los.
Olhou em volta e suas mãos crisparam ao ver Lew Ramsay encostado num poste com o chapéu tombado sobre os olhos para defender-se do sol causticante.
Adiante viu Make Kendall. O vaqueiro do Círculo Barrado estava sob a varanda, com os polegares metidos no cinto, olhando o juiz com ar de troça.
- Ramsay! - chamou o juiz.
- Que diabo quer de mim agora? O sol está forte demais aqui.
Naqueles momentos ele se sentia seguro. Às suas costas estava Kendall e Clinton estava no banco.
Lew Ramsay só temia o juiz quando estava a sós com ele.
- Que aconteceu com os Martinez? - perguntou Ring, tentando dominar a ira.
Ramsay deu de ombros e largou uma cusparada no chão.
- Assassinaram um homem chamado Alec Dodds e os vaqueiros seus amigos resolveram fazer justiça pelas próprias mãos.
- A lei sou eu! Eu devo dar a sentença aos homens!
- É verdade mas todos acham que você está muito velho e muito lento e além disso é um inválido - respondeu Ramsay com indiferença, dando outra cusparada no chão.
Logan Ring ficou vermelho. As veias cresceram em seu pescoço parecendo que iam explodir.
- Quem fez isso? - perguntou finalmente, apontando os cadáveres.
- Todos e ninguém. O senhor sabe como é nesses linchamentos. Alguém dá um grito, outro traz a corda e muitas mãos puxam - respondeu Ramsay.
Make Kendall deixou escapar uma risada e o juiz o olhou com desprezo.
- Falaremos mais tarde, Ramsay. Agora tire esses cadáveres daí.
O xerife não se moveu. Kendall deixou de rir e falou:
- Ninguém vai tirar os cadáveres enquanto eu estiver aqui. Eles assassinaram meu amigo Dodds e devem pagar pelo seu crime. Vou atirar no primeiro que tentar cortar essas cordas.
As palavras de Make Kendall surpreenderam o juiz.
Não esperava que os homens do Círculo Barrado se atrevessem a enfrentar abertamente a lei da província.
Desconfiava que o homem que pusera duas balas em sua espinha era um dos vaqueiros de Dexter Clinton mas jamais tinha conseguido achar uma prova que fosse.
Clinton sempre fazia as coisas por baixo do pano... e também seus homens.
Até aquela manhã em que Make Kendall o desafiava abertamente.
O juiz calculou que Clinton estava se sentindo bastante forte para não tentar esconder que tinham sido seus homens os linchadores da família Martinez.
- Tire os corpos daí, Ramsay. É uma ordem - o juiz repetiu, cerrando os punhos.
O xerife não se moveu.
- Está querendo que o Kendall me mate? - falou em tom calmo.
- Você é o xerife. Sua obrigação é fazer com que a lei seja respeitada e um dos seus deveres é tirar os corpos desses homens que foram assassinados para que sejam devidamente enterrados.
- Você é o juiz. Também representa a lei. Você mesmo pode tirar os corpos... porque eu não vou fazer isso. Não quero que Kendall me meta uma bala.
- Maldito covarde! - exclamou Ring. - Vou pedir sua demissão ao governo do território.
- Pode pedir... mas eu não vou tirar os corpos. E acho que não vai achar ninguém que queira fazer isso para você.
- Então eu mesmo faço! - o velho juiz empurrou a cadeira até as pilastras que sustentavam a varanda.
O valente defensor da lei queria se apoiar numa delas para ficar de pé mas antes que pudesse fazê-lo, Make Kendall avançou uns passos e ficou diante dele.
- Não tente, velho inútil. Nunca matei um juiz mas bem que gostaria da experiência.
Na rua reinava silêncio impressionante. Ninguém falava e alguns homens mal se atreviam a respirar.
Apesar de entre os curiosos haver vários mexicanos e muitos homens honrados, nenhum deles tinha coragem de intervir.
Todos sabiam que Dexter Clinton estava na cidade acompanhado de vários vaqueiros e que também tinha contratado pistoleiros.
- Você é um bandido, Kendall - disse o juiz, tentando se levantar.
Mas a bota de Kendall apoiou-se numa das rodas da cadeira e derrubou-a.
Logan Ring caiu no chão e o rosto afundou na camada de terra solta. Suas pernas, sem movimento, ficaram tragicamente dobradas como se os ossos estivesse moles.
Caído de bruços, com a boca e o nariz cheio de terra, os cabelos brancos sujes e as pernas retorcidas, o juiz era uma figura patética.
Parecia um recém-nascido, incapaz de se mover sozinho. Ou um boneco velho e rasgado jogado na rua.
Entre os curiosos havia uma expressão de incredulidade e espanto. Todos os cidadãos de Rio Muerto estavam acostumados a ver o juiz na cidade desde o tempo em que o Novo México tinha passado para os Estados Unidos.
Primeiro tinham visto o juiz andando e montando como cavaleiro ágil e depois sentado na cadeira de rodas, sem se dar por vencido.
Agora um homem forte do Círculo Barrado o tinha derrubado ao chão.
Make Kendall deu uma gargalhada grosseira ao ver os esforços desesperados do juiz para se levantar. Lew Ramsay estava pálido mas não deu um passo sequer para aproximar-se do juiz.
- Acho que agora se convenceu que não passa de um velho inútil e que é um peso para os habitantes da província - disse o vaqueiro.
Ring olhou atentamente os homens que estavam à sua volta. Os olhos penetrantes examinaram cada rosto. Ele se negava a continuar no chão e, apoiando-se nas mãos, conseguir se levantar embora não pudesse se manter assim por muito tempo porque já estava com setenta anos e não tinha muita força.
Ele olhava aqueles homens sem pedir nada mas nenhum conseguiu resistir à intensidade de seu olhar.
Suas cabeças e olhos baixaram para as pontas de suas botas poeirentas.
Dexter Clinton tinha tido grande êxito em semear o terror em Rio Muerto. Ninguém tinha coragem de ajudar o juiz embora muitos tivesse vontade de fazê-lo.
- Ninguém vai ajudar você, juiz... nem ninguém vai se atrever a baixar os corpos desses homens - falou Kendall.
Um homem alto de ombros largos, musculosos, de calças escuras e camisa azul afastou um par de curiosos e colocou-se na primeira fila.
Logan Ring destacou-o imediatamente e ao ver o duplo cinturão com os coldres baixos, presos às coxas e imaginou que se tratava de um dos pistoleiros contratados por Clinton.
O homem da camisa azul avançou e suas grandes esporas mexicanas de Sonora tilintaram alegremente. Parou ao lado da cadeira de rodas tombada e os olhos cinzentos examinaram Make Kendall.
Kendall também examinou o recém-chegado. Bastou um olhar para compreender que aquele homem estava acostumando a manejar armas e podia ser perigoso.
- Forasteiro? - perguntou Kendall.
- Talvez - disse o recém-chegado.
Com grande calma inclinou-se um pouco e com uma só mão levantou a cadeira de rodas.
- Assim está bem melhor, não acha?
O vaqueiro do Círculo Barrado não esperava nada parecido. Estava convencido que ninguém se atreveria a mover-se e achou que o forasteiro ignorava certas coisas. Decidiu esclarecê-lo.
- Sou Make Kendall e trabalho para Dexter Clinton. Conhece meu patrão?
O vaqueiro continuava com os polegares metidos no cinturão e com a atitude de desafio mas, na verdade, estava desconcertado. O forasteiro não parecia impressionado com sua atitude, nem com a presença dos enforcados e muitos menos com o que acontecera ao juiz.
Kendall sabia que alguns dos pistoleiros contratados por Clinton já estavam em Rio Muerto mas não conhecia nenhum porque o patrão não queria que fossem ao rancho. Aqueles pistoleiros deviam cumprir um outro tipo de missão: exterminar os mexicanos que se negassem a vender suas terras e nascentes.
Tal como o juiz, calculou que ele era um daqueles pistoleiros profissionais.
Mas em breve os dois teriam que reconhecer o engano.
- Conheço seu patrão e conheço você também - disse o forasteiro.
Sem esperar qualquer resposta de Kendall deu-lhe as costas e como o xerife se achava entre ele e o juiz, empurrou-o para o lado sem se dar ao trabalho de pedir licença.
- Não me lembro de ter visto você - disse Kendall, cada vez mais intrigado.
- Certos homens têm péssima memória - disse o forasteiro, inclinando-se para o juiz.
- Que vai fazer? - alarmou-se Kendall.
- Já verá. Tenha paciência.
O forasteiro levantou Logan Ring com grande facilidade e com muito cuidado acomodou-o na cadeira de rodas. Sua atitude arrancou um murmúrio de surpresa dos curiosos e uma imprecação de Kendall.
- Espero que esteja se sentindo perfeitamente bem, juiz - disse o forasteiro, sem deixar de vigiar Kendall.
- Obrigado... muito obrigado - disse Ring, satisfeito.
- Agora viu o que eu fiz, Kendall - disse o forasteiro, afastando-se da cadeira de rodas.
Lew Ramsay foi o primeiro a compreender que o desconhecido não estava disposto a obedecer ordens de Clinton Kendall levou algum tempo mais para entender isso.
- O patrão ficará furioso quando souber o que fez - disse o vaqueiro, achando ainda que ele era um dos pistoleiros contratados.
- Também acho e não me interessam os sentimentos de um sujeito como Dexter Clinton. Como os cadáveres me incomodam, vou baixá-los dessas cordas - disse o desconhecido.
Kendall tirou os dedos do cinturão e manteve as mãos perto das culatras dos revólveres. Dexter Clinton tinha ordenado que os enforcados permanecessem ali para que todos os mexicanos da província pudessem vê-los. E Make Kendall era um cão fiel ao seu patrão.
Lew Ramsay era um cão, mas não tão fiel. Também tinha recebido a ordem de vigiar os cadáveres, mas não estava disposto a se deixar matar por quinhentos dólares mensais.
Ramsay era mais esperto que Kendall, o suficiente para perceber que o forasteiro era perigoso e que, por uma razão desconhecida, estava disposto a matar.
Por isso mesmo, ficou imóvel, com as mãos bem afastadas dos revólveres e afastou-se de Kendall, certo de que Dexter Clinton tinha um inimigo de grande porte.
- Ouviu o que eu disse antes? - falou Kendall.
- Você disse um montão de besteiras. Qual delas?
- Vou matar quem se atrever a tirar os corpos daí.
- Certo - disse o forasteiro, tirando uma faca de caça do cano da bota direita.
- E mato você também ainda que trabalhe para o patrão - falou Kendall apoiando a mão direita na culatra do revólver.
- Não seja imbecil, Make Kendall. Eu não trabalharia para Clinton nem que ele me pagasse mil dólares por dia. Não gosto dos assassinos... por isso também não gosto de você.
Enquanto falava, o desconhecido deu uma cortada na primeira corda. Um dos cadáveres caiu na terra levantando uma pequena nuvem de pó vermelho.
Kendall ficou vendo a corda deslizando pela viga como uma serpente de cânhamo. Quando o corpo caiu ele reagiu imediatamente, puxando o revólver e fixando os olhos no inimigo.
Sorriu satisfeito quando viu que o forasteiro não tinha se movido. Com o polegar levantou o cão e com o indicador começou a apertar o gatilho.
O tiro pegou-o de surpresa. Não tinha apertado até o fim. Afrouxou a pressão do dedo e um segundo tiro fez com que seu corpo sacudisse. Não entendia absolutamente nada. Já não via o forasteiro diante dele. Um terceiro tiro provocou uma dor aguda em seu ventre. Dobrou-se sobre si mesmo, largou o revólver e caiu. A boca se encheu de terra e quando ergueu a cabeça viu o par de botas com esporas de prata, de Sonora.
Uma das botas tocou seu corpo e virou-o de barriga para cima. Viu então o rosto do forasteiro.
- Que está acontecendo? - falou ofegante, com as mãos no ventre.
- Você está morrendo, Make Kendall. Você é lento demais e não chegou a atirar. Lento como todos os canalhas.
Kendall se retorcia como um verme.
- Eu não... conheço você.
- Conhece, Kendall. Há dezesseis anos, um homem e um menino acharam uma rês morta. Como tinham fome, comeram um pouco de sua carne. Você tomou parte do assassinato do homem e no castigo do menino. Lembra-se?
- Lembro... o patrão tem uma cicatriz no rosto... feita pelo menino... - ofegou Kendall.
- Fui eu quem feriu seu patrão. Sou Keit Leit e voltei para cumprir minha promessa. Matarei vocês todos um a um. Você teve a má sorte de ser o primeiro.
Make Kendall arregalou os olhos e olhou Keit Leit... e assim morreu.
Keit se levantou. Pegou a faca que tinha deixado cair ao sacar o colt e, roçando o ventre de Ramsay, com a ponta, perguntou:
- Vai tirar os cadáveres ou quer que eu mesmo o faça?
O juiz Ring, compreendendo que o forasteiro queria humilhar o covarde xerife, apressou-se a falar:
- Baixe os corpos. Ramsay.
- Sim, senhor juiz - disse o xerife mais que depressa.
Enquanto Ramsay cortava as cordas, Keit se colocou à direita do juiz e lançou um olhar cheio de desprezo aos que estavam presentes e que continuavam observando o desenrolar dos acontecimentos.
- Como se chama? - perguntou Ring.
- Keit Leit, senhor.
- Leit... Leit... repetiu o juiz como se o sobrenome não fosse desconhecido.
Keit sorriu. Era impossível que o juiz recordasse alguma coisa. Nem ele nem o pai tinham chegado a entrar em Rio Muerto. Tinham tropeçado em Dexter Clinton a dez quilômetros da cidade.
- Pronto - disse Ramsay quando acabou de tirar os cadáveres.
O juiz esqueceu Leit e virou-se para Ramsay.
- Quem enforcou os Martinez?
- Não sei, senhor juiz. Não tive nada que ver com o assunto.
- Dou uma hora para achar os linchadores e prendê-los - disse Logan Ring.
- Não posso prendê-los... não sei quem são... quando cheguei, os Martinez estavam enforcados.
- Vou dizer algo importante a você para que repita para Dexter Clinton. Como o Novo México é um território e não um estado eu, como juiz e presidente de um Tribunal Federal, tenho um grande número de poderes.
Logan Ring olhou em, volta para certificar-se de que havia muita gente ouvindo.
- Tenho poderes para designar um delegado federal e tantos ajudantes quantos desejar. Quando os representantes da lei local são inúteis, o juiz territorial pode designar um homem e eu vou fazer isso. Você terá que obedecer às ordens dele. Um delegado federal não tem limitações.
Lew Ramsay já não se sentia tão senhor de si como antes. Não sabia que o juiz podia nomear um delegado federal.
- Leit! - chamou o juiz.
- Senhor? - atendeu-o Keit Leit.
- Você será o delegado federal.
Keit Leit ficou surpreendido. Levou uns segundos para responder.
- Sou um estranho aqui, Senhor juiz. Deve haver outros homens mais indicados que eu... além disso, eu vim a Rio Muerto resolver um assunto pessoal.
- Não há homens em Rio Muerto, Keit Leit... você mesmo deve ter percebido. Não vou pedir a você que faça nada que não seja estritamente legal. Nossa província precisa de um delegado federal que saiba usar as armas e seja homem honrado.
- Talvez eu não o seja - respondeu Keit.
- Só um homem honrado é capaz de ajudar um velho caído sobre a terra da rua - disse o juiz.
Keit olhou atentamente para Logan Ring e notou em seus olhos uma grande angustia. Compreendeu que se não aceitasse o cargo, o velho sofreria uma grande decepção.
Logan Ring estava convencido de que ele, Keit Leit, seria capaz de restabelecer a ordem e a justiça naquela província turbulenta, agitada pela ambição desmedida de Dexter Clinton.
- Tentarei fazer o melhor possível mas terá que me ajudar - respondeu finalmente.
Entre os curiosos correu um rumor que parecia um suspiro de alívio.
E o alívio transpareceu nos olhos de Logan Ring. Ele estendeu a mão direita para Keit.
- Vamos a meu escritório. Entregarei a você a insígnia de delegado federal.
Olhou então para Lew Ramsay, parado, branco como uma folha de papel.
- Diga ao coveiro que cuide dos corpos dos Martinez e que vá preparando tumbas para seus assassinos.
Iam entrar na casa quando o juiz parou a cadeira e olhou para Keit.
- Você é o filho do homem que Dexter Clinton mandou enforcar a dezesseis anos atrás. É o menino que Glinton açoitou com o chicote traçado.
- Como sabe?
- Aiken Clark, o capataz, me contou.
- E onde está ele agora? Era o único homem daquele grupo com sentimentos humanos.
- Está morto. Foi assassinado e sempre suspeitei de Bud Stern. Entre - disse o juiz, abrindo a porta.
Quando eles entraram na casa, Lew Ramsay correu para o banco a fim de falar com Dexter Clinton que tinha presenciado tudo de dentro do escritório de Herbert Pearson.
Uma furiosa tempestade de chumbo e violência estava se formando para desabar em Rio Muerto, território de Novo México.
No inteiror da casa confortável do juiz, Keit Leit contou toda a sua história a Logan Ring.
O velho mexicano Manuel tinha deixado o menino em Socorro, no bar-restaurante de seu irmão. Ele ficou ali vários anos e o próprio Manuel tinha ensinado Keit a usar os colts, a faca e a seguir um rastro com a habilidade de um apache.
Aos vinte anos comprou seu primeiro cavalo e saiu de Socorro, após a morte de Manuel e seu irmão.
Tinha trabalhado para uma companhia de diligências e matado o primeiro homem. Depois tinha sido ajudante do xerife de Lãs Animas e quando este foi morto pelas costas, Keit tinha perseguido os assassinos durante um mês inteiro.
Quando voltou a Las Animas, tinha quatro cadáveres atrás de si. Tinha ocupado então o cargo de xerife e os habitantes de Las Animas nunca mais se esqueceriam da feroz luta que ele sustentou entre as névoas do amanhecer, contra bandidos pistoleiros.
Terminada a luta, as ruas de Las Animas estavam com três cadáveres e Keit Leit foi recolhido com quatro balas no corpo.
Depois de Las Animas, tinha acontecido o mesmo em Laredo, Eagle Pass, Mason e El Llano. Sem querer, ele tinha se transformado num defensor da lei.
Mas nunca tinha esquecido a conta pendente com Dexter Clinton e seus selvagens vaqueiros. Em suas estadias pelas diversas cidades ia recolhendo informações sobre ele.
- Estou a par das atividades de Clinton e sei que ele pretende tornar-se dono da província de Medina.
- Por que só voltou agora? Se queria vingar seu pai, podia ter vindo antes - disse o juiz.
- Achei melhor esperar para castigar esse canalha quando estivesse certo de que já não corria qualquer perigo. Queria destrui-lo quando se achasse no auge de sua ambição.
- Mas veio antes - ponderou o juiz.
- É que eu estava em El Paso, Texas, trabalhando para a Welss Fargo, quando um pistoleiro chamado Bret Younger assassinou um amigo meu pelas costas. Younger saiu de El Paso contratado por Dexter Clinton. Achei que se Clinton estava contratando profissionais era porque estava disposto a abrir uma luta sangrenta na província.
- Não se enganou, Keit. Que acha dos mexicanos?
- Foram enganados tristemente quando concordaram em fazer parte dos Estados Unidos.
- Mas a culpa não é do governo mas de homens como Clinton. O governo não contava com a ambição e a maldade de homens assim que caíram sobre essas terras como abutres famintos. Mas a verdadeira Lei existe para proteger esses homens honrados, confiantes e trabalhadores.
- Nós cuidaremos para que isso aconteça - disse Keit.
- Não será fácil. Em primeiro lugar temos que prender os linchadores da família Martinez, vivos ou mortos. Se chegarem vivos, eu os julgarei e mandarei enforcar.
- Pode me dar alguma indicação?
- Esta manhã vi Ramsay sair de seu escritório com Bud Stern, Alvin Peach, Make Kendall e Amos Waltis. Pouco depois os Martinez eram enforcados. Tenho certeza de que Clinton deu a ordem mais ele ficou no banco para ter justificativa se alguma coisa saísse errada.
Keit Leit sorriu com amargura ao ouvir os nomes dos assassinos de seu pai. A história se repetia. Naqueles dezesseis anos, aqueles homens não tinham melhorado em nada, talvez fossem hoje mais cruéis e frios ainda.
- O mais fraco deles é o xerife. Vou falar com ele - disse Keit.
- É melhor porque os outros parecem estar saindo da cidade - disse o juiz apontando para a janela.
Pela vidraça, Keit viu Clinton, Stern, Peach e Waltis abandonando a cidade, levando o corpo de Kendall sobre um cavalo.
- Não entendo por que não apareceram quando matei o companheiro deles - disse Keit.
- Havia muita gente e Clinton sabe que é odiado pela maior parte da população. Eles nunca reagiram porque não apareceu ninguém com coragem para enfrentá-lo. Mas hoje a situação mudou.
- Então Clinton receou que eu fizesse explodir uma reação entre os habitantes de Rio Muerto?
- Sem dúvida.
Logan Ring entregou a Keit a chapa de delegado federal e o rapaz contemplou a estrela de latão de seis pontas com a inscrição "U.S. Marshal" no centro.
- Você vai almoçar comigo hoje. Temos muito que conversar e, de qualquer forma, não vai achar Leiw Ramsay agora. Nosso valente defensor da lei é ave noturna.
- Está certo. Depois vou pegar meu cavalo para deixá-lo na cavalariça - disse Keit
Enquanto almoçavam, o juiz explicou a situação da província.
- Na verdade, o rancho de Clinton é o de maior extensão na província. Mas na parte sul a água é escassa. As únicas nascentes daquela região pertencem aos Hidalgo, Salinas e Escobar. Clinton vai fazer alguma coisa para apoderar-se de suas terras.
- Não se esqueça de falar em Laze Weiner - disse Jessie, a mulher de meia idade que cuidava da casa para o juiz.
- Quem é Laze Weiner? - quis saber Keit.
- É a dona do rancho W.W. Os pastos de seu rancho se limitam com os de Clinton na parte norte do Círculo Barrado.
- Ela corre perigo?
- Não. Laze vai se casar com Clinton.
Keit achou que o rancheiro ia casar-se bem tarde, com quarenta e dois anos para ser exato. Também imaginou que sua futura esposa seria uma mulher desagradável, com bastante idade e de moral duvidosa uma vez que ia casar-se com um bandido daqueles.
Quando terminou a segunda chícara de café, levantou-se.
- Vou pegar meu cavalo para levá-lo a uma cavalariça. Depois irei a uma barbearia e a uma casa de banhos. Preciso me livrar do pó da vigem.
- Os pistoleiros de Clinton estão hospedados no Navajo Hotel - avisou o juiz.
- Não me esquecerei. Por enquanto só quero falar com Ramsay.
- Sem dúvida, nesse momento, Dexter Clinton está tramando alguma coisa para acabar com você. Fique de olhos abertos é as mãos perto dos colts.
- Obrigado, juiz - respondeu Keit, sorrindo.
Usou o resto da tarde em várias coisas. Deixou o cavalo na cavalariça com ordens para trocar as ferraduras. Depois foi à barbearia e fez barba e cabelo. Depois tomou banho e trocou de roupa. Mais tarde procurou um hotel e alugou um quarto no New México Palace.
Era noite quando finalmente saiu do hotel para caminhar pela cidade. Havia pouco movimento nas ruas de Rio Muerto. Os acontecimentos do dia certamente tinham assustado seus habitantes.
Keit Leit atravessou a rua e entrou no primeiro saloon. Bastou uma rápida olhadela para ver que Lew Ramsay não estava lá. Tomou um café e saiu novamente.
Sabia que o xerife de Rio Muerto não devia estar muito satisfeito naquela noite. Deixara de ser o homem temido e respeitado para se transformar num sujeito assustado e sem vontade própria.
Keit foi a mais dois saloons sem encontrar o xerife. Quando saía do último, ouviu um grito angustiado de mulher.
Parou e apurou o ouvido.
O grito se repetiu e Keit descobriu que vinha de uma ruela estreita que começava no outro lado da rua, iluminada por duas lamparinas de azeite, uma de cada lado. Pode ver os vultos de dois homens agarrando uma mulher que lutava desesperadamente.
Keit sacou um dos revólveres e com dois ou três saltos alcançou a ruela. Com a coronha do colt deu um golpe na nuca de um deles que caiu sem um gemido si-quer.
O outro se voltou depressa e a mão direita foi ao revólver mas Keit não lhe deu tempo para sacar. O cano do colt atingiu com força o rosto do bandido.
Ele foi lançado contra a parede e caiu para a frente, com o rosto molhado de sangue.
Keit se inclinou sobre os dois caídos e depois de desarmá-los, jogou seus revólveres bem longe.
- Sem dentes, não poderão morder.
Segurou então a mulher que cambaleava e sentiu nas mãos o contato da pele de seu braço, suave e perfumada. Experimentou estranho e agradável estremecimento.
- Como está? - perguntou, segurando-a.
- Bem... graças a você - murmurou ela, afastando os cabelos ruivos que cobriam seu rosto.
Keit viu primeiro um par de olhos grandes e lindos pois eles estavam na parte mais escura da ruela.
Ele a ajudou a caminhar para a rua e pararam sob as lamparinas. Ali, ele viu o resto.
A mulher era muito bonita, apesar de algumas sardas no nariz. Suas feições eram corretas e bem proporcionadas. Os lábios, pálidos naquele momento, formavam uma curva que convidava ao beijo. Os olhos eram verdes.
- Que aconteceu? - perguntou Keit depois de olhar a bela silhueta da moça.
- Ia pegar minha charrete quando esses homens apareceram na boca dessa ruela e me puxaram para o escuro. Estavam bêbados e não sei se queriam me roubar... ou alguma coisa pior.
Keit calculou que a segunda alternativa era a mais acertada porque a blusa estava rasgada e o ombro direito dela estava desnudo. Também a saia estava rasgada e quando ela andava, ele podia ver uma perna muito bem feita vestida com meia negra.
- Tem parentes em Rio Muerto?
- Não - respondeu ela, sem maiores explicações.
- Posso ajudá-la em alguma coisa mais?
- Pode me levar até a charrete. Posso voltar sozinha para meu rancho.
- Seu rancho?
- O W.W. - esclareceu ela. - Meu nome é Laze Weiner.
Keit levou um choque. Aquela mulher linda ia se casar com Dexter Clinton, o assassino de seu pai e o responsável pelas cicatrizes de suas costas.
- Posso oferecer um lugar de vaqueiro no meu rancho - continuou ela.
- Não sou vaqueiro - respondeu Keit.
- É comprador de gado, então?
- Não.
- Procura ouro?
- Não.
- Então só pode ser parente de algum rancheiro da província.
- Enganou-se de novo, senhorita Weiner. Onde está sua charrete?
- Em frente ao banco. Queria saber o que está fazendo aqui na cidade. Não costumamos receber forasteiros.
Keit Leit estava de costas para o lampião e ela não podia ver sua estrela de delegado federal. Por isso, intrigada, ela tentava descobrir o que aquele homem, queria em Rio Muerto.
- A senhorita pode andar? - indagou Keit.
- Acho que sim. Embora tenha recebido uma pancada muito forte no joelho esquerdo.
Laze deu um passo adiante e Keit teve que esticar o braço depressa para sustentar o corpo escultural.
- Ai! - disse Laze, passando o braço pelo pescoço de Keit para não cair.
Ele sentiu no rosto a carícia perfumada de seus longos cabelos ruivos.
- Apóie-se na parede. Vou examinar seu joelho.
Laze não protestou. Também não demonstrou qualquer embaraço quando Keit afastou a saia rasgada e seus dedos ágeis tocaram seu joelho. Conteve um gemido e o delegado se levantou.
- O joelho está muito inchado, Senhorita Weiner.
- Nada mais?
- Bem... devo dizer também que possui umas pernas maravilhosas - sorriu Keit.
- É muito amável... mas acho que devo revelar que tenho um noivo e devo me casar em breve - sorriu Laze.
- O que, sem dúvida, é uma notícia muito triste - respondeu Keit.
- Por que triste? - ela arregalou os olhos verdes.
- É triste para mim, senhorita Weiner.
- Quer parar de me chamar de senhorita? Meu nome é Laze e não é um nome assim tão feio.
- Não, não é... é bem bonito, como você.
- Obrigada... por tudo - ela sussurrou.
Não era uma mulher insensível nem tinha preconceitos tolos. Não escondia que a presença de Keit lhe era agradável e, apesar dos maus momentos que acabava de passar, ainda era capaz de um galanteio inofensivo.
- Vou ter que levar você até a charrete - disse ele.
- Não peso muito - sorriu Laze. Keit ergueu-a nos braços e ela passou um dos braços pelo pescoço do delegado.
- Vai embora de Rio Muerto em breve? - perguntou, quando saíam da ruela.
- Não... e é bem possível que fique aqui para sempre.
- Suas palavras parecem fúnebres - comentou Laze.
- Pode ser.
Quando chegaram perto da charrete, ele a pousou no chão e durante uns segundos seus rostos ficaram muito próximos. Keit sentiu o roçar de seus cabelos e o hálito morno de sua boca em seu rosto.
Aqueles lábios húmidos e rosados estavam tão perto dos seus que ele só teve que inclinar-se um pouquinho para beijá-los.
Decidiu beijar aquela mulher porque ela era a noiva de Dexfer Clinton e isso o aborreceria... mas no instante em que seus lábios se apoderaram dos dela, esqueceu-se de tudo para pensar somente em Laze Weiner.
Era maravilhoso, apertá-la contra seu peito.
Laze não resistiu mas também não correspondeu ao beijo. Quando Keit se afastou dela. ela franziu levemente a testa e perguntou
- É sempre assim tão impulsivo?
- Não. Acho que foi a primeira vez que beijei uma mulher sem que ela me desse permissão.
- E quem disse que não dei? - ela disse, subindo na charrete com a ajuda de Keit.
Só então viu a placa na camisa de Keit.—
Com gestos lentos cobriu a perna que a saia rasgada revelava e pegando as rédeas, inclinou-se para ele.
- Que está fazendo um delegado federal em Rio Muerto?
- Procuro um homem, Laze.
- Negócios?
- Não. Procuro para matar.
A resposta foi tão seca que Laze compreendeu que o delegado ia cumprir o que dizia. Não havia nas palavras dele qualquer convencimento, apenas segurança e determinação.
- Desejo-lhe sorte... acho que a merece - disse ela, fitando Keit com seus olhos grandes e verdes.
Durante uns momentos pareceu que seus lábios iam unir-se novamente, desta vez por iniciativa dela... mas o delegado se afastou, dizendo:
- Obrigado... por tudo.
Tinha beijado Laze seguindo um impulso idiota. Sabia que o fato desagradaria Clinton, se ele viesse a saber.
O problema era que ao sentir a proximidade morna do corpo daquela mulher e o contato de seus lábios úmidos em seus lábios tinha achado que se compor tava como um atrevido.
Depois compreendeu uma coisa mais: que estava se enganando pois tinha beijado Laze Weiner simplesmente porque tinha sentido forte atração por ela e por achar que era uma mulher que merecia ser beijada com paixão.
- Vamos nos ver de novo? - Laze indagou.
- É possível... ainda que talvez fosse melhor que não.
- Adeus, delegado - ela sacudiu as rédeas.
Enquanto se afastava da cidade com sua charrete, Laze tinha mil dúvidas. Que está acontecendo comigo? Não sou uma mulher tola e impressionável e, no entanto, se ele tivesse me beijado de novo, eu teria devolvido seus beijos. ..
Sacudiu a cabeça, querendo afastar aqueles pensamentos. Estava noiva de Dexter Clinton... teria que se casar com ele e não com o delegado...
Deu uma chicotada mais forte no cavalo da charrete e ele, com um relincho de dor, moveu as patas com mais rapidez.
Keit Leit teve que percorrer vários saloons até achar o xerife Lew Ramsay.
Meia hora depois de ter se despedido de Laze Weiner, Keit o achou em um saloon com os cotovelos apoiados no balcão e um copo de uísque pela metade à sua frente.
Estava só e tinha os olhos injetados pelo excesso de álcool.
- Uma dose, delegado? - ele perguntou, dando um tom de troça à última palavra.
- Não bebo quando estou em serviço.
- Pois eu nunca tenho nada a fazer - disse Ramsay, bebendo o resto do copo.
- É o que pensa. Numa ruela perto daqui há dois sujeitos que precisam ser detidos e presos.
- Por quê? Que fizeram? Além disso, você é o delegado.
Keit queria tirar Ramsay do saloon para interrogá-lo. Tinha impressão de que se desse as costas para a freguesia, receberia várias balas nas costas.
Por isso, deu a Ramsay uma resposta que o tiraria dali depressa.
- Os dois atacaram Laze Weiner, a noiva de Dexter CLinton.
Lew Ramsay botou o copo sobre o balcão, espantado.
- Fala sério?
- Pode perguntar à própria Senhorita Weiner, Ramsay.
O xerife calculou que Clinton ia se enfurecer ainda mais se soubesse disso. Resolveu ir imediatamente prender os assaltantes.
- Vamos! - falou, levantando-se do banco alto.
Keit o seguiu, saindo pelas portinho-las de molas, sem dar as costas aos fregueses do saloon. Não podia relaxar em seus cuidados.
Na rua, Keit mostrou a Ramsay a ruela estreita onde Laze Weiner tinha sido atacada. Quando chegaram, não encontraram ninguém ali.
- Que brincadeira é essa. delegado? - aborreceu-se Ramsay. - Não sou mole como o Kendall. Posso ser perigoso quando me enfureço...
- Sei que pode ser perigoso, Ramsay. Mas não comigo.
Provavelmente os dois sujeitos, recuperando os sentidos em sua ausência, tinham fugido para evitar maiores complicações.
Ali na ruela, estavam apenas ele e Ramsay.
- Vá para o inferno, delegado, com sua estrela e seu amigo juiz - disse Ramsay, mostrando disposição para voltar ao saloon.
A mão de Keit o segurou com força pela camisa, sacudindo-o sem qualquer delicadeza.
- Não vai a lugar nenhum. Vamos conversar sobre certas coisas - empurrou-o para a parede.
- Não temos nada para conversar. Solte-me
- Quem linchou os Martinez? - perguntou Keit secamente.
- Não sei. Já disse isso ao juiz esta manhã.
Keit sabia lidar com tipos como Lew Ramsay. Eram covardes e sua covardia obrigava-os a manter a boca fechada, não para proteger seus cúmplices mas para eles mesmos se protegerem.
O delegado largou a camisa de Ramsay, recuou dois passos e acertou-lhe duas sonoras bofetadas. No silêncio da ruela, os tapas soaram como dois tiros de colt.
A primeira rebentou os lábios de Ramsay e a segunda deixou seu ouvido cheio de estranhos zumbidos.
- Quem linchou os Martinez?
- Não sei!
Um bofetão mais forte ainda atingiu em cheio o rosto de Ramsay. Ele caiu ao chão mas levantou-se depressa tentando sacar o revólver.
Keit deixou que ele tirasse o revólver do coldre e aplicou-lhe um quarto bofetão com o dorso da mão.
Atingido na boca, Ramsay cuspiu sangue e a cabeça dobrou-se para trás, estalando as cervicais... Um quinto bofetão o atingiu atrás da orelha direita.
Caiu ao chão pela segunda vez e tentou abrir fogo com o revólver que ainda tinha na mão mas Keit deu um chute na mão armada. Os dedos se abriram, deixando cair o revólver. Um segundo pontapé quebrou alguns ossos de sua mão.
- Quem linchou os Martinez?
- Não sei! Não sei!
A ponta da bota de Keit atingiu o queixo de Ramsay.
- Fale, Ramsay, ou vou matar você de pancada. Quero a verdade. Por todos os demônios do inferno, eu vou saber a verdade!
- Não... não posso falar - disse o xerife.
- Levante-se, porco! - ordenou Keit.
- Não posso, delegado... não posso...
Keit viu que ele estava à beira da confissão. Nenhum homem como Ramsay podia resistir a um castigo daqueles. Para resistir era preciso acreditar em alguma coisa: na honra, na justiça, na família, na honestidade, no amor...
Leito Ramsay não acreditava em nada daquilo.
Levantou-se cambaleante e procurou o apoio da parede. Os olhos se arregalaram ao ver Keit sacar um dos colts.
- Vai...?
O delegado não o deixou terminar.
- Quem linchou os Martinez? É a última vez que pergunto.
- Não sei!
A negativa de Ramsay era como um grito de desespero. Ele estava entre dois terrores: Dexter Clinton e Keit Leit.
O último começava a superar o primeiro. O novo delegado estava demonstrando ser um homem tão duro e cruel como o rancheiro.
Keit ergueu o revólver e virou-o para que o ponto de mira voltasse para baixo. O braço do delegado baixou na direção do rosto de Ramsay abrindo um sulco que começava na têmpora esquerda e terminava no queixo.
Ramsay gemeu mas sua covardia ainda era maior.
- Não sei... nada... sobre o linchamento.
Keit apertou os dentes e ergueu o braço para dar outro golpe no xerife.
Não gostava do que estava fazendo. Más também não gostava de ver corpos de mexicanos pendurados em cordas... nem um velho inválido jogado na terra como um montão de lixo.
Também não gostava de ver a lei se vender a bandidos.
Homens como Clinton, Ramsay e seus capangas arruinavam completamente todos os esforços e sacrifícios de homens honrados como o juiz Logan Ring.
A ponta de mira rasgou a carne de Ramsay num risco enviezado. O corte começou na sobrancelha direita, cortou a pálpebra, dividiu o nariz e levou parte de seus lábios.
- Vai ser uma carnificina, Ramsay... O próximo golpe vai arrancar seus olhos. Já viu um cego?
- Bud Stern, Alvin Peach, Amos Waltis e... e Kendall - disse ofegante Ramsay, em pé porque Keit o segurava contra a parede.
- Falta mais um...
- ... e eu.
- Quem deu a ordem?
- Dexter Clinton. Foi ele...
- Sabe escrever?
- Sei...
Keit guardou o revólver e deu um soco no queixo de Ramsay. Ele caiu desfaleci-do.
Antes que chegasse ao chão, Keit o segurou com o ombro. Com passos rápidos dirigiu-se à casa do juiz Ring, levando seu fardo humano.
Meia dúzia de cidadãos de Rio Muerto passaram por ele mas todos se apressaram a enfiaram-se em suas casas. Ninguém ia tomar partido de ninguém até a situação ficar bem clara.
- Quem é? - perguntou o juiz, quando Keit bateu na porta de sua casa com a ponta da bota.
- O delegado!
O juiz abriu a porta rapidamente e ao ver o corpo que Keit trazia no ombro, indagou:
- Outro assassinato?
- Quase. Esse é Lew Ramsay, ou o que resta dele. Há médico em Rio Muerto?
- Há, claro - disse o juiz. - Entre.
- Não. Prefiro ir logo à casa do médico e levar testemunhas que mereçam crédito. Gente que possa testemunhar no tribunal. Ramsay confessou que participou do linchamento dos Martinez, deu o nome de seus cúmplices e do homem que ordenou o enforcamento.
- Clinton?
- Lógico.
- Vou com você à casa do doutor Hardisan. Ele mesmo pode ser uma das testemunhas - disse o juiz, empurrando a cadeira de rodas na direção dos três degraus.
- Quem será a outra?
- Sam, o ferreiro. Ajude-me a descer os degraus. Quando tiver dinheiro, vou mandar tirá-los e fazer uma rampa - murmurou o juiz enquanto Keit o ajudava a descer usando apenas uma das mãos.
- Quando eu era jovem também fazia coisas assim - disse Logan Ring ao ver a grande força de Keit.
- Não se aborreça, juiz, mas gostaria de dizer uma coisa.
- Não me aborreço. Diga.
- Você é um velho... mas, com mil demônios, tem mais força que muitos jovens! E não falo de força física, as mulas também são fortes, mas...
- Entendi, amigo. Sei que tenho muita força. Toda a força que a lei e uma vida dedicada à justiça poderia me dar. Essa é a minha força e será também a sua - disse o juiz cheio de orgulho.
Sam ainda não tinha ido dormir. Estava trabalhando uma barra de ferro em brasa quando Logan Ring entrou na ferraria. Um gigante com mentalidade de criança, ele apenas pousou o martelo e perguntou com espanto:
- Quem ajudou você a descer os degraus?
A pergunta tinha sua razão porque Sam era o vizinho mais próximo de Ringe era sempre ele que o ajudava a descer para a rua.
- Foi o diabo! - disse, acionando as rodas até que o fogo iluminou suas feições enrugadas.
Sam era um bom homem e também tinha senso de humor.
- O diabo podia ter chegado um pouco antes a Rio Muerto - comentou, limpando as mãos num pedaço de pano. - Assim eu teria me livrado de muitos xingamentos.
- Está disposto a ser um homem honrado? - perguntou o juiz.
Keit, à porta da ferraria, com o corpo de Ramsay no ombro, achou a pergunta mal colocada.
- Sam, nós estamos precisando de um homem decente e o juiz pensou em você. Quer nos ajudar? - falou com suavidade.
- Claro! Que é que eu preciso fazer?
- Assinar uma confissão que Lew Ramsay vai fazer. Você será uma das testemunhas.
- Assino qualquer coisa que quiserem - disse Sam.
- Não, Sam. Primeiro deve ler e depois assinar.
- Para quê? O juiz nunca mentiu em sua vida. Assino tudo.
Keit lançou um olhar a Ring e o velho sorriu feliz.
- Vamos logo - disse Sam, apagando as brasas com água.
Colocou-se atrás da cadeira de rodas e como sempre, perguntou:
- Quer que empurre, juiz? Esperava a resposta de sempre: "vá para o inferno, Sam! Ainda tenho força nas mãos!" Mas, naquela noite Logan Ring responde de maneira diferente.
- Quero, Sam. Obrigado.
O ferreiro ficou tão estupefato que não se moveu do lugar.
- Mas meto você na cadeia se as rodas passarem numa pedra! - acrescentou, gritando.
Sam ficou aliviado e começou a empurrar a cadeira. Se o juiz não gritasse, ia achar que ele estava muito doente.
Bryan Hardison abriu a porta da casa e espantou-se ao ver a estranha comitiva. O juiz na cadeira de rodas, o delegado com um homem no ombro e um gigante sujo, suarento e sem camisa.
- Quem bateu em Ramsay desse jeito? - perguntou Hardison, quando terminou de examinar o xerife.
- Eu, doutor... tinha que obrigar esse bandido a falar - disse Keit.
Bryan Hardison examinou Keit como se ele fosse um médico recém-saído da faculdade e o delegado o seu primeiro paciente.
- Foi violento demais, amigo. Não sei se vai voltar a si. Está com o maxilar inferior fraturado, os dedos da mão direita arrebentados, perderá um olho, se viver: além disso, parte do parietal está a descoberto...
- Chega, Hardison - disse secamente o juiz.
- Está bem. Mas tenho o direito de saber o que espera desse porco, já que não me atrevo a chamá-lo de homem.
- Queremos que ele assine uma confissão - explicou o juiz.
- Para mim, nem é preciso. Já sei de tudo - falou Keit.
- Um momento, Keit Leit - disse o juiz, rodando a cadeira para diante do delegado. - Você não é mais um homem sedento de vingança, morte e destruição.
É um delegado federal, a verdadeira lei. Entendeu?
- Entendi.
- Sua vingança não tem mais sentido. A lei deve estar acima de tudo. Lei e Justiça. Lei e Justiça, Keit!
- Sei o que quer dizer, juiz. Pode ter certeza de que vou defender a lei, mesmo com o custo de minha própria vida.
- A lei não é violenta..,. embora muitos homens mereçam violência. A lei é uma balança perfeitamente equilibrada onde. ..
- Há equilíbrio quando Ramsay lincha gente come os Martinez? Onde estava a lei quando Clinton enforcou meu pai? Quando Clinton me açoitou?
- Ficará equilibrada quando os assassinos forem julgados. A lei é soberana, Keit, embora muitas vezes doa ter que respeitá-la.
O delegado fitou longamente o velho juiz.
- Acho que tem razão - respondeu finalmente. - A lei deve ser respeitada embora certos homens não mereçam tratamento humano.
- Bem, agora, Hardison, trate de fazer esse crápula despertar. Enquanto isso,
Keit e eu vamos redigir a declaração. Ramsay terá de assiná-la, mesmo que seja com a mão esquerda.
- Não será fácil, mas vou tentar - disse o médico.
Uma hora depois, Leiw Ramsay abria o olho que tinha escapado ao duro castigo do delegado.
- Nosso xerife acordou - avisou o médico.
O juiz Ring colocou sua cadeira ao lado da mesa de operações e arrancou a estrela de Ramsay de sua camisa.
- Você não é mais xerife. Se viver, irá para a cadeia e será julgado pela morte dos Martinez. O mesmo acontecerá aos outros linchadores e a Clinton que deu a ordem.
Ramsay viu Keit à direita do juiz e deixou escapar um gemido de susto.
Com a ajuda de Sam e do médico, conseguiu sentar-se na mesa e assinou com a mão esquerda a declaração de culpa. Não quis ler nada. A presença de Keit causava-lhe pânico.
- Isso é o bastante para prender Dexter Clinton - disse Ring, guardando a declaração já assinada também por Hardison e Sam.
- Vou até a cadeia. Posso levar Ramsay é deixá-lo numa cela? - perguntou Keit ao médico.
Hardison moveu a cabeça negativamente.
- Ainda não, delegado. Talvez possa levá-lo pela manhã depois que eu tratar melhor dele. Eu nem esperava que ele recuperasse os sentidos, é um homem muito forte.
- Viverá para ser julgado e enforcado? - perguntou o juiz.
- Pode ser.
Keit pegou as chaves da cadeia e pouco depois ele, o juiz e Sam saíam da casa do médico.
- É melhor descansarmos algumas horas. Nos próximos dias vamos ter trabalho demais para dormir tranqiuilos - falou o juiz.
- Boa noite - disse Sam, afastando-se para sua ferraria.
- Vou dormir no prédio da cadeia - disse Keit, despedindo-se do juiz, diante da casa dele.
- Tenho uma coisa importante para dizer a você, Keit. Sei que esta noite teve um encontro com Laze Weiner...
- Como soube? - surpreendeu-se Keit.
- A velha Jessie sabe de tudo - sorriu o juiz.
- Não duvido.
- Laze Weiner não gosta de Clinton. É inteligente e já ouviu muitas coisas. Embora não saiba de todos os crimes de Clinton, adivinha grande parte deles.
- Então por que vai se casar com ele?
- Foi coisa do pai dela, o velho Weiner. Clinton e ele eram sócios. Certamente Weiner achou que o melhor era que sua filha se casasse com Clinton e ao morrer pediu isso à moça.
- E ela concordou.
- Concordou. Naquela época poucos sabiam da roubalheiras de Clinton e o velho Weiner confiava nele.
- Por que me conta isso?
- Hum! - foi a resposta do juiz, dando de ombros. - Achei que você se interessaria em saber.
- Acertou - disse Keit.
- Eu sabia! - murmurou ele, com ar malicioso.
- Vou prender Clinton amanhã. A declaração de Ramsay será suficiente para mandá-lo para a forca juntamente com mais algumas declarações de outros vaqueiros.
- O rancho dele é uma verdadeira fortaleza, você nunca chegaria à casa principal. É bem possível que Clinton vá amanhã ao rancho W.W.
- Que vai fazer ali?
- Ele é administrador de Laze..é seu noivo. Acho bom você fazer uma visita ao W.W. Pode conseguir bons resultados.
- Então eu vou.
- Mas fique longe do Círculo Barrado. Para vencer Clinton, temos de tirá-lo de sua fortaleza. Boa noite, Keit.
- Até amanhã.
Naquela noite, Keit dormiu num dos catres das celas, deixando o quarto alugado no New México Palace. Até acabar com Dexter Clinton e seus cães danados dormiria na cadeia porque era um prédio sólido, afastado... o lugar mais seguro e indicado para um delegado federal.
- Ramsay melhorou o suficiente durante a noite para que fique com ele, delegado. Enganei-me ontem. Pensei que ele fosse morrer em breve. Mas como já disse, é um sujeito forte - falou o doutor Hardison a Keit, pela manhã.
- As serpentes custam a morrer - comentou Keit.
Meia hora mais tarde, Lew Ramsay era transportado para a cadeia de Rio Muerto em uma padiola carregada por dois mexicanos. Mas não entrava como xerife e sim como prisioneiro.
Keit prendeu-o em uma das seis celas e, examinando as ataduras em sua cabeça, comentou apenas:
- Sinto muito, Ramsay, mas você me obrigou a isso.
O ex-xerife articulou alguns sons que Keit adivinhou que eram maldições. Fechou a cela e depois, ao sair do prédio, deu duas voltas na chave, trancando a porta que dava acesso às celas.
Passou pelo hotel e pegou seu rifle e seus alforjes, indo diretamente à cavala-riça.
Ensilhou o cavalo e entregou os alforjes ao dono da cavalariça.
- Pego na volta.
- Estarão bem guardados.
O dono da cavalariça explicou a ele como chegar ao W. W. e ao Círculo Barrado.
Keit não tinha se esquecido do local onde estavam as terras de Dexter Clinton porque ali estava enterrado seu pai.
Jamais esqueceria aquela noite em que Antônio e Pedro Hidalgo e tinham sepultado enquanto ele era atendido pela pequena Mercedes.
Para chegar aos pastos de W.W., Keit tinha que dar uma grande volta, rodeando as terras de Clinton. Era possível que naquele mesmo momento o rancheiro estivesse já ciente da prisão de Ramsay.
O delegado sabia que no Navajo Hotel estavam hospedados pistoleiros contratados por Clinton, entre eles Bret Younger, o homem que tinha assassinado seu amigo em El Paso.
Keit tinha certeza de que seu inimigo, o assassino de seu pai, estava enfurecido e disposto a acabar com ele. Em poucas horas tinha levado dois golpes: a morte de Kendall e a prisão do covarde xerife.
- Preciso achar um meio de tirá-lo do rancho - murmurou enquanto cavalgava pela rua principal de Rio Muerto, rumo ao W.W.
Repetia a si mesmo que a visita ao rancho de Laze Weiner não parecia ter grande finalidade. Depois do que tinha acontecido em Rio Muerto, duvidava que Clinton estivesse com alguma vontade de namorar.
Keit sorriu ao recordar as últimas palavras trocadas com o juiz na noite anterior:
- Não deixe Laze Weiner escapar. Sua maior vingança pode ser tirar a noiva de Dexter Clinton.
Imaginou se Jessie saberia também que ele beijara a moça na rua principal de Rio Muerto, diante do banco de propriedade de Clinton.
Ao pensar no banco, lembrou-se do que o juiz tinha lhe contado quando almoçava em sua casa.
Herbert Pearson, o homem de confiança de Clinton e diretor do banco, conhecia a maior parte dos negócios sujos do rancheiro.
O juiz Ring tinha dito que Pearson fora encarregado de cobrar as reses vendidas por Clinton ao Norte e ao Sul, assim como as armas que tinham cruzado a fronteira para Benito Juarez... e para o Imperador Maximiliano.
- Se Pearson cair em nossas mãos, será fácil Clinton cometer um grande erro - murmurou.
Continuou cavalgando para o norte e, aproximou-se das terras de Clinton, descobriu dois cavaleiros montando guardas, muito perto do local onde seu pai tinha sido enforcado.
Como não queria terminar seus dias numa cadeira de rodas como Ring. afastou-se das terras do Círculo Barrado.
Agora só estava preocupado com o que dizia Laze ao vê-lo em seu rancho.
Esqueceu-se dos problemas para pensar nela.
O mais interessante era que Laze Weiner também estava pensando nele. Laze estava na sala de jantar de seu rancho, recostada num sofá, com a perna direita estendida por causa do joelho inchado.
Era uma lesão sem gravidade mas incomodava muito e doía bastante.
Desde seu encontro com o delegado de quem nem sabia o nome, sentia-se nervosa e inquieta. Não tinha dormido quase nada à noite.
Nunca tinha sentido atração por Dexter Clinton mas desde a noite anterior, o simples pensamento de casar-se com ele, dava-lhe engulhos.
Aquilo tudo tinha sido arranjado por seu pai. Achava que o melhor para ela era casar-se com seu sócio, que considerava um homem capaz de honrado.
O velho Weiner tinha tido sorte de morrer antes de descobrir que Clinton, o homem que tinha nomeado administrador de seu rancho e. a quem confiava o destino da filha, era o maior canalha de todo o território do Novo México.
Laze não amava Dexter Clinton e cada vez que olhava aquela profunda cicatriz em sua face esquerda, sentia um estremecimento de repulsa em todo o seu corpo.
- Quando ele vier me ver, direi a ele que não posso me casar com ele, que não o amo e que o mais certo é romper o noivado. Ele tem mais dezoito anos que eu...
Interrompeu seus pensamentos ao perceber que falava em voz alta.
- Sou mesmo uma tola...
Ouviu o ruído produzido pelo gado encerrado nos currais e fechou os olhos, pensando que precisava começar a se inteirar dos assuntos do rancho.
- Não sabia nada sobre as reses, nem sobre os pastos, nem sobre os mercados.
O pai tinha sempre cuidado de tudo passando depois toda a responsabilidade e decisões para Clinton. O pior é que desconfiava que seu noivo não apresentava as contas com muita clareza.
Adormeceu, pensando no que faria quando rompesse com Clinton.
Ao acordar pensou que ainda estava sonhando porque diante dela, com o chapéu negro nas mãos, estava o delegado. Fechou os olhos novamente achando que a inchação do joelho tinha dado febre.
- Desculpe aborrecê-la, Laze, mas eu não tinha outra saída.
- É você mesmo? - perguntou ela sem acordar completamente.
- Sou. Procuro Dexter Clinton para prendê-lo e levar a Rio Muerto onde ele será julgado pelo Juiz Logan Ring.
Essa informação teve o dom de despertar Laze inteiramente. Ela abriu os grandes olhos verdes e encarou Keit.
- É Clinton o homem que procurava para matar? - indagou, com a intuição própria das mulheres.
- É. Mas agora eu o procuro por outro motivo. Minha conta com ele é velha demais, já tem dezesseis anos. Preciso fazer umas perguntas a você, Laze.
- Pode falar.
- Que tipo de relações tem com Clinton?
- Não acha que um delegado não deve perguntar certas coisas? - esboçou um sorriso.
- Claro que não. Mas eu me refiro a relações comerciais.
- Nesse caso posso dizer que ele administra meu rancho desde a morte de meu pai, há uns cinco anos.
- É mesmo seu noivo? Não proteste, por favor. É necessário responder.
- É... e não é. Antes da sua chegada, já tinha decidido romper esse compromisso.
- Por quê? - Keit inclinou-se para ela.
- Não sei. Às vezes, nós mulheres fazemos coisas sem motivo muito claro.
- Clinton vai acabar na forca, Laze. Três homens foram linchados ontem por ordem dele, nelos seus vaqueiros.
- Por que queria matá-lo?
- Ele enforcou meu pai e me chicoteou quando eu tinha apenas quatorze anos. Tenho quinze cicatrizes nas costas, uma por chicotada que ele me deu. Mas não vou mais matá-lo. Agora sou a lei e minha vingança vai para segundo plano.
- Sinto muito... mas ainda não sei seu nome.
- Keit Leit. Como vai seu joelho?
- Foi apenas uma pancada. Quando a inchação diminuir voltarei a andar, montar e saltar. Obrigada.
A conversa tinha perdido o impulso mas eles se olhavam como se tivesse muito o que falar.
- Por que veio ao meu rancho, Keit? - perguntou Laze suavemente.
- Pensava achar Clinton por aqui.
- Você mente muito mal, Keit.
- Quer mesmo saber a verdade? - disse o delegado, inclinando-se um pouco mais sobre a jovem.
- Quero - sussurrou ela.
- Queria ver você de novo - murmurou ele.
- Você é muito impulsivo - disse ela, os olhos verdes cheios de ternura.
- As vezes...
A frase ficou no meio. Os lábios de Laze estavam perto demais e ele não resistiu.
A moça correspondeu ao beijo, fechando os olhos.
- Tenho que ir embora, Laze - disse ele, acariciando os cabelos ruivos.
- Ela estendeu as mãos e segurou o braço dele.
- Que está acontecendo comigo, Keit? Conheci você ontem e confio tanto em você. Nunca beijei um homem antes.
O delegado sorriu e depois de beijar levemente os lábios dela, dirigiu-se para a porta.
- Quando achar o amor, não faça perguntas. Ame e deixe-se amar.
- Você volta? - perguntou ela com um tom de angústia.
- Devo voltar. Temos muitas coisas para conversar.
- Estarei esperando. Se demorar muito, vou atrás de você.
- Voltarei brevemente, Laze. Quando ela ouviu o galope do cavalo se afastando, fez uma coisa que nunca tinha feito antes por um homem. Chorou.
- Meu Deus, o que está acontecendo comigo? - murmurou. - Ela mesma respondeu: - Amo Keit e não sei por que. Só sei que amo esse homem com todas as minhas forças.
I.aze Weiner sempre tinha enfrentado valentemente a verdade.
Daquela vez a verdade era tão agradável... Fechou os olhos e reviveu o beijo terno de Keit.
Eram dez da noite e o juiz conversava com o delegado. O juiz tinha franzido o nariz ao ouvir o plano de Keit mas esse ponderou:
- Trata-se de defender a lei, a justiça e as vidas de muitos inocentes.
O juiz acabou cedendo.
- Receio que haja homens mortos, Keit.
- Só haverá assassinos mortos, juiz.
- Deus te ouça.
O delegado saiu à rua bastante animado. Sabia que Clinton devia estar armando um ataque contra ele e era melhor precipitar os acontecimentos.
Saiu de Rio Muerto a todo galope e foi para as terras dos Hidalgo. Quando avistou a casinha branca que anos antes tinha sido seu refúgio, não conseguia conter a emoção.
Desmontou de um salto e quando os pés tocaram o chão sentiu no peito o cano de um rifle.
- Levante as mãos. A arma está carregada - disse uma voz feminina muito agradável mas decidida.
Keit ergueu as mãos e tentou ver melhor o rosto da mulher que o ameaçava com o auxílio apenas da claridade que vinha da janela da casa.
- Você é Mercedes Hidalgo - falou devagar.
- Sou. Na minha família, nós, mulheres, sabemos disparar uma arma tão bem quanto os homens.
- Quero falar com Antônio. Sou amigo.
- Os Hidalgos não têm amigos entre os gringos. Eles são todos inimigos ou carrascos.
Keit ouviu um leve ruído às suas costas.
- Baixe o rifle, Mercedes. Esse é Keit Leit.
O Winchester baixou e a seu lado surgiu Pedro.
- Olá - disse Keit, estendendo a mão direita. - Você é Pedro, certo?
- Como está, Keit? Sabíamos que você voltaria um dia. Quando meu pai soube que um homem tinha tido coragem de desafiar Kendall, falou: "É o Keit que voltou para matar Clinton." - disse .Pedro Hidalgo.
- Não voltei para matar Clinton. Voltei para impor a lei e a justiça em Rio Muerto.
- Sabemos que é delegado federal. Seu nome corre entre os mexicanos como se você fosse Noé e todos fossemos entrar na sua arca. Meu pai está reunido aí dentro com outros homens, mas você é um dos nossos.
- Como está você, Mercedes? Cresceu muito - disse Keit delicadamente, estendendo para ela a mão direita.
Ele ainda não via bem as feições dela mas sentiu o calor de sua mão.
- Cresci mesmo, Keit, e isso é um milagre. Poucas mulheres de minha raça conseguem crescer nessa terra.
As palavras da moça eram repassadas de amargura. Keit não quis estender a conversa.
Quando entraram na casa, Antônio se levantou, abriu os braços e recebeu-o como a um filho.
- Sabia que voltaria, Keit. Nunca duvidei você - disse o velho mexicano, abraçando-o demoradamente.
- Tinha que voltar, Antônio. Na sala havia mais uns dez homens.
- Esses são amigos e vizinhos. Os Salinas e os Escobar. Somos as três famílias mais antigas de Medina. Quando o juiz chegou aqui, já tínhamos mulher e filhos. Nossos pais e avós estão enterrados nessas terras.
Os Salinas eram cinco irmãos. Os Escobar eram o pai e quatro filhos. Keit viu que estavam todos armados e vários rifles estavam encostado na parede.
- Boa noite, amigos - cumprimentou Keit.
Os dez responderam ao cumprimento quase ao mesmo tempo e Keit viu brilhar uma esperança em seus olhos.
- Nós nos reunimos para juntar dinheiro suficiente para pagar a hipoteca que pesa sobre minhas terras - disse Antônio.
- O banco de Clinton tem todos nós aprisionados. Nossas terras estão hipotecadas ao banco - revelou Juan Escobar, o pai.
- Mesmo que paguemos, Clinton acabará se apoderando das terras e das nascentes. - disse Manuel Salinas.
- Há sete tumbas no cemitério de sete homens que pagaram suas dívidas ao banco mas depois foram assassinados e Dexter Clinton ficou com as terras deles dizendo que não tinham pago - continuou Jeronimo Salinas.
- Como pode ser isso?
- Todos morreram da mesma forma, Keit. Pagaram a hipoteca ao banco no prazo certo. Quando voltaram às suas casas foram assassinados por desconhecidos. Os documentos do pagamento da hipoteca desapareceram... e apareceram mais tarde em poder de Dexter Clinton ou de Herbert Pearson.
Keit compreendeu rapidamente o plano do inimigo. Esperava o momento oportuno para um empréstimo ou hipoteca. Se não pagavam no prazo, ficava com as terras. Se pagavam, seus assassinos entravam em cena.
- Estão dispostos a enfrentar abertamente os vaqueiros e pistoleiros de Clinton? - perguntou o delegado.
Os Salinas e Escobar trocaram olhares significativos. Depois fitaram Antônio Hidalgo.
- Estamos, Keit. Achamos que chegou a hora de acabar com esse crápula - disse Antônio.
- Que vai fazer a lei? - indagou Juan Escobar.
- A lei sou eu... e o juiz Logan Ring está de acordo comigo. Temos que limpar a província de Medina dessa cambada de ladrões e assassinos.
- Nesse caso, conte conosco, Keit - disse Juan.
- Ótimo, amigos. Em primeiro lugar, vamos...
Keit Leit começou a explicar seu plano. Os homens escutavam com grande interesse. Pela primeira vez iam lutar, tendo a lei a seu lado.
Antes tinham a lei a serviço de Dexter Clinton.
- Compreenderam? - perguntou Keit e eles concordaram em coro.
- Nesse caso, partirei com Pedro agora para Rio Muerto. Acho que Clinton só vai reagir amanhã, o entardecer. - falou Keit.
- Não se esqueça que além dos vaqueiros de confiança, Clinton contratou pistoleiros profissionais. Todos esses homens estarão lutando - disse Antônio Hidalgo.
- Tudo vai sair bem se cada um de nós seguir direitinho seu plano.
- Todos cumpriremos nosso papel - afirmou Juan Escobar.
Keit e Pedro sairam da casa branca rumo a Rio Muerto e chegaram ali pouco mais das três da manhã.
Apesar da hora avançada, as ruas da cidade estavam bem povoadas. Não se via mexicanos, entretanto. Os dois avançaram pelo centro da rua sentindo os olhares dos vaqueiros embriagados, dos jogadores e das mulheres dos saloons.
- Você significa perigo para essa gente - comentou Pedro.
- A lei é detestada por eles, mas também é temida.
- Eles me lembram os abutres quando voam em círculos acima de um animal moribundo. Só esperam que morra para começar a picar sua carne - disse Pedro.
- São piores que os abutres, amigo.
Desmontaram diante do prédio da cadeia, defronte à grande praça e Keit viu que estava mal iluminada. Isso o fez sorrir.
- O juiz está aí dentro mas deve estar dormindo - comentou o delegado quando deixavam os cavalos na pequena quadra anexa ao prédio.
- Ele é velho mas é o único gringo que se portou decentemente com os mexicanos - falou Pedro.
- Acontece que um homem sozinho não pode lutar contra uma quadrilha de ladrões e assassinos.
Depois de tirar as selas dos cavalos, eles pegaram seus rifles e entraram na cadeia.
Realmente, Logan Ring estava dormindo em sua cadeira de rodas, tendo sobre as pernas inválidas uma escopeta.
Abriu os olhos quando os dois entraram.
- Aumente a chama do lampião, meu filho. Dormi como um maldito velho.
- Todos temos que descansar um pouco - disse Keit.
- Tudo correu bem? - perguntou o juiz enquanto o rapaz aumentava a chama.
- Muito bem. Agora Pedro e eu faremos uma visita.
- Quero que se lembre que só deve atirar quando não houver outra solução. Você deve capturá-los vivos para que toda a província e território saibam que a lei tem de ser respeitada.
- Pode dormir sossegado. Já esqueci minha vingança pessoal. Meu dever como delegado é fazer com que a lei seja respeitada. .. e eu mesmo devo ser o primeiro a respeitá-la.
- Agora sim, Keit, pode dizer que é um homem livre! Ninguém é livre quando está cheio de ódio e vingança,
- As últimas palavras de meu pai ao morrer foram para me dizer que a vingança não é própria dos homens honrados. Agora percebo que ele tinha razão. Vamos, Pedro. Nosso juiz cuidará do xerife para nós.
Quando os dois amigos saíram, Logan Ring acariciou suavemente o rifle de cano cortado.
- Keit Leit trará a ordem a essa região.
Keit e Pedro voltaram à rua principal de Rio Muerto. Notaram que havia luz no banco.
- Nosso amigo Pearson é muito trabalhador. ..
Tinham deixado os rifles na cadeia e estava apenas com seus colts e facas. - Vamos dar uma mão a ele. Sem dúvida ele vai agradecer nossa visita - troçou Keit.
Atravessaram a rua e depois de ver que ninguém os vigiava, Keit empurrou a porta do banco. Estava trancada por dentro e ele bateu de leve na vidraça.
- Não é hora de expediente, delegado - disse Pearson abrindo ligeiramente a porta.
- Não vim a negócio. É assunto particular, Pearson.
- De que se trata? Keit deu um belo sorriso e curvou-se como se quisesse dizer um segredo.
- Acho que o Senhor Clinton não vai gostar nada se nós discutirmos assuntos dele na rua.
Keit não mentia mas tinha escolhido as palavras com cuidado para que tivessem duplo sentido.
O diretor do banco, ao ver o sorriso de Keit e ao notar que ele chamava Clinton de Senhor Clinton, achou que seu patrão tinha conseguido suborná-lo.
- Tem que ser agora? Gostaria antes de falar com Clinton - disse, ainda desconfiado.
- Tenho ordens para você. Antônio Hidalgo virá nas primeiros horas da manhã pagar a hipoteca. O Senhor Clinton soube que ele conseguiu o dinheiro... mas não podemos discutir isso aqui na porta. ..
Pearson tirou a grossa corrente que segurava a porta.
- Está bem, Keit, vamos conversar no meu escritório.
Keit entrou e quando o banqueiro ia fechar a porta, apontou para ele o colt:
- Deixe entrar um amigo meu.
- Maldição! - xingou ao ver que tinha sido enganado.
Pedro Hidalgo entrou e trancou a porta. Em seguida, desarmou Pearson e tirou de sua mão o lampião.
- Que pretendem fazer comigo? - disse Pearson, começando a suar violentamente.
O mexicano pegou com a mão esquerda as duas lapelas de Pearson e empurrou-o contra a parede. Na mão direita empunhava uma faca cuja ponta ficou apoiada no ventre protuberante.
- Muito simples - Pedro sorriu. - Uma facada na barriga cortará seus intestinos e ninguém será mais capaz de consertá-los, nem mesmo o doutor Hardison. O ferido se retorce como um verme...
O suor escorria pela testa do apavorado Pearson.
- Conheci um sujeito mais gordo que você. Com uma facada só o ventre dele ficou aberto como um melancia. Levou quatro horas para morrer. O homem se arrastava pelo chão deixando um rastro de sangue e intestinos...
- Não continue, por favor! - gritou Pearson. - Que queriam de mim?
- Queremos ver os documentos na sua caixa-forte - disse Keit.
Pearson respirou aliviado quando a faca de Pedro separou-se de seu ventre. Foi à caixa-forte e abriu-a.
- Vão me enforcar? - perguntou.
- Isso é com o juiz e os jurados - respondeu Keit.
Duas horas depois, com a rua central de Rio Muerto já deserta, Herbert Pearson saiu do banco. Mas, desta vez, não ia para casa. Ia para a cadeia. O plano do delegado ia se cumprindo com perfeição.
O juiz Ring examinou os documentos trazidos por Keit.
Eram oito horas da manhã e ele era o único homem acordado na cela ao lado da de Ramsay.
Logan Ring não sabia que Clinton tinha ordenado a Pearson que destruísse aqueles documentos mas este tinha achado que se os conservasse poderia um dia usá-los contra o rancheiro.
Clinton só soube que os documentos existiam quando o banqueiro exigiu dele dez mil dólares para não exibir ao juiz documentos que poderiam levá-lo à forca sem rodeios.
- É melhor que continuemos bons amigos, Clinton, porque se me acontecer algum acidente, o juiz Ring vai receber esses documentos - tinha dito Pearson. - Estão guardados em envelopes separados com sete pessoas diferentes com instruções para mandá-los ao juiz se alguma coisa estranha me acontecer.
Apesar de ter dito isso a Clinton, Pearson tinha-os guardados com ele mesmo, em sua caixa-forte. Não queria correr riscos com ninguém.
Quando Keit e Pedro acordaram Ring tinha muitas notícias para eles.
- Os dois empregados de Pearson não acharam o patrão e partiram a galope para o Círculo Barrado. Mais tarde, Bud Stem veio à cidade e falou com os quatro pistoleiros do Navajo Hotel.
Pedro Hidalgo saiu à rua e encontrou-se com um velho mexicano. Falou alguma coisa com ele e voltou para a cadeia. O mexicano entrou no saloon, pediu tequila e informou em voz alta:
- O delegado federal prendeu Herbert Pearson.
Aproveitando a confusão provocada pela notícia, saiu sem beber. Tinha cumprido sua missão.
- Está tudo correndo muito bem - disse Keit ao ver um vaqueiro sair do saloon a tolo galope. - Ele vai avisar Clinton.
No final da tarde, Dexter Clinton apareceu em Rio Muerto com todos os vaqueiros e os pistoleiros somando quase trinta homens.
- Chegou a hora - disse Keit, olhando pela janela.
- A hora da justiça - falou o juiz.
- Vou sair - disse Keit, experimentando os colts nos coldres para ver se saíam com facilidade. - Diante do prédio há meia dúzia de assassinos e duas dezenas de porcos. Querem assaltar a cadeia para libertar os prisioneiros. Como delegado federal, devo preveni-los que serão barrados com chumbo, se tentarem alguma coisa.
- Calma, delegado - disse o juiz quando Keit ia abrindo a porta. - Eu também sou a lei e vou sair com você.
- Eu também - disse Pedro.
- Você, não, Pedro. Eu sou o delegado e Ring é o juiz. É nosso dever tentar evitar mortes. Será melhor que fique vigiando de uma das janelas - ordenou Keit.
Os dois sairam na varanda da cadeia e a porta ficou aberta atrás deles. Pedro posicionou-se numa janela. Na praça estavam reunidos os vaqueiros e pistoleiros de Clinton e alguns habitantes curiosos de Rio Muerto, os ladrões, jogadores e mulheres de vida fácil.
Bret Younger aproximou-se acompanhado de cinco homens com tochas na mão. Parou a uns dez metros.
- Queremos os prisioneiros, delegado! Não cometeram nenhum crime e não podem ficar encarcerados!
- O juiz da província sou eu - gritou Ring. - Sua opinião não vale nada. Se alguém tentar libertar os prisioneiros, pode atirar para matar, delegado!
Bret Younger sorriu e ergueu a mão direita.
- Avante, pessoal! Dois homens apenas não podem nos deter!
Em menos de três segundos a praça mal iluminada clareou com a luz de uma dúzia de lampiões de querosene colocados em locais estratégicos. Os homens de Clinton emitiram murmúrios de espanto.
- Olhem em volta, imbecis! - rugiu Keit.
Os pistoleiros profissionais foram os primeiros a perceber a armadilha. Estavam rodeados de luzes e de rifles. Vários mexicanos estavam postados nos telhados das casas vizinhas com Winchesters. Outros fechavam as ruelas com os colts em punho.
- Acabem com eles!- berrou Clinton que se achava atrás de seus vaqueiros.
Só Younger obedeceu à ordem absurda. As mãos voaram para os colts na tentativa de abater Keit e o juiz. Mas antes que apertasse o gatilho, sentiu uma explosão dentro do corpo. Seu corpo rolou por terra. Logan Ring o tinha matado.
- Fogo! Atirem ao mesmo tempo! - gritou Bud Stern, em pânico.
Uma descarga de cinco rifles acabou com Bud, Peach e outros pistoleiros contratados. Dexter Clinton compreendeu que estava perdido. Seus vaqueiros estavam sendo desarmados pelos mexicanos, liderados por Pedro.
Quando estavam todos de mãos para o alto, de frente para a parede, Keit Leit saiu da varanda em direção a Clinton que mantinha as mãos perto dos coldres.
- Levante as mãos, Clinton. Está preso em nome da lei - disse Keit. - Terá o que nenhuma de suas vítimas teve. Um julgamento imparcial, com júri e defensor, embora eu ache que só precisa de piedade.
Ele era a lei e devia ser o primeiro a respeitá-la. Não havia ali lugar para vingança.
- Não vou me entregar! - gritou o rancheiro. - Terá que me matar.
Keit avançou para o inimigo, sem sacar seu colt. Clinton sacou sua arma e deu um tiro. Keit recebeu a bala no braço e continuou avançando. Outro tiro de Clinton pegou seu ombro.
- Mate esse verme, Keit! - berrou o juiz de sua cadeira de rodas.
Keit recebeu mais duas balas. Uma delas falhou, a outra acertou em seu peito. Finalmente ele chegou perto do inimigo e abateu-o com a coronha do revolvei. Clinton caiu desfalecido.
Keit também.
Quando voltou a si, Keit viu Laze a seu lado.
- Se viver, será minha propriedade exclusiva, querido. Eu amo você - disse ela, beijando-o.
- Esse será o melhor remédio para ele se recuperar - disse Hardison.
Keit Leit ficou bom. Um mês depois assistia ao enforcamento de Clinton, Waltis, Ramsay e outros, ao pé do olmo onde tinham, enforcado seu pai. Laze estava a seu lado.
Quando tudo terminou, ele beijou seus lábios.
- Não desobedeci meu pai mas a lei exterminou seus assassinos.
- A lei sempre vence - disse Laze.
- Você falou como o juiz Ring - riu Keit Leit, beijando-a.
Fim
46





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Como Emagrecer Fazendo Sexo

Richard Smith







Tradução
Gilson Dimenstein Koatz
2ª Edição


















Do original
The Dieter's Guide to Weight Loss During Sex

© 1978 by Richard Smith
Published by arrangement with Workman
Publishing Company, New York
© da tradução, Ediouro Publicações S.A., 1992


Ilustração da capa:
Paul Hanson

Devo muito a muita gente.
Infelizmente, todos insistem em
permanecer no anonimato.














RICHARD SMITH
COMO EMAGRECER FAZENDO SEXO


Ao iniciar um relacionamento lembre-se deste princípio: quanto mais curta for a conversa, menos calorias serão utilizadas. Começar um papo com um "não tenho nada pra dizer, vamos direto pra cama" — além de afugentar qualquer parceiro de inteligência mediana — queima apenas três calorias. Quanto mais longa for a conversa, mais a sua imaginação funcionará e mais calorias serão consumidas quando puser em prática as fantasias idealizadas.
As mais recentes pesquisas de endocrinologistas e sexólogos confirmam: duas horas de sexo entusiástico são capazes de queimar aquela fatia de torta do almoço, as colheradas de sorvete do jantar e mais algum alimento ingerido em eventuais assaltos à geladeira.
Você já deve ter concluído que quanto maior e melhor for a atividade sexual mais peso você perderá. Pode imaginar, também, como se divertirá.
Neste engraçadíssimo Como Emagrecer Fazendo Sexo Richard Smith aborda todas as possibilidades gastronômico-sexuais imagináveis, não esquecendo sequer as ocasionais emergências e desastres que as mais loucas posições e combinações podem causar.






Índice
Introdução (epa!)

I. Preparativos enquanto o par não chega
Condicionamento físico
Exercícios básicos
Condicionamento mental
Enfeitando o pavão (ou pavoa)

II. Montando o cenário e primeiras Intimidades
Preparando o quarto
Preparando o banheiro
Preparativos de última hora
Deixando o outro no ponto e despertando as sensibilidades mútuas
Comunicando-se
Dando o primeiro passo
Vencendo a resistência
Contato corporal e primeiros toques
Beijando
Tirando as roupas
Excitamento e estímulo (avançado)
Bonificação em perda de peso nº 1
Bonificação em perda de peso nº 2
Constrangimento
Desapontamento
Indo para a cama

III. Preliminares (aquecimento)
Dez zonas erógenas alternativas
Sendo bom na cama
Sendo boa na cama
Sendo melhor ainda na cama
Indo longe demais
Contorcendo-se
Excitação
O toque
Sexo oral
Retirando pêlos
Jogando pêlos fora
Atingindo a ereção
Mantendo a ereção
Bonificação em perda de peso nº 3
Colocando preservativos
Inserindo o diafragma
Demoras
Mais demoras
Angústia emocional

IV. Intercurso e coisas correlatas
Fazendo pela primeira vez
Fazendo pela última vez
Fazendo
Inserção
Satisfazendo o/a parceiro/a
Posições
Posições de acordo com a nacionalidade
Localizações
Intercurso
Possíveis efeitos colaterais do intercurso
Ruídos relacionados com sexo
Procurando conforto
Avizinhando-se do orgasmo
Orgasmo
Escala de intensidade orgásmica
Saltando fora
Orgasmos múltiplos em mulheres
Orgasmos múltiplos em homens
Orgasmos especiais
Ejaculação precoce
Conseqüências da ejaculação precoce em mulheres
Conseqüências da ejaculação precoce em homens
Atingindo o orgasmo em circunstâncias inusitadas
Retardando o orgasmo

V. O depois
Bonificação em perda de peso nº 4
Coisas geralmente ditas após o sexo
Possíveis efeitos colaterais do sexo satisfatório
Possíveis efeitos colaterais do sexo insatisfatório
Recuperação
Virando de bruços e dormindo
O sono
Tentando novamente
O asseio
Chuveirada
Secando-se
Fazendo a cama

VI. Atividades suplementares
Fantasias masculinas
Fantasias femininas
Sonhando
Sexo grupal
Masturbação
Fetichismo
Servidão
Disciplina
Flagelação
Bonificação em perda de peso nº 5
Sexo com animais
Práticas sexuais bizarras
Sexo alegre
Experiências eróticas adicionais
Mantendo um diário

VII. Problemas diversos, emergências e desastres
Inveja do pênis
Medos tipicamente relacionados ao sexo
Medos pessoais
Culpa
Provocação
Mais provocação
Adquirindo escaras
Pego/a com a boca na botija
Quase pego/a com a boca na botija
Situações ameaçadoras
Interrupções e perturbações
Aflições
Apelo da natureza
Espantando animais de estimação
Acidentes diversos

VIII. Comida e sexo (o/a boquinha bom/boa de cama)
Calorias nas comidas
Efeitos típicos do álcool no comportamento na cama
Exemplos de perda de peso enquanto se come
Perdendo peso e resistindo à comida
Comendo na cama — problemas
Usos alternativos para a comida

IX. A relação de altura
Qual a altura do/a parceiro/a sexual ideal?


























Introdução (epa!)
"Se você gosta de exercícios, gostará deste livro. Se detesta exercícios, amará este livro." Anônimo

Quanto de peso perdemos durante o sexo? Embora a literatura sobre dietas seja rica em tabelas e livros explicando quantas calorias se queima correndo, jogando tênis ou golfe, informações similares relativas às atividades sexuais, até agora, não estão disponíveis. Entretanto, um levantamento feito recentemente indica que 98% das pessoas devotam mais tempo e esforços ao sexo do que à prática de qualquer outro esporte. Então, consideramos que era hora de escrever um livro explicando o porquê disso.
No passado, as tentativas para a determinação da perda de peso durante o sexo redundavam em fracasso devido, talvez, à ignorância dos pesquisadores e à sua má escolha de objetivos. Como exemplo, um experimento destinado a determinar a quantidade de calorias consumidas durante as preliminares terminou abruptamente quando ambos os participantes caíram no sono, sendo a mútua falta de interesse imputada a uma diferença de idade entre os dois de cinqüenta e seis anos. Outra experiência mal-orientada, uma tentativa de provar que uma atividade sexual regular (um mínimo de 74,2 vezes por semana) poderia afinar a cintura e dar uma revitalizada no padrão de jogo de um tenista amador fracassou quando, no quarto dia do experimento, os participantes, moídos, enlouqueceram. Como resultado, a falta de dados confiáveis tornou impossível para o ser humano padrão calcular sua perda de peso enquanto tira a roupa, perde tempo à toa ou tenta obter um orgasmo verdadeiramente satisfatório dentro de uma Kombi estacionada ao sol num típico dia de verão.
Salvo raras exceções, o sexo é considerado o menos enfadonho e mais prazeroso método de exercício físico, sem falar no seu baixíssimo custo. Na verdade, aqueles que o praticam só têm palavras de elogio por seus benefícios. Palavras de aprovação vibrantes e vigorosas como: "Eu até que gosto", "É legalzinho", e "Supera atravessar o Pantanal de sandália havaiana" não são raras. Os exercícios tradicionais, é claro, são eficientes redutores de peso, mas tomam muito tempo. Uma hora de corrida ligeira, por exemplo, queima apenas seiscentas calorias; uma hora de natação, quinhentas calorias (se você permanecer submerso, queima mais, embora possa parecer o contrário); e duas horas de sinuca, apenas setenta e uma calorias. Por outro lado, a farsa de um falso orgasmo, bem convincente, pode queimar até cento e sessenta calorias em apenas dezenove segundos, sem contar o aquecimento. Adicione ao total vinte calorias para se evitar que o lençol fique molhado, e mais trinta para se pegar uma toalha, e os benefícios da atividade sexual se tornam óbvios — tudo o que fazemos queima calorias, e duas horas de sexo entusiástico podem facilmente queimar um sanduíche de mortadela, uma fatia de torta de banana, duas colheradas de sorvete de baunilha e aquelas poucas e renitentes camadas de celulite das suas coxinhas. Assim, pensando em sexo em termos de calorias queimadas, podemos calcular quanto de peso podemos perder, considerando três mil e quinhentas calorias como correspondentes a meio quilo de peso. Quanto maior a atividade, é claro, mais peso se perde.
Neste guia, tentamos abranger todos os aspectos concebíveis do sexo, descortinando-lhes, assim, o drástico impacto que a atividade sexual crônica exerce não só sobre o físico mas também sobre a mente. Embora tenham sido usados os mais modernos métodos científicos para garantir a precisão dos resultados, os problemas com que nos defrontamos foram, para dizer o mínimo, profundos. A quantidade de calorias queimadas enquanto se buscava uma posição mais confortável, por exemplo, variará muito, dependendo se você está confortavelmente esparramado numa enorme cama de casal ou espremido dentro de um armário no quarto da empregada. Ademais, apesar das maravilhas da época áurea da eletrônica, a tarefa de traduzir reações emocionais tais como ódio, desapontamento, herpes e ansiedade em calorias queimadas foi de tal dificuldade que se tornou necessário apelar para algumas estimativas cuidadosamente calculadas. Por fim, durante o calor da paixão, a despeito do fato de os eletrodos passarem o tempo todo caindo no chão, os pares simplesmente se recusavam a dar um tempo. Por esse motivo, nossos dados tiveram que ser ajustados de forma a levar essa falta de informações em consideração.
Assim, sugerimos que se use este livro como um guia informal, e não como um manual rigoroso, fazendo-se os ajustes caloríficos necessários de acordo com o tamanho e o temperamento de cada um, mais o período de tempo que cada qual dedica ao sexo, como o faz, e tenha ou não um par para isso. Uma vez atingidos seu peso e altura ideais, você poderá continuar suas atividades sexuais sem se preocupar com efeitos colaterais adversos, tais como reprodução ou magreza excessiva.
A facilidade com que a atividade sexual leva à perda de peso pode ser melhor ilustrada pelo fato de que uma hora de esfregação da pesada, incluindo contorções, sacolejos e choramingos pedindo para não parar, pode queimar facilmente o equivalente calórico de cinco doses de caipirinha ou uma porção dupla de goiabada com queijo. Na tabela a seguir você encontrará exemplos adicionais.

Atividade sexual Consome 1 hora de preliminares intensas (114 resfolegos por minuto) ou 18 minutos de sexo 1 fatia (grande) de bolo de chocolate 26 minutos de sexo ininterrupto mais um orgasmo de 9 minutos, ou o equivalente 2 fatias de pizza portuguesa 16 minutos de cócegas e cutucadas no/a parceiro/a 9 pirulitos de morango 53 minutos de beijo de língua, ou 25 minutos de preliminares normais ou 6 minutos de preliminares anormais 1 cheeseburguer, 14 fritas e uma dose extra de ketchup 2 horas de servidão ou 47 minutos de flagelação com chicote de peso médio 2 garrafas de cerveja, uma porção de espaguete ao suco e uma torrada 7 minutos de sexo aural (envolvendo a orelha do outro) 6 sonhos (sem recheio) 15 minutos de sexo oral 11 uvas 52 minutos de massagem nas costas do outro ou 10 minutos de massagem nas suas costas 1 omelete de carne de siri e 1 copo de vinho branco 1 hora de ressuscitação estômago com estômago 1 rapadura (generosa) 62 minutos correndo atrás do outro pelo quarto, num passo médio, ou 2 horas de luta de travesseiros, com travesseiros bem pesados 1 pudim de leite inteiro 1 espirro 12 brotos de feijão salgados 14 minutos de carícias Musse de chocolate: colher de sopa 6 minutos de sexo em pelo menos 4 posições diferentes Musse de chocolate: panelão 31 minutos de preliminares na posição do lótus 2 marias-moles e 4 pés-de-moleque 24 minutos de sexo oral mutuamente satisfatório, na piscina 1 balde de doce-de-leite

I. Preparativos enquanto o par não chega

O caminho para o sexo perfeito começa com um você perfeito. Além de lhe mostrar quanto de peso você perde enquanto se prepara para o seu par, este capítulo o ajudará a ter certeza de que está física e mentalmente pronto/a até para a mais estafante atividade sexual. Para sua orientação, preparamos uma lista de perguntas que freqüentemente as pessoas prestes a irem para a cama fazem. Utilize as informações das páginas a seguir para resolver qualquer dúvida.
• Sou forte o suficiente?
• Duvido da minha capacidade de dar prazer?
• Meu coração acelera só de afofar o travesseiro?
• Estou satisfeito com o meu bíceps, tríceps, quadríceps e grau de miopia?
• Posso levar meu par no colo até o quarto sem fazer papel de bobo?
• Como está a cor da minha pele?
• Minhas espinhas vão desaparecer?
• Minhas unhas dos pés estão limpas? Meus dedos dos pés estão alinhados?
• É a ansiedade que está provocando dor de barriga?
• Devo comer agora ou depois?
• Devo tomar um calmante?
• Será que eu preciso mesmo disso?
• Será um prazer?
• Será significativo?
• Se for significativo, também será prazeroso?


Condicionamento físico
"Uma mente brilhante num corpo gordo vive escorregando." Dr. Flatus Lenzia, endocrinologista

É durante as atividades sexuais que os nossos corpos executam, ou pelo menos tentam, as mais mágicas e maravilhosas posturas. Agarramos e apalpamos, escorregamos e apertamos, esticamos e puxamos, contraímos nossos músculos e realizamos feitos de agilidade que pasmariam um macaco. Entretanto, em vez de nos prepararmos adequadamente para atividades tão ardorosas, a maioria de nós pensa apenas em pular na cama sem ao menos fazer umas abdominais, umas flexões e uns polichinelos.
Além dos problemas de ligamentos, essa falta de preparação pode levar a pessoa a uma exaustão prematura, cujos primeiros sinais são falta de ar, tonturas se você se deita rápido demais, incapacidade de responder aos golpes do seu par, e um desejo intenso de não fazer nada a não ser ficar assistindo à tv. E isso após míseros quatro minutos de preliminares. O resultado será uma sensação de inadequação e profunda letargia que poderá durar apenas duas horas ou vários dias, durante os quais será difícil andar, servir bebidas ou mastigar pedaços de carne de segunda. Ademais, aqueles habitualmente sedentários, em especial os que têm aversão crônica a exercícios, sofrerão, com quase toda certeza, de uma bruta cãibra.
É óbvio que a falta de forma física pode arruinar, arrasar e possivelmente destruir a vida sexual de alguém. De acordo com o Presidente do Conselho de Condicionamento Físico, a necessidade de cochilar após exercícios pesados como subir correndo superfícies inclinadas, orgasmos ou fazer cozidos sugere que a condição física da pessoa é precária e torna-se necessário um programa de exercícios físicos.
Os modestos exercícios delineados a seguir, que nem de longe representam um programa de condicionamento físico, se mostrarão de grande valia para vencer a inércia sexual, melhorando a virtuosidade e elevando o nível de energia para que a pessoa enfrente qualquer par, não importando onde nem quão bem ele ou ela tenha sido treinado/a.

Exercícios básicos
(Cada exercício deve ser executado pelo menos uma hora antes do sexo)

Atividade Calorias consumidas
Flexão de braço (cinco) 14
Força em geral, firma os braços e ombros, aumenta a capacidade de se manter sobre o par e facilita a remoção do par que desmaiar em cima de você.

Abdominais (cinco) 10
Tonifica e fortalece os músculos vitais do estômago, permitindo que você pule fora da cama rápido se algo der errado. Também permite que você se sente na cama mais facilmente, para comer, assistir à tv ou ver que horas são.

Abdominais invertidas (três) 563
Superforça. Faça exatamente como nas abdominais, mas de barriga para baixo, encostada no chão.

Tocar nos dedos dos pés (dez) 7
Esmaga os depósitos de gordura, aumenta a flexibilidade. Permite que você assuma posições que normalmente arruinariam a sua coluna. Também deixa que você pegue coisas como comida e sedativos sem esforço.

Tocar na cintura (dez) 0,5
Para aqueles que ainda não se soltaram e ainda não alcançam os pés. Efeito similar ao exercício anterior, mas bem mais fraquinho.

Supinos (cinco, com pesos confortáveis) 9
Faz bíceps enormes, inspira confiança e, ocasionalmente, torna a marca de vacina mais proeminente. Obrigatório para quem quer levantar o par no momento crucial e levá-lo para o quarto, galantemente. Sem esse exercício, em vez de erguer o par confiantemente, é provável que você caia no chão, chorando vergonhosamente. Esse exercício é especialmente útil para a mulher muito fraca e de braços muito finos que quer vencer o parceiro numa queda de braço.

Amassar uma bolinha de borracha (vinte vezes) 3
Durante o ato sexual, é preciso ter uma munheca forte para tudo, desde um aperto de mão de macho até pegar uma fruta. É especialmente vital caso você tenha que se agarrar ao seu par, se a coisa estiver boa mesmo. Para as mulheres que querem vencer as querelas ou ter o parceiro bem preso enquanto faz cócegas nele, uma mão firme é essencial.

Correr (pelo menos dois quilômetros) 100
O mais completo dos exercícios para aumentar o nível de energia e firmeza de muitos dos músculos usados durante o sexo. Também aumenta a capacidade pulmonar e a eficiência do oxigênio, permitindo que você prenda a respiração (se tiver que) por longos períodos de tempo.

Os exercícios a seguir são opcionais

Parada na mão 40
Difícil, mas gratificante. Mantendo os joelhos retos, dobre o corpo desde a cintura e coloque as palmas das mãos no chão. Dê dois pequenos passos adiante. Você agora deve estar parado em cima das suas mãos. Conte até dez.

Tocando o solo 50
De pé, com os braços do lado do corpo. Sem dobrar os joelhos ou mover os pés, incline-se para a frente, lenta e graciosamente, e toque no chão com a testa. Fique assim, conte até dois e volte à posição original. Quem já tiver feito ioga achará fácil.

Flexão lateral 20
Junte as mãos atrás do pescoço e fique de joelhos. Lentamente, flexione o corpo lateralmente e toque no chão com o ombro direito. Faça o mesmo para o outro lado.

Existem, é claro, métodos adicionais para se atingir o condicionamento erótico. Entre eles estão exercícios vigorosos como tênis, esqui, andar de bicicleta, gamão e dormir em rede. Todos são excelentes para aumentar a capacidade cardiorrespiratória e soerguer a performance sexual das pessoas.





Condicionamento mental

É impossível curtir uma atividade sexual se a gente está deprimido, pouco a fim ou distraído pelas atividades cotidianas. Por esse motivo, você deve buscar uma sensação de bem-estar; preocupações com a queda da bolsa, a conta do dentista não-paga, a plantinha da sala que está doentinha devem ser postas de lado. A seguir você encontrará métodos simples de limpar a mente, dissipar as tensões e alcançar a serenidade.

Atividade Calorias consumidas
Meditação transcendental 4
Meditação incidental 1
(leva menos tempo, pode ser feita enquanto se escova os dentes)
Auto-hipnose 9
Psicanálise (por sessão) 17
Se o analista vai a domicílio 12
Reza 5
Ver filmes pornôs................................................................ 7
Se a cópia for ruim e você tiver que franzir o cenho, some três calorias. Se a trilha sonora estiver ruim de ouvir, adicione duas calorias mais.
Telefonar para um parente 3
Alisar um pernil (para você ir se animando) 3
Biofeedback 6
Se você não tiver o equipamento apropriado, enfie os dedos nos ouvidos e ouça as suas mãos. Como funciona bem!






Enfeitando o pavão (ou pavoa)

Atividade Calorias consumidas
Chuveirada 8
Tomar um banho 6
Secar o cabelo:
com a toalha (vigorosamente) 9
com secador elétrico 3
soprando 348
(deduza 4,96 calorias se for careca)
Escovar os dentes 2
Com escova elétrica 0,25
Examinar o rosto à procura de manchas e espinhas 2
(Inclui reação paranóica ao descobrir cravo do tamanho de um amendoim nascendo na ponta do nariz.)
Barbear (ambos os sexos) 3
Passar cosméticos (ambos os sexos) 3
Escolher roupas
Se você curte 7
Se você se lixa 1













II. Montando o cenário e primeiras intimidades

Criar uma atmosfera de intimidade e bem-estar é o suficiente para deixar o seu par à vontade e desejoso de sexo, imediatamente. Assim, o ambiente é a chave do sucesso. Se você tiver uma lareira, acenda-a, a não ser que seja verão. Examine a cama. Ela é forte o suficiente? Está consertada? Não precisa de um preguinho ou uma gotinha de cola? Já jogou fora a porcaria que o gatinho fez? Seu cachorro já foi gentilmente cloroformizado? Mandou as crianças para a casa da tia Nenoca? Aquelas fotos ameaçadoras foram escondidas? O papagaio foi amordaçado? Os discos estão prontos? A geladeira está bem forrada? Cheia de gelo? O banheiro está limpinho? Claro, dá muito trabalho, mas o resultado será um par satisfeito, que lavará a louça suja para você com um sorriso nos lábios.

Preparando o quarto

Atividade Calorias consumidas
Se você for meticuloso/a 42
(Três calorias a mais ou a menos)

Inclui tirar o pó, afofar os travesseiros, ligar o rádio, pular na cama, pendurar quadros e acertar o alarme soneca do rádio. Certifique-se de que a iluminação é adequada — escuro demais e o quarto parecerá uma mina de carvão; claro demais, e parecerá uma sala de operações. Use uma vela de 25 lâmpadas ou uma lâmpada de 25 velas. Evite o uso de incenso. Use objetos como livros para dar boa impressão e mostrar que tipo de pessoa você é. Livros de poesia, por exemplo, sugerem que você lê e é sensível. Devem ser colocados bem à vista — na cômoda, na mesa-de-cabeceira ou sob os lençóis. Além de poesia, escolha alguns livros que mostrem que você é diferente — um tanto excêntrico/a mas não louco/a de pedra — adicionando assim um toque de mistério à experiência sexual. Alguns títulos sugeridos: Sou Dado — o Cubo Amistoso; O Presidente, Seu Agente, a Secretária e o Seu Irmão; Vim das Privadas — o Romance do Limpador de Bueiros; Pecuária e Puericultura, Assuntos de Grande Deleite.

Nota: Se o seu convidado for realmente alguém especial, talvez seja preferível trocar os lençóis ou, pelo menos, sacudir os que já estão na cama. Adicione quatro calorias para qualquer uma das atividades.

Preparando o banheiro

Até mesmo nas circunstâncias do dia-a-dia, o banheiro deve ser visto como um santuário para a purificação do corpo, renovação do espírito e, ocasionalmente, para que a gente se esconda do mundo. Contudo, durante o sexo, o banheiro também se transforma num posto de primeiros socorros. Deve estar, portanto, imaculado, brilhando e cheio de amenidades tais como toalhas macias e felpudas, uma cortina de chuveiro de alto astral, um sabonete novo e cheiroso, uma escova de dentes extra e um vaso sanitário cuja descarga seja suave e agradável. Se possível, sugerimos que o banheiro todo seja fervido, só para você ter certeza de que está tudo bem. Se isso não for conveniente, não esqueça do seguinte:

Atividade Calorias consumidas
Apagar velha mancha de limo da borda da banheira 11
Esfregar (desincrustar) ladrilhos 14
Remover o limo que cresce na cortina do chuveiro 12
Trocar as toalhas 3
Colocar novo rolo de papel higiênico 2
Segurança é um rolo novo no lugar e mais cinco no armário.
Retirar os restos de espuma da saboneteira 4
Desinfetar o tapete do banheiro 6
Arrumar a cesta de remédios 3
Evitará que centenas de vidros e tubos de remédios caiam e quebrem se o parceiro abrir o armário para pegar aspirina ou sal-de-frutas
Esconder outras escovas de dentes 1


Preparativos de última hora

Atividade Calorias consumidas
Passar o aspirador 6
Esconder o manual de sexo 3
(Se você ainda não sabe bem o que fazer, escreva as respostas nos punhos de sua camisa.)
Decantar o vinho 4
Se você não tiver um saca-rolhas 268
(Esse processo não apenas permite que o vinho respire como impede que seu parceiro perceba que o seu modesto — mas bem potável — Bordeaux pintou e bordou até chegar a esse ponto.)
Colocar o Botão Verificador de Cozimento da Galinha 1


Deixando o outro no ponto e despertando as sensibilidades mútuas

(Espere seu par chegar para dar início a qualquer uma das seguintes atividades.)

Atividade Calorias consumidas
Recitar poesia
Carlos Drummond de Andrade 3
Olavo Bilac 3,5
Manuel Bandeira 4
Bocage 8
(Se seu sotaque for nordestino, evite)
Catulo da Paixão Cearense 12
Essa é do Queirós 20
Ler Guerra e Paz em voz alta (sem parar para respirar) 1573
Troças (uma boa mudança de ritmo)
Almofada barulhenta 11
Flor que esguicha 14
Dentadura de vampiro 7
Anel que dá choque 10
Charuto explosivo 20
As brincadeiras acima são de um bom gosto absoluto, perfeitas para se romper o gelo.
Piadas
De salão 8
De salão de barbearia 14
Ouvir música
Clássicos ligeiros 3
Clássicos da pesada 5
Música de câmara 10
Óperas:
Mozart 15
Verdi 27
Wagner 248
Música ambiente (de elevador) 20
Cole Porter 8
Música caipira 40
Rock 93
Você cantando:
tendo boa voz 18
tendo péssima voz 64
Tocando violão (por acorde) 0,25
Tocando trumpete
(uma música) 26
(sem bocal) 320
Adicione cinco calorias a todas as categorias acima se estiver marcando o ritmo com o pé.
Dançar:
Foxtrote 7
Minueto 9
Valsa 30
Tango:
sem gomalina no cabelo 14
cheio de gomalina no cabelo 14,5
Lambada 86
Dançar juntinho é uma boa maneira de se ter uma idéia do corpo do par; permite que se decida se vale a pena ir adiante ou desistir antes que o mal seja maior.
Passar um filme mudo de terror, vestindo um pijama de plástico negro com uma capa de veludo vermelho 18
(se você não for chegado Ia a emoções fortes, consulte
seu par antes de alugar o projetor)
Ler a Bíblia juntos 10
Brincar de médico 8








Comunicando-se
Atividade Calorias consumidas
Uma conversa significativa veja a seguir.
Naturalmente, quanto mais curta e menos imaginosa for a conversa, menos energia será utilizada e menor a quantidade de calorias consumidas. Começar um papo com "não tenho nada pra falar, vamos direto pra cama", embora bem direto, queima apenas três calorias e pode afastar o mais cooperativo dos pares. Quanto mais longa e profunda for a conversa, mais a sua imaginação funcionará e mais calorias serão consumidas. Uma discussão a respeito do ar inteligente da vaca enquanto pasta, ou sobre a direção do vento quando bento é o frade, consome mais de cinqüenta calorias e faz você se sentir um tremendo filósofo. Veja as nossas sugestões de tópicos que podem consumir uma quantidade substancial de calorias.

Desejar que o seu patrão se lasque 24
Seu esforço em se tornar você mesmo 28
Seu esforço em se tornar aquilo que a família quer 35
Seu esforço em se tornar menos dependente do pai, da mãe, do analista, do padeiro, do açougueiro 57
Todos acima 268
A repercussão de Churrasquinho de Mãe em Nietzsche 75
(filosofia barata sempre dá o maior pé)
Escrever Nietzsche certo sem ter que colar 92
A ciência deveria se preocupar em lançar um homem ao Sol? 60
É moralmente aceitável dirigir dormindo profundamente? 33
Zen-Budismo e arqueirismo
o que é mais profundo? 37
o que tem mais pontaria 40
Por que amor sem sexo não significa nada 45
Por que sexo sem amor pode ser muito bom 2
Convencer o parceiro de que não se trata apenas de atração física 70
Dando o primeiro passo
Atividade Calorias consumidas
Se você for envergonhado 15
Se você tiver um medo mórbido de sucesso 22
Se você for facilmente intimidado/a quando uma pessoa agir de modo distante e reservado 36
Uma pessoa que manda você ficar com as mãos afastadas dela está agindo de modo distante e reservado.
Se você for uma pessoa ansiosa
com um enorme complexo de inferioridade 45
Se você vende carros usados 2
Se você pede educadamente
para colocar o braço no ombro do seu par 17
(é tão ridículo que às vezes funciona)
Se você implora.................................................................... 25
De acordo com os psicólogos, a ansiedade produzida pela perspectiva de dar o primeiro passo, para qualquer dos sexos, é diretamente proporcional ao medo que alguém sente de pedir um copo limpo a um garçom num bar de esquina.


Vencendo a resistência
Atividade Calorias consumidas
Passiva 1,5
Resistência passiva indicada pelo par, se ele, em voz baixa e tremida, disser "não". "Por favor, não pare" indica resistência extremamente passiva.
Ativa 62
Resistência ativa pode incluir mordidas, socos e armas. Pressione se você achar que é golpe.
Seduzindo o par (só se aplica a pares venais)
Se você é rico 5
Se você é pobre 164
Contato corporal e primeiros toques
Atividades Calorias consumidas
Manuseio inepto..............................................................................4
Inspeção ambiental casual...............................................................7
Esfregar carinhosamente.................................................................10
Acariciar seriamente........................................................................14
Massagear de forma envolvente........................................................17
Carícias...........................................................................................19
Agarramento
Acima da linha da cintura, sob vestimentas folgadas como capas de chuva ou suéteres 21
Abaixo da linha da cintura, com roupas apertadas como roupa de esquiar, de mergulhar etc 46
(é permitido parar caso a roupa lhe interrompa a circulação do braço)
Aperto franco (qualquer parte do corpo, menos a cabeça inteira) 15

Beijando
Atividade Calorias consumidas
De leve 10
Fortemente 17
Apaixonadamente 26
(Asfixiando o par, por exemplo.)
Sugando o sangue 41
Restaurando a forma do nariz 11
Beijo de língua
de boca aberta 18
de boca fechada 239
com a língua torcida 65
Beijo holandês (só vale se você beijar os Países Baixos) 24
Beijando várias partes do corpo
Úvula 11
Palato 9
Cílios 3
Retina 8
Fígado 37
Pulmões 30
fundo do olho 66
pulso 12
relógio 10


Tirando as roupas
Atividade Calorias consumidas
Com o consentimento do parceiro 12
Sem o consentimento do parceiro 187
No inverno 25
Vale se você estiver vestido para um inverno rigoroso, com temperaturas perto de zero. Caso contrário, conte apenas cinco calorias.
No verão 3

Miscelânea
Tirar as meias sacudindo os pés violentamente 418
(Pouco prático e raramente funciona, mas para quem está interessado em perder peso é válido.)

Abrindo o sutiã
Com as duas mãos, sem tremer 7
Com uma das mãos, trêmula 96
(O recorde de incompetência nessa atividade foi de duas horas e meia, dois polegares mutilados e um indicador esfolado.)
Qualquer tentativa de tirar a meia-calça sem tirar a calça 375
(Adicione mil calorias se você conseguir.)



Você deve tirar toda a sua roupa? Geralmente a resposta é sim, já que a maioria das pessoas toma este ato como um sinal de concordância e aceitação. Mulheres são sempre descartadas por homens que não tiram as meias, e também por homens obcecados demais com higiene, a ponto de se recusarem a fazer sexo se não puderem continuar de cueca. Também há gente que acha difícil se separar até de seus amuletos, mesmo que temporariamente. Assim, não é raro encontrarmos pessoas envolvidas em atividades sexuais agarrando fervorosamente um pé de coelho em uma das mãos, ou até mesmo um rádio portátil. Contudo, geralmente se aceita que se use adornos e jóias na cama, tais como brincos, anéis, cruzes, estrelas-de-Davi, perfumes, dentes de javali etc.


Excitamento e estímulo (avançado)

Foi difícil determinar valores calóricos nesta categoria, já que o que pode ser sexo da mais alta freqüência para uns pode ser apenas papo furado para outros. Uma certa pessoa, por exemplo, pode responder sexualmente a uma costeleta de porco; outra, ao contrário, pode apenas querer comê-la... no sentido gastronômico, é claro. Muita gente não considera a expressão "renovação urbana" erótica. Dessa forma, honestamente, consideramos a contagem de calorias da categoria a seguir um tanto imprecisa.

Atividade Calorias consumidas
Soprar no ouvido do par
com a boca 9
com um fole 14
com um secador de cabelos (sem calor) 2
Soprar seu próprio ouvido 158
(Forma experimental de auto-erotismo não totalmente testada.)
Brincando com o lobo auricular do parceiro 8
(Se o seu par for um cigano, cuidado para não engolir o brinco.)
Morder a cabeça do par 27
Lascívia 15
Falar palavrão 8

Bonificação em perda de peso nº 1
Atividade Calorias consumidas
Striptease 55

Se você tiver uma graça física meramente marginal, tirar a roupa ao som de música pode representar uma excelente oportunidade de perder peso enquanto excita seu par, que observa lambendo os beiços. Também lhe dá a chance de tirar a roupa sozinha, em vez de se preocupar com as mãos trêmulas de alguém que tenta desesperadamente lhe arrancar o seu macaquinho de seda novinho, esquecendo que você ainda está de botas. Entretanto, você deve tomar cuidado para não arruinar o clima erótico tentando fazer algo que não esteja de acordo e o faça parecer ridículo. Mulheres gordas demais devem evitar movimentos corporais que exijam muito molejo ou pulos. Um grandjeté e a dança do hula-hula não são boas escolhas.

Dança do ventre 100
Dançar com o ventre do par 165

Nota: A não ser que você seja obcecado por arrumação, deixe para pendurar suas roupas e sapatos no final.


Bonificação em perda de peso nº 2
Atividade Calorias consumidas
Medo da platéia 18

Pode ocorrer quando os dois parceiros estiverem finalmente nus e perceberem que terão que parar de fingir e partir para a ação. Os sintomas principais são ansiedade, náusea e uma necessidade irracional de dormir ou fugir. Pode ser vencido se você se trancar no banheiro e liberar as "más energias" com um desentupidor de pia.


Constrangimento
A contagem de calorias indica a quantidade de energia consumida quando se tenta dar um jeito em sentimentos de constrangimento e desgraça total induzidos por:

Atividade Calorias consumidas
Mancha de suco na cueca 10
Buracos na roupa de baixo
Se você for rico 2
Se você for pobre 20
Excesso de pêlos em lugares pouco usuais
Pêlos pubianos vão até os pés 25
Pêlos no bico dos seios (dos homens 0,5
(das mulheres 8
Celulite 12
Poros largos 10
Tatuagem com letras em relevo 18
Nariz vermelho como pimentão 14
Olhos empapuçados 66

Desapontamento

As roupas podem esconder e mentir, deixando muita gente desapontada, e até mesmo se sentindo enganada, ao ver o par nu. Em certos casos, uma atividade menos íntima pode ser preferível, tal como ver um jogo pela tv. Um homem de bela aparência vestindo um terno pode ter peito de pombo, ombros estreitos e pernas de palito. Uma mulher que, tirando os sapatos, passa de 1,60 m para 1,35 m e ninguém consegue mais achar no tapete da sala é triste. Damos a seguir uma lista de desapontamentos mais comuns, e a quantidade de calorias gastas lidando com eles.

Atividade Calorias consumidas
Parceiro fica melhor vestido 10
(Você prefere fazer sexo com as roupas dele.)
Parceiro fica melhor com você sem óculos 10
O corpo do parceiro parece uma galinha depenada 12
Parceiro usa roupa de baixo corretiva 15
O suéter do/a parceiro/a é cabelo no peito 20
Parceiro é do sexo errado 100
Você nem liga 0,25
Parceiro é da religião errada 57
Parceiro usa sapatos com saltos altos 12
Parceiro usa meia com saltos altos 50
Reações típicas a desapontamento sexual
tocar fogo na cama 8
tocar fogo no parceiro 15
suicídio 1
depressão profunda 9
chorar:
por dentro 27
por fora 4
rir:
controladamente 5
histericamente 14
Inventar desculpas complicadas mas críveis para dar o fora ("Eu tenho que ir embora", por exemplo 5

Indo para a cama
Atividade Calorias consumidas
Erguer o par 15
Distensão 20
Ficar vermelho 5
Decidir quem fica com o melhor lado da cama
(o mais perto da cozinha) 14

Não são mais atividades exclusivas dos homens. Muitas mulheres, especialmente as fortes e caladas, ficarão orgulhosas de erguer o parceiro no colo, levá-lo até o quarto e jogá-lo suavemente sobre a cama. Os homens apreciarão esse gesto, sobretudo se estiverem cansados e tiverem que ir trabalhar, embora alguns poucos possam vir a se sentir ameaçados.

Para os que não são fortes o suficiente para agir como indicado acima, basta puxar o par pelo chão 16
Usando um skate 3
Tremendo por causa dos lençóis frios 9
Tremendo de medo 19
Acertando o alarme soneca 1
Colocar os dentes num copo com água 3
(aplica-se apenas se os dentes forem falsos ou muito frouxos)
Rezando 1
Meter-se debaixo do colchão 547
Um casal tentou fazer isso 137 vezes, até que descobriu que era impossível.


III - Preliminares (aquecimento)
"É preciso começar de algum ponto."
Dra. Afronízia Sotén Nehura, famosa psicoterapeuta

Quem faz da dieta uma profissão nos diria que se consome mais calorias durante as preliminares do que durante qualquer outro momento do sexo, com a possível exceção de dançar vestindo um terno de lã ou fazer sexo costas com costas. É fácil notar por quê. As preliminares são o momento de se experimentar e tentar coisas novas — carícias com um arenque defumado, mordidelas de amor se você possui bons dentes, pular com abandono e ricochetear na parede e excitação mútua para ver quem faz as caretas mais ridículas.
Por outro lado, aqueles que vêem as preliminares como uma enfadonha perda de tempo podem preferir passar direto para o ato em si, rezando para que o par não perceba.


Dez zonas erógenas alternativas
(Se as zonas regulares falharem.)

01. Parte de trás dos lábios
02. Entre os dedos dos pés
03. Dentes pré-molares
04. Cordas vocais
05. Calosidades
06. Papilas gustativas
07. Qualquer unha sem esmalte
08. Anel do dedo mindinho
09. Qualquer parte do sistema endócrino
10. Terceira prateleira da geladeira


Sendo bom na cama
As informações a seguir são apenas preparatórias. Descrições detalhadas e calorias específicas consumidas são detalhada, no restante do capítulo.

O parceiro ideal
• É pau-pra-toda-obra voluntarioso
• Demora muito antes de ter o orgasmo
• Não se distrai com ruço, soluços ou reprimendas
• É craque em pelo menos seis posições
• Dá múltiplos orgasmos à parceira
• Se dá múltiplos orgasmos
• Tem um sentido de tempo que permite o gozo simultâneo
• Não fica perguntando: "Como estou me saindo?"
• Não chia nem bufa se a parceira se veste e tira o time de campo
• Massageia as costas da parceira, numa boa, antes e depois da transa
• Só grita na cama
• Sempre tira o relógio


Sendo boa na cama

A parceira ideal
• Não se importa se o parceiro lhe fizer ter orgasmos múltiplos
• Só leva dois minutos para gozar
• Não acorda a vizinhança
• Curte ser agressiva
• Não se sente usada se o parceiro desmaia após quatro horas de sexo
• Não faz cara feia durante o sexo oral
• Deixa o parceiro fazer tudo que não ultrapasse o limite da normalidade
• Não vive perguntando: "Como você está se saindo?"
• Fica acordada o tempo todo
• É atenciosa com o parceiro após o orgasmo
• Sabe administrar primeiros socorros
• Tem a geladeira cheia de comida
• Não diz "pobre coitado" se o parceiro goza enquanto apaga a luz

Sendo melhor ainda na cama
Atividade Calorias consumidas
Dizer honestamente ao outro(a) o que lhe deixa
ligadão/ona 5

Indo longe demais
Atividade Calorias consumidas
Acalmando o par horrorizado 163

Contorcendo-se
(Um excelente afrouxador de músculos)

Atividade Calorias consumidas
De:
Prazer 12
Dor 12,25
Cócegas 16
(Adicione cinco calorias se o parceiro o/a estiver segurando.)
Cãibra 9
Foi algo que você comeu 20

Mais afrouxadores de músculos
Saltos mortais 15
Grandes contorções 28





Excitação
Quando é moderada, a excitação do seu par com a língua (preferivelmente a sua) pode ser altamente erótica e um eficiente queimador de calorias.

Atividade Calorias consumidas
Lamber todo o corpo do par, tomando o cuidado de evitar todas as áreas sexualmente sensíveis 20
(Tratando-se depares muito peludos, será necessário parar periodicamente e limpar a língua.)

Resistir constantemente ao par frustrado que tenta desesperadamente levar sua cabeça para as áreas sexualmente sensíveis 35

Nota: O excesso dessa atividade pode levar seu par a se tornar impaciente e tentar dirigir sua língua para as áreas sensíveis, pegando-a e puxando-a, independentemente de sua cabeça ir junto.

O toque
Atividade Calorias consumidas
Com:
Pluma 4
Mão 6
ponta dos dedos 7
ponta dos pés 68
salsicha 15
vara de marmelo 22
mata-moscas 14
focinho de cachorro gelado 50
pincel mágico indelével 11

Sexo oral
Atividade Calorias consumidas Cunilíngua 15
Hemorragia nasal 5
(pode ser causada por parceiro ultra-excitado)
Felação 30
(Requer quase o dobro de esforço do cunilíngua, já que usa mais músculos, especialmente os do pescoço, mãos e olhos.)
Tentar respirar com o nariz muito entupido 14
O truque do chapéu 187
Chupar o dedão 12
Com o sapato calçado 49

Uma das maiores vantagens do sexo oral é que se ambos os parceiros estiverem em estado de saúde razoavelmente bom poderão prosseguir quase indefinidamente. O único efeito colateral adverso será uma falta de eficiência temporária das papilas gustativas e uma dificuldade de mastigar qualquer coisa que não seja papinha de maçã.


Retirando pêlos
Atividade Calorias consumidas
Da língua 3
Uma operação relativamente simples, que envolve o polegar e o indicador. Tente ser discreto.
Do céu da boca 8
Um pouco mais complicado. Pode ser preciso usar o dedo e a língua.
Do palato 14
Muito complicado, especialmente se estiver grudando. Talvez você precise usar alguns dedos, a língua, talvez até o punho inteiro. Se não der certo, use um garfo.
Da úvula 20
Se o pêlo estiver envolvendo a úvula, será fácil retirar com alicate ou aspirador de pó. Talvez seu parceiro note.
Da garganta 23
A menos que exista um pequeno esfregão à mão, é melhor engoli-lo. São apenas duas calorias por fio, independentemente da cor.


Jogando pêlos fora
Uma vez que você tenha conseguido tirar o pêlo, é preciso jogá-lo fora sem ofender o parceiro. (Quem me ama, ama meus pêlos). Jogar cama abaixo pode parecer a melhor solução, mas o pêlo é tão leve que provavelmente ficará preso nos seus dedos. Você acabará sacudindo a mão violentamente, o que só terá como resultado o fim do encantamento. Considere uma das opções a seguir:

Atividade Calorias consumidas
Esfregar o dedo sub-repticiamente no lençol 1
Limpar o dedo no/a parceiro/a 3
(É uma boa idéia, mas o pêlo poderá voltar para atazaná-lo/a.)
Colocá-lo de volta onde o achou 28
(Sua mão, repentinamente, em certas partes do corpo do/da seu/sua parceiro /a, pode perturbá-lo /a.)

Nota: Sugerimos que você o esconda sob o braço até mais tarde.








Atingindo a ereção
Atividade Calorias consumidas
Para um homem saudável 2,25
Para uma mulher saudável 549
Para um homem de quarenta e seis anos, que dobra suas roupas cuidadosamente e ainda vive com a mãe 78
(especialmente se ela estiver lá embaixo, esperando no táxi)


Mantendo a ereção
Atividade Calorias consumidas
Para um homem 4
Pura uma mulher 163

Alguns homens consideram que isso é responsabilidade da mulher e ficam lá deitados, como gatos de armazém, esperando que algo aconteça. Isso é bom para a mulher, pois lutar contra a gravidade dá a ela uma excelente oportunidade de queimar calorias. Uma mulher nos relatou que consumiu três horas tentando fazer um tímido diácono se animar, e durante esse tempo perdeu cinco quilos. Mas ficou tão fraquinha que sua vida começou a desfilar perante seus olhos.


Bonificação em perda de peso nº 3
Atividade Calorias consumidas
Perder a ereção 0,25
Procurar por ela 115


Colocando preservativos
Atividade Calorias consumidas
Com ereção 1,25
Sem ereção 300

Geralmente é melhor esperar até você estar pronto, embora itlguns homens tentem ganhar tempo colocando antes — ain-<lit no elevador ou durante o jantar. Isso raramente funciona.

Nota: Homens míopes podem adicionar dez calorias e levam cinco minutos de lambuja.


Inserindo o diafragma
Atividade Calorias consumida
Se a mulher que o faz é:
Experiente 6
Inexperiente 73
se é um homem que o faz, independentemente de
experiência 680
Adicione cinco calorias para ir buscá-lo do outro lado do quarto. Adicione cem se o deixar lá.







Demoras
Atividade Calorias consumidas
Frigidez 11

Algumas causas comuns:
• Parceiro usando ceroulas de inverno que não troca há uma semana
• A técnica de preliminares do parceiro consiste em se esfregar em você, todo baboso, e chamá-la de "amô"
• Parceiro se recusa a mostrar a cicatriz da vasectomia
• Medo de se sentir comprometido
• A fome bate e você acabou de comer
• O parceiro vive dizendo: "Você está tão distante..."
• A televisão está alto demais
• A televisão está baixo demais
• Falta de privacidade (a arrumadeira vive entrando e perguntando seja pode arrumar)
• Unha grande do mindinho do parceiro machuca a sua vista
• O quadro enorme do Karl Marx no teto incomoda


Mais demoras
Atividade Calorias consumida
Impotência 11

Algumas causas comuns:
• Desejo de ser diferente
• Sutil mecanismo de defesa contra a troca de doenças venéreas
• Senilidade
• Perseguição por um cachorro enorme
• Limite de tempo de três minutos
• Oito doses de vinho
• Medo do sucesso
• Sexta tentativa em uma hora
• Ressaca
• A medalha da santinha da parceira, quando ela está por cima, vive entrando na sua boca

Nota: Enquanto nenhum dos dois se irritar, não há com que se preocupar, e o sexo deve prosseguir como se tudo estivesse normal.


Angústia emocional
Atividade Calorias consumidas
Angustia emocional 22

Um pequeno colapso — histeria, retraimento, banhos de assento etc. — é uma reação comum e muitas vezes agradável ao ataque da impotência ou frigidez.*1 Se você for basicamente saudável, contudo, há muito pouco com que se preocupar, a menos que sua parceira mostre um comportamento hostil, como pegar o telefone e chamar alguém mais competente para visitá-la. Nesse caso, você passará as duas próximas semanas andando de pijama e chinelos, a esmo, comendo comida congelada sem descongelar.






IV. Intercurso e coisas correlatas
O intercurso geralmente vem logo após as preliminares, exceto nos casos de preliminares extremamente ardentes, caso em que vale a pena dar um tempo...um dia ou dois. Como o intercurso suga tão abundantemente nossas reservas físicas e emocionais, devemos ficar alerta para os doze sinais de perigo de debilidade sexual:

01. Indiferença à arquitetura renascentista
02. Lábios crispados
03. Um badalar na boca
04. Os dedos não estalam
05. Fígado palpitante
06. Perda de sensibilidade abaixo da linha dos cabelos
07. Um desejo mórbido de dar barrigadas
08. Notas escolares muito mais altas do que a média
09. Tipo sangüíneo mudado
10. Glândula salivar herniada
11. Necessidade premente de sucos
12. Enjôos

Fazendo pela primeira vez

Não entre em pânico se a Terra não se move. A primeira vez geralmente é mais intelectual do que física. De fato, muita gente emprega a palavra "fiasco" para descrever sua primeira experiência. Algumas vezes também ouvimos termos como "catástrofe", "falha", "tragédia" e "processo judicial". Mas a maioria dos problemas se resolve com tempo, paciência e duzentos ou trezentos parceiros de rodagem, para amaciar. Não é nenhuma raridade para os sexualmente bem-dotados passar da mais ignominiosa incompetência à espalhafatosa grandiosidade num período de quatro anos. A seguir, listamos alguns problemas da primeira vez:
Atividade Calorias consumidas
Impotência passageira 4
Tentar desesperadamente colocar qualquer coisa em
algum lugar 18
Errar completamente 9
Vergonha 15
Desapontamento (a famosa síndrome "Quer dizer que
era isso 27
Escárnio 30
Qualquer episódio traumático
Fazer o travesseiro atingir o orgasmo, inadvertidamente, mas com grande habilidade 60
Parceiro cai no sono 41


Fazendo pela ultima vez

A seguir, a lista de calorias consumidas de acordo com as causas mais comuns para se abandonar o sexo para sempre.

Atividade Calorias consumidas
Resolução de Ano-Novo 15
Idade
velho demais 1,5
novo demais 1,25
Algo melhor lhe aconteceu 5
Falta de tempo 11
Conversão religiosa 5
Descobrir que o intercurso avilta as preliminares 22
Cama recuperada 16


Fazendo
Atividade Calorias consumidas
Decidindo a posição
jogando uma moeda 2
cortando o baralho 2,5
unidunitê 3
Tentando a introdução
usando as mãos 4
usando os pés 500
enquanto ainda decide a posição 288


Inserção
Atividade Calorias consumidas
Se o homem está pronto 0,25
Se a mulher não está 274


Inserção
Atividade Calorias consumidas
Se a mulher está pronta............ 0,25
Se o homem não está................. 274


Satisfazendo o/a parceiro/a
(Tamanho do órgão)
A maioria dos especialistas concorda que tamanho não é documento. A forma é o que conta, e o homem que tem um membro em forma de H pode deixar uma boa impressão, maiúscula. Nas raras ocasiões em que um homem tem um membro realmente pequeno,* ele pode ter que compensar dando um duro um pouco maior, mas isso é bom para perder peso. Um homem com um membro realmente grande,* embora possa não ter que se esforçar muito uma vez lá dentro, pode ficar exausto só de tentar convencer sua parceira a deixá-lo botar qualquer coisa em qualquer lugar.

Atividade Calorias consumidas
Tamanho normal 22
Grande 15
Enorme 8
Pequetitinho 163

* 1 a 2cm
* meio metro em diante

Posições

Experimentar constantemente novas posições não só lhe dá uma chance de se mostrar como também permite que você exercite o corpo, perca peso e salve a sua vida sexual da monotonia. Felizmente, o número de posições possíveis é quase infinito, sobretudo se você usar um banquinho de apoio. A Academia Real do Tibete reconhece 860,* o Livro Turco das Delícias lista 525, e as Nações Unidas sancionam oficialmente 203. Seria uma raridade achar um casal que não soubesse ao menos dez posições totalmente funcionais e altamente satisfatórias para ambos. Listadas a seguir estão apenas umas poucas das posições mais populares, todas combinando o máximo de perda de peso com contato corporal produtivo. Selecione aquelas que melhor se adaptem ao seu tipo e não se sinta desencorajado se levar um pouco de tempo até que essas posições sejam executadas com perfeição.



Atividades Calorias consumidas
Homem em cima, mulher embaixo (frente a frente) 20
Homem em cima, mulher embaixo (costas com costas) 749
Mulher em cima, homem embaixo 25
Muitas mulheres consideram que, além das qualidades sexuais inerentes, esta posição facilita ver as horas no relógio.

*804 são bem inúteis, a não ser que você já seja um aleijado sem alternativa e não tenha mesmo nada a perder.


Em pé
O par sendo da mesma altura 18
A mulher vinte centímetros maior que o homem 90
(O homem terá que dar vários saltos vigorosos no ar para conseguir obter um mínimo de satisfação que seja.)
Sendo tracionado 124
(muito útil em estações de esqui ou trem)
Rosca sem-fim 67

Trata-se de uma pequena variação da chamada posição do missionário invertida; os sequiosos de emoções fortes adorarão. A mulher sentada por cima ergue a coxa esquerda e a passa por trás do pescoço, enquanto roda a pélvis, até girar fora de controle, induzindo assim seu parceiro a se sentir útil. A posição é visualmente agradável e permite que a mulher atinja um clímax impressionante sem quebrar a espinha. (Não é recomendável para convalescentes de quaisquer males.)
Por trás (variação misteriosa) 40,5
Executada com o homem de joelhos, coxas abertas, com os ombros descansando no travesseiro e a cabeça contra a parede. A mulher se aproxima por trás e fica se perguntando o que é que ela foi fazer ali.

Posições de acordo com a nacionalidade
Italiana: homem em cima, mulher na cozinha 26
Inglesa: mulher em cima, homem escondido 15
Alemã: um de frente para o outro, em camas separadas 48
Oriental: homem na frente, a mulher três passos atrás 51
Russa: mulher por cima, homem na fila pegando
Permissão 55
Americana: ambos em cima 60


Localizações
(Adicione calorias consumidas para locais diferentes de camas.)

Atividade Calorias consumidas
No subúrbio3,5
Num banco de bar.................................................. 20
No banco traseiro de um fusquinha 38
Numa cabine telefônica em pé 14
Deitado 274
Numa espreguiçadeira (de lona plástica) 88
Sob uma pirâmide ?
Num jato no assento do corredor 24
no assento do meio (com passageiros gordos dos dois
lados) 42
no assento da janela 30
no banheiro 100
Numa rede (num dia de vento frio 50
Adicione 25 calorias se apenas uma das cordas estiver atada à árvore.
Numa camioneta com molas em mau estado 11
Deve ser notado, também, que o prazer sexual aumenta consideravelmente quando o sexo acontece espontaneamente — durante um filme, durante a Quaresma, saindo da estrada principal etc.
Intercurso
Atividade Calorias consumidas
Começando (vencendo a inércia) 0,25
Moderado (velocidade de cruzeiro)....... 15
Pesado (entusiasticamente envolvido) 27
Cavalgando sem dó............................... 50
Convulsões incoerentes........................ 75
Choque.................................................. 100
Desmaiando 125
Hérnia 150
Ataque cardíaco 227
Morte 1


Possíveis efeitos colaterais do intercurso
Atividade Calorias consumidas
Quicar 7
Escorregar 9
Derrapar de verdade 12
Cabriola lateral 20
Chicotinho 27
Joelho machucado 6
Ombro deslocado 5
Nariz deslocado 11







Ruídos relacionados com sexo
Atividade Calorias consumidas
Risadinha 7
Riso 11
Pequenos ofegos (por ofego) 3
Resfolego 5
Guincho 4
Gemido de êxtase 11
Rosnado baixinho 8
Grasnado 10
Grito 16
Berro 18
Súplica 22
Qualquer frase rápida dando ordens ao parceiro 25
("Por favor, não pare", "Só mais um pouco", "Mais depressa", "Mais pra cima e mais pra esquerda" são exemplos comuns)

Se você ficar envergonhado porque seu vizinho pode ouvir, enfie qualquer fruta cítrica na boca da parceira.

Procurando conforto
Atividade Calorias consumidas
Trocando posições 16
Sem parar 41
A menos que os lençóis da sua cama sejam antiderrapantes, o escorregar causado pelas atividades sexuais pode resultar num tremendo movimento lateral, e você poderá acabar ficando numa posição extraordinariamente desconfortável e totalmente impraticável.*2
Se alguma das sugestões a seguir ocorrer, o certo é você mudar de posição:
• Você se encontra em equilíbrio instável na beira de uma cama e um enorme e pavoroso cão aguarda de patas na cintura que você caia.
• Um de vocês cai da cama. (Se continuarem a manter a relação sexual, adicione cem calorias.)
• Você descobre, de repente, que um dos seus ombros está na cama e o outro toca o chão.
• Você escorregou muito e bate com a cabeça na parede toda vez que se mexe para a frente, tornando a concentração difícil; manter a tiara na cabeça nem se fala.
• Uma das suas pernas ficou tão enrolada no lençol que está ficando preta, sinal de que gangrenou.
• Um fortíssimo impulso para a frente leva o casal janela afora, jogando pela dita cuja todas as chances de alcançarem um orgasmo satisfatório.

Avizinhando-se do orgasmo
Atividade Calorias consumidas
Deixando fluir 5,5
Controlando 79
Enfiando as unhas nas costas
do parceiro 11
nas próprias 165
Trocando de chiclete 1
Mastigando mais rápido 2
Mais rápido ainda 3,5
Tremendo 15
Estremecendo 2
Arrepiando 25
Tentando manter os olhos abertos 33
Orgasmo
Atividade Calorias consumidas
Real 27
Falso 160


Escala de intensidade orgásmica
Atividade Calorias consumidas
Sapatos voam 35
Expressão não muda 0,5
Quarto ficou encarnado 4
Rosto ficou encarnado 15
0 som da orquestra aumentou 6
Pássaros cantam
Grandes 7
Pequenos 3
Explosões mágicas 10
Trombetas soam 12
Flautas soam 2
Morteiros explodem 14
Busca-pés em brasa 16
Lençóis em brasa 25
Terra se move 30
Vesúvio entra em erupção 47
Você começa a resmungar em latim 60

Saltando fora
(Des-inserção)
Atividade Calorias consumidas
Após o orgasmo 0,25
Alguns instantes antes do orgasmo 500
Orgasmos múltiplos em mulheres
Atividade Calorias consumidas
Dois..................................................... 14
Cinco................................................... 30
Oito..................................................... 47
Quinze 106

Dependendo da gula — e da capacidade dela se recuperar —, uma mulher é capaz de ter até oito orgasmos em uma hora, sem perder a consciência ou desarrumar os cabelos. À medida que o número aumenta, ela poderá começar a sentir o que se poderia chamar de "redução de sanidade", que interferirá temporariamente na sua capacidade de cozinhar, rezar e andar de bicicleta.

Orgasmos múltiplos em homens
Atividade Calorias consumidas
Dois 21
Três 39
Quatro 57
Doze ?*3

Para um homem, a situação é diferente, talvez por motivos psicológicos e biológicos. Muitos homens são capazes de ter até quatro orgasmos em uma hora sem quase nenhum desconforto, exceto por um ligeiro barulho de sinos nos ouvidos. Com poucas exceções, contudo, um homem que tente obter mais de dez orgasmos no mesmo período de tempo corre o risco de danificar o cérebro, irreversivelmente.


Orgasmos especiais
Atividade Calorias consumidas
Clitoriano 15
Vaginal 21
Peniano 21
Escrotal 15
Retal 25
Oral 30
(também pode ocorrer durante uma boa refeição)
Coisa e tal 1

Ejaculação precoce*4
(Para homens)
Atividade Calorias consumidas
Durante a introdução 2
Durante o coito 5
(aproximadamente dois segundos ou três arremetidas após a introdução, o que ocorrer primeiro)
Durante as preliminares 3
(enquanto frigia os ovos, por exemplo)
Durante o jantar (muito precoce 1
Estacionando o carro (superantecipação 0,25
Ejaculação imatura 4
(similar à precoce, mas o homem age como criança e chora à toa)





Conseqüências da ejaculação precoce em mulheres
Mesmo que você seja paciente, é preciso ser muito compreensiva pára não se sentir vítima quando seu parceiro chega ao clímax após três segundos de sexo intenso, sobretudo quando ele se senta imediatamente para assistir àquela partida de futebol pela tv.

Atividade Calorias consumidas
Frustração 8
Ódio 15
Violenta mudança de humor 20
Suprimindo a raiva 25
Não suprimindo a raiva 65

Em casos extremos, pode incluir praguejar, beliscões no nariz, e uma gentil massagem no couro cabeludo do parceiro com um macaco de automóvel.
Veja que desigualdade: os homens jamais se queixam se a mulher atinge o orgasmo após três segundos de sexo.

Conseqüências da ejaculação precoce em homens
Atividade Calorias consumidas
Praguejar....................................... 10
Pedir desculpas 3
Choramingar 5
Implorar Perdão 8
Implorar outra oportunidade........ 15


Atingindo o orgasmo em circunstâncias inusitadas
Atividade Calorias consumidas
Doando sangue 45
Após beber duas garrafas de vinho 50
(Até a inserção pode ser um problema.)
Falando ao telefone 15
Numa cama molhada 11
Com parentes próximos no quarto 60
Negociando um empréstimo 100
Numa entrevista para um emprego 100
Durante o ato sexual 8


Retardando o orgasmo
Evidências médicas sugerem que a procrastinação prolongada do orgasmo (de quatro a seis semanas) impede o fluxo dos sumos vitais, fazendo o paciente sentir-se entupido e em desarmonia com o mundo. Contudo, retardar o orgasmo por um período de tempo razoável causa pouco malefício e pode ser necessário para satisfazer um parceiro lento. Um homem cuja parceira tenha estado repetindo "ainda não" por um período de mais de duas horas considerará necessário retardar. Mas, num determinado momento, ele ficará desesperado e se perguntará se não vai morrer. Ocasionalmente, as mulheres consideram conveniente adiar o orgasmo se acham que vão se odiar no dia seguinte, ou no mais tardar logo após o almoço. Damos a seguir algumas dicas de como retardar o orgasmo sem sair do quarto:
• Pense nos seus dentes.
• Repense na crise do Oriente Médio.
• Pegue um lápis e refaça as contas do seu último supermercado, seja no lençol, seja na testa do parceiro.

V. O depois
O que acontece logo após o sexo pode ser tão importante quanto o que aconteceu durante. Algumas pessoas acendem um cigarro imediatamente. Outras jogam o seu fora imediatamente. Contudo, de modo geral, a maioria das pessoas se concentra em fazer com que o seu par sinta que foi tudo ótimo e maravilhosamente satisfatório. Isso é feito com extrema facilidade, bastando ficar deitado na cama, com ar satisfeito (um olhar de enfado cai bem), em vez de correr para o banheiro e se esfregar com um saponáceo.


Bonificação em perda de peso nº 4
Atividade Calorias consumidas
Evitando o pingo na cama 20


Coisas geralmente ditas após o sexo
Atividade Calorias consumidas
Todas as expressões pós-coito 15
Exemplos:
"Continuem a sedação!"
"Sua peruca está ao contrário."
"Foi bom para você?"
"Estou tão agradecido!"
"Deve ter sido algo que comemos."
"Nunca mais faça isso."
"Como estamos indo?" (também usado durante a relação)
"Estou com uma dor de cabeça daquelas."
"Saia daqui."
"Parabéns."
"Você já acabou?"
"Se eu já acabei?"
"É um milagre!"
"Você fez tudo errado."
"Estou exausto."
"Me ajude, por favor."
"Quando vamos comer?"

Possíveis efeitos colaterais do sexo satisfatório
O primeiro sinal de que o sexo foi uma experiência positiva será um tremor na área pélvica e uma cútis macia e limpa. Você também pode se sentir agradavelmente leve, como se estivesse dormindo dentro de uma banheira de requeijão. Se o sexo foi realmente tão bom assim, você se sentirá perigosamente drenado, como se seu corpo tivesse sido ligado a uma enorme máquina de ordenha por vários dias. Outras reações incluem:

Atividade Calorias consumidas
Síncope 6
Palpitações 10
Respiração entrecortada............ 5
Perspiração................................ 8
Amnésia 22
Bronquite 25
gengiva dolorida............ 12

Possíveis efeitos colaterais do sexo insatisfatório
Atividade Calorias consumidas
Uma enorme sensação de infelicidade 1
Recuperação
Atividade Calorias consumidas
Desenroscamento 3
Retomando o controle motor da pélvis 7
Após uma sessão sexual especialmente cansativa, você pode sentir dormência desde a parte inferior da cintura até o outro lado do quarto. O resultado será uma dificuldade de andar (ponha um pé diante do outro), o que prejudicará seriamente as suas chances de ir ao banheiro ou obter comida.
Ficar de pé 9
Pegar algo para beber 11
Expressar seus agradecimentos 2


Virando de bruços e dormindo
Atividade Calorias consumidas
Após o sexo 18
Comportamento clássico do homem indolente, que acredita que cumpriu sua missão e já pode descansar. O que pode incluir roncar.
Durante o sexo 32
As mulheres consideram isso um meio sutil porém direto de sugerir insatisfação.
Durante as preliminares 12
Indica ou um caso avançado de fadiga ou uma séria falta de interesse.
Estando ainda na cozinha 5
Situação irremediável.
Rolando e caindo da cama 2




O sono
Atividade Calorias consumidas
Real 5
Falso 74

Uma boa maneira de se evitar um parceiro louco por sexo que não quer largar o osso. Fingir que dorme também é uma técnica de escape confiável quando, após o sexo, subitamente você se vê desejando que seu par desapareça. Isso pode acontecer quando se vai para a cama com alguém apenas pelo sexo, o que é um pecado.

Tentando novamente
Atividade Calorias consumidas
Se a mulher está no ponto 5
Se o homem não está no ponto 156

O asseio
Atividade Calorias consumidas
Levando o par depressa para o banheiro
Descalço 6
com chinelos folgados 18
com nadadeiras enlameadas 50

Chuveirada
Atividade Calorias consumidas
Sozinho 7
(Para queimar calorias adicionais, mantenha o sabonete firme e mexa o corpo.)
Com o seu par 12
Com um massageador de gengivas 133
Sem água quente 187
(inclui tremer e fazer caretas)
Tomando banho junto
no chuveiro 5
na pia 28
Limpando um ao outro com um pano úmido............ 10
Escovando os dentes um do outro............................. 25

Secando-se
Atividade Calorias consumidas
Usando
uma luxuriante toalha de banho 6
toalha de mão grande 9
paninho de mão pequeno 15
dois pedaços de papel higiênico 21
Em frente a um ventilador 1
Girando e pulando 37

Fazendo a cama
Atividade Calorias consumidas
Com o par ainda deitado 44
(Indica ser uma obsessão por limpeza, um grande defeito visual ou um parceiro cansado demais.)
Com você ainda deitado 97
(Sugere uma extrema retração sua, e uma profunda insatisfação.)
Consertando a mobília 22
Lavando os lençóis 25
Apenas sacudindo-os 15
Removendo a cera das velas 10


VI. Atividades suplementares
O sexo nos obriga a tantas atividades que, às vezes, deixamos de perceber que a perda de peso se faz constantemente, e algumas vezes quando menos esperamos. Você sabia, por exemplo, que fantasiar pode queimar vinte calorias adicionais, e até mais se você se desesperar? Ou que uma sessão de submissão e chicoteamento bem depravada pode realmente reduzir a sua cintura? Neste capítulo veremos como as chamadas áreas periféricas do sexo podem exercer um papel importante não apenas no consumo calórico, mas fazendo do sexo algo muito especial.

Fantasias masculinas
A fantasia pode ser utilizada para tudo, desde realçar uma experiência sexual das mais animadas até fazer esquecer um par dos mais insípidos e se concentrar em algo mais prazeroso. Sobreviver a oito minutos de sexo com um caminhoneiro chamado Edu, que a convidou a ir para a cama com ele através do rádio faixa do cidadão, por exemplo, pode ser realizável fantasiando que você está na cama com um artista de cinema que sempre faz papel de tarado. Enumeramos a seguir algumas Fantasias sexuais comuns e a quantidade de calorias consumidas ao se pensar nelas.

Atividade Calorias consumidas
Escravo sexual de cinco insones estrelinhas de cinema 18
Sexo com uma beata chamada Jezebel 14
Intercurso casual com uma corneta aquecida 9
Preliminares com um sapo escorregadio 11
"Luta livre amorosa" com um veado-campeiro 22
Transar com uma galinha vestida de minicapa de chuva
de borracha 15
Fazer amor com uma bisnaga 5
Sexo num saco de dormir (constrictus claustrophobus) 12

Fantasias femininas
Atividade Calorias consumidas
Sexo louco com um açougueiro espirituoso 20
Preliminares com um contador alucinante 17
Transar na pista do aeroporto 40
Ser violada por um senador 9
Uma tarde na cama com um golfinho atencioso 15
Sexo com um vaqueiro que não tira as esporas 23
Ser puxada para um prédio em chamas por um cão
erradamente chamado Sultão 12
Sexo com um apóstata viril 25

Sonhando
Atividade Calorias consumidas
Sonho normal 2
Sonho erótico com ejaculação involuntária 16
(Adicione cinco calorias se ocorrer quando a sua parceira ainda está na cama; mais vinte calorias se a parceira perceber.)
Brancas nuvens 1
Transe erótico 20
(Ocorre geralmente na presença de um hipnotizador sensual.)

Sexo grupal
Atividade Calorias consumidas
Apresentações 3
Vencendo a vergonha 8
Trocando os parceiros
Querendo 4
não querendo 62
Ciúmes (o parceiro tem mais prazer do que você) 16
Duplas trocadas 26
Ser simpático com todo mundo 100
Crise de identidade 18
Ódio 10
(De repente, você descobre que lhe desejam pelo seu corpo, não por sua mente. É uma parada dura, principalmente se você for Ph.D.)
Encontrar as roupas 5

Masturbação
Atividade Calorias consumidas
Só por prazer 6
Pelo exercício, também 10
Para aliviar a tensão 12
Para passar o tempo 7
Para evitar comer demais 16
Para ter um contato com o seu eu íntimo 10
Para ter um contato com o seu eu exterior 10,25
Para evitar a insanidade 24
Para evitar gastar dinheiro com alguém 9
Além de ser uma alternativa viável para a televisão, compras e porres, a masturbação é um meio rápido e barato de aquecimento.
Usando:
A mão (ou mãos): normalmente 11
pelas costas 500
só o/os dedo/s 9
Pinças 2
Uma boneca inflável chamada Amélia 24
Um microfone de mão 14
Um macacão de jeans bem apertado 17
Qualquer fruta ou legume (exceto melancia e salsa) 19
Um sanduíche (sem maionese e com pouca alface 15
Uma massagem de ducha 5
Um vibrador:
Manual 12
a corda 9
elétrico 5
a diesel (ainda sendo testado) 74
Algo não mencionado acima 50
Num cinema pornográfico:
comprando o ingresso 2,5
procurando lugar isolado com a vista ainda não
ajustada à escuridão 78
tropeçando e caindo 50
ajeitando a capa de chuva 3

Fetichismo
Não há nada de anormal em se complementar a atividade sexual com objetos "geralmente encontrados em lugares menos eróticos. Algumas pessoas, por exemplo, só atingem a gratificação total usando sapatos de plástico. Outras preferem iniciar as atividades sexuais com marinheiros que passam cera nas pernas. Devoção erótica a coisas como cobre, grana e meias apenas sugere que você é um livre-pensador, e não um maria-vai-com-as-outras. Para perder mais peso ainda, tente algum dos populares fetiches a seguir:

Atividade Calorias consumidas
Sexo com o par usando armadura 472
Sexo na plataforma de um relógio-cuco 9
Sexo num carrossel de quinze centímetros 146
Usando sardinhas como fetiche 23
Insistindo para que o parceiro
use um boné que imita as orelhas do Mickey 17
Sexo usando uma fantasia de sapo 58
Sexo com o par usando botas altas de couro 97


Servidão
Além de realçar a experiência sexual, o ato de se amarrar alguém e induzi-lo à servidão também impedirá que o glutão coma toda a comida disponível. Um equipamento de servidão confiável pode ser constituído de uma meia de seda, um pedaço de corrente não-elétrica, ou até um ultra-sofisticado sistema de restrição de movimentos constituído por um rolo de fita adesiva e suspensórios.

Atividade Calorias consumidas
Prendendo o parceiro com uma corda (eis os nós mais
empregados):
nó de catau 7
nó corrediço 8
nó meia-volta 9
nó volta de fiador 11
nó cego 12
Prendendo o parceiro com uma gravata-borboleta:
laço Windsor 9
laço simples 4,5
Para os covardes, sugerimos:
Algemas 3
Grilhões 6
correntes com pesos 5
cola 10
Escapada
lutar para escapar enquanto o parceiro faz cócegas
nos pés 41
desfazendo os nós usando as unhas 7
sem usar as unhas 22


Disciplina
Uma atividade excelente para consumir calorias, sobretudo se o parceiro faz objeções.

Atividade Calorias consumidas
Açoitar o parceiro com:
palito de picolé 2
cadarço de sapato 2
(adicione dez calorias se ainda estiver no sapato)
espeto de churrasquinho 4
abaixador de língua 4
asa de galinha 6
(mais doze calorias se ainda estiver na galinha)
Remo 15
eixo motor de um carro de luxo 20

Flagelação
(Sem Átila, o flagelo dos deuses)

Atividade Calorias consumidas
Usando açoite de alta qualidade (por batida 3
Empunhadura de couro italiano, envolvendo ébano, punho bem equilibrado e com rádio AM/FM incorporado. Modelos Gucci muito em evidência. Procure pela marca registrada no açoite. Evite imitações.
Usando unhas postiças 27
Flagelando um flagelado 10





Bonificação em perda de peso nº 5
Atividade Calorias consumidas
Espancamento (por lambada) 5

A mais simples e satisfatória forma de espancamento consiste em deitar seu par nos seus joelhos e bater-lhe nas nádegas com a mão aberta. (Para evitar qualquer tragédia, certifique-»e de que ele ou ela está de bruços.) Se cansar a mão, use a do »eu par. Para um aumento significativo da quantidade de calorias consumidas, altere ligeiramente o procedimento descrito, mantendo seu par contra os seus joelhos, estando você de pé.
Para aqueles que se sentirem cansados demais para flagelarem, espancarem, baterem ou qualquer tarefa manual similar, mas que ainda curtam algum método disciplinador, sugerimos que relaxe na cama e dê ordem ao par para ficar dando voltas no quarto. Isto exige pouco esforço e evita desgaste e esfoladuras na pele e nos ossos.
Dar uma das seguintes ordens ao seu par 3
"Atenção!"
"Traga-me um biscoito, escravo!"
"Morda o tapete!"
"Encere meus pés!"
"Pule pelo quarto, de pernas para o ar!"

Se quiser substituir qualquer uma das ordens acima, repreenda seu par pela infração que quiser imaginar.

Nota: Se o seu par também estiver cansado, ele ou ela pode fingir que obedece suas ordens respondendo: "Perfeitamente!", sem na realidade mexer um só músculo.



Sexo com animais
Atividade Calorias consumidas
Uma ovelha agradecida 22
Um javali irado...................................................... 150
Um burro pouco amado......................................... 100
Uma águia em vôo................................................. 583
Um rato-do-mato viril 0,25
Uma galinha tímida.............................................. 2
Qualquer peixe menor que 30 centímetros 3
Um veado gracioso 79

Aqueles que não sabem receber críticas geralmente se voltam para o reino animal nos momentos em que estão necessitados, já que a probabilidade de virem a ser censurados ou de precisarem bater papos desagradáveis é virtualmente zero.*5 O único problema é a ausência de uma comunicação significativa e, no caso de animais de grande porte, como leões, o risco de serem comidos (latu sensu). Ademais, um conhecido terapeuta sexual, no seu livro Noite no Zôo, afirma que forçar um animal a ter relações sexuais contra a sua vontade pode trazer sérias repercussões psicológicas para ele.









Práticas sexuais bizarras
Atividade Calorias consumidas
Fazer seu par pular na sua cara 70
Segurar a dentadura na mão e dar mordidas amorosas
no seu par 18
Preliminares mergulhando no mar 100
Sexo numa cama vibratória 46
Camas vibratórias geralmente são encontradas em motéis freqüentados por pessoas com problemas de coluna. Procure motéis com o cartaz: "Bem-vindo, sofredor da coluna." Essas camas são ativadas por uma moeda, ou, se você está duro, por uma ligação direta nos fios. Evite camas vibratórias se comeu uma lauta feijoada.

Sexo alegre
Atividade Calorias consumidas
Preliminares alegres 4
Impotência lépida 1
Ereção elegante.................... 3
Coito hilariante 6
Posições imprudentes 6
Gritos de prazer 3
Gemidos vivifícantes............ 2
Orgasmo avoado 7
Ejaculação jocosa 5
Jubilação pós-orgásmica 6
Fadiga genial........................ 2
Convulsionar o parceiro com uma piada 3
Rolar pelo chão rindo 4
Rolar pelo parceiro rindo..... 6
Sadismo de boa índole 8
Servidão flutuante 7
Dançar na cama 10
Experiências eróticas adicionais
(Para perder peso, com uma "rapidinha")

Atividade Calorias consumidas
Observar o par se barbear 4
Beber água da banheira 10
Comer um quilo de rapadura, com garfo e faca 40
Estudar livro de culinária de faquir 1
Fumar um arenque defumado 13
Girar nu na vitrine de uma padaria 72
Piscar um para o outro 90
Fechar um bom negócio 50
Acariciar seu equipamento de som 30
Lamber seu automóvel inteiro 100
Cozinhar um banquete de quinze pratos, sem nenhum
Utensílio 80
Fazer sexo sobre lençóis de vinil 18
Dar uma festa para vendedores de utensílios plásticos
para o lar 82
Gravar seus gritos de prazer e tocá-los para o seu
Dentista 51


Mantendo um diário
Além deste livro, manter seu diário de atividades sexuais será a outra boa maneira de saber a quantas anda o seu esquema de perda de peso. Não precisa entrar em muitos detalhes: apenas anote a atividade e o número de calorias consumidas. As anotações típicas no diário de uma mulher que tivesse uma experiência sexual pequena e pouco intensa seriam:


1º de junho: Sexo com o Haroldo
Atividade Calorias consumidas
Explicando como é 12
Sugerindo algo diferente 3
Acalmando o Haroldo, horrorizado 40
Encorajando-o a, pelo menos, tirar as meias 8
Preliminares (um pouco disso, um pouco daquilo 56
Intercurso
de pé 22
segurando o Haroldo em pé 10
insistindo com ele 5
Orgasmo incerto
Agradecendo ao Haroldo 3
Dando adeus 1
Tempo total: seis minutos (táxi esperando)
Total de calorias consumidas 160


VII. Problemas diversos, emergências e desastres
"A maioria dos acidentes sérios ocorre a cerca de cem quilômetros de casa." *6
Connie Vente, corretora de seguros.
As páginas a seguir contêm a lista de calorias consumidas quando se lida com situações estressantes, geralmente vividas durante o sexo, e que incluem choque, ansiedade, medo, irritação e desconforto. É fácil sobreviver a tudo isso se você tiver senso de humor, ou conseguir se vestir com rapidez.

Inveja do pênis
Atividade Calorias consumidas
Numa mulher.............................. 3
Num homem 72


Medos tipicamente relacionados ao sexo
(Racionais e irracionais)

Atividade Calorias consumidas
Meu par me odeia pelo que fiz 4
Meu par me odeia pelo que não fiz 8
A qualquer momento, meus avós vão entrar aqui e
ficarão assistindo tudo, quietinhos 5
Esquecer as instruções do manual de sexo 10
Gozar cedo demais 5
Gozar tarde demais 6
Não gozar 20
Meu par me vê como um objeto sexual 47
Meu par nem lembrará de me administrar os ritos finais
se eu não me recuperar do orgasmo 88


Medos pessoais
Alguns defeitos, reais e imaginários, que seu par pode perceber:

Atividade Calorias consumidas
Hálito de gambá 4
Celulite demais, pulando e chacoalhando durante o orgasmo 6
Estrias que lembram um terreno arado 8
Poros largos 5
Sem poros 10
Dente mole que balança 11
Excesso de pêlos sob os braços 3
Pneu na cintura que, quando você senta, parece um
reserva de Fórmula 1 20
Cheiro corporal que lembra o de um mamute indisposto 25

Nota: Observou-se que as pessoas que só tiveram aulas de higiene em idade avançada (entre os quatorze e os vinte anos) têm um medo incrível de tudo.

Culpa
(Freqüentemente empregada por masoquistas para compensar a felicidade.)

Atividade Calorias consumidas
De
Masturbação 10
gostar de sexo 7
adorar sexo 20
não querer parar nem para tirar a temperatura 30
Situações de culpa provável
Apesar de quase nenhum treino formal, o orgasmo
aconteceu fácil, natural e espontaneamente 53
Você está adorando o sexo, apesar de haver pessoas
morrendo de fome 2
Sexo na hora do almoço 3
E você coloca a despesa no seu relatório de despesa da
Firma 20

Provocação
Embora a ciência ainda não tenha determinado com precisão por que a provocação consome calorias, sabemos que as pessoas, quando provocadas, perdem peso — talvez porque batam o pé. A seguir estão algumas situações típicas encontradas durante o sexo.
Atividade Calorias consumidas
Seu par continua lhe mostrando os vasos de plantas 5
Seu par insiste em afagar o cachorro durante as preliminares 14
Seu par já foi ao banheiro sete vezes 10
Seu par recebe telefonemas 7
Seu par faz ligações telefônicas 40
Seu par se recusa a tirar as jóias, incluindo o relógio, o
alfinete de gravata, o bracelete, a carteira de identidade,
o medalhão e a coleira antipulgas 20

Mais provocação
Atividade Calorias consumidas
Rejeição 24

É sinal de rejeição se o parceiro:
• insistir para você deixar os pés fora da janela
• trouxer uma garrafa de champanha com chapinha, e não rolha
• tentar terapia de choque com uma torradeira
• tentar lhe roubar
• tentar fazer a cama durante as preliminares
• servir refrigerante quente
• pedir que você lave a louça suja
• afiar uma faca no seu beiço
• não tirar as luvas
• tentar dobrar seus dedos ao contrário
• insistir em continuar mandando telegramas
• colocar uma armadilha para lobos no seu travesseiro






Adquirindo escaras
Atividade Calorias consumidas
Na cama 20
Num tapete barato 5
Em qualquer superfície geralmente usada para
finalidades industriais 0,5

0 perigo de se adquirir escaras por atividade sexual prolongada não é remoto, sobretudo porque as escaras são altamente contagiosas. Tem-se conhecimento de casais que levantaram da cama cobertos por largas e feias feridas que se estendiam da base do pescoço até o tendão-de-aquiles. Para evitar isso, pede-se a todos os praticantes que levantem da cama pelo menos uma vez a cada hora, coloquem o lençol na geladeira e executem pelo menos dez minutos de exercícios tais como flexões, abdominais, polichinelos e saltos mortais.
Nota: As escaras também podem ser evitadas com a generosa aplicação de cera de tartaruga, azeite de oliva ou cuspe. Em caso de escaras muito severas, uma fatia de pizza pode ser empregada como um eficiente cataplasma.

Pego/a com a boca na botija
Atividade Calorias consumida
Pela esposa do parceiro 60
Pela sua esposa 60,5
Tentando explicar 165
Gaguejando 28
Vomitando tudo 40
O consumo de calorias nestes casos é flexível, dependendo do tipo de esposa ou marido — se compreensiva/o e liberal ou intolerante e armada/o.


Quase pego/a com a boca na botija
Atividade Calorias consumidas
Tentando permanecer calmo/a 100
Com medo (incluindo tremer)... 66
Pulando fora da cama................................................ 25
Se vestindo no maior pique 300
Agradecendo ao par rapidamente............ 2
Pulando pela janela........................................................ 15
(Mais cinco calorias se estava fechada.)
Aterrissando 1
Correndo pra chuchu.................................. 50

Situações ameaçadoras
Atividade Calorias consumidas
Seu par chega usando um macacão de couro e toma óleo
motor da lata com um canudinho 34
Seu par trouxe um parente.......................................... 40
O fetiche de servidão do seu par está ficando
insuportável.................................................................... 50
Após três horas de procura sub-reptícia, não foi possível
achar a marca da vasectomia que seu par disse que
tinha 100

Interrupções e perturbações
Atividade Calorias consumidas
Alguém resolve brincar de esconde-esconde 15
Vizinhos barulhentos 7
Disco pula com defeito 5
Luar em demasia................................ 0,25
Criança que chora 10
Par usa um chapéu gaiato 6
Telefone 4
Grupo de bodes 11
Guerra 70
Cama pega fogo 15
Fome........................................................................ 9
Vendedor toca a campainha 14
Batem na porta 10
(Testemunha de Jeová vendendo A Sentinela.)
Recomeçando onde parou 30

Aflições
Atividade Calorias consumida
Cãibra na perna 3

É uma aflição comum que ataca sem avisar. Geralmente atinge quem tenta uma posição que conflita com a lei da gravidade ou quem não se aqueceu o suficiente (ver Capítulo 1). O resultado é um desejo premente de esticar a perna imediatamente, mesmo que isso signifique chutar seu par, cair no chão e transformar o orgasmo em uma experiência aterrorizante.
Espirrar
durante o intercurso 7
durante sexo oral
para quem espirra 1
para quem foi espirrado 280

Nota: Quem sofre de febre do feno faria bem se evitasse em terrenos onde houvesse plantações de ambrósia americana ou em livrarias empoeiradas.





Apelo da natureza
Atividade Calorias consumidas
Indo lá e matando o desejo 8
Cerrando os dentes e segurando até não agüentar mais
a dor 100

Não há nada mais miserável que sair de uma cama quentinha, onde está um corpo quentinho, apenas para cumprir uma necessidade. Por outro lado, ficar na cama esperando que a vontade passe nunca dá certo, por mais sério que você reze.

Nota: Se seu par consentir, mantenha um urinol de porcelana sob a cama para essas emergências.

Espantando animais de estimação
Atividade Calorias consumidas
Pequenos cãezinhos pesando menos de 100 gramas 3
São-bernardo brincalhão............................. 20
Doberman ciumento 92
Qualquer vira-latas raivoso 50
Gato 6
Periquito ressentido 2,5

Embora geralmente um gesto com a mão seja suficiente, há casos em que se advoga o uso de pistolas, porretes e/ou uma ordem em voz alta.

Acidentes diversos
Atividade Calorias consumidas
A peruca cai
se seu par sabia que você estava usando uma 6
se seu par não sabia 72
Murmúrios apaixonados fazem a dentadura cair 28
Apagar o cigarro
no cinzeiro 1
no colchão 17
na perna do parceiro 133
Chamar o par pelo nome errado 50
A cama quebra 10
A cueca fura durante as preliminares 90


VIII. Comida e sexo (O/a boquinha bom/boa de cama)
"Sexo para nutrir a alma, comida para nutrir o sexo."
Kassler Mitkumell, nutricionista

Há muito se sabe que as necessidades nutricionais do sexo são, para dizer pouco, enormes. Não apenas a atividade sexual intensa despoja o organismo de altura e peso mas também causa uma rápida privação de proteínas, carboidratos, riboflavina, oxigênio, cereais e minerais vitais como o cobre, o zinco e o alumínio. Se estes elementos essenciais não forem repostos rapidamente, o rigor mortis se instala e começamos a nos sentir irritados. Assim, precisamos reconhecer a importância de nos alimentarmos durante qualquer período de atividade sexual que exceda quinze minutos, sob pena de sofrermos danos irreversíveis aos nossos órgãos, glândulas e medula óssea.
Não devemos, contudo, desfazer o belo trabalho que realizamos até agora enchendo-nos de comidas ricas em calorias e gorduras, como doce de gergelim com chocolate, creme de espinafre, pastéis de nata, jujubas e sopa de feijão. Nem devemos nos deixar cair no extremo oposto; uma dieta rigorosa é um convite à miséria. Os puristas, que consideram uma xícara de chá e brotos de feijão poliinsaturados nutritivamente saudáveis, em geral sofrem de um mal chamado morte prematura. Não há mal algum em relaxar nossa vigília dietética, desde que o façamos inteligentemente, buscando um ponto intermediário entre a inanição total e o mais puro exagero alimentar.
As melhores comidas para se ter à beira da cama são aquelas que realçam a transação sexual — afrodisíacos altamente energizados, contendo a dose mínima suficiente para satisfazer um adulto e fornecendo uma alta taxa de prazer por caloria: bolo de chocolate, sorvete de vários sabores, caviar, feijoada, pizzas, costeletas e autênticos pratos étnicos das cozinhas chinesa, italiana, francesa, portuguesa e espanhola. Isso em oposição a pratos que fornecem uma ínfima taxa de satisfação por caloria: quiabo, bolachas, salsa, agrião, carnes muito magras etc. Não devemos esquecer de mencionar os falsos afrodisíacos tais como cantárida, ostras, comida infantil, germe de trigo, empadão de galinha, ameixas e mingau de aveia, que são inúteis. E, por fim, aconselhamos a evitar o que caprichosamente chamam de comida "saudável", que só contribui para aumentar a fome, a peste e a depressão.
As refeições que enumeramos a seguir foram escolhidas por um conjunto de especialistas, como as mais comumente compartilhadas antes, durante e depois — e bem depois — do sexo. Essas comidas e bebidas são tidas em alta estima não apenas por seu valor nutricional mas também por seu sabor e efeito saudável sobre a psique. Se por acaso você tem uma pequena geladeira ao lado da sua cama, melhor ainda. Isso facilitará a sua nutrição convenientemente. Como sempre, sugerimos considerar uma prudente tolerância de tempo, e jamais fazer sexo logo após uma refeição pesada.*7
Aos sadomasoquistas, recomendamos chá com porradas.






Calorias nas comidas
(A contagem de calorias nas listagens a seguir variará de acordo com os ingredientes, tamanho das porções e dimensões da sua boca.)

Comida Calorias
Sorvete
por colher 14
por concha 84

"Plasma da alma." É assim que um especialista da comida expressa a sua reverência ao sorvete, enquanto vai demolindo lentamente a segunda lata de dez litros de passas ao rum. Desde a Renascença, o sorvete tem sido venerado por seus poderes curativos e a capacidade de recuperar, milagrosamente, pessoas que sofriam de dor nas costas, amigdalites, impotência, paixão exagerada por doces e outros males maiores. Para que se possa saborear por completo a sua essência, o sorvete deve ser comido ou tomado diretamente de seu continente, em vez de servido em pratos, onde corre o risco de contaminação. Isso é especialmente importante para sabores como amêndoas amanteigadas e pistache, nos quais o excesso de manuseio pode quebrar as nozes. Muitos adoradores de sorvetes, para evitar o derretimento e o "vazamento do sabor" entre a sorveteria e o lar, transportam suas compras em chapéus refrigerados.

Picolé de creme (por lambida 3
Uma delícia altamente transportável, facilmente comível, apropriada se você deseja tomar um sorvete durante o intercurso. Cuidado para que não derreta e escorra no olho do seu par. Após terminar de comer, você poderá usar o palito para distribuir disciplina (ver Capítulo VI).

Creme fresco (por lambida 3,25
Se você estiver numa crise, ele poderá tirá-lo dela, embora sujando a mão. Se você tiver tempo e precisar de exercício, sirva-se direto na embalagem, sem perder tempo com pratinhos etc.
Pizza (por mordida 15

Modela dentes e ossos fortes. Se você pedir sua pizza com mais queijo, anchovas, lingüiça, cogumelos e pimentão (conhecida como Pizza Bello Baffo), adicione mais algumas calorias. Embora uma pizza bem tostada seja deselegante de se comer na cama, especialmente se estiver quente e você enfiar a fatia inteira na boca, é uma excelente fonte de potássio e vitamina D. Sempre peça pizza com antecedência e tenha dinheiro trocado à mão. Procurar trocado enquanto o entregador espera na porta e seu par espera na cama pode fazer você se sentir ridículo.*8

Espaguete de ontem (por macarrão 3
Também é difícil de comer na cama, mas os benefícios nutritivos valem o esforço. Como um bom vinho, um espaguete bem envelhecido (dezesseis a dezoito horas) é um adicional glorioso à cozinha de beira de cama. É um delicado e no entanto substancial repasto que ajuda o corpo a manter sua força e vigor, não importa como. Se for servido com almôndegas, melhor ainda. Você pode brincar de jogar bola com seu par, caso o sexo esteja se tornando enfadonho.

Bolo de carne gelado (por punhado) 14
Um prato prático para grudar no lençol e que fornece a energia necessária para várias horas de sexo a distância. O bolo normalmente é servido com fritas, mas neste caso preferimos algo mais leve, como trigo-sarraceno. Para quem se preocupa mesmo com perda de peso, atenção: o bolo de carne gelado tem um por cento menos calorias que o bolo quente.

Rapadura com amendoim (por mordida) 28
Como o sorvete, os poderes restauradores da rapadura fazem dela um item indispensável na cozinha de beira de cama. Uma mordida numa rapadura com amendoim tirou um casal do transe em que se encontrava após dois dias de sexo ininterrupto, durante os quais só pararam para trocar de cama.

Morangos (por morango, sem cabo). 2,5
Uma das frutas mais refrescantes, especialmente se servida gelada. Mantenha um morango de reserva no seu umbigo para qualquer emergência ou decoração. Seu par adorará. Nota: Os morangos, ricos em vitamina C, ajudam a evitar o escorbuto.

Caviar:
por grama 91
por ovo 0,000047
Eroticamente exótico e exoticamente erótico. Não gaste caviar com um par de segunda categoria. Espere até depois de terem ido para a cama. Se o par não foi lá grandes coisas, sirva biscoitos Mixaria. Caviar deve ser acompanhado de champanha ou de seu substituto adequado, o xarope do Dr. Hesphu Manty.

Chocolate em barra (por mordida) 120
Devido à sua sublime mascabilidade, o chocolate é considerado o exemplo supremo de satisfação dental e o perfeito substituto da carne, se você se cansar de morder o seu par. É uma das poucas barras que ninguém se importa de ser pesada.

Patê (por camada) 22
Uma das pastas mais sensuais e revigorantes que existem é o patê campestre, feito de vitela, porco, conhaque e alho. Pode ser comido direto da faca ou, se você não liga para algumas calorias a mais, espalhado sobre pão. Para fazer reviver aqueles que estão nos estágios finais da inanição, um renomado professor de etiqueta sugere que se escave uma trincheira numa bisnaga de pão francês medindo sessenta centímetros, cubra de patê e, como ele tão eloqüentemente diz, "encha a cara até desmaiar".

Pão (por bisnaga de meio quilo) 1.115,3
Se você é cheio de frescuras, talvez prefira cortar o pão conforme os comedores de petiscos dizem, em "fatias", e contar as calorias de acordo. No entanto, os comedores de verdade sabem o valor que tem uma boa dose de pão e preferem cortá-lo ao meio, tirar o miolo e encher com mortadela, beringela ou pasta de atum.

Queijo (por naco) 30
Para obter energia rapidamente e executar exercícios beliscativos, um prato de queijos variados, servidos à temperatura ambiente, deve ser parte fundamental do repasto na cama. Ricota, minas, prato, estepe, cobocó, gorgonzola e requeijão são indispensáveis.

Bomba de creme (por bomba) 21
Não importa quão cansado ou faminto você esteja, não esqueça de retirar o papel laminado sobre o qual a bomba foi colocada, ou você terá uma sensação desagradável, sobretudo se estiver fazendo tratamento de canal. Além do sabor agradável, as bombas de creme são ótimas para aumentar o nível de açúcar no sangue. Diabéticos devem se manter afastados.

Bolo de chocolate (por garfada) 26
Uma das poucas curas confiáveis das disfunções sexuais. Na verdade, o efeito terapêutico do bolo de chocolate é tal que se sabe que muita gente come enormes fatias desse bolo mesmo quando não faz sexo.

Cozido madrilenho (por colherada) 10
Vital para a sua energia e sonhos inusitados. Um prato fundo de cozido deve ser mantido ao lado de sua cama, para você comer sempre que ficar sonolento. Não se preocupe com a reação. O excesso de dióxido de carbono será benéfico para as plantas.

Sonho de padaria (por unidade) 24
Muita gente considera os sonhos de padaria, sejam cheios de creme ou de doce de leite, um orgasmo em si mesmos e freqüentemente os empregam como substituto do parceiro, seja qual for o sexo. Embora haja controvérsias quanto à padaria que os faz melhor, sugerimos que comam de todas.

Presunto defumado (por fatia diáfana) 11
É a contrapartida erótica da língua de boi à moda. Geralmente é servido envolvendo pedaços de melão ou o seu dedo, o que estiver mais à mão.

Salada de frutos do mar (por colher de pau) 18
É o carburante perfeito para o sexo nas estações quentes. É leve, nutritivo, e, se você comer com as conchas, alimenta por demais.

Purê de batatas (por porção) 25
Um dos pratos menos sensuais da mesa posta ao pé da cama, mas essencial para encher a pança e dar força. É o prato predileto de todos aqueles que ainda não ultrapassaram as fixações da infância. As batatas têm a capacidade de manter a temperatura por longos períodos. Se você comer um prato fundo de purê de batatas, suportará lavar louça no inverno horas a fio.

Biscoitinhos de araruta (por saco). 8
É por si só um verdadeiro programa dietético, ótimos mesmo quando não há água por perto para se beber. Trinta e cinco desses biscoitinhos escondidos sob o travesseiro e "sacados" na hora H servirão para manter o equilíbrio perfeito entre as células vermelhas e as brancas do seu sangue. Os biscoitos de araruta ideais são aqueles feitos pela mamãe. Mas, na falta de uma, a tia serve. Em último caso, compre esses biscoitos prontos.


Para beber Calorias

Vinho (por gole).. 10
A regra aqui é a simplicidade. Branco com um par magro, tinto com um socialista e rose com um quei-madinho de sol. Quanto ao serviço do vinho com comida, faça as suas próprias regras, dependendo do seu gosto e da ignorância do outro. Você perceberá que quase todos os vinhos feitos de uva vão bem com qualquer tipo de comida. Um Chablis geladinho, por exemplo, irá bem com almôndegas ou sardinha frita. Entretanto, não podemos permitir que você sirva vinho moscatel com ostras à Ia Rockefeller ou jurubeba com costeletas de porco e creme de hortelã.

Cerveja
(por copo) 8
(por garrafa) 14
Cerveja bem geladinha é um antídoto tiro-e-queda após longas horas de sexo estafante, com calor e muita sudorese. Meio ideal de se restaurar os líquidos corporais vitais, a cerveja é rica em vitaminas, minerais e dióxido de carbono. Para um efeito nutritivo superior, beba cerveja preta, e após vários copos você será capaz de levantar e sair correndo até o vaso. A cerveja é o acompanhamento perfeito para delícias culinárias como costelas de carneiro, cachorro-quente, goulash e qualquer tipo de salsicha.

Champanha (por borbulha) 8
Dependendo do seu gosto, da sua carteira e do modo como encara o seu par, você pode escolher desde um econômico Viúva Quicou até um especialmente caro Taittinger. A champanha, como acompanhamento da comida de pé de cama, não deve se restringir a pratos finos como caviar e farofa de banana. Uma Piper Heidseck servida com jabá com jerimum acaba com a frigidez e uma Mumm servida com papa de cará é um calmante popular que acaba com a bronca que se tem de preliminares ineficientes.


Água mineral Caximbau 0
Conhecida em certos círculos como o substituto perfeito da água, esse líquido, altamente cultivado, suavemente gasoso, pode ser tomado puro, com uma gota de limão ou enriquecido com um inseticida. Caximbau também pode ser fortalecido com duas partes de refrigerante de radiador.

Sodas (adoçadas, por canudo) 14
Se você adora abusar de bebidas carbonatadas, sugerimos o blanc des blancs das sodas, Cosca Corla, por seu sabor rico, de dar lágrimas nos olhos, e pela polidez, a elegância da eructação que provoca. Se este produto não for encontrado na área onde você mora, tente Versi Cola, de sabor menos acentuado mas, ainda assim, um verdadeiro sabor da natureza, só encontrado no interior de quem ama zonas. As sodas devem ser destampadas antes de beber. Se deixadas dentro da pia por mais de duas horas, cuidado com os metais.


Efeitos típicos do álcool no comportamento na cama*9

Bebendo um copo. Pouco efeito. A cabeça ainda está clara, o hálito é respirável. Pulso, respiração e fígado normais. Ainda é capaz de dar prazer ao seu par.

Bebendo meia garrafa. Ainda consegue saber o que está fazendo ali, embora já não interesse muito. Está ficando mais relaxado, quase tranqüilo. Não se queixa quando o seu par tenta lhe passar uma rifa. O senso de humor ainda está agudo. Faz um monóculo tirando o miolo de uma fatia de pão e se acha incrivelmente engraçado.

Bebendo uma garrafa. Dificuldades de pequena monta em diferenciar a cama do chão. Reza para que o parceiro não perceba. Sensação de náusea crescente passa quando leva uma bolada com uma almôndega, mas a mudança de posição faz a náusea voltar, e você se sente mal. Seu par é educadíssimo e finge que não percebe. Só tem uma curiosa necessidade de atear fogo à cama.

Bebendo garrafa e meia. Ainda sob controle, mas a possibilidade de realizar simples tarefas sexuais como babar e gemer está seriamente dificultada por uma dor de cabeça lancinante. Um de vocês dois teve um orgasmo há pouco, mas você não lembra quem foi. A visão e o tato estão um pouco distorcidos. Só consegue localizar o parceiro ouvindo a voz dele. E agora você vomita horrores e seu cãozinho se encolhe num canto.

Duas garrafas. Sua língua lembra a passadeira de um cinema após a sessão dominical das quatro. Embora funcionalmente morto, você inventa de tocar um instrumento de sopro colocando-o na frente de um ventilador e acha isso profundamente fascinante, vindo de um cara tão arejado. Sem perceber que seu par deu o fora, você começa a discutir com o travesseiro, para ver quem é que vai comprar mais sorvete.








Exemplos de perda de peso enquanto se come

Atividade Calorias consumidas
Sentindo dor de fome 0,5
Abrindo a porta da geladeira 1
Escarafunchando entre o não-essencial (alface, gelatina, ovos, limões, pilhas para lanternas etc 2
Levantando um garfo contendo:
uma bela almôndega 4
pedaço de frango pegajoso 2
papa de aveia 16
sopa de letrinhas 0,00006
Forçando a tampa de uma lata de sorvete que derreteu (incluindo estragar o esmalte das unhas) 21
Enfiar uma colher em:
Sorvete derretido e mole como manteiga 2
(só precisava fazer a menor das pressões, a gravidade faria o resto)
Sorvete recém-saído do congelador 76
(até ficar vermelho e ofegante) Desentortar a colher 6
Nota: Se você não pode esperar que o sorvete derreta, use o método da "pá", e pise na colher. Isso fará a colher penetrar o suficiente para você ter apoio para retirar uma porção de "emergência".
Passar manteiga no pão 3
Enfiar o pão no vidro e tirar um pouco de geléia 1
Separar biscoito recheado sem partir nenhuma metade 4
Lamber o recheio 2
Tirar rolha de garrafa:
com saca-rolhas 7
sugando violentamente 145
batendo no fundo da garrafa com a palma da mão 65

Mastigando (por mastigada):
compota de maçã, saladas e sopas 1
pedaços de carne de segunda 11
caramelo 14
Telefonando para pedir pizza 3
Se o telefone é de teclas 1,5
Batucando com os dedos enquanto espera 9
Comendo pizza:
fatia dobrada 4
fatia inteira 25
Comendo com embalagem e tudo (fome extrema) 98
Tirando o laminado do bombom 1
Tirando o papel grudado de qualquer guloseima:
delicadamente, com os dedos 1
rasgando com os dentes 0,5
queimando 0,25
Tirando a gordura do peixe 2
Correndo atrás do vendedor de pirulitos, que está de
Bicicleta 40
Comer espaguete com:
colher e garfo 6
com as mãos em concha 15







Perdendo peso e resistindo à comida
Pessoas que insistem em dietas rígidas, mesmo durante o sexo, ficarão felizes ao saber que exercitar a sua força de vontade faz consumir muitas calorias. Quanto mais tentadora for a comida, é claro, mais energia será necessária para resistir com sucesso.

Atividade Calorias consumidas
Resistir a:
torta de maçã com sorvete de chocolate 65
ovo quente 0,25
alface 1
camarões ao molho de lagosta 28
amêndoas defumadas 30
espaguete com almôndegas feito em casa 55
enlatado 2
maxixe em conserva 0,5
bolo de nozes 58
bolo de chocolate 72
trigo integral 0,000004
sanduíche de atum 4
sorvete de creme 187
rocambole de doce de leite 19
torta de morango 40
sopa de legumes 0





Comendo na cama — problemas

Atividade Calorias consumidas
Ficando juntinhos e grudadinhos 5
Tentando desgrudar um do outro 14
Tirando manchas de comida do lençol:
Sorvete de chocolate 5
Sorvete de baunilha deixe ficar
vinho tinto 8
suco de tomate 6
óleo da pizza 11
carne moída 8
Nota: Nódoas de comida devem ser vistas como símbolo de diversão, como os adesivos que as pessoas colam nos vidros de seus carros dizendo que gostam disso, daquilo ou daquele lugar.
Escaras 5
escorregar para a frente e para trás sobre um lençol cheio de migalhas de pão, cascas de amendoins, talos de maçãs, batatas fritas etc. provocará irritações nas peles mais sensíveis. Passe sempre o aspirador entre as refeições.
Dividindo um prato de sopa durante o intercurso 80










Usos alternativos para a comida
Apesar do risco de uma reação alérgica, cobrir um ao outro com comida, como por exemplo geléia, creme batido, calda de chocolate, e depois lamber tudo é um excelente meio de se ganhar tempo, combinando sexo e refeição. São duas comidas no espaço de tempo de uma só (e como tempo é dinheiro...). Para obterem o melhor resultado possível, esperem até que ambos estejam nus para começar.

Atividade Calorias consumidas
Lambendo:
Mel 4
geléia de framboesa 6
coxa de peru 19
chiclete de bola 86
creme batido 2
creme de barbear (boa piada). 46
uvas 1
maquilagem orgânica 10









IX. A relação de altura
Qual a altura do/a parceiro/a sexual ideal?*10
(Mulheres acima de doze anos devem acrescentar três centímetros a todas as medidas)

Se você pesa: Deve medir:
ossatura pequena ossatura média ossatura grande
08 a 15kg 63cm 68cm 73cm
16 a 20kg 72cm 77cm 82cm
21 a 25kg 87cm 92cm 97cm
26 a 30kg 96cm 101cm 106cm
31 a 35kg 115cm 120cm 125cm
36 a 45kg 120cm 125cm 130cm
46 a 50kg 135cm 140cm 145cm
51 a 55kg 145cm 150cm 155cm
56 a 60kg 150cm 155cm 160cm
61 a 65kg 165cm 170cm 175cm
66 a 70kg 170cm 175cm 180cm
71 a 80kg 180cm 185cm 190cm
81 a 85kg 183cm 185cm 193cm
86 a 90kg 186cm 191cm 196cm
91 a 100kg 189cm 194cm 199cm
101 a 110kg 192cm 197cm 202cm
111 a 115kg 195cm 200cm 205cm
116 a 120kg 200cm 205cm 210cm
121 a 125kg 205cm 210cm 215cm
126 a 130kg 210cm 215cm 220cm
131 a 140kg 215cm 220cm 225cm
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.
Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros ,
será um prazer recebê-lo em nosso grupo.


http://groups.google.com.br/group/digitalsource
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros
1 * Àqueles que sofrerem de impotência e frigidez devem procurar um médico.

2 * Em casos extremos, os casais são capazes de percorrer até cerca de quatro quilômetros durante três horas de sexo realmente intenso. Um casal, começando no quarto, acabou se encontrando, duas horas mais tarde, no meio do terreno de um pagode, onde interpretavam Sacoleja. Ficaram muito envergonhados.

3 * O elemento de teste entrou em coma logo depois e não disse nada.

4 * Muitas vezes causada por incapacidade de fazer as coisas direito.

5 • Talvez seja preciso dizer, vez por outra: "Oooa!" ou: "Aqui, bichinho!"

6 * Há exceções. Um turista persa caiu de sua bicicleta em Los Angeles e um americano gordo rasgou as calças no banquinho de um bar, em Roma.


7 * Uma refeição pesada consiste de salsichas trufadas, patê, empadão de mariscos (dois pratos fundos), bolo de carne e fritas com ravioli verde ao forno, quedos de cabra variados, pão-de-mel, cerveja, vinho e água mineral gasosa. Sobremesa: uma pizza gigante (sem açúcar) com tudo em cima.

8 * Em certas localidades, a entrega de pizzas é considerada uma emergência médica. As bicicletas e motos dos entregadores têm sirene.

9 * Do livro Novas Perspectivas sobre a Relação entre o Álcool e o Comportamento Idiótico, do Dr. Brás de Cubaslançando, professor de Economia Doméstica, Universidade do Transvaal.

10 * Baseado em certas tabelas

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Casimiro de Brito

Um Certo País ao Sul


VOLUMES PUBLICADOS

As Palavras Poupadas

Maria Judite de Carvalho

Tempo de Mercês

Maria Judite de Carvalho

O Aprendia de Feiticeiro Carlos de Oliveira

Uma Abelha na Chuva Carlos de Oliveira

De Profundis

Paure da Rosa

Adágio

Faure da Rosa

O Cosmonauta Pedro Alvim

A Grande Burla

Freire de Andrade

Perdas e Danos

Urbano Tavares Rodrigues

Podem Chamar-me Euridice... Orlando da Costa

O Camilo do Lenço Amarelo é Perigoso Mário Castrim

A Palma da Mão

Urbano Tavares Rodrigues

Palavras de Combate

Urbano Tavares Rodrigues

As Imagens Destruídas

Maria Judite de Carvalho

Um Certo País ao Sul Casimiro de Brito

colecção "ficcionistas portugueses-"
DO AUTOR:

Poemas da Solidão Imperfeita, 1957.

Sete Poemas Rebeldes e Carta a Pablo Picasso, 1958.

Telegramas, 1959.

Canto Adolescente (in Poesia 61), 1961.

Poemas Orientais (versão de hai-cais japoneses), 1963.

Jardins de Guerra, 1967; 2." edição, revista, 1974.

Vietname: Em Nome da Liberdade, 1968.

Mesa do Amor, 1970.

Negação da Morte, 1974.

em preparação:

Que Fazer do Corpo, romance.

Pouco de Pouco, poema.

Algum Canto de Alguém, poemas.

CASIMIRO DE BRITO

UM CERTO PAÍS AO SUL

& outras ficções do estilo

SEARA NOVA
1975
Capa de Henrique Ruivo

Casimiro de Brito

e Empresa de Publicidade Seara Nova, S. A. R. L.

R. Bernardo Lima, 23-1.° Esq. Lisboa-1

SUMÁRIO

A morte eufórica, 1961 11

Oásis na noite, 1963 27

Um certo país ao sul, 1964 37

As férias ou o tema do funcionário cansado, 1967 49

Um pequeno acidente, 1969 59

Deixa-me respirar um pouco, 1969 65

Viagem interior, 1969 83

A Cruz-de-guerra, 1970 89

"Que te amem os cSes", 1970 97

Sobre outro corpo, 1971 107

A morte, 1971 115

Uma (entre outras possíveis) autópsia da guerra,

1974 119
Aqui

a morte se desenvolve

com mais vigor; carnívora contemplação

do outro lado da palavra

revolução. Um dia

no carvão da ferida, no mais opressivo

movimento

da doença que somos

renasceremos. Um dia

tantas vezes sofrido, tantas vezes cantado

cantaremos de novo.

(in "Algum Canto de Alguém")
A MORTE EUFÓRICA

Também, a minha vida findará

Qual outra flor

Caindo e deslizando para longe.

(ONITSURA, tradução de C. Brito in "Poemaa Orientals")
Assinado foi agora o contrato. A sangue, num velho pergaminho ressequido, quebradiço já, que Ismael Houbnis desencantou, após meticulosa busca, entre cartas antigas e grossos fólios de escrituras, no cofre de família.

Porquê a sangue, Ismael? ainda perguntei, conhecendo embora o formalismo dos seus hábitos, mas lembrando-lhe que vivemos no século do átomo e da coca-cola.

Sim, a sangue, meu velho; como os pactos de fraternidade dos antigos cavaleiros germânicos, sabes, a Blufbruderschaft, a fraternidade para a vida...

Mas...

Eu sei, a nossa será para a morte, mas não sabes tu que vida e morte são as duas faces da mesma esfinge ? Ambíguas, meu velho, ambíguas. O sangue é o grande símbolo, o sangue equilibra-nos entre a vida e a morte.

13
CASIMIRO DE BRITO

UM CERTO PAIS AO SUL

Ainda sinto no braço, atravessando bruscamente a veia, a incisão gravada em troca de uma gota, de uma só gota de sangue. E talvez também em troca do meu sono.

Ismael, a meu lado, recostado no "maple", arregaça a manga da camisa. Lentamente. com a ociosa bonomia de quem dispõe de todo o tempo do universo e faz render ao máximo o mais simples dos acontecimentos, o mais insignificante facto, sejam eles "da vida ou da arte" (como ele dizia, logo acrescentando: "ah, mas a arte por excelência é a arte da vida!").

Um homem confortável. Como se tivesse descoberto, ele, o velho fauno, o elixir da eterna juventude. Ele, jovem fauno, por montes e vales, praias, civilizações.

No entanto, ai de mim, a realidade é bem outra; outra foi a cerimónia; acabámos precisamente de pactuar com a morte, e contractámos a sua dele tão desejada "morte eufórica".

you à minha vida, adeus. Ficas, eu sei, nas tuas sete quintas; trauteando (na tua boca há sempre um pouco de música, no teu ouvido) "uma coisa de Beethoven": Gedenke mein! Ich denke dein...

Ismael Houbnis Fitzwater, o delicado alexandrino ("nasci em Alexandria, de mãe copta, professa de São Basílio, e de pai inglês, dos serviços diplomáticos, mas um Fitzwater que não tem nada, naturalmente, com a obscura personagem de Shakespeare; meus pais, claro, cedo se sepa-

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raram; minha mãe suicidou-se; e meu pai, sempre atrás do sol, instalou-se no teu país, e... mas isso é outra história"), para quem a vida, palavras dele, já se vê, é um cacho de uvas que apetece morder, deglutir, saborear, com a volúpia de quem morde, saboreia lábios, seios, sexos ah, todos o conhecem na cidade. Conhecem-no de o ver passar, e pouco mais. A sua elegância inexcedível, diria mesmo excessiva, a maneira como os seus olhos e, ouvidos e mãos se prendem nas coisas, alongando-se nelas, a fragilidade dos seus gestos femininos, ainda surpreendem quem o conhece há longos e longos anos. Por aqui ficou, pois. O dr. Ismael é uma das nossas preciosidades locais, falamos dele como quem fala de um museu imaginário, deixem-no pois ser excêntrico e admirem simplesmente os seus poderes de levitação deixem Ismael atravessar as ruas sujas da cidade como quem caminha através dos claustros do templo de Baalbek, deixem-no explicar-vos em que estação e a que hora são mais luminosos os poentes ou atingem a máxima florescência as buganvíleas. Deixem-no planar.

Recordo-me da primeira vez que o vi, quando, entrado no Liceu, cheguei à cidade. Passaram dez anos. Foi na Alameda João de Deus, nesse frágil pulmão da cidade onde escrevi os primeiros versos, um pouco por culpa de Ismael, que me dizia: "escreve ou desenha se não sabes viver; mas, sobretudo, aprende a viver para que possas abandonar, com ganho, os papéis e as tintas."

Ismael Houbnis usava gravata branca e estava dobrado sobre os movimentos de um verme.

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CASIMIRO DE BRITO

(Isso: movimentos precários; sobre movimentos, debruçar-se sobre uma cor, era coisa muito dele; ou: atentar minuciosamente no rubor de um rosto, na imagem desfeita das ondas, no sempre outro sentido dos acontecimentos, eram coisas muito dele). O sol reflectia-se nas suas lentes, as quais, por sua vez, ora insistindo ora quietando-se, incidiam no pobre bicho. Tinha, debaixo do braço,

("o amor mata", eis uma das muitas frases de Ismael que apontei num caderno que ainda conservo)

um volume de Proust; a mão direita desenhava um círculo em volta do bicho, e, pouco depois, segurava uma lupa de bolso com a qual inspeccionava as aventuras do pequeno animal.

Alguém nos apresentou nesse mesmo dia. Alberto Carlos, o jovem estudante de filosofia, alguns anos depois suicidado em circunstâncias ainda hoje discretamente veladas. Claro que voltarei um dia a essa história. Quando forem outros os tempos nestas praias ocidentais.

Mais tarde associei este primeiro encontro descuidado às suas palavras: "por momentos, um verme, pode ser o centro do universo e não só para ele."

Surpreendo-me agora a perguntar: Como seria a nossa melancólica cidade, árida capital do sol e do sono, sem a presença tranquila de Ismael o mais sonolento, mas também o mais espirituoso dos seus loucos?

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UM CERTO PAIS AO SUL

Mas quem conhece Ismael na intimidade, quem? Quem teve jamais a felicidade de ouvi-lo falar, discorrer sobre coisas de nada ("que são tudo, meu querido amigo, que são tudo quanto temos"), de ouvi-lo trautear sonatas completas, de inundar o tempo e os amigos com o sumo transbordante dos seus sentidos? A visão dele, da vida, é inexacta, eu sei, mas... Por mim champ-Ihe "lê poete". Assim mesmo, em francês. Não procuro razões para isso, o título surgiu-me numa tarde em que ele me lia uma página de Joachim du Bellay (J e veux courir, et jamais ne desplace, / / Uobscur m'est clair, et Ia lumière obscure.). Não procuro razões para isso, mas sempre adianto que ele jamais escreveu um verso.

A nossa amizade, feita de barro e de poesia, nasceu do interesse comum de olharmos as coisas por dentro; de andar por aí a ver a vida como quem vive também a vida dos outros... e, feita de barro e de poesia, a nossa amizade levou-nos a pactuar com a morte.

Digo, lentamente, as palavras: pactuar com a morte. E, silenciosamente, as ouço.

Na sua existência de gozo, na sua usufruição plena e vagarosa do instante, Houbnis lembra-se por vezes da morte "da-que-nunca-se-esquece". E só o pensamento de que ela poderá, um dia, fazê-lo sofrer, fá-lo experimentar os sintomas mais dolorosos que o corpo conhece, o terror, a febre, a vertigem. Note-se, entre linhas, que se

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CASIMIRO DE BRITO

falo de corpo, referindo-me a Ismael, a palavra corpo aparece-me com uma auréola de fogo e neve, areias harmoniosas, ternura, etc.

"Há anos e anos que procuro disse-me um dia , não a solução para evitar a morte, mas alguma coisa que me liberte de nela pensar com este terror que tu, de tanto te falar nele, bem conheces." E falava-me longamente, minuciosamente dos seus temores, das suas intenções: "... compreendes, de algo que tornasse a morte tão apetecível como a brisa do mar, ou deixar-me deslizar pelas ondas, ou como, suprema delícia, um dia o saberás, abandonar-me aos cuidados de Fatma..."

Fatma?

Sim, Fatma. Queres conhecê-la?

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Alguns dias depois, corria Setembro, e enquanto trocávamos dois dedos de brandy e de conversa, conheci finalmente Fatma. Assisti, surpreendido, a uma incursão de Fatma na vida, no corpo de Ismael. E, no mesmo dia, "1'amour oblige", Fatma entrou também, pé ante pé, na minha vida; repousada, horizontalmente; na minha vida, no meu corpo entrou.

Mas falemos dele, do meu bom alexandrino: Fatma, a meiga companheira de anos e anos lentamente atravessados, cuidava do "doutor" com a ternura com que dois dedos conhecedores levantam de uma mesa de pinho um selo raríssimo; lavava-lhe os pés com água-de-rosas, e, para os friccionar e cortar-lhe as unhas, encostava-os contra os seios túmidos, abundantes, antecipadamente desnudados e desprendidos; etc. Ismael,

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UM CERTO PAIS AO SUL

porém assisti e participei nestes jogos silenciosos, mas devo apenas narrar um pouco desta cena, aliás, para bons entendedores, mal descrita , não plenamente satisfeito com esse contacto de lábios e mamas, amacia os próprios lábios com a língua e prepara-se para saborear a sua bebida, Ballantine's ou Courvoisier, não me lembro já bem, os olhos postos num poema de Cavafis, talvez de Hitomaro. Música de fundo? Sim. Talvez Milhaud, talvez Dallapicola. Fatma, a seus pés, liga-o à terra, à circulação dos rios, à memória do fogo...

Eis que passam alguns instantes e Fatma se levanta para pouco depois regressar com uma pequena mesa de fumo: sobre ela três cachimbos de barro vermelho.

Queres também um pouco?

Um pouco de?

Um pouco de, por exemplo, outra música.

Droga funesta, eu sei. Mas já Ismael, acompanhado da sua companheira, já eles tocavam com os lábios num desses compridos cachimbos de barro vermelho, mais ou menos recheados de bolhinhas de ópio, sempre que possível, segundo Ismael, misturado de cinamomo ou essência de rosas.

Droga funesta, eu sei; aliás só a usei pelo prazer de tudo conhecer; mas não posso esquecer-me que falo de um homem em trânsito para a coisa mais horrível que pode acontecer a um ser humano: a morte violenta. E a viagem começa nesse medo que tu sentes com todo o teu corpo.

Noutro dia porém voltarei (tenho todo um caderno por decifrar) aos hábitos do meu amigo e da sua dedicada companheira Fatma. Hoje só lembrarei as relações (as que me são mais próximas) de Houbnis com a morte, valeu?

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CASEMIRO DE BRITO

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... um dia, por exemplo, encontrou o vizinho Silva Caetano pendurado na trave da dispensa. Esverdeado, inestético. Na posição ridícula de enforcado.

Havia dois dias que o não via, coisa estranha, dois dias sem trocarem as habituais impressões sobre o tempo e os seus efeitos na coloração das flores.

Bateu à porta, e nada. O postigo, normalmente encostado, apresentava-se rigorosamente fechado, o que só acontecia, uma vez por ano ("mas em Agosto, em Agosto!") quando o Silva Caetano se metia no velho Fiat e ia até à capital visitar a sua filha Hermengarda, casada com um oficial de diligências. Tornou a bater mais fortemente. Nada. Pediu então o apoio de alguém que nesse momento passava pela rua, e, ouvidas as razões do dr. Ismael ("algo se passa de estranho; há dois dias que não vejo o Silva Caetano; deve ter acontecido alguma coisa; não é homem para sair da terra sem ter anunciado o facto a toda a gente; alguma coisa aconteceu"), resolveram arrombar a porta. Oh!

O Silva Caetano ali estava, ali, ei-lo, um Silva Caetano pendurado na trave da despensa, teso e azulado, esverdeado, o pobre Caetano dos tabacos. "Conceituado comerciante desta praça, homem bom, pai estremoso", diriam, no dia seguinte, as folhas locais; talvez até também "O Século".

Mas que tem a morte do sr. Silva Caetano a ver com o meu amigo Ismael Houbnis, perguntar-me-ão. Apenas era possível detectar uma pequena afinidade entre ambos: o conhecimento profundo do comportamento das flores, de gerâ-

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UM CERTO PAIS AO SUL

nios, sobretudo, que ambos possuíam. Silva Caetano porque, antes de se dedicar ao comércio do tabaco, exercia as funções de jardineiro camarário; Ismael Houbnis, pois claro, pois não saberia Ismael Houbnis, entre outras coisas, que os gerânios, por exemplo, eram flores com pétalas hermafroditas, zigomorfas, monodamídeas, cíclicas, sei lá que mais?

Ele ali estava ("meu Deus, meu Deus"), teso e azulado, o pobre Caetano dos gerâneos. Pó. Restos de comida apodrecidos. Papéis espalhados no chão. Uma cadeira por terra, decerto afastada por um violento e último pontapé, E uma carta para Hermengarda...

E mais aquele cheiro, antegosto bolorento da sempre insólita intromissão da morte.

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Ah, sim, alguém, no dia seguinte, perguntou a Houbnis:

Ouça, doutor, por que se matou o Silva Caetano?

Ismael tirou os óculos, passou a unha do polegar da mão direita pelos aros de tartaruga, e, puxando do seu lenço de seda egípcia (fá-lo sempre nos momentos graves), limpou cuidadosamente as lentes (nesses momentos de silêncio longo que precedem as suas preciosas sínteses), limpou-as cuidadosamente contra o sol, e, de lábios humedecidos, respondeu:

Por que se matou o Silva Caetano ? Porque não gostava de Ravel.

O outro ficou varado.

Esperava uma resposta vaga, desajustada à pergunta, de Houbnis pode esperar-se tudo, mas

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CASIMIRO DE BRITO

Ravel? O Silva Caetano suicidou-se porque não gostava de um tal Ravel? Quern era esse tal Ravel, que tinha ele a ver com o funesto acontecimento? Havia portanto ligações obscuras na vida do Silva Caetano, o prático e boçal tabaqueiro, quem sabe, talvez ele pertencesse a algum partido político clandestino, talvez o Silva Caetano gostasse de rapazes...

Interrogou Ismael com os olhos impacientes, o sorriso subitamente apertado num círculo desdenhoso:

Porque não gostava de quem, doutor?

Sim, homem, o vosso amigo Silva Caetano era bom homem mas não gostava de Ravel, de Stravinsky, de Baudelaire; de música, de poesia; da vida, do amor! E no entanto era tão bom em flores!

Era de mais para tal interlocutor. "O Silva Caetano não gostava de Ravel... e suicidou-se por isso... gostarei eu de Ravel?"

Ismael contou-me a cena duas horas depois, à esquina da Rua dos Cavalos, com a habitual riqueza de pormenores, entoações, traços fisionómicos, estados de alma, uns multiplicados, aprofundados, outros inventados, outros ainda astutamente subtraídos. E, a propósito ("ai a morte do Silva Caetano deixou-me tão almareado"), falou-me de novo na sua programada "morte eufórica".

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Ai a morte do Silva Caetano deixou-me tão transtornado, tão, como vocês dizem, almareado...

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E, a propósito, pegou-me no braço e falou-me novamente na sua programada "morte eufórica".

Pouco a pouco foi-me arrastando para a Alameda, sítio de há muito preferido para o nosso comércio, e aí nos sentámos, junto ao lago das rãs.

E, uma vez mais, me interrogou detalhadamente sobre temas da minha profissão:

Diz-me, Saul, há seguros contra todos os riscos, não há?

bom, há seguros contra muitos riscos. Roubo, acidentes, terramotos, imensas modalidades de seguro de vida, enfim, são muitos os riscos possíveis.

Muitos, quase todos. Porque não um seguro contra a morte violenta? e amarfanhou-me o ombro direito, com uns dedos inesperadamente secos, nervosíssimos.

Mas...fixei-o nos olhos, fixei uns olhos subitamente tristes, mas vivos, de uma vivacidade ambígua, onde me pareceu desenhar-se um invulgar desejo infantil.

Sim, meu Saul, sim há várias modalidades de seguros de vida, já me tens falado nisso, já as estudei todas. Por que não um seguro especial para a morte? Especialmente para a morte violenta? Era tão simples: A companhia, o segurador, nada arriscava: Comprometia-se, pura e simplesmente, a "liquidar" o segurado no momento preciso em que ele estivesse irremediavelmente condenado a uma morte violenta. Por exemplo: a longa agonia de um cancro, da leucemia, de uma incurável doença venérea, de um acidente de viação, eu sei lá! A dor insuportável, a deformação física, a erosão do corpo, do meu corpo tão...

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CASIMIRO DE BRITO

Mas como é isso possível, meu caro, como ?

Fácil, Saul, nada mais fácil. O segurado seria submetido a um tratamento previamente estipulado, aquilo a que eu chamo um tratamento eufórico: Um "cocktail" fascinante de álcool e música, o hipnotismo, os venenos espirituais da Amazónia (por exemplo a Ayahuasca, a Marijuana), uma dose apropriada de LSD, tu compreendes, tu, um dia, falaste-me das tuas experiências com mescalina enfim, o que apetecesse ao segurado, o que tivesse sido estabelecido na apólice, talvez apenas alguns prazeres físicos bastassem, a transgressão levada ao extremo, a morte, a euforia! A morte mais generosa!

Mas é impossível, doutor, a lei...

Ora, a lei, a porcaria da lei. A lei é cega e os homens desiguais. Eu sei que alguns o conseguiram, eu sei, eu sei que alguns conseguiram a morte eufórica. Um médico amigo, uma amante fiel. Eu preciso, preciso urgentemente de encontrar um amigo fiel.

Fatma, doutor?

Ah, não. Fatma, não. O nosso pacto é outro, e ela tem muito medo das coisas da morte. Fatma, não... é melhor que ela morra comigo...

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A meu lado Ismael dobrava-se sobre os seus joelhos, atento, desatento, estremecia sobre uma terra tenebrosa, a terra violenta do seu próprio corpo surpreendido pelo medo, pela corrupção do tempo, um corpo devastado, enlouquecido.

És meu amigo, Saul?

Eu?

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UM CERTO PAIS AO SUL

És meu amigo, não és ? e foram humildes os olhos que me olharam, e foram invocativos, incandescentes, os dedos que me crisparam os braços, os ombros, a cintura.

Eu?... Mas eu...

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O velho fauno conquistou-me. com seus pés de barro me conquistou. Selámos há poucas horas o contrato. Ainda sinto no braço a cerimónia do sangue. Terás a tua morte eufórica, malandro. Onde quer que a violência da morte te assalte a promessa será cumprida. O sangue o disse, não é? Mas, ouve, pensaste acaso em mim? Bastar-me-á pedir aos deuses, pobres deuses de lama disseminados pelo tempo, que me dêem coragem para executá-la? Como deixar de torturar-me, de arrastar eu próprio agora uma vida violenta, se vivo ao mesmo tempo a minha vida e a tua, e elas se tocam por uma cicatriz que me avilta?

Grandecíssimo filho da puta!

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OASIS NA NOITE
Nos teus olhos (sobre as coisas) podia ler-se o teu ofício: o amor. Que triste ruído fazem os amantes quando... O mais perto possível do mar, aí nos sentávamos, lembras-te? Havia nesse recanto da esplanada uma lâmpada vermelha. Surda. As mãos cruzadas sobre a velha mesa de carvalho, olhando-te, as mãos sobre um poema de Luís Cernuda, lâmpada surda, saboreava lentamente o meu brandy: agora estavas menos pálida do que em Lisboa, anos antes, mas costumavas dizer que na tua terra as pessoas têm a cor dos frutos. E falavas longamente de São Vicente. ..

... e eu pensava (passava de um corpo a corpo a um palavra a palavra): um corpo capaz, eis um corpo capaz de deslizar para o amor, sonolento, confiante, um corpo capaz de, mas perfeitamente veemente, ajustado, rigorosamente abandonado, isto é: sentia-te a meu lado, agora no Algarve, como se fosses um diamante educado (por que seculares exercícios de frescura e docilidade?) para servir, para se ajustar a outro corpo, universo inédito, difícil, violento por vezes, onde problemas, desejos instáveis, movimentos imprevisíveis eram uma fonte aberta no corpo grande

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CASIMIRO DE BRITO

do tempo. Atentos, rigorosamente abandonados.

Acaso sabias que o nosso jogo (os ritmos da matéria combinam-se, continuam-se) era a sério, um jogo de vida ou morte? Acaso eu o sabia (recusam a paz das coisas, ferem-na), com os meus trinta anos desprendidos por aventuras fáceis, eu que sempre encontro, desencontro a aventura fácil onde procuro a luz, a liberdade?

O triste ruído que fazem os corpos dos amantes. Enlaçámo-nos no meu quarto de pensão, e... Mas quem não sabe o que é o amor? "Toda a vida dos homens", disse quem o disse; ou ainda: esse repouso das águas e dos barcos após a tempestade. Por mim, digo: ele nos mantém vivos, vigilantes. Dois dias

antes

mal nos conhecíamos. Um novelo, uma saída simulada, novos objectos de bruma. Que é a amizade? Fora um sábado vulgar, um sábado arrastado pelos cafés da cidade. Alguém nos apresentou, quem, o Fernando? Ele agora é professor de qualquer coisa em qualquer liceu da província. No velho Chiado. Chamaram-no ao telefone, regressou pouco depois, e disse-me: "preciso de sair, vocês ficam um com o outro, já se conhecem há dez minutos."

Agora, ao longe, através da janela rasgada sobre a praia, as cores do mar, tumultuosas, sim, talvez tumultuosas, um navio, o corpo árido do tempo: já nos conhecemos há quantos minutos? quanto nos conhecemos? um dia escrevi: és a vela de que o meu corpo é o navio, mas a paz das coisas ainda nos fere...

O teu olhar de intensa humidade, humildade, como se tivesses chorado (deveria ter escrito:

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UM CERTO PAIS AO SUL,

humanidade?), surpreendeu-se com as palavras do Fernando. "Vocês ficam um com o outro." Mudei para a cadeira do Fernando, agora vazia entre nós, e começámos a falar de coisas sem importância: o facto de ser sábado à tarde e não termos nada que fazer, os últimos filmes, os livros que líamos, o cerco, a corrupção, as represálias. Temas gastos. Palavras que tomam, ou não, a importância da lucidez, da emoção lúcida. Reproduzir que diálogo? Não seria capaz.

Reparei, sobretudo, no teu rosto oval, onde avultam (ainda agora o diria) os olhos: negros na cor, amendoados na forma, extremamente húmidos. Uma face digna, sóbria. E sobre os lábios: terra fresca; talvez um pouco mais firme do que é habitual nas raparigas.

Nas mesas em volta de (de palha sebácea, apodrecida nos cantos) estendiam-se livros, cadernos, tédio, uma que outra voz mais convincente: os estudantes estudavam. Na intimidade do fumo. No convívio de quem (Fernando, por exemplo) não tinha em casa uma mesa para estender os livros, uma lâmpada disponível. Um empregado sonolento serviu-nos dois dedos de café.

E (os teus olhos sobre as coisas), porque falávamos a mesma linguagem, falámos necessariamente de ratos: dos ratos que se aninham no nosso corpo, nas axilas, nos ouvidos, dos ratos que nos correm no sangue (e não se afogam), dos ratos que somos e a quem obedecemos, dos ratos do salão e dos ratos das sarjetas, de ratos falámos, falamos ainda, de quanto nos prostituímos. E, olhos nos olhos, que te sentias viva a meu lado, que me sentia vivo a teu lado, etc., entrámos num cinema. Bergman.

O sol nesse dia (mas conservámo-lo connosco) declinou mais depressa. Sobre Bergman disseste:

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CASIMIRO DE BRITO

"Para ele não existe uma verdade; e para ti? os filmes dele começam depois..." Eu: "e, para ti, a vida? começa depois?"

Era outro sol o que partilhávamos agora, um trabalho de mãos em busca da ternura, as minhas envolviam-te os ombros, as tuas tocaram nos meus joelhos, tocaram, permaneceram, instalaram-se... e ainda hoje, anos passados, é esse o teu gesto mais constante, em casa, no cinema, no carro, as tuas mãos quentes nos meus joelhos, as tuas mãos esquecidas nas minhas coxas preservam o esplendor desse primeiro dia de: amor é a palavra. Ou cruzadas sobre a velha mesa de carvalho, sobre um poema de Cernuda?

AS palavras então ditas diziam-se então. Do género de: "sinto que te conheço desde sempre" ou "mas conhecemo-nos desde sempre; pois não temos em comum o estarmos aqui sitiados?" ou ainda "as palavras estão gastas mas que outras te poderei dizer senão estas: amor, desejo, amanhã, liberdade ?" a vida parecia um rio a nossos pés.

 saída do cinema disseste-me que vivias num quarto alugado (num desses lares onde se instalam, em "ambiente familiar", as raparigas que da província vêm para Lisboa estudar ou empregar-se) para os lados de Santa Marta; que havia horários mais ou menos rígidos para entrar, mas que; que amanhã, talvez... Enrolámo-nos na mesma capa, chovia um pouco, e deslizámos por essas ruas cinzentas; restavam-nos duas horas; a nossos pés, enrodilhadas pelo vento, as folhas secas da estação; aqui e ali, nos portais ou sob as árvores nuas, um bêbado ou uma prostituta dialogavam com a morte; e em toda a parte, por detrás das cortinas dos prédios altos, no lixo

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acumulado ao longo do dia, nos passos arrastados por pedras velhas, no próprio "néon" dos anúncios luminosos (viva melhor, venda-se, compre-nos), os pobres movimentos de uma cidade estéril, adormecida, domesticada.

Despedimo-nos sem brilho. Apenas um toque subtil dos meus dedos nos teus. Um rio a nossos pés. Ágil, significativo. O toque (que triste ruído o dos corpos dos amantes) de quem sabia que no outro dia a ternura...

Senti-me disponível nessa noite. Menos pobre. Encontrara alguém que falava a minha linguagem alguém, ainda, embora do outro lado da cela do corpo. Talvez amanhã. Menos pobre. Uma noite culminante. No dia seguinte,

abandonámo-nos a esse tempo de claridade. O amor, a ternura, a liberdade (outras palavras não tínhamos) transformavam-se pouco a pouco no fruto de duas imaginações fecundas, de dois corpos atentos ao crepitar do seu fogo. O cimento de um homem, a suspensão, a violência de um homem dissolvia-se, como se fosse um navio, no mármore, nas coxas quentes, no sabor a terra de uma mulher... Mas quem não sabe o que é o amor?

Foi esse um tempo cheio de noites habitadas; poupámos algum dinheiro quando passámos a viver no mesmo quarto; percorríamos as nossas dúvidas e a nossa um pouco menos espessa solidão pelas ruas áridas da cidade; ao dinheiro poupado, pouquíssimo, juntavas os planos para uma casa um pouco maior; e, através da cidade, de sítios apodrecidos, era como se atravessássemos um cemitério de pedra. Os nossos corpos, dizias,

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"transmitem um pouco de fogo e ternura a estas pedras antigas". Cercados por movimentos precários, detritos, silêncios difusos, usura, erosão da vida, caminhávamos pela cidade como quem regressa de uma longa viagem. E, no entanto, a festa bárbara, o jogo tenebroso, o desmoronar-se do velho corpo amorfo, apenas tinha sido interrompido pela noite.

Armas vigiavam. Vermes. Ouvidos de imperador.

Sentíamo-nos tão sós e caminhávamos de tal modo colados um ao outro que era como se não fôssemos a cidade, como se ela fosse apenas um animal (ou rio) a nossos pés, um pobre animal velhíssimo, estéril, enovelando-se no pó e já sem imaginação para o seu próprio suicídio. E, em vez de aliviar a agonia do bicho, ali, em Lisboa, no ano de 1962, onde a podridão (a cinza dos séculos) culminava, ajudávamos a alimentá-lo, a mante-lo miserável, com o nosso sangue e a nossa raiva, com o nosso corpo e a nossa incomodidade. Dizias (ou eu o dizia): "Quanto mais dignos não seríamos se tivéssemos a coragem de pegar fogo a estas cidades obscuras e sem originalidade?"

As nossas noites, trabalho colectivo (de dia era a dispersão dos ofícios), desde essa primeira noite em que levámos o sol para casa, eram preenchidas de amor (oásis na noite), de muito amor: tínhamos inventado, e pouco a pouco aperfeiçoado, uma intimidade solar, e, mesmo ali, Lisboa, Inverno, éramos corpos deitados em praias distantes, rostos suspensos sobre algas e rochas sonoras, álcool anónimo, habitação suave de ruínas, projectos rigorosamente formulados (e assim

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UM CERTO PAIS AO SUL

vividos) de uma outra vida... Mas não esquecíamos

um só momento

a doença, a polícia, o bloqueio; as plantas venenosas destes jardins que já então eu dizia serem "de guerra"; não esquecíamos, por um só momento, a surda combustão (ou agonia) do grande bicho deitado.

As palavras (vivemos entre palavras) mais sinuosas cresciam nos nossos ombros colados, nos lábios secos, nos lábios tocados ao de leve, habitados, dilacerados pela violência mais pura: a nossa. Éramos livres quando corríamos um pelo outro: as cores obscuras, que até há pouco nos tinham vasado os olhos, perdiam pouco a pouco a sua espessura. Uma casa (mais espessa) crescia à nossa volta; dentro da nossa imaginação.

E enquanto frequentavas as tuas aulas na velha escola de Belas-Artes, eu desbastava, no emprego, montes e montes de papéis; e o tempo arrastava-se; equilibrava-se, como podia, entre os nossos movimentos hesitantes.

Nesse ano, em Lisboa, não houve Inverno.

Acumulavam-se os dias como se fossem objectos memoráveis; obscuros mas duradouros; e os nossos actos mais comuns tinham uma importância até então insuspeita; afastavam-se, aproximavam-se do essencial, da nossa pouco a pouco elaborada noção do essencial. Uma fogueira de rudimentares ambições: uma casa viva, um caminho de palavras e actos sem usura, ali onde a voz do povo é uma arma soterrada, a tua, a minha voz sem espaço.

Nesse ano, nesse longo dia, em Lisboa, não houve Inverno.

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CASIMIRO DE BRITO

Mas quando chegou o segundo dia, anos depois, quando abriste o teu corpo a nossos filhos, ontem, anos depois, soubemos que todas as nossas ambições estavam bem formuladas, crepitava o fogo, uma casa viva, movimentação violenta, mas objectivamente aqui, no corpo, em casa, via lenta, onde o povo, a claridade, começam. Porque pouco mais podíamos fazer pela revolução (contra o terror, contra o vício, contra a morte) do que alimentar estas árvores tão próximas de nós, do que lutar pela sobrevivência da casa que somos.

Como quem, todos os dias, rompe a noite com os dentes. E algumas palavras.

UM CERTO PAIS AO SUL

Como se de asas se tratasse invoco teu, nome liberdade.

(In "Jardins de Guerra")

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O meu velho compadre Mohamed El-Fadl, ferreiro de profissão e crente fidelíssimo de Maomé, seu homónimo a bênção e a paz de Alá o cubram! , conta-me, finalmente, entre duas cervejas, a sua história. E assim, ouvindo-o desenrolar o novelo, fiquei a saber das razões que o levaram a abandonar o nosso generoso país do sol e do sono.

Mehr zwei alt, bitte...

Estávamos sentados a uma mesa de canto de uma pequena taberna de Diisseldorf, para as bandas da Bahrihof, ponto de encontro dos "trabalhadores hóspedes" do nosso e outros países irmãos de destino. Os outros clientes da tasca (estivadores, velhos marinheiros, alcoólicos, desocupados), pouco habituados a um diálogo tranquilo entre norte-africanos, olhavam-nos com a complacência de quem assiste a um filme estrangeiro (sem legendas). Dizia Mohamed:

"Saberá, meu caro Ornar, que vim dar a estas paragens por um motivo inacreditável. Uma, como direi, uma fatalidade. E tudo por causa da minha filha. Foi no tempo do fascismo, claro; nesses famigerados anos cinquenta; tu sabes: as palavras, os gestos, o próprio silêncio da nossa

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CASIMIRO DE BRITO

gente eram minuciosamente vigiados. A polícia preocupava-se muito comigo. Nunca percebi muito bem porquê! E convocava-me, quase todas as semanas, para prestar "declarações". E tudo por causa de minha filha mais nova, suponho que te lembras dela, a que se chama Liberdade... Magra, muito frágil parecia um esquilo sempre assustado, a minha pequenita. Mas tinha uns olhos muito negros, luminosos (não a vejo há anos e anos) e usava dois laços brancos a prender-lhes os cabelos dois pássaros presos, diziam dos seus olhos os vizinhos mais entendidos. Lembras-te dela, Ornar?

Não, Mohamed, não me lembro. Bem sabes onde eu estava nesse tempo. A pão e água. Mas conheço-a agora. Sabes que a encontrei não há muito tempo... e recordei a mulher feita que é agora a filha de meu compadre, silenciosa, tranquila, surdamente incendiada por este projecto comum que um dia assumimos.

"Nesse tempo a minha Liberdade era uma garota endiabrada; ninguém a segurava em casa, contrariamente aos velhos hábitos da nossa terra; ninguém, e muito menos eu, absorvido com os meus metais; não tínhamos, em boa verdade, vida para a vigiar de perto. A pequena, mal apanhava uma porta aberta, um pedaço de janela, escapulia-se e perdia, ruas fora, a noção do tempo. Deambulava pelos cais de pesca, assistia, por entre os compradores, à vendagem do peixe ou vagueava pelos bairros ribeirinhos em busca de emoções: as peripécias de um louco, as histórias maravilhosas dos velhos pescadores, as discussões domésticas das comadres. E não raro se metia num pequeno barco disponível e se deixava deslizar pelo rio... O tempo corria, o tempo rápido do trabalho mal remunerado, e era então

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UM CERTO PAIS AO SUL

que Maryana, a minha mulher, me gritava aos ouvidos: Vai, homem, vai procurar a tua filha. Até te esqueces que a Liberdade existe, e eu lá ia, de rua em rua, de bairro em bairro, ou ao longo do rio, por entre pescadores e vendedeiras de hortaliça, a gritar, a chamá-la: Liberdade... Liberdade... Viram a minha Liberdade?"

Tomámos um trago de cerveja e ficámos por instantes a escutar a voz áspera dos nossos companheiros de exílio. Ou, ao longe, as ondas alongando-se na praia?

"Quando tal acontecia, e já te disse que minha filha nasceu com sangue novo na guelra Alá a proteja! , logo a polícia da cidade se lembrava de usar as suas armas. Instintivamente. Porque tudo, na nossa terra, se faz por instinto. Fechavam-se então os postigos à minha passagem; os amigos viravam a esquina; e os vendilhões resguardavam as suas fazendas. No dia seguinte, na praça, em sítios de arranjar trabalho, nos lavadouros públicos, as comadres comentavam, boca no ouvido, o acontecido. A minha pobre razão de homem de parcas letras que Alá me tenha em tão boa conta como eu tenho Alá! não ligava uma coisa à outra, mas era certo e sabido que no dia seguinte, logo pela manhã, lá estaria, à minha porta, um funcionário da polícia.

"Mohamed Zeitun El-Fadl? perguntava-me o cabo "Cabeça-de-Porco".

"Então não sabes que sou eu, desalmado?

"Aqui tens uma convocação do Comando. Deves apresentar-te amanhã, às nove horas em ponto, na esquadra do 2.° bairro.

"Mas, e o meu trabalho? Quem dá de comer a esta gente?

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CASIMIRO DE BRITO

"Escuta e obedece. As nove da manhã no Comando."

"Que mais podia eu fazer além de ficar varado de raiva? Maryana refilava, mas, momentos depois, resignada, apenas me dizia: Que havemos de fazer, homem? O destino de nós todos está escrito. Que mais podemos fazer senão vivê-lo? Vai, tem paciência, e deixa o Marmaduke, o Filho-de-uma-Cabra, falar à vontade; eu cuidarei da oficina e das crianças; o pequeno Aboul ajuda-me nas limpezas. Vai, e deixa-o perguntar e responder às suas perguntas tolas. Alá é grande e Maomé o seu único profeta!

"Liberdade, a minha pequenita, inconsciente daquelas andanças, encolhia-se a um canto com as suas bonecas desenhadas na parede. Uma violeta. Sempre na sombra; sempre colada ao chão, a nossa Liberdade; sempre obscura."

Neste momento da sua narrativa Mohamed El-Fadl baixou o torn da voz e olhou para os rostos das mesas mais próximas; como se estivéssemos ainda sentados no nosso país; procurou então um cigarro no bolso da camisa, e chamou o empregado:

"Auch zwei Alt?"

"Jawohl, bitte."

E continuou:

"No dia seguinte lá me tinha que levantar mais cedo ainda, ao raiar da alva, a tempo de cumprir os meus deveres religiosos e ultimar os trabalhos mais urgentes: alguns pares de algemas (gastava-se daquilo como água, nesses tempos; acaso as comiam os que as usavam?); uma nova demão de pintura no gradeamento para a
2.a esquadra do 4.° bairro; um pouco mais de polimento nos estribos do cavalo branco do senhor Tenente da Guarda. Tu sabes, o Estado pagava

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UM CERTO PAIS AO SUL

um pouco melhor, e eu tinha oito bocas a sustentar. Assim eu me consolava, como se fosse essa a razão que me levava a dar prioridade às encomendas do Estado. Outras encomendas, porém, não havia. Alguns amigos nossos diziam que, afinal, eu era uma espécie de empregado do Estado. Enfim... Acabados, pois, os trabalhos urgentes, punha-me a caminho, não sem antes ter vestido o meu melhor fato, o linho com que me tinha casado dez ou doze anos antes, e me ter escanhoado a rigor. Um homem deve apresentar-se decentemente perante a polícia, não é? deve dar a impressão de que é um cidadão exemplar, um tudo nada cansado, sim, mas parecendo quase bem instalado na vida, não é? E lá estava eu, uma vez mais, no gabinete de Marmaduke, o comissário, que, a verdade verdadinha acima de tudo, tinha o ar efeminado de um eunuco, Marmaduke, Marmadukezinho, de mansas que eram as suas falas e branca e fina a sua pele. Um comissário paternalista, diziam os nossos jornais da época.

"Senta-te, Mohamed, senta-te meu filho e ajuda-me a resolver de uma vez para sempre este caso.

" Desculpe, Comissário...

"Bem sabes que me incomoda falar alto. Aproxima-te mais um pouco, senta-te aqui ao pé de mim. Assim, assim estás bem e ouves-me melhor, e Marmadukezinho espalmava a mão direita na minha perna.

"Permita-me que pergunte, Excelência: Que caso?

"O teu, Mohamed. Pois não foste convocado para prestar declarações? Se foste convocado para prestar declarações é porque tens com certeza declarações a prestar. Que esperas então,

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CASIMIRO DE BRITO

meu filho? Bem sabes que não há fumo sem fogo sussurrou Marmaduke, enquanto se virava lentamente para o subalterno: Traz-me o cadastro do nosso visitante.

"Meticuloso, servil, o jovem polícia entregou ao seu chefe um grosso volume:Aqui tem, Excelência.

"Marmaduke abandonou-se por momentos ao estudo do processo, o meu processo, franzindo as sobrancelhas, roçando as botas altas uma na outra, mordiscando os lábios secos; voltou-se, finalmente, para mim, ciciando:

"Grave, muito grave. Um caso de reincidência. Ora vamos lá ver: O acima designado, etc., não é a primeira vez que perturba a ordem publica, etc., a saúde social da nossa cidade... gritos subversivos de Liberdade (como se a não houvesse, Mohamed!) pelas ruas dos bairros mais populosos... ainda não foi possível apurar a que partido pertence... estará a soldo de alguma potência estrangeira f... Quem são os seus colaboradores?... Além do mais, na sua vida quotidiana, Mohamed Zeitun El-Fadl é um bom cidadão, um artesão exemplar... trabalha quase exclusivamente para o nosso Estado na confecção de material metálico... serão ataques ocasionais de loucura f... Mohamed nunca se queixou dos impostos... nunca vazou o olho a nenhum dos nossos guardas... e afora uma ou outra bebedeira é um cidadão perfeitamente domesticado... Pois é, Mohamed, o teu caso é grave; é um caso que nos confunde.

"E após um longo silêncio, uma pausa espessa que Marmaduke me meteu pelos olhos dentro, continuou, mais dócil ainda:

"Precisamos encontrar uma solução honrosa, meu velho amigo; uma solução, como direi

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UM CERTO PAIS AO SUL

Alá nos ilumine! , uma solução honrosa para ambas as partes; isto é: honesta; honestíssima. Como vês, pretendemos usar métodos correctos e a voz de Marmaduke soava fina e trémula como a de uma jovem prostituta. Somos, orgulhosamente, um povo de maneiras brandas. Peço-te apenas...

" Que pensas tu, camarada Ornar, que Marmaduke me pedia?

"Sei lá? A polícia é hábil, nessas circunstâncias, em pedir coisas muito simples: a lua, a cabeça de um irmão...

"Marmaduke continuou então com voz de falsete; lembras-te da voz do velho ditador?

dizendo-me: Quero apenas que nos digas... os nomes.

" Os nomes ? perguntei.

"Sim, os nomes; os nomes dos outros; o chefe, quem é o vosso chefe? Ajuda-nos, Mohaiiied: ajuda-nos e não te arrependerás. Nós sabemos perfeitamente que eles estão bem organizados, bem apoiados por capitais estrangeiros, e te usam apenas como isca. Ajuda-nos, Mohamed; não faças o jogo, isso, o jogo antinacional dessa gente; e, claro, deixamos-te ir em paz. Talvez até eu consiga que te passem a pagar um pouco melhor as algemas...

"Que podia eu dizer-lhe se não o entendia? Só Alá seria capaz de compreender a algaraviada de Marmaduke! Eu apenas sabia que tinha percorrido algumas ruas em busca de minha filha, chamando-a pelo nome que meu compadre Salim lhe deu, e estava ali a perder um dia de trabalho. Um, para começar. Vezes houve em que me prenderam durante três, quatro semanas na mais imunda das celas daquilo a que pomposamente Marmaduke chamava "o nosso palácio da jus-

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tiça". Faziam-me então passar por um círculo vicioso de interrogatórios (os nomes... os nomes...), impediam-me de dormir, tiravam-me o pão e a água, e não raro me sovavam até eu ficar num estado de total inconsciência. Obrigavam-me, ai de mim, a dizer o nome dos meus amigos mais próximos os desgraçados dos artesãos do suk, o mestre-barbeiro, o magarefe, vendedores ambulantes, e raparigas dessa vida a que chamam fácil, eu sei lá! Um deles, a quem eu recusara em tempos a oferta de um par de gazuas (e para que diabo quereria um polícia um par de gazuas? Sempre pensei que os ladrões é que as usavam!), esse, desancava-me com extrema violência. A dor física, porém, não me consumia por aí além. O trabalho na minha oficina era bem mais duro e quanto à fome que me faziam passar era apenas a continuação da fome que todos os dias passávamos no nosso país. Bons repastos só nas Mil e Uma Noites, não é, camarada Ornar? Mas todas as coisas Alá me corte a língua se minto! têm seu fim na altura devida."

Neste momento da sua narrativa Mohamed levantou-se e fez um salamaleque a um jovem muito alto e magro que se dirigiu ao balcão do bar.

"Quem é? perguntei, surpreendido não só com a figura reservada do jovem que acabava de entrar como, sobretudo, com a atitude de respeito, vagamente formal, do meu compadre Mohamed El-Fadl.

"Um camarada palestiniano. Estudante. Em Colónia, suponho. Um dia destes tentarei saber se os posso pôr em contacto o que normalmente não é nada fácil.

"Dizias então tu que...

Uma pausa. Um pouco de cerveja. Mohamed,

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UM CERTO PAIS AO SUL.

agora mais aliviado, como se acabasse de ser libertado de um desses interrogatórios policiais, continuou:

" Ah meu caro Ornar, eu não podia suportar por mais tempo aquelas visitas à polícia, não podia mais com a brandura do bilioso Marmaduke. E muito menos com a crueldade dos seus cães-de-fila. Alá é testemunha de quanto amo o meu país; mas um homem é um homem e um bicho é um bicho, não é? Quis a fatalidade que eu tivesse nascido homem e não burro, e aquilo não era vida de homem, sempre com a merda da polícia às costas. Noites após noites comecei a magicar no meu caso. Só me restava um caminho: abandonar o meu país... deixar para sempre essas praças, esses campos e praias onde me consideravam um estrangeiro, um criminoso... só porque uma filha minha se chamava Liberdade. E, se bem o pensei, melhor o fiz.

"A muito custo consegui atravessar uma, duas, várias fronteiras. Nesse tempo, sair clandestinamente de um país como o nosso, era quase como quem se evade de uma prisão situada numa ilha deserta. Enfim, aqui estou. Mas não you agora descrever essa longa travessia de montes, desertos, mares e países. Talvez noutro dia. Deixei mulher e filhos e aqui me instalei. Mais tarde, pouco a pouco, fui reunindo a família. Alguns morreram e não queiras saber, Ornar, de que morte alguns deles morreram. Bem sabes, aliás, o que fizeste por alguns dos meus filhos; o que por eles lutaram pessoas que nem conheço...

"Nos primeiros meses de gastarbeiter sofri que nem um cão; quase desesperei com o frio, pois comecei por trabalhar nas estradas; com o frio e com a eficiência desta gente. Agora até consigo arranhar algumas frases; trabalhei

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CASIMIRO DE BRITO

muito e muito estudei; e até me lembro, com certo conforto, do tempo em que passava fome por não saber pedir os pratos que me agradavam. Raios me partam: um homem acostuma-se a tudo, ao bom e ao mau.

"Pouco a pouco fui alugando os meus braços, aquilo a que agora chamamos a força do nosso trabalho, a preços mais altos. Das estradas passei para a construção civil, desta para as fábricas: sou, agora, uma peça de uma máquina perfeita; o meu trabalho è rotineiro, sincronizado, mas liberta-me o cérebro. E assim

enquanto trabalho

posso pensar no sol do nosso país, lá muito ao Sul, onde os jornais dizem ter havido algumas revoluções. Diz-me, Ornar: a nosso povo já pode gritar pelas ruas a sua fome? Ou já não a tem?

" A f orne continua, Mohamed. E continuam a perguntar-nos pelos nomes.

"Por mim posso gritar quando me apetece o nome de minha filha Liberdade. Claro que sei perfeitamente que a polícia deste país não compreende o nosso idioma bárbaro."

Vazios, entrámos na noite. Cruzámos a Berlinerstrasse e encontrámo-nos em plena Altstadt. No coração da cidade velha, agitado por homens de todas as raças e lugares do nosso pobre planeta, quase nos sentíamos em casa. As lâminas espessas deste frio eriçavam-nos os músculos. E pouco a pouco o sol infiltrava-se no nosso coração. Como se soubéssemos que, no outro lado das águas turvas do tempo, um pequeno país esperava por nós.

Um pequeno país ao Sul.

AS FÉRIAS OU O TEMA DO FUNCIONÁRIO CANSADO

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A isto chamam vida. A este vazio. A este não saber que fazer das mãos quando, enfim, da máquina (da prostituição) as mãos estão libertadas. A esta mesquinha oscilação entre nada e coisa nenhuma chamam vida. Enquanto nos comem a carne. A vida, no meu caso, António de Almeida, de um funcionário exemplar. Anos silenciosos, obediência, um cursivo distinto, como tem passado Vossa Excelência, etc. E a boca seca. E um cordão de cisco na garganta. Eis o tempo obscuro de uma palavra sempre adiada. A isto, ao meu barro domesticado, a esta voz dócil, ajoelhada, chamam vida; dócil, e na terra derramada.

Aqui estou pois sentado na vida. Impotente. Como quem se senta num túmulo. Os braços, as pernas paralisadas. A cabeça cheia de fórmulas sem sentido cheia de pedras. O sangue parado nas veias, apodrecido por um dique (o Chefe impera do alto da sua solidão e sussurra entre dentes, usando, o usando os olhos por cima dos óculos: "um bom funcionário jamais se apaixona, rapazes; lembrai a eficiência das máquinas; das formigas"); o sangue gelado, contido em seus vasos e controlado pelas conveniências que

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CASIMIRO DE BRITO

palavra (de vidro mas não transparente): conveniências. E que dizer do sexo? Dos rios ressequidos que um dia iluminaram o meu sexo? Minha mulher que o diga, que apodreça também. Se ao menos eu pudesse correr, blasfemar, trepar às montanhas eu que não sei fazer revoluções, nem falar delas; correr durante cinco anos e durante outros tantos anos corromper a corrupção. Mas de que serve queixar-me? Comigo falo.

De que te serve, companheiro, ranger os dentes ? E nada resolve correr ou ser dócil ou sentar-me frente ao fogo. E da violência? A morte continua do ventre ao túmulo e chamam-lhe (sem filosofia) vida! Através deste caminho obscuro tomo nas mãos as contradições da vida, a que, ao mesmo tempo, é, deveria ser, truculenta festa da carne e tumultuosa festa do espírito. É, deveria ser, um acto de guerra do qual sempre saíssemos feridos, amputados, frustrados e mais velhos, e mais cansados, e mais humildes mas sem este sabor na boca, este sabor que nem posso situar entre nada e coisa nenhuma. Nem cúmplices da terra somos; nem quase já linguagem tem o nosso corpo.

Trinta anos. Tenho trinta anos e sinto-me como se já tivesse sessenta. Os olhos pesam-me, afeiçoam-me a tiques nervosos; queimam-se as pestanas ao contacto da luz; os braços, as pernas, o tórax adaptam-se a este tampo de secretária como se a ele estivessem ligados por um cordão umbilical, por magnéticos laços. Prostituição. Os sentidos especializaram-se em contas-correntes; deixaram-se centralizar num sexto sentido que se alimenta de todos os miseráveis problemazitos desta rotina em que se tornou a minha vida. A vida de um funcionário, de uma pedra bem educada. Como se as mãos, os olhos, a memória

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UM CERTO PAIS AO SUL

não tivessem necessidade de nenhuma espécie de motivação para executarem o seu concerto, para representarem o seu jogo de sombra e luz como se elas mais não fossem do que movimentos isolados (comandados à distância) de uma máquina bem lubrificada, perfeitamente ajustada à função para que foi criada.

Trinta anos de vida ou trinta anos de túmulo são, para mim, a mesma coisa. O mesmo afastamento da verdadeira festa: asilo de loucos, campo de batalha, circo ou teatro, praça pública, laboratório de pesquisas, centro de incêndio onde não vivo. Uma vida ou uma lacuna, uma úlcera cavada neste buraco onde sem convicção me desgasto. Onde nos desgastamos?

Através desta crónica de mal viver relembro o espaço obscuro da infância, a pobre aventura da adolescência, o primeiro emprego aos quinze anos numa fábrica de cortiça. E, desde então, um grande vazio, que nada tem que ver, embora às vezes eu me engane a mim próprio, com o grande vazio do samadhi, actividade da mente, meditação que precede o vigoroso passo (embora sentado permaneças) da disponibilidade e, desde esses quinze anos, desde esse primeiro bordel, um grande, um funesto vazio: a sensação de quem foi anestesiado, descolhoado. Assim, tenho gasto a vida (a vida me tem gasto) a fugir daquilo que amo, tal um pássaro, mas não, como disse um dia em versos, como em versos um dia menti, "para não me sentir preso".

Anestesiado. E sempre diante dos olhos, oprimindo-me a respiração, a iniciativa dos gestos, essa parede espessa, intensa, dentro do próprio corpo, esse muro omnipresente onde tateio onde tateamos uma cavidade obscura, um buraco rente ao solo, coberto de lama, teias de aranha,

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uma passagem para o desconhecido, um buraco onde seja possível meter a mão, arriscar um movimento de liberdade, ajeitar uma bomba de plástico, uma granada, o coração...

Esse muro não posso depurar. Um dia, após longos anos de terror, após longas noites de doença, uma doença circular e sem brilho, após ter devassado as trevas dos deuses inferiores (o deus-irmão) e superiores, arrumei, a pleno corpo, o assunto. Encontro agora um papel desse tempo, dos meus quinze anos. O meu assassínio de Deus: "Pura invenção de homens irracionais, impotentes, cheios de medo. Imensa bola de nada crescendo, através do vácuo das palavras crescendo, crescendo. Explicação fácil do caos e da harmonia pressentida ou do caos pouco a pouco desvendado (acrescento agora: desvelado) pelos que, não aceitando explicações simples, se atiram objectivamente para dentro das coisas e dos actos. Zero absoluto; metáfora aberrante." E pronto. Arrumei a adolescência. Mas este muro não posso depurar. Este muro sempre...

... sempre diante dos olhos, colado à garganta, oprimindo-me, oprimindo a tua respiração, a obra do homem, a tua obra, a espessa vigilância do muro: as horas vendidas a baixo preço, as pernas abertas, os domingos arrastados pelo cansaço, as pequenas delações, dolos e corrupções, as palavras catalogadas, a miséria das alcovas, o álcool miserável das horas breves do crepúsculo, o amor que se faz sem alegria (à noite as mulheres recebem nos braços animais cansados; destroços de homens) isto a que chamam vida. Na cela do meu corpo lanço agora os olhos cavados, na cela rudimentar, vazia do teu corpo; fauna e fruto que não sabemos colher; que, envelhecidos, nos colhe à beira do vinho da loucura

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UM CERTO PAIS AO SUL

mas esta loucura não tem nada desses troncos selvagens, desse tirar de água de poços imaginários, desse intenso cortar de lenha quando já é passada a Primavera de que falam teus amigos ausentes. Vida? Há quantos anos sufoco? Há quantos anos apodreces?

Espero agora docilmente pelas seis horas da tarde: espero-as com a docilidade de um verme, de uma máquina. E, no entanto, às seis horas da tarde, serei um homem livre, um homem sem rótulos, um velho funcionário de trinta anos de idade a braços com um problema enfim para resolver: as férias, o parco repouso de quem não criou coisa nenhuma, nem se criou, de quem não sabe que fazer das mãos quando as tem em repouso, de quem necessita apenas de um pouco de ar fresco para não perder a decente configuração dos humanos. Penso na palavra (sim, de vidro; mas não transparente) "conveniências".

Neste tampo de secretária (cinzento, metálico, estéril) converge dia a dia o meu mundo, um mundo sem flautas nem conchas, a teia ténue que lentamente, meticulosamente me enreda os pulsos e adormece os ímpetos. Nem conchas nem obués tem a vida de uma prostituta. Mas quem escreve, dizem-me aqui ao lado, constrói uma ilha. Quem escreve onde? O quê? Neste tampo de secretária os papéis orientam, impessoalizam, escravizam os meus reflexos, o movimento da minha sombra, a capacidade dos meus músculos domesticados. Abre, fecha as pernas. O deserto. Mas, amanhã...

... amanhã, sábado, serás um homem disponível, escreverás o teu canto e o teu canto (contra-canto) te escreverá; amanhã, sábado-domingo-segunda-feira-etc., a teia dos sentidos levar-te-á através da guerra, da circulação intensa de

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CASIMIRO DE BRITO

corpos e de signos, da terra (canto e contra-canto) aberta em boca, desenho de si própria, feita e desfeita pelo teu corpo, olhos, pernas, axilas, língua, pulmões, pulsos, ventre, gestos e um sexo sem peso nem cor: erecto...

Amanhã ? Poderás tu construir, desta máquina sem desejos (sem o hábito de os realizar), um homem disponível? Tu: um homem carregado pelo tempo, de passos lentos pelas esquinas do tédio, um homem agora com a particularidade de ter também, durante alguns dias, um coração. Farás (Manuel, Raul) as coisas mais maravilhosas que um homem pode fazer na vida? Uma gaita! As férias (canta, canta):

gota de água fresca transparente cristalina

dentro da boca seca e de pedra e gretada;

sombra de palmeira de que são feitos

teus pássaros cegos e sem memória;

cegos e sem memória;

as mãos os dentes as pernas as axilas o ventre

o corpo a corpo os cabelos fulvos fascinantes

desprendidos

da solidão;

o sexo a vertigem o caos a morte

do outro esse que

te mata

(canta, canta); amanhã as férias começam; e amanhã que farás? Do tempo, desse pássaro ao que pensas subitamente suspenso no seu voo?

Digo: O sol, amanhã, irrompe na minha vida e só depois de amanhã o meu coração estará novamente ameaçado pelo bafo podre da noite.

Seis horas.

Levitação do corpo.

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UM CERTO PAIS AO SUL

Como souberam os relógios do mundo deste subtil acontecimento que são as férias de um homem cansado? Imagem abandonada por Eça: "uma chama debaixo de água."

Às seis horas da tarde, hoje, agora neste instante, ouço orquestras submarinas, estátuas que voam, búzios há muito adormecidos entre o pó das casas e dos barcos, tímbales, harpas, obués, "a noite transfigurada", ouço répteis outrora sem voz nem delírio, ouço a voz murmurada, sussurrada dos colegas do ofício, oficiantes das trevas, ouço a manhã mais gloriosa neste fim de tarde, ouço a morte que se levanta na vida, a violência dos cascos na calçada, a prudência dos sábios, ouço uma respiração que chama, movimentos que imploram, ouço o ruído dos corpos enquanto, em lençóis de esperma, fazem e desfazem o amor. E ouço, finalmente, a minha voz. "Nada fazer: apenas assistir (é este o nosso mundo) ao comércio da minha morte."

O caminho para casa deixou de ser uma longa travessia na noite. Os ruídos infinitos da cidade deixaram de se ouvir, de se infiltrar, lâminas de carvão, pelos meus ouvidos. As pessoas estavam hoje alegres, teriam todas entrado de férias? E a casa, onde sempre entrei como se entrasse num refúgio, num lugar de exílio, num buraco cavado na terra, cumpriu pela primeira vez a sua difícil função de se ajustar à minha presença sem a ferir, de acolher os meus movimentos com um silêncio generoso, compreensivo e não com esse metálico silêncio dos dias iguais, alugados. A casa de cabeça levantada.

E, na casa, a mulher. Sentada no chão, ouvindo Brahms, à espera. Só agora reparo que tenho uma mulher que ouve Brahms. Agora mais

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CASIMIRO DE BRITO

fresca, mais bela; menos subjugada pelo peso j dos meus olhos tristes, cansaço imenso: j

Chegaste mais cedo, não chegaste? j

Sim, temos agora montes e montes de l tempo. l

Quando quiseres jantar.

Jantar? Dá-me antes de beber? As refeições agora não têm nome. Mais, um pouco mais.

O copo no tapete, a gravata lançada para o cesto da roupa suja, e lá em baixo, no fundo do poço, nisso a que chamam vida, os cuidados mercenários enterrados. Esquecidos?

Respiro. Ouço a minha voz, a tua respiração.

A minha voz tem um som grave, um ritmo nítido. O ritmo de velhos amigos imaginados. Uma voz libertada de uma longa, terrível sufocação. Ao tempo, agora, não o meço pelos relógios: agora o meu estômago, os teus olhos, os nossos dedos entrelaçados (habitualmente distantes) , as mãos, a truculência dos nossos corpos, contarão o tempo. Posso agora andar de um lado para o outro, sentar-me e levantar-me, urinar contra o sol, levar-te comigo para dentro de água quando as chamas nos devastam o sangue, gritar às quatro horas da tarde, errar contas de somar, não fazer contas de somar, esquecer-me de mudar a camisa, ou do meu nome, andar nu pela casa, gritar, delirar, ter vertigens (se as tiver); agora; agora é a palavra.

Meus amigos terão agora um ouvido atento (humilde) encostado à sua voz.

UM PEQUENO ACIDENTE

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Deitados estavam no pinhal. Álvaro e Maria. Ainda nos vemos. Abandonados. Suspensos. Sobre a velha manta de retalhos multicores. Vincos subtis na pele, nos teus ombros; o desnível da cor, de vários tecidos, na tua pele, em pernas e ombros.

Deitados estávamos. Estamos ainda. A nosso lado o velho "Fiat". Cheio de música.

O corpo não o vemos. Ou apenas os braços se os antepomos ao ângulo de visão. O corpo, deitados estamos, não o vemos: nem o rebentar dos pinheiros de dentro de areias cobertas de caruma. Os pinheiros, com sua ramagem barroca, rendilham o céu; são nervos vegetais num fundo excessivamente azul, isso, uma tela de Vieira da Silva. Passam carros, ouvem-se, através da música, vozes que não sabemos se longe ou perto. E como não vemos os pinheiros a rebentar do chão é como se eles estivessem plantados nos nossos corpos que sabemos deitados mas também não vemos.

No entanto, se pouso a caneta, tenho de em alguma parte pousar também a mão subitamente disponível. Também as mãos se fazem com palavras e silêncio, movimentos, detenções entre a ternura e a violência.

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CASIMIRO DE BRITO

O mar, os pinheiros sussurram: vozes cruzadas, perto ou longe, acompanhados enigmas. Movimentam-se, disponíveis, as mãos. As tuas pernas entendidas, o teu ventre descoberto pelos dois dedos do "bikini", os seios (sem nada mais), movimentam-se as mãos sobre montes de água e fogo onde...

Passam carros a caminho da praia. Ouvimos Cimarosa: II Matrimonio Secreto. com palavras e silêncio, o nosso e o de outros, nos amamos. O que buscamos nós? Outra madeira? A penetração incendiária no centro da terra? Onde, o centro? A fusão andrógina dos sexos? E neste país reconciliado, explosão da carne, algodão breve, interior país, o que faremos das armas? Teremos ainda coragem de adormecer à sua sombra? Palavras, palavras... Ou com elas, água e fogo, desformaremos os nossos excessos?

Viver é outra coisa, eu sei. Falamos sozinhos; cruzam-se, as pessoas, na rua, como se estivessem sós; não se conhecem, não procuram conhecer-se; uns escrevem, outros revoltam-se de outra maneira contra o abismo que separa um corpo de outro corpo; vivemos, em público, uma terrível vida privada. Repara nos velhos: olham para o lado enquanto falam; sozinhos; os companheiros do seu diálogo só morreram para os outros; mas também nós, os outros, temos a nosso lado, à mesa, na cama connosco, o silêncio, e memórias.

Voados estamos agora no pinhal. Lado a lado. Um fruto meticuloso saboreamos.

Antes ríamos perdidamente. E temos ainda as mãos cheias de terra seca, escura. E sangue nos dedos, nas unhas. Ouvíamos Cimarosa no rádio do carro. Eu tinha-te dito:

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UM CERTO PAIS AO SUL

Se metermos o carro na mata poderemos ouvir H Matrimonio...

E tu:

E comer uvas...

Arrumado o carro, aberto o "capot", estendida a manta de retalhos, tu sabias que eu então diria:

Acampamos aqui...

E eu que tu responderias:

Aqui ou um no outro tanto faz... Voados no pinhal lado a lado. A caruma dos

pinheiros emprestava ao solo uma claridade rara.

Uma pressão rápida do volante, uma guinada para a direita, um mergulho para fora da estrada. Dois segundos depois o carro estava plantado na areia. Plantado, enterrado com seus metais abruptos. Que se lixe!

Recordas-te a calma imensa que representámos?

Desenterra aquela roda que eu desenterro esta.

Sim, mas depois...

E sempre Cimarosa no ar, sobre nossas cabeças. Sobre o meu rosto debruçado no teu. Um rosto sem idade (de tanto haver amado, de tanto haver vivido o amor, o silêncio). O meu rosto sem idade reflectido nuns olhos de oiro. O sol a pino. Olhos nos olhos. Foram trocadas palavras?

Se palavras foram trocadas não (de palavras) me lembro. Talvez tu...

O amor foi uma só imensa sílaba quando, sobre as dunas estendidos, nos libertámos do rio caudaloso de palavras que entre nós corria. Deitados nas dunas, de bruços, na areia escaldante deitados, o teu rosto e o meu virados um para o outro ("Picasso, La Jeunesse, 1950", acrescento

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CASIMIRO DE BKITO

mais tarde)e, pouco a pouco, o silêncio ej pouco a pouco, dentro dos olhos, ao lado do meul e do teu corpo subitamente lavados, um carrol enterrado na areia, um velho "Fiat" cheio dei música e de movimentos inacabados. l

O sol a pino sobre os nossos corpos de iodo. I E depois as mãos. Um rosto e mãos sem idade l visitadas por outro rosto e outras mãos também j sem idade. ,]

As nossas mãos, os nossos rostos cobertos i de suor, imitavam agora a convicção profunda i de quem sabe que ("desenterra essa roda que eu < desenterro esta") um pequeno acidente pode vir a transformar-se no acidente. Chegaram então os guardas-florestais.

Precisam de ajuda?

Sim, se não se importam... pensámos que o chão era mais firme...

Areia, apenas areia; a vegetação enganou-os...

Atirámo-nos ao trabalho. Depois de algum esforço o carro rodou. Deixá-lo rodar.

Vai umas uvas?

Deitados na mata, quase junto ao mar, deitados sobre dunas, um sobre o outro, os pinheiros é como se estivessem plantados nos nossos corpos.

Nos nossos corpos que não vemos mas estão deitados, estavam deitados, e somos nós, e parecíamos assim mais longos, e ouvíamos o mar.

Os ramos altos dos pinheiros disparavam sobre nós pequenas espadas quebradiças.

DEKA-ME RESPIKAK UM POUCO

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Pouco a pouco descubro (agora? nessa noite?) que a vida só vale a pena pela qualidade e a qualidade da vida só se nos oferece mediante a destruição do passado e do futuro, de memórias e desejos abstractos, de hábitos e vícios, e assim dou fogo, pobre fogo o meu, atrofiado por uma juventude insular, entre grades, o mar, Espanha e polícias várias pobre fogo o que ouso dar à imaginação, que dos destroços se levanta, de uma vida abortada, de uma árvore subitamente debruçada sobre as suas raízes. Um grito contra a poluição do homem, a que lhe envenena os sentidos, o bicho truculento da inteligência, hibernado bicho, o grande vazio de um homem...

Em que pensas pá ? Parece que estás a milhas. Nem reparaste ainda na moça que, na Ana Maria... ouvi, vagamente, as palavras de Carlos Alberto, mas...

... um grito contra a poluição, memória de pedras, a peste, a doença que te destrói pouco a pouco, entre grades e sono, ópio lento do fascismo, e a violência, e os interrogatórios, "quando Você escreveu este verso, isto é um verso não é?, certo povo romântico ouve por terra/discursos

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CASIMIRO DE BRITO

de um velho fantasma, a que povo se referia! Você, a que velho fantasma?, ao nosso povo glo-'j rioso?, ao nosso venerando presidente?", hiber-: nado bicho, o grande vazio de um homem. Ou nem isso ou talvez apenas um pobre grito, ele mesmo poluído.

Mas que tem isto a ver com aquela noite ? i Ou aquela noite, uma entre tantas, com os caminhos deste livro, deste tímido monólogo sobre a depuração de um homem?

A voz monocórdica do interrogador rompe-me | os tímpanos. Outras armas não tenho, nem sei. Ouvi então a minha voz: j

Vamos para minha casa. Não posso mais 1 com isto, toda essa gente a representar uma vida j que não vive, uma vida falsa. Tomamos uma úl- l tima bebida e podemos ouvir um pouco de música, í

Em tua casa? Uma vida autêntica?

Eu não disse isso, mas em minha casa não . é preciso representar. ;

Não é?

As companheiras de Ana Maria vieram também. E os companheiros delas, João, aprendiz de arquitecto e Carlos Alberto, estudante de medicina.

Eu não digo que não se representa em minha casa, tu sabes o que eu penso do teatro e da vida, mas, entre poucas pessoas, é possível repetir uma fala, uma cena...

Ê possível repetir a vida?

O tema da universidade rompeu com a sua habitual virulência: os problemas essenciais da nova onda da política internacional e a todos os níveis, a classe sem estatuto, o Festival da Vida contra a Convenção da Morte, Jerry Rubin, os avisos de Maio, a primavera de Praga, a Yippieland, entre chamas, entre chamas também, e ódio,

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UM CERTO PAIS AO SUL,

os átrios das universidades portuguesas... Os jovens têm a percepção (e também, agora, a ciência) de que pretendem domesticá-los em tubos de ensaio, nessas universidades caducas, de maneira a funcionarem grotescamente, disciplinadamente, eficientemente, nessa no man's land, a que chamam também sociedade de consumo, humildes, humilhados servidores de uma sensível bola de neve... caminhando, atropelando-se, correndo ofegantes para um futuro que não existe.

Um buraco enorme, há que fazer um buraco nisso tudo.

Sentados em círculo, no chão.

Anchovas, vodka (onde arranjaste a vodka? alguém, não sei quem, a deixou aí...) e azeitonas. E figos secos + aguardente de medronho. Isso, em honra do burgo.

Sentados em círculo estávamos nessa sala desmobilada: apenas, a um canto, um pequeno gira-discos, e por todo o solo, a desviar à medida da necessidade de espaço, necessidade de corpos, penumbra, livros, uma lâmpada e mais livros nesse pequeno palco estávamos, depurado palco onde, quando rigorosamente sós, falo agora de Maria, passávamos longos dias escutando a paz, falo agora de música, observando o quase imóvel movimento de minúsculos objectos, coisas do dia-a-dia, papéis rascunhados, receitas de cozinha, um brinquedo para Sabrina, algumas peças de fruta e as pedras ou conchas ou toscos cepos calcinados por inúmeros sóis que trazias das praias. E fotografias nossas e dos nossos amigos, e uma estatueta do João Cutileiro, Jovem sentada sobre um pé ou apenas escutávamos, bebíamos, activa contemplação, a terra do nosso corpo, terra microbiana, rapidíssima, e por vezes ali ficávamos de costas estendidas no ta-

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CASIMIRO DE BRITO

pete, como quem ouve a vida, como quem faz amor mentalmente, ou apenas sabe...

Então, então, por onde andas agora?

... Ali estávamos agora em círculo, é verdade, estamos aqui, primeiro atrofiados por palavras excessivas, podridão, apocalipse, revolução, socialismo, e depois, pouco a pouco, trocando-as pela música, a minha cabeça pousada no colo de Magda, escutando os Dead Drunk Blues de Margaret Johnson, a Lippi Wallace de You gonna need my help, e eu não sabia se estava em minha casa, entre amigos, ou ainda, dois meses antes, numa dessas caves cheias de fumo e gentes remotas, várias e desvairadas gentes, vândalos com a humanidade entre as mãos, Greenwitch Vilage, se a música era o contraponto das minhas recordações ou se dentro da música elas se dissolviam.

(Temos de queimar o tempo...

E as memórias...

E este país quem o queima? Quem o limpa?)

e assim destruíam todas as pontes, túneis e labirintos que ligam um homem ao plasma donde lhe_vem o ar que respira, os alimentos, o iodo, a tesão, as chicotadas do vento, a pele sempre agredida, a unidade vilipendiada de um corpo em sistemático estado de sítio mas agora, mas agora contigo adormecida a meu lado (as coisas fantásticas que sabias fazer com a tua boca mais íntima!), contigo aberta a todas as transgressões, é ainda o coro que há pouco levantámos que me rompe os ouvidos, ouço-o, ouço-me ainda enquanto me debruço sobre o caderno onde nessa noite reproduzi o teu corpo. Alguém tinha escrito na parede: "Que se foda a guerra."

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UM CERTO PAIS AO SUL,

As nossas vozes em uníssono cresciam nos versos mais cristalinos de Manolo Diaz, los pueblos vivian en pas, nunca he sonado nada igual, vozes da terra que ouço agora, uma vez mais, enquanto reconstruo este caminho.

Quem falou em violência?

Conheces outro processo?

Quando, enfim, esvasiámos a segunda garrafa, iniciámos um jogo. Esgotadas as palavras, desconfiados delas e sem imaginação para manter o ritmo de seis corpos ainda desconhecidos uns dos outros, ou quase, optámos por uma brincadeira colectiva, e assim nos ligámos uns aos outros por regras, pelas exigências de um caminho comum.

Deitámos uma garrafa vazia no centro da sala. A garrafa seria rodada e por cada paragem a pessoa para quem o gargalo apontasse tiraria uma peça de roupa.

Mas temos já tão poucas! reclamou, percorrendo com as mãos o corpo quase nu, a pequena Magda.

Tanto melhor disse eu. Podemos, acabada esta, iniciar outra coisa, há que matar o tempo...

Na sequência desta, não é? adiantou Cidália, perguntando logo a seguir: Mas faz parte também das regras do jogo essa outra coisa?

Não, não, cada um é livre de lhe dar ou não continuidade disse João. Mas não é melhor deixar andar a coisa e pensar depois no depois?

bom, vamos então ao jogo cortou Ana Maria, e deu um piparote na garrafa.

Entre velhos amigos esta espécie de roleta seria desnecessária. Talvez não fosse mesmo pos-

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UM CERTO PAIS AO SUL

sível. A pele de uns e outros estaria distribuída, ! respeitar-se-ia a merda da propriedade privada, cada corpo seria coutada de outro corpo. Agora, í porém, entre jovens companheiros sem comple- i xos de posse, ouvindo música, tranquilamente, alguma coisa é impossível? \

Cresceram os risos quando a garrafa começou a rodar, risos ainda inexpressivos, entrecortados por referências aos trapos existentes:

Eu só tenho três peças dizia Magda, já descalça, e sem necessidade de soutien para conter os pequenos seios.

E eu algumas nove disse Carlos Alberto, levantando os pés e oscilando-os como quem diz: "Só nos pés tenho eu quatro."

Ah, mas tu podes calçar-te, Magda disse-lhe eu. l

Não vale a pena, teria menos possibilidades de ganhar. ]

Ou de perder? murmurou João. ; Rodou, rodou e ficou virada para Cidália. ' Cidália tirou uma sandália e sentou-se sobre ;

o pé descalço.

O arquitecto, contemplado com a segunda rodada, pretendeu oferecer logo duas peças, alegando o excessivo calor. Mas as regras do jogo deviam ser respeitadas.

Uma sandália,

um cinto amarelo,

uma saia,

duas,

um soutien cor de pele (Ena, Ana Maria, que coisa tão, tão, como direi, favoravelmente imperceptível),

avolumavam-se a um canto.

Uma blusa, a de Cidália, atirada para o ar, tinha ficado presa num dos quadros existentes na sala. "O espelho", de Bartolomeu.

Ray Charles, agora, também connosco. E o calor que parecia aumentar ao mesmo tempo que a roupa nos abandonava. O fogo, "o principal elemento do teatro espontâneo", quem o disse?

E já a garrafa rodava novamente, sob os nossos olhos, e já a garrafa, pela segunda vez, se virava para Magda, a das três peças, a meu lado adormecida. Levantaste-te e pediste-me para te ajudar a tirar a blusa, corrida junto ao pescoço por um fecho eclair. Puxas-te-a depois pela gola, o indicador e o polegar de cada uma das mãos, por entre os cabelos, como se viessem de cima, e puxaste lentamente a blusa, lentamente, e então os teus seios desprenderam-se agressivamente, contrastando com o brilho tímido dos teus olhos:

Então, gostam?

Enfim, eu sou o contraste disse Ana Maria. O que uma tem a mais tem a outra a menos.

A mais? A menos? disse eu. Vocês são perfeitas. Como poderias tu, com o teu corpo, equilibrar os seios de Ana Maria?

Bem, bem, cada um mostra o que tem, dá, se quiser dar, o que tem. Eu, por exemplo... João.

Eu já sei que tu, mas não te preocupes com isso, eu não me importo disse Cidália.

Bob Dylan, James Brown.

Anchovas e azeitonas. Pão não havia.

Dançámos.

Alguém sugeriu que se apagasse a pequena lâmpada, arrumada a um canto, alguém, Magda suponho, mas a maioria optou pela claridade

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ah, mas não devo perder-me com detalhes, isto; não é um relato de coisa nenhuma, apenas uma] memória, apenas a nua suspensão do incantável. l

Silhuetas, nuvens de torn violeta, deglutiam- i -se na parede ao fundo, nuvens ou corais ora ré-, talhados, ora imiscuídos uns nos outros, como se estivéssemos perante a sombra de um corpo único, multiforme, de um barco cujos mastros ora se distendessem, ora se encolhessem tal as antenas de um caracol gigante. Lefs spend the night together, ritmava um coro pop ao qual as nossas vozes se associavam, as nossas vozes, os nossos gestos em câmara lenta, o movimento quase insular do animal fantástico a que dávamos forma.

Deixa-me respirar um pouco.

Ali, na parede imóvel, imóvel como todas as coisas que não conhecemos por dentro, reinava o nada, o arbitrário, e esse nada era o reflexo exacto, o fluxo e refluxo dos nossos corpos amalgamados, colunas de mercúrio, acompanhados num jogo mecânico e no entanto tão sós, tão sós como este mundo velho, fugidio, turbulento, perfeito talvez, tão sós e velhos como este cansado país onde trocamos o sangue e o tempo como quem faz comércio de coisas minúsculas.

Deixas-me tomar um duche?

Linda ideia, vamos todas acrescentou Cidália.

A casa de banho é ao fundo do corredor disse eu. Nós já lá vamos dar uma ajuda.

Pouco depois entrámos também. Vocês cantarolavam, deliciadas, debaixo do duche. As três ao mesmo tempo.

As três graças disse João, enquanto, meticulosamente, como quem se afasta para ver

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melhor a sua obra, colocava em simetria os vossos corpos. 'As três graças!

Disseste: as três garças?

Ana Maria: Garças, graças, desgraças, lá estão vocês a jogar com as palavras.

João, futuro arquitecto, dispunha dos vossos corpos, como se compusesse os membros de um friso de modelos profissionais.

Cidália: Depois será a nossa vez de fazermos algumas experiências.

Que experiências? perguntou Magda. Cada gota de água incidia na vossa pele como

num espaço metálico, sobre os vossos ombros, imiscuia-se nos vossos cabelos, e projectava-se, multiplicada em subgotas, ou deixava-se escorregar por cinturas, nádegas, ancas, confluindo no ventre, aroma tranquilo, na plumagem desigual dos vossos sexos, e caindo então, associada a outras gotas, fresca estalactite ruidosa, na banheira, entre as vossas pernas.

Carlos Alberto, o mais jovem de nós, fumava o seu cigarro ininterrupto; e também vos fumava.

Carlos, ainda não... Deixa-me antes... Madga: Há muita luz aqui. Olhando-as, nuas, sob o duche, eu senti um

velho desejo de adorar, uma nostalgia desconhecida, um desejo imediato de adorar mas também de saborear, de comer, de lutar, de ser trucidado, de pousar os lábios na tua pele, no mais íntimo da tua terra, de pousar, repousar em sítios musicais, em pântanos onde a máquina da vida se faz e desfaz.

Falo, aparentemente disponível, terrivelmente excitado, de uma terra que se possa desfazer com as mãos, de umas mãos (olhos, boca, sexo) que possam desfazer-te como se fosses terra, dimensão felina, terra vegetal, cheia de prazer e de

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dor, e outra coisa não és, outro ofício não sabes^ Mármore escorrendo água. ':,

As vossas mãos em movimento, mãos, braços, ao alto, ou dobrados, ou ao longo das ancas,' parecem seres independentes, pequenos pássaros^ de Chagall, ombros, braços sensíveis, troncos de| argila. Erguidos os braços, esvoaçados, como se j acariciassem o ar em volta, ao alto e depois ao ] longo do corpo, como se o despissem de algas, | folhas amarelas, restos de esperma, minúsculos l vermes. E também braços nos ombros umas das j outras, árvore nua, desenho puríssimo. Cabelos j torn de ouro-mate, cobre, azevinho.

Então não encontras o disco de que falaste?

E os seios? Pequenos, trémulos, os de Cidália; volumosos, voluptuosos, os da pequena Magda; envergonhados, quase imperceptíveis (eu sei, eu sei: o amor os levanta e aperfeiçoa) os teus. Desculpai-me, troquei os vossos nomes.

João para Magda: Se soubesses a fome que tenho.

Ela: Espera um pouco... Está-se tão bem debaixo de água.

Dificilmente haveria espaço para nós na banheira onde as três companheiras agora se sentavam; sentavam-se na borda, de costas para nós, ensaboando-se, rindo, fazendo durar quanto podiam o prazer de assistir à explosão do nosso prazer; dificilmente poderíamos participar mais activamente nessa festa de corpos nus e frescos, desprendidos na nossa presença, deformados agora por brancas nuvens de espuma.

Então, meninas, então? dizia Carlos Alberto, rodando na mão um copo quase vazio.

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Vocês acabam por apanhar frio.

Frio? Dá-me alguma coisa que se beba, anda.

Puz enfim um disco no pick-up, uma velha canção etíope, uma monocórdica canção de amor e flagelação:

Ahay Laminai, libertai-vos destes corpos de jade

ó movimentos antigos da terra Ahay Lominai, libertai-vos destes corpos ma-

[tinais,

iluminações da noite

Ahay Lominai, libertai-vos destes canteiros flo-

[ridos,

ó velhas virtudes da guerra

uma canção de amor, inumerável suplício, flagelações, enquanto os meus olhos faziam o jogo dos vossos gestos e a minha pele pouco a pouco ardia, violenta combustão, e esta minha vocação antiga de adorar e lutar, de...

... puxei-te então para mini; não ofereceste resistência; estendi uma toalha e com um gesto convidei-te para dentro dela; e rodaste o corpo colado à toalha, lentamente, com as mãos ainda nos cabelos, afastando-os dos olhos, e, acompanhando a pressão dos meus dedos, ficaste de costas para mim. Húmidos.

João e Carlos Alberto, ainda vestidos, meteram-se na banheira.

Oliveiras ao vento, neófitas deusas do amor ou jovens putas tão velhas como a vida, sementes maduras em áridos planaltos, oliveiras ao vento, chama e alimento da nossa precária erecção, os vossos corpos molhados e cristalinos eu canto, eu descrevo e destruo. E os louvo, e vos

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UM CERTO PAIS AO SUL

louvo jovens prostitutas sereníssimas, folhas de papel sempre em branco, e subitamente por vezes; uma noite e um lago e um salto em águas subitamente lavadas e tranquilas...

De costas para mim; trouxe-te então nog braços (Ana Maria; quem nos pode deter?), enrolada na toalha, como quem traz uma filha pequena, para dentro desta cama onde agora, en-^ quanto escrevo, enquanto tracei a primeira de-1 mão desta aguarela, és, eras, uma flor adorme- < cida. Flor, moeda de sangue, montes de pó. ]

A cabeça inclinada, os lábios estendidos; um , segundo depois a minha língua penetrava na tua ! boca, e o teu corpo, ainda molhado, pressionava i convulsivamente o meu. As nossas mãos, cruza- i das nas nossas costas, encontraram-se subitamente uma junto à outra, umas e outras, as mãos, a sabedoria dos dedos, fixadas em sexos, como se reconhecessem objectos que sempre lhes tinham pertencido.

A toalha jogámo-la para longe.

Agora era apenas o teu corpo em movimento, a tua pele (bem fornecida de iodo, à excepção de dois pequenos triângulos no ventre e nas nádegas, e de outros dois, mais pequenos ainda, em redor dos mamilos) húmida, de uma humidade que pouco a pouco deixava de ter o odor passivo da água e se tornava amargo e ao mesmo tempo doce, gelado e ao mesmo tempo incandescente.

Resoluta, imperiosa: Por terra, sim, no chão murmuraste, forçando-me a acompanhar a queda do teu corpo no tapete, no tapete que também jogámos para o outro lado.

Constipas-te, o chão está frio.

Quero lá saber disse ela, enquanto me arrancava as calças e me puxava com força febril.

Agora era apenas o teu corpo em cena. Deixei-me ser apenas espectador, ou antes figurante, um desses espectadores-figurantes ansiosos (mas também receosos) de ver chegada a sua vez de irromper no centro das luzes, lá onde por vezes é também o centro da noite ou do incêndio.

Õ meu Deus! e mordias os meus lábios, e os teus.

Uns dedos macios, incisivos, velozes, e depois excessivamente lentos, e de novo rápidos, ríspidos; os teus lábios incansáveis, incontrolados, esmagando-me, amaciando com a língua o esmagado; as tuas pernas ora alongadas, ora cruzadas sobre o meu ventre, ora dobradas nos joelhos; os teus cabelos soltos sobre o meu rosto, a tua cabeça descendo-me pelos ombros, fazendo uma pausa, repousando-me no peito como quem escuta com o ouvido no chão, e depois deslisando pelo meu ventre, enterrando-se entre os meus joelhos, inundando-me de água lá onde a água é um fruto maduro, interior, explosivo...

Agora, agora.

Isso era belo. Isso, lá no fundo, nessa clareira de chamas que não queimam, que são repouso e respiração.

E então as minhas mãos crisparam-se, e todo o meu corpo, como se tratasse de um túnel, foi visitado por um ar mais sólido, perfeita respiração, oscilação de flores sob o vento.

Deixa durar, deixa durar...

Libertos, enfim, da rotina dos gestos e das palavras; como quem encontrou uma nova dignidade, a corajosa fusão de dois corpos disponíveis à beira da morte; assim resvalámos no tempo, na praia estéril, no esterco iluminado que ali trocámos e com ele nos trocávamos. Universos ambíguos, o teu corpo e o meu, campos cultivados

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e desvastados pelo amor, (Deixa durar um } pouco mais, um pouco mais), preparados para a guerra, obscuros universos cuspidos para dentro ! de um poço cada vez mais claro, mais colorido. *

E podia ainda acrescentar (agora só me restam as palavras): ideogramas (do amor e da morte) foram gravados na pedra por dedos, por ', sexos ciosos de originalidade, dedos inconstantes, sexos irreverentes, dessa inconstância violenta que nada no entanto pode contra o objecto insaciável que somos, sensível matéria desdobrada em actos cheios de fecundidade, ridícula fecun... !

... ou podia simplesmente deixar-me de tretas (palavras), deixar-me destas manchas caóticas, e narrar o mais linearmente possível: Os meus dedos enterraram-se nos teus cabelos e deslisaram vagarosamente pelos teus ombros, os teus i dedos, quase ao mesmo tempo, deslisaram vaga- ', rosamente pela minha cintura e enterraram-se junto ao meu sexo, os frenéticos domicílios do amor (tretas, ainda) foram pouco a pouco desvendados, visitados, despertados, inundados de \ luz, ruídos, silêncio, movimentos, notas de mu- j sica, etc., & a plenitude de todos estes movimentos cruzados no corpo de um homem e de uma mulher foi-se então tornando num rio, etc. etc.

Ou apenas dizer: fomos para a cama, e nada mais.

Ou nada dizer.

Ou ainda enumerar, descrever com minúcias aparentemente estéreis, o movimento, ora lento, ora desenfreado (as palavras seriam então outras) de: duas cabeleiras, duas bocas, quatro olhos, quatro braços, quarenta dedos, dois troncos, um mais escuro do que o outro, dois seios, quatro mamilos, e as subtilezas da cor deles, e quatro pernas, e mais os ombros, axilas, ancas,

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nádegas, joelhos, sexos, a tua cona magnífica, e descrevê-la como quem descreve a polpa de um fruto invisível, dois sexos outrora divididos e durante alguns momentos unificados, unos, um só, por momentos reencontrados na ilusão, na húmida ilusão da desde sempre irrecuperável unidade. ..

E podia mais, e podia ainda: inventar o que eu pensei & o que tu pensaste & as palavras que podíamos ter dito & acrescentar às palavras que podíamos ter dito outras palavras que talvez nunca tivéssemos dito em circunstâncias semelhantes...

Por exemplo:

Usas alguma coisa?

Não há problema, tens medo?

Se tenho medo? Medo do meu sémen? e podia falar-te então desse medo maior e maior alegria, rio incessante, epidémico, do medo, da doença, do sangue do homem...

Escrever ê também uma transgressão.

Escrevendo deformo a realidade, acrescento-me, fecundo ou decepo a hidra de mil cabeças a que chamamos realidade.

As palavras (pedras escorregadias) são difusas e translúcidas, nada têm que ver com os sobressaltos e vertigem do corpo, nada esclarecem sobre as colisões do meu corpo com os outros, da minha vida com a de outros, e no entanto é com estas armas minúsculas e quase sem gume nem pólvora, e apenas com elas, agora, que eu posso construir a minha casa, e caminhar, "deixa durar um pouco mais, um pouco mais", de surpresa em surpresa.

Também tu sabias que poderias fazer durar o prazer o tempo que desejasses. Bastava que te mantivesses assam deitada, tranquilamente, bei-

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CASIMIRO DE BRITO

jando-se apenas com a polpa mais íntima do teu sexo, fruto maduro, respiração, lento suicídio quase sem movimentos, boca na boca, repouso de guerreiro.

Deixa durar, podemos estar assim quanto tempo quisermos. dizias, conhecedora profunda dos mistérios do falo, da luz subterrânea.

As coisas fantásticas que sabias (onde estás tu agora?) fazer com a língua! Areias flamantes, enigmáticas plantas, ímpeto de águas correntes, hálitos, pulsações, nuvens, infância de ossos, obscura lentidão do fogo e do pó, movimentos curiosos de um sol inesperado as coisas maravilhosas que sabias fazer com a tua boca mais íntima! Algas liquefeitas, um contra o outro espalmados, ó pedras, ó confrontação de chamas efémeras, visitados fomos pelos alimentos insólitos da hipnose, dilacerados, fugitivos, e ali ficámos, ali, campo de intermináveis orgasmos, subitamente feridos, subitamente separados pela mesma lâmina, abandonados num longo descampado, e pouco a pouco mais distantes um do outro, mortos, exilados.

Deixa-me respirar um pouco.

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VIAGEM INTERIOR

Se o espírito conserva a SIM unidade As dez mil coisas são de uma só e mesma essência.

T'sen T'sang
Uma praia noutro planeta. Terei memória bastante? Uma praia de cores impossíveis bêbedas erectas calcáreas: o mar ultravioleta as casas (corpos) oscilavam na crista das ondas e respiravam enfim e eram perfeitamente redondas e mais brancas do que o branco até então em outros labirintos conhecido. Perfeitamente instalado eu estava, eu estou na minha gaiola de cristal azul quando a húmida vegetação da lua (frágil satori) me inundou os pés: algas anémonas amêndoas brancas e águas translúcidas começaram a crescer a trepar-me pelos joelhos árvore nua axilas e então já eu tinha abertos todos os olhos todos os ouvidos da pele talvez doente. Tempos disformes e paralelos; convergentes; divergentes; um labirinto sem muros; alta comunidade: nem mestre nem servidor de ninguém...

... servidor de ninguém mergulhas nas águas no que pensei fossem águas ou semelhança delas. Águas? Monótono xadrês. A sensação de quem faz amor, água ou semelhança dela, com uma máquina violentamente líquida, labirinto, canto

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CASIMIRO DE BRITO

incompleto, objecto só de orgasmo feito. Spore. Terás memória bastante? Enquanto vivo as coisas, a usura, o nojo, viagem através de labirintos líquidos: pensar, enquanto as vivo, me vejo viver, na maneira, como um dia, mais tarde, as descreverei...

uma estrela maris descreverei; no meio da aurora; no meio de altos montes cavados no silêncio. Eras o único instrumento musical da minha festa: um lago onde se não tem medo. A caminho das origens da unidade (nada tomas ao acaso; nada deixas inacabado); da luz maleável por entre os dedos todos do corpo; e debaixo das águas lisas encontraste outras casas esféricobrancas; nelas se abriam por vezes pequenos orifícios fendas lacunas medulares de onde saíam ou entravam ofegantes corpos esguios ou fumo ou aves sem espaço ou cores apenas...

... ou cores apenas, aves, ou fumo e já o sexo me flutuava por entre porcelanas antigas montes de rosas (sem cor) e papéis conspurcados por pensamentos sem objecto; esse rio sem margens; inimigo de outros homens mas não da música, de símbolos, de cursos de água; labirinto de labirintos â tua vida; flutuava-te o sexo por entre algas e porcelanas antigas: a cintura as axilas o pescoço liquefaziam-se como se pedras fossem inundadas por lagos desde o seu centro a caminho de que bolor, de que origens ? Ou fumo ou aves ou cores apenas: corpos que depois, ao tocarem-se uns nos outros, provocavam estranhos ruídos, aumentavam de volume e tomavam inesperadas configurações cheiros movimentos pálpebras colorações. Um ciclo muito breve de humildade...

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UM CERTO PAIS AO SUL,

... humilde, inesperada, a cabeça aumentava de volume, aumentava desesperadamente, transformava-se num balão meteorológico em espiral; e por cima do corpo calcinado desatado almariado o cimento vermelho incandescente do tecto grutas ao alto flores metálicas onde o teu corpo (a casa) oscila entre a terra e a luz e a luz e a terra. Todas as coisas acontecem agora; a mim; as de ontem, as de quando amanhã talvez te já não lembres deste rio. Transforma-se num zoólito o que me parecia antes (no início de quê?) um aerólito. Alguns (penso: esqueço as vossas tão subtis diferenças) nadavam ou levitavam na direcção da praia da sempre praia onde começam e acabam a fornia a ferida das tuas palavras...

... outros (zoólitos? pátios despovoados? palavras?) despedaçavam-se na sua própria sombra; e dela. renasciam; segui alguns deles, fiz música, amei-me, acendi velas nas pontas dos dedos e saltei para cima de mim de pulsos cortados sono desmesurado e não me surpreenderam. Sósias meus. O labirinto ou um labirinto de labirintos ? Então meus pés encontraram o que sei ser a cauda de um fósforo ou peixe luminoso ou máquina muito macia. Mergulhei para o centro da inundação lá onde o azul e o vermelho desconhecem as suas fronteiras; as tuas, conheces? e os hábitos da guerra elevaram-se onde este homem é todos os homens; humildemente...

... humilde, mentes. Que outro comércio poderias realizar? No centro da inundação, onde as fronteiras confluem, mergulhaste; como quem acende um fósforo (ou peixe luminoso) e pega

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CASIMIRO DE BRITO

fogo aos ossos: a meus ossos edificados sobre o chão mais vivo. Sósia meu. Vivíamos em universos simultâneos e feria-nos a mesma dissolução; vastos espaços flamejavam entre nossos músculos colados reconciliados; ogivas paisagens suspensas no deserto; árvores de luz; a uma delas trepei e ao olhar em volta fiquei cego. Humilde, menti. Quando, as águas...

... as águas, quando se apagam, lembram-te os álamos da morte. Assim a tua comunidade. Subitamente, sobre o teu chão mais vivo, as águas se apagaram e fiquei menos velho menos velho menos velho sentado a meu lado frente ao mar sentado frente ao mar do meu corpo sentado menos velho menos cavado pelo teu corpo (a casa) menos velho menos velho deitado sentado sobre um monte de palavras inúteis limiar do canto ou sobre o teu corpo ou quase...

A CRUZ-DE-GTJERRA

(algumas cenas)

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Uma cidade embandeirada com cifrões; incrédula; uma cidade aspergida com fogos de artifício no meio da noite sem nuvens da memória; eis que são chegados os sobreviventes da grande batalha

um, dois

um dois três

quem vem atrás é maltês;

um dois

um dois três

morrem os homens ficam os reis

ei-log que parecem escaravelhos deglutindo-se num écran gigante; vêm de rastos uns, de muletas os outros, e os que vêm inteiros (poucos) arrastam os estropiados, e os estropiados, os que se não deixaram abandonar debaixo de uma árvore com uma bala final, trazem os bolsos volumosos; trazem, nos bolsos, as chapas de identi-

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CASIMIRO DE BRITO

ficação e as medalhas coloridas dos camaradas mortos; ou um relógio; ou um dente de ouro

foi uma bela batalha (flash-back) e os mortos pareciam uma chuva de estrelas

um dois

um dois três

morrem os homens ficam os reis

ei-los agora em grande plano os sobreviventes; de que planeta imigraram estes pássaros sem plumas ?

A cidade aplaude; berram as fanfarras; acenam revoadas de lenços brancos; ouve-se já nitidamente o cacarejar dos generais e dos ministros; funcionários corcuvados detêm nas mãos inúmeras caixinhas pretas; altifalantes derramam ruídos na planície áspera:

chegaram os nossos heróis; comecemos a cerimónia: todos os mortos serão galardoados como se estivessem vivos: com o nosso respeito: com a nossa dolorosa memória: e com a cruz de guerra

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UM CERTO PAIS AO SUL

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saltam as primeiras fitas de mil cores; o fogo de artifício desenha-se em cascatas; ribombam os bombos; e palmas e palavras e vivas:

louvemos os nossos heróis: aos mortos a cruz de guerra: com devoção a entregamos à suas viúvas, a seus velhos pais, aos infantes de tão valorosos guerreiros: os moribundos terão também a sua pequena medalha

os olhos dos soldados por sepultar, os que esperaram por este maravilhoso instante de suas vidas, incendeiam a noite; olhos de samurais metalicamente sobre brasas:

então apenas os mortos merecem a cruz de guerra? e nós, os quase-mortos, apenas esta medalhita? que pensarão de nós nossas noivas, nossos ftthos?

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Eis que os soldados mais amarrados aos seus farrapos, chagas e membros mais ou menos amputados, despertados pela voz do companheiro, se levantam da sombra, amparados uns aos outros, e começam a última batalha; lutam agora uns contra os outros; é uma luta (lúcida) de morte

um dois um dois três

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CASIMIRO DE BRITO

se morrem os homem quem mata os reis?

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as câmaras de televisão registam ao vivo a mais viril das batalhas; o sangue escorre sem terror nem esperança pelos pátios da cidade embandeirada; suspendem-se no ar os ossos mais íntimos; como quem inventa um novo ritmo; o reflexo de armas confunde-se com o vazio de corpos que já não respiram; irrompem cadáveres onde antes os cadáveres já não irrompiam; ondas descontínuas as águas que perpassam agora no teu pequeno écran

assim, estimados telespectadores, confeccionamos os nossos heróis

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E entre o céu e a terra o sangue jorra; entre as dez mil coisas que não tiveste tempo de nomear; braços são cortados e lançados ao rio; e não mais o uso e abuso dos mesmos gestos; silhuetas em busca de um espelho atravessam a noite enquanto dormes; ossos e ossos e ossos e ossos; os estudantes gritam (no anfiteatro da faculdade; junto à casa que o viu nascer; no cemitério guardado pela polícia; na praça grande da cidade): assassinos, assassinos, assassinos mas quem assassina continua a assassinar; e entre a terra e o céu o sangue jorra; e morres, ou matam-te, antes de teres nomeado uma só das dez mil coisas que gostarias de nomear

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UM CERTO PAIS AO SUL

um dois

um dois três

morrem os homens ficam os reis

um dois

um dois três

se morrem os homens quem mata

os reis f

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Ouve-se agora o coro dos sobreviventes:

Queremos ser condecorados, condecorados, con-de-co-ra-dos

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Os generais rejubilam; louvam o heroísmo dos seus homens; lançam mais fogo de artifício aos olhos da população ansiosa; ópio, toneladas de ópio para o povo; o nosso presidente, com os olhos marulhados de lágrimas, pede mais medalhas, mais condecorações, mais discursos, mais álcool:

uma cruz-de-guerra; e outra; e mais outra ...

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Estirado a uma esquina o Último Jovem Morto tem também a sua cruz-de-guerra; o seu brilho é o último veneno do seu corpo; o seu último gesto desenha-se vagarosamente e em câmara lenta é filmado: com a mão disponível arranca do peito a condecoração e coloca-a no rabo ...

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cQUE TE AMEM OS CÃES"
Eu sei, Marjorie, eu sei que vieste de muito longe, que talvez tivesses abandonado um amante mais impetuoso nas colinas onde repousou Clitemnestra.

"Que te amem os cães", disse-te eu. Colados um ao outro, cansados, encobertos pelas rochas. Silenciosos.

"Não temos o direito de estragar isto." "Isto ?"

"Sim, a vida, a luz cega."

Ao fundo a cidade iluminada, um cenário apenas, sem miséria moral nem inquietude, ao fundo a mecânica podre da civilização, das conveniências. "Voltei as costas à Inglaterra porque o seu jogo podre deixou de me interessar." "Querias regressar à terra, não é, ao passado?" Entre a cidade e as dunas, a ilha, a solidão, estende-se uma estrada de luz: "também eu, sempre que posso, volto as costas à cidade, mas a memória, o nascimento, o mar, ficam a dois passos."

Apenas as praias permanecem intactas na minha vida: as praias e algumas palavras secas (obscuras) sobre a seca (obscura) confusão humana. Palavras.

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CASIMIRO DE BRTTO

Um dia, a caminho da praia, antes de chegarmos à ponte que atravessa a ria, o nosso carro despistou-se, e lá em cima, no ponto mais alto da fuga, um décimo de segundo, lembras-te, ficámos parados no espaço, varados, uma fracção de segundo que durou o tempo necessário para resumir uma vida; e depois, rápida, foi a queda nas águas, e um pavor logo transformado em sonoras gargalhadas, quando alguém, que entretanto se atirara à água, nos ajudava a sair do carro, agora também barco...

"Como resistir pois ao diálogo fácil das palavras?"

"Mas eu vim de muito longe para te amar; e é como se nunca estivesses aqui comigo mas apenas aqui, comigo, estivesse um mar de palavras, um homem de palavras." O rosto.

Falo agora do rosto sem idade, do belo rosto de quem profundamente pensou o muito que sofreu, o muito que amou. O meu, o teu?

"Mas que sabemos nós do amor?" "Sabes outra maneira? O que posso fazer? Que posso eu fazer contigo a não ser o amor?" Um lugar onde se gostaria de viver e jamais se encontra: tomam-se quantos barcos existem, quantos corpos.

"O grande egoísmo a que chamam amor, eu sei, o teu corpo afinal enrolado em si mesmo." Os dentes cerrados. E sangue, se possível.

Poucos (rostos) têm essa dignidade poucos revelam, em sua teia de rugas sensíveis, os desertos atravessados, as noites caóticas, as generosas e violentas depurações do amor, da liberdade, da alegria.

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UM CERTO PAIS AO SUL

Poucos, algum?

Sepultas as palavras com o apelo ruidoso dos ossos; e sangue, e dentes cerrados, se possível. Sim, sim Marjorie (não te as disse, a degradação, a resignação não se dizem com palavras, mas podia tê-lo pensado, ou pensado dizê-lo): "que te amem os cães." O rosto.

Atento aos meus mais subtis movimentos (do sangue, da memória) mas incapaz de ler o rosto dos outros.

O invisível, o imprevisível mundo dos outros. A bússola vigilante.

Ou neles lendo apenas o reflexo do meu rosto, da minha noite, reflexos dourados da morte, porque além já não amo, nem arrisco, nem nada me dói. Recomeças: pálida, a meu lado, as pernas nuas, coladas à noite, os olhos reclinados na luz, os seios pequenos espalmados no meu dorso, cerrados os braços, um corpo compenetrado no amor até ao fulgor das suas armas. Aparentemente tranquilo. Sem ostentação.

Eu sei, Marjorie, eu sei que voltaste de muito longe; que julgaste existir nesta experiência um carácter único e fecundo; que abandonaste os teus pequenos alunos gregos por uma frase dúbia minha como se a felicidade de um dia, a actividade mortífera do sexo, pudesse ser feita e desfeita como quem repete uma fala à boca do palco.

No entanto essa minha frase, "vem, espero-te", era a imagem da minha intranquilidade, da minha convicção de que talvez um dia, entre rochas, o silêncio pudesse ser recuperado. O crime, a dissolução.

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CASIMIRO DE BRITO

As pessoas matam-se umas às outras, trocam o crime, a dissolução, enquanto se amam. Um antigo verão ficou-nos gravado no sangue. A força nua feita um dia com a boca. com as mãos. Um antigo Verão.

O crime, a dissolução fecundam o movimento cego dos amantes, a violenta ternura, quando apenas as deformações te fascinam, e mesmo elas de modo diferente do desejado pelo rio transbordante dos sentidos, de músculos, ossos, músculos e ossos e sentidos afinal fechados, presos, manietados pelo corpo descontínuo, breve e só. com palavras e silêncio. Breve e só.

Um antigo Verão ficou-nos tatuado no sangue, há sempre um Verão que nos irrompe pela vida dentro e nos inunda de pássaros, flores, barcos, sabedoria, danças, e música, e o corpo subitamente prodigioso, desnaufragado, irmão do sol. Ouve-se então o silêncio que separa um corpo do outro, uma palavra de outra, que as contém, que aproxima o corpo da terra, o trabalho da alegria, a poesia da música, ambição máxima. Vivíamos na água.

"Parecemos um casal de golfinhos", dizias. ... Mas o nosso verão, Marjorie, foi um verão sem descanso, uma celebração, tempestuoso movimento de corpos esguios, aproximando-se sempre das mesmas sempre falhadas "glória e maravilha" (canto DC: "Estes são os deleites desta Ilha"), prazer contínuo, deitados por terra, no cimo de rochas, por debaixo das árvores esse amor, o que se faz por terra, o que fazem os animais entre as flores, odor de madressilvas e medronhos nas serras de Monchique, esse amor (odor) que para a terra transborda e a fertiliza,

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UM CERTO PAIS AO SUL

como o fazer agora, agora nesta cama fria de hotel?

"Não podes porque não me amas" "não, não posso porque aqui não é nas montanhas".

Estávamos num beco sem saída. Esse foi um Verão de palavras amargas, cavadas por silêncios brutais, excessivos: o suor, a raiva, o ranger de dentes que precederam a posse, e pouco depois o abandono de corpos nus sobre os rochedos, sob o sol, abertura longa de todo o teu corpo à minha pesada solidão. Algumas horas antes, imprudente, no cume da serra, eu tinha-te negado: "Os cães que te amem",

e acelerado, desesperadamente, cheio de febre, pelos desfiladeiros da serra. Voltei.

Estávamos num beco sem saída: quando estamos num beco sem saída soterrados, estéreis, naufragados em dúvidas quando a noite se acumula sobre o corpo e nos estrangula e violenta quando a doença nos humilha sob a sua mão e humildemente nos deixamos apodrecer quando viajamos sem bagagem, nem desejos, nem malícia quando a morte e a vida se aglutinam e não abraças uma sem abraçar a outra e o caos nos domina e avassala o amor excede-nos, a luz irrompe onde luz não havia, excedem-se os ritmos do corpo e da terra e ficas livre do medo e do orgulho e tu que nada sabes do silêncio, tu que nada sabes da vida, amas, escreves. Voltei.

Deitada de bruços sobre as estevas choravas. Deitei-me a teu lado.

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CASIMIRO DE BRTTO

Deixámos trabalhar as mãos, os olhos, a boca. Gota a gota.

Pedimos álcool num dos abrigos da montanha. "O álcool é uma realidade, posso bebê-lo, tu não sei, estás sempre do outro lado." Sim, o álcool adere à pedra espessa da garganta, transforma o corpo em instrumento novo, maravilhoso, dissolve-se onde antes havia o medo, o horror, olhas agora as plantas, as pedras, peixes que não existem, e tudo com olhos diferentes, cicias palavras sem mais nada, ficas estendido ao sol...

... e voltámos uma vez mais ao cimo da montanha.

Sentados numa pedra, dobrados contra os joelhos, imensamente pobres, disponíveis, milionários.

Animais da terra.

E, por isso mesmo, pouco a pouco mais humanos, mais acompanhados. Pensei em ti. Cansada.

Enrolada em vinte anos de uma viagem (da viagem "De que se vestem as humanas rosas, / Fazendo-se por arte mais fermosas") sem origem, nem significação, nem arquitectura. Umas pernas, umas mãos quase inertes, e mármore, e lama, e praias arenosas onde por vezes alguém rejuvenesce e grita. A tarde arrefecera, a mais desolada das paisagens colava-se lentamente a nossos corpos. "Os cães que te amem", dissera-te eu e os cães que eu sou começaram ali a amar-te, a amar-se, a penetrar na música e na memória do teu corpo pouco a pouco explodindo, gota a gota içando-se pela terra dentro, inundando-me de

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UM CERTO PAIS AO SUL

vegetação, antropofagia, metais coloridos, águas radiosas, comércio de alegria. Lembrei o álcool. Outro álcool.

O álcool nos teus lábios secos onde pouco antes um sexo louvavas e te louvava. Onde agora o sangue regressa a suas fronteiras e limites, sulco de latejante solidão. De ti apenas me ficou (em que país ensinarás agora o teu idioma? a quem falarás dos teus amantes? quem se lembrará dos terríveis apetites, das terríveis limitações do teu corpo?), de ti apenas me ficou um lenço de seda com um desenho de Matisse, um corpo estampado, um lenço ainda manchado pelo nosso corpo morto, e estas palavras.

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SOBRE OUTRO CORPO
Subitamente o corpo detém-se na praia sobre outro corpo. Ou apenas um movimento. Ou a sugestão de outro corpo. Diálogo, tatuagem.

Apaixonam-me os detalhes; não é só a vigília de coisas pequenas, a secura, a oscilação do fósforo, não são apenas os pequenos recantos e saliências das coisas

Subitamente o corpo se detém, um subitamente instante a instante repetido, descontínuo. Intervalado por moléculas de sono, flores, álcool raro.

mas também de coisas temíveis (uma rocha sobre a tua cabeça deitada na areia; um país calcinado por séculos de paciência; a nave turbulenta dos homens), de coisas levantadas na sombra; mas agora é de um corpo de mulher que

Nada, nada mais belo do que as mulheres; mais excitante; e mais repousante. Nada mais dramático. Por exemplo:

Mas agora ê de um corpo de mulher que falo, do movimento indecifrável desse corpo sobre uma praia, sobre outras dunas, sobre ondas terríveis subitamente pequenas, precárias, no Outono

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CASIMIRO DE BRITO

:O vazio entre dois pensamentos de que fala Krishnamurti? Nada mais dramático. Nada mais belo (porém) do que

Assim um corpo se detém na praia. Olhá-lo, ser possuído por ele. Onde o solo e o subsolo se confundem o sabor, a língua.

Apaixonam-me os detalhes.

Apaixonam-te os detalhes porque só os detalhes existem. A penumbra de algas, de animais viscosos. Só eles. E cada detalhe é tudo: a infância e as ruínas; o espelho e o túmulo; toda a minha vida, a metáfora toda deste instante concreto (mas não fixo) em que me atiro para dentro de qualquer detalhe (gesto,

Nada porém mais dramático; nada mais belo para uma chama do que o seu contrário, a água, o metal. Ao osso rigoroso o rigor do sangue acrescentas.

imagem, som) como quem luta com a morte; como quem se atira para dentro de uma casa que já não existe.

Penetram-me, descalcinam-me, devastam-me (as mulheres); um corpo solar de-componho: escultura suspensa. Descalcinam-me (as mulheres), penetram-me, vêm-se comigo como quem celebra o abismo, a última palavra, a vertigem.

Pois só no instante (velocíssimo) a matéria existe. O ar, as armas. E

desejar possuir um corpo amado um corpo agora mesmo esculpido com os teus olhos um corpo ainda não visitado pelo outro pelas tuas mãos voadoras um corpo despido de fontes obscuras um continente um grito sem garganta é desejar possuir já outro corpo é desejar possuir já outra memória de pássaros e tumultos. Ou (inesgotável

Descalcinam-me, devastam-me; elas são o meu

lio

UM CERTO PAIS AO SUL

prazer e a minha noite; o meu sofrimento e essa luz demasiado clara que irrompe no meu corpo e onde agora nada vejo e me inunda de música.

amor) assistir às tuas metamorfoses às tuas incursões (glorioso corpo) nesse universo por ti inventado e já desaparecido já onde nem ruínas és capaz de encontrar nem os teus cabelos brancos nem a resistência do pó. Metamorfose: do ar em armas, de

Vibrante, violentíssimo só o instante pode ser amado. com seu múltiplo sémen.

de armas em árvores: Metamorfoses.

Passas, anuncias o silêncio. Sobre dunas e flores que não vejo, passas. Triste, por vezes.

Mas só no instante representas o drama da vida (da tua e da minha) e da morte. Só nele me equilibro, e no álcool.

Dizes (ou dirias se o dissesses): Porque me olhas assim? Respondo: Pensas voltar? Entre paredes violentas vivemos o amor que nunca faremos um com o outro: porque sobre dunas passas enquanto aqui sobre dunas te vejo passar...

Assim me completas. Assim uma árvore calcárea se eleva onde não posso criar raízes. Ouço as palavras que não dizes através deste álcool velho: Es tu esse que nunca encontra, o contador de histórias?

Regressas mais vivo.

Entre o terraço e o vazio de um coração ainda activo; ou entre o caos e a harmonia de agora, tu o dizes, te sentires (sobre um corpo sobre dunas) aqui ainda respirando.

Alimentado. Uns amam as coisas, outros o caminho. Tu (sobre dunas, sobre um corpo)

Ah mas quando falo da mulher falo dela com as matérias mais dúcteis do corpo: a pele, os

Hl
CASIMIRO DE BRITO

mecanismos nervosos, o fogo microcósmico de todas as células

Uns amam o corpo, outros a imagem, a memória dele: assim (tu, sobre um corpo na praia) exerço a possível brevidade; a possibilidade de escolher entre uma palavra e outra; entre um movimento e outro.

do meu corpo, isso a que posso chamar ritmo, apodrecimento, economia deste universo sem desígnios que sou entre outros universos igualmente obscuros. Sobre dunas.

um corpo e outro. Uma morte

e outra. Palavras celebradas na noite? Um pêssego? A cinza de montanhas longínquas?

A mulher é redonda e voa.

O acaso da memória?

Está sentada.

Debruço-me sobre este cume obscuro (outro mais claro não há) onde agora decorre a minha aventura. Onde

me descrevo.

A mulher é redonda e voa e ponho-me nela como quem esvoaça por dentro da terra

Quanto pó? Quanta luz acrescento à tua luz?

como quem esvoaça por dentro de cidades (cimento, glóbulos, madeiras de som, ambígua febre, estábulos) subitamente iluminadas; no fundo do mar; lá onde o silêncio

Incendeiam-se os olhos.

lá onde o único êxtase é este, o teu, a luz crua agora mesmo dilatada nessas rochas sonoras onde te sentas, nesses pátios de areia onde te deitas...

Incendeiam-se os músculos todos da minha casa. O corpo esvoaçado (por dentro da terra), e, no entanto, duríssimo. Ò sexo cega.

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UM CERTO PAIS AO SUL

Eis uma dureza (animal mineral) enfim disponível. Como quem

como quem se atira para dentro de uma casa onde apenas o sol; onde as próprias palavras apodreceram; como quem penetra numa casa que já não existe, respiras.

Árdua respiração. A mulher é redonda e voa e respira. Sobre outro corpo.

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A MORTE
Quando nesse dia Abílio regressou a casa encontrou-a sentada à mesa.

Sentou-se a seu lado.

Como quem (então o soube) nunca fez outra coisa.

Maceraram a carne e os dias; organizaram o lixo domiciliar; convocaram o silêncio e a memória.

E começaram a comer-se um ao outro.

l

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UMA (ENTRE OUTRAS POSSÍVEIS) AUTÓPSIA DA GUERRA
A guerra (a destruição voluntária) é uma arte do ócio ou do ódio?

Alguns campos de batalha:

EUROPA: Através de campos e campos de guerra (laboratórios da humanidade) as civilizações maximizam o lucro e o requinte.

ÁSIA: Ao sol adormecida a longa paz cicatriza chagas de guerras que não teve.

AMÉRICA DO NORTE: Ao centro de decisão (de guerras) o lucro e a glória regressam.

ÁFRICA: Um atraso de várias guerras.

AMÉRICA LATINA: No teatro de guerrilha experimentam-se as novas técnicas: países onde, à luz do dia, os homens oscilam entre o tédio e a febre.

MÉDIO ORIENTE: O paraíso da guerra.

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CASIMIRO DE BRITO

CHINA: A longa marcha da paz e as suas súbitas detenções de respiração: a guerra (civil) é um salto em que por vezes o corpo não regressa ao solo.

RÚSSIA: A guerra e a paz por ínvios caminhos levam os místicos a água a seus moinhos.

JAPÃO: E outra guerra o repouso do guerreiro.

PORTUGAL: A paz podre? Ou foi a guerra que apodreceu? Entre o sono e o sol, quem nos respira?

Algumas instituições:

ONU: O ministério da cosmoguerra.

IGREJA: Abrigados pela sombra de um Senhor que não existe os seus mandatários decidem da guerra e da paz como quem divide um fruto em províncias.

ITT, CIA, ETC.: A ciência da eficácia e da harmonia; da gestão por objectivos; financiam-se umas (guerras), retira-se o apoio financeiro (e moral) a outras.

AS MULTINACIONAIS: "Alimentamos quem nos alimenta."

Não, já nem nós nem os nossos filhos assistiremos à deterioração das consoantes da palavra "guerra". Que farão os vindouros de tão funestas vogais?

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UM CERTO PAIS AO SUL

De uma superguerra multinacional (para breve) se levantará enfim o Senhor Número Um, P. C. A. da GLOTESA Globo Terrestre Sarl (e de suas filiais, produtoras de matérias-primas, espalhadas pelo sistema solar). Nomeará primeiro-ministro a Senhora Máquina Número Um, possivelmente da marca I. B. M.. Dom Sebastião (construtor de sonhos), se voltasse, ficaria menos surpreendido do que Thomas Matson (construtor de computadores).

Bhagavat Gita, H, 21.

com armas e ferramentas Nos devoramos

Como quem se come não para Matar a fome mas a morte Matar

A sábia morte a chama rigorosa Da guerra

Fala de um general do pate X frente às câmaras da TV (via satélite):

"A guerra é um fenómeno multilateral. Isto é: os vossos países podem fazer no meu aquilo que o meu faz actualmente nos vossos, o comér-

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CASIMIRO DE BRITO

cio da guerra. O lucro, bem o sabeis, é a paz. Sejamos pois fiéis aos ventos da história. De outro modo como poderíamos justificar tantos e tais sacrifícios?"

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(A guerra é também: a lenta asfixia; a arte da usura; o trabalho da espera.)

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Entendemos que a nossa vocação é a criação do tão difícil equilíbrio dizem os negociantes de armas, a criação do equilíbrio à escala mundial. Por essa razão apenas vendemos os nossos produtos quando o nosso cliente nos convence que se encontra em desvantagem em relação aos seus adversários. Anulando essa desvantagem solucionamos um problema de importância capital para o bem-estar da humanidade. Acontece, por vezes, que os inimigos dos nossos clientes solicitam um novo auxílio aos nossos concorrentes e então, perante tão grave interferência no equilíbrio por nós instaurado, que mais poderemos fazer do que aperfeiçoar e aumentar a nossa gama de produtos e estabelecer novas pontes aéreas a fim de auxiliar os nossos prezados amigos e clientes? A nossa vocação é a manutenção do equilíbrio. Falam por nós os nossos vultuosos investimentos no campo da pesquisa: os nossos cientistas formam um verdadeiro exército, as nossas instalações fabris

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UM CERTO PAIS AO SUL

espalham-se pelo mundo todo, os nossos gestores têm um conhecimento perfeito das estratégias políticas e sociais. A nossa vocação é apenas a criação de uma paz durável à escala universal.

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Último recurso: come o teu filho antes que ele seja comido pela guerra.

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Título: Um Certo País ao Sul Autor: Casimira de Brito

Editor: Empresa de Publicidade Seara Nova, S. A. R. L.

Oficinas: Guide - Artes Gráficas, Lda.

Tiragem: 3200 ex.

Acabou de se imprimir: Em 19 de Agosto de 1975
As minhas colegas e amigas

Maria da Luz Líma

Laura Fançony

Manuela Raminhos

A







Prefácio

Este conjunto de histórias curtas não é um livro de receitas para fabricar bons alunos, bons professores, bons encarregados de educação, bons auxiliares de acção educativa, bons funcionários do Ministério da Educação e, consequentemente, acabar com o insucesso escolar. É apenas um modesto relato de situações vividas, de pequenos apanhados que procuram mostrar o que há de muito bom e de muito mau no ensino.
É dirigido a todos os Portugueses dos dez aos noventa anos e, àqueles que estão no activo, com menos tempo para perder mas mais responsabilidade no problema da Educação, a autora pede que façam uma pausa no seu quotidiano já tão preenchido e sejam leitores críticos e atentos.
Pede ainda que não o considerem uma mensagem de carácter moralista. Que ninguém se sinta humilhado se admitir que a atitude do mau condiz com a sua, nem orgulhoso se reconhecer que é o bom ali retratado. Não há pessoas boas nem pessoas más, mas pessoas que umas vezes erram, outras vezes acertam.

Neste momento o que está em causa e é da máxima importância para ajuda da construção dum mundo feliz e equilibrado é a educação dos nossos jovens que nasceram e vivem numa sociedade de consumo na qual mais importante do que o ser, tem sido o ter, atitude errada que devemos apontar como uma das causas do insucesso escolar. Mas há outras, algumas das quais vêm mencionadas neste trabalho e estão relacionadas com procedimentos incorrectos dos alunos, dos professores, dos encarregados de educação, dos auxiliares de acção educativa e dos funcionários do Ministério da Educação.
Façamos pois uma pausa de reflexão e assumamos as nossas culpas!

Ensino especial
ou mais compreensão do professor?

AD. Julieta é uma criatura simples. Gosta de chamar tudo pelos seus nomes e nem entende a razão por que vão aparecendo maneiras diferentes de referir o que existe há muito tempo. Chamar "título de transporte" ao que sempre chamou "bilhete" confunde-a; ouvir dizer que o filho da amiga, 4 4não transitou", leva-a a pensar que ainda há uma esperança do rapaz não ter sido "chumbado". Era assim que se dizia no seu tempo. Com ela a conversa é 4 @pão-pão, queijo-queijo". Havendo necessidade de dizer alguma coisa, diz directamente. Não tem receio de ferir ninguém, porque para si a verdade é coisa para se dizer e não para se esconder ou dourar. A verdade é a verdade e deve ser dita, doa a quem doer. Não conhece os meandros da diplomacia.

AD. Julieta é uma pessoa simples, mas não é estúpida. E ser simples também não é defeito. Para além da sua modéstia, tem outra qualidades. É carinhosa e gosta de ajudar o próximo. Aliás, já era assim em criança. Ao lado dela morava uma senhora de cinquenta e poucos anos a quem, na altura, por ser muito jovem, ainda longe de ser "Dona", ela considerava uma velhinha. Vivia com muitas dificuldades e sofria de ataques de convulsão. Não chegaram a dizer-lhe o nome da doença da vizinha. Não era preciso que soubesse. Nunca vira o médico. A sua presença era apenas solicitada quando havia necessidade de fazer companhia à doente e esfregar-lhe o corpo com um bálsamo que lhe aliviava os espasmos e as dores. A sua adolescência decorrera no tempo em que as mães, sem qualquer cerimônia e sem a devida auscultação da sua vontade ou disponibilidade, ofereciam os préstimos das filhas às amigas. Não interessava se eram pequenos ou mesmo grandes serviços. Tinham de ser cumpridos e a maioria das voluntárias à força limitava-se a obedecer, porque as jovens ainda não tinham "voto na matéria". Era uma maneira muito errada de actuar, que deixou muitas feridas e criou muitas rebeldes, incluindo a Julieta.


9


u houvera, no entanto, revolta Por parte dela. Tendo

a

concluído a 4 classe, deixara de frequentar a escola e entretinha-se a fazer bordados e a ajudar a mãe na lida da casa. Conv' -

jvja Pouco, porque as visitas eram, no geral, feitas na companhia da mãe e as escolhidas por ela própria

nem sempre eram consentidos. Pode parecer então que, cuidar da vizinha, nas ausências da filha desta, fora apenas um bom pretexto para a Julieta sair de casa- Mas manda a verdade que se diga que não. O que no passado fez pela doente foi por bondade e mesmo con afeição. Deixou de fazê-lo quando a transferência do pai obrigou a família a abandonar Lisboa. Do seu acto de solidariedade para com um ser humano dependente ficou apenas uma leve

recordação, não totalmente diluída, Por fazer parte de um período geralmente aceite como o mais feliz da vida de todos nós.

Eeis que hoje, passados quase trinta anos, a D. Julieta resolve ir cumprimentar uma amiga que vive num Lar da Terceira Idade. Lê à entrada: "Casa de Repouso". Não gosta. "Repouso porquê?" - pensa. - "Não interessa. São os tais rótulos modernos. Eu é que não os entendo." No momento

em que senta para conversar com a pessoa que foi visitar, ela vê, presa numa cadeira de rodas discretamente colocada a um canto da sala, a sua ex-amiga e paciente. Se já não era nova quando os caminhos da vida as separaram, menos o parece agora. Sente unia alegria enorme ao reencontrá-la, aproxima-se e dá-se a conhecer, Mas não é reconhecida. Faz várias tentativas de comunicação e conclui que j

à não é Possível revi'verern juntas o passado, porque aquela idosa, que representa um pedaço da sua adolescência, se transformou num caso per-

dido de senilidade. E fica chocada com a constatarão do facto. Por informação do pessoal do Lar e da amiga que fora visitar, fica a saber que aquela senhora

I

e esporadicamente visitada pela filha e deixa para esta um recado, o qual poderá vir, OU não, a ser entregue. Bastante perturbada, porque respeita e teme a velhice e sempre lhe custou aceitar factos consumados, a D. Julieta volta para casa e começa, como um autómato, a fazer o almoço para o filho, Luciano, que só tem uma hora de intervalo entre as aulas da manhã e as da tarde.



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Tem dezasseis anos o Luciano; já várias repetições às costas e ainda está

no 7.' ano de escolaridade. Perdeu Um ano na Primária, Por doença, e dois no

ciclo, por falta de avaliação Positiva. Porque é irrequieto, os professores

mandam-no, frequentemente, abandonar a sala de aula e o resultado é ele perder a sequência das matérias.


No ano anterior, uma suspensão no 3.0 período fez com que perdesse o ano por excesso de faltas. Azar seu, mesmo na altura em que decidira ter juízo , começara a apontar cuidadosamente as faltas dadas, não fosse ultrapassar o limite...

OLuciano é assim uma espécie de sósia do Fosco de Sebastião da Gama. Não é mau rapaz, nem foi suspenso por ser grosseiros mas Porque no Conselho Disciplinar, quando foi feita a análise da turma difícil a que pertence, o seu nome foi mencionado várias vezes por alguns professores com menos paciência. É um jovem complicado, por vezes impertinente. É sobretudo instável. Nuns dias concede uma trégua aos professores e tem UM comportamento absolutamente normal; noutros apresenta-se completamente eufórico,

interrompe constantemente e põe a turma em alvoroço não aprendendo nem deixando os colegas aprender.

Do Conselho de Turma fez parte uma jovem professora ernotiva, que sente por todos os fracos uma atracção '

um Pouco quixotesca, e compreende-o bem, u Irresistivel, às vezes até

ma vez que frequentemente se vê obrigada a controlar a sua própria vivacidade. Defendeu-o, Portanto, e

argumentou que os colegas deviam olhá-]0 como um indivíduo
Sui generis e não corno um elemento desestabil'

zador; perguntou se ele tinha alguma vez sido mal educado e responderam-lhe que não, apenas irrequieto; lutou

por ele com todo o afecto que lhe tinha mas fê-lo em vão. Perdeu a causa, porque a maioria é quem manda. OS colegas eram mais pragmáticos mais realistas e não tinham ilusões quanto ao rendimento de trabalho de uma turma

indisciplinada. Para exemplo da turma, castigaram o mais irrev rente. Após a e

reunião, a professora em questão passou por um estado de depressão que se prolongou por algum tempo. Pensava muito no Luciano e sentia a falta dele


na aula. Criou mesmo uma certa animosidade contra todos os colegas em geral, quando um primito lhe contou lá em casa que, depois de ter visto um filme, perguntara ao professor o que era um autista e em vez da resposta que pretendia fora chamado de estúpido! Generalizar é errado, razão porque posteriormente a tal professora se auto-criticou e pôs de parte a má vontade contra todos, à excepção do culpado.

Aseguir à suspensão, o Luciano ficou sozinho em casa nos dois últimos meses do ano lectivo anterior. Durante quase todo o dia não tinha com quem falar, porque os pais se encontravam nos respectivos locais de trabalho. Os amigos andavam ocupados com a escola e não lhes sobrava muito tempo para ele. Passou então a levantar-se mais tarde, não muito mais, contudo, porque já passara o frio de inverno que nos faz desejar o aconchego dos cobertores. Além disso, o que dava gozo era ficar na cama e faltar à escola. Ficar na cama porque se está proibido de entrar na escola tem o sabor de humilhação. Sem companhia, o jovem não se ocupou na prática de qualquer actividade desportiva, porque a ocupação dos tempos livres ou não existe ou é só para ricos. Também não leu, porque os hábitos de leitura pertencem ao passado. Poderia ter visto televisão horas a fio, o que lhe daria oportunidade de encontrar alguns programas muito bons perdidos no meio de muitos outros maus, mas faltava-lhe o vídeo para poder ver os filmes de violência que os amigos lhe podiam emprestar. Era a escola que o atraía. Um dia saiu de casa e dirigiu-se para lá na esperança de "fintar" o empregado da portaria e poder dar uns toques na bola com os amigos. Mas foi impedido de entrar. Tendo a suspensão dado origem à perda do ano por excesso de faltas, já não pertencia à escola. E até lhe foi retirado o cartão, não fosse ele, de futuro, tentar "enfiar o barrete" a qualquer outro porteiro de olho menos vivo. Daí que, privado dos companheiros, o jovem adolescente foi procurar amigos noutros sítios e passou a frequentar as casas de jogo. De faltista, passou a vadio. Criou hábitos que certamente o estão a prejudicar no ano lectivo corrente. Tudo vai de mal a pior na sua vida de estudante. É um incompreendido que sofre as consequências de um sistema de ensino que ainda não encontrou o melhor caminho para ele.


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As coisas teriam sido diferentes se, para além dos professores terem constatado que o rapaz precisava de mais atenção e tratamento individualizado, eles tivessem tido condições de satisfazer as suas necessidades. Constatar apenas, mas não remediar, não serve de nada e por isso este aluno continua a frequentar a escola sem aproveitamento e cada vez mais cheio de vícios, numa idade desadequada aos programas e numa turma onde a maioria dos alunos tem doze anos de idade. Está ali matriculado novamente "para ver se desta vez vai", como diz a mãe.

Quando o Luciano chega a casa para almoçar, ainda a D. Julieta não está recomposta do desgosto. Tem de desabafar com alguém e conta ao filho o estado decrépito da sua amiga de outros tempos, o que é coisa que não interessa muito a quem tem ainda uma longa vida à sua frente. Não tem qualquer espécie de formação que a ajude a compreender o tipo de conversas que podem interessar à outra geração e, de resto, no momento, o que interessa é ter um ombro em cima do qual possa chorar. Por isso ela pormenoriza tudo, reporta-se às suas vivências juvenis, volta ao presente, vai falando, falando, e diz à sua boa e simples maneira:

- Coitada, está com os pés prá cova!


Mas não dá o assunto por concluído. Quando o almoço fica pronto, ela serve o filho, senta-se junto dele e insiste na mesma conversa. O rapaz não está totalmente alheio, mas também não compreende na íntegra. Outra coisa o preocupa. Anda às voltas com mais um problemazito dos que já lhe são comuns e a mãe não lhe dá oportunidade de falar. Para dizer a verdade, ele também não sabe bem se lho quer contar, se quer esconder e por isso não a interrompe. Ouve vagamente falar duma velha que sofre de senilidade e de arteriosclerose, palavrões totalmente desconhecidos para ele. Senilidade deve ser uma coisa que não se pode ver e só se sente, pelo menos também acaba em "ade" - sufixo ou prefixo? - , como os substantivos abstractos que a professora de Português hoje esteve a referir na aula. Ou então é excepção. Os professores têm a mania das excepções. Ensinam uma matéria e quando


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depois perguntam, e o aluno vai todo vaidoso mostrar que aprendeu, dizem logo que não é assim, que é excepção... "E se não se vê, como é que a minha mãe viu a senilidade da velhota? E a outra palavra?" - continua o Luciano a pensar - "Arteriosclerose! Faz lembrar um daqueles termos da professora de Biologia".

Acontece que ainda ontem lhe disse, cara a cara, que podia muito bem viver desconhecendo aqueles nomes todos tão esquisitos. Tinha chegado a apostar com ela que a sua própria mãe também não os sabia e era bem feliz, mais do que ele, que fazia o frete de ir à escola todos os dias. Se não fosse para se - encontrar com os amigos, nem punha lá os pés. Mas ainda há momentos a mãe usara um daqueles palavrões! Pelos vistos até sabia e era bom que quando fosse à escola falar com a directora de turma, que por sinal era a professora de Biologia, elas não se pusessem com essas conversas. Então lá se ia a aposta. Será que a professora iria ter a coragem de cobrar? Nunca se sabe. De qualquer maneira ele teria de pagar, porque honra é honra, e essa ninguém lha tira. Era o dinheiro do maço de cigarros. "Que se lixe! Dou-lhe o dinheiro da aposta e depois vou cravando um cigarrito aqui , outro acolá."

"Bem"- conclui o Luciano sem coragem para dar voz ao pensamento - "Esta conversa até já chateia. Mas não há dúvida que ela disse uma coisa engraçada. Está com os pés prá cova!"

Essa, também nunca tinha ouvido, mas percebeu o que queria dizer. A meditar na frase, sai de casa sem dar hipótese de diálogo. A mãe fica sentida. Mais tarde irá lamentar-se ao marido e dizer que as crianças de hoje são muito insensíveis. Serão?

Enquanto pendura uma roupa vai falando consigo própria. O filho sai da escola às 12.20 e tem de lá estar, já almoçado, às 13.30. A essa hora está a filha a sair. Vai comer a comida fria ou requentada e obrigá-la a estar de plantão na cozinha a servir almoços como se fosse no hotel. Mas isso ainda é o menos. O que lhe custa é a falta de um almoço familiar. Por isso gosta tanto do domingo. Todos conversando e rindo à volta da mesa. Sem bandejas nem televisão. E sorte têm os seus filhos, aos quais pode dar assistência, porque presta


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serviços numa casa onde só trabalha à tarde. Menos sorte têm os filhos da patroa. Esses comem sempre sozinhos. É preciso responsabilizá-los desde pequeninos, como diz a mãe deles. Ela é que estudou; ela é que sabe. Mas a culpa é de quem não vê estas coisas lá na escola.

AD. Julieta não percebe de falta de salas de aula e dos malabarismos que têm de ser feitos para produzir esses horários que não são bons mas podiam ser piores, se não houvesse boa vontade da parte de quem os faz. Consequentemente, culpabiliza os docentes. Meia hora mais tarde, já depois de ter dado o almoço à filha, correndo para apanhar o autocarro, vai ainda a resmungar:
- Raio de horários! É mesmo má vontade dos professores!

OLuciano chega à escola quando a campainha está a tocar. Nem deu tempo para digerir o almoço e muito menos a conversa da mãe. Corre para a sala e é o último a entrar.


Não ouve uma palavra do que a professora de Geografia está a ensinar. Gosta dela, mas não de estudar e por isso não lhe vai fazer a vontade de estar atento. É o que ele sente e o que cada um sente é muito importante. Mas há que considerar as razões. E a sua razão é que os interesses dele não estão ali. Sem interesse, as matérias tornam-se muito difíceis e é impossível aprendê-las. Isto é uma verdade que nenhum professor desconhece, mas que só os mais corajosos abordam, não vá dizer-se que o mal é deles, porque não souberam fazer a motivação. Tão carregados já de culpas, o melhor é nem falarem nisso, para não terem de gastar a argumentação com assunto tão controverso que ainda podem sair a perder.

Por acaso aquela professora faz parte de um número muito restrito de docentes - podem contar-se pelos dedos - com quem o Luciano tem um bom relacionamento. Esta não é daquelas que o estão sempre a "chatear", a "mandar prá rua por dá cá aquela palha", a insistir que, "se não compreende é porque não tem bases e portanto devia era estar no ciclo", a insinuar que, "se não percebe é porque é burro, porque eu, por sinal, até explico muito bem".


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I'eni que concordar que ela não é dessas e por isso simpatiza com ela. Mas hoje parece-lhe mais velha que nos outros dias. Está despenteada e tem olheiras, Tem um ar cansado. Quantos anos terá? E enquanto a professora explica as coordenadas geográficas, o Luciano divaga...

De facto a professora está cansada, pois corrigiu testes até às duas horas da noite, mas isso não a impede de se esforçar na aula e de sentir que aquele seu aluno difícil está outra vez perdido nas nuvens, afastado das realidades do dia a dia de estudante, as quais incluem uma ficha de avaliação sumativa onde a matéria que está a ser dada vai ser testada na pergunta número dois. Deverá interromper-lhe as divagações para evitar que ele se saia mal no teste? Ou não vai fazê-lo, porque isso iria prejudicar o raciocínio dedutivo necessário à compreensão dos exemplos que escolheu para clarificar a matéria em questão? Vai dar-lhe atenção individual ou atender à maioria da turma, que deixa transparecer interesse e atenção? "0 dilema de sempre" - pensa a professora - "Mas agora vou continuar. Terei de deixar para o intervalo a ajuda a este menino problemático.

Continua a lição e verifica que, para além de não estar a seguir a lição, o Luciano a está a examinar em pormenor - Não usa saias demasiado curtas nem blusas apertadas. Não é bonita. Já não é jovem. Não há qualquer perigo do adolescente sobrepor à sua figura a imagem da Marilyn. Mas há qualquer coisa. Em que estará ele a pensar? Em tudo, certamente, menos no esquema que há Pouco fez com o intuito de simplificar e esclarecer. Mau, agora engana-se. Acha que está a "fugir-lhe o fio à meada". Pede desculpa. Rectifica. Sente-se cada vez mais cansada. Está também ligeiramente enervada.

Ojovem continua desinteressado da aula e com os olhos postos na professora. Já tinha reparado no seu ar cansado. Agora sente que se levantOU uma nuvem. "Parece que está a ficar irritada!" - pensa- '4 Será comigo? O que é que eu fiz agora? Até simpatizo com ela. Quantos anos terá? 40? 45? Sim, no máximo 45, mas no outro dia parecia mais nova. E se lhe perguntasse? Tem algum mal? Ela no dia da apresentação não disse que éramos todos como uma família, quem quiser pergunta o que quiser, ela a nós e nós a ela, o que era preciso era conhecermo-nos uns aos outros?"


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É claro que pode perguntar. Está só à espera de encontrar uma aberta. Sente que ela está cada vez mais impaciente e não percebe porquê. O que vale é que desta vez ele não fez nada. Está desejoso de obter uma resposta para a pergunta que ainda não chegou a formular mas quer conservar a amizade desta professora que considera "porreirinha" e não a quer melindrar. Como ela está a falar, o melhor é não a interromper e esperar calmamente por uma oportunidade. Embora seja impulsivo, pensa numa abordagem delicada que deixe bem marcada a fronteira entre curiosidade e intromissão na vida alheia. "Que raio! Hoje que quero falar é que ela me está a dar menos hipóteses de o fazer." - queixa-se a si próprio - "Nos outros dias vai fazendo perguntas do princípio ao fim da aula e agora está ali com um discurso que nunca mais acaba. Se ela hoje me fizesse uma pergunta, eu nem me ralava nada, porque confessava logo que não sei, que também não estou a perceber, mas aproveitava para lhe perguntar quantos anos tem".


Parece que chegou agora a altura. A professora quer saber quem tem idas. Ainda bem, porque o Luciano fez propósito de ser delicado, mas a paciência tem limites e a dele estava a esgotar-se. Põe portanto a mão no ar. dúv


- O Stoura, posso fazer uma pergunta?

-Diz lá! - responde a professora relutante em aceitar aquele vocativo ao qual não conseguiu habituar-se ao longo duns anos de ensino, porque acha mais dignificante ser chamada de Sra Dra do que de Stoura, nome feio, parece feminino de touro.

Mas fica tudo em pensamento, porque agora o que interessa é que o Luciano vai tirar dúvidas e ela vai ter oportunidade de o ajudar, repetindo para ele a tal parte da matéria que está na pergunta dois da ficha de avaliação sumativa e que ela explicou enquanto ele esteve distraído. Está contente por ele se ter disposto a tirar dúvidas.

- Quantos anos é que a Stoura tem?

Aprofessora é completamente apanhada de surpresa. Pára uns segundos, confusa. A turma espera pela sua reacção. O Luciano espera a resposta.


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- O Luciano, o que é que isso vem a propósito?

- Vem. - diz com convicção.

OLuciano não está a mentir. Está mesmo convencido. Não vem a propósito do que ela está a dizer, mas vem a propósito do que ele tem estado a pensar. Que há uma diferença, nem lhe interessa considerar, portanto ele é quem tem razão. É a sua verdade.

-Achas que vem!? - diz a professora - Fica sabendo que eu acho que não vem, mas para abreviar digo-te já quantos anos tenho e a seguir tu deixas os teus colegas tirar as dúvidas sobre a matéria de hoje. Quando a aula acabar continuamos a tua conversa lá fora. Está combinado?

- Está. Quantos? - pergunta o Luciano com simplicidade.

- 48.
- 48? A Stoura está mesmo com os pés prá cova...








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Contingências

OLuís Ferreira é uma pessoa de valor. Todos o reconhecem e, no entanto, a sua companhia não é muito desejada. Impacienta-se com frequência e quase todos os colegas de serviço já tiveram ocasião de o ver perder o controlo de si próprio.

É um distinto funcionário do Instituto Nacional de Estatística. Os algarismos são a sua paixão. Brinca com os números como os escritores brincam com as palavras. Faz com eles os mesmos malabarismos, os mesmos jogos. Dorme e sonha com eles. Constituem um desafio, o instrumento do seu progresso, da sua realização pessoal. São também um escape para os seus problemas pessoais, gerados por dificuldades financeiras devido a prolongada doença da mulher e pelo insucesso escolar do filho. Pelo menos enquanto está envolvido com os números, ele esquece as frustrações e evita umas quantas cenas tristes, que deixam as pessoas presentes confusas, sem perceberem se são resultado de paranóia ou diminuição do ego. Ele sabe que não são de uma nem outra coisa, visto que ainda é capaz de se auto-criticar, mas as cenas que faz doem-lhe muito. Ainda elas não chegaram ao fim e já ele está a sofrer. O problema é uma grande falta de equilíbrio emocional. Há-de tratar dos seus nervos. Quando, ainda não sabe, porque o trabalho é muito e os problemas dos familiares merecem atenção prioritária. Para si, como devoto cristão que é, ficam as auto-críticas, os sentimentos de culpa e o arrependimento. Aliás, auto-culpa em exagero também não é bom, mas enfim, cada um é como é.

Embora bom funcionário, é um tanto exagerado. Sofre de deformação profissional. Ocupa constantemente os seus momentos de lazer com a actividade do dia a dia. Mistura devoção e obrigação. Trabalha sempre e não descansa. Não faz outra coisa que não seja trabalhar. Sabe que é bom quedar-se à janela, encostado do lado de dentro, sem fazer nada, apenas a fingir que o tempo parou e a saborear a alegria de estar vivo, mas nunca se concede este gesto trivial. Reconhece que é bom conviver, dar um passeio, só


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para não deixar as pernas enferrujarem, ouvir música baixinho e relaxar. Adia no entanto esses pequenos prazeres para fazer as contas da Estatística que até traz para casa, para adiantar serviço, esquecido de que, se morrer hoje, amanhã alguém o substituirá. Mas ele lá encontra as suas razões e continua teimosamente a repetir o mesmo erro de achar que é insubstituível. Diz a si próprio, como justificação, que o seu local de trabalho está cheio de uma "cambada de ignorantes" que não sabem e não querem aprender, por isso ele tem de dar aquela ajuda extra. Estará à espera de receber o prêmio da carolice? É um homem complicado, teimoso como o Boxer da fábula de George Orwell, que pastando na companhia de Benjamin, não conseguiu entender o significado das suas observações. A sua semelhança, o Luís não compreende os colegas, e em face das contrariedades, opta por se esforçar ainda mais. Irá também acabar no matadouro?

Como o Ferreira não sabe fazer outra coisa senão trabalhar e porque tanto o aflige a situação do filho, começou aqui há uns tempos a reduzi-Ia a cálculos estatísticos. Aliás, melhor do que ninguém, ele sabe que os resultados

finais não podem ser correctos porque a amostra não é significativa. Também I
o que faz não vai servir de argumentação a nada. E apenas uma maneira de entreter o vício. Mercê dos conhecimentos que tem, fez um gráfico complicado, difícil de entender por qualquer leigo, mas que para ele ainda está um tanto incompleto. Tem de ser remodelado, aperfeiçoado. Será tarefa a realizar numas próximas férias...
Para já, está ali objectivamente considerada a situação do filho e mais três colegas, rapazes que ele conhece desde pequeninos e que têm precisamente a idade do seu Jorge. Um é estudioso, metódico, vai a caminho de ser dentista e tem à frente uma carreira prometedora, porque o consultório do falecido pai está à sua espera, o nome já está divulgado e nem é preciso mudar a tabuleta. "De resto, o rapaz tem cabeça." - pensa o Luís, não com inveja mas com uma certa melancolia - "Vai com certeza provar que os sonhos do


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pai não foram em vão." Dos outros dois, um, mais vivaço, ganha rios de dinheiro angariando seguros por conta própria e o outro, graças à sua própria inteligência e às explicações de Matemática dadas gratuitamente pelo Ferreira, frequenta nesta altura a Universidade da Caparica e sonha pertencer em breve ao quadro dos engenheiros da IBM.
Quatro rapazes da mesma geração, vivendo e crescendo juntos, todos açao

com igual Q.I. segundo resultado de testes feitos no Instituto de Orientaç¦o profissional, no Largo da Misericórdia, em Lisboa e, enquanto os outros

têm os seus futuros mais ou menos definidos, ali está o seu Jorge com o 12.' ano completo, por sinal com um óptima média, a marcar passo duplamente, ou seja, marchando no quartel com os outros soldados e arrastando os estudos, pois tem ainda por fazer o Inglês do 10.' e ll.'anos!...

"Um raio duma disciplina que," - pensa o Ferreira com azedume por ironia do destino, até nem faz muita falta no Curso de Informática que O Jorge quer tirar e que continua como um fantasma a ensombrar as nossas
as, a p@or-me açoes e comvid a mim cada vez mais doente e a criar nele frustr

plexos de inferioridade!"

- Não tem bases! - é o que têm vindo os professores a dizer.

Ea palavra bases transportado a um tempo mais atrás e fá-lo recordar a indecisão dos outros pais, quando no Ciclo chegou a altura de optar pelo Francês ou pelo Inglês. Para ele não houve dúvidas. Lembra-se perfeitamente que a sua atitude decidida contrastava com a dos outros encarregados de educação. Escolhia o Inglês, língua falada em todos os cantos do mundo, língua do presente e língua do futuro. "0 Francês teve o seu tempo, mas quer queiramos quer não, temos de aceitar que foi destronado."- lembra-se de ter pensado e, sem hesitação, ter matriculado o filho em Inglês, considerando ser essa a melhor opção.

E, porque de Inglês o Luís Ferreira também arranhava qualquer coisa, foi verificando, com espanto, que ao longo do 1.' ano do seu filho, com quatro horas semanais, pouco mais lhe tinha sido ensinado do que dizer e


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perguntar o nome, a idade, o país de origem e a direcção. Lembra-se de ter pensado: "Um ano Inteiro e só isto? Será que subestimam o meu filho? Ou sou eu que não sei nada de Psicologia e é apenas isto que está ao nível da criança? Mas não se diz que as crianças têm mais capacidades para aprender línguas do que os adultos? E será assim tão curto o programa de Inglês? Estará então o livro desajustado do programa? Porque, no livro" - ele já tinha tido a curiosidade de o folhear - "sempre se ensina mais qualquer coisa!" Estas eram as reflexões que o Ferreira ia fazendo, sem atinar com as respostas.

Outra coisa que fizera, fora dar uma vista de olhos pelos cadernos dos amigos do filho. Constatara que estes, colocados noutra turma, se tinham adiantado bastante mais na matéria. Teve pena que o acaso os tivesse separado e sentiu uma secreta e até justificável inveja. Consolou-se, no entanto, com os "elevados" que o seu Jorge ia trazendo para casa, o que provava que o gaiato era esperto e assimilava bem o pouco que lhe iam ensinando. Entretanto o ano escolar chegou ao fim, sem ele ter tido coragem para ir à escola dar a sua . .- opinião. "De qualquer maneira," - justificou-se ele - "para que querem eles a opinião de um leigo?"


Enquanto decorreu o 2.' ano do Ciclo, o Ferreira sentiu-se roubado como contribuinte, porque a professora do filho faltava constantemente. Obcecado pelos números, comparando, registando, verificou, ao chegar à Páscoa, que ela tinha dado menos de metade das aulas previstas. Fazia fé nos atestados médicos que ela metia - infelizmente também conhecia os problemas que advêm de ter doenças em casa - mas achava que as crianças daquela turma, incluindo o filho, é claro, deveriam ter direito a um professor substituto. Não era preciso ser muito inteligente para saber que assim como as coisas se aprendem a fazer, fazendo, também o filho só aprenderia a falar Inglês, falando. Logo, se a professora faltava, roubava-lhe a oportunidade de aprender e ele e os da sua turma iriam ficar em desvantagem, no ano seguinte, em relação aos outros colegas. Ou não seria assim? Mas aquele 2.' ano trouxe-lhe


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outra surpresa, também motivo de preocupação: atónito, tinha verificado que estava a ser repetida a mesma matéria. Revisões? Concordava que eram sempre necessárias. Mas ao longo do ano inteiro? Então o que é que se aprendia de novo? Não tinha havido qualquer progressão no ensino da língua e o entusiasmo do Jorge começava a esmorecer, devido à monotonia da repetição. Fazer a impregnação auditiva é bom, mas quando ela i à está feita, o aprendente quer obviamente avançar. Não o fazendo, desmotiva-se. O mesmo acontece a muitos alunos brilhantes obrigados a acompanhar outros com um ritmo de aprendizagem notoriamente inferior.

Mas aqui o caso era diferente. Tratava-se de uma turma do 2.' a aprender a matéria dum 1.' ano! O livro comprado no mês de Setembro, por um preço exorbitante, estava lá em casa ainda por abrir. E o pai, atento como poucos, ao percurso escolar do seu educando, continuou teimosamente a procurar outro§ termos de comparação. Fez perguntas subtis aos amigos do filho, não só aos íntimos, mas a todos os outros com quem conseguiu contactar e pediu cadernos diários. Não foi muito feliz com a maioria dos cadernos, porque poucas crianças gostam de escrever e nem todos os professores lhes incutem esse gosto. Mas teve a sorte de encontrar sumários, cujo registo os alunos em geral não descuram, nem sabem porquê. Como porém uma das finalidades dos sumários é precisamente dar ao encarregado de educação uma noção das actividades que decorrem, pôde o Ferreira verificar o abismo entre o que fora ensinado nas outras turmas e na do Jorge. No início do 3.' período, numa das suas idas à escola, ganhou forças para ultrapassar as conversas triviais e entrar no domínio das recla

maçoes.

Foi, como sempre, cordialmente recebido pela Directora de Turma. Quando fez a queixa foi ouvido com atenção e interesse. Viu-a procurar no dossier, nervosamente, qualquer informação relativa à disciplina de Inglês. Da professora em questão, só encontrou participações disciplinares, o que era inviável no caso daquele aluno. Nada tendo encontrado, acrescentou modestamente que de Inglês nada sabia, mas era amiga da colega, confiava nela, que de certeza sabia o que andava a fazer. Continuando a remexer os papéis


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encontrou a ficha de registo de avaliação do Jorge. Fez uma exclamação de alegria. Ele até tinha 4 na disciplina de Inglês! Os seus níveis eram de 4 e 5! Para quê então tanta preocupação? Talvez ele estivesse a exagerar, acrescentou sem pretender ofender, antes elogiando, pois não há assim tantos pais que possam gabar-se de terem filhos dignos de louvor. As vezes os pais, com a preocupação que têm com os filhos, acabam por empolar as situações.

Era a primeira vez que a Directora de Turma dava aulas e, consequentemente, também a primeira vez que exercia as funções inerentes a uma direcção de turma. Não desempenhava portanto o cargo por ter provado estar à altura dele, mas porque no seu horário incompleto de Matemática havia dois tempos que era preciso preencher. A sua inexperiência não tinha sido tomada em conta e obrigá-la a fazer, no mesmo ano, a estreia de professora e directora de turma era o mesmo que mandar um artista tocar dois pianos ao mesmo tempo. Recebeu duas horas de redução em troca do desempenho daquele cargo quando na verdade as merecia apenas como prêmio de adaptação a uma carreira de desconcertante contraste com as carreiras de outros licenciados, seus amigos e colegas de infância.

Odia fora esgotante. Correra ao toque da campainha, impusera ordem nas suas aulas, travara agressividades, recebera participações disciplinares, convocara encarregados de educação, enviara registos de faltas e enchera a pasta de testes para corrigir no feriado, quando acabasse de fazer os planos de lição. Ia agora à pressa apanhar a camioneta que a levaria a casa, a vinte quilómetros de distância. Vendo bem, o que menos lhe custara ao longo daquela manhã de cinco horas fora o contacto com aquele pai tão educado.

Aseparação foi amistosa e o assunto ficou encerrado. No dia seguinte, assoberbada de trabalho, entregue a si própria e sem incentivos de ninguém, não teve tempo de ir indagar da situação. Se o tivesse feito, teria chegado à conclusão de que, erradamente, o Jorge fora colocado numa turma que não tinha tido professor no ano anterior. Essa era a razão por que lhe estava a ser ensinada a matéria do I.'ano e não chegou nunca a aprender a do 2.'.


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Para a Directora de Turma o caso terminou sem ela se ter apercebido da sua gravidade; para o pai do Jorge foi diferente. Quando abandonou a escola sentiu o mesmo alívio do paciente que teve alguém disposto a ouvi-lo e lhe garantiu longos anos de vida. Mas com o tempo desapareceu o conforto e a dor voltou. Observando sempre, comparando, viu os colegas do filho a progredir. Começou a ficar mais enervado. Invejou os outros três rapazes. Praguejou contra a sorte, ou antes, a pouca sorte que os tinha separado e colocado em turmas tão diferentes. E o ano chegou ao fim.


No 7.' ano o Jorge frequentou outro estabelecimento de ensino. Os responsáveis não mandaram, juntamente com o seu processo, a indicação da necessidade de compensação educativa. Também o Ferreira não a reclamou. Não sabia que tal coisa existia e, mesmo que soubesse, não chegara a aperceber-se que o filho tinha direito à mesma. E as aulas de Inglês transformaram-se num verdadeiro suplício para aquele estudante! Não percebia literalmente nada do que se dizia ou escrevia no quadro e, quando a professora dirigia para ele a sua atenção, sentia-se tão perdido, tão infeliz, que desejava ardentemente uma doença que o impedisse de frequentar a escola. Era ponto assente que na aula os alunos tinham de se expressar em Inglês e ele sentia-se completamente incapaz de o fazer. Nem perceber, quanto mais falar!

Pertencia finalmente à mesma turma dos três amigos e vizinhos e estes ofereceram-lhe ajuda que ele recusou. Sentia-se humilhado com o facto de ter de admitir que não entendia aquilo que para eles era tão claro. Habituou-se a não tirar dúvidas, contrariamente ao que fazia nas outras disciplinas, porque aquela parecia-lhe uma nuvem carregada e não havia vestígios de sol que lhe aquecesse o coração.

Oprimeiro período era de adaptação e a professora atribuiu-lhe nível 2; no segundo, atribuiu-lhe nível 1, para que o encarregado de educação compreendesse que a situação era grave. Mas o Luís Ferreira já estava alertado, pois continuava a acompanhar a situação escolar do filho, a orgulhar-se dos seus bons resultados às outras disciplinas e a inquietar-se com os desaires naquela.


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Já fora várias vezes falar com a professora de Inglês, que nesse ano, por casualidade, era também a directora da turma do Jorge. Juntos, ainda não tinham encontrado solução para o caso. A professora sentia-se perplexa perante as avaliações de 5 e 4 , atribuídas respectivamente no I.0 e 2.0 anos, classificações aliás justas em relação à matéria dada e aprendida, mas falsas, porque não se referiam ao programa na sua globalidade nem tinham sido atingidos os objectivos propostos para as restantes turmas da mesma escola. A professora sugeriu então que o Ferreira, uma vez que sabia Inglês, como dizia, ajudasse o rapaz. Porque não estudava as lições diariamente com ele? E pai e filho começaram a trabalhar juntos. O primeiro, com imensas dificuldades porque a metodologia mudara com os tempos. Nunca, por exemplo, ouvira falar de 44 funções" quando era estudante. Agora a professora fazia daquilo o pão nosso de cada dia. Aliás era interessante. Explicar ao filho é que se tornava mais difícil. E daí a reacção do segundo que, sem querer ofender o pai, sentia que a professora é que sabia. Havia sempre uma desconexão no modo de um e outra abordarem a matéria e o aprendente acabava "baralhado". Como "santos da casa não fazem milagres", a pouco e pouco a sugestão da professora foi posta de lado, com alívio de ambas as partes. No fim do ano o jovem transitou com nível de 4 a todas as disciplinas, em contraste aberrante com a classificação de Inglês. Seria por não ter ouvido para as línguas? Não foi essa, no entanto, a opinião da professora de Francês que lhe atribuiu nível 4, sem qualquer hesitação.


O8.' ano do Jorge trouxe ao Ferreira mais dores de cabeça e ao filho mais frustrações. Foi novamente afastado dos amigos e colocado numa turma de alunos mais velhos, com muitos insucessos acumulados. E essa foi mais uma vez a sorte, ou antes, a pouca sorte do jovem... No meio de uma indisciplina generalizada incapaz de ser contida por professores com pouca experiência, a qual gerou setenta por cento de reprovações no final do ano lectivo e fechou as portas do ensino diurno a todos aqueles que atingiram o limite da escolaridade obrigatória, o Jorge conseguiu sobreviver e manter a sua média


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de 4. Em relação ao Inglês, porém, recebeu por contágio o vírus da indiferença. Na aula mantinha apenas o corpo. A mente andava lá por fora, a imaginar como a vida iria ser bela quando no IO.' ano optasse por outra língua. Entretanto quis fazer crer ao pai que o problema não era assim tão grave. Como os alunos podiam transitar com dois níveis inferiores a três, era só questão de aguentar com calma até ao fim daquele ano, que já estava praticamente no fim e depois fazer o mesmo no 9.' que , vendo as coisas com optimismo, também havia de passar depressa.

-O pai não se meta! - acrescentou ele, pensando imaturamente que o problema ficava resolvido - Não precisa de ir mais à escola, porque os colegas até já me gozam. Não se preocupe comigo. Bem lhe basta a doença da mãe. Cuide dela que eu cá me arranjo.

Mas a sorte não favoreceu o Jorge, porque o 9.0 ano não passou assim tão depressa. Deu todas as faltas que podia, contabilizando-as cuidadosamente, não fosse descuidar-se e ficar excluído. Nas aulas a que assistiu sentiu-se desmotivado e nervoso. A angústia chegava a provocar-lhe náuseas. Quando a professora faltava, o alívio era tão grande que considerava não ter havido uma simples interrupção mas um acontecimento digno de festejo. Se os feriados nacionais calhavam no dia em que tinha a disciplina em causa, gozava-os com redobrada alegria.

Para maior desgosto seu, quando chegou a altura de se matricular no 10.' ano e de se "descartar" do Inglês, foi informado que, no Curso de Informática, que desejava frequentar, não havia opção entre Francês e Inglês. Esta era a língua obrigatória!!! Grande decepção! Chegou a casa tão doente que se meteu no quarto e recusou qualquer diálogo com os pais. A mãe, nem pensou transmitir a decepção; ao pai, sempre atento e preocupado, conseguiu contar no dia seguinte, com um nó na garganta, a razão do seu desgosto.

De comum acordo, depois de umas férias gozadas sem alegria, o Ferreira arranjou um explicador para apoiar o filho no 10.' ano. Ao sábado à tarde, no fim de cada mês, ia pagar e indagar do aproveitamento. Era-lhe dito


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que tudo estava a correr bem. As notas da escola desmentiam a informação. A discrepância de opiniões devia-se ao facto do dia e horas escolhidos para as

visitas impedirem o Ferreira de ter u cta da variedade de disciplima noção exa

nas leccionadas ao mesmo tempo, pelo mesmo explicador. O Jorge também não se abriu com o pai, nem lhe contou o episódio anedótico daquela hora que pagou para aprender Inglês e durante a qual ensinou Matemática a um garoto do Ciclo... Daí a sua não recuperação e, no fim do ano, a impossibilidade de se matricular naquela disciplina.

No ano seguinte o Luís Ferreira dispôs-se a pagar aulas individuais, sacrifício que o filho se negou a aceitar. Conhecia o custo dos tratamentos da mãe e apercebia-se dos malabarismos do pai para aguentar a situação. Para além do problema financeiro, fizera, a partir duma amostra infeliz, uma generalização errada e injusta acerca da competência dos explicadores. Com estes, cortara relações. Tinha, no entanto, de fazer a disciplina como aluno externo. Portanto prometeu que iria falar com a professora e assistiria às aulas com a frequência normal, promessa que cumpriu de facto. Mas sentiu-se totalmente incapaz de acompanhar a turma. Tornou-se um adolescente introvertido, pouco dado a brincadeiras, cioso das notas elevadas obtidas nas outras disciplinas. Dedicando-se-lhes afincadamente, penitenciava-se do seu desleixo, digamos o seu desprezo, pela Língua Inglesa. E, como é óbvio, no exame de l I.0 ano, para o qual se inscreveu, não teve qualquer sucesso.

Mais duro foi, no fim do ano lectivo seguinte, depois de ter concluído com uma boa classificação as três cadeiras do 12.0 ano, ver-se impossibilitado de se candidatar à universidade por falta de aproveitamento na disciplina de Inglês do Curso Complementar..

Também ao Luís Ferreira a disciplina que o filho tem em atraso provoca muitas noites de insônia. Bailam-lhe os algarismos em frente dos olhos. Vai fazendo mais contas de cabeça. Oito anos atrás, no acto de matrícula. Um


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professor colocou na Turma A o seu filho e na B os amigos dele. Alguns dias depois, a equipa dos horários entregou a primeira a um Conselho de turma e a segunda a outro. Apenas isto! Um número, neste caso um indivíduo com nome, que o acaso transferiu dum conjunto para outro. E depois tudo o mais, que é apenas uma história, mas que calha ser a do seu filho... Para que servem as estatísticas, se não mudam a vida das pessoas? Raio de sorte a sua!








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Uma vida dedicada ao ensino

ASilvia vive sozinha. Aos vinte anos o namorado trocou-a por outra. Aos trinta e muitos, um homem maduro a quem, ingenuamente, se entregou, abandonou-a sem qualquer explicação. Desse desencantamento nunca mai se recompôs e uma das formas de lutar agora contra a solidão é não sai da escola directamente para casa. Quando as aulas terminam, desce até ao Rossio e dá uma volta sem destino. Encontrando um amigo, o que raramente acontece, pára a conversar. Se há tempo para tomar um café e para uma conversa amigável, melhor para a Silvia. Não havendo, ela continua o seu caminho, um pouco decepcionada pela falta de companhia. Entretanto vê montras, compara preços, enche-se de intenções de comprar isto e aquilo, mas nã chega a entrar em loja nenhuma. Na verdade, não são as coisas que a interessam, mas as pessoas. E ainda não entrou no espírito da sociedade consumidora. Não responde aos apelos da publicidade. Compra apenas o necessário. Não é mesquinha, mas vive com sobriedade, e o ordenado de professora, não sendo grande, daria para ela viver, se não tivesse ninguém a seu cargo. Acontece que os seus quatro sobrinhos são órfãos de pai e ela sente-se no dever de ajudar a cunhada, que recebe uma pensão mínima e luta com sérias dificuldades. Paga a educação dos sobrinhos com o dinheiro conseguido através de aulas particulares. E são estas que a levam de retorno a casa, depois do "passeio dos tristes".

Dar explicações não é nenhum sacrifício. A Sílvia fá-lo por gosto. O único problema é o cansaço, visto que "0 que vale a pena fazer, vale a pena fazer bem feito" e ela dedica-se de alma e coração. As vitórias dos explicandos são as suas vitórias. Já são quase adultos, alunos do Curso Complementar e a sua dedicação não lhes passa despercebida e faz com que lhe queiram bem. Tornam-se mais do que alunos. Passam à categoria de familiares, a quem nada cobraria se não tivesse compromissos assumidos. Brincam mesmo com ela, chegando a combinar, no elevador, os oitos que vão anunciar, em substituição dos catorzes ou mais que efectivamente tiveram no último teste. A Silvia acha


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a nota injusta em relação aos conhecimentos deles, não em relação ao que poderão ter feito. Irrita-se e quer ver os testes, para saber onde falharam, mas os explicandos dizem-lhe que se esqueceram deles em casa, dentro do caderno da escola. Então fica indignada, porque deveriam ter interesse em fazer a correcção com ela e assim não a podem fazer. Chama-lhes irresponsáveis.

-Se não vêm cá para aprender, também escusam de estar a gastar o dinheiro dos vossos pais. A propósito, o que é que eles disseram da vossa nota? - pergunta ainda, cheia de desgosto e preocupação.

Um explicando prepara-se para acrescentar ainda que levou uma tareia, mas os outros acham que é tempo de pôr fim à brincadeira e desatam todos a rir. Ri também, aliviada, e promete a si mesma não tornar a acreditar. Mas vai deixar-se enganar novamente, quando já estiver esquecida. Começa então a lição com um entusiasmo que não advém da necessidade de recuperar, mas do desafio de provar que podem ser ainda melhores.

Dando explicações a Silvia ganha dinheiro e ganha amigos. Outra vantagem é que não fica de braços cruzados à espera que os sobrinhos, que têm vida própria, lhe venham fazer companhia. Aliás, segundo o seu ponto de vista, gratidão não é fazer visitas rotineiras, mas sentir no coração se gostam ou não dela, se a admiram ou não.

Por recomendação médica, a Sílvia tomou ontem, ao deitar, um sedativo. Primeiro, o comprimido provocou-lhe um sono profundo, como se estivesse dentro de um túmulo. Depois de cumprido o seu efeito, concedendo-lhe umas escassas horas de repouso, deixou que ela passasse à fase dos pesadelos como sempre lhe acontece, antes de despertar, quando toma o remédio. Aconteceu então que tinha tocado para a aula e ela não encontrava a chave da sala. Quando finalmente a encontrou, fora do sítio, constatou que também o livro de ponto tinha desaparecido. Ouviu o segundo toque e daí a momentos sentiu a turma a passar em correria. Teria então que ir justificar aquela falta tão estúpida!

Virou-se na cama e entrou no pesadelo seguinte. Desta vez estava na aula e a voz não lhe saía. Os alunos esperavam e começavam a movimentar-se.


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Um deles deslocou-se até à carteira do delegado da turma e apontou um dedo acusador na sua direcção. Ela assustou-se e recuou. Depois começaram todos a rir e a fazer esgares. No momento seguinte já não havia alunos. Ela própria estava a prestar provas e a gaguejar, a esquecer-se da matéria. O professor enfastiou-se, ameaçou reprová-la e acabou por dizer, com pouca delicadeza, que, vistas as coisas bem vistas, ela bem podia esperar mais um ano para concluir o curso...

Mais outra volta na cama em luta com tantos obstáculos ao que queria, mas não podia fazer, ao que devia mas não conseguia, encontrou-se então num outro local indefinido onde o pai lhe estava a ler um poema acompanhado do tio que falecera recentemente com noventa anos, mas que no sonho era muito mais jovem e lhe pegava ao colo, carinhosamente. Ela sempre achara o tio muito feio, sobretudo se comparado com o pai, que tinha uma feição tão correcta, mas isso não diminuíra o grande amor que sentia por ele. No desenrolar do sonho, recuou uns largos anos, até à adolescência, e recebeu dele um livro em cuja dedicatória se lia: "Hás-de ser professora." E a seguir o rosto dele cresceu, inchou, tornou-se disforme e medonho como os abortos oferecidos nos espelhos de feira. Não era o tio, era um monstro...

Ogrito que deu e o toque do despertador, em simultâneo, trazem Silvia de volta à realidade.

7.30. Meia a dormir, meia desperta, sentindo na boca o gosto amargo do sedativo, a Silvia começa a situar-se. É sexta-feira, dia do seu aniversário. Sabe que nasceu àquela hora da manhã, portanto completa, precisamente naquele momento, meio século de existência. Mas a dor de cabeça é tão forte que não sabe se deve orgulhar-se ou esquecer. Mais importante do que ter vivido cinquenta anos sem qualquer doença aparente, é a acção de formação que vai decorrer hoje e da qual ela é a principal responsável.

Não vai cumprir o seu horário habitual na escola. Os alunos já estão informados. Dispensou os explicandos. Depois os compensará. Tem portanto a manhã por sua conta, o que já não é mau, visto que anda sempre atarefada.


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Pode portanto pensar em si própria e vai oferecer-se o presente que lhe dá mais prazer: uma ida ao cabeleireiro. Usa o cabelo preso atrás com um gancho, mas tem uma farta cabeleira de um castanho acobreado e um penteado feito por alguém que sabe da profissão dá-lhe um ar interessante, fá-la sentir-se

mais jovem, lembra-lhe que, se já não é bonita, pelo menos pode gabar-se de o ter sido. Sente-se menos deprimida.

Também lhe levantam o moral as palavras de conforto de um certo amigo, que lhe diz de vez em quando:

- Força, Silvia! Tens dentro de ti mais reservas do que julgas.

E ela começa a usar essas reservas e a sentir-se outra vez menina. Nessas

ocasiões pensa no pai, o qual, na idade que ela tem agora, dizia frequentemente: "É um rapaz do meu tempo...... A expressão parecia-lhe, na altura, um

Pouco inadequada e agora tão familiar e normal. Também ela diz, referindo-se a alguma colega: "Aquela rapariga..." e não leva a mal o sorriso dos sobrinhos, porque sabe que de geração em geração a história se repete. Na vida é tudo muito relativo. Quando vai ao mercado, chamam-na de "Menina" e ela

reconhece que quem o faz tem idade para ser seu pai. Mesmo assim, sabe-lhe bem.

Ainda na cama, volta a pensar na data que hoje comemora.

- Que velha estou! - diz em voz alta, com certo desânimo.

Falar alto é um hábito que ganhou e com o qual combate um pouco a solidão. Mas evita fazê-lo, para não se achar tolinha e porque não gosta de monólogos. É muito mais divertido conversar em pensamento com o seu outro eu. Fala-lhe durante as refeições, comenta os programas de televisão e as notícias do jornal, faz reclamações e chega mesmo a discutir com ele, porque o segundo eu é muito encorajador, menos emotivo e ela, dona do primeiro eu, é muito pessimista. Há combates renhidos. Durante umas semanas a fio ganha ele; depois ela vence-o e sai triunfante. Mas a vitória não lhe traz a felicidade.

I
Eportanto o outro eu que, em resposta ao comentário desanimado, lhe responde:



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-Velhos são os trapos. Tu és gente e da fina. A telenovela não te diz todos os dias que "gente fina é outra coisa"?

-Ora, as telenovelas dão-vos as experiências em segunda mão de que vocês gostam todos muito. Mas a verdade é que os outros é que comem os pequenos almoços requintados ou se sentam a jantar à luz da vela, os outros é ue bebem a cerveja fresca, os outros é que amam e se sentem desejados. Eu sou mesmo velha e não sirvo para nada.

-Olha lá, tens de ser realista. O povo diz que "quem andou não tem para andar." Mas daí a não servires para nada... Tenho ouvido dizer que fazes o teu serviço muito bem.

- Faço o que posso. Não sou a única.

-E também o que é que querias? Ser abelha mestra? - pergunta o outro eu severamente, com o intuito de a chamar à razão. - Sabes be m só de abelhas mestras se fazem as colmeias. O mundo não gira sem as obreiras como tu. Levanta-te e vai-te arranjar. Ter cinquenta anos não é assim tão mau como isso. Já pensaste que és um cofrezinho cheio de experiências vividas e, se tivesses habilidade para escrever, até eras capaz de mostrar ao mundo que a vida de uma simples professora perdida entre os milhares que há nesta cidade, pode ser tão repleta de surpresas e emoções como a de qualquer celebridade?

-É, pode ser. - diz a Sílvia um pouco mimalha e ainda na cama. Mas hoje estou com uma enxaqueca. Vou tomar um analgésico.

-Não é cedo demais para isso? Mas está bem. Hoje tens trabalho importante. Levanta-te e vai em frente! Se queres ir ao cabeleireiro, tens mesmo de te apressar! - diz o segundo eu, condescendente no que diz respeito ao comprimido, mas intransigente no que respeita ao resto.

ASilvia levanta-se então da cama, toma o pequeno almoço e o medicamento e a seguir o duche. Mas hoje, definitivamente, não está nos seus dias. Enfia as meias e depois a cinta. Quando acaba ri-se de si própria, e recomeça a arranjar-se, trocando a ordem das duas peças de vestuário. Em seguida põe um ar sério, pára para reflectir e conclui que a primeira decisão é que estava


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certa. Despe-se de novo e veste-se correctamente, com um certo nervosismos visto que começa a sentir o tempo a passar. Se se atrasar no cabeleireiro, não terá tempo de deitar uma vista de olhos aos apontamentos que sabe de cor, mas que não dá ainda como estudados.

Antes de sair de casa, vai buscar os óculos que deixou na mesa de cabeceira e traz de lá o despertador. Dá pelo erro e volta ao quarto, a desfazê-lo. Em seguida procura as chaves, não só as do carro como as da casa. Estão no lugar do costume, no fundo da carteira, mas tem que rebuscar bem, porque nunca as encontra à primeira tentativa. Verifica se estão todas ~

nao va arranjar mais algum problema e não poder entrar em casa à hora do almoço, logo hoje que tem a responsabilidade da acção de formação... Volta atrás, a ver se desligou o gás. Verifica também o fogão e o esquentador. Achando tudo em ordem, dispõe-se a sair o que não faz sem, no entanto, se certificar mais uma vez de que tem as chaves todas.


14-30. A sala está repleta de professores que não querem estagnar. Sendo as acçoes de formação tão poucas, é irresponsabilidade não se inscreverem nas que aparecem. Para além disso, as formadoras têm fama de ser competentes.

APresidente do Conselho Directivo entra na sala, para dar as boas vindas aos colegas, alguns de outras escolas, e para fazer as apresentações. Informa que a Dra Sílvia vai ser a orientadora neste dia e, nos seguintes, outros formadores apresentarão os seus trabalhos. Por simpatia para com a colega, faz ainda referência ao facto de ela ter vinte e cinco anos de ensino e festejar hoje o seu quinquagésimo aniversário. Palmas para a Dra Sílvia. Apanhada de surpresa, ela cora. Põe-se nervosa. Agradece. Com mais pressa do que seria necessário, agarra nas fotocópias que preparou e começa a distribuí-las. Nas aulas não faz assim. Entrega o conjunto ao aluno da frente, ele serve-se e passa ao seguinte. E assim sucessivamente. Ou pede a dois alunos, um de cada lado da sala, que façam a sua distribuição. É tarefa para a qual não faltam voluntários. Mas hoje está a perder um tempo desnecessário. Entretanto vai sendo observada, como é natural. Na expectativa do que virá a


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dizer, os colegas vão analisando a pessoa. A Silvia sente e retrai-se. Preferia que outros olhares pousassem em si. Desejava ver rostos familiares. Pensa nos alunos que estima e por quem é estimada, porque sabe envolvê-los no seu entusiasmo. É certo que ela é por vezes demasiado exigente, mas o relacionamento é bom porque, se o não fosse, o Paulo não teria tido a coragem de lhe enviar, escrita em Francês, uma certa carta recomendando-lhe que não os fizesse esforçar tanto... carta que ela guardou na sua caixinha de recordações e da qual já têm falado os dois, entre sorrisos, como bons amigos.

ASilvia tem facilidade em ensinar, ama os alu nos, sabe premiar o seu esforço com notas altas, porque a escala é de zero a vinte e não são estas as notas que ela gosta de guardar no Banco. Não admite indisciplina na aula, mas reconhece a altura de fazer uma pequena pausa para a turma descansar e sabe rir com os alunos, quando a pilhéria é boa. Ainda recentemente, num dia de calor que não convidava ao trabalho, uma turma entrou esbaforida e pouco disposta a colaborar. Era realmente difícil encontrar motivação. Alguns alunos estavam de pé, fora dos seus lugares habituais. O delegado conhecias suficientemente bem para perceber que a sua paciência estava a chegar ao limite. Esperou pela sua reacção. Quando ela levantou a voz acima do timbre habitual, disse o Antônio, tratando-a por Sylvie, conforme acordo feito no primeiro dia de aulas e por ser mais adequado à aula de Francês:

- Mas Sylvie, vamos ser honestos. Ontem à noite viu o noticiário?

- O noticiário... - repetiu, numa grande incompreensão.

- Sim, o noticiário. Viu?

- Lá ver, vi. Mas porquê?

- Então sabe que mostraram a Assembleia da República em exercício.

A Sylvie acha que nós nos estamos a portar pior que os nossos deputados?

Esta, ela não esperava. Teve mesmo de rir com eles.

Mas hoje a situação é outra e a audiência é diferente. Neste momento, não são amigos que ela tem diante de si. São estranhos. Colegas que vão ali para uma reciclagem, mas são tão doutores como ela, docentes para quem


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ela preparou cuidadosamente uma acção de formação e que sairão descontentes se sentirem que o seu tempo, sempre pouco, foi desperdiçado. A Sílvia fez pesquisa, seleccionou, fotocopiou, preparou acetatos. Programou, até ao último pormenor, os tempos de reflexão, de discussão e de exposição dos vários grupos de trabalho. Tomou também em consideração o tempo para as conclusões. E, no entanto, por razões que parecem inexplicáveis, a sua actuação
está a ser um verdadeiro fracasso e não convence ninguém. o projector de s

lides, ao contrário do que lhe disse o empregado que o transportou para a sala, não funciona. Um colega pensa que o defeito é dela, que pode não saber manusear a máquina, e vai ajudar, mas chega à conclusão de que o aparelho está de facto avariado. A Sílvia procura encontrar uma saída. Nada pode fazer, a não ser passar adiante. Mas a pena que isso lhe causa e o nervoso por tudo o mais perturbam-na de tal forma que não consegue colocar no retroprojector um único acetato que não fique de pernas para o ar. Sente, mais do que vê, alguns sorrisos maliciosos. A voz enrouquece-lhe, volta atrás várias vezes e pede desculpa com a plena certeza de que não será desculpada.

Neste momento a audiência está dividida. Os professores mais jovens pensam que seria uma boa ideia reformá-la. Abrir-se-ia assim uma vaga que um deles podia ocupar. Outros, os carolas do ensino que pertencem ao grupo dela e são menos egoístas do que os primeiros, ficam surpresos e preocupados com o insucesso da colega, entendem-no como um esgotamento cerebral doença que não é invulgar entre os da sua classe profissional e ficam receosos' e apreensivos com a possibilidade de lhes acontecer o mesmo. Há ainda um terceiro grupo, mais pragmático, que reconhece a ironia de Marcel Pagnol quando, pela boca de uma sua personagem afirma que a profissão de professor é "prestigiante, pouco fatigante e bastante lucrativa." Para a maioria dos professores deste terceiro conjunto, este é o momento de começar seriamente a pensar que , para não chegar àquele estado, mais vale ir começando a arranjar lá por fora outro emprego mais bem remunerado e que não exija tarefas feitas em casa, que os estranhos ao ensino não têm em conta e portanto não somam às horas de desgaste, já trazidas da escola.


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Entretanto a Sílvia continua às voltas com a acção de formação.Tem poder de autocrítica para detectar cada uma das suas falhas e tem brio profissional para se sentir muito mal. Teve, toda a vida, a mania do perfeccionismo e é mais tolerante com os outros do que consigo própria. Tem ainda um outro hábito, muito mais grave: o da autoflagelação. Em consequência de tudo isto, atribui um zero à acção em curso, embora lhe atribuísse oito, se a lição fosse de outrem. Sente-se humilhada e exausta. Vem-lhe à ideia o pesadelo da manhã e vê com clareza o rosto disforme do tio.

-Não acreditaste que eu não estava bem! - diz em tom de censura, dirigindo-se ao outro eu em pensamento, ao mesmo tempo que faz, para os colegas, um breve apanhado dos pontos dominantes da acção. - Queres sempre fazer-me crer que valho alguma coisa e cá tens a prova que não valho nada. Queres maior vexame?

Eantes que o outro eu lhe venha com palavras de consolo e queira fazer dela uma Scarlett O'Hara, lembrando que "amanhã é outro dia", acrescenta muito depressa:

- E não me digas mais nada! Já não vou nos teus optimismos. Che


ao fim da minha carreira e da minha vida guei

também!
Não é assim, mas desta vez o outro eu nem argumenta. Está totalmente vencido. Acha que ela é capaz de ter razão. E é com alívio dos dois eus e de todos os participantes que a acção de formação chega ao fim.

Apesar de tudo, a Presidente do Conselho Directivo conhece a Silvia e sabe que ela vale muito mais do que mostrou. Sente um certo receio de que uma imagem negativa da colega seja levada para fora da escola, mas contra isso nada pode fazer. Avança portanto com o ramo de flores previamente encomendado e que teria sido de parabéns pela lição e pelo aniversário, mas que afinal só vai cumprir a segunda das funções. Aquele é entregue à Sílvia, acompanhado de uma discreta salva de palmas, na qual não colaboraram os colegas mais novos, com certa justiça, porque a acção não foi boa e ninguém é


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obrigado a aplaudir o que não lhe agradou. Se fossem mais velhos, ter-se-iam apercebido que se não mereceu as palmas pela acção de formação, as merecia por toda uma vida dedicada ao ensino. Teriam aplaudido também.

Reforma antecipada, mesmo sem a compensação de doença adquirida ao serviço, resolvia-lhe o problema do desgaste psíquico. E o da solidão, da carencia afectiva? O que pode fazer um professor sem família e sem escola enquanto a Segurança Social não subsidiar a criação dos Centros de Apoio da Associação de Solidariedade de Professores?

Daqui por uns instantes, enquanto a Silvia estiver a arrumar os papéis, todos vão sair à pressa, para cuidar das suas próprias vidas. Ela vai voltar sozinha a casa, a pensar apreensivamente no dia de amanhã e logo à noite, se quiser dormir, terá de tomar outro soporífero, que virá acompanhado dos respectivos pesadelos!








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Conflito de gerações

Após aquelas quarenta horas angustiantes que decorreram entre o ataque repentino de coração e o baixar do caixão da mãe da Antónia à terra, nunca estivera presente num funeral, pensou que era horrível a jovem, que
aquela licença tácita que ela, o pai e a avó estavam a dar aos coveiros de oferecerem aos vermes o corpo da mãe. Pensou projectar-se para dentro da cova e assim partilhar o destino do seu ente mais querido, mas foi impedida de o fazer pelo instinto de conservação. Sentiu-se covarde e pensou que durante toda a vida não viria a perdoar a si própria se não impedisse o enterro. Pensou que a avó não deixaria de a ajudar e levantou os olhos à sua procura, mas ela

já se retirava, com pressa de abandonar o local que nos lembra que "somos I

po e em pó nos transformaremos", tal como o padre dissera. Apelando mudamente para o pai, achou-o resignado. Viu-se sozinha no mundo pela primeira vez! Para acalmar a dor que sentia no peito, dobrou-se instintivamente sobre si mesma e ficou com aparência de corcunda. Estava despenteada e tinha o rosto inchado e vermelho. O seu aspecto causava dó.
Coitada da pequena! Deus levou-lhe a mãe mas felizmente deixou-lhe a avó, que ainda tem boas forças para cuidar dela. - disse um dos amigos.

E todos concordaram. Só o tempo poderia desmentir a afirmação.


Opai da Antónia, fechado no seu mundo de egoísmo, resignou-se depressa. Embora tivesse sentido os arroubos próprios da juventude, nunca fora arrastado por uma grande paixão pela mulher. O interesse desaparecera a pouco e pouco, levado pela monotonia da vida quotidiana e pela atmosfera tensa derivada das constantes querelas entre a mulher e a mãe. A verdade é que, "quem casa, quer casa", como diz o povo, e não há memória de ter dado bom resultado a vivência de duas donas de casa debaixo do mesmo tecto. Uma considera que as flores são para regar três vezes por semana e para a outra duas vezes é o suficiente. Uma entende que deve haver dias fixos na semana


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ua cama, para aspirar a casa, para se fazerem as compras e a outra pensa que todas essas coisas são para fazer quando há oportunidade e disposição. Se a mais nova vai às compras, a outra diz-lhe que teriam sido muito mais bem feitas por si mesma, visto que é mais velha e não se deixa roubar. Enfim, as brigas entre a mãe e a avó tinham sido deste género, por razões insignificantes, se comparadas com os graves problemas deste Mundo, mas o pai não tivera estofo suficiente para perceber que eram sempre resultado de uma última gota que transbordava. Com muita raiva da parte de Antónia, que achava que o pai tinha obrigação de ir ajuizar de que lado estava a razão e ter com ambas uma conversa bem séria, ele optara pela atitude mais cómoda de sair de casa e deixá-las a guerrear, com a criança a ver e a sofrer. Era uma maneira de não tomar partido. Sentia quase sempre que a razão estava com a mulher, mas não tivera nunca a coragem de enfrentar a própria mãe. Fora educado segundo o critério de que mostrar respeito pelos pais é dar-lhes sempre razão. Durante a sua existência, que não era assim tão longa, pois andava pelos quarenta, ouvira muitos velhos gabarem-se, falando dos filhos.

Faltou-me ao respeito e eu preguei-lhe logo ali um bom tabefe, mesmo em frente da mulher e dos filhos...

Apesar de perceber que a falta de respeito em causa não passara de simples divergência de opinião, nunca tivera coragem para pôr em questão tais atitudes e pontos de vista. Daí que, quando havia questões em casa, saía sorrateiramente e ia encontrar-se com os amigos. Não era homem de família. Cartas e vinho na taberna, mulheres para além da legítima não lhe criavam problemas de consciência. Eram apenas passatempos agradáveis, maneiras de entreter o tempo. Fora criado, algumas décadas atrás, por um pai machão e uma mãe financeiramente dependente e seguir os exemplos de um pai é tão natural como o correr das águas dum rio. Distinguir os bons dos maus exemplos também nem sempre é fácil. Aliás, permanecer fora de casa mais tempo do que devia era um modo de evitar conversas com a mulher. Quanto menos falassem melhor, porque ela evoluíra e ele, incapaz de a acompanhar, nao gostava de se sentir ultrapassado.


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por tudo isto o pai de Antónia se resignou tão rapidamente' Tal como O amigo que se pronunciara no cemitério, ele achava que a filha tinha tido muita sorte por lhe ter ficado uma avó que olhava por ela e a ensinaria, segundo os seus princípios, a tornar-se mulher. Era o raciocínio de um filho obediente, a quem o termo "conflito de gerações" nada dizia. Se lhe perguntassem o que era, teria mesmo respondido:

-Eu sei lá o que é isso, pá, os gajos agora inventam coisas que a mim não me ensinaram na escola. É como essa dos direitos das crianças, de que falava a minha falecida...

Deste modo a Antónia perdeu ao mesmo tempo a mãe e o pai. A mãe, que Deus levou e deixou de a proteger como sempre fizera, e o pai que, entretido com novas ligações, passou a aparecer por casa cada vez com menos frequência.

Três gerações, cada uma de um só elemento, com o do meio quase

pre ausente, vivem presentemente sob o mesmo tecto. sem-


AAntónia, que nunca se escusara a ajudar a mãe nos recados, continua a fazê-los para a avó. Mas agora de maneira diferente. A mãe tinha sempre compreendido que a Antónia, que era uma boa estudante, gostava de se sentar à secretária e não ser interrompida. Como porém não podia prescindir da sua ajuda, dizia-lhe o que precisava que ela fizesse e não a pressionava. Com quinze anos bem responsáveis, a filha montava o esquema a seu modo e dava conta de tudo, estudos e recados.

Agora tudo mudou. Está sentada à secretária a estudar Matemática e tem de se levantar para ir à farmácia buscar um remédio, que não é urgente porque o frasco anterior ainda está cheio, mas, comprar por comprar, deve ser comprado na hora em que a avó decidiu. Várias vezes a neta lhe pede que faça uma lista dos artigos que precisa e depois deixe as coisas ao critério dela, sem estar a interrompê-la de dez em dez minutos, Nada consegue. A avó é quem manda e não está para ouvir razões.

As notas da escola estão a baixar do nível bom para o suficiente. Os professores surpreendem-se, falam com ela, dizem-lhe que concordam que perder


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uuluroso, mas é um facto que ela terá de ultrapassar. A adolescente em crise sente-se incapaz de dar uma panorâmica da

situação. Analisado superficialmente, vai parecer tudo demasiado trivial e os professores vão dizer-lhe que terá de ter mais paciência. Tem vergonha de se abrir. Talvez a culpa seja mesmo dela. Promete a si mesma encher-se de calma, mas anda cada vez mais nervosa. Chora por tudo e por nada e irrita-se com as amigas. Umas aceitam, dão-lhe desconto pelo falecimento recente da mãe; outras perdem a paciência e vão arranjar novas companhias.

Ajovem estudante tem hoje um teste de Biologia e a avó mandou-a comprar batatas. Ela sabe que ainda há pelo menos um quilo de batatas no caixote e disse com bons modos que tinha de estudar para a ficha de avaliação

que se previa ser muito difícil. Estava interessada em ter boa nota p - I ois, como explicou à avó, as médias do Complementar agora também contam para a

entrada na Universidade. E a Biologia é uma disciplina que inspira um certo respeito. Portanto ela irá comprar as batatas às 18.20, quando sair da escola.

Há uns minutos atrás, a avó pareceu compreender. Mas volta a interompê-la para lhe dizer, desta vez, que não há cebolas.

Já que tens de ir às cebolas, aproveitas e compras as batatas. - diz a avo com um tom de voz que parece à Antónia um tanto triunfante.

Sabe que ainda há pelo menos três cebolas grandes, mas resolve fazer-lhe a vontade e diz que vai, mas não já. Irá logo que acabe de rever um assunto importante que consta da matéria para o teste. A avó parece aceitar novamente, mas entretanto passeia no corredor e fá-la desconcentrar-se. O tempo vai passando, mas Antónia não se despacha. A fotosíntese não é matéria assim tão fácil.

-Como é que eu hei-de fazer o refogado sem cebolas? - repete a avó,

de cada vez que passa junto à porta, que a jovem mantém cerrada na esperança de se abstrair dos barulhos caseiros.

Mas a avó tem o cuidado de falar alto, para que a neta a possa ouvir e de elevar a tom de voz de cada vez que repete a mensagem. Já Voltaire fazia ver que OS livros e os tachos nunca se quiseram juntos; fotosíntese e compras de mercearia também não. Por isso a Antónia se começa a irritar e se desorienta


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quando ouve o refrão pela quarta vez. Abre a porta do quarto, agarra na saca das compras que a avó, querendo mostrar-se solícita, já colocou à porta da casa, procura o porta-moedas que se encontra no lugar do costume e desanda porta fora.

Na mercearia, a Antónia vai encontrar muitas donas de casa atarefadas que querem voltar rapidamente para fazer o almoço dos filhos que não comem às mesmas horas, uns tão cedo e outros tão tarde, e sempre desencontrados em virtude dos horários escolares. Entra na loja. Tem quinze anos, mas ali, junto das donas de casa, umas com idade para serem suas mães, outras com idade para serem suas avós, ela é considerada uma criança. E neste país não se formam filas. Em locais como este, faz-se discriminação etária a favor dos mais velhos. A Antónia começa portanto a ficar para trás. Pensa no teste e vê a manhã a passar. É bem educada, porque a mãe que perdeu, em questões de conduta era exigente, mas ser bem educada não significa não poder reclamar os seus direitos. E quando a quinta dona de casa lhe passa à frente e começa a ser aviada, ela descontrola-se. Meio histérica, falando alto de mais, mas sabendo o que diz, exige ser atendida. A dona da mercearia pára e não atende nem uns nem outros. Na loja formam-se partidos. Um grupo é contra a Antónia, que não tem almoço para fazer e portanto bem pode esperar; o grupo dos civilizados, que normalmente respeitam as filas, é a favor da Antónia, embora não a cem por cento porque acha que ela foi agressiva. Pertencente ao primeiro grupo e para aliviar a consciência, há quem diga:
- Vejam lá, é isto que eles agora aprendem lá na escola...

Encontra-se também ali uma professora, cliente há muitos anos. É por natureza metida consigo e não fala em público, mas ao ouvir o comentário não consegue conter-se e responde:

-Nós lá na escola ensinamo-los a não atropelar os direitos dos outros, o que, neste caso, significa atender as pessoas à medida que vão chegando.

Mas estas senhoras têm que fazer o almoço e a miúda não tem nada que fazer. - argumenta um reformado, a quem a professora costuma ver por ali entretendo o tempo a conversar, já depois de ser aviado.


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Então a professora perde também a cabeça e responde secamente:

Não tire conclusões precipitadas. Já pensou que ela também pode ter que fazer? Já se esqueceu que na escola antiga nos ensinavam a ser gentis? No livrinho de Educação Cívica, que estudávamos na 4. classe. Era capaz de

conter um pouco de demagogia à mistura, mas abstraindo disso, deu a muitos Pedros normas de civismo.

Mercê da professora, que a merceeiro admira e respeita, porque pertencendo ao sexo feminino não teve a sorte de frequentar pelo menos a 4.' classe, a Antónia é finalmente atendida. Sai porém tremendamente vexada. Gostaria de poder não voltar a pôr os pés naquela loja, mas as outras ficam mais longe e o tempo é sempre pouco. Medita, no caminho para casa. Pensa em coisas terríveis. Pensa numa frase que ouviu a avó dizer à mãe e que a fizera chorar e ficar triste por muito tempo. Na altura, não tinha entendido muito bem, mas era um ditado popular que não esquecera: "Já que me comeste a carne, hás-de roer-me os ossos." Agora com quinze anos feitos, ela compreendia muito bem que não seria sobre a mãe, mas sobre ela própria, que tinha caído a profecia da avó. Sente-se verdadeiramente deprimida. Vai pela rua, fazendo esforços para não chorar, e apetece-lhe desaparecer para sempre. "Um dia ainda hei-de fugir de casa. Para onde vou não sei. Mas tenho de resolver." - pensa.

Por agora, é para casa que se encaminha. Abre a porta, entrega à avó as compras e fecha-se no quarto à chave. Vai, como sempre que está triste, mexer na caixinha de recordações que pertencia à mãe e que ela um dia, depois do seu falecimento, levou para o seu quarto, com autorização do pai. Volta a ler uma poesia que a mãe dedicou a uma amiga, num momento de grande angústia. A mãe escreveu outras mais lindas, mas precisamente por ser mórbida , é aquela que a Antónia escolhe então.
Morre tanta gente!
Eu também quero morrer!
E tu, Queta, partiste...

sem esperar
que eu te fosse visitar.


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Tanto queria ir confortar-te!

Pensava levar-te

o caderno que te prometi.

Seria um bom passatempo p'ra ti passares a limpo os versos que durante a vida, a escrever te vi. Tínhamos combinado

que os primeiros a escrever aí seriam uns que me dedicaste há muitos anos...

E eu sempre a pensar na visita que te ia fazer, no que te ia dizer.

? tempo a passar

? eu sempre a trabalhar.

E tu morreste, Queta!, sem o caderno te entregar, sem te tornar a visitar!

Desculpa, Queta, mas a vida custa tanto...
Porque não é dado a cada um o direito de escolher
o momento em que quer deixar de sofrer?

Sente muitas saudades da mãe. Deita-se e chora. Gasta os lenços de papel e as lágrimas. Depois senta-se na cama a pensar no teste de Biologia, que é ao primeiro tempo da tarde. Abre o livro e tenta concentrar-se. Tudo o que lê, é como se não lesse. Tem consciência de que não estudou o suficiente e de que já não vai a tempo de aprender mais nada. Fica desorientada. Pensa que anda há uma semana agarrada aos livros, não apenas ao de Biologia, mas não tem aprendido muito. As disciplinas são muitas. O ambiente de estudo é deficiente. É verdade que tem o seu quarto e a sua secretária. Mas não tem privacidade. Quando está à secretária é constantemente interrompida pela avó que não tem a delicadeza de bater à porta e vem, ou incumbi-Ia duma tarefa,


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ou contar-lhe as novidades que a vizinha, com quem falou pela janela da marquise, acaba de comunicar-lhe. Neste momento está sozinha. Pode então estudar. Tenta fazê-lo, mas não consegue concentrar-se. Olha o relógio e vê que está na hora da telenovela. Fecha o livro, dirige-se para a sala e liga a televisão.

-Então tinhas assim tanto que estudar e vais ver a telenovela? - pergunta a avó, antes de lhe dar tempo a sentar-se.

Acha que não tinha? Se calhar menti-lhe... - responde Antónia impaciente.

- Mentiste, sim. - repreende a avó.

-Olhe não menti e digo-lhe mais: quem mentiu foi a avó. - acrescenta muito irritada.

Sente que as Fúrias, deusas da Vingança, a incitam a unir-se a elas na sua missão de punir e para isso dirige-se para a cozinha, onde num canto está ainda por esvaziar o saco que trouxe da rua. Dirige-se à caixa das batatas que se encontra por debaixo do lava-louça e despeja no meio da cozinha a boa porçao que ainda havia em casa antes de sair às compras. Faz o mesmo com as três cebolas. Agarra nos livros e sai de casa sem esperar pelo almoço.

- Até logo! - diz à saída, furtando-se ao beijo habitual de despedida.

- Não vais comer? - grita a avó, incapaz de perceber a atitude da neta.
Malcriada!


AAntónia chega à escola com uma hora de avanço e deambula pelos pátios. A todo o momento promete a si própria que vai sentar-se a um canto e abrir o livro de Biologia, mas fazê-lo está para além das suas forças mentais. Aqueles sessenta minutos parecem-lhe uma eternidade e sente alívio quando finalmente toca para a entrada. Com o coraçao aos pulos lê o enunciado do teste e nervosamente escreve o que sabe, que é aliás muito pouco. Uma semana depois recebe a primeira negativa do seu percurso de estudante...





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Bode expiatório

AJúlia tem dezoito anos e frequenta o 9.0 ano juntamente com crianças que têm catorze anos, algumas ainda treze. Algumas das suas colegas ainda brincam com bonecas ou pelo menos escondem-nas ciosamente das irmãs mais novas, para que ri ão as estraguem. A Júlia prefere brincadeiras sexuais e uma snifada de vez em quando.
Aficha desta aluna merece reparo, não pelo que tenha de bom em si, mas pelo seu aspecto negativo. Neste momento - estamos na Páscoa - já ultrapassou a metade das faltas em todas as disciplinas e está "tapada" em Geografia e em História. Corre portanto o risco de perder mais um ano. Mas não vai chegar a essa situação, é claro, porque tem manhas suficientes para se fingir doente e enganar os médicos que lhe passarão atestados para justificar, de quando em quando, mais umas ausências. Algumas vezes as faltas até são intercaladas, mas o médico não sabe e o director de turma nem dá por isso. Por essa razão, este ano já lá estão três papéis azuis agrafados à folha do registo e esta já tem as respectivas bolinhas em volta das faltas que foram dadas, mas que agora só contam para efeitos estatísticos.
De resto, o esquema não é novidade este ano lectivo. Os professores mais antigos conhecem a mãe da Júlia que ali vai há cinco anos, com uma frequência de proporção inversa à da maioria dos encarregados de educação. Por pena dela, ainda há dias a professora de História se fez esquecida e não registou a falta de presença que faria com que a aluna ficasse excluída por excesso de faltas. Não castigou a filha para não atingir a mãe. Se fez bem ou mal, é assunto controverso. Sebastião da Gama diria que fez bem.
Aquela senhora sabe que é conhecida de outros directores de turma que contactou com a mesma finalidade em anos anteriores e por isso sente um certo acanhamento em aparecer. Não pode, porém, deixar de resolver os problemas da filha. É recebida na sala de professores, sem qualquer privacidade, porque, lamentavelmente, não há na escola um gabinete para receber os


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encarregados de educação. Fala muito baixo, mas não consegue impedir que se perceba que a sua preocupação é saber exactamente o número de faltas da filha, para ir tomar as respectivas providências, se necessário. Mas a mãe de Júlia, assim com ar tão doce e tristonho, cheia de boas intenções e noções erradas, é capaz de ter também as suas culpas...
De burra, a Júlia não tem nada. Se não consegue transitar todos os anos e se, quando transita, tem níveis de três e alguns destes são votado s, e porque os interesses dela não estão dentro da escola. Ela gostaria de ter um emprego que evitasse a semanada que a faz dependente dos pais, gostaria de se juntar aos amigos e sair em companhia agradável no fim da semana, ir à discoteca e ir à praia. E casar. Porque não? Sabe que para as vizinhas casamento é passaporte de seriedade e quer muito mostrar-lhes que é uma pessoa séria. Casando, entrariam dois ordenados em casa e até talvez a possibilidade de um carrito.
Afinal esta adolescente quer o que é banal e legítimo. Lá armar em intelectual é que ela não está para isso. Já sugeriu varias vezes a mãe que a deixasse tirar um curso prático, que a ajudasse a procurar um emprego. Pediu e implorou que a deixasse aceitar o convite da D. Adélia, cabeleireira no seu bairro, para a ir ajudar no salão. Mas a mãe é inexorável.
Hás-de acabar o 9.' ano e hás-de fazer o 12.'! E vais tirar um curso superior, porque senão não és ninguém na vida! - diz peremptoriamente.
Tem uma ideia deturpada da função da escola. Para ela, as crianças e adolescentes não vão à escola para alargar os seus horizontes, nem aquela é um espaço onde se desenvolvem capacidades e se descobrem vocaçoes. Em sua opinião, o importante é obter um diploma e com esse diploma passa-se a ser "alguém". Não evoluiu e não consegue ver as realidades. Não se apercebe que ela própria é "alguém", apesar de não possuir o dito curso superior. Todos somos alguém e o que conta é o nosso civismo. Mas a sua teimosia não a deixa ver isto. Ela quer e assim há-de ser. E entretanto sofre, porque a Júlia falta às aulas, responde-lhe malcriadamente e tem um


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comportamento irresponsável. O marido diz-lhe, de vez em quando, que não é só a filha que está errada. Mas diz com pouca força, demite-se do seu papel e a situação vai-se arrastando.

AJúlia fica estarrecida, quando ouve as arengados da mãe. Vai para a escola e desabafa com uma colega que tem na conta de amiga.

-Devias ter estado hoje com a minha mãe! Parece doida. Estou eu aqui numa luta tão grande para acabar o 9.' ano, ainda ele não acabou e já me vem com a conversa de mais três anos de tortura e mais outros sonhos loucos que nem dá para te contar. Isto hoje só me passa com uma "passa"...

Está a ganhar o vício, porque não sabe fugir aos problemas de outra maneira. E a amiga fornece-lhe imediatamente a dita "passa", deixando a cobrança para mais tarde. Em negócio é assim. Há que saber fiar.
-Já me agonia estar sentada naquelas cadeiras incómodas à espera que a campainha toque para eles se calarem. Não sabem dizer nada que me interesse.- continua a jovem a lamentar-se. - Quando há trabalhos de grupo, ainda a gente se distrai a conversar, mas as outras aulas dão cabo de mim. E a mulherzinha de Geografia? Tu já a viste hoje? Já não consigo olhar para ela e não posso dar nem mais uma falta... Se ao menos faltasses A

fasta-se da colega, que neste momento já está a cumprir as suas funções junto de outro incauto e vai ver se o carro da professora está à porta. O azar é que está! "0 raio da mulherzinha nunca falta", pensa. "Mas não, hoje não. Hoje é que a minha mãe não me obriga a ir à aula de Geografia."

Sabendo que a sua ausência implica, ou ter de arranjar um atestado médico ou ficar excluída por excesso de faltas, a Júlia começa então a magicar. Há que encontrar uma solução. O que está fora de hipótese é a aula de e ma pessoa

Geografia. Aliás a professora não ' e a Júlia não a odeia, como

odeia outras. O que está em causa é o reconhecimento da sua superioridade intelectual, as suas falas suaves, os seus conselhos descabidos e sobretudo a obrigatoriedade de ter de a escutar três vezes por semana. "Ela fala assim",


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pensa a Júlia "porque a vida lhe corre bem, não tem problemas. Tem testes para corrigir, mas isso é fácil; difícil é resolvê-los". Preparar-se para os testes é um dos sofrimentos da Júlia, não porque lhe falte inteligência, mas porque as interrupções derivadas das faltas obstam a que consiga assimilar as matérias. Se ela mudasse de táctica e levasse a sério o 9.' ano, talvez se lhe abrissem mais perspectivas de um emprego, mas isso também a Júlia não está disposta a fazer. Se a mãe a deixasse sair neste momento da escola, era a maior alegria que lhe dava. Mas o problema agora não é com mãe, que é teimosa, mas com a mulherzinha de Geografia, que ela não está disposta a enfrentar neste dia. Amanhã, talvez, mas hoje não. Já ouviu dizer, a propósito não sei de quê, que a "necessidade é a mãe da invenção". Pois bem, se ela não quer ir àquela aula, vai ter de inventar qualquer coisa, e tem de ser já.

Dois minutos antes da campainha tocar para a entrada, a empregada da portaria entra na sala de professores. Com ar preocupado, dirige-se à professora de Geografia, que está de luto carregado pelo pai falecido há duas semanas e cuja perda sentiu profundamente.

Telefonaram do hospital. - diz ela. - Uma das suas filhas está muito mal, no Banco das Urgências.

Aprofessora fica lívida. Não sente força nas pernas, mas é imperativo que se levante e tome providências. O marido está no Porto, em serviço, e tem de ser ela a fazer alguma coisa. Procura nervosamente as chaves do carro.

- Vem comigo! - diz a tremer.

Não sabe a quem diz. Diz por dizer. As colegas têm de ir para a aula e é a ela que incumbe resolver o seu próprio problema. Não corre até ao carro. Voa. Agarra-se ao volante e geme enquanto guia. Vai em velocidade perigosa, recebe insultos dum condutor a quem rouba a prioridade e quase não vê o caminho, porque as lágrimas lhe embaciam os olhos. Vai chorando sempre e falando em voz alta. Pergunta a si mesma qual das duas filhas é que poderá já ter morrido. A imaginação solta-se-lhe e faz ela própria a escolha. Só para Deus a ouvir, porque se alguém soubesse que o fez diria que ela devia entrar


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directamente na psiquiatria e ser cuidada. Depois acha que afinal pensou mal e ainda está a tempo de rectificar. Escolhe a outra filha. E depois muda outra vez, apresentando a si mesma novos argumentos para a mudança. Vai sempre guiando sem respeito pelos sinais, sempre chorando, mais que chorando, gemendo, e sempre falando em voz alta. Já perto do hospital, vem-lhe à ideia IA escolha de Sofia". Um caso totalmente diferente do seu. Acha-se cretina pela comparação que faz. Desiste. Opta então por uma solução mais adequada ao seu estado de desequilíbrio momentâneo. Deseja ter um grande acidente de viação e morrer ali mesmo, muito perto da filha. Seria o ponto final e as almas, tão perto uma da outra, depressa se encontrariam. E se a filha - qual? nao morreu ainda? Se está neste momento a chamar por si?

Aentrada do Banco do Hospital abandona o carro, com as chaves dentro. Quem quiser que o tire do caminho. Entra a correr e pergunta pela acidentada.
-Explique-se lá melhor. - insiste o porteiro com pouca paciência. - O que é que a senhora quer?

Tem de se identificar e expor a situação, mas ninguém a entende porque entrou em histeria e, em vez de falar, grita. Acredita que lhe estão a esconder alguma coisa e fica mais histérica ainda. Um médico atencioso, que vai a passar pela portaria, segura-a por ambas as mãos e leva-a consigo para dentro de um gabinete. Interrogara com calma, percebe uma parte do que lhe é dito e deduz a outra parte, e a seguir tenta enxugar-lhe as lágrimas que impediram que ela o visse para mais tarde voltar lá a agradecer-lhe. Assegura-lhe que não se encontra na Urgência nenhuma criança nem nenhuma adolescente do sexo feminino e a sua voz é meiga e segura, é até convincente, mas não a sossega no que d iz respeito ao paradeiro das filhas. O clínico está cheio de trabalho, mas naque le momento ela é uma paciente também e, porque se perderia naqueles longos corredores, ele encaminhada daí até ao PBX e ajuda-a a telefonar para uma escola, onde a própria Presidente do Conselho Directivo vai à sala verificar a presença da filha. Ajuda-a depois a telefonar para casa onde a empregada lhe responde que a menina está a brincar. Estão ambas sãs e salvas.


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Oalívio é tão grande que sai do Hospital sem pensar na vergonha do espalhafato que fez. Agora precisava de ir para casa e dormir o resto do dia. Olha então pela primeira vez para o relógio. Passam alguns minutos do meio dia. Pelas suas contas, deveria ter saído da escola às II.25. Não tinha decorrido muito tempo e, no entanto, o desgaste da aflição tinha tocado bem fundo. Talvez fosse boa ideia ir para casa descansar, pois sente-se um bocado abalada. De qualquer maneira teria de voltar a sair de casa à I.30 para ir buscar a filha. Não, agora já tudo passou. Embora um tanto abalada, vai voltar à escola para a última aula de manhã e para meter o artigo 4.' da justificação da falta ao tempo anterior. Segue com calma, guiando devagarinho, analisando como tudo aquilo aconteceu. Devia ter sido um engano estúpido e ela não era a pessoa visada, pois é difícil de acreditar que alguém tivesse tido a coragem de fazer um telefonema deste gênero só para gozar a situação... Isso, nem no Carnaval. Ou será que alguém lhe quer tanto mal? Não, foi um engano. Um aviso deste só podia ter vindo de uma pessoa bem intencionada... e para alguém que realmente tivesse uma criança doente no Banco do Hospital. Mas o médico assegurou que não havia ali ninguém do sexo feminino... feminino... feminino... E de repente, ai! Sente um nó no estômago. Tem duas tenazes a apertar, a apertar, e uma dor tão forte no coraçao que estaciona o carro de repente, incapaz de conduzir. Começa a por as ideias em ordem. "Quantos

filhos tenho eu, estúpida?", - pergunta a si própria - "Três. E o meu filho I
que está em Evora? Não terá sido o amigo dele que telefonou? Ninguém me disse de que Hospital se tratava. Pode ser o de Évora..."

Desta vez a histeria agrava-se. Agora não há uma escolha idiota para fazer, mas uma tremenda sensação de culpa de ter olvidado a existência do filho. Liga o motor do carro e faz inversão de marcha, em direcção à saída para Evora. "A que hospital vou?", - pergunta, num desespero.- "Só pode haver um, numa terra tão pequena. Já terá morrido? Se tiver, abraço-o muito e não vai haver ninguém a quem eu permita que nos separa. Temos de ficar juntos para sempre". Depois pensa nas filhas e no marido. "Posso abandonálos?" - questiona-se. Pára o carro para dar prioridade a um grande camião


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contra o qual se ia esbarrando e depois fica, por segundos, sem saber o que fazer. Sente a necessidade de transferir para mais tarde a confirmação daquele grande desgosto que a espera em Evora e que lhe está a provocar um tremendo mal-estar físico. Abre a porta e vomita na rua. Sente náuseas e tonturas. Não tem força moral para enfrentar sozinha a viagem para Évora e sente a falta de presenças amigas. Covardemente, em vez da saída da cidade, procura o caminho da escola.

Estaciona o carro e entra a correr. Dirige-se ao PBX e pede à mesma empregada que lhe transmitiu há uma hora o recado, que lhe faça uma ligação para o filho. Custa-lhe encontrar o livro das direcções, depois não localiza o número e a funcionária, vendo-a tão transtornada, nem se atreve a perguntar-lhe o que é que ela já soube entretanto. Faz portanto a ligação em silêncio e, quando uma voz atende do outro lado, comunica-lhe que tem a mãe em linha e passa o telefone à professora.

Olá mãe! - diz o jovem universitário em tom surpreendido. - Não costumas telefonar a esta hora. Não foste hoje à escola?

Aaula de Geografia não foi dada. A Júlia - porque o empregado da porta principal descurou a sua obrigação e a deixou sair da escola durante o eríodo de aulas - está entretido com as amigas no café donde fez a chamada p
anonima. A hora do almoço vai contar à mãe qu e a professora de Geografia faltou à aula, mas não vai contar a maldade que lhe fez...








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"Não transitou"

Emais cedo do que a hora habitual de acordar. Como o despertador ainda não tocou, a Manuela volta-se para o outro lado, a procurar conciliar o sono. Mas está completamente desperta e não consegue. Põe-se então a pensar na tarefa difícil que a espera, naquele dia, o que a faz sentir-se invadida por uma sensação de desconforto e descontentamento.
Este é, na verdade, o pior dia do ano lectivo. O dia que transforma em castigo penoso o desempenho das suas funções, realizadas, na generalidade, com entusiasmo. Este é o dia que vai pôr termo a um ano de trabalho, com ela sentada e a reflectir maduramente sobre as notas finais.
É verdade que a avaliação é contínua e a grande maioria dos alunos já demonstrou claramente o que merece. Mas há que considerar os restantes. Esses tiveram sempre resultados com mais peso negativo do que positivo e sentem-se dependentes da sua benevolência, apresentando um ar contrito que a incomoda um bocado. Balem agora atrás dela, como ovelhinhas mansas, depois de se terem comportado um ano inteiro como cabritos à solta. Há colegas que consideram esta atitude uma chantagem emocional, mas ela não é assim tão rigorosa e acha que é uma reacção natural de quem é ainda imaturo e não está apto a fazer previsões pessimistas. Outros alunos comportaram-se devidamente. Se não progrediram nos estudos, foi por incapacidade e não por desleixo. E que fazer com estes? Puni-los duplamente? Seria justo fazê-lo, sabendo que a Providência não os favoreceu e que o apoio a que tiveram direito de nada lhes serviu?
AManuela tem consciência de que avaliar exige saber fazer justiça e, analisando-se, pensa que, ao longo da sua carreira de professora, tem conseguido ser justa. Chegou a esta conclusão porque, de um modo geral, as suas notas conferem com as dos alunos. No fim de cada período, costuma reflectir sobre as classificações e levá-las para a aula registadas a azul, e não a lápis, para que não haja motivos de suspeita. Pede então aos alunos que se


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também que os alu alu"os, Isto mostra que ela é benevolente e mostra
nos, apesar de jovens@ i o crítico c São honestos
,,a sua auto-avaliação, o que é de louvar. á tem sentid

Contudo, não é saber ou não saber fazer justiça que esta professora põe em causa; o que importa saber é se é a ela que compete fazê-la. Porque é declaradarnente contra o presente sistema de avaliação e o que a irrita, como rebelde que sempre foi, é ser obrigada a actuar de acordo com linhas de acção que não são as suas.

Não se julgue que a Manuela gostaria de guardar para si os dois ou três dias que gasta acorrer de casa para a escola e da escola para casa, fora
dos horários habituais, e faltar às avaliações. Não é este o caso. Ela não é contra as avaliações. O que recrimina são as avaliações de carácter eliniinatório e sem critérios rigorosamente iguais, os quais não poderão nunca existir.
Ao mesmo tempo que os Conselhos de Turma a que pertence irão decorrer, outras reuniões estarão a ser realizadas nas salas do mesmo corredor da escola. É de consenso geral que o grupo de Português é o mais carenciado de professores qualificados e isso reflecte-se nos alunos. Acontece então que num Conselho de Turma, o professor de Português considera, e talvez com razão, que os alunos não sabem escrever e por isso a nota mais alta que atribui é um treze. Um dos docentes chama a atenção para O facto de um dos alunos visados não ter nenhuma nota inferior a dezoito e da sua média baixar consideravelmente por causa da nota em Português. O colega, porém, ponderou e definiu os seus critérios com antecedência e rigor. Não irá retirar a nota. Em primeiro lugar porque, para dar uma nota diferente da que deu, teria de mudar muitas mais, algumas em Conselhos de Turma que já foram realizados. Se quiserem, que votem. O Conselho de turma está no direito de o fazer mas, nesta altura, já está dividido. Há os que conhecem a competência e a honestidade do professor de Português e acreditam que o problema advém da falta de preparação dos alunos nos anos anteriores. Não se atrevem a manifestar urna

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opinião contrária nem a charnar-lhe a atenção para o facto de os alunos nã serem todos iguais e Portanto não ser crime dar-lhes tratamento diferente não conhecem bem e consideram que ele está a exagerar. Se hou Há os que o -

ver votação, votarão a favor da subida da nota. Mas vão fazer subir só a nota do aluno dos dez -
O]tOs ou a de todos os que tiveram treze? É
para pensar.. Alguns colegas a]' - um problema
porque igeirarn a questão. O problema não é deles,

não são o aluno; não é deles Porque não foram eles que atribuíram o treze e, dado que são 13.40 e ainda não almoçaram, tal como aconteceu no dia anterior, o que desejam é que se abrevie a conversa. Por isso se calam os professores pertencentes às três facções, à excepção de um, mais contestatário, que apela para o director de turma. Mas o director de turma é UM tanto inexper,,ente, está cansado do trabalho que teve a preencher tanta papelada em duplicado e ainda não se recOmpOs da discussão que presenciou na reunião anterior e que gerou muita animosidade. Jovem e recém-formado@ sabia que aquilo não devia acontecer, mas não sabia que podia acontecer. Dai que não dá grande seguimento ao apelo do colega. Cai-se num impasse. Passa-se adiante. Pode vir a dar-se o caso daquele aluno não chegar a entrar em Medicina por lhe faltarem umas décimas, mas isso é um drama só dele e não dos que estão sentados à volta daquela mesa...

No Conselho de Turma que está a ser realizado na sala do lado, outro professor considera que o Português é fácil, porque é a I-ngua falada por todos nós. Falta tanto que mal conhece os alunos e não se altreve a reprovar ninguém, pois sabe que andou a passear pela Baixa nas horas que devia ter estado na escola, a ensinar. Não há negativas. A nota mais alta é dezassete.

Nessa mesma turma, vários alunos são reprovados em Filosofia e em Jornalismo. OS professores em questão queixam-se que os alunos não sabem exprimir as suas ideias. Já para não falar nos erros ortográficos... Aos professores presentes que seguem a reunião com a devida 'edade não


passa despercebido que é bastante contraditório não saber exprimir as ideias e ter dezassete em Português. Mas chamar a atenção para o assunto Pode ser

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considerado implicação com o professor em causa ou mesmo falta de respeito pelo seu trabalho, que só ele próprio sabe que não foi muito. Mais vale deixar que por care

errar por excesso do ncia. E mais um que entra para a Universidade sem saber exprimir as suas ideias. Já lá há tantos...

Uma professora lamenta que os seus alunos não tenham ainda compreendido que a sua disciplina é a mais importante de todas. Não percebem nada daquilo e, como tal, não vai dar em nenhuma turma mais do que sete positivas. Nem põe a hipótese que o problema seja seu, pois vem acontecendo assim ao longo dos anos e nunca ninguém se lembrou de alvitrar que o defeito podia ser dela. Na mesma disciplina, na sala ao lado, os resultados são normais.

AManuela, com quase vinte anos de ensino, já participou em longas e acaloradas discussões em Conselhos de Turma infindáveis. Nunca conseguiu compreender como se podem "utilizar em novas situações" "conhecimentos que não foram adquiridos". Também nunca entendeu como e que se pode progredir na aprendizagem" sem saber "utilizar em novas situações" os conhecimentos que foram adquiridos". Ouviu dizer várias vezes que não valia a pena preocuparem-se com sínteses descritivas que os encarregados de educação não entendem. Sabe que deve ser função do Director de Turma elucidar aqueles que de facto não as percebem. Isto, é claro, se eles não se demitirem das suas obrigações e aparecerem na reuniões para as quais sao convocados. Mas sabe também que a maioria dos encarregados de educação é capaz de as interpretar perfeitamente. O que lamenta é que, depois de recebidas essas sínteses ou afixadas as pautas, para além dos encarregados de educação que pedem recurso justo e deferido pelo Conselho Pedagógico, se encontrem os que o pedem sem qualquer fundamento, apenas para "atirar o barro à parede e ver se pega" com qualquer professor mais inseguro. Por falar em encarregados de educação, ela lamenta também que alguns vão fazendo ofensas e até ameaças ao longo do ano, enquanto outros se acanham e não apresentam as suas justas reclamações. Segundo ouviu dizer a alguém com responsabilidades, não o fazem por medo de represálias. Essa, a Manuela não gostou de ouvir, chegou mesmo a ofender-se, porque a palavra, em si, não


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encaixa na atribuição de funções dum pedagogo. Os professores merecem respeito, como merecem todos os trabalhadores, e por um que tenha errado não podem pagar m il. Generalizar não é correcto.

Mas voltando à avaliação, que é, de momento, aquilo que a preocupa. Avaliar é uma tremenda responsabilidade. Onde se pode avaliar com justiça sem aferir critérios? Para que serve aferir critérios, se depois o combinado não é cumprido? A quem se pode fazer aceitar critérios aferidos, quando não h humild ade? Onde se pode encontrar humildade, se há quem afirme que a su disciplina é a mais importante? Como se pode inspirar confiança a uma turm diz: "Olhem que eu tenho a faca e o queijo na mão!"? "Eu tenho a quem se
mortadela, de que eu gosto mais", ouviu a pessoa em causa, dum aluno mai vivaço e pô-lo fora da sala, sem reparar que fora a primeira a errar.

A Manuela acha que as avaliações, e não só as avali ~ s mas també açoe

tivo as faltas, não deviam ter carácter eliminatório, mas sim informa

spais saberiam se os filhos tinham ido à escola ou s Pelos registos de faltas, o
andavam extraviados. Através das avaliações, os pais deduziriam se os seu filhos estavam ou não aptos a candidatar-se a exame, no final de cada ciclo.

Vota contra reprovações sucessivas. Qual será a vantagem de manter u aluno três anos no 7.' e mais dois no 8.0 e passá-lo por antiguidade ao fim d três anos de frequência do 9.'? Não deu prejuízo à escola, desestabilizand turmas de crianças numa faixa etária diferente da sua? Não criou ele própri frustrações para a vida inteira? Não desperdiçou o dinheiro do Estado Será que não se teria poupado mais, se o tivessem deixado passar sempre e lh tivessem dado oportunidade de tentar o exame naquelas disciplinas em que s mostrou menos apto? Apenas nessas disciplinas, precisamente para mostra ao seu futuro empregador para que lado pendiam as suas aptidões.

Eporque não repetir o ano? Nisto, ela também está de acordo, ma apenas se a repetição for pedida pelos próprios pais, com o compromisso ass mido de que uma repetição pressupõe o pagamento de propinas. É claro qu


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todo o cidadão deve ter direito a educação gratuita. Mas não deverá fazer-se distinção entre os que, usando do direito, o aproveitam e os que, usufruindo dele, o menosprezam? Será que pagando estes últimos não se iriam esforçar mais? Está a pensar naqueles que, por comodismo, não estão interessados em adquirir hábitos de trabalho. É diferente o caso dos alunos com dificuldade de aprendizagem comprovada pelo Conselho de Turma e o dos alunos que foram prejudicados pela própria escola, por circunstâncias que transcendem os Conselhos Directivos e portanto com direito a compensação educativa. É óbvio que, para esses, a Manuela acha que deveria continuar a haver isenção de propinas. Falta de assiduidade injustificada e indisciplina na aula, pelo contrário, seriam factores a considerar para a perda de direitos.

Continua a votar na avaliação mas apenas a título informativo do encarregado de educação. Apela então à sua colaboração e exige que a ficha informativa que, na maioria das vezes é papel desperdiçado que não lhes chega às mãos, lhes seja entregue pessoalmente. Para que a teoria desta professora tenha êxito, o encarregado de educação tem de ir à escola com frequência; tem de deixar de ser tímido e de pensar que não é bem-vindo; tem de deixar de ser comodista e prescindir do seu tempo de lazer para se ir informar acerca do filho; tem de exigir ao seu empregador a dispensa necessária para se ir encontrar com o director de turma; tem de colaborar, criticar o que está mal e louvar o que está bem, ou pessoalmente ou através da Associação de Pais à qual não deve deixar de pertencer; tem de pensar que não interessa apenas o diploma mas a formação do filho. Numa palavra, o encarregado de educação tem de valorizar a escola, começando por não admitir que o filho trate os professores por "homenzinho" ou "mulherzinha". Pode chamar-lhe Augusta, Antónia, Joaquina ou Vitor. Pode subtrair-lhes o Dr ou Dra , que fazem parte da mania dos títulos que existe em Portugal e nem sempre calham a quem tem direito a eles. Para não falar da distorção da palavra que deu origem ao Stoure e Stoura ou da sua substituição pelo vocativo "professor!"

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a qual provém da ignorância de que é o professor catedrático quem merece este título. Ela acha que tratar um professor pelo nome aproxima e cria um clima de fraternidade. Se ela chama Manuel ao aluno , porque não há-de ser para ele, a Manuela? Não considera isso falta de respeito. Já passou o tempo em que a secretária do professor estava no estrado, em plano mais elevado. Agora o professor circula, ou deve circular, em clima de igualdade de direitos e deveres. O professor é o amigo, o tutor, o formador.

Avaliações para servirem de pista ao encarregado de educação - ao tal encarregado de educação a cem por cento - sobre a vida do seu educando, sim, vota nelas! Avaliações para fazer transitar ou reter alunos, a Manuela vota contra! Reprovar alunos que se viu entrar na escola com doze anos, crescer e ganhar personalidade; jovens a quem se criou grande amizade, e cujos problemas se conhecem, por exemplo, o que tem um pai que se embriaga, o que vem para a escola mal agasalhado e sem comer, o que não tem um espaço próprio para estudar, aquele cuja agressividade tem cem razões e lhe dá mil desculpas para se furtar ao estudo, isso custa muito. Reprovar alunos que vão ganhar traumas e tareias de cinto, dadas por pais que os não acompanharam durante o ano lectivo, isso a Manuela sente que é uma responsabilidade demasiado pesada para ela. Por todas estas razões, quando faz a avaliação final analisa tudo, pesa tudo na sua balança da justiça. Sabe que não tem obrigação de carregar aos ombros todas as injustiças da vida, mas também não está disposta a agravar os problemas caseiros, antes quer suavizá-los. E então? Então, quando chega a altura das avaliações, a Manuela sente-se descontente. Tem de cumprir a lei, quer dar dignidade à sua profissão e fazer jus ao muito esforço que despendeu durante o ano inteiro. Por outro lado não esquece os tais dramas familiares e a má vontade existente contra o professor, cada vez mais desacreditado, quer seja digno ou não do nome que tem e do lugar que ocupa.

Este é, sem dúvida, o pior dia do ano. Pior, porque terá de dizer adeus a muitos alunos que vão sair da escola, e pior porque é a altura de voltar a meditar no mesmo assunto. E ela continua a votar não às avaliações com


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fins eliminatórios, sim às avaliações com fins informativos e sim aos exames, provas anónimas com o cantinho da direita, onde se escreve o nome, separado, provas a nível nacional e com dispensa para ninguém. Haveria, de certeza, mais justiça.

Mas a quem interessa o que pensa a Manuela?








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O que desmotiva os professores

São 13.20. Ao entrar na escola, a professora Cristina avista ao longe a Alexandra. "Oue rapariga interessante ela se tornou! Como cresceu! Vejam só! Quando há quatro anos frequentava o 7.' ano era uma miúda pequena e mu ito tímida e agora ali vinha ela com um ar tão desempoeirado e vistoso. Como as crianças crescem!".

Aprofessora vem a entrar e a aluna vai a sair. Vão cruzar-se, portanto, e aquela põe o seu melhor sorriso, ansiosa por chegar junto da ex-aluna e dar-lhe um olá bem vivo, que lhe prove que ainda a tem dentro do c 0.

Chegam mais perto, estão praticamente frente a frente e por isso abre mais o sorriso, vai a falar... e fica perplexa, indecisa, confusa. Será que não se enganou? A Alexandra desviou mesmo o olhar?! Será que não a reconheceu? Impossível! Que ela pudesse não ter reconhecido a Alexandra, que cresceu, era aceitável; mas que a jovem não reconhecesse a sua directora de turma de há quatro anos, a qual já está numa idade em que não se mudam as feições, não, essa a Cristina não aceita. E para além de não aceitar, acha que faz doer.

Reconhecendo-a ou não, a Alexandra tinha-se cruzado com uma professora do estabelecimento de ensino que frequentava. Teria parecido bem, cumprimentá-la. Mas não foi assim. E a Cristina pensa que, efectivamente, os alunos só cumprimentam os professores que leccionam as suas proprias aulas. "Os restantes professores - continua a Cristina a pensar - pertencem à multidão, são os estranhos que se encontram na estação de metro, na paragem do autocarro ou nos correios, quando se vai deitar uma carta para a família ou para um amigo.Os alunos não têm obrigação de nos cumprimentar a todos, só porque fazemos parte dum grupo com interesses afins. E porque não? Eu acho que sim, embora admita que o defeito é do tipo de escola, com uma densidade de população estudantil que excede os limites. Mil alunos já ultrapassa o ideal e aqui o número é bem mais elevado. Realmente não se pode criar uma atmosfera familiar, quando andamos todos perdidos na multidão e em certas horas e locais é preciso abrir caminho para chegarmos aonde queremos. Mas a Alexandra, a

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-u@l ci miau iiiu Lui icconnecicio-f tntão ela não era aquela criança que confiava em mim e que ped' iu o meu auxílio, quando esteve doente no 7.' ano e que exigiu mesmo que a mãe me fosse buscar a casa, num domingo de manhã, para eu a confortar e para, na qualidade de directora de turma, transmitir aos outros professores que ela não faltava por preguiça, mas porque estava efectivamente doente? Será possível que, passados três anos, a Alexandra esteja esquecida de quem a visitou ainda outras vezes, enquanto esteve doente, com prejuízo da sua vida particular? Ela não tinha provado ser uma boa amiga? Não, esta da Alexandra não me cumprimentar agora não pode deixar de
ar. Não é por dever de gratidão, não estou a atira e fiz, pois mago r a cara o qu

não foi a primeira nem será a última vez que me prezo de saber estimar os meus alunos. Mas tenho o direito de ser sensível. E sempre dói perder um amigo..."

ACristina entra na sala de professores. Está impregnada de cheiro a tabaco e tem o chão molhado, porque choveu bastante de manhã e os professores abrem e fecham guarda-chuvas de hora a hora e entram com eles a pingar. A pouco e pouco, a sala vai-se enchendo.Como é pequena, o corpo docente não cabe lá todo ao mesmo tempo. Ao longo da manhã e da tarde o problema da escassez de espaço vai-se resolvendo, mas esta hora é realmente de aperto, porque há os professores do turno da tarde que vão chegando e os professores do turno da manhã que, acabadas as aulas, têm de passar por ali para deixar os livros de ponto e as chaves .

Isto num dia normal. Nos dias de Conselhos de Turma é o caos. Se não chove e não faz frio, os professores vão para os espaços abertos e respiram ar puro; caso contrário acotovelam-se no refeitório onde vão tomar a bica. Também nem custa muito, se for na hora da confraternização. O pior é quando se necessita de aprontar as pautas e preencher fichas e se tem de permanecer na sala de professores. Como os papéis são às carradas e as novas cadernetas - pelo menos trinta para cada turma - se amontoam nas mesas, pode bem acontecer que se espalhe tudo no meio do chão. A sorte é haver colegas prontos a ajudar a pô-los em ordem e sorte também o tamanho das


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pautas ter diminuído. Assim 'à há mais espaço e na mesma mesa podem juntar-se dois secretários e dois directores de turma falando de pautas e actas diferentes. Se houver engano, é só uma questão de passar novamente uma pauta e mais uns tantos documentos a limpo, abstraindo-se dos barulhos naturais... É melhor não sonhar com gabinetes de trabalho... O que falta é uma cadeira mas quem não está a trabalhar cede a sua de boa vontade. Cria-se uma atmosfera de azáfama, um ambiente de trabalho salutar. Não há cigarras, só formigas. Quem é que disse que os professores não trabalhavam?

Na realidade o ambiente da sala não é acolhedor. A Cristina entra triste porque se sentiu desprezada pela ex-aluna. É demasiado introvertida para desabafar com uma amiga. Falta-lhe sentido de humor para fazer um comentário que a alivie. Senta-se junto dos colegas, no único lugar vago que

encontra, mas não participa na conversa, que vai animada. Não pode, no entanto, deixar de ouvir o que se diz.

Há quem se queixe de que o aluno a mandou "àquele sítio" com as cinco letras claramente pronunciadas e quem se queixe que outro dá arrotos provocados, na aula, com intervalos de dez minutos. Quando admoestado pelos professores da turma, diz que não consegue conter-se e pede desculpa humildemente. Já o aconselharam a ir ao médico, mas ele não percebeu a subtileza. Um outro encontrou um sexo desenhado na cadeira da primeira fila e chamou a professora para lho mostrar e dizer-lhe que não se podia sentar em cima "daquilo". Tinha de ficar de pé. A professora respondeu-lhe que sim, mas no fundo da sala, para não tirar a visibilidade aos colegas. Preferiu então o aluno sentar-se em cima "daquilo" e até ao fim da aula não deu mostras de ter sido molestado. Apeteceu à professora, cheia de sentido de humor, inquirir dos resultados, mas já vira colegas embrulhados por conversas deturpadas... Assunto encerrado.

Uma docente conta que um aluno lhe disse esta manhã:

- Detesto a sua cara. Ainda um dia a hei-de cortar aos bocadinhos.

Um colega lamenta-se de lhe terem amachucado o carro de ambos os lados, o que lhe custou um quarto do seu ordenado. Fala-se também em pneus furados.


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Página em branco


2ª Edição
Do 4º ao 6º milheiro

Criação da capa: Objectiva Comunicação e Marketing
Direção de Arte: Glauco Araújo
Revisão: Jaqueline Sampaio

ã Copyright 1997
Fundação Lar Harmonia
Rua da Fazenda, nº 13, Piatã
41.650-020 – Salvador – Bahia – Brasil

livros@larharmonia.org.br

(71) 286-7796
Impresso no Brasil

ISBN 85-86492-07-8

Todo o produto da venda desta obra é destinado às obras
sociais da Fundação Lar Harmonia


Adenáuer Novaes


Amor Sempre



FUNDAÇÃO LAR HARMONIA

CGC (MF) 00.405.171/0001-09
Rua da Fazenda, nº 13, Piatã.
41.650-020 – Salvador – Bahia – Brasil
2002



Novaes, Adenáuer Marcos Ferraz de
Amor Sempre
Salvador: Fundação Lar Harmonia, 2002
120p.

1. Espiritismo. I. Novaes, Adenáuer Marcos Ferraz de,
1955. – II. Título
CDU – 133.7
CDD – 133.9

Índice para catálogo sistemático:

1. Espiritismo 139.9

Amor Sempre
Sempre o Amor

1. Amor a Deus

2. Amor à vida

3. Amor a si mesmo

4. Amor espiritual

5. Amor e família

6. Amor como linguagem

7. Amor sem adeus

8. Amor impossível

9. Amor amigo

10. Amor e carma

11. Amor e carência

12. Amor e terapia

13. Amor e paz interior

14. Amor e trabalho

15. Amor e inteligência

16. Amor e traição

Índice
ÍndiceÍndice

7
11
15
19
23
27
31
35
39
43
49
51
55
59
63
67
71
75


17. Amor e sexo 79

18. Amor e paixão 83

19. Amor e espiritualidade 87

20. Amor e educação 91

21. Amor e perdão 95

22. Amor e religião 99

23. Amor e arte 103

24. Amor e saúde 107

25. Amor e caridade 111

26. Amor sempre 115


Amor
Sempre


Sempre o amor direcionando as vidas.

Para onde quer que se encaminhe o ser, o amor já o
precedeu, demonstrando a grandeza do Excelso Amor.

Amor é a vida em plenitude que constrói, enriquece
e conduz tudo quanto existe.

Sem ele tudo perece e, caso enfraquecesse, todas as
coisas volveriam ao caos do princípio.

Isso porque, Deus é Amor!

O amor alimenta todas as coisas e todos os seres,
equilibra a ordem universal e se alarga na direção do
infinito.


Ei-lo no farfalhar das folhas, nas onomatopéias da
Natureza, no caricioso canto dos córregos, no desabrochar
das flores, no canto dos pássaros e nas vozes dos animais
exaltando a Criação, aí configurado como hino de louvor e
mensagem de eterna beleza.

O ser humano, em razão de sua fragilidade
emocional, no entanto, ainda não consegue sentí-lo na
profundidade em que se expressa, caminhando, por isso
mesmo, sem rumo e sem paz.

Uma gota de amor e se modifica a agressão do ódio.

Amor, portanto, a Deus, à vida, a si mesmo, nessa
trilogia em que Jesus sintetizou a própria razão de viver da

criatura humana.
Logo depois, o amor
espiritual, familial, como lingsucessivamente, o amor sempre.
esplenduagem,
endo
sem
na
adeus...
forma
e

É o que nos apresenta o livro que está sendo
oferecido ao caro leitor, a fim de que, iluminado e
vitaminado pela sua magia incomum, possa superar as
dificuldades e enfrentar os desafios em harmonia íntima,
avançando para o Amor Total.

Salvador, 2 de Abril de 1997

Joanna de Ângelis

(Página psicografada pelo médium Divaldo P.
Franco, na sessão mediúnica do Centro Espírita Caminho
da Redenção, na noite de 02 de abril de 1997, em
Salvador, Bahia.)


Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos
anjos, se não tiver amor, serei como o bronze que soa, ou
como o címbalo que retine.

Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça
todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu tenha
tamanha fé a ponto de transportar montes, se não tiver
amor, nada serei.

E ainda que eu distribua todos os meus bens entre
os pobres, e ainda que entregue o meu próprio corpo para
ser queimado, se não tiver amor, nada disso me
aproveitará.

O amor é paciente, é benigno; o amor não arde em
ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz
inconvenientemente, não procura os seus interesses, não
se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a
injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo sofre, tudo
crê, tudo espera, tudo suporta.

Paulo, 1ª Epístola aos Coríntios, cap. XIII, v. 1 a 7.


Página em branco


Sempre o
Amor

Movido pelo amor à vida e pela alegria da
convivência com os que me cercam, quer em casa, no
trabalho, na seara espírita, bem como nas diversas
atividades a que me dedico, decidi-me por levar adiante o
desejo de tentar grafar em palavras os sentimentos que me
vinham à alma. Da tentativa à realização, eis que surge
este pequeno livro, fruto da ânsia de amar em plenitude.

Longe de mim pensar que conseguiria o intento de
plasmar em símbolos o que é da ordem do sentimento,
mas fica a expectativa de que o leitor possa traduzí-los nas
expressões e emoções características de sua própria
realidade. Espero que se possa, com a leitura, sentir o


amor em si mesmo como a máxima expressão de
sentimento do humano.

A construção de idéias bem como a reconstrução de
emoções, requerem um esforço muito grande, só
alcançável com o auxílio de corações amigos, presentes
em nossa caminhada. A eles agradeço o auxílio e a
paciência para a leitura dos originais desse trabalho. Amo-
os. São meus mestres e condutores para o entendimento do
amor.

O amor é dirigido a algo ou alguém. Escreve-se sob
a inspiração, consciente ou inconsciente, dos objetos
amados. Posso afirmar que não foi outra, minha intenção,
senão a de escrever para os que desejam amar e para os
que, como eu, querem entender melhor o significado do
amor.

O amor ultrapassa todas as barreiras erigidas pela
nossa ignorância quanto à vida e aos processos que oCriador utiliza para nos educar. É ele que nos alimenta o
espírito como energia nutridora da vida.

O amor dignifica qualquer atitude humana. Sejamos
conscientes de que não se vive sem amor tanto quanto não
se cresce sem amar. Amar é o sentido e o ato principal da
vida humana. Sua realização exige-nos maturidade e
responsabilidade.

Os homens que construíram a história da
humanidade, fizeram-no com seus pensamentos e idéias,
movidos pela paixão e pelo amor característico de cadaépoca. É hora de recontarmos a história com um novo
paradigma, o do espírito que se educa pelo amor.

A vida biológica em si representa estímulo ao
crescimento; porém, é a vida consciente de sua
espiritualidade e com a energia do amor, que transcende a


materialidade, suplantando a superfície e alçando vôo na
direção do infinito.

O amor, para ter existência real, necessita
manifestar-se no nível humano de forma a ser
compreendido. Como uma escala de tons, o ser humano
ama de maneiras distintas, de acordo com sua percepção
das leis de Deus.

Amar é um estado de espírito que transparece ao
mínimo olhar. Revela-se nas pequenas atitudes e
influencia tantos quantos que com o amor mantenham
contato. Seu contágio é instantâneo e inesquecível.

Convido o amigo leitor ao amor. Ao amor no
trabalho em favor da vida. Louvemos a Deus, o Senhor da
Vida, por nos presentear com a existência em curso. Ela é
abençoada oportunidade de aprender e sentir.

O labor no bem é puro amor da criatura ao Criador.
Amemos a Deus trabalhando em favor da disseminação do
amor na Terra. Não nos esqueçamos jamais do amor de
Jesus como o que dignificou a existência humana,
enaltecendo a vida e glorificando ao Pai.

Amar é sentimento acessível a qualquer pessoa. Para
sua aplicação não há pré-requisito, não há exigências. Seu
agente pode fazê-lo em qualquer situação que esteja. Só a
vontade basta ao espírito, pois ele é inerente ao humano. É
a marca do Criador na criatura.

Que estamos esperando para começar?

Adenáuer Novaes
Verão de 1997


Página em Branco


1
Amor a
Deus

A vida tem como causa o amor de Deus.

Deus fez o ser humano à sua imagem e semelhança,
por e com amor. A essência do ser humano é o amor de
Deus. A evolução da criatura humana é sua própria e
imprescindível descoberta do amor. Do amor que é, cujos
adjetivos e definições pouco ou nada lhe acrescentam.


Amar a Deus, auto-amar-se e amar ao próximo no
mundo são os caminhos do crescimento na Terra. Não há
ninguém esquecido, sem amor, na obra da criação.

A existência e a harmonia do Universo refletem o
amor de Deus. Nada está fora Dele. Nada pode existir sem
Sua imanência. O ser humano não é causa criadora na
natureza, mas transformadora.

Amar a Deus é redundância, pois não se conseguiria
não amá-Lo. Deus É, e o ser humano Dele se origina.

O amor dedicado a um objetivo nobre e que venha
em favor da coletividade, é o amor que se dedica a Deus.

A verdadeira adoração a Deus, isto é, a manifestação
do amor da criatura ao Criador, é doar-se no trabalho em
favor do Bem e da Vida.

Amar a si mesmo é amar o humano. Ama-se a Deus
através da colaboração com o aperfeiçoamento de Sua
obra.

Nada se iguala ao prazer de doar e de realizar a obra
de Deus na Terra. Conhecer-Lhe o objetivo é o verdadeiro
sentido de se viver.

Em que pese o ser humano ainda prender-se ao
materialismo que parece exteriormente dominante, ele não
perderá jamais o endereço do amor de Deus que o incita
ao crescimento espiritual. Sua trajetória representa uma
escada ascensional na direção do Amor Maior, onde ele se
realiza.

O amor de Deus se revela em todos os fenômenos da
Natureza. Nada escapa à Sua Inteligência e Perfeição.
Toda Sua obra é fundamentada no amor cujo sentido se
verifica na harmonia do Universo.

Muitas vezes nos deixamos levar pela descrença e
apelamos a Deus buscando uma solução para as mazelas e
sofrimentos da vida. Quando não alcançamos respostas


satisfatórias, costumamos imprecar contra Ele. Não
percebemos que as respostas que precisamos escutar são
dadas na consciência e, sempre, nos conduzem à reflexão
íntima e à valorização da Vida.

As tentativas de se colocar palavras e ações humanas
como originárias diretamente de Deus, sempre
redundaram em prejuízo ao crescimento da humanidade. O
ser humano, inadvertidamente, tenta materializar a
presença de Deus na Vida e na consciência, sem perceber
que tal exigência é fruto de Sua presença arquetípica no
inconsciente. Essa presença é traduzida como uma
necessidade intrínseca de realização da essência divina.

Deus não nos fala por palavras, escritos ou
fenômenos particulares. Sua "fala" ao ser humano se dá
em toda a obra da criação, pelas finalidades superiores e
pelos objetivos a ela destinados.

Amar a Deus é trabalhar pela Sua obra. É descobrir
Seus objetivos e construir sua vida naquele sentido. Amar
a Deus é viver em sociedade, sem necessitar isolar-se da
participação na construção e aperfeiçoamento de Sua obra.
É conviver com seus pares participando da Vida, sem dela
ausentar-se, sob pretexto algum. Viver a Vida é amar a
Deus.

Amar a Deus é amar toda expressão da natureza,
toda a criação, tudo o que existe. Em todas as coisas,
mesmo as mais abomináveis, há sempre uma expressão
divina inacessível ao olhar superficial.

O amor é a viva expressão de Deus no coração
humano. As várias nuances do amor representam a
diversidade dos tipos humanos. Sua variabilidade está na
mesma proporção das singularidades humanas. Não há um
amor igual ao outro. O amor existe em função de Deus e
Ele nos fez criaturas singulares.


O amor a Deus é o amor da esperança e da confiança
na Sua manifestação e presença em toda a Natureza.

A oração, revestida na fé e na confiança em Deus,
constitui-se numa das formas de amá-Lo. É através dela
que renovamos as esperanças e a confiança em Deus.
Quem tem o hábito de orar fortalece seus laços de ligação
com o Criador da Vida.

Jesus, por amor a Deus, tornou-se Um com
Ele.


2
Amor à
Vida

Amar a vida é sentir-se ligado ao divino, ao
espiritual, ao transcendente. A vida é uma melodia de
amor que ecoa por toda parte. Ame a vida, pois é nela que
você existe. O amor de Deus não nos permite ausentar-nos
dela. Não se tem mais de uma Vida. Ela é única e eterna.
Valorize-a por você e por Deus.


Viver é uma arte. É uma construção estética do
espírito. Viver em paz consigo mesmo é viver bem com o
outro. Todos somos convidados a viver com o outro e,
nesse convívio, aprendemos a viver bem conosco. O outro
é sempre um espelho positivo onde enxergamos o negativo
que existe dentro de nós mesmos.

Se você acha que sua vida não tem sentido por não
ter um amor, lembre-se de que o sentido dela é dado por
você e só a você compete a escolha de ser feliz com o
amor que lhe compete doar. Não se entregue ao passado
como se ele fosse seu presente ou seu futuro. O amor é sua
constituição e não se encontra presentificado no outro.

Quando o amor comanda a vida, ela se faz plena de
realizações nobres, não se deixando contaminar pelo
pessimismo e derrotismo característicos daqueles que
abandonaram o caminho do Bem.

Há momentos sublimes na vida que marcam para
sempre a pessoa. Tais momentos alcançam o ser humano
nas vibrações do amor. Quando isso ocorre, há o
enriquecimento daquele que o experimenta. Jamais
esquecemos aquilo em que colocamos a energia do amor.
A carga afetiva que adicionamos aos fatos da vida nos
acompanhará para sempre na intensidade que
determinarmos.

A filosofia verdadeira é a do amor à vida. É a que
estabelece como bandeira a realização do amor na Terra.
O amor nasceu com a vida e, na Terra, ganhou maturidade
com o Cristo.

O amor provoca a revigoração da vida. É o alimentoque a nutre. É o oxigênio da Criação. A vida é obra do
amor e nele se estrutura. Gostar de viver é nutrir-se do
amor para seu próprio crescimento.


A vida na Terra é um ato do amor de Deus. É uma
oportunidade de refazer-se na longa caminhada pelaperfeição. É poder sentir-se uno com a Criação Divina. Ao
admirar a Natureza percebe-se o quanto ela é bela e
grandiosa. Suas mínimas particularidades revelam a
Grandeza de seu Autor. Nada foi esquecido ou
desprezado. Tudo se encontra em desenvolvimento e
evolução.

Amar é abrir uma janela para a vida. É despertar dosono letárgico em que se vive. É sair do casulo das paixões
inferiores e entregar-se ao divino. É perceber-se Um com
Deus e com o outro. O amor é a essência do universo. Sua
constituição íntima é o amor.

No amor está a síntese da vida. Ela só tem sentido
quando formos capazes de perceber o amor. Em tudo
observamos a presença do amor. Ele se manifesta como
energia mantenedora da vida.

A vida dedicada ao amor é a vida plena. A vida
entregue ao amor é a vida completa. Não se entregue a
outra coisa na qual não possa perceber o amor pleno. Se
sua vida foi dedicada ao amor, tenha certeza de ter
cumprido sua tarefa na Terra.

Quando outras vidas se juntam à nossa, é sinal de
que o amor deverá estar presente como condição básica de
ligação para o crescimento de todos. Ninguém está
presente em sua vida por acaso. Cada pessoa é
oportunidade de amar e crescer. O outro em nossa vida é aligação com o que está oculto em nós. É fator de
crescimento pessoal. Facilita o contato com nossa essência
oculta, desconhecida e misteriosa.

A vida, qualquer que seja o desafio em que nos
encontremos, é abençoado presente de Deus cujo uso é de
nossa responsabilidade.


Percebe-se se verdadeiramente amamos na vida
quando a ela devolvemos tudo que nos deu e mais aquilo
que de nós mesmos oferecemos.

Quem ama explode em viver. Vive em alegria e
alegra-se em existir. Transborda em compreensão, em
afeto, em autopercepção e heteropercepção.

Viver não significa ser conhecido ou ter notoriedade
entre os homens. Muitos alcançam o estrelato sem terem
crescido verdadeiramente. A verdadeira vitória é a queencetamos contra nossas más inclinações. É considerado
vitorioso quem vence a si mesmo.

Jesus deu sua vida em favor e por amor à
Vida.


3
Amor a si
mesmo

Amar a Deus e ao próximo como a si mesmo é a
máxima fundamental do saber humano. É um dos
princípios básicos do cristianismo e que resume toda a
mensagem de seu Augusto Autor. Esta é regra áurea para
uma convivência harmônica com o outro e consigo
mesmo.


O amor a si mesmo é essencial para o equilíbrio
psíquico do ser humano na Terra. Sua harmonia vital só é
possível graças ao amor que se autodedica. Amar a si
mesmo é perceber-se como ser no mundo. Quem não se
ama acaba por morrer, acreditando que a vida não tem
sentido.

Aceitar-se é condição fundamental para a
continuidade da coesão interna do ser pensante. O
aparelho psíquico humano utiliza-se da energia da libido
para sua dinâmica e ela se alimenta do amor do Eu
Superior a si mesmo.

Amar-se é autovalorizar-se sem exceder-se no culto
à própria personalidade. Essa valorização pressupõe a
aceitação de si mesmo com suas virtudes e defeitos.
Aceitar-se como pessoa, percebendo seus limites e
possibilidades.

A depressão advém da não aceitação de si mesmo
como se é, além de um alto nível de exigência em relação
às atitudes pessoais. Geralmente essa depressão vem
quando o indivíduo tem pena de si próprio e acredita que
há uma injustiça contra sua vida. Ele espera que alguém o
observe e o ajude a sair da situação em que se encontra,
como se fosse uma criança que espera ansiosamente o colo
de mãe.

Os sentimentos depressivos em geral se aliam aos de
incapacidade de lidar com suas imperfeições, com sua
sombra. A percepção de seus próprios defeitos, amando-se
no nível de evolução em que a criatura se encontra, é
passo decisivo para a saída do conflito depressivo.

Perceber sua sombra inconsciente, que contém os
aspectos negativos e ocultos da própria personalidade,
aceitando-os e entendendo-os como fatores dinâmicos do
ser, é parte do processo de autoconhecimento que não se


pode desprezar. É importante usar tais aspectos negativos,
descobrindo os ocultos, em favor de seu próprio
crescimento.

Vença a depressão com o amor a si mesmo, não se
entregando ao derrotismo nem as falsas influências e
armadilhas psíquicas que nos arrojam ao derrotismo e ao
complexo de inferioridade.

Os defeitos que assinalamos em nossa
personalidade, presentes em todo ser humano, constituem
sinais pelos quais devemos iniciar o processo inexorável
de autoconhecimento e autodescoberta do Eu Superior.

Amar-se é fundamental para o crescimento pessoal
face aos desafios da convivência com o outro. Deus não
nos fez aos pares e nem clones uns dos outros. Conviver,
portanto, é desafiar o sentido intrínseco da
individualidade.

O caminho para o amor a si mesmo é a observação
de suas próprias atitudes e os reflexos que elas causam nos
outros. O outro é um espelho vivo para o conhecimento
que precisamos ter sobre nós mesmos.

Para a compreensão do mecanismo do amor a si
mesmo é fundamental separarmos o que pertence ao ser
eterno, imortal e individualizado, daquilo que é da
influência coletiva, oriundo das sucessivas experiências
reencarnatórias.

Somos seres coletivos e individuais ao mesmo
tempo. O outro nos estrutura como ser no mundo. Sem o
tu não há o eu nem o nós.

O amor a si mesmo nos faz enxergar o ser imortal
que somos, enquanto que com a convivência, assimilamos
atitudes que nos tornam coletivos, sem nos tirar a
percepção de nossa própria construção individual.


Nem sempre conseguimos vencer a rejeição à nossa
maneira de ser. Geralmente isso se dá pela falta de auto-
estima, a qual nos coloca em paz com nossa consciência
pelo sentimento de igualdade para com os outros.

Estimamo-nos porque somos iguais aos outros. Essa
linha de pensamento nos leva à percepção de que temos os
mesmos defeitos e virtudes do outro. Somos o que somos
e o que nos distingue uns dos outros é o amor de Deus em
paralelo ao amor a nós mesmos.

O amor a si mesmo nos revigora a alma e nos torna
mais entusiasmados a viver e a realizar. Mesmo que você
não consiga enxergar o valor de sua vida, certamente ela o
tem para alguém e principalmente para Deus que é o
criador de sua vida.

Não se entregue à desvalorização de si mesmo. Não
permita que forças ocultas penetrem no seu psiquismo e o
coloquem como a última das criaturas. Para Deus, cada
um de nós é alguém em especial.

O amor a si mesmo é conscientizado no amor-
próprio que nos coloca em condições de viver liberto de
relações estagnantes e que nos anulam na vida.

Jesus demonstrou o amor a si mesmo quando
renunciou a ferir, imolando-se em favor da
humanidade e pela equivalência entre suas
atitudes e suas palavras.


4
Amor
Espiritual

Quem, em essência, ama, ama o espírito. Se o amor
for verdadeiro, ele se alegra com a felicidade do outro.
Quem ama alguém deve aprender a libertá-lo de sua posse.
O verdadeiro amor permite que o outro encontre seu
caminho, mesmo ao longe.

É o amor que eleva o ser humano espiritualmente.
Quem sai do primitivismo das sensações inferiores e


alcança a capacidade de amar verdadeiramente, inicia seu
processo de elevação espiritual.

O amor espiritual não se detém nas contingências
materiais, atingindo a essência do ser eterno. O tempo não
afeta o amor profundo, cujo passar finca raízes na alma
que sabe esperar.

Às vezes pensamos que o amor que nos falta se
encontra à nossa espera do outro lado da vida. Permitimos,
com esse pensamento, que a tristeza se abata sobre nós.
Mesmo que esse amor esteja do outro lado da vida, não
devemos acreditar que ele deva ser empecilho para que a
felicidade se coloque ao nosso alcance.

O amor espiritual que momentaneamente esteja
separado pelas vibrações dos dois planos, mais tarde
poderá ser reencontrado, independente dos rumos que se
tomou em existências precedentes. A separação atual se
deve a circunstâncias educativas para ambos.

Nem sempre os que se amaram numa existência se
encontrarão após o desencarne. O amor pode esperar, se
for o caso, que um deles retorne para cumprir aprendizado
em outro nível de consciência.

Algumas vezes a vida nos coloca em situações nas
quais não conseguimos perceber a manifestação do amor
enquanto estamos na carne. O amor vai se mostrar quando
as amarras da matéria se desprenderem e compreendermos
enfim as leis de Deus.

O amor que proporcionamos ao outro promove a
nossa própria elevação espiritual. Constitui-se em
verdadeira terapia a favor daquele que ama. Tudo conspira
a favor daquele que põe o amor a serviço do bem coletivo.

O espírito, na sua caminhada em busca da perfeição,
passando pelos degraus da necessária humanização, vai
acumulando o conhecimento da lei de Deus. Ele só


apreende o que representa aquisição de novos valores, isto
é, o que se constitui em conhecimento da lei do Amor. Ao
espírito chega apenas a lei de Deus.

O amor promove o encontro com o espiritual.
Permite ao ser humano experimentar sua verdadeira
natureza. Quando o amor penetra o coração do ser
humano, ele passa a transitar na esfera do espírito,
abdicando de sua natureza animal. É nesse momento que
ele amplia sua percepção da realidade, ressignificando sua
condição humana.

O amor de mãe se aproxima do amor divino quando
visa exclusivamente à independência e felicidade do filho.
O divino se manifesta no amor maternal.

A morte não separa os corações que
verdadeiramente se amam. A morte não mata as emoções,
apenas transforma o corpo, permitindo ao espírito elevar-
se em busca do amor espiritual.

Amar em espírito é amar em plenitude. Amar aquele
que se foi, levado pela morte, é continuar vivendo em
favor da própria vida.

O amor espiritual é o amor sem adeus. Não há
destruição, mas breve separação. Não há perda, mas
esperança de reencontro adiante.

O espírito sopra onde quer. Seu sopro é amor que
emula em favor da vida na busca incessante de si mesmo.
Sua marca é o rastro de amor que deixa por onde passa.

O amor é prerrogativa do espírito. Surge de suas
entranhas extrapolando os limites do corpo.

Quando pressentirmos a presença daqueles que já
partiram para a Vida maior, às vezes causando-nos
sobressaltos, percebamos se não se trata do ente querido
que, querendo demonstrar que a vida continua, retorna
pela saudade e pelo seu amor por nós.


Jesus permanece conosco como o amor
espiritual de nossas vidas e como aquele que
soube exemplificá-lo enquanto encarnado.


5
Amor e
família

A família é o núcleo central da sociedade moderna.
É nela onde os amores se encontram e reencontram. O
amor é ali testado e sentido na mais alta intensidade.

A família proporciona o encontro dos sentimentos
controvertidos do passado, transformando-os em amor no
presente. É na família onde aprendemos as mais puras
lições do amor de Deus, representado no amor de mãe.


Sua estrutura básica alicerça-se no amor. Sua origem
deveu-se não só à necessidade de proteção como também
do espírito em vivenciar suas emoções e em ligar-se às
pessoas por quem nutria um amor embrionário.

É na família onde se experimenta o amor maternal, o
filial, o paternal, o fraternal, que se assemelham na
incondicionalidade e no desejo de sentí-los com o intuito
de elevar e fazer crescer o outro.

Nela reencontramos antigos afetos e desafetos, em
cuja companhia elaboramos novas oportunidades de
realizações e substituímos as emoções desarmonizadas do
passado.

Às vezes, aparecem na família, habitando o mesmo
teto, pessoas que não possuem laços consangüíneos mas
que desempenham papéis importantes para o equilíbrio
doméstico. São auxiliares da vida cotidiana que nos
servem de modelo e, muitas vezes, estabelecem nossos
limites, educando-nos quanto às regras de convivência.

É nela que retornam os antigos amores, cujo
reencontro se dá para a realização de novos ideais em
benefício da vida e de seus protagonistas. Nem sempre os
papéis são os mesmos. Independente disso, o amor
permanece unindo aqueles que se reaproximam para nova
convivência.

Pessoas que se reúnem pela afinidade e sintonia em
torno de objetivos superiores, formam as famílias
espirituais, cujos laços não se desfazem com a morte do
corpo.

Espíritos que juntos viajam em sucessivas
existências, renascem numa mesma família, com novos
propósitos de crescimento. O membro que se afastou para
nova jornada, recebe o auxílio daqueles que ficaram. O


retorno a uma nova existência não separa os que
verdadeiramente se amam e confiam no Criador.

O Universo, infinitamente habitado, abriga imensos
agrupamentos de espíritos como famílias de uma cidade.
Vez por outra, uma família de um mundo vai em busca de
crescimento em outro. Às vezes, a ida para outro orbe se
dá por exílio ou degredo. Em todos os casos é sempre o
amor de Deus a equilibrar e harmonizar o universo.

O espírito, quando em família, nem sempre
consegue mascarar sua realidade. A vida, entre quatro
paredes, desnuda a todos. Ninguém se esconde na
convivência com seus pares.

As aversões ocorridas nos relacionamentos
familiares, quando não decorrem de ações havidas em
outras encarnações, geralmente refletem as influências
espirituais a que se sujeitam aqueles que não agem com
amor, como também o estágio evolutivo de cada um.
Conviver é um aprendizado que temos de encetar em favor
de nós próprios.

Nem sempre renascemos e permanecemos com os
pais biológicos que nos colocaram na carne. A vida nos
situa onde necessitamos aprender. A família ou os pais que
temos são aqueles que merecemos e aos quais devemos,
para sempre, o amor com que nos receberam.

Quando recebemos, como nossos, os filhos que não
geramos, assumimos o papel de colaboradores de Deus em
sua obra, amando pelo princípio do amor sem limites.

Valorizemos a vida em família, pois ela nos leva à
percepção de nós mesmos. Remete-nos à necessidade de
amar os que conosco convivem. Ela ainda é uma
necessidade do nosso momento evolutivo.

Necessitamos, para melhor convivência social,
construir uma sociedade em que, nas famílias, vigorem os


princípios do amor, da paz e da harmonia entre seus
membros. Para isto cada um tem um papel a cumprir no
seu contexto. A cada um é reservada uma parte das ações
que viabilizarão aquela meta.

Sintamos, em cada pessoa com quem nos
relacionamos, um irmão, um membro da família de Deus.
Somos todos filhos do mesmo pai, independente de
quaisquer características biológicas.

O Cristo nos deu o exemplo de família
quando nos convidou a entendê-la como
universal, cujos membros são aqueles que fazem a
vontade do Pai.


6
Amor como
linguagem

O amor expressa em si uma forma de comunicação
específica. A linguagem do amor é universal. Quem dela
se utiliza nunca estará sozinho. Quem ama se comunica
com a Natureza, com o Universo e com Deus.

Se na sua fala você colocar o amor, ela será audível
a todos e por muito tempo. Este foi um dos motivos por


que o Cristo conseguiu, sem nada escrever, que sua voz
ecoasse até hoje.

Antes de falar, deve-se sintonizar com o amor, pois

o que se quer dizer sairá com a vibração da harmonia
cativante. Os pensamentos, quando elaborados com os
requisitos do amor, alcançam as correntes superiores da
vida. Quem ama, pensa e fala com coerência e harmonia.
Cada ser expressa em linguagem própria o que lhe
vem à mente de tal forma que sua fala denota a vibração
que lhe é característica. Quando nos utilizamos da
linguagem do amor, nossa expressão se transforma em luz.
Nossa fala transforma-se em fonte por onde jorra a linfa
que produz a vida.

A linguagem do amor dispensa outras formas de
expressão. Quem a usa entende e é entendido, dispensando
outros recursos de comunicação. A ligação ocorre de alma
a alma, de espírito a espírito.

A Vida abre suas portas para aquele que fala a
linguagem do amor. Os problemas são resolvidos por
força da atração exercida pela comunicação do amor. A
fala com amor contagia o ambiente onde é proferida.

Para se falar a linguagem do amor é necessário
iniciar-se pela substituição de expressões infelizes e
desagradáveis no trato com o outro. O bem falar sucede ao
bem pensar e este vem da consciência reta fundamentada
na paz. A linguagem vulgar, quando associada a emoções
negativas, deseduca o espírito.

O amor também se expressa pela música, pela arte
em geral. A vibração da música carrega notas de amor. A
música é a linguagem da alma que busca expressar seu
amor. O amor é uma metalinguagem. Transcende o
humano, espiritualizando-o. Sua captação não se dá pelos
órgãos dos sentidos, mas pelos fios invisíveis da alma.


Nas expressões maternais, nas atitudes fraternais,
nos gestos de compreensão e calor humano, observa-se a
linguagem do amor permeando todas as formas de relação
entre as criaturas.

A natureza, nas suas múltiplas manifestações, revela
a linguagem do amor através de seu equilíbrio e harmonia.
Nela o Criador colocou Sua marca fazendo-a refletir a
linguagem do amor.

O espectro de energia conhecido pela ciência não
expressa todas as vibrações da natureza da mesma forma
que o ser humano na Terra não conhece todas as formas de
linguagem. O amor é a mais sutil linguagem da alma.

De todas as formas de comunicação, o amor é a mais
penetrante e envolvente. A barreira do idioma entre os
países é vencida pela linguagem do amor. Ninguém que a
utilize deixará de se comunicar.

A linguagem do amor é a expressão maior da
comunicação do espírito. Vem da essência da alma e
penetra os mais recônditos escaninhos da mente. Os
processos psíquicos são facilitados pela linguagem do
amor.

Cada ser revela uma linguagem própria oriunda do
inconsciente. A linguagem do inconsciente revela o nível
de evolução da criatura. Quanto mais amor dele sair, mais
elevada é a alma.

O amor maternal é uma das expressões do amor de
Deus na Terra. Ele se torna uma nova linguagem quando
propicia a educação e emancipação dos filhos.

O amor muitas vezes utiliza-se da linguagem do
silêncio para se expressar. Experimente ouvi-la com o
coração. Algo de novo acontecerá com você, motivando-o
para a realização interior.


Quem ama nunca estará só, pois seu amor encontrará
ressonância em outros corações. A linguagem do amor
tem o dom de fazer o que se diz ou se escreve ser mais
bonito do que é possível traduzir.

Jesus nos ensinou a linguagem do amor
através do Sermão do Monte.


7
Amor sem
adeus

Para aqueles que verdadeiramente amam, não existe
adeus, mas até logo. Quando o amor está presente não há
partida sem reencontro. A separação de qualquer natureza
é vista por aquele que ama como uma breve pausa.

A morte, aparente ceifadora de vidas, não consegue
separar aqueles que amam. O amor transcende a


destruição celular, face a sua natureza espiritual que não
está gravada no corpo, mas na alma.

Quando nos separamos daqueles a quem amamos,
pela sua desencarnação, devemos continuar amando-os a
fim de alimentá-los, à distância, com o sentimento que
verdadeiramente nutre para a vida.

Se você tem um parente ou amigo do outro lado da
vida e não consegue esquecê-lo, experimente o verdadeiro
amor que se vitaliza pela vibração que emite ao outro e
pela certeza de sua existência na espiritualidade.

A saudade do ente querido que desencarnou deve ser
permeada pelo amor a fim de que não se torne vazia. O
amor nos dá a certeza da imortalidade da alma e nos
aproxima dos que nos antecederam na jornada espiritual.

Não há adeus nem perda para o amor. Só se perde o
que não se possui. Os valores sobre os quais nos
ancoramos são aqueles inalienáveis, que nem as traças
corroem nem os ladrões roubam. Ninguém perde o amor,
pois ele não é destruído com a morte do corpo nem com a
distância, as barreiras do espaço e do tempo não
conseguem separar aqueles que se amam.

Não chore desesperado pelo amor "perdido".
Observe a generosidade da vida ao libertar aquele que
cumpriu o tempo necessário com você e ao crescimento
que foi proporcionado na convivência a seu lado.

A viagem de alguém é pausa para o crescimento dos
que se separaram. Considere que todo afastamento é
possibilidade de percepção do outro e de si mesmo. Um
belo quadro, como qualquer obra de arte, só pode ser
admirado se dele nos afastarmos.

Não se lamente pela separação daquele a quem você
verdadeiramente ama. Quem ama liberta e deseja o bem
para o outro.


A ansiedade do reencontro pode nos fazer perder a
chance de perceber as mudanças ocorridas no outro
durante o período de afastamento. O amor espera e confia,
permitindo-se mudar a cada dia na direção do Bem.

Considere que aqueles que você ama se comunicam
com você pelas sutis conexões do amor. Os entes
queridos, à distância ou desencarnados, nunca deixam de
se comunicar. A mediunidade natural nos permite estar
sempre em contato com aqueles a quem amamos.

Converse com seus amores que se foram para outra
jornada. Fale-lhes de sua saudade, mas não se desespere.
Quem ama continua recebendo as vibrações dos corações
que deixou na Terra. Confie no amor que os unirá de novo
na Vida Maior.

Quando a pessoa amada está distante e desejamos
sua felicidade, contentemo-nos com a certeza dele estar
vibrando com o pensamento divino em favor do nosso
crescimento.

A vida expressa sempre o amor de Deus. Nele nos
nutrimos e nos entregamos na expectativa de alcançarmos
a felicidade. Nunca haverá separação entre nós e Deus,
tanto quanto entre os que se amam.

O amor é uma fonte exuberante de vitalidade. Quem
verdadeiramente ama revigora suas energias e, se o faz aos
outros, alimenta-os com a vitalidade oriunda da natureza.

Se seu amado se foi, guarda no coração a certeza de
que o grande bem que alguém pode nos dar é a felicidade
de poder estar construindo adiante, para si e em favor da
Vida.

Nada, a não ser o progresso, é determinado. Tudo
está interligado pelos fios invisíveis do amor. Ninguém
pode se dizer isolado no mundo. O nascer nos coloca na
vida de forma a não podermos dela nos ausentar. Os


corações que abrigamos em nós mesmos jamais estarão
distantes.

Jesus nos mostrou que seu amor não teria
adeus quando nos afirmou sua presença até o
findar dos séculos, prometendo o Consolador
para estar sempre conosco.


8
Amor
impossível

Se você ama alguém que não lhe pode corresponder,
lembre-se daqueles que não têm um amor ao menos para
chorar suas lágrimas. Se o amor é uma conquista, alguns
ainda não a alcançaram.

Se a pessoa que você ama já tem compromisso, evite
viver uma relação paralela que poderá machucar seu


coração. Nossos sentimentos comandam nossa Vida;
deixá-los à deriva é perigo para a própria sobrevivência.

Ninguém que se aventura numa relação paralela
consegue dela sair sem marcas. Os motivos que levam
alguém a tal aventura geralmente se enraízam em vidas
passadas.

Quem ama nem sempre consegue correspondênciacom o ser amado. Às vezes nos deparamos com os amores
platônicos ou não recíprocos. Respeitar os limites do outro
é fundamental para nosso equilíbrio psíquico.

Quando você se deparar com um amor proibido
atravessando seu percurso de vida, olhe para si mesmo e
conscientize-se de que você não merece pagar preço tão
alto por uma ligação que não possa ser postergada.

Se o seu amor não é correspondido ou é platônico e
o outro não sabe nem lhe dá atenção, não espere que um
milagre resolva a situação. Lance-se ao seu próprio
destino buscando realizações superiores.

Não lamente a saída de alguém de sua vida.
Reenquadre a posição que você deve ocupar na vida,
perante o futuro, sem aquela pessoa. O outro que saiu,
apenas desocupou o espaço por você constituído. Permita
que algo nobre ocupe devidamente aquele lugar.

Se você se encontra em solidão, observe à sua volta
e verá que, mesmo acompanhada, muita gente está só. A
companhia do amor é a paz da consciência e o pensamento
voltado para o futuro.

Por contingências reencarnatórias, o amor entre duas
pessoas poderá estar separado pelos laços de parentesco,
pelo compromisso do outro, por expiações ou pela
preferência sexual. Nesses casos, aja com cautela e
equilíbrio, considerando que a separação imposta pela vida
representa processo educativo em curso.


Muitas vezes tentamos colocar num ponto máximo
de nossa vida o amor a uma pessoa em lugar do amor a
Deus, à vida ou, até mesmo, a si próprio. Esse amor
exagerado tende a anular quem a ele se entrega.

Em determinada fase de nossa vida nos encontramos
com um outro que inunda nossa consciência alojando-se
sem pedir licença, parecendo ser a única razão de
existirmos. Muitas vezes se trata de fascinação movida por
carências não atendidas. Valorização de si mesmo e auto-
estima, são fundamentais para o reequilíbrio psíquico.

As barreiras da posição social, do nível intelectual e
outras erigidas pelo preconceito, são contingências que
nos ensinam a grandeza da vida verdadeira, da qual somos
originários e para a qual voltaremos como espíritos.

Se o amor possível está difícil, o impossível merece
a nossa cautela para não se tornar uma armadilha cármica
a nos aprisionar na teia das reencarnações expiatórias.

O amor não-amado, Jesus, soube entender os
homens, face à ignorância espiritual da humanidade. O seu
amor é o amor possível e libertador.

O amor não correspondido é aquele que devemos
esquecer a fim de buscarmos outro amor, que preencherá
nossa vida de felicidade e paz. A fixação nele é porta
aberta à obsessão e à anulação de si mesmo.

O amor impossível nos aprisiona e nos faz
estacionar diante da vida. Sua presença em nossa
consciência e em nosso coração impede-nos de crescer e
evoluir.

Se não conseguimos realizar o amor que nos parece

o máximo de nossa vida, lembremo-nos que um outro
amor pode estar a nos esperar do outro lado da vida,
confiante em nosso amadurecimento antes da partida. O
amor dos entes queridos, que nos antecederam na viagem

de retorno ao mundo espiritual, bem como daqueles que
pertenceram ao nosso passado reencarnatório, estará
sempre presente em nossas vidas na medida em que
permaneçamos trabalhando em favor do amor e para que o
amor alcance os que dele carecem.

Amanhã poderemos estar diante de algo muito mais
importante do que aquele amor que nos impede o
crescimento. Na manhã seguinte, certamente o dia poderá
ser mais acolhedor. Acredite no amor possível; é ele que
nos faz crescer.

Jesus nos ensinou que o amor é sempre
possível àquele que pensa no Bem.


9
Amor amigo

Nossos amigos são nossos tesouros. Constituí-los e
preservá-los é uma arte. Saber fazer e manter amigos é
uma capacidade importante do ponto de vista do
crescimento espiritual.

Manter os amigos constituídos desde a infância
revela alto grau de inteligência emocional e capacidade de
amar por tempo indeterminado. São aqueles, os amigos
que nos acompanham durante muito tempo, os que nos
ensinam o verdadeiro amor.

O amor amigo é aquele que se coloca ao lado e em
companhia do outro, sem lhe tolher a liberdade. O amor
livre é aquele que liberta para a vida plena e feliz.


O amor amigo nunca precisa ter que perdoar. Quem
ama não se magoa, não fica com raiva de quem o agrediu,
por não se sentir ofendido.

Muitas vezes o amor entre duas pessoas se
transforma em amizade provocando, não raro, a separação.
O que houve? Não seria este o objetivo da união? Muitas
vezes, o melhor caminho é o da motivação consciente, que
adiciona novos elementos à relação, para a felicidade do
casal.

O amor amigo não anula o outro, pois se preocupa
com o crescimento e fortalecimento da personalidade do
parceiro. Muitos casais perdem o interesse pela relação em
função da competição que se instala entre os parceiros,
pela ausência de solidariedade

O amor amigo é fraterno, divide os problemas,
mesmo os que não são comuns ao casal, é companheiro e
auxilia o outro na solução dos conflitos íntimos como se
fossem os seus.

O amor amigo eleva o espírito, não necessitando,
muitas vezes, da união carnal para ocorrer o verdadeiro
encontro entre os pares.

Quando o amor maternal deixa de ser o amor de
amigo, preferindo permanecer no controle e dominação da
prole, provoca o afastamento do ente querido pela
necessidade que este tem de libertar-se do jugo
superprotetor.

O amor exige cumplicidade na medida em que esta
promove a interação entre o casal, cuja exclusividade e
privacidade são garantidas. É nessa cumplicidade
equilibrada que se mantém a amizade do casal.

É certo que não se consegue ter por um inimigo o
mesmo tipo de amor que se tem por um amigo, mas se
pode desejar àquele o mesmo que se quer para este. O


inimigo representa sempre uma oportunidade de aprender
algo mais sobre nós mesmos. O ódio, muitas vezes, nos
vincula no tempo e no espaço, às pessoas com as quais
nada teríamos a aprender, mas que, certamente, nos
ensinarão coercivamente, algo sobre nós.

Se você quer ser feliz, ame antes de ser amado. O
que queremos para o outro é o que recebemos da Vida. O
pensamento daquele que nos ama, é que nos auxilia e nos
ajuda em circunstâncias que não imaginamos possam
acontecer.

O verdadeiro amigo transforma o outro pelo
exemplo de sua própria transformação e pelo amor que faz
brotar de sua alma.

O amor amigo não exige retorno do outro. Dedica-se
por livre iniciativa e opção de servir. Quem ama jamais
deixará de fazê-lo. O amor perdoa sempre por não se
sentir ferido.

Não erotize o amor de um amigo. A distância entre o
afeto e a sensualidade nem sempre é percebida pelo outro.
Observe se não se trata apenas de uma carência sua que
poderá lhe custar a amizade.

Aja com ética para com as pessoas, principalmente
os amigos, pois certamente eles têm você em alta conta.
Sua ética é garantia para a compreensão do amor que nutre
por eles.

Muitas separações acabam em disputa por heranças
e patrimônios do casal, gerando inimizades e
desequilíbrios de parte a parte. Quando isso ocorre é
importante que se pense na supremacia atribuída ao
dinheiro em lugar do amor. Os bens passam, só o amor
fica.

A disputa por bens, quando não estabelecida em
bases equilibradas, gera necessidades de retorno a uma


nova experiência em conjunto para o aprendizado da
renúncia e para devolução do que não se merece.

Não deixe que sua relação com alguém termine na
inimizade. Quando assim ocorre, geralmente surge uma
sensação de insucesso e insegurança quanto a uma
possível relação futura.

Jesus, o Amigo Divino, nos ensinou a
trabalhar com os amigos pelo Bem Maior. Mesmo
traído por Judas, chamou-o de amigo.


10
Amor e

carma

Muitas criaturas se ligam a outras por impositivos da
Lei de Causa e Efeito, que geralmente faz com que o
credor se una ao devedor de si mesmo. Nas dificuldades
de relacionamento, costuma-se evocar esse princípio como
justificativa para as desavenças domésticas, porém, deve-
se estar atento para as imperfeições próprias de cada um e
que não estão relacionadas com o modo de ser do outro.


O casamento é portal de crescimento, qualquer que
seja o passado dos cônjuges. Ligar-se a alguém é sempre
opção de cada um, sem que signifique necessariamente
anterior ligação cármica.

Quando o amor está presente numa relação, ele é
capaz de suplantar qualquer carma passado, desde que o
indivíduo não projete no outro suas próprias imperfeições.

O amor transcende a matéria da carne renascendo a
cada nova etapa da Vida do espírito. Os vínculos afetivos
entre as criaturas se fortalecem a cada encarnação,
objetivando o amor puro e sincero.

Os vínculos que firmamos numa encarnação não
quebram aqueles que fizemos nas vidas anteriores. O
verdadeiro amor não se acaba nem diminui com a
convivência do ser amado com outrem. Casar com alguém
não significa prender-se àquela pessoa nas encarnações
futuras. Os vínculos se fortalecem pelo amor, porém,
podemos estar ligados a alguém se o agredimos numa
existência e ele não se equilibrou, necessitando novamente
de nossa presença em sua vida para o aprendizado mútuo.

Entregar-se ao comando do amor é libertar-se dos
atavismos que nos prendem ao sofrimento. Quem se deixa
viver pelo amor alcança a plenitude libertando-se de
carmas passados, entendendo o sofrimento como processo
educativo salutar.

Transformar seu carma negativo em positivo é
colocar a energia do amor a serviço do Bem Maior. Só o
amor pode mobilizar e alterar o destino no sentido do
crescimento espiritual.

O amor nunca se acaba. Por mais inconseqüentes
sejam as atitudes do outro, o amor verdadeiro permanece,
desculpando e amparando o ser amado que
momentaneamente desequilibrou-se.


Quando o amor já vem ferido de outras vidas,
costuma reaparecer nas uniões provacionais. Se você se
encontra nessa situação, verifique o que ainda não
aprendeu com a nova união. É importante fazê-lo antes
que seja tarde, para sua felicidade.

As uniões ditas cármicas podem se tornar uniões
felizes desde que um dos cônjuges se disponha ao amor e
a tornar o outro feliz. Repense sua união a fim de não ter
que retornar nas mesmas circunstâncias.

Se você não mais deseja reencarnar na companhia de
determinada pessoa, não a agrida. Termine a relação sem
gerar carma negativo. Aprenda a conviver, como amigos.

Perceba que o amor de Deus coloca a serviço do ser
humano Sua misericórdia, para diminuir os efeitos das
atitudes negativas do passado, permitindo-lhe sua
recuperação.

Não espere tempo algum para ajudar alguém com
seu amor, sob pretexto da necessidade de que haja
sofrimento para o progresso espiritual dele. Se possível,
diminua aquele sofrimento. Aprende você e aprende o
outro.

Ninguém é dono da vida de ninguém. A
desencarnação promove a alforria necessária para muitos
indivíduos que se sentem presos na vida a alguém.
Liberte-se libertando o outro da posse excessiva.

Não se obrigue a vincular-se a alguém por pena ou
piedade. Verifique suas necessidades evolutivas e o bem
que você poderá fazer ao outro lhe permitindo sentir-se em
igualdade de condições com seus semelhantes. Se a vida o
colocou ao lado de alguém que necessita de cuidados,
faça-o com consciência de seu papel e de sua
responsabilidade.


O carma do filho deficiente coloca frente a frente
antigos amores e, às vezes, antigos desafetos. A mãe que
se dedica ao filho deficiente é duas vezes mãe, pois coloca
acima de tudo o amor pelo seu filho que é diferente dos
outros.

Não guarde mágoa em seu coração. Não o manche
com a tinta negra do ódio. O verdadeiro amor não se
magoa, pois compreende a atitude do outro, própria de seu
nível de evolução.

Jesus reencarnou sem carma para nos
ensinar, através de sua mensagem, como
aprender com nossos equívocos do passado.


11
Amor e
carência

Algumas pessoas se unem a outras por carência
afetiva ou por medo de ficar só. O amor é mascarado pela
necessidade de preencher um vazio deixado por motivos
ligados à infância ou ao passado espiritual da criatura.
Nesses casos, quando a carência é suprida e vem a
maturidade psicológica, um deles, ou os dois, estando em
crise, geralmente descobrem que não havia amor entre si.


Nem sempre quando o parceiro preenche as
necessidades sociais e culturais do outro, pode-se afirmar
que isso é amor. Casar ou unir-se a alguém pode ocorrer
por "imposição" cultural. Por vezes casa-se porque todo
mundo casa, porque os pais se casaram, os avós, o vizinho
e também por imaturidade psicológica.

Alguns procuram um parceiro para não ficarem sós,
por não saberem viver na solidão sexual ou emocional.
Necessitam de alguém para companhia, para sentirem-se
amparados e cuidados, para terem filhos, para não ficarem
sós na velhice.

Há também a procura do parceiro por necessidade
sexual, para permutar energias, para obter prazer,
descarregar seus desejos reprimidos. São diversos os
motivos pelos quais se procura um parceiro.

As decepções e abandonos sofridos na infância, as
perdas acumuladas e não elaboradas, podem fazer com
que as pessoas se liguem umas às outras, na expectativa da
satisfação inconsciente de solucionar aqueles conflitos.

A carência do amor está presente na criatura humana
e ela, muitas vezes, busca-o para satisfazer um outro nível
de necessidade. Alguma expectativa não atendida num
período de sua vida vai ensejar a necessidade futura.

Amar e ser amado é o desejo de toda criatura, porém
tal equação tem sido resolvida de forma dolorosa. É
realmente dolorosa uma existência sem amor. Intimamente
temos a necessidade de nos sentirmos unidos a alguém que
possa servir como catalisador de nossas emoções.
Necessitamos ser tocados, afagados, para nos sentirmos
vivos. Quem não sente falta de uma companhia nas horas
de solidão e de angústia? Principalmente uma companhia
amiga que nos devolva o que lhe oferecemos.


Se a solidão e a carência estão minando-lhe as forças
de forma persistente, investigue a fundo sua consciência
procurando descobrir em você, quais os aspectos que
podem ser transformados para facilitar seu encontro com o
outro.

Muitas vezes transformamos nossas vidas em
experiências de dores sucessivas por inabilidade para nos
relacionarmos adequadamente. O autoconhecimento e a
percepção de si mesmo favorecerão as mudanças que se
fizerem urgentes.

Se a saudade fizer aumentar a carência, não olhe
para o passado que não mais retorna, mas para o futuro
ditoso que nos aguarda, fruto do amor que dedicamos à
Vida.

A carência não resolvida pode nos levar à doença.
Pode permitir em nós a instalação de processos agressivos
ao corpo. O antídoto é o amor pelos que não têm amor. O
corpo é um vaso reflexivo do psiquismo que o usa.
Entendê-lo como caixa de ressonância nos permitirá
decifrar os mecanismos da mente que dela se utiliza.

A procura pela satisfação, a qualquer preço, das
carências instintivas, pode levar o indivíduo à obsessão e
insatisfação constantes. A carência em excesso conduz a
comportamentos desagradáveis, pois coloca sobre o outro
uma elevada exigência de provas de amor que acabam por
sobrecarregá-lo, ensejando o rompimento dos laços
afetivos.

Se você se encontra sob o signo da carência sexual,
não permita que sua união se dê por este motivo. Eleve seu
amor ao nível espiritual e ele acalmará sua sede instintiva.

A carência em ser amado, em ser querido por
alguém, pode ser satisfeita a partir do momento em que


nos dispomos a atender às necessidades de outros que se
encontram na mesma situação.

A carência, às vezes, decorre da posse que pensamos
ter sobre as pessoas. Não aprendemos a amar sem possuir,
sem libertar.

A dependência gerada pela satisfação superficial das
carências leva o indivíduo a perder seus referenciais e
limites. Toda dependência deseduca, como todo excesso
vicia.

Quando você se sentir só, sem um amor, sem nada
que lhe motive a vida, você estará carente do amor da
falta, que poderá mudar sua vida. Esse amor é aquele que
você precisa urgentemente destinar a algo ou alguém. Dê
amor que ele nunca lhe faltará.

A maior carência que temos é a de amar
verdadeiramente. Não a de sermos amados, mas a de
sabermos amar sem possuir. Ser amado sem amar
incomoda menos que amar sem ser amado, pelo nosso
estágio embrionário de evolução. Um dia saberemos amar
sem exigir amor.

A realização do amor não permite a instalação do
estado de carência naquele que ama.

Jesus, com seu amor, pode suprir a nossa
carência de amar.


12
Amor e
terapia

O amor é a terapia mais eficaz para a cura dos
muitos conflitos humanos. Sua percepção equivocada tem
levado as criaturas ao desequilíbrio e à insatisfação para
com a vida e consigo mesmo.

Muitos dos traumas humanos se dão pela falta de
entendimento adequado do que é o amor e da busca
desenfreada em materializá-lo a qualquer custo. Pode-se


dizer que a história do ser humano é a história da
compreensão do que é o amor.

Amor e ódio, diz-se que são sentimentos opostos. Se
entendermos opostos como aquilo que impede algo se
desenvolver, sim. O ódio é uma manifestação de amor,
que embrutece seu agente pela ausência da percepção de si
mesmo. Quem odeia não se percebe, não percebe o amor
em si. Não é possível expressar o amor quando se está
envolvido pelo ódio.

As terapias estabelecidas pela psicologia clássica
bem como as chamadas terapias alternativas, buscam,
através do amor, equilibrar o ser humano no mundo. Só o
amor é capaz de nos colocar no mundo em contato com a
felicidade.

Quando surge alguém que se coloca em nosso
caminho como inimigo e permitimos que sentimentos de
ódio tomem nosso ser, anulamos a permanência do amor,
impedindo as possibilidades de reconciliação. Enquanto
não anularmos o efeito do ódio em nossas vidas nenhuma
terapia terá efeito.

Quando se ama, o mais importante é a paz e a saúde,
sendo aquela mais importante que esta. A paz nos educa
para a doença enquanto a saúde pode prescindí-la. O amor,
estando entre elas, nos anima a viver.

O amor é a terapia mais eficaz às obsessões. Àquelas
motivadas pelas questões de ordem sentimental sua
influência é essencial. O amor de alguém cura o amor-
doente do outro. A terapia do amor esclarece e educa
aqueles que se encontram envolvidos pelas teias das
agressões mútuas.

A verdadeira terapia leva o ser humano à felicidade
e se alicerça no profundo respeito à individualidade e
singularidade que é o outro. Na terapia, como em qualquer


trabalho que envolva o crescimento do outro, o amor é
fundamental como elo de ligação entre o que se considera
sadio e aquele que o procura.

A transformação de um indivíduo num processo
terapêutico, ocorre quando ele se dispõe a amar a si
mesmo e a Vida. É um processo individual e
intransferível.

A terapia centrada no amor preocupa-se com o outro
e com seu futuro, buscando algumas referências no
passado. A projeção de um futuro ditoso deve fazer parte
de toda proposta terapêutica.

Valorizar excessivamente o passado pode levar o
indivíduo a fixar aspectos negativos de sua vida. Enxergálos,
entendê-los e aceitá-los como momentos de
aprendizagem é fundamental. Permanecer fixado nele, é
doentio. Amar-se é também entender as próprias
dificuldades e equívocos do passado, como constituidores
da personalidade do presente.

O otimismo constitui-se num excelente remédio para

o indivíduo que se encontra em estado depressivo,
desanimado ou insatisfeito com a vida. A terapia do
otimismo renova e equilibra a mente. O otimismo alicerçase
no amor à vida e na certeza do amor de Deus.
Nascemos para a conquista da felicidade. Ela não nos
surge gratuitamente, mas sim, constitui-se numa escada
ascensional a que todos estamos sujeitos.
Uma terapia pode chegar ao fim, mas o amor de que
necessitamos entender, estando ou não com conflitos
psicológicos, é para sempre. Deixa-se uma terapia, mas
não se deixa de viver com amor.

Uma terapia, para surtir efeito, deve se preocupar
com os efeitos da dependência que pode se instalar entre o


terapeuta e seu cliente. O olhar do terapeuta deve revestir-
se da lente do amor.

Muitos conflitos, que hoje chegam a necessitar de
uma terapia, originam-se da mágoa escondida por trás da
impossibilidade da liberação das emoções, quer do
passado, quer do presente. Só o amor consegue perdoar,
quando quem se sentiu agredido compreende que também
seria capaz de agir como o outro, se estivesse nas mesmas
circunstâncias.

A empatia é a base da compreensão do outro. O
amor contém a necessidade de se agir com empatia. Toda
relação para ser duradoura alicerça-se na empatia para
com os outros.

Se sua terapia não vem dando o resultado que você
esperava, experimente adicionar-lhe o amor. Renove sua
vida percebendo-se um ser infinitamente capaz de amar. O
terapeuta é alguém como você e é dessa forma que ele se
vê. Ambos estão em processo de crescimento.

A verdadeira terapia não deve centrar-se na doença,
mas na saúde. A doença pode ser fator de equilíbrio
quando impulsiona o indivíduo à busca do amor.

Jesus, terapeuta do amor, soube dar a cada
indivíduo que com ele esteve, a palavra na
medida certa para sua evolução.


13
Amor e paz
interior

A paz é a conquista do amor entre o ser humano e o
meio em que vive. Viver em paz é viver o amor em
contato com o mundo. Não há paz sem amor como não há
amor sem paz.

A paz interior é a plenitude do espírito em equilíbrio
com sua consciência. Este estado é alcançado através da


vivência do amor. A paz interior não se alicerça sem a
experiência com amor.

Paz interior é quietude íntima e inquietude quanto às
injustiças no mundo. Quem está em paz consigo mesmo
não desdenha a necessidade de transferí-la para outrem.

A paz é uma pessoa. Ela só é possível através do
humano. É pelo ser humano que ela se realiza. Quando o
amor está presente no ser humano, ele se torna luz e paz
para os que o cercam.

Quem tem a paz interior tem a certeza de sua
participação e responsabilidade na construção de um
mundo melhor. Significa sentir-se um com o cosmo, com
a natureza, com a vida, com Deus.

A esperança e a certeza da vitória do Bem são
motivações daquele que está em paz, pois lhe dão
confiança no futuro e nos objetivos de Deus para com o
ser humano.

Estar em paz consigo mesmo e com o mundo é usar
as lentes do amor no contato com a realidade. Quem a
possui consegue ver o mundo como uma grande escola de
aprendizagem e progresso.

A paz interior é um estado de felicidade permanente,
conquistada com trabalho e amor em favor da Vida. Tal
conquista se dá no contato com a experiência de viver em
sociedade.

A reforma interior do ser humano torna-se possível
quando ele adiciona o amor às suas atitudes. A quietude
íntima invade sua alma permanecendo para sempre em sua
trajetória evolutiva.

Para se conquistar a paz interior é necessário
atravessar o caminho da percepção de si mesmo. É preciso
se ter a certeza e confiar num futuro melhor para aqueles


que sabem amar. Comece pela percepção de seus defeitos
e virtudes. É preciso ver em si mesmo a luz e a sombra.

Faça um programa de aquisição de tranqüilidade
interior iniciando pela fala, pelo pensamento e pela ação.
Tais atitudes realizadas com amor lhe darão o equilíbrio
necessário à percepção de si mesmo.

A conquista da paz interior envolve o respeito e a
admiração pelo outro. Ele é o espelho colocado em sua
vida para que você mesmo possa se entender e aceitar-se.
Quem ama sabe do valor do outro em sua vida.

Quem quer que seja o outro em seu caminho, quer
permanente ou eventual, é sempre alguém especial que lhe
ensinará a viver. Respeitá-lo em sua singularidade é
princípio do amor ao próximo.

A paz interior confere ao indivíduo otimismo e
determinação em lutar e vencer as dificuldades da vida,
inerentes ao nível de evolução de cada um.

Quem detém a paz interior é possuidor de fonte
inesgotável de amor. O amor nunca se acaba para aquele
que encontrou a paz de consciência.

O equilíbrio verificado naqueles que estão em paz
consigo mesmos, advém do amor que pacifica a alma e da
ética comportamental que adotam em suas vidas e com os
outros.

O coração de quem está em paz não tem mágoa nem
ressentimento. Esses são sentimentos que não encontram
ressonância em quem ama e sabe amar.

Imbuído da paz interior e do amor à humanidade,
Gandhi propôs a não violência como atitude positiva
diante das agressões do mundo. Nem passividade nem
violência, mas atitude firme na busca da paz.


Se você se queixa de que nada dá certo em sua vida,
tente o amor. Invista no amor. Persiga o amor. Proponha o
amor para sua vida.

A paz interior é uma conquista do espírito imortal.
Iniciar agora é começar uma jornada rumo à individuação.

Jesus mostrou-nos que a paz e a serenidade
de espírito são fundamentais para a realização do
amor pleno na Terra.


14
Amor e
trabalho

O trabalho é o amor materializado. É no trabalho
que realizamos o amor e dele nos nutrimos. Sem trabalho
não há amor. Sua existência é uma elaboração psíquica.

O trabalho no Bem é a realização do amor de Deus.
O amor se concretiza no trabalho nobre, executado com
fins ao progresso e à felicidade do ser humano.


No trabalho remunerado, o amor se expressa quando

o realizamos de forma prazerosa, sem achaques nem
reclamações descabidas. Depois do lar, é ali onde mais nos
mostramos como somos.
O trabalho dignifica o ser humano tanto quanto o
capacita à aprendizagem necessária ao progresso
espiritual. O amor é a energia refazedora do trabalhador
que se agasta em sua realização.

Amor e trabalho somados, fazem a fórmula mágica
para a felicidade do ser humano. Dissociá-los é adiar o
progresso espiritual que nos aguarda.

Sendo o trabalho toda ocupação útil, todos, em
qualquer situação, podemos fazê-lo. Todos podemos amar
através da realização de algum trabalho. Não há quem
esteja impossibilitado de realizá-lo. A prece por alguém é
uma atividade útil, portanto, é trabalho.

O trabalho com amor permite as realizações
superiores e a aquisição do conhecimento das Leis de
Deus. A vida nos coloca na execução do trabalho mais
apropriado ao nosso desenvolvimento espiritual.

O trabalho do amor é a conquista do bem coletivo,
permitindo que cada um expresse sua individualidade sem
tolher a do outro. Compartilhar o trabalho com alguém é
oportunidade de crescer com o outro.

Trabalhar num sistema religioso constitui-se uma
oportunidade de colaborar com Deus em Sua obra.
Desempenhar mal esta tarefa é compromisso grave de que
se arrependem aqueles que assim procedem. A consciência
do ser humano é seu principal juiz a lhe exigir correção.

Realize seu trabalho com otimismo e disposição
sincera. Ele é seu meio de sustentação e aprendizagem.
Sem ele o ser humano entra em estagnação e perde
excelentes oportunidades de crescimento.


O trabalho feito sem amor torna-se obrigatório e
enfadonho. A obrigatoriedade retira os objetivos nobres
que se tem ao trabalhar. Descubra no seu trabalho uma
forma de exercê-lo com o sentido do amor.

É no ambiente de trabalho que descobrimos pessoas
com quem temos a aprender e nos servem de espelho na
vida. Prezando-as, aprendemos a lidar com nossas próprias
imperfeições.

A escolha de uma profissão deve ser feita com
cautela e com amor para não nos dedicarmos a uma
atividade que venha a nos atrasar a marcha evolutiva. O
amor, presente nessa escolha, nos levará ao encontro com
a profissão adequada ao nosso processo de crescimento.

No limiar de uma nova vida, com a desejada
aposentadoria, o ser humano pode deixar o trabalho
remunerado, mas nunca deverá deixar de trabalhar por
amor, de forma a manter-se sempre em paz com sua
consciência que lhe exigirá uma ocupação útil.

O trabalho é fonte de renda para o ser humano,
sendo sua porta para a independência financeira e
psicológica. Adicionar-lhe o tempero da boa vontade e do
amor possibilitará sua emancipação espiritual.

Na relação amorosa do casamento não se deve
excluir a participação de ambos no trabalho de
manutenção da família. Compartilhar o trabalho é
compartilhar o amor.

O trabalho dirigido em favor de quem se encontra
em dificuldade de manter-se é serviço nobre em favor da
Vida. Todo aquele que se dedica ao trabalho pelos mais
necessitados colabora com a harmonia da Vida.

O trabalho é o caminho do aprendizado. É nele que
experimentamos as lições teóricas que ouvimos, falamos e
lemos. Com ele, a teoria dá lugar à prática.


Quem trabalha direcionando amor àqueles com
quem interage, vive mais e melhor. Cresce e ajuda a
crescer. Ama e ensina a amar pelo trabalho que faz.

Jesus mostrou que, através do trabalho no
bem, manifesta-se o amor a Deus.


15
Amor e
inteligência

O amor é o requisito básico para a apreensão da
inteligência. Foi em busca do amor que o ser humano saiu
das cavernas e alcançou a civilização do progresso. Sua
inteligência é conquista do amor.

Cada vez mais o ser humano descobre que a
inteligência não se refere apenas a aquisição de


conhecimentos intelectuais, mas se reveste das franjas do
amor em sentimento e intuições.

O máximo saber humano é a percepção do amor
como estado de sabedoria.

A química moderna atribui à diferença de carga
elétrica a atração entre partículas, isto é, a positiva atrai a
negativa e vice-versa. O elétron é mantido a determinada
distância pela força com que o núcleo o atrai. Diz-se que
essa força é fraca em comparação à forte que une prótons
e neutrons no núcleo atômico. Fracas ou fortes, são forças
atrativas que mantêm a matéria coesa e com as
propriedades universais que conhecemos. Elas
representam as leis de Deus de forma concreta. São
manifestações de Seu amor infinito.

Pode-se também afirmar, do ponto de vista da física,
que, a força que atrai dois corpos distintos, de acordo com
a afirmação de Newton, "matéria atrai matéria na razão
direta de suas massas e inversa ao quadrado de suas
distâncias, segundo uma constante", é o amor no mundo
microscópico da matéria.

Que força atrai os corpos? Será a mesma que atrai as
pessoas? Certamente que não. E o amor entre duas
pessoas? Qual a sua natureza? Tais forças físicas, sem
sentimentos, representam o amor de Deus presente naintimidade da matéria. É o amor que atrai a matéria.

O ser humano descobre a inteligência intelectual, a
inteligência emocional, a inteligência intuitiva, a
inteligência meditativa e, certamente, descobrirá outras,
porém, nada se iguala ao amor presente na essência do serhumano, ultrapassando os limites de seu corpo. É o amor,
a inteligência elevada ao máximo grau.

Amar independe do corpo sadio. Não se ama com o
coração físico nem com o cérebro. O amor vem do espírito


e ele não depende do corpo para existir. Sua natureza
difere de tudo que seja material.

Ao ver um deficiente físico ou portador de qualquer
distúrbio psíquico, não pense que ele não é capaz de sentir
ou mesmo manifestar seu afeto ou carinho. Observe e
verifique que ele manifesta o amor de uma forma que lhe é
característica.

O amor inteligente é o que cresce e se preocupa com

o crescimento do outro. A realização daquele que ama de
forma inteligente está no desenvolvimento do outro.
Em que pese a tecnologia ter dominado o mundo
moderno, o amor nunca foi tão atual e importante para o
crescimento humano. Através dele o ser humano tem dado
passos largos nas conquistas tecnológicas.

Embora pareça que a tecnologia esteja do lado
oposto do sentimento, pode-se verificar que ela surgiu
para tornar o ser humano mais sensível e mais disponível
ao amor.

O verdadeiro equilíbrio do ser humano inicia-se
quando ele descobre a função do amor em sua Vida. Essa
função está ligada à sua origem divina e transcendente.

A mesma inteligência que capacita o ser humano a
amealhar recursos financeiros, muitas vezes para a
aquisição do supérfluo, direciona-o para as aquisições
superiores do espírito.

A inteligência emocional, atributo do Espírito,
possibilita ao ser humano penetrar, pela razão emocional,
nos domínios do sentimento e do amor.

Se você notar que retornou à experiência na carne
dotado de inteligência acima da média comum,
sobressaindo-a dentre outras faculdades do espírito, é sinal
para que você busque desenvolver os sentimentos ainda
embrionários na alma.


Ama, de forma inteligente, quem faz do amor uma
energia criadora para uso próprio nas circunstâncias da
vida. Em que pese as conquistas maravilhosas da
tecnologia humana, ainda estamos na infância na aquisição
dos valores do espírito.

Quando o ser humano coloca a inteligência a serviço
do amor, alcança a plenitude da realização na Terra.

Jesus aliou o amor à inteligência colocando-
os a serviço do crescimento da criatura humana.


16
Amor e
traição

O amor pressupõe confiança e entrega de
sentimentos. Sua exclusividade é exigida por aquele que
se dedica ao outro, não permitindo a entrada de um
terceiro elemento na relação.

O ciúme, oriundo da insegurança, costuma ser
elemento catalisador de atitudes inadequadas pelo seu


protagonista. Cautela quanto à impulsividade motivada
pelo ciúme.

Liberte-se daquele amor quando ele já não mais se
sente preso a você. Sua decisão poderá evitar dissabores
desnecessários. A vida lhe oferecerá oportunidades de
equilíbrio mais adiante.

Decepcionar-se ou indignar-se pela traição de
alguém é natural, porém verifique as condições em que se
deu o fato. Muitas vezes suas atitudes foram determinantes
para a ação do outro.

A traição, qualquer que seja sua causa, reflete
sempre o amor insatisfeito consigo mesmo. Quando ela
ocorre de forma sistemática, revela o desequilíbrio
obsessivo em que seu agente se encontra.

Trair e afirmar que outro pode fazê-lo se o quiser, é
deixar seu amor à deriva de forma irresponsável e
inconseqüente. As relações humanas não devem se
constituir em aventuras do coração. Toda relação
emocional gera comprometimento futuro.

A transformação da pessoa que trai poderá ocorrer
com o auxílio do amor daquele que foi traído. Não culpe
alguém pelo ocorrido; responsabilize-se apenas pelo que
está acontecendo com você.

Mesmo ferido, o verdadeiro amor permanece. O
destino, pelas escolhas de cada um, poderá separar as
pessoas, mas não eliminará o amor. Mesmo traído e
separado, o amor verdadeiro permanece vibrando pelo
equilíbrio do outro.

Embora seu amor esteja ferido pela traição,
considere que o seu caminho foi de vitória e que você não
foi o autor nem agiu da mesma forma. Não se culpe,
apenas assuma a responsabilidade de forma madura. Viver


maritalmente com alguém será sempre um desafio à
singularidade do ser humano.

O sentimento provocado pela traição de um parceiro
pode levar o outro a adoecer. Tal ocorre quando o corpo se
torna o anteparo para a continência das emoções que
deveriam ser expressas de outra forma.

Não se deixe abater pela decepção do companheiro.
Mostre a si mesmo que seu valor não depende de
circunstâncias externas, mas é aquele que você sabe que
tem.

Tenha o hábito de dialogar com seu companheiro
sem que esteja fazendo interrogatório policial nem
tampouco deixe que a insegurança tome conta de sua
mente.

Envolva-se na vida de seu companheiro pelo coração
e pela participação em suas atividades cotidianas. Não
fique à margem da vida de quem você diz que ama.
Mesmo que ele o coloque à distância, crie atividades
conjuntas.

Não se coloque também na posição de quem
adquiriu uma posse. Se seu companheiro preferiu a
companhia de outra pessoa à sua, dê-lhe a liberdade de
que necessita para viver sua própria vida. Quanto a você,
viva-a mesmo com as dificuldades que advirão da decisão
tomada.

O amor que se acaba com a traição do cônjuge não
era amor, mas posse. O amor verdadeiro independe da
união carnal.

Diante da traição mantenha o equilíbrio. O outro não
soube merecer seu amor. Não culpe uma terceira pessoa
pela traição. Nessas circunstâncias ninguém age sozinho.
Mesmo assim não há culpa, mas responsabilidades.


Não se deixe magoar pela atitude do outro que o
traiu. Quem trai, é a si mesmo que agride.

Se você hoje possui outro relacionamento além
daquele que lhe constitui a família, ore e busque o
equilíbrio. A manutenção de outros relacionamentos
semelhantes revela necessidade de vencer carências
internas. Sua continuidade desprende energia, impedindo o
necessário equilíbrio para prosseguimento de outras
atividades da alma.

Seja fiel a seus princípios não se permitindo agredir
aquele com quem você convive. O amor é sempre fiel à
sua própria determinação. Na dúvida, não ultrapasse seus
limites. Há caminhos cujo retorno se torna difícil.

Há envolvimentos psíquicos muito semelhantes à
traição num casamento. Não se deixe vencer pelo apelo da
aventura em matéria de sentimento. Tudo que envolve o
coração merece responsabilidade e maturidade.

Jesus, mesmo traído por Judas, não deixou
de amá-lo.


17
Amor e sexo

Amor e sexo são uma única realidade? Estão ambos
ligados de forma vital? Pode um acontecer sem o outro?
Certamente que o amor transcende a sexualidade, sendo
esta uma forma de permuta de energias, enquanto aquele,
a energia do espírito em sua essência.

Enquanto amor, não há diferença entre amar-se um
homem ou uma mulher. O ser que ama não vê o sexo, não
enxerga o corpo nem a condição sócio-cultural do outro,
mas o espírito.

É comum se separar o sexo da atividade religiosa
como se ele não tivesse origem divina e fosse
incompatível com a dedicação a Deus. A repressão à
sexualidade, como se ela fosse atraso de evolução,


provoca núcleos traumáticos na personalidade do
indivíduo. Ao se distanciar de seu uso, não saberá
vivenciar, mais tarde, o amor pleno.

A sexualidade é função revigoradora na vida do ser
humano. Quando o amor está presente, torna-se veículo de
crescimento espiritual. Sua utilização responsável renova
as energias do indivíduo.

Embora o sexo seja um ato comum na vida do ser
humano, sua realização sem amor aprisiona-o nas teias do
prazer vicioso. Ser livre em relação ao sexo é praticá-lo
com responsabilidade.

Quando não há amor no uso do sexo, é comum a
ocorrência de doenças e desequilíbrios nessa área. O amor
é remédio que nos previne contra a ação de agentes
nocivos à saúde e ao bem estar.

Sexo é energia a serviço do crescimento do espírito.
Sua união com o amor proporciona realizações superiores
na vida. Perceber a gradação da energia sexual é tarefa a
ser aprendida.

As ligações do passado, baseadas apenas no sexo
inconseqüente, levam os indivíduos a se unirem pelo
mesmo princípio, gerando obsessões de difícil erradicação
pela sua força energética.

Amar é também se tornar responsável pelas
conseqüências do uso da energia sexual. Assumir uma
postura madura diante do sexo é cuidado fundamental
daquele que ama.

Sexo é energia transformadora. Sempre que a
malbaratamos estacionamos no processo de crescimento.
Sua utilização requer sempre reconhecimento dos limites
de cada um.

Sempre que desejamos o mesmo nível de satisfação
sexual com o parceiro, após anos de convivência, nos


esquecemos de que, embora o amor permaneça, o sexo
sofre variações de acordo com o organismo e com o
psiquismo do indivíduo.

Diante de tantos apelos eróticos, não se deixe vencer
pela propaganda enganosa do prazer fácil. Não transforme
seu amor em produto de consumo barato.

O amor verdadeiro pressupõe o respeito pelo corpo
do outro e do seu próprio. Sua união com alguém não deve
se transformar num campo de experiências sexuais como
se a vida a isso se resumisse.

O amor presente na união sexual dignifica-a.
Quando ele, dela está ausente, transforma-a em satisfação
de instintos primários. O amor que depende
exclusivamente do sexo se acaba por falta de afeto e
respeito.

Muitas criaturas na Terra se encontram doentes da
alma pela excessiva vinculação e valorização do prazer
sexual. Só o amor pode libertar o ser humano de seus
instintos primitivos.

Fazer sexo não é o mesmo que fazer amor. Amor
não se faz, se sente. Quem ama pode praticar ou não a
relação sexual, porém, quem o faz, nem sempre ama.

Compreende-se a tentativa de adicionar amor ao
sexo, cognominando o ato instintivo de fazer amor, porém,
eles nem sempre caminham juntos.

Nada há de impuro no ato de se relacionar
sexualmente com alguém. O problema é a viciação e
dependência em relação à necessidade de se permutar
energias exclusivamente dessa forma.

Não transforme seus momentos ao lado de alguém
na busca pelo sexo. Antes, faça dele um componente
natural de suas relações com as pessoas. Seu uso requer
sempre equilíbrio e maturidade.


Jesus nos permitiu mostrar que a energia
sexual pode ser também canalizada para a obra
divina.


18
Amor e
paixão

Estar apaixonado é um estado de espírito. Existe a
paixão motivadora dos grandes ideais, que impulsiona o
desenvolvimento, o progresso, promove mudanças e
transforma a vida.

O amor, nas suas mais variadas expressões, pode se
apresentar, em estágio embrionário, como uma paixão


avassaladora. Conhecer sua potência é fundamental para
não se deixar vencer por ela.

A paixão é o amor ainda semente. Muitas vezes
aprisiona aquele que a ela se deixa mobilizar, não o
deixando livre para viver sua própria realidade.

O ciúme é componente básico da paixão. É ele que
coloca o ser humano em contato com sua natureza
instintiva. Sua presença constante no relacionamento
provoca desequilíbrios e inseguranças prejudiciais.

A paixão pode ser motivadora na relação quando a
cumplicidade é mantida entre os pares. Ela deve ser
mobilizadora para as realizações da alma. Sua energia
deve catalisar realizações superiores.

A paixão desenfreada e cega anula a percepção do
verdadeiro amor. Muitas vezes a paixão é movida pela
obsessão espiritual, que pretende a estagnação daquele que
a ela se entrega.

Liberte-se da paixão quando o outro não lhe permite
a liberdade de ser você mesmo. A paixão que
verdadeiramente nos motiva para a vida é aquela que nos
liberta da prisão da anulação de nós mesmos e que não nos
permite entregar nossa vida e nosso destino a alguém.

A paixão inconseqüente é o amor doente. É aquele
que adoeceu por não nos permitir viver sem a exigência de
entregar-se a outrem. Ame, tornando o outro livre de seu
egoísmo. Nossa insegurança nos faz transformar uma
relação num inferno movido pela paixão.

A paixão suga energias daquele que a ela se dedica e
se compraz. É comum vermos pessoas que adoecem ou
emagrecem perdendo energias por conta de sua ação
desequilibrante.

As realizações superiores do espírito se ausentam
quando a paixão cega se apresenta anulando os valores


nobres. Manter a paixão sob controle é fundamental para o
equilíbrio do espírito.

As influências espirituais nocivas, quando tratadas
com amor, libertam o espírito das paixões que o vinculam
ao passado, permitindo a renovação do perseguido e do
perseguidor. Não basta curar um, é preciso tratar o outro.
Ambos se distanciaram do amor, merecendo cura e
crescimento.

A transformação da paixão em amor ocorre quando
nos permitimos enxergar o outro como um ser em
evolução, independente de nós, em cujo processo de
transformação oportunamente nos inserimos.

A paixão exige retorno do objeto amado para
compensar-lhe a dedicação e a entrega. Diferente do amor,
que liberta para a felicidade de quem se deixa envolver por
sua ação benéfica.

O amor se renova, a paixão se acaba. Enquanto esta
pede recompensa, o primeiro regozija-se com a felicidade
do outro.

Não deixe que seu amor por alguém acabe na
indiferença e no esquecimento. Tempere-o com o sal do
trabalho conjunto em favor do crescimento espiritual e de
um ideal nobre.

A paixão transforma-se em doença quando não
permite outra coisa senão a entrega inconseqüente ao
outro.

A paixão transforma o ser que a ela é dirigida em
objeto de posse, tolhendo-lhe a liberdade de viver sua
própria realidade.

A paixão, para se satisfazer, contenta-se em levar
um dos pares à dependência do outro. Nessa dependência,
perde-se a energia que equilibra para a vida.


A paixão, muitas vezes, permite que se instalem no
coração de quem a sente, quando é contrariada,
sentimentos de mágoa, revolta e desequilíbrio. Transforme
sua paixão em amor, mudando seu panorama mental.

Liberte-se da paixão impulsionando sua energia para
seu Eu Interior e na direção da Vida à sua volta.

Jesus soube viver o amor na Terra sem se
deixar macular pelas paixões mundanas.


19
Amor e
espiritualidade

O amor transcende os limites da vida terrena,
permanecendo vivo após a morte do corpo. A verdadeira
natureza do ser humano é espiritual, de onde provém epara onde se destina. É de lá que emana a energia amorosa
de Deus na direção da criação.

A vida espiritual é construção do amor que extrapola
os limites da humanidade material. O universo pulsa cheio


de vida material e espiritual. O olho humano, através dos
instrumentos óticos de grande precisão, não é capaz de
captar a grandeza da realidade espiritual, constituída pelo
amor de Deus.

Quando a saudade de um amor que não retornou
ofuscar sua consciência, entregue-se ao trabalho no bem,
em favor da vida, transferindo para Deus a energia
correspondente.

A dedicação de alguém às causas humanitárias e
religiosas não implica na sua impossibilidade de amar e
consorciar-se com alguém. O amor a Deus não exclui
nenhuma forma de amar.

O exercício de uma função sacerdotal ou da
mediunidade para o crescimento do indivíduo e da
sociedade, não deve ser motivo para se reprimir o amor
nem o exercício da sexualidade.

Amar é ter esperança quanto ao porvir e ao futuro do
ser humano como ser espiritual. A espiritualização do ser
humano depende do amor que seja capaz de sentir com
objetivos nobres e coletivos.

Espiritualizar-se é amar e ter esperança sempre. A
esperança que se manifesta naquele que ama, liberta-o da
prisão indesejada da culpa e do passado equivocado.

As realizações superiores da vida ocorrem sempre
que o amor está presente e quando se destina ao bem-estar
coletivo.

A felicidade nos Mundos Superiores só é possível
aos que alcançaram amar sem aprisionar o outro. O amor
verdadeiro torna o outro livre e ditoso ao mesmo tempo.

O amor maternal é o que mais aproxima o ser
humano do amor divino. Ele, pela sua forma pretensiosa
de fazer crescer o outro, torna-se sublime. É na
manifestação do amor materno que encontramos


similaridade entre o ser humano e Deus, percebendo-o
como feito à Sua imagem e semelhança.

O amor materno espiritualiza o ser humano
tornando-o mais consciente de seu papel na Terra. Não
deve ser possessivo nem considerá-lo obra de sua
exclusiva responsabilidade.

As construções espirituais, bem como as grandes
obras de arte da espiritualidade, permanecem inspirando o
ser humano na Terra, graças ao amor daqueles espíritos
nobres que já alcançaram um estágio mais evoluído que o
nosso.

A espiritualização da Terra exige de nós um estado
de amor constante em favor do bem, para derrubar as
sombras que teimam em tisnar a consciência do ser
humano.

O processo de espiritualização do ser humano,
necessariamente o faz atravessar uma fase crítica onde ele
descobre sua pequenez na Terra. Posteriormente, sob as
luzes do amor de Deus, ele descobre sua verdadeira
natureza, a espiritual.

O amor que exige recompensa ou gratificação pela
sua ação, não eleva o espírito. Sua verdadeira recompensa
é o crescimento espiritual do outro e a espiritualização da
própria vida.

Amor espiritualizado é o que não perde a fé e a
certeza da existência e do amor de Deus.

O amor que espiritualiza faz vibrar emoções
sublimes em nossa alma. Eleva-nos o espírito retirando-
nos do lugar comum da vida cotidiana. Retira-nos da vida
instintiva em que nos mergulhamos, muitas vezes sem o
perceber.


Jesus nos mostrou que o verdadeiro amor
espiritualiza o ser humano e o universo à sua
volta.


20
Amor e
educação

Educar é amar, é compartilhar o saber com o outro.
Ensinar é uma arte que veicula e transmite o amor.
Educando e educador partilham a energia do amor,
originária das fontes superiores da vida.

É finalidade divina a tarefa de educar. Atuar nessa
área é contribuir e colaborar na obra do Criador. Toda a


evolução revela um processo educativo de longo e
laborioso curso.

O ato de ensinar acrescenta ao educador a qualidade
de co-participante na obra de Deus para com a natureza e a
criatura humana.

O amor na educação cria oportunidade ao educando
e ao educador de estabelecerem relação onde ambos
aprendem. O educador respeitará as habilidades e
dificuldades do educando, aprendendo com ele. O
educando terá no educador seu modelo de exemplificação

O amor educa o indivíduo para a liberdade com
responsabilidade.

A verdadeira educação exercida com amor, muito
mais do que transmite conhecimentos, transforma o
educando, preparando-o para enfrentar seus próprios
desafios.

O amor na educação não pressupõe retorno, a não
ser o crescimento do educando. Essa é a maior
recompensa do educador.

A verdadeira educação não se obriga a exercê-la,
mas aplica-a com naturalidade e com empatia. Educar
deve ser uma ação livre e nascida do ideal de servir e fazer
crescer o outro pela prática do amor.

É através da educação com amor que aprendemos as
noções éticas da humanidade, sem as quais o mundo
continuaria na barbárie. Sua presença nas várias áreas do
conhecimento humano, permite sua transmissão pela
educação a todas as culturas da humanidade.

A educação pelo exemplo contagia o educando.
Quem educa amando transborda à sua volta o gosto pelo
saber, pela cultura, pela arte e pela vida.

Os grandes educadores da humanidade alcançaram
seus intentos graças ao amor com que realizaram suas


tarefas. Enquanto a lógica ensina a pensar, o amor ensina a
sentir e a viver em plenitude.

Quem ama preocupa-se em educar o outro para a
vida. Se busca uma forma de crescimento interior, ocupa-
se em que o outro encontre também sua maneira de
crescer.

Um amor é capaz de reduzir o ódio de muitos. Seja
você aquele que ama entre os que vivem na discórdia e no
desamor. O contágio do amor é mais eficiente que o do
ódio.

A educação com amor equilibra o ser para aquisição
dos valores superiores do espírito. Ela devolve o indivíduo
ao eixo central de sua vida, o encontro com Deus.

O processo educativo em que o ser humano se
encontra o obriga a vivenciar o amor segundo suas mais
variadas formas, até o dia em que possa alcançar o amor
pleno e verdadeiro.

Necessitamos repetir várias lições na vida para
aprender o verdadeiro sentido do amor. Passamos pela
paixão, pela posse, pela dependência, pelo sexo, pelo
afeto, pelo carinho, pela doação, pela renúncia, dentre
outros sentimentos, até chegarmos ao amor.

Educar é uma atitude que nos coloca em igualdade
de condições com o educando. Educador e educando se
nivelam no encontro com o divino. Educação e amor são
expressões que se assemelham.

Educar-se para o amor é não estabelecer competição
com o outro, visto que, se estão juntos, geralmente se
situam no mesmo degrau evolutivo.

Precisamos sair do amor-sensação para o amor-
sentimento. Caminhar na direção do enobrecimento do que
sentimos, elevando nossas percepções interiores ao nível
dos sentimentos de amor e paz.


Educar alguém é educar-se num processo interativo
de crescimento mútuo. Nessa interação não há maior nem
menor, vencedor ou vencido, aluno ou professor. Sempre
estamos a nos ensinar uns aos outros.

A vida sempre nos coloca em situações em que
estamos nos papéis de educando e educador. Estamos
sempre sendo modelo e, ao mesmo tempo, vendo espelhos
nos outros. Atuando na vida com amor, estaremos
exercendo aqueles papéis com equilíbrio e de forma a
favorecer nosso crescimento.

Jesus, o educador da vida, estará sempre à
nossa espera a fim de que nos tornemos
educadores da alma.


21
Amor e
perdão

Verdadeiramente amar é nunca ter que perdoar, pois
quem ama não se sente agredido por qualquer atitude do
outro. O amor, dessa forma, perdoa sempre,
compreendendo o nível de evolução do outro.

As agressões que porventura recebamos daqueles a
quem mais dedicamos amor e que nos ferem a alma, são


oportunidades de testar o nosso sentimento, conhecendo-
lhe a natureza.

Perdoar não é esquecer por esquecer. É compreender
e colocar-se no lugar do outro. O amor para existir, diante
da agressão a nós por parte de alguém que amamos, deve,
antes de tudo, compreender, isto é, colocar-se também
como alguém que poderia, nas mesmas circunstâncias,
cometer o mesmo equívoco.

Ser perdoado, diante de nossas faltas para com o
próximo, sem que ele nada exija, é oportunidade de
aprender com o outro, como amar e viver em paz consigo
mesmo.

A indignação é sentimento que, às vezes, se torna
necessário diante da atitude descabida de alguém. Tal
indignação não deve assumir, porém, o caráter da agressão
nem do revide, devendo portanto ser manifestada para que
o outro perceba as conseqüências de seus atos.

Às vezes, por gostar de alguém de forma exagerada,
perdoamos suas atitudes inadequadas para conosco e com
outros, confundindo os sentimentos e desculpando quando
cabia a repreensão necessária. Perdão não significa
conivência com o mal. Atitudes como essas, isto é,
perdoar e desculpar sem limites, incita o outro à prática do
mesmo ato reprovável. Isto não é amor, mas, submissão.

O exercício do perdão leva-nos à compreensão da
qualidade do sentimento que temos para com alguém.
Quem perdoa está a um passo do amor ao outro. Sua
constância levará o indivíduo ao caminho da compreensão
dos atos humanos e das relações interpessoais.

Nos processos obsessivos, onde os sentimentos se
encontram desestabilizados, o perdão é instrumento
fundamental àqueles que ainda não sentiram o amor em
seus corações. O perdão da vítima ao algoz, coloca-os em


condições de compartilharem os sentimentos nobres do
amor fraternal.

Se alguém se interpõe em nosso caminho exigindo-
nos atitudes contra nossa vontade, o melhor a fazer é
seguir adiante, sem sintonizar com imposições descabidas.

O amor nos coloca entre aqueles aos quais cabe
perdoar. O componente da família que conosco se
relaciona e com o qual não temos afinidade ou mesmo que
sentimos certa aversão, é sempre alguém a quem temos
que perdoar e amar em nosso próprio benefício. Sua
presença em nossa vida é oportunidade de aprendizagem
do amor e do perdão.

As atitudes de alguém, que nos merece o perdão,
quando não nos sentimos inclinados a dá-lo, se
reinterpretadas, nos ensinarão sobre nossas
responsabilidades em suas causas.

Amar é atitude que nos ensina a perdoar a nós
próprios. Não nos culpemos em demasia. Assumamos as
responsabilidades sobre nossos atos, sem receio dos
processos educativos que enfrentaremos. Antes do efeito
que sucede à causa, há a misericórdia divina em favor de
todos nós. Ela é o amor de Deus intercedendo em nosso
favor.

A compreensão dos atos humanos requer percepção
de nós mesmos. Nada nem ninguém age fora dos limites
de Deus. Ele é amor para sempre. Perdoar setenta vezes
sete vezes cada tipo de falta cometida é exercício para a
instalação do amor em definitivo em nós.

Necessitar do perdão divino para nossas faltas é
assumir antecipadamente a culpa. O perdão esperado é
alcançado com o trabalho redentor em favor de si mesmo e
da vida, amando sempre e construindo um mundo melhor.


O Cristo ensinou-nos o perdão ao
compreender a atitude de quem o traiu,
amparando-o e auxiliando para seu soerguimento
na Vida Maior.


22
Amor e
religião

Ninguém vive sem uma crença. Quer seja em algo
transcendente ou não, a criatura busca apoiar-se em algum
ente que lhe pareça real.

A negação à existência de um ser superior ao
humano que o justifique, não implica na ausência dele em
seu psiquismo. Todo aquele que ama, e não há quem não


se inclua nesta categoria, necessita de Deus em si, mesmo
que o denomine com outro nome.

A religião é uma busca natural de todo ser humano.
Adotar uma é um ato de amor a Deus.

Aquele que se dedica a uma religião com devoção e
afinco, deve fazê-lo com verdadeiro amor. A vida religiosa
é cheia de agruras, mas também de recompensas
incomensuráveis.

Lidar com os objetivos de Deus é tarefa de amor a
Ele e à Sua Obra. A religião é trabalho para quem a exerce
do lado do labor de evangelizar o ser humano.

Seu exercício requer abnegação e amor em dobro. O
esquecimento de si, mesmo na dedicação à tarefa religiosa,
não necessita atingir a recusa ao convívio social. Dedicar-
se a Deus não significa fugir do mundo.

Amor e religião não se chocam com o amor a outra
pessoa. O ser humano, historicamente, decidiu separar o
que fosse carnal do que lhe parecesse divino. Não se
separa o que tem a mesma procedência.

A religião é o encontro do ser humano com o
conhecimento dos objetivos de Deus para com Sua Obra.
Esse encontro, sob o signo do amor, proporciona o
verdadeiro êxtase.

As religiões têm se distanciado do amor e da
verdadeira comunhão com o Altíssimo, em função da
ignorância em que se encontra o ser humano a respeito de
seu papel na Vida. Dias virão em que estaremos
praticando a verdadeira religião em espírito e verdade.

O amor às pessoas, indistintamente, requer
desapegos e compreensão da vida. Os laços que nos
prendem às pessoas, são os mesmos que nos fortalecem a
alma. A diferença está na intensidade e prioridade com
que os aplicamos.


Jesus, exemplo de amor e de compromisso com a
verdade, mostrou, através de seus atos e palavras, o
significado da religião, quando estabeleceu que
deveríamos nos reconciliar com nosso adversário, antes de
fazermos qualquer oferta a Deus.

Nenhuma tarefa pode ser maior que dedicar-se à
evangelização da criatura em favor da própria
humanidade. O amor a Deus é o amor ao crescimento e
evolução da sociedade, a fim de que ela alcance a paz e a
felicidade de todos, sem que ninguém se sinta excluído.

O amor à religião não admite sectarismos e
exclusões. Ninguém pode ser discriminado pela opção
religiosa. Assim procedendo, estaremos faltando com o
amor pregado pela própria religião.

Religião é vida de dedicação, de amor e de caridade
para com o próximo. A religião do amor é a que se dedica
ao próximo sem preconceito de qualquer natureza.

Muitas vezes recorremos à religião para solução de
conflitos de ordem sentimental. Em algumas situações
agimos em proveito próprio, excluindo alguém que se
interpõe em nosso caminho, pedindo a Deus ou a seus
intermediários, para nos livrar de sua influência.
Estaremos, dessa forma, abdicando de vivenciar a
tolerância e confiança no amor de Deus para conosco.

A religião, quando usada para benefício próprio, é
instrumento de prisão e alienação. O amor ao próximo é o
meio mais eficaz de alcançar a verdadeira prática religiosa.

As religiões tradicionais nos afastaram do contato
com a simplicidade e da verdadeira adoração a Deus,
insculpindo-nos culpas e medos. Nada há que não seja
sagrado. Tudo na vida é obra de Deus. Seu amor está
presente em toda a Criação


Não nos entreguemos ao medo e à separatividade da
vida supostamente simples, em nome da religião. Amor e
religião são compatíveis com a vida verdadeiramente
simples que se realiza na convivência social.

Jesus deu-nos exemplo de sua religião
quando estabeleceu que seus discípulos seriam
reconhecidos por muito se amarem.


23
Amor e arte

O ser humano tem expressado seu amor interior
através de suas obras. A representação pela arte é o amor
do artista impregnado de sua vibração característica.

A arte reflete o amor. O artista, seu agente. O
espectador, o destino. Artista e espectador se encontram na
obra do amor.

A construção das civilizações se deu pela força do
amor do ser humano em conquistar a beleza da vida, em
expressar, pela estética, seu mundo interior.

Quem ama faz transbordar o amor através de sua
arte. Cada obra representa um hino ao amor, onde o artista
exala a grandeza da vida, da Natureza e de Deus.


O amor é o belo em si mesmo. Representa uma
ascese da matéria ao espírito. Inicia-se na contemplação
das formas materiais para alcançar a percepção de Deus na
Natureza.

O amor na arte é o amor do bom e do belo. É
possível perceber, a todo aquele que ama, a presença do
bem e do belo nas obras de arte concebidas pelo amor à
vida.

Somos artífices da natureza. Todas as coisas que
fazemos e construímos com amor, representam obras de
arte em favor da vida. Façamos as coisas com amor e o
amor responderá com o belo e o bom em nosso favor.

O ser humano tem se contentado em ver e
contemplar a natureza com o olhar da matéria. Quando se
dispuser a senti-la com o coração, perceberá um novo
universo à sua volta.

A beleza e a harmonia da natureza, não sendo obras
do ser humano, mas de Deus, revelam, em parte, Seus
atributos. O amor que nela se expressa é de essência
divina.

O artista, atuando sob impulsos interiores, extrai de
sua estrutura íntima o amor que lhe deu origem. O amor de
Deus no ser humano derrama-se sobre tudo que ele
elabora como obra de arte.

O amor que se nutre por alguém não surge de forma
inesperada. Amar alguém é uma construção. É como a
elaboração de uma obra artística. É trabalho do amor pelo
amor, em favor de sua própria sustentação.

Nenhuma arte exige tanto de seu autor como a
elaboração do amor nas relações humanas. Para amar,
exige-se a doação do sentimento mais puro que o ser
humano possui.


O amor é como uma pintura ou uma melodia. O
matiz, tanto quanto o tom, revelam a identidade do artista.
A forma de amar, bem como sua finalidade e intensidade,
demonstram o estágio evolutivo de seu agente.

O amor e a arte alegram a vida tornando-a bela,
nobre e enaltecida. A percepção da maravilha de uma obra
de arte, assim como da grandeza da vida, só são possíveis
quando observadas de uma certa posição, isto é, a uma
determinada distância.

Para admirar-se um quadro é necessário vê-lo a
alguma distância. Para se identificar o nível de evolução
de um espírito quanto à sua capacidade de amar, só o
enxergando ao longo de algumas encarnações.

A arte expressa o consciente e o inconsciente do
artista. Sua fonte origina-se do mais profundo do
psiquismo humano. O amor, da mesma forma, nasce nos
escaninhos recônditos do espírito e revela-se em seus atos.

A arte na história da humanidade revela o
pensamento e a intuição dos homens. Nos mais variados
tipos e estilos encontramos a evolução de sua
sensibilidade.

Na escultura, na pintura, na música e em outras
formas de expressão artística, encontraremos o gênio
criativo humano. É na destinação das obras de arte que o
amor é revelado.

Jesus, como um artista, soube nos tingir do
amor que eleva e exalta o espírito.


106


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24
Amor e
saúde

O corpo humano é abençoado vaso onde
depositamos a energia do espírito para as realizações na
matéria. Amá-lo e preservá-lo é necessidade imperativa
em benefício do próprio crescimento espiritual.

Máquina orgânica em equilíbrio instável, requer uso
responsável e responsabilidade no seu trato. Qualquer
abuso redundará em prejuízo para seu usuário. Cada


componente de sua estrutura necessita do mesmo cuidado
que o organismo como um todo. Nesse sentido, amar o
corpo é preservá-lo em benefício do espírito.

A valorização do corpo em detrimento do espírito
demonstra o estado evolutivo primário da criatura humana.
Amar-se não é só cuidar do corpo, mas acima de tudo,
usá-lo de forma adequada em proveito do espírito.

Também é suicídio descuidar-se do corpo
submetendo-o aos vícios que o degradam. O corpo é
instrumento, não sendo responsável pelos atos de seu
agente. O amor, quando presente na criatura, vitaliza e
beneficia o funcionamento do organismo.

O amor cura e preserva a saúde. Aqueles que não
estão contentes com seu corpo, por motivos estéticos não
corretivos, ainda não aprenderam a enxergar a beleza do
seu usuário.

Amar o próprio corpo é respeitá-lo e admirá-lo,
independente da diferença entre ele e o padrão cultural
erigido como modelo. Sem fazer apologia ao defeito
manifesto, o corpo, como você o recebeu, é sempre
abençoada oportunidade de aprendizagem.

A sociedade moderna valoriza o corpo e suas formas
exteriores em lugar de, ao notar-lhe a maravilha de sua
concepção harmoniosa, penetrar em seus objetivos
superiores para a evolução do espírito.

O avanço da medicina, na tentativa de promover a
longevidade orgânica, poderá alcançar relativo sucesso,
porém, o espírito, ausente de sua pátria verdadeira,
buscará sua morada no tempo certo.

O corpo é instrumento precioso para o espírito. É
seu talismã divino para o conhecimento das leis de Deus.
Sua jornada em direção à perfeição passa,
necessariamente, pelo estágio na carne.


A produção de corpos humanos em série, qual
protótipo fabricado pela indústria moderna, jamais poderá
produzir seres espirituais idênticos. Como Jesus disse: "o
que é nascido da carne, é carne, o que é nascido do
espírito, é espírito". O avanço da ciência jamais interferirá
nas leis de Deus nem lhes alterará um milímetro sequer.

O corpo é um todo que não se constitui num simples
aglomerado de células. Há princípios que o envolvem e
que lhes adiciona propriedades ainda desconhecidas da
ciência. Seus limites e possibilidades ainda não são de
todo conhecidos. Se o ser humano ainda não conhece seu
próprio corpo, objeto de exaustivos estudos, que dirá o
espírito, inalcançável pela lente comum do mais
sofisticado olho eletrônico.

A manutenção do corpo não se deve apenas às
substâncias que ele absorve do meio externo, quer pela
respiração, quer pela alimentação. Há nele uma energia
sutil, vital, que o mantém em condições de abrigar o
espírito, oriunda das forças espirituais da Vida. O amor de
Deus, presente na essência da matéria e constituinte do
espírito, possibilita sua manutenção.

O amor proporciona a harmonia física de quem o
experimenta. Ele é energia vitalizadora do corpo físico e
perispiritual. Quando se espraia pelo corpo, transborda em
alegria, otimismo e confiança no futuro, influenciando
todos que estejam à sua volta.

O amor rejuvenesce o corpo e o espírito. Seu
potencial curativo estimula os órgãos, eliminando energias
deletérias que atraem doenças e depauperam os tecidos.

O amor de um indivíduo pode curar, mesmo sem
intencionalidade, os que com ele interagem. A simples
presença de alguém que transborda amor, vitaliza o


ambiente à sua volta, muitas vezes curando feridas
internas dos outros.

Jesus, cuja saúde transmitia fluidos
curadores aos que com ele convivia, é nosso
maior exemplo de vitalidade a serviço do amor.


25
Amor e
caridade

Duas palavras inseparáveis. Onde uma está presente,
a outra se coloca em evidência. Aprender a amar é praticar
a caridade a serviço da vida e do bem. Toda caridade se
alicerça no amor.

Quando se exercita a caridade, utiliza-se do
manancial do amor que toda criatura abriga em si. A
caridade é ponte de ligação entre o eu e o tu. Toda


caridade veicula o amor em benefício de seu agente e de
seu receptor.

Amor, em essência, é o tônus espiritual emulado do
Criador da Vida. Sob seu influxo vivem e se desenvolvem
os seres da natureza, tanto quanto ela própria.

Agir ou atuar sob o efeito da caridade é amar
respeitando o outro em sua necessidade intrínseca de
viver. A caridade praticada com amor é o maior bem que
se pode fazer a alguém.

Atuar objetivando o melhor para outrem é amar
praticando a verdadeira caridade. O amor que destinamos
à vida, acaba por nos levar ao caminho da caridade para
com nossos semelhantes.

Quando guardamos objetos que pertenceram aos
nossos antepassados que já partiram para outra vida,
pensando dessa forma prestar-lhes tributo, na realidade os
mantemos presos a coisas materiais, sem libertá-los para
as realizações do espírito. Do contrário, quando doamos os
bens que pertenceram a eles e que não nos são úteis,
agimos com amor a eles próprios, em favor deles e da
vida.

O amor se agrega aos objetos e sentimentos que
doamos, alcançando seu recebedor. Tudo o que pensamos,
dirigido em favor do bem de alguém, reveste-se do amor
que a vida nos oferece.

A oração em favor de alguém é caridade pura de
coração. Junto a ela também enviamos o amor que nos
alimenta o espírito.

A caridade nos permite desprendermo-nos do
egoísmo que nos liga à matéria. Sua força eleva-nos a
alma, permitindo-a aprender o significado do amor ao
próximo.


Se a vida não o brindou com a paz de espírito e a
consciência reta, pense em conquistá-las através do amor
na prática da caridade. Sua vivência lhe permitirá
conhecer seus limites e possibilidades, suas dificuldades e
necessidades a partir do contato com o outro que lhe é
semelhante.

A caridade com amor não coloca seu agente em
estado de superioridade nem de vaidade em relação ao que
a recebe. O amor nivela o doador ao receptor tornando-os
beneficiários do Altíssimo.

Ser caridoso é um estado do processo que começa
quando iniciamos a prática da caridade. Quando não mais
a fizermos como obrigação religiosa ou como exercício
periódico de auxílio aos outros, mas sim, como
componente de nossa personalidade, poderemos dizer que
somos caridosos.

Aquele processo ganha corpo quando adicionamos o
amor na metodologia de experimentação da prática da
caridade. Cada atitude na direção do semelhante, para ter
amor, deverá respeitá-lo como ser humano que é.

A caridade é um bem para quem a pratica com amor.
A conquista do amor decorre de sua aplicação sem esperar
recompensa alguma. Quem a pratica esperando alguma
gratificação já se beneficiou dela.

A prática da caridade é terapia promissora na cura de
muitos males da criatura humana. Exercê-la com amor é
garantia de se estar no caminho da solução de conflitos de
difícil erradicação.

A caridade sem ostentação tanto quanto o bem
anônimo que fizermos, nos darão condições de enfrentar
os embates da vida com fé e confiança no auxílio de Deus.
A caridade ao próximo é carta de crédito na vida a seu
agente. Com esse crédito e agindo com amor,


alcançaremos a comunhão com as forças superiores que
dirigem os destinos humanos.

O amor e a caridade são sentimentos superiores do
espírito. Praticá-los é prerrogativa para a ascensão a
estágios superiores. Ninguém atinge a meta a que se
destina sem experimentá-las na alma.

Jesus é o nosso sustentáculo na prática da
caridade.


26
Amor sempre

O amor é fonte permanente de vida. É a força
nutridora da natureza. Não há sentimento da criatura
humana que supere o ato de amar. É o sentimento limite,
acima do qual o ser torna-se puro espírito.

Sempre o amor. Ame. Ame sempre, independente do
que, de quem e em que momento. Sempre, e para sempre,
coloque o amor em seu horizonte evolutivo.

O amor não se obriga a reciprocidade. Esta
obrigação é a falta dele em si próprio. O amor é o estado
de espírito que transforma a criatura fazendo-a sentir
enlevo, paz e harmonia.


Tudo na natureza expressa o amor. Ele a tudo
vivifica e possibilita a existência. Está na alma da matéria
e na intimidade do espírito.

A energia em todas as suas modalidades é expressão
do Amor, desde a força bruta da natureza à sutilidade e
extrema delicadeza perispiritual.

É possível encontrá-lo, qualquer que seja o motivo, a
razão, o objeto, o fato, o sistema, a situação, presente na
natureza. Procure-o, ele estará mais próximo de você se
sua busca for paciente e determinada.

Ele está na percepção, no sentimento, na razão e na
intuição, como em todas as faculdades humanas.

Há palavras que têm o dom de expressar emoções e
idéias diversas. Cada pessoa, cada cultura e em cada
época, dará sentido diferente à palavra amor. Os atos mais
bárbaros já foram, pelos seus autores, categorizados como
atos de amor. O amor surge pela forma de expressá-lo e
pelas conseqüências que gera e não apenas pela
classificação que lhe atribuímos.

O Amor é o alimento do espírito, é o sustento do ser,
é sua estrutura mais íntima. É a matéria de que se constitui

o espírito.
Descobrir-se um ser que é amor, que respira amor,
constitui-se no próprio objetivo de se viver.
O amor não é exclusivo e, sempre que dirigido
exclusivamente a uma única pessoa, anula seu agente.
Quem ama a um só, ainda não descobriu o valor do amor
como instrumento de crescimento coletivo. Quem ama
apenas uma determinada pessoa, não ama efetivamente,
apenas deseja, necessita, depende.

O amor se tornará real quando nos dispusermos a
pô-lo em prática na relação em família e na sociedade. É


principalmente na família onde nos mostramos por inteiro.
Onde o amor pode se manifestar verdadeiro.

Através do trabalho o amor se torna objetivo e
concreto. Só há uma realidade: o amor.

Todo ato, todo fenômeno, tudo que se realiza, tudo
que existe é amor.

Em qualquer dimensão só existe o amor.

O amor não tem idade. Surge a qualquer época e é
mais sólido quando ocorre na maturidade psicológica.
Necessidades satisfeitas, mais fácil se torna o encontro do
amor.

Quem ama liberta, permitindo a felicidade do outro e
dos outros.

Todos procuram e querem um amor. Estão em busca
do amor de sua vida. Quando esse alguém lhe surge,
parece tocar em algo na essência profunda do ser. Algo
vibra diferente. Entregar-se a esse amor de forma
inconseqüente, é sofrimento e desilusão. Cautela e
equilíbrio são fundamentais nesses momentos. O
verdadeiro amor é suave e sutil. Quando ele surge, nos
coloca com disposição de viver e amar a vida, a natureza,
a humanidade.

As leis estabelecidas pelas ciências são expressões e
códigos do amor. As explicações causais são tentativas de
nos fazer compreender superficialmente o amor. O ser
humano, no seu estágio atual de evolução, ainda necessita
da lógica da ciência para a compreensão do amor.

O sentimento é o olhar para a percepção do amor. A
razão é a visão para compreendê-lo.

O amor é um fogo sagrado, uma chama intensa que
constitui e impulsiona o ser.


A vibração do amor altera o psiquismo humano. O
inconsciente se abre de forma harmônica em busca de
realização.

A dor pode ou não propiciar sofrimento. O amor,
porém, compreende a dor e o sofrimento como formas de
crescimento.

O ser é naturalmente constituído e fadado ao amor.

Não se pode pensar que o amor é apenas um
sentimento, nem tampouco simples produto da lógica ou
da intuição, nem que nasce dos instintos. Mas é o amor
que faz surgir no ser humano as sensações, os instintos, os
sentimentos, os pensamentos e a intuição.

Se você não tem um amor, lembre-se daqueles que
vivem sem ele. Dos que passam pela vida sem a ventura
de procurá-lo e muito menos de encontrá-lo.

O amor se torna maior quanto mais pessoas amamos.
Enumere quantas pessoas você ama. Caso você consiga,
ainda estará faltando alguém.

O amor à família, o amor à pátria, o amor a um
clube, o amor a uma seita, o amor a um segmento
partidário, se equivalem quando provocam a divisão entre
pessoas. A exclusividade no amor sempre separa.

O ato de amar alguém proporciona a cura de um e de
outro, quando não há posse. Amor e caridade se
completam quando juntos trazem felicidade a outrem.

Jesus é o amor que sempre devemos cultivar
em nossos corações.


Orelha

Viver para amar é o significado existencial da
pessoa que aspira transcender seus limites e alcançar a
plenitude. Aprender a amar é a busca verdadeira da
criatura humana. Saber amar é possibilidade alcançada
pelo esforço e dedicação à vida como obra divina. Não
raro encontramos pessoas desejosas do amor sem atinar
quanto ao caminho exigido para ser por ele alcançado. O
caminho do evoluído é o do mestre que, para galgar tal
posição, fez-se primeiro discípulo obediente e sincero.
Este livro é dedicado a todos que colocaram como foco de
suas vidas o sentimento do amor à Deus, à vida e a si
mesmo. Ele é obra do amor e para o amor se destina;
dirigido ao coração, pretende elevar o humano ao divino, a
matéria ao espírito e este a Deus.

Quem ama nunca se deixa vencer pelo derrotismo
nem pela depressão. O amor inunda a vida de entusiasmo
e vitalidade, oferecendo ao seu agente a esperança no
futuro e a certeza da vitória sobre as vicissitudes. Amar
não é entregar-se à paixão devoradora do bom senso e do
discernimento sobre a realidade. O amor nos enche de luz
e vida, de felicidade e êxtase, de prazer e alegria de viver.

Ame. Diga para si mesmo que, a partir de agora,
você vai começar a amar para sempre.


Marketing de Resultados - Paulo Roberto Kroich Gomes

Marketing de Resultados
Paulo Roberto Kroich Gomes

Versão para eBook
eBooksBrasil.com

Fonte Digital
Documento do Autor

(c)2003 - Paulo Roberto Kroich Gomes
paulorrkg@terra.com.br
vocare@terra.com.br

Índice

- Prefácio do Autor
- Agradecimento
- Dedicatória
- O começo da sabedoria e a definição dos termos
- Sumário

Vocare Consultoria Treinamento e Marketing Ltda.

Marketing
De
Resultados

Elaborado por
Paulo Roberto Kroich Gomes
Outubro 2002

Parabéns !!!

Você está entrando para um grupo seleto de Homens e Mulheres que se inter-relacionam os quais também são chamados "PROFISSIONAIS".

Seu papel na empresa e no mundo moderno é fundamental, pois você é uma pessoa que influencia, e se influencia, faz a diferença no processo comercial e pessoal,
você sem saber é um marketeiro...

Você é daqueles que não se abala com o primeiro "não", e ainda tem forças para sorrir diante de uma situação dessas. Você é "PROFISSIONAL" e não leva seus
problemas pessoais para dentro da empresa ou casa e ainda encontra tempo para reciclar e se atualizar constantemente. Você é "PROFISSIONAL" e para isso
criei um livro com algumas técnicas simplificadas voltadas para o Marketing de Resultados, com dicas de relacionamento, para você arrasar no ambiente onde
está inserido.

Motivação e qualidade são ingredientes principais para este processo e você só precisa fazer uma coisa para que tudo isso de certo... Colocá-las em prática,
influenciando, sempre... influenciando, marketeando.

O Autor

Agradecimento

A Minha querida Família, esposa Flaviane e a todos as pessoas com as quais me relaciono de ontem e de hoje, clientes e fornecedores, pois com os seus múltiplos
questionamentos impeliram-me a avançar ainda mais nesta jornada.

E a Deus, que por seu persistente entusiasmo está sempre a orientar-me, agradeço de coração e consciência.

Dedico

A Todos os profissionais em busca da fórmula mágica do sucesso, por sua sábia decisão em começar e nunca desistir, e por adquirirem esta obra. Desejo-lhes
Sucesso!

Aos meus Filhos Greyce Kelly e Erich Allan, para que sempre estejam motivados diante das vicissitudes da vida e para que não desanimem nunca.

Fé e coragem é o que desejo a todos.

O começo da Sabedoria
e a definição dos termos.

Considerações iniciais

Você já se deu conta de que vivemos num contexto de alta diversidade e conflitos entre pessoas, organizações, países, etc... E que saber negociar, relacionar-se,
atender com qualidade, vender é uma das habilidades mais desejáveis a qualquer humano.

O nosso dia-a-dia é feito de inúmeras situações em que temos que negociar. Negociamos, com os filhos, com a esposa ou marido, com nossos chefes, com a nossa
equipe, com nossos vizinhos. Ir vendendo a nossa imagem, a da empresa e ainda mais com qualidade...

Viver é estar em plena atividade de atendimento, venda e negociação, fazendo marketing.

Porém, nem sempre conseguimos sair destas situações de maneira satisfatória. Bem Máximo de cada contato do marketing é satisfazer necessidades, e quando
isto não acontece, ou descontamos no sujeito do próximo contato ou ficamos nos sentindo mal e achando que não temos habilidade.

Sem dúvida, um pouco de habilidade é o que vamos desenvolver aqui neste seminário que acredito ser o tempo necessário para ler este livro, mas na minha
opinião, o fator decisivo para o marketing e uma boa negociação, em um bom atendimento, são nossas crenças, percepções e a consciência de nosso objetivos
(o que queremos) para a situação.

Neste seminário, mais que desenvolver e exercitar nossas habilidades, iremos desmistificar idéias a respeito do marketing. Temos certeza que, depois, você
terá uma nova idéia e disposição para futuros contatos e planejamento.

Nossas premissas

Acreditamos que o Marketing é uma ferramenta atual pessoal e comercial da Comunicação humana. Assim ela faz parte do escopo de habilidade que todo Ser saber
relacionar-se bem com seus pares e impares, que são fornecedores, colegas de trabalhos, superiores, subordinados, familiares, amigos, etc. e a ele talvez
o nosso cliente só assim obtém-se sucesso.

Acreditamos que o marketing de relacionamento é uma interação e necessidade humana, o gostar de gente, mas o que faz com que as pessoas necessitem desenvolver
habilidades e rever suas crenças pessoais e profissionais, assim como o resultado de qualquer destas situações será sempre o produto desta interação ou
ainda a necessidade de sobrevivência.

Dicas para um bom aproveitamento.

Pratique as abordagens e conceitos aqui expostos de forma intensa e tranqüila, evite a ansiedade por respostas prontas, por fórmulas mágicas, que lhe traga
o sucesso imediato, elas virão no momento oportuno. De qualquer forma a melhor solução será aquela que você vai encontrar em seu relacionamento, contato
ou negociação especifica que você vai ainda viver, mas para isto deve estar preparado. Não se preocupe você tem recursos acumulados ao longo da sua vida,
que se somarão às experiências que você vai viver neste breve seminário. O resultado deste aprendizado está diretamente ligado à quantidade de abertura
e envolvimento com as respostas que vamos juntos alcançar, são estas técnicas aplicadas que farão a diferença, mas somente se aplicadas. Dentro do livro
ou guardados em uma pasta nada resolvem.

Ao final pratique esse aprendizado na sua vida de uma forma geral. Assim você enriquece sua experiência e também das outras pessoas que compartilham do
seu dia-a-dia. Mais uma Dica inicial: não é preciso grandes esforços para se fazer marketing, ou fazê-lo dar resultados, basta acreditar; a partir de agora
está em suas mãos.

- Sucesso será o seu resultado final!!

O que você vai encontrar neste livro.

Sumário

1. Sumário
2. Introdução
3. O Marketing e o Mercado
4. O Marketing Mix
5. Marketing de Desenvolvimento de Produtos
6. Preço e Qualidade.
7. Evolução dos Preços
8. Ponto de Vendas
9. Atendimento a Clientes
10. Vendas
11. Pesquisa de Mercado
12. Necessidades dos Clientes
13. Planejamento e Marketing
14. Consultoria de Marketing
15. A Eficácia do Marketing
16. Os Pilares para o Marketing
17. Tendências do Marketing
18. Comprometimento
19. Bibliografia
20. Profissional

Introdução

O planeta terra tem evoluído com os seus milhares de habitantes mais do que em qualquer outro momento da civilização humana. Passamos por grandes revoluções,
a revolução da agricultura, a industrial, a tecnológica, a da informática e da informação, que nos conduz a um mundo globalizado e dinâmico onde bem sabemos
que não é o maior que engole o menor e o mais ágil que engole o mais lento e por uma infinidade de informações não pensamos muitas vezes que o século XIX
iniciou-se no lombo de um burro e terminou com viagens espaciais no século XX. Conquistas imaginadas ou nunca antes sonhadas tornaram-se realidades. O
século XXI pretende muito mais: por trás dele os homens e mulheres, organizações, buscam as mais diversas inovações, facilidades tecnológicas de informações
que visam atender demandas e necessidades do homem e das áreas do conhecimento humano. O marketing vem se firmando como uma das que mais atraem o interesse
de empresários e gerentes de pequenas, médias e grandes empresas, oriundos da Administração de Empresas, Vendas, e das mais diversas áreas. Todos nós precisamos
do marketing, pois não basta na nova era do relacionamento e de um mundo de informações ser o mehor. É preciso mais. É preciso ser o mais desejado e trabalhar
bem com os poucos recursos que se tem de forma cooperativada e competitiva.

Esta moderna ciência fascina por seu dinamismo, criatividade e contínua adaptação aos diversos cenários do teatro empresarial em mundo global.

Todavia, por ser ainda muito recente, não é bem entendida pelos vários setores da sociedade e da economia mundial, sendo constantemente confundido com simples
vendas ou propaganda. O fato é que embora muito propalado, o marketing é ainda pouco conhecido quanto à sua dinâmica e reais propósitos, pois ele evolui
na mesma medida da tecnologia da informação e das necessidades humanas.

Dentro deste livro procurei de forma prática e objetiva suprir essa necessidade e dirijo a mesma aos que ocupam ou pretendem ocupar cargos elevados ou ainda
que precisem de informações básicas e rápidas para a melhoria do gerenciamento do Marketing seja pessoal, profissional ou Empresarial.

Pretendendo assim trabalhar o marketing para resultados.

O que é Marketing.

Em primeiro lugar uma palavra inglesa, Market (do inglês mercado) e Ing (sufixo inglês que designa ação) temos então, marketing e portanto a ação para o
mercado, mas já incorporada ao nosso vocabulário e que se tornou uma espécie de testa de ferro para tudo que há de bom e de ruim no meio empresarial.

Mas por definição em virtude dos mais diversos contextos que passam a idéia de que marketing é a maneira de identificar as necessidades dos clientes podem
com segurança conceituá-lo da seguinte forma:

Marketing é uma estratégia empresarial dinâmica, quer dizer, são esforços planejados com vistas à mudança e preparados para enfrentar a mudança. É uma atividade
chave para o futuro e a sobrevivência e qualquer organização.

Algumas vezes marketing é utilizado como sinônimo de vendas e propaganda, sendo que esta última é uma das ferramentas do marketing para a divulgação de
produtos e serviços, assim como vendas também é apenas uma dentre as diversas atividades do marketing.
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Vendas
Ênfase no produto
A Empresa fabrica o produto e só então pensa em como vendê-lo de maneira lucrativa
Mentalidades internas, voltadas para rotinas
Ênfase nas necessidades da empresa, do vendedor.
Como pensam
Volume de Vendas em vez de Lucro
Curto prazo, em vez de Longo Prazo
Clientes Individuais, em vez de Classes de segmentos do mercado
Trabalho de Campo, em vez de trabalho de Rotina

Marketing
Ênfase nas necessidades do cliente
A Ênfase determina, em primeiro lugar, o que os clientes desejam e só então pensa na maneira de vender, com lucro, um produto que satisfaça as expectativas.
Mentalidades externas, voltadas para o mercado.
Ênfase nas necessidades do mercado (do comprador)
Como pensam
Planejamento do lucro
Tendências, Ameaças e oportunidades em Longo Prazo.
Tipos de Clientes e Diferenças de Segmentos
Bons sistemas para análise de mercado, Planejamento e controle
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Porque marketing é necessário.

Porque nenhuma organização consegue sobreviver em ambientes competitivos sem uma completa e real orientação para o mercado. As ações de marketing devem
ser o começo de qualquer ação empresarial. É através dos estudos de mercado que a empresa obtém as primeiras ou as novas informações do mercado. O marketing
trabalha de fora para dentro, que dizer, descobre o que o mercado deseja e cuida para que suas necessidades sejam satisfeitas, desenvolvendo produtos e
serviços moldados a essas necessidades.

Realização - A organização deve se calcar em quatro pontos importantes o cliente, o acionista, a empresa e o concorrente.

Este Marketing deve fazer o seguinte.
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• Oferecer os melhores produtos e serviços do ponto de vista do cliente.
• Assegurar Lucros aos negócios, de forma contínua para atrair novos investidores
• Propiciar aos Colaboradores tratamento Justo e realização Humana e Profissional
• Produzir produtos e Serviços competitivos em relação aos concorrentes
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Previsão das necessidades - Através de estudos de Mercado dar segurança à empresa que existe espaço para o seu produto ou serviço, e esta satisfaz as necessidades
do mercado, com aquilo que o mesmo quer realmente.

Portanto desenvolver Mercado não é o mesmo que criar hábito no cliente. O conceito de Marketing só faz sentido quando a idéia de desenvolver mercado está
presente. A ação de marketing pressupõe pesquisas prévias, por meio das quais se detecta uma necessidade e se embasa a produção da empresa na direção da
satisfação dessa necessidade.

Já o ato de criar o hábito no cliente não pode, em nenhuma hipótese, ser considerado marketing, pois quase sempre consiste em empurrar ao cliente produtos
e serviços que ele nem sempre deseja.

Caso 1

Com base no que vimos, analise detidamente a situação a seguir:

É muito comum encontrarmos pessoas dizendo que suas empresas trabalham com Marketing. Uma grande empresa brasileira especializada na produção e na comercialização
de listas telefônicas afirma, categoricamente, ser uma empresa de marketing, tendo inclusive obtido alguns prêmios de Top de Marketing.

Veja algumas das características da Empresa
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• Tem o maior corpo de vendedores do setor em todo país, renovado a cada campanha de comercialização.
• Toda a diretoria é formada por ex-vendedores da década de 60, extremamente rígidos, quase autoritários.
• Faz propaganda de massa, usando televisão, rádio, e jornal, por ocasião das campanhas de vendas.
• Não segue a orientação rígida de um plano previamente estruturado.
• Seu mercado vem diminuindo anualmente, em função de sua política de preços e de sua rígida estrutura de cobrança, pois não oferece qualquer facilidade
de pagamento aos clientes.
• Seus produtos (listas telefônicas) nem sempre levam em consideração as sugestões dos clientes, no que diz respeito ao aprimoramento. Os diretores e gerentes
acham que muitas das opiniões dos clientes não são interessantes para política de vendas da empresa.
• A busca do lucro a curto prazo é a grande meta da empresa.
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Questão - Analisadas as características descritas, responda: Você concorda que a referida empresa é mesmo de Marketing? Por que? O que poderia ser feito
para mudá-la?

O Marketing e o Mercado

Teoricamente conceitua-se mercado como um conjunto de consumidores de um bem ou serviço. Pressupõe-se que existam pessoas dispostas a abrir mão de uma parte
de seu dinheiro para adquirir o bem ou serviço, porque necessitam ou querem.

Imagine um produtor Rural que plante dezenas de hectares de um determinado produto, Arroz. Se não há quem tenha necessidade dele, não haverá compra. Nesse
caso a produção vira cultura de subsistência, o produtor terá o produto estocado e, a menos que tenha uma família numerosa que dê conta do consumo, uma
boa parte se perderá.

Como é o dinheiro que impulsiona a sociedade capitalista, sua circulação é que determinará a produção e o consumo, gerando bem-estar para quem vende e para
quem compra. A relação entre marketing e mercado é portanto bastante estreita, um não se justifica sem o outro e vice-versa.

O conceito de mercado é provavelmente o mais difuso e pode ser visto de várias formas.
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• Mercado potencial e existente
• Mercado sob o ponto de vista estratégico
• Mercado sob o ponto de vista tático, dentre outros.
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Criação do Mercado

De qualquer forma, o mercado é definido a partir da existência de uma necessidade. Onde não há necessidade, não há mercado, mas o marketing pode vir a criar
uma necessidade para o consumidor. O mercado então pode ser criado, o que eventualmente pode ser percebido pela empresa como uma oportunidade atual ou
futura. Aqui entra o escopo do marketing definindo ações em cima de informações.

Regras para a existência de um Mercado
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• Que o consumidor perceba a existência de uma necessidade
• Que exista pelo menos um produto/serviço para satisfazê-lo
• Que a empresa perceba neste mercado oportunidade.
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Tipos de Mercados

Mercado Existente - É aquele que apresenta produtos e serviços, cujos consumidores podem adquiri-los.

Mercado Potencial - É aquele que ainda não e mercado, mas poderá vir a sê-lo de acordo com o marketing e a empresa.

Do ponto de vista tanto do consumidor como da empresa ele poderá vir a adquirir produtos seguindo alguns critérios, o de inclusão ou substituição.

Inclusão de novos produtos, que atendam as mesmas necessidades, que o consumidor considera alternativos, se a sua capacidade de compra fosse afetada por
capacidade aquisitiva (preços), conhecimento do produto (propaganda), facilidade de compra (canais).

Esta inclusão se dá não somente por produtos similares, mas também em relação àqueles com tecnologia diferente.

A substituição é considerada toda aquela compra que se deixa de adquirir algo por um determinado tempo, em virtude de reposição, etc...

Tendo em vista a complexidade dos mercados, o desenvolvimento de uma estrutura comum a fim de que se possam apreender seus aspectos essenciais, o especialista
pode seguir os seguintes questionamentos:
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Perguntas -> A que levam
O que o mercado Compra -> Objetos de Compra
Por que Compra -> Objetivos de Compra
Quem Compra -> Organização para a Compra
Como Compra -> Operações da organização para Compra
Quando Compra -> Ocasiões para a compra
Onde Compra -> Locais para a compra.
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É bom saber que os mercados se distinguem pelos motivos dos compradores em vez das características dos produtos.

Os produtos não podem ser usados para distinguir mercados, porque muitos deles são consumidos em diferentes tipos de mercados. Por exemplo, fertilizantes
são vendidos para o mercado consumidor, para o produtor, para revendedor, o governo e para mercados internacionais.

Como se classificam os mercados
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Mercado Consumidor
Conceito: É o mercado para bens ou serviços utilizados por pessoas e famílias.
Características: Grande número de compradores, muita variação dos compradores, dispersão geográfica, deslocamentos migratórios, baixo valor de compra

Mercado Produtor ou Industrial
Conceito: É composto por pessoas e empresas, que adquirem produtos para elaboração de outros produtos.
Características: Compradores restritos, concentração geográfica, menor mobilidade, valor elevado, razão no processo de compra, Negociação técnica, preço,
conhecimento.

Mercado Revendedor
Conceito: Constituído por pessoas, organizações, revendedores, distribuidores e intermediários, com intuito de negociar.
Características: Mais disperso que os produtores, mais concentrado que o Consumidor. Variedade de produtos. Distribuição Direta. Ênfase em preço, conhecimento,
suprimento, negociação, controle de estoques, administração financeira.

Mercado Governamental
Conceito: Instituições oficiais, mistas e estatais
Características: Grande Valor e variedade dos produtos e serviços. Objetivos: garantir a manutenção da sociedade, compra, licitações, tomada de preço...

Mercado Internacional
Conceito: Consumidores, produtores, revendedores, e governos.
Características: Submissão às leis internacionais, exigência de pesquisas e adaptações, sujeição às diferenças entre as nações...
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Assim, a única razão para a existência do marketing é o mercado. Sem ele nada se justifica, pois, se não há quem consuma, não há justificativa para o desenvolvimento
e aprimoramento de produtos e serviços, bem como para a comercialização.

Caso 2

O termo mercado tem usos muito diferentes.

O que significa mercado para um corretor de imóveis, um fabricante de automóveis, um gerente de vendas e um especialista em marketing?

Caso 3

Algumas empresas aéreas parecem praticar o conceito de marketing. Mostram preocupação pela satisfação dos passageiros, proporcionando, por exemplo, comissárias
atraentes e bem uniformizadas, refeições completamente em vôo e outras amenidades.

Você considera que essas empresas merecem uma nota elevada, em virtude de sua orientação de marketing? Por que?

O Marketing Mix

A expressão acima é uma das mais importantes expressões do jargão mercadológico que também pode ser conhecida como composto de marketing.

O composto de marketing é um conjunto controlado de quatro variáveis (Os 4 Pês), Produto, Preço, Promoção e Ponto-de-venda. Alguns autores já elevaram este
número para 6, 8 e 9, mas são variedades destes quatro.

Veremos cada um deles.

Produto

É tudo aquilo que pode ser oferecido a um mercado para aquisição ou consumo (objetos físicos, serviços, personalidades, lugares, organizações, e idéias...)
capaz de satisfazer uma necessidade.

Assim uma caneta, um serviço de assistência técnica, os candidatos a cargos políticos, os artistas, uma estância hidromineral, uma associação sem fins lucrativos
e um partido político são considerados igualmente produtos. Notamos que é um conceito muito abrangente.

A manutenção do composto de produtos constitui, se não for o maior, um dos mais difíceis desafios dos profissionais de Marketing de Resultados e Vendas.
Pois todo produto ou serviço tem um ciclo econômico constituído de quatro fases:
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• Introdução,
• Crescimento,
• Maturidade, e
• Declínio
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Introdução

É marcada por um lento crescimento nas Vendas. Devido à produção limitada, os preços tendem a ser elevados. Em virtude de custos altos devidos à taxa relativamente
baixa de saída do produto, há problemas de produção. São necessárias grandes margens para agüentar a propaganda do produto. Poucas empresas vendendo o
produto.

Crescimento

Se satisfizer o mercado, haverá crescimento. Daí as empresas começam a incrementar o produto a fim de entrar em novos segmentos, o aumento de concorrentes
leva à briga por distribuição e pontos, e os revendedores trabalham com marcas múltiplas.

Nesta fase, os preços tendem a permanecer estáveis ou a cair um pouco durante esse período, em virtude da demanda aumentar rapidamente. Há necessidade de
manter suas despesas de propaganda no mesmo nível ou apenas um pouco mais elevada a fim de enfrentar a concorrência. A proporção decrescente das despesas
de propaganda em relação às vendas é um fator importante para os lucros elevados.

Maturidade

Há três estágios para a maturidade.

O primeira é chamado de Maturidade de Crescimento. As vendas continuam a crescer lentamente devido à entrada de clientes retardatários, embora a maior demanda
seja de clientes atuais.

O segundo é Maturidade estável. São as vendas constantes, trabalhando-se somente a reposição.

A terceira é Maturidade decadente As vendas começam a cair à medida em que os clientes migram para outros produtos.

Na prática o que fazer. - Trabalhar a concorrência, trabalhar informações, equipe de vendas, revendedores, reduzir custos, lucros com margens reduzidas,
trabalhar fornecedores, trabalhar desenvolvimento do produto para encontrar melhores versões para os produtos e serviços. Alguns concorrentes saem do mercado,
do nicho...

Todas estas medidas, e algumas outras, de acordo com as informações da empresa, enquanto não estimularem as vendas, significam uma erosão nos lucros.

Declínio

Tende a ser rápido ou lento de acordo com modismos, novos produtos... Se for rápido sairá do mercado, se for lento, poderá ficar no mercado por muitos anos.
Há uma tendência natural das empresas passarem a investir em outros produtos. A propagando neste estágio é reduzida, o preço também poderá ser reduzido
a fim de impedir ainda mais a queda da demanda.

Contribuição dos produtos na Vida de Uma Empresa

Muitos profissionais não sabem explicar qual é a contribuição de produtos dentro da sua área, dificultando assim a seqüência de passos que dá a fim de assegurar
a qualidade nas tomadas decisões. Quando indagados, dizem:
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Peso os fatos

Equilibro Custos e Benefícios

Verifico as Tendências

Relaciono Forcas e Franquezas
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Análise das vendas entre produtos de uma Empresa.

O Controle de todas as atividades da equipe e as análises sobre os resultados das vendas dos diversos produtos ou serviços de uma empresa, a fim de manter
a Gerência de Vendas informada. Os controle variam e começam, de forma simples.

Com
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• Itinerário das Rotas de visita, seus motivos e conseqüências.
• Numeração e remessa de pedidos, relatório diário de visitas
• Cumprimento das Normas Administrativas da Empresa
• Relatório de Despesas de Viagem
• Material de Expediente de Vendas.
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Há controles mais complexos que envolvem: atendimento, crédito, cobrança, cotas, reclamações de clientes...

Na prática - Utilizar as informações, com certeza já armazenadas em computador e analisar, em comparações de produtos, regiões, vendedores, resultados diferentes
daqueles estimados ou estabelecidos.

Evite sobrecarregar o homem de vendas com informações em demasia. Fê apenas informações básicas do tipo:
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• Volume de vendas da Área
• Percentual de Cobertura de Cota
• Nível de Distribuição Atingido
• Custo das Vendas em percentagem sobre a venda
• Percentual de cobertura de cota de cada área.
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Mas, para se ter informações de Vendas, pode-se utilizar o barômetro de vendas, formulário simples que lhe dá muitas informações.

Na Prática

Data - O dia, o mês e o ano. - Pode ser por cliente ou vendedor.

Histórico de Vendas - À esquerda, as vendas realizadas no mesmo mês do último ano. À direita, os valores acumulados das vendas realizadas de janeiro até
o mês, durante o ultimo ano.

Vendas Previstas - À esquerda venda prevista e acumulada de janeiro até o mês.

Vendas realizadas- À esquerda, vendas realizadas no mês. À direita, vendas realizadas e acumuladas de janeiro até o mês.

Previsto x Realizado - À esquerda, porcentagem de variação entre vendas realizadas e as vendas previstas. Exemplo: (4450 ~ 3800)-1=% - À direita, porcentagem
de variação entre as vendas realizadas e acumuladas de janeiro até o mês e as vendas previstas e acumuladas de janeiro até o mês. Exemplo: (8.790 ~ 7.700)
- 1%

Previsões - À esquerda, vendas previstas para o próximo mês-ano. Ao centro, porcentagem da variação entre as vendas realizadas no mês e as vendas previstas
para o próximo mês-ano. Exemplo: (4.450 ~ 4.300)-1=%. À Direita, vendas previstas para o próximo ano, acumuladas de janeiro até o mês da elaboração do
barômetro de vendas.

Marketing
e desenvolvimento de Produtos

Como já mencionei, em muitas empresas diz-se existir marketing. O que percebemos é que há atividades isoladas, totalmente desintegradas à função, caracterizando
orientações indefinidas, a que podemos dar qualquer outro nome, menos marketing.

Marketing, para existir numa empresa, não precisa de um departamento. O que deve existir é a utilização da plenitude dos princípios mercadológicos. Numa
empresa com orientação para marketing, quem determina o desenvolvimento de novos produtos, ou o aprimoramento dos produtos existentes, são os estudos de
mercado das informações colhidas, por pesquisa, pela equipe de vendas... Percebe-se, então, que marketing permeia todos os departamentos.

Uma vez elaborado os estudos de produtos, serviços, mercados, necessidades, etc., são feitos os devidos ajustes. E acompanhados a fim de se saber a demanda
pelo bem ou serviço.

Preço

Definido o produto, vamos ao preço.

A definição clássica reza que preço é o valor monetário atribuído a um produto, para efeito de comercialização. Ou seja, os preços comunicam as condições
sob as quais um indivíduo ou organização se dispõe a efetuar uma troca.

Marketing diz que o correto é dizer "composto de preço", o que envolve descontos, reduções, acréscimos, isto é, toda a política de preços que baliza os
custos e supera as diferentes barreiras até chegar ao consumidor final.

Oferta e Procura.

Há a chamada Lei da Oferta e Procura.

Vamos trabalhar um pouco nestas questões.

Oferta é a quantidade de um bem ou serviço que se produz e se oferece ao mercado, por determinado preço e período de tempo.

O preço do bem em questão depende dos monopólios, retenção de estoque, expectativas de preços etc...

Quanto mais alto o preço de mercado, maior tenderia a ser a quantidade ofertada, diz a Economia Clássica.

Entretanto o que é mais comum é quantidade menor a um preço maior. Isso devido a:
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• Tecnologia - Quanto mais Avanço, maior tende a ser a quantidade ofertada.
• Condições Climáticas - No caso de produtos agrícolas.
• Suprimento e Insumos - Bens ou serviços necessários à produção de mercadorias ou serviços. Determinado pela demanda ou procura em que o consumidor/organização
está disposto a adquirir por determinado preço e em um determinado período.
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Na prática, esta demanda pode ser criada por:
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• Preferência do consumidor - O consumidor tende a mudar por vários fatores, afetando a demanda
• Poder de compra do consumidor - Sem o qual a demanda não existe em termos econômicos.
• Preços de outros bens ou serviços - Substitutos ou complementares.
• Preços do bem em questão - Quanto mais alto o preço, menor será a quantidade de procura.
• Qualidade do bem ou serviço - Quanto melhor a qualidade, maior a procura.
• Expectativas do cliente - Quanto à Renda pessoal e aos preços.
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A lei da Oferta e Procura - Muito embora ela possa embasar a fixação do preço de mercado para o comprador em um determinado momento, estabelecendo preços
que se movimentam no sentido inverso da oferta e no sentido direto da procura, isto é, aumentam com a diminuição da oferta e com o aumento da procura...

A lei da Oferta e Procura explica as oscilações dos preços no mercado, mas não a sua determinação básica, que é dada pelo valor dos bens ou serviços.

Preço e Qualidade

Preço é o que se cobra pela aquisição do bem ou serviço.

Valor é aquilo que o cliente percebe sobre o bem ou serviço.

Em termos de Marketing o que se deve pensar é que para o comprador existe um Custo Relativo, o que é percebido. Assim temos CRC - Custo relativo para o
Cliente.

CRC = Preço ~ Valor

Imagine que você cobra R$100,00 por um produto e o seu comprador está disposto a pagar R$90,00:

CRC= R$100,00 ~ R$90,00= 1,11

Se o CRC é igual a 1 o preço é justo.

Se o CRC é menor que 1 o bem ou serviço é viável em termos de mercado.

Se o CRC é maior que 1 deve-se rever o preço do bem ou serviço, ou adicionar algum tipo de valor, diferencial, desde que seja percebido pelo cliente.

Preços e Posições Psicológicas

Devemos avaliar as possíveis reações e ações dos clientes, dos consumidores. Como Profissionais de marketing, avaliamos o valor que o cliente agrega ao
produto, que é o que chamamos de valor conhecido ou percebido pelo consumidor.

A compreensão dos valores que um preço assume junto a uma mesma faixa de consumidores é bastante complexa. O marketing deve avaliar as formas como serão
percebidos os benefícios e vantagens dos produtos ou serviços.

Se a sua empresa deseja que seus preços estejam nas expectativas do consumidor, deve ser sensível ao mercado.

Abaixo, como deveria ser, na teoria, o comprador perfeito, o que seria capaz de perceber como correto o preço cobrado:
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• Conhecer suas próprias necessidades.
• Avaliar a efetiva capacidade de gastos em Relação a seus rendimentos.
• Conhecer as características do produto, vantagens, e benefícios.
• Conhecer muito bem os produtos e preços da concorrência.
• Avaliar entre todos os produtos no mercado, aquele que realmente atende as suas necessidades; funções, benefícios adicionais oferecidos pelos bens de
preços mais elevados, etc.
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É claro que esse seria o cliente perfeito.

Mas Psicologia do Consumidor nos diz que temos que descobrir os mecanismos que influenciam o consumidor e o induzem a comportar-se de modo aparentemente
pouco racional quanto ao preço.

Uma forma é trabalhar o preço em três categorias.
Definition list of 3 items
1 - Preço - Tipo de Produto = Em que o consumidor acha como correto aquele que se aproxima ao de um produto similar, e a partir de um preço acha poder descobrir
o valor intrínseco de um bem. No caso de serviço, ele baseia-se menos no preço e mais na relação de confiança com a empresa de acordo com a imagem pré-informada
por amigos, testemunhos, etc.
2 - Preço - Qualidade = O Dito popular "o barato sai caro", mostra uma expectativa estreita em relação a preço e qualidade. De maneira genérica, pode-se
dizer que o preço alto é percebido como garantia de boa qualidade, tanto em relação a bens tangíveis quanto a intangíveis, compras mais refletidas.
Nesta categoria o fabricante assume grande importância, pois, tendo o nome conhecido, promove a confiabilidade do bem provocando uma percepção antecipada
de qualidade além de, em alguns casos, transmitir uma espécie de qualidade social.
3 - Qualidade - Preço = Esta Relação influencia a escolha do consumidor tendo em vista que é realizada em cima de uma avaliação embasada na experiência,
a qual consiste na recompra no produto e em virtude da fidelidade garantida pela qualidade.
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Sabemos que clientes insatisfeitos com a qualidade procuram a concorrência. Em alguns casos, perde-se o cliente para sempre. No caso de serviço, a relação
é percebida de forma muito mais pessoal, o que confere peso bem maior à relação.

Um frasco de perfume que custa R$100,00 pode conter apenas R$10,00 de essência, mas as pessoas pagam o preço solicitado para demonstrar alta consideração
a quem o recebe de presente. Perceba-se neste ato os aspectos psicológicos do preço como indicador de qualidade. Ou ainda o inverso.

Carros com preço alto, julga-se com qualidade, mesmo sem saber se têm.

Podemos também colocar um produto entre os preços mais caros para induzir que ele pertence à mesma classe destes produtos.

Métodos para Fixação de Preço

Sendo o preço uma das variáveis do Marketing, é necessário um estudo da viabilidade econômica e lucrativa do mesmo para estabelecê-lo, estudar informações
de mercado.

Preço=Custos + margem de Lucro

Dicas: a psicologia ensina que, se os preços terminarem com números impares, existe neles uma noção de barganha, mas se a empresa deseja uma imagem de preço
alto, em vez de preço baixo, deve evitar a tática do final impar.

2 Dicas práticas

1 - Estratégia de Skimming

Preços de entrada no mercado são altos, reduzidos gradativamente até um ponto que não comprometa o fluxo de caixa da empresa.

Quando utiliza-se para ampliar o mercado.

Mas somente se há um bom número de compradores sem variação

Preço alto cria a imagem de produto superior

Com o preço alto evita-se o estímulo de novos concorrentes

Os custo de produtos e distribuição são altos mas não anulam a vantagem de se cobrar um preço que poucos pagarão.

2 - Estratégia de Penetração

Produtos lançados no mercado em baixos níveis, preços a fim de estimular a demanda o mais rápido possível.

Isso faz Sentido se:

O Mercado desse produto for altamente sensível.

O preço baixo desencoraja a concorrência real e potencial.

Os custo de produção e distribuição caem à medida em que a produção aumenta.

Como se Estabelecer um Preço.

1. Método Markup - Consiste em acrescentar uma taxa ou margem ao custo do produto.
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1 - Passo Custo unitário=custo variável+(custos fixos ~ unidades vendidas)

2 - Passo Preço de markup = R$ Resultado acima(1- Taxa que se quer) =
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O ideal é buscar informações junto ao mercado.

2 - Preço de retorno - Alvo.

A empresa determina o preço que lhe assegura a sua Taxa de Retorno sobre o investimento.

PRA = Custo Unitário + ( (Retorno desejado x capital investido) unidades vendidas).

Esta fórmula é utilizada levando-se em consideração produção e venda mínimas para se buscar o ponto de equilíbrio.

3 - Preço de Valor percebido

Este método leva em consideração as percepções de valores dos compradores e não os custos da empresa como fatores para determinar o preço, uma vez planejado
o produto com o conceito de qualidade, estimando-se um volume de venda. Utiliza-se bem o marketing.

A Caterpillar, usa desta percepção para criar a diferença, porque pagar mais por seus produtos, daí ela faz a demonstração dos valores agregados e intrínsecos
ou sugeridos.

4 - Preço de Valor.

As empresas fixam um preço baixo para uma oferta de alta qualidade, que não é o mesmo que o valor percebido pelo cliente.

Na prática:

A Mercedes Benz adota a filosofia de mais valor pelo preço maior - aqui o que o cliente valoriza

Loja de descontos: Mais valor pelo mesmo preço

A Toyota - Lexus mais valor por preço menor.

Lembre-se: não é só sair cobrando abaixo dos concorrentes, é preciso aplicar técnicas de produção, tecnologia, logística, etc., para isto.

5 - Preço de Mercado

Infelizmente é o mais popular de todos. Os custos são de difícil mensuração.

É baseado no que o mercado está praticando, não se dá atenção aos custos. O líder de mercado geralmente é seguido em seus preços, concedem-se pequenos descontos.

Temos aqui um consentimento harmonioso e coletivo entre as empresas no mercado não prejudicando um retorno justo.

6 - Preço de Licitação.

Baseado na expectativa de como os concorrentes agirão, não se leva em consideração na maioria dos casos custos ou a demanda... Quer-se na verdade o contrato,
mas não se extrapola os custos, busca-se resultados a longo prazo.

Evolução de Preços.

Nada pode ficar estagnado. Algumas vezes é preciso enfrentar situações de aumentar ou diminuir preços. Vamos ver como fazer.

Capacidade Ociosa - A Empresa precisa negócios adicionais, não há como gerar através da força de vendas, produção, ou ela acompanha o líder ou adota uma
política agressiva para aumentar vendas.

Declínio da Participação de Mercado - Quando se percebe perda de Mercado.

Estratégia para dominar o mercado de custos menores - Começa-se com preços abaixo dos concorrentes, ou na presença deles, mas levando-se em coinsideração
meio volume de vendas e produção, demanda.

Recessão Econômica - Quando poucos produtos estão dispostos a comprar versões do produto de preços elevados. O marketing tem que pesquisar em que momento
e a maneira em que se darão esses aumentos, e duas podem ser as causas...

1) - Inflação.

Há redução de produtividade, diminuindo as margens. Há aumentos constantes e viciosos além dos custos. Especula-se antecipação de inflação futura repassada
aos preços.

Queda de prazos longos temendo que a inflação venha a prejudicar seus lucros.

2) - Demanda Aquecida.

Quando a empresa não pode atender todos os pedidos, pode aumentar os preços, cortar pedidos, ou ambos. O preço real pode ser aumentado de formas diferentes
e para diferentes clientes.

Observações: Toda vez que se mexer em preço, deve-se levar em consideração a reação de consumidores, e de suas influências para tal, e dos concorrentes
que dependem de políticas estabelecidas. Leve-se em conta reações de fornecedores, governos, intermediários.. De qualquer forma, avalie cada situação.

Ponto de Venda

Há quem diga praça ou distribuição. Seguramente, o mais conhecido é Ponto de Venda, que não é simplesmente uma loja ou um estabelecimento comercial, embora,
claro, ambos sejam pontos.

Mas o Marketing enxerga mais longe. Compreende os aspectos de distribuição de bens e serviços, incluindo não só canais de vendas tradicionais, lojas, máquina
de vendas, agentes, distribuidores, reembolso postal, etc. Inclui também a disponibilidade dos bens e serviços através desses canais, incluindo ainda a
confiança. Assim, toda ação de preparação, deslocamento, da fábrica ate a mão do consumidor, faz parte do composto de Marketing. A exemplo, alguns itens:

Utilidade do Tempo - Quando colocar um produto ou serviço no mercado, a fim de que esteja disponível para o cliente de acordo com o seu desejo. O Marketing
de Resultados deve buscar estas informações.

Utilidade de Lugar - Um produto só tem valor quando está à mão no momento certo e no lugar certo quando surgir o desejo ou necessidade... Quanto maior a
disponibilidade, mais a satisfação.

Localização de Sistemas Produtivos - Onde deve se localizar a Fábrica ou o Serviço?

Será mais bem junto ao maior pólo de consumidores finais? `Próximos aos demais centros consumidores? Perto dos grandes fornecedores?

Enfim, uma série de questionamentos. Uma localização mal planejada pode gerar custos e perdas de vendas desnecessárias, comprometendo o preço do produto.

Ambiente de Distribuição - Será que a loja está adequada ao público alvo? Será que não está excessivamente sofisticada ou humilde demais para os clientes?
O ambiente de Distribuição está corretamente sinalizado? É funcional? O pessoal de atendimento está devidamente treinado?

Estas e outras perguntas devem ser feitas para ser ter um bom resultado com uma boa distribuição física do produto ou serviço otimizada.

Distribuição Física e Objetiva

"Nossa política é colocar a Coca-Cola ao alcance de todos". - Ex-presidente da Coca Cola.

Temos então que a distribuição é entregar o bem certo, na ocasião e no lugar certo, ao consumidor certo. Certo?

A distribuição Física e Objetiva é a Logística por trás de todo este conceito responsável pela movimentação Física e pela estocagem do produto, do produtor
ao consumidor. Inclui-se a expedição do produto, o armazenamento, o processamento de pedido, entre os itens a seguir:

Ciclo de pedido - Um bom sistema de distribuição para garantir a entrega dentro de um prazo determinado, assumido no pedido do cliente.

Confiabilidade de entrega - Deve-se garantir ao cliente um percentual de todas as entregas, dentro de um tempo padrão também estabelecido.

Níveis de estoque - Deve-se manter um estoque de segurança, a fim de permitir cumprir a maior parte dos pedidos assumidos.

Exatidão no atendimento de pedidos - Capacidade de cumprir os pedidos dos clientes.

Segurança em trânsito - A garantia de que a mercadoria não sofrerá danos.

Canais de Distribuição

Nada mais é que o conjunto de instituições e relacionamentos, devidamente ordenados, através dos quais os produtos, direitos e uso, pagamentos e informações,
fluem do produtor para o consumidor. Leva-se em conta: características do mercado, hábitos de consumo, localização geográfica, práticas do comércio e indústria,
natureza do produto, os quais podem exigir sistemas diferenciados de distribuição, e a observação em relação aos climas das negociações, uma vez que podem
alterar todas as informações aqui expostas.

Atendimento ao Cliente

É comum encontrarmos pessoas dizendo que atendimento não faz parte do plano de marketing. Mas pense, o que marketing prega não é a satisfação das necessidades
do cliente?

Diante disto, considero o atendimento a mais importante fonte de preocupação. Para isto, a empresa deve primar pelo atendimento com qualidade para a satisfação
do cliente e para uma boa imagem da empresa. O atendimento tem três pontos cruciais:
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• a. Perfil do Atendente - Deve estar preparado para dar boas vindas ao cliente, ser conscientemente cortês, mostrar boa vontade no trato com o cliente,
dispensar toda atenção, ser rápido e atender de imediato, prestar orientação segura, evitar termos técnicos, evitar dar ordens, chamar o gerente em situações
especiais, evitar atitudes negativas, falar sempre a verdade ao cliente, dedicar atenção e empenho nas reclamações, agir como um bom cartão de visitas
da empresa, ter cuidados especiais no ambiente de trabalho, saber tirar proveito de uma má experiência ocasional, demonstrar preocupação e interesse, ser
espontâneo, saber reconhecer e lidar com ansiedade, prever problemas e exercitar soluções, etc.
• b. O Atendimento em si, que há de primar pela qualidade - Evitar as demoras ou qualquer barreira entre clientes e empresa, seus funcionários, fornecedores,
produtos e serviços.
• c. O ambiente de Trabalho - Deve ser organizado de modo que reflita a qualidade da organização, tanto nos espaços físicos internos, como mobilias, etc.,
como no externo, quanto ao visual, estacionamento, etc...
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O Modelo Ideal de Atendimento.
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Fatores Fundamentais: Cortesia, simpatia e educação. Cumprimento de promessas e ofertas. Desburocratização
Sensação a ser passada para o Cliente: Ele é sempre bem-vindo. Seus problemas são tratados por pessoas. Não está sendo alvo de argumentações falsas.
O Profissional de Atendimento: Age como empresa e pensa como cliente. Conhece bem a empresa, os produtos e serviços que oferece. Conhece técnicas de Relacionamento
Humano e Marketing. Tem capacidade e autonomia para resolver problemas. Trata cada cliente como gostaria de ser tratado. Gosta de Gente.
O ambiente de Atendimento: Limpo, bem decorado e bem sinalizado. Funcional e auto-motivado, Atendentes bem selecionados e treinados. Ambiente Confortável
tanto para o cliente externo quanto para os internos.
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Vícios comuns de Atendimento

Tendo em vista o Marketing para Resultados, temos que cuidar para que os vícios abaixo não aconteçam.
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• 1. Empresas com visão da porta para dentro - Para o mercado, passa uma informação valorizando o cliente... Mas o que se percebe é que são empresas burocráticas,
mais voltadas a controles e rotinas da porta para dentro.
• 2. Caras fechadas ou excesso de informalidade - Tudo deve ser em equilíbrio. Assim, ações devem ser comedidas, tapinhas nas costas, piadas, falar mal
da empresa ou colegas enquanto atende...
• 3. Uso de siglas e gírias - Esta característica era observada somente em repartições Publicas. Agora caiu no modismo e os atendentes a utilizam de forma
normal para orientar seus clientes ou passar informações. Como se eles tivessem a obrigação de conhecer...
• 4. Falta de antecipação de informações aos Clientes - Ser o cônjuge traído é ruim. Muitas empresas fazem muitas alterações, de preço, de prazo, de produto,
de forma de pagamento... e não avisam o cliente antes das mudanças.
• 5. Desconhecimento de rotinas. Respostas Incorretas - Não se conhece a empresa, suas rotinas e procedimento interno, algumas vezes devido à alta rotatividade,
gerando informações incorretas, induzido assim a expectativas falsas. Solução: treinamento e reciclagem.
• 6. Falta de sinalização adequada - Há muitas siglas e sinais que não dizem nada ao cliente. Cartazes mal escritos com pincel atômico, etc. Sem contar
onde nem sinalização tem... É difícil saber o que é pior, sinalização mal feita ou não ter.
• 7. Fila - Já é instituição nacional! Para tudo se tem fila. E, com certeza, se não também pela demanda, demonstram ineficiência no atendimento.
• 8. Formas Inadequadas de Tratamento - Esqueceu-se a Educação, "obrigado", "por favor", "volte sempre", "até logo", "que bom vê-lo", "o Senhor", "a Senhora",
pronomes de tratamentos esquecidos no ambiente pessoal e profissional. Mas neste último pesa mais. Cortesia e Educação devem ser a ordem do dia.
• 9. Postura gestual inadequada - Quantas vezes já não vimos pessoas que mascam chicletes, chupam bala, orelhas de suporte, palitos nos dentes, ou palitam
os dentes na sua frente, ou limpam as unhas, discam o telefone com lápis, enfiam o dedo no nariz, mão no saco, sentam-se inadequadamente, andam sem sapatos
em ambientes de trabalho, falam alto, falam mal da chefia, criticam a empresa, reclamam dos salários, dos colegas, tossem próximo ao rosto do cliente,
perfumes em excesso, comidas no local de atendimento, entre muitas outras...
• 10. Falta de autonomia do Atendente - Muitas empresas não delegam autonomia aos seus atendentes, para resolverem problemas ou negociarem. Há muita rigidez,
ocasionando perdas de venda. Sem contar as vezes em que se chama o chefe para resolver...
• 11. Falta de argumentação convincente - Devido à falta de treinamento e preparo, de instrução, conhecimento da empresa, produtos, cliente, vendas, marketing,
etc.
• 12. Atendimento telefônico inadequado - Enfim descobriu-se que com o telefone é possível uma comunicação direta, mas também não se prepara aquele que
vai ligar. Quantas informações são passadas somente pessoalmente, sem falar na música de fundo... 10 segundo ao telefone parecem 10 minutos.
• 13. Chefias inacessíveis - Algumas vezes descarta-se o cliente sem lhe dar o mínimo de atenção, ou argumentação, a não ser que seja alguém influente.
• 14. Supervalorização das máquinas - São as desculpas para justificar algo. Exemplo: quando o cliente reclama da cobrança indevida. O nosso computador
nunca erra, quem erra é quem está por trás dele.
• 15. Atendimento centralizado - São aquelas empresas em que, quando você quer resolver algo, tem que ir a algum lugar especifico. Isso quando não te mandam
para aquele lugar...
• 16. Insuficiência de recursos - Há empresas que desejam prestar um bom atendimento, mas não cuidam dos detalhes. Vários computadores para retirada de
dinheiro, mas somente em um é possível fazê-lo...
• 17. Supervisão excessiva ou inexistente - O medo faz com que atendentes sejam como robôs, ou ainda que outros vivam na flauta...
• 18. Inexistência de avaliação sistemática - Muitas empresas avaliam, mas poucas colocam em prática o atendimento solicitado pelo cliente.
• 19. Falta de feedback aos Clientes - Como já dissemos, não se dá retorno ao que o cliente pede.
• 20. Falta de Atendimento pós-venda - Muita gente acha que pós-venda se restringe a uma simples ligação após a compra, e isso é muito mais, cartas, contatos,
assistência disponível, relacionamento...
• 21. Posições de Atendimento não preenchidas conforme a demanda - Verificar os horários de maior demanda para alocar material humano para atendê-la. Exemplos:
Banco, Correio, Cartório, Clubes, Lojas, Restaurantes...
• 22. Comunicação empresarial falha ou lenta - É quando as pessoas de linha de frente são as últimas a saber de alterações nas rotinas corporativas, de
produtos, de preços. Aí há informações truncadas e incorretas.
• 23. Falta de tratamento diferenciado - Com certeza, grandes consumidores de produtos merecem um tratamento diferenciado. Mas deve-se tomar cuidado, pois
alguns tendem a querer demais, enquanto outros percebem que não podem nada. Lembre-se: uma coisa é atendimento diferenciado, outra é discriminação.
• 24. Administração por exceções - É quando se trabalha o tráfico de influência. Sempre tem alguém dentro da organização que quebra um galho. Isto acaba
com o atendimento...
• 25. Falta de padronização no atendimento - Gente muito nova, bonita, simpática, mas sem preparo para vender. É o caso de butiques, lojas de grife... Às
vezes até têm padronizações, parecem passarinhos enfileirados... É ainda aqui que se enquadra os casos de compras, crediários, em que algumas vezes temos
que nos confessar para comprar, teste do pezinho, etc.
• 26. Bolinho nas lojas - É normal, também, encontrarmos bolinho de pessoas, contando as últimas do Faustão, as vídeo-cacetadas. Quando o cliente entra,
é aquele espirro, sem contar na avaliação pré-concebida, "eu vou", "vai você"...
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Vendas

O Marketing conta com a forca de vendas para dar vazão a produtos, informações e receber feed-back do mercado em forma de compra. Bem por isso é que se
diz forca de vendas, em virtude do grande número de pessoas nesta área. Mas cada vendedor é uma unidade complexa e isolada embora, paradoxalmente, parte
do esforço de vendas da empresa.

Para se ter sucesso nesta área é preciso um vasto trabalho gerencial: calcular números exatos de homens para trabalhar, homens para dar cobertura ao cadastro,
reservas, substituições eventuais, férias, treinamento, levar em conta o número de supervisores...

Este profissional deve ter elevado nível de energia, autoconfiança, perseverança, ímpeto, tendência à competição, empatia com o público, hábito de trabalhar
em supervisão, vontade de ganhar mais, status, etc...

Como função: devem visitar clientes, oferecer os produtos da empresa, criar uma rede de relacionamentos, aconselhar e recomendar produtos, quantidades,
compatibilizando com as políticas da empresa e do cliente, ajudar o cliente na venda, preço, sugestão, exposição, argumentação para revenda, se for o caso.
Trabalhar com o crédito, a fim de que seja possível liquidar os compromissos assumidos pelo cliente. Planejar tempo de visita, rotas, entre muitas outras
funções, de acordo com as organizações.

Estratégias de vendas.

Em relação ao cliente, os gerentes e vendedores são os responsáveis pelas decisões estratégicas, desde que em consonância com o planejamento de marketing.

O relacionamento entre vendedores e clientes pode ser:

1) Relação como Consultor - Dando soluções para problemas específicos.

2) Relação como Fornecedor - Dando condições para que tenha o produto em tempo hábil e nas condições por ele requeridas

3) Relação como Provedor - Dando soluções sob medida para o cliente resolver seus problemas e alcançar seus objetivos.

Para cada tipo de distribuição de produtos ou serviços, determina-se uma estratégia para atuação no mercado.

Promoção ou Comunicação

Promoção de Marketing - É todo o composto promocional, isto é, todas as formas de comunicação persuasiva promocional utilizada pelas empresas e organizações
para com o mercado. A promoção de marketing prepara a promoção de vendas...

Promoção de Vendas - É o lugar comum dos diversos instrumentos de comunicação mercadológica, em que não estão classificados venda pessoal e publicidade.
Assim temos: amostras, cupons, ofertas, selos, descontos, propaganda cooperativada, concursos.etc...

A promoção de Vendas utiliza muitas vezes a Publicidade para divulgar as suas atividades.

Propaganda

A comunicação impessoal paga e de caráter persuasivo, com um patrocinador identificado, cujo objetivo é conquistar o mercado ou um segmento. Jornais, revistas,
folder, televisão, cartazes, outdoors, spot de rádio.

Publicidade

É toda e qualquer informação transmitida ao público sobre a organização, por terceiros, sem ônus e sem controle por parte da empresa.

O que diferencia uma da outra é a assinatura das mensagens e o pagamento das peças.

Press-Release, ou simplesmente Reelease

São todas as informações importantes repassadas pela empresa para Rádio, Jornais, Televisão, Internet, a fim de que uma determinada mensagem/noticia seja
passada ao público de forma favorável aos interesses da empresa ou do produto.

Entrevistas provocadas

As empresas convocam jornalistas para passar informações que geram ganho de imagem ou lucro para a empresa, ao mesmo tempo em que fornecem noticias.

Feiras e Exposições

Os produtos e serviços são expostos em ponto chave e de forma estratégica a fim de fazer a divulgação, ganhar notícias na mídia gratuitamente, além de vender
e prover os produtos.

Merchandising

Qualquer esforço promocional no ponto de venda, para estimular a compra. Considera-se também as atividades que usam a mídia visual, televisão, jornal, bonés,
camisetas... Enfim, a promoção do produto de forma disfarçada. Lembre-se das novelas.

Marketing Direto, mala direta e telemarketing.

Marketing Direto - todas as vendas de produtos, via correio ou outros, venda de cartões de crédito, seguros, consórcios, convênios médicos, etc e não apenas
mala direta ou catálogos. O objetivo é buscar uma repostas objetiva do consumidor.

Na prática: oportunidade de potencializar ou rentabilizar qualquer esforço de marketing. Reduz custos, visitas são substituídas, respostas imediatas, retorno
previsível e mensurável, custo baixo, maior segmentação, facilidade de testes.

Mala Direta - Peça de Marketing Direto permitindo comunicação direta com o cliente: carta, cupom, material, folder, catálogo... Objetivo: criar impulso
de compra, pesquisas, etc.

Telemarketing - Utilização planejada das telecomunicações. Traz lucro direto e indireto, podendo ser ativo quando a empresa vai até o cliente ou receptivo
quando o cliente vem até a empresa, não importa se através da comunicação de dados ou telefonia.

Canal de Comunicação - Permite o contato do cliente, fortalecendo a imagem da empresa.

Canal de Vendas - É todo o meio que possibilita o fechamento da venda, e todo o trâmite da venda.

Canal Institucional - É a orientação à população sobre os produtos e serviços da empresa, melhorando a sua imagem ou fortalecendo-a.

Venda pessoal - É a abordagem direta feita face a face para clientes selecionados, com o propósito de criar consciência, despertar interesse, desenvolver
a preferência no bem.
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• a. Venda de Campo - São vendas realizadas, em visitas a campo, para os clientes.
• b. Venda no Varejo - Realizada com auxilio do balconista.
• c. Venda Executiva - São as realizadas nos eventos sociais. Ex: Partida de futebol.
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Confronto Pessoal - É o relacionamento de impacto capaz de observar as necessidades dos outros, fazendo os ajustes, podendo auxiliar ou prejudicar.

Cultivo - Trabalha-se o cliente, os relacionamentos,, buscando negociar, mas considerando os interesses do cliente a longo prazo.

Retorno - Em contrate com a propaganda, faz com que o cliente compre. Há quem diga que o vendedor coloca os produtos nas prateleiras e a propaganda retira.

Posição de estoque aumentado - O vendedor pode ganhar mais espaços nas prateleiras.

Despertar o Entusiasmo - O vendedor pode aumentar o entusiasmo, dramatizando a propaganda.

Venda Missionária - O vendedor busca mais revendedores para manter a marca.

Há empresas que empurram seus vendedores e há outras que puxam. Exemplos:

A Revlon usa muita promoção de propaganda. Já a Avon acredita na venda pessoal.

Avaliação da Eficácia Promocional

Há suas formas de se saber:

1) Pesquisa do efeito Comunicação - Procura descobrir se a estratégia promocional está alcançando o resultado da comunicação proposta.

2) Pesquisa do efeito Vendas - Mede-se o impacto da estratégia promocional sobre as vendas.

Ambas pesquisas podem ser feitas antes e depois como pré-teste.

Avaliações Diretas - Escolhe-se consumidores, mostra-se as peças. Faz-se a pergunta "Qual destes anúncios é o melhor?". Aquele com a nota mais elevada teoricamente
é o mais eficaz.

Testes de Portofólio - Os entrevistados recebem um portofólio e levam o tempo que for necessário para ler o mesmo. Depois se avalia o quanto lembram de
cada anúncio. Eventualmente podem ou não ser auxiliados pelo entrevistador.

Testes de Laboratório - São testes realizados em cima de consumidores submetidos a um portofólio simulado, com auxílio ou não da tecnologia, cujo objetivo
é avaliar reações fisiológicas, pressão sangüínea, batidas do coração, dilatação da pupila... Estes testes podem ter duas formas: testes de reconhecimento
e testes de lembrança.

Teste de Reconhecimento - Através de amostragem, pede-se para que o entrevistados relatem ou apontem o que lembram, nas mais diversas mídias.

Teste de Lembrança - Realiza-se um encontro com usuários regulares de determinadas mídias. Pede-se para que lembrem o que viram e sentiram em relação ao
produto ou anúncio a ser explorado. Os registros destas lembranças permitem perceber o poder de reter o anúncio. E sua eficácia.

A eficácia de uma comunicação mercadológica em vendas deve ser sempre medida. Muita embora seja mais fácil consegui-la através do marketing direto, abaixo
dois métodos para ajudar nestas informações.

Abordagem Histórica - Trabalha-se com informações de vendas atuais e passadas. É necessário um bom conhecimento matemático, por ser algo mais complexo,
mas permite saber de quanto será o retorno para cada dólar investido na comunicação.

Projeto Experimental - Escolhe-se um mercado para teste e se faz simulações com as taxas de investimento em comunicação, a fim de se perceber os ganhos
e perdas médias de vendas devido aos gastos adicionais ou reduzidos.

Como orientação, sugiro que, ao preparar a sua estratégia de comunicação mercadológica, procure utilizar os serviços, quando possível, de uma agência de
propaganda, pois ela terá com certeza condições de fornecer à sua empresa o retorno desejado e otimizar os recursos financeiros aplicados.

Caso 4

Na área de Vendas é comum encontrarmos profissionais que acreditam saber de tudo. Este tipo tende a fracassar no mercado moderno. Comente essa afirmativa,
por escrito, e depois busque informações com outras pessoas.

Caso 5

Em sua opinião, porque o profissional de vendas deve ter conhecimento do mercado em que atua, da empresa para a qual trabalha, dos produtos que vende e
do cliente?

Caso 6

Se fosse desenvolver um programa de treinamento inicial para vendedores recém admitidos na empresa, que tipo de tópicos incluiria no programa?

Pesquisa de Mercado

Tão importante quanto planejar é preciso buscar informações. Para que o Marketing produza os resultados necessários, a coleta de dados, registros e análises
sistemáticas relacionadas aos produtos e serviços devem ser observados, acompanhados e usados.

Pesquisa de Marketing - Trabalhamos com informações de todas as funções do marketing, estudos de mercado, planejamentos, comercialização, gerência, desenvolvimento
de produtos e gerências.

Pesquisa de Mercado - Busca-se informações no mercado para um determinado produto ou serviço. Esta, por sua vez, é uma das pesquisas de marketing.

Na Prática, para que servem as aplicações de uma pesquisa quanto a

Produtos e Serviços

Lançamento de novos produtos ou serviços - Para saber as primeiras impressões.

Melhoria de produtos e serviços existentes - Para dimensionar qual foi o impacto causado pelas mudanças realizadas nos produtos ou serviços.

Posição dos produtos e serviços frente à concorrência - Para saber qual é o posicionamento do produto no mercado, comparado com o dos concorrentes.

Teste de novos produtos e serviços - Para ter segurança ao lançar novos produtos e serviços.

Preferência do consumidor - Para identificar o que realmente o cliente deseja.

Denominação de produtos e serviços - Para saber com segurança que nome dar a determinado produto, bem, empresa.

Mercados

Análise do mercado referente ao consumidor - Para segmentar de forma eficiente, conhecendo os hábitos e características de consumo.

Rentabilidade relativa a cada mercado - Quando se precisa saber qual é o mercado mais rentável, de forma a permitir a elaboração de estratégias para cada
um.

Análise e interpretação de dados de mercado - Para analisar a fundo informações obtidas superficialmente.

Estimação do mercado potencial - Para qualificar e quantificar os limites de atuação.

Estimação da possível demanda por produto e serviços - Para auxiliar nas decisões de compra de equipamentos ou a capacidade de oferta de produtos e serviços,
prevendo-se o retorno financeiro.

Análise do mercado do consumidor per capita - Para saber o comportamento individual em relação ao bem.

Análise do mercado por zonas territoriais - Para saber como está o desempenho do produto, serviços, empresa, vendedores, em determinada região.

Fixação de Cotas de vendas - Para planejar vendas e fixar indicadores de desempenho.

Condições de desenvolvimento da concorrência no mercado - Para conter a concorrência.

Análise do mercado potencial de novas zonas de vendas - Para planejar o crescimento.

Análise do mercado potencial de zonas antigas de vendas - Para conhecer um pouco mais o mercado que se atende e descobrir novos nichos.

Política Comercial

Estrutura de preços - Para definir a estruturação dos preços de produtos e serviços.

Métodos de vendas - Para identificar qual é o tipo de venda que é de preferência do consumidor: pessoal, impessoal, internet, condições de pagamento.

Política promocional - Para saber que atrativos devem ser oferecidos ao cliente a fim de encantá-lo.

Crédito aos clientes - Formas adequadas para conceder crédito.

Relação com o público - Para saber que estratégias foram bem formuladas e são eficientes.

Capacidade de atendimento - Para saber se há contentamento com o atendimento, se é preciso melhorá-lo ou aperfeiçoá-lo.

Métodos Comerciais

Custos comerciais - Para dimensionar que custos estão envolvidos na comercialização.

Escolha de sistema publicitário - Para saber qual é a forma mais adequada de comunicação com o mercado.

Pesquisa de mídia - Para saber se os meios de comunicação utilizados são os mais adequados.

Testes de vendas - Para avaliar se a estratégia de vendas está adequada, ao mercado, produto, consumidor.

Tipos de pesquisas

Pesquisa exploratória - Objetiva identificar e definir hipóteses relevantes e variáveis. Possui uma carga quantitativa enorme, uma vez que busca informações
em livros, apostilas, museus, internet, entre outras, fazendo comparações e estudos em grupo.

Pesquisa descritiva - Baseia-se em estatística e na descrição de características, de situações, de relatos e informações passadas, possibilitando a previsão
de vendas ou fenômenos.

Pesquisa casual ou experimental - Busca os porquês. Exemplo: lança-se um produto em dois mercados diferentes, ou campanhas publicitárias em mercados diferentes,
e se avalia o impacto de cada uma, suas causas e efeitos.

Pesquisa Quantitativa x Pesquisa Qualitativa - Em primeiro momento, as pesquisas sugerem ser apenas quantitativas, sem levar em conta os aspectos comportamentais.
Há exemplo direto na TV: nas ruas, 15% dos pesquisados disseram isso, 45% disseram aquilo e 40% não opinaram. Por outro lado, a pesquisa qualitativa busca
informações que envolvem análises de comportamentos, atitudes e a verdadeira psicologia do consumidor. Ambos podem ser utilizados sem riscos, dependendo
do administrador e da informação que precisa obter. Vou detalhar um pouco cada uma delas.

Instrumentos de pesquisa

1. Pesquisa Quantitativa

Os fenômenos dos mercados são apenas descritos e medidos e para isto podemos utilizar as vias a seguir...

Amostragem - São amostras retiradas do universo a ser pesquisado, com dados representativos. Considera-se que a amostra tem as mesmas características, na
proporção, daquele universo.

Vantagens práticas:

1. Redução de Custos da pesquisa, tendo em vista trabalhar um número reduzido de componentes.

2. Maior Rapidez na obtenção de informações, dentro da lógica de que é mais rápido entrevistar 100 pessoas do que 1.000.000.

3. Obtenção de maior número de informações Tendo em vista o menor número de pessoas a serem entrevistadas, pode-se explorar mais informações.

4. Generalização dos resultados na proporção em que está embasada em fatos e dados do mercado.

Tipos de Amostragem

São dois: Amostragens Probabilísticas e Não Probabilísticas.

Amostragem Probabilística - É quando todo o elemento do universo tem a mesma probabilidade de ser sorteado para compor a amostra. É a mais utilizada. Pode
ser:
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• a. Amostragem probabilística aleatória - Escolha via sorteio, aleatoriamente, após calculado o tamanho de uma amostra e definido o universo e componentes
que o comporão.
• b. Amostragem probabilística estratificada - Escolhe-se o tamanho do universo a ser pesquisado e calcula-se a amostra representativa deste universo. Exemplo:
Bairro X 100, Bairro Y 200 e Bairro Z 700 pessoas total 1.000 pessoas. Divide-se o número de pessoas por bairro pelo total geral vezes 100 e teremos: Bairro
X 10%, Bairro Y 20% e Bairro Z 70%. Este é o número de pessoas, em percentual, que deverá ser pesquisado ou excluído em cada bairro.
• c. Amostragem probabilística sistemática - Escolhe-se um número do tamanho do universo da amostra. Exemplo: 1, a partir dele, escolhe-se um intervalo,
por exemplo 20 . O próximo entrevistado será o número 21 e assim sucessivamente, na proporção do universo.
• d. Amostragem probabilística por aglomerado - São escolhas realizadas por grupos, quadras, ruas, alunos de uma classe. Uma vez escolhida sorteiam-se os
componentes.
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Amostragem não probabilística - Leva em consideração que alguns elementos são importantes para a amostra, e quase sempre determina quem será pesquisado.
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• a. Amostragem não probabilística por conveniência - Neste tipo de amostra os pesquisados são escolhidos por serem os mais convenientes no momento. Exemplo:
turistas em uma cidade de veraneio, hotel, etc.
• b. Amostragem não probabilística por quotas - Nesta situação os elementos são divididos de acordo com as camadas da população, sem preocupar-se com a
proporção. Exemplo: entrevistar pessoas do sexo masculino, das quais 30% usam a marca X e 70% não usam. Das que não usam, 50% devem estar entre 15 a 25
anos e 50% acima desta faixa.
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Determinação do Tamanho da Amostra

Mais uma vez oriento que especialistas devem fazer estes cálculos para que não ocorram erros, mas é bom saber quais são as variáveis que fazem parte dela.
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• a. Margem de Erro - É o erro máximo admissível na pesquisa, que possa garantir um determinado grau de confiança. Quanto menor a margem, melhor a qualidade
da investigação. Quanto maior o número de pesquisados, mais perto do universo se está.
• b. Grau de Confiança - É o nível ou o ponto de equilíbrio para que a margem de erro não extrapole os números estipulados, pois quanto menor a amostra,
menor o grau de confiança.
• c. Variável P e Q - É a probabilidade do fator sucesso ou fracasso no trabalho, onde P é igual a sucesso e Q a fracasso.
• d. Variável Z - É a variável que vai garantir que a amostra é representativa, uma vez que é medida estatisticamente e pode ser encontrada em tabelas especificas
até na internet.
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Para que o Marketing de Resultado dê resultados, repasso abaixo uma tabela muita utilizada com tamanho de amostras, na qual se considera um grau de confiança
de 95.5% e a margem de erro de 7%. Ela o auxiliará, no caso de desejar realizar uma pesquisa.

Universo - Amostra
100-68
200-102
500-147
1000-172
1500-182
2000-187
2500-191
3000-193
3500-195
4000-197
4500-198
5000-198
5500-199
6000-200
7000-201
8500-202
10500-203
20000-205
40000-206
Acima de 30000-207

Observação: Quanto maior o universo, mais a amostra se estabiliza. Ou seja, a partir de um determinado número, o comportamento tende a se repetir.

E como farei para fazer estas pesquisas de forma prática?

Questionário para pesquisa quantitativa

Defina claramente porque fazer a pesquisa.

Determine o tipo de questionário a ser utilizado e a forma como será realizado, telefone, pessoal, mala direta.

Determine o conteúdo das questões ou aquilo que realmente você precisa saber. Pergunte-se "a pergunta é realmente necessária?". Estará evitando perguntas
que dêem informações duvidosas, perguntas conjugadas, ou indutivas, personativas, etc.

Determine o tipo de pergunta a ser utilizada: aberta, múltipla escolha, fechadas, mistas.

Determine se haverá escalograma, que são as cabrinhas felizes, as notas...

Determine a seqüência das questões: informações básicas, de perfil, do objeto da questão.

Realize pré-testes: quantos pré-testes devem ser realizados, que amostras serão usadas.

Corrigir e elaborar o questionário definitivo: o que é conseguido com o pré-teste.

2. Pesquisa Qualitativa

Busca informações através dos aspectos psicológicos para explicar e interpretar o mercado em seus fenômenos, a exemplo dos conceitos a seguir.

Atitudes - Trabalho realizado em função dos conhecimentos, sentimentos, crenças em relação a uma parcela da realidade e seus comportamentos, nos produtos
e serviços, empresa.

Personalidade - A maneira de reagir ao ambiente, tagarelas, tímidos, observadores.

Valores - Definem-se como comportamentos compartilhados e considerados bons, é bom para você é bom para mim

Opiniões - Conhecimento particular sobre aspectos, pessoas, produtos e serviços, sem que isto afete atitudes e valores.

E na prática como realizar esta pesquisa?

Método de pesquisa qualitativa

Discussão em grupo - É realizada quando não se tem dados para se ponderar sobre os comportamentos. Para isso realiza-se um debate, entre 5 e 12 pessoas,
sobre a orientação de um profissional da área, de pesquisa ou psicólogo.

Usa-se para isto:
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Dramatização.
Trabalhar com grupos homogêneos.
Reunir pessoas desconhecidas entre si.
Reunir pessoas que nunca participaram de discussão em grupo.
Não divulgar o tema.
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Entrevistas em profundidade - É caracterizada por haver entrevistado e entrevistador. Realiza-se cerca de 20 entrevistas, de duas a três horas de duração
cada, não se trabalha com dados conhecidos.

Entrevistas intensivas - Quando já se tem dados e quer se entender o comportamento e levantar hipóteses razoáveis sobre os comportamentos. Utiliza-se para
isto entrevistado e entrevistador, cerca de 20 entrevistas, média de duas a três horas, aplica-se técnicas projetivas, complementação de sentenças, pranchas
projetivas, interpretação de pranchas, histórias, jogos.

Estabelecimento de Objetivos

Para se ter resultados satisfatórios é importante se perguntar da real necessidade das informações que se precisa, uma vez que as pesquisas são caras para
serem realizadas. Pergunte-se: "não consigo informações a partir de dados secundários?".

Quais são os objetivos da pesquisa:

Específicos - sobre o que os clientes pensam do atendimento ao telefone, do atendimento da loja, dos nossos produtos, serviços.

Gerais - quando se quer saber sobre um único serviço ou produto

Necessidades dos Clientes

O marketing voltado para resultados procura identificar motivos que levam consumidores a adquirirem produtos e serviços. Para isso é necessário conhecer
a teoria do comportamento criada por Abraham Maslow, a teoria de Maslow como é mais conhecida.

Diz que as pessoas tendem a satisfazer algumas necessidades primordiais seguindo uma ordem hierárquica, conforme demonstro a seguir.

É importante para o marketing conhecer estes fatores motivacionais para estabelecer uma comunicação mais eficiente. Sendo assim, as primeiras necessidades
humanas estão ligadas às fisiológicas. As pessoas precisam de comida, água, abrigo, sexo. Supridas estas necessidades é que as demais passam a ser relevantes.
Ai vem a Segurança: seguro de vida, poupança, previdências. Afeição: que está ligada ao relacionamento, à simpatia, afeto. Supridas as necessidades até
aqui, busca-se a Estima, que nada mais é que o prestígio aos olhos dos outros, o status, para demonstrar que se venceu, chegou lá. O último estágio é o
da realização, no qual busca-se o aperfeiçoamento, conhecimento e o desenvolvimento das potencialidades humanas.

Devo ressaltar que todas as necessidades existem em todas as fases da escala, em maior ou menor grau, porém uma delas é sempre predominante.

Comportamento do Consumidor

De acordo com a Psicologia do Consumidor, há vários tipos de clientes durante a negociação, a saber, Autoritários, Negociadores, Gozadores, Cordatos...
Em cada um é possível ainda identificar os ativos e reativos e pro-ativos. O autoritário reativo dificilmente inicia algo, espera que outros tomem a iniciativa.
Para o reativo é preciso utilizar comparações estatísticas para o convencimento. Já o pro-ativo gosta de assumir a liderança, ao passo que o ativo é aquele
que já tem interesse pré-definido.

Motivação de Compra

Como observamos na teoria de Maslow, as pessoas compram pelas mais diversas necessidades não satisfeitas. Por isso devemos utilizar abordagens diferentes
de vendas para melhores resultados. Por que as pessoas compram? Vejamos:

Melhorar o padrão de vida - É a compra motivada para melhorar o padrão de vida, querem conforto e qualidade, sempre atentos a novidades.

Aproveitar alguma oportunidade - Motivados apenas pela oportunidade de bons negócios.

Status - Pessoas que compram para obter aprovação social, fazem qualquer esforço para alcançarem o seu objetivo.

Imitação - Percebem a satisfação do outro e compram porque viram e querem os mesmos resultados.

Preferências por marcas e modelos

Uma vez a empresa orientada para as informações do mercado, o marketing submete suas idéias sobre marcas, nomes e símbolos que caracterizam um produto ou
serviço e modelos, sendo protótipos ou conceitos, ou não, ao público alvo, para que o mesmo forneça informações suficientes para que produtos e serviços
sejam bem sucedidos no mercado. Esta pesquisa qualitativa da marca tem como objetivo conhecer a sensibilidade do mercado a uma determinada marca para que
sejam feitos os ajustes necessários ou a formulação ou reformulação das estratégias de marketing.

Caso 7

Descreva um problema real que aflija a sua empresa ou outra empresa conhecido e que possa ser solucionado a partir de uma pesquisa.

Caso 8

Seguindo os passos apresentados nesta unidade, elabore um questionário para uma possível pesquisa que auxilie a resolução do problema que identificou.

Planejamento e Marketing

Marcos Cobra bem definiu plano de marketing como "Um Conjunto de ações táticas de marketing que devem estar atreladas ao planejamento estratégico da empresa.
Mais do que um documento estático, ele deve constituir-se em um roteiro dinâmico de procedimentos coerentes com os objetivos estratégicos".

Para quem sabe para onde vai qualquer caminho está bom. Perdido está quem não sabe para onde vai. Assim é uma empresa sem plano.

O Planejamento de marketing deve trabalhar com cenários previamente estipulados e analisados. É o famoso "E se, é assim que deve ser". "E se não der certo",
"E se o concorrente fizer isto", "E se ele não fizer", "E se o mercado agir assim". Se, partícula condicional de situação. Para marketing, peça de importância
para se saber como agir em cada situação, se porventura vier a ocorrer. O objetivo é manter a empresa no prumo, sobrevivendo nos cenários reais.

Erros de Planejamento

Como para a empresa tudo envolve custos, o planejamento deve ser elaborado por uma equipe, e dos mais diversos setores da empresa. Uma só pessoa pode conduzir
ao erro, e um planejamento errado leva empresas ao fracasso, a perda de comunicação, a um mercado errado, erra-se em tudo.

Atuação nas Diversas Economias

O Planejamento estratégico pode atuar e estar preparado para todas as economias, sejam elas socialistas, capitalistas, em desenvolvimento ou não, pois ele
deve fazer parte dos planos de desenvolvimento de empresas e nações, ele é o Norte, a bússola.

Variáveis de Mercado e Consumidor

O marketing está sempre em constante evolução, estimulado por situações sistemáticas e contínuas.

Temos algumas informações que são cíclicas, pois de um lado temos a empresa, do outro o mercado. A empresa, por sua vez, produz bens e serviços. O mercado
satisfeito retribui com dinheiro. É uma troca puramente comercial. A empresa, assim como a galinha, tem que dizer que o produto ou serviço está à disposição,
é a comunicação para com o mercado. Este, por sua vez, retribui efetuando a coleta e dando as informações necessárias que a empresa precisa para o aperfeiçoamento
necessário.

Esta troca de informações constantes caracteriza-se por ser uma abordagem sistêmica. Assim temos:

Sistema Complexo de Marketing

Visa, em primeiro momento, analisar todas as forcas que vão influenciar o macroambiente de marketing, o que o torna complexo, pois estas forcas de influência
podem vir tanto dos ambientes internos, direta ou indiretamente como também dos ambientes externos das organizações que podem ser, fornecedores, governo,
bancos, legisladores. Enfim, podemos perceber que vários públicos podem afetar o complexo do marketing. Solução: estar preparado estrategicamente sempre
para agir taticamente. Vejamos, abaixo, as principais forcas de influência.

Econômicas - Sem dúvida, as forças de maior influência, em virtude das mais variadas mutações, tanto positivas quando negativas. Por isso inflação, consumo,
impostos e taxas, planos econômicos, etc., não devem ser esquecidos no planejamento estratégico.

Psicológicas - Para fazer um bom planejamento, é preciso conhecer os hábitos do consumidor. Por exemplo: sazonalidade de determinados produtos e serviços,
etc.

Sociológicas - Conhecer o segmento da sociedade em que se vai atuar, ou atua, costumes, padrões, estilos de vida, riqueza, pobreza, e o que os estimulam.

Culturais - Conhecer o ambiente, os seus costumes e a história de onde se vai inserir o produto ou serviço, escolher e adequar a forma como vamos ter que
nos comunicar com este segmento, região, para que os mesmos não se sintam desrespeitados e criem aversão ao que pretendemos.

Religiosas - Levando-se em consideração a religiosidade de um povo e a sua diversificação, leve em conta os seus dogmas na aplicação do marketing, analisando
com cuidado cada preceito.

Demográficas - Conheça as variáveis demográficas (renda, escolaridade, idade, etc.) de uma sociedade para melhor realizar a segmentação.

Tecnológicas - As evoluções tecnológicas são imprescindíveis. Disponha delas na medida do possível para assegurar à empresa um bom retorno.

Ecológicas - Percebam o quanto está aumentando a conscientização para os assuntos ecológicos. Então levem em conta estes aspectos a fim de poderem capitalizar
aspectos positivos para a imagem da empresa.

Legais - Ao elaborar o planejamento, confira os aspectos da lei, pois ninguém na plena atividade da consciência quer burlá-la.

Veja na prática como proceder

Planejamento Estratégico. - Ao Elaborar os Planejamentos Estratégicos, leve em consideração aspectos relevantes, avalie e analise cada fato ou situação,
adequando-os a uma solução. Tenha em mente que o planejamento visa criar condições para que as organizações decidam rapidamente diante de oportunidade
e ameaças, otimizando as vantagens competitivas em relação ao ambiente concorrencial em que atuam. Para tanto, finalize o seu planejamento com um plano
de ação.

Pontos fortes e pontos fracos - Esta análise permite avaliação de forma realista e otimista e a capacidade ou a limitação da empresa ou produto serviços,
colaboradores.

Situações favoráveis e desfavoráveis - São buscadas no ambiente externo à organização, que eventualmente decidirá se uma dada informação ou situação tem
aspecto positivo ou negativo e atua-se em cima.

Ameaças e oportunidades - São as relações e junções ocorridas nos itens anteriores, ponto forte é situação favorável, é igual à oportunidade, e a ameaça
é o contrário. Aplica-se esta análise para todas as informações e situações.

Montagem de cenários - Deve ser realizada imaginando-se situações em que tudo o que se planeja dê certo, é como se todas as informações fossem suficientes
para realizar as previsões, as quais podem ser otimistas e pessimistas. É assim por dizer um jogo de combinações que consiste no maior número possível
de simulações. As primeiras são as combinações que buscam as oportunidades, das segundas podemos tirar as ameaças. De qualquer forma, o objetivo é estar
preparado com ações estratégicas para cada situação.

Na prática: monte o Cenário, da Empresa para o Cenário Global, que pode ser Econômico, Político, Social, Concorrência, simulando também outras variáveis.
Efetue a combinação das ameaças e oportunidades. Defina a postura da Empresa e ações corretivas ou orientativas.

Mas como fazer um Plano de Marketing?

Abaixo, uma prática simples e resumida para a elaboração de um plano de marketing.

Primeiro, discuta as estratégias básicas que orientarão o plano.

Depois, defina quais são os objetivos e propósitos do mesmo.

Estabeleça a missão e objetivos gerais, estratégias e políticas da Empresa e do Marketing.

Faca uma análise das situações.

Avalie oportunidade futura e a estrutura de marketing.

Escreva os Planos e os Subplanos que são os 4ps. Lembra? Vendas, distribuição e promoção...

Esboce o sumário executivo.

Comunique e implante o Plano e estabeleça um sistema de controle para o plano.

Revise e Atualize o Plano.

E agora: Roteiro para Plano de Marketing.

Genericamente, o Plano deve conter os seguintes itens:

Capa

Índice - Relação dos assuntos e onde encontrá-los.

Introdução - Aqui se demonstra de forma resumida a preparação e as razões para o Plano.

Resumo - Eventualmente, pode se fazer um resumo geral do plano.

Objetivos Gerais - Esclarecer de forma simples a definição do Plano, seus objetivos, propósitos e uso.

Sumário Executivo - Resumo dos principais pontos do plano.

Missão Corporativa, Objetivos Gerais e Estratégias Visadas - Defina o Negócio da Empresa, sua linha, filosofia, objetivos gerais, a ligação do plano com
a estratégia. Se possível, apresentar em gráficos ou quadros.

Análise da Situação - Suposições, Vendas (Históricos - Orçamentos), Mercados Estratégicos, produtos chaves, Áreas de vendas, Metas, Suposições econômicas,
sociais, tecnológicas, Potencialidade do mercado. Todos estes dados e outros mais que a empresa precisa e que foram identificados nas pesquisas realizadas,
quantitativamente e qualitativamente. Enfim, estes e outros dados acompanhados, na forma resumida de comentários e justificativas, ações e reações.

Oportunidade Futura - Cruze as informações dos produtos atuais e novos, oportunidades de negócio identificadas de acordo com os itens de influência.

A Estrutura do Marketing - Identifique de forma resumida a estrutura atual do marketing e quais sãos as suas necessidades.

Objetivos de Marketing, Estratégicos e Políticas - É a linha que vai nortear o caminho operacional.

Sub Plano - Distribuição - Ações a serem adotadas conforme canais de distribuição.

Sub Plano - Promoção de Vendas, Promoção, Concursos, Merchandising - Defina o público alvo, os objetivos, as promoções, tudo com o devido cronograma de
execução, acompanhados de custos e resultados esperados e justificados.

Sub Plano - Propaganda - Elabore os objetivos da propaganda de acordo com os objetivos de marketing a fim de persuadir os consumidores à compra de produtos
e serviços.

Sub Plano Vendas - Estabeleça o objetivo central de vendas por produto, cliente, região vendedor...

Sub Plano - Cálculo de Lucros e Perdas - Esboce aqui o custo total para a implementação do plano com os retornos e contribuição adicionais, lucros e perdas
justificativas dos gastos, entre muitos outros dados. O que importa é que sejam calculados as perdas e lucros, os quais podem ser acompanhados por planilhas
simples.

Conclusão e Tabelas - Efetua-se as considerações finais e pareceres, justificativas e as tabelas para as devidas implementações.

Quadros e Resumos. Apêndices - A fim de ilustrar um pouco mais o seu plano, é possível apresentar ao final alguns anexos de forma resumida que podem ser:
Previsão da margem de contribuição, Contribuição total do marketing em relação ao planejamento, Demonstrativos de lucros e perdas, por cliente, região,
vendedor, vendas mensais, lucros, participação e crescimento de mercado, orçamento global, pesquisa, entre outros.

O seu índice ficará mais ou menos assim. Alterei alguns nomes, abaixo, em relação ao que mencionei acima de propósito, para que perceba que, genericamente,
um plano tem alguns itens em comum, mas não precisa ser algo amarrado.

Sumário

1. Índice

2. Introdução
É possível incluir a apresentação e histórico da Empresa

3. Resumo

4. Análise da Situação

4.1 Suposições

4.2 Vendas Históricos - Orçamentos

4.3 Mercados Estratégicos

4.4 Produtos Chaves

4.5 Áreas-Chave de Vendas

5. Objetivos de Marketing

6. Estratégias de Marketing

7. Tabelas (De perguntas, o que, onde, como...).

8. Promoção de Vendas

9. Orçamentos

10. Cálculos de Lucros e perdas

11. Controles

12. Processo de Atualizações

13. Anexos

14. Referências de Apoio

Caso 9

A partir do ambiente interno da sua empresa ou de uma empresa conhecida, analise os pontos fortes e fracos. Destacando-os.

Caso 10

A seguir, busque no ambiente externo situações favoráveis e desfavoráveis que lhe permitam identificar as oportunidade e ameaças do setor em que a empresa
atua. Relacione-as.

Caso 11

Com base nos resultados da análise, elabore três cenários para a empresa, um otimista, um realista e um pessimista. Considere um plano de cinco anos.

Caso 12

Analise cada Cenário, levando em conta principalmente os aspectos de segmentação e demanda, potencial de mercado e previsão de vendas.

Caso 13

Prepare uma Introdução para o seu Plano.

Caso 14

Elabore um rascunho do resumo para o seu plano. Quando o Plano estiver completo, analise o resumo e se necessário modifique.

Caso 15

Faça uma lista das questões que irá incluir em seu Plano de Marketing.

Caso 16

Prepare a projeção de vendas para o seu Plano de Marketing

Caso 17

Prepare informações sobre os mercados estratégicos para o seu Plano de Marketing.

Caso 18

Prepare informações sobre os seus produtos chaves.

Caso 19

Faca uma lista dos objetivos chaves para o seu plano.

Caso 20

Elabore uma lista das estratégias chaves para o seu plano para cada um dos itens abaixo.

Produtos

Preço

Promoção

Distribuição

Consultoria de Marketing

Pelo universo de informações que apresentamos, talvez haja dúvidas com relação a como aplicar o marketing de resultados a sua empresa, produtos, serviços,
como eventualmente elaborar um plano de marketing.

A consultoria de marketing tem como objetivo dar apoio aos técnicos da empresa quanto às decisões de marketing a serem tomadas. Desta forma, os consultores
orientam e apontam os caminhos que a empresa deve seguir, participam de reuniões, efetuam diagnósticos, propõem ações para reverter os problema de marketing,
já o assessor acompanha o desenvolvimento das ações propostas pelos consultores.

Geralmente a consultoria é contratada quando a empresa julga mais vantajoso financeiramente do que treinar seus empregados nesta especialização.

Alguns motivos que levam a empresa a contratar são

Quando não há profissionais de marketing na empresa

Funcionários da empresa com sobrecarga de trabalho.

Falta de mão-de-obra para planejar.

Desvantagem financeira no investimento em treinamento do corpo técnico.

Terceirização de serviços além do objetivo da empresa.

Mas só contrate uma empresa de consultoria quando

Houver sobrecarga de trabalho na área da empresa como um todo.

Urgência na execução de um trabalho.

Insuficiência de conhecimento e experiência da equipe interna quando o trabalho exigir especializações regionais, nacionais ou internacionais em assuntos
específicos.

Houver disponibilidade de uma organização nacional com equipe treinada, cuja utilização é mais barata do que montar uma estrutura.

Quando o assunto a ser estudado for politicamente delicado e os resultados de trabalhos tiverem de ser usados como futuros argumentos de venda para um produto
ou serviço.

Como Selecionar a Consultoria

Refina-se com entidades e solicite que lhe apresentem propostas especificas.

Levantamento de cadastramento de entidades e consultores, solicitando informações sobre os mesmos. Cheque a idoneidade das entidades e de seus profissionais.

Avaliação de grau e prestigio profissional da entidade. Visite a entidade ou empresa a fim de buscar informações de como a consultoria desenvolve seus trabalhos,
peça para que indicar clientes que possam dar referências.

Contato Pessoal ou via telefone, internet, com empresas para avaliar os trabalhos realizados pela entidade consultora.

Selecione as propostas na base de preços e na forma como o problema e os objetivos do serviço foram compreendidos. Lembre-se de que nem sempre o menor preço
é a melhor opção.

A contratação tem como chave a transformação da proposta em itens de contrato. É importante que a empresa acompanhe o desenvolvimento da execução do trabalho,
solicitando relatórios em cada etapa finalizada e que efetue o controle de horários, custos e realizações.

Caso 20

A terceirização de serviços veio para ficar ou é moda?

Caso 21

Segundo os especialistas em administração, não se justifica a empresa manter determinados serviços entre as suas atribuições, com toda uma infra-estrutura,
muitas vezes cara, quando no mercado pode-se encontrar mão-de-obra especializada proporcionalmente mais barata e que pode ser contratada temporiamente.

Partindo dessa premissa, você, como profissional do marketing de resultados, acha interessante que as empresas, de modo geral, mantenham uma estrutura de
marketing ou é a favor da contratação de consultoria externa? Justifique sua resposta.

A eficácia do Marketing

Para que se alcance a eficácia do marketing é necessário que se conheçam algumas tendências mercadológicas. Sem a investigação e análise destas tendências,
será muito difícil alcançar resultados.

Mas através dos indicadores de desempenho mercadológico é possível buscar uma orientação adequada para as operações.

A pesquisa de opinião é uma destas ferramentas, tendo em vista que ela fornece informações reais sobre as ações de marketing no que diz respeito às decisões
tomadas pela empresa, as quais constumam fazer uso de um sistema que possibilita informar sobre a eficiência do marketing, que é o (SCM) Sistema de Controle
Mercadológico, que tem como características principais:

a) Entrada (interna e Externa) onde se inclui o padrão de desempenho de marketing que são os orçamentos de despesas, capital, pessoal, receitas, contribuição
ao lucro.

b) Meio que verifica divulgação do desempenho de marketing.

c) Saída que nada mais é do que as tomadas de decisões.

É claro que todas estas informações são brutas e precisam ser lapidadas e combinadas para que sirvam ao propósito da avaliação de desempenho. Temos como
indicadoras vendas atuais x vendas previstas, vendas por produto x quotas de vendas, visitas por dia, território, e todos os outros relatórios que auxiliaram
na tomada de ações corretivas...

Gerência de Produtos e Serviços

Sendo parte integrante do marketing, o gerente de produtos é o elo de ligação entre o planejamento estratégico e o dia-a-dia operacional da empresa. Dependendo
do número de produtos e serviços que esta empresa oferece ao mercado, ele é o responsável pela manutenção ou alteração, desenvolvimento, testes de novos
produtos e serviços, retirada de produtos e serviços que ficaram obsoletos no mercado. Caso contrário, é o gerente geral que administra os produtos e serviços.

Por regra, então, para se ter um gerente de produtos a empresa deve estar voltada para o mercado, admitir que todos os colaboradores trabalham para o cliente.
Assim, percebe-se que esta empresa deve ter o cliente como foco, embasando a sua administração em planejamento, crescimento e operação existente.

A empresa só tem a ganhar adotando este sistema, tendo em vista que todos os produtos e serviços estarão sempre em estudo. Por trabalhar com equipes interfuncionais,
adotando o sistema de times de produtos, percebe-se uma maior motivação nas operações do trabalho da equipe, os quais terão uma visão integrada do negócio,
desenvolvendo para o setor novos executivos.

O Gerente de Serviços tem como objetivo, além das funções já mencionadas, coordenar, desenvolver pesquisas e projetos, acompanhar todo o produto e serviços
em todos os seus momentos, definindo, por conhecer bem a área, as campanhas de propaganda e publicidade para evitar distorções. Enfim, ele deve manter
estreita relação com o marketing mix, já visto.

Caso 22

Um produto, desenvolvido rigorosamente de acordo com os padrões de marketing, foi lançado com absoluto sucesso no mercado. A apresentação ao público-alvo
teve uma resposta altamente positiva, uma vez que a procura pelo produto foi bastante animadora. Já nos primeiros meses atingia altos níveis de vendas
e uma alta penetração em seu setor de atuação.

Até que surgiu o primeiro grande concorrente, com estratégias arrojadas e comunicação inovadora. As vendas caíram, apesar de todos os esforços e investimentos
do pessoal de marketing da empresa.

Você, que busca no Marketing resultados para suas atividades como Gerente de Produtos, o que faria para manter o produto no mercado em níveis competitivos?
Explique porque.

Os Pilares para o Marketing

A gestão empresarial voltada para o Marketing de Resultados ocorre ao longo de uma série de operações, como comprar e vender, ou comprar, transformar e
vender, variável de negócio para negócio, atendendo sempre as necessidades do cliente.

De uma forma geral e aplicável a um extenso universo de tipos e ramos de negócios, tais funções se enquadram na seqüência:
Block quote start

Marketing
Pesquisa e desenvolvimento;
Suprimentos e manutenção;
Produção, transformação ou fabricação;
Vendas e distribuição;
Serviços aos clientes;
Apoio administrativo (RH, jurídico, finanças, contabilidade, etc).
Block quote end

A grade curricular das escolas de administração e uma infinidade de cursos extracurriculares dedicam-se ao esmiuçamento dessas funções em programas setoriais
e específicos para áreas tão variadas como controle de estoques, benefícios sociais, importação e exportação ou informática.

No entanto, essas funções cobrem apenas os aspectos operacionais das atividades de qualquer empresa - trabalhos técnicos desempenhados por diferentes pessoas
- e é fácil ver que a qualidade do desempenho dessas tarefas raramente deriva exclusivamente do conhecimento em profundidade de seus aspectos teóricos
ou práticos.

A excelência para o desempenho empresarial depende, antes de mais nada e visceralmente, da qualidade do desempenho das "funções gerenciais" que orientam
o tipo e a quantidade de esforço que será colocado em cada área operacional.

A concepção clássica da função gerencial é "Planejar, Organizar e Controlar" (POC) ou "Planejar, Organizar, Liderar e Controlar" (POLC) expresso em frases
e definições do tipo "gerenciar é obter resultados por meio de terceiros".

Tanto o conceito como o enunciado são incompletos e não esclarecem, com precisão, o escopo da função gerencial.

É evidente que o dirigente empresarial - diretor ou gerente - desempenha uma série de funções diferentes, ligadas ao planejamento, ao controle e à liderança
das atividades de terceiros. Daí o conceito de Planejar, Organizar e Controlar. Mas é evidente também que, antes de planejar, o dirigente empresarial precisa
obter dados e informações e tomar decisões sobre as situações que deve gerenciar.

Essas funções, relativas à investigação de olhar, ver e entender as diferentes situações (diagnosticar) e de posicionar-se diante delas (decidir) envolvem,
por sua natureza, habilidades e processos muito distintos daqueles exigidos na função de planejamento. Elas não podem, por isso, simplesmente ser subentendidas
na função de planejamento.

Também é claro que a maior parte do tempo dos dirigentes não é gasta em trabalhos de planejamento operacional e organização ou mobilização de recursos,
mas nas atividades de controle ativo dos acontecimentos internos (manter o rumo e evitar desvios), orientação e liderança de subordinados e ininterrupta
troca de informações (comunicação) com pares, superiores, subordinados e terceiros.

Assim, a perfeita compreensão do escopo das atividades ou funções gerenciais se inicia com a substituição do antigo conceito de planejar, organizar e controlar
por um conceito mais amplo e moderno que amplia e subdivide essas funções em sete atividades ou pilares seqüenciais:
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Orientação
Informação
Planejamento
Organização
Comunicação
Motivação
Liderança
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O que chamamos de orientação (ou orientação estratégica marketing de resultados) é a sinalização de destino e rumo da empresa. A orientação engloba tanto
os conceitos de visão, missão, credo e valores, muito em voga ao longo das últimas décadas, quanto os conceitos de objetivos e metas, intensamente explorados
nas décadas precedentes, além dos conceitos de "sonho" do pequeno empreendedor ou de qualquer gerente ou trabalhador.

O que chamamos de informação é a reunião de conhecimento, ou seja, o processo e os sistemas de captação de dados e informações, em todas as áreas, para
alimentar o processo de tomada de decisões e de gerenciamento de ações ao longo de todos os pilares que se seguem.

Planejamento é o desdobramento das decisões e da orientação estratégica em termos de ações operacionais, contendo a descrição dos caminhos, tarefas, meios
e prazos para a realização de objetivos, assim como os orçamentos, cronogramas e inerentes procedimentos e instrumentos de controle.

O que chamamos de organização é a mobilização de recursos (naturais, tecnológicos, humanos e físico-financeiros) para que o planejamento possa ser executado
com a máxima eficácia e eficiência.

O que chamamos de comunicação é a troca de informações e a coordenação interpessoal e interdepartamental, destinada a assegurar a fluência dos processos
que envolvem a participação de diferentes departamentos e pessoas, dentro e fora da empresa.

Motivação é o provimento de ações adequadas à obtenção de respostas positivas para a movimentação dos processos de conscientização, envolvimento e comprometimento
de toda a organização para as buscas vigorosas, persistentes e animadas de seus objetivos em todas as áreas.

Liderança é o acionamento, monitoração e controle de todos os processos desencadeados através de ações de comando, persuasão, negociação, educação e capacitação
contínua de todas as pessoas envolvidas.

Na verdade, a empresa providencia estímulos para a geração de motivação nas pessoas.

Intencionalmente ou não, todas as empresas gerenciam ao longo desses sete pilares.

A diferença entre elas repousa no nível de excelência com que essas funções são desempenhadas. Como está sua empresa? Faça sua própria avaliação através
das listas de verificação a seguir, anotando quão verdadeira é cada informação para sua realidade.

Lista de verificação para Orientação e Informação

1. Temos uma visão explícita de destino e rumo?

2. Essa visão foi desenvolvida tendo em vista o conhecimento e a análise do ambiente ao redor da empresa e as tendências futuras de negócios?

3. Essa visão é conhecida e compartilhada por todos na empresa?

4. Mantemos um sistema permanente de coleta e interpretação de dados para a revisão e atualização dessa visão de negócios?

5. Desenvolvemos um projeto estratégico capaz de transformar essa visão em realidade?

6. Esse projeto foi elaborado tendo em vista o conhecimento profundo da "cultura" de nossa organização? Ele capitaliza seus pontos fortes e contorna os
aspectos fracos?

7. Todos na empresa estão comprometidos com esse projeto e se guiam por ele?

Lista de Verificação para o Planejamento

1. Temos elaborado o planejamento de ações necessárias à realização de nossos objetivos estratégicos?

2. Esse projeto operacional foi desenvolvido com a participação dos diferentes níveis funcionais envolvidos em sua execução?

3. Ele está detalhado em atividades e tarefas a serem desempenhadas pelos envolvidos em sua implementação?

4. As responsabilidades executivas estão claramente distribuídas nos níveis de Patrocinador (principal responsável), Coordenadores (interdepartamentais),
Líderes (intradepartamentais) e Avalistas (pessoas ou áreas paralelas aos processos)?

5. Ele determina datas fatais para acionamento e conclusão de cada providência ou etapa, enfatizando a necessidade de redução dos ciclos de execução de
cada atividade?

6. Cada uma de suas etapas foi revista para a inclusão de medidas preventivas de desvios e contingências para correção?

7. Foram previstos mecanismos para a detecção imediata de desvios de desempenho logo em sua origem?

Lista de Verificação para a Organização/Mobilização de Recursos

1. Nossos funcionários, em todos os departamentos, têm uma visão clara de todos os processos de trabalho com que estão envolvidos?

2. As cadeias de fornecedores e clientes internos pelas quais esses processos fluem estão bem identificadas por cada um deles?

3. Nossa empresa está claramente estruturada ao redor de processos de trabalho, mais do que ao longo de departamentos funcionais, atuando como um verdadeiro
e único time?

4. A descrição de tarefas e responsabilidades, ao longo da estrutura, está feita de forma a se obter um sistema de coordenação de tarefas, em lugar de um
sistema de divisão de tarefas em compartimentos estanques?

5. As responsabilidades em todos os níveis foram definidas, tanto para a execução das tarefas compulsórias (pressionadas pelo ambiente), como para a execução
das tarefas autônomas (pressionadas pela iniciativa de cada um) de forma a tornar a organização adequadamente proativa?

6. Grupos de trabalho interfuncionais dedicados à melhoria constante dos processos de trabalho transdepartamentais asseguram a harmonia e a eficiência desses
processos?

7. Todas as iniciativas previstas na mobilização de recursos estão amparadas por orçamentos e propostas cuidadosas de fluxo de caixa?

Lista de Verificação para a Comunicação

1. Mantemos um sistema de comunicações internas estruturado de forma a promover uma constante e adequada troca de informações, ascendentes, descendentes
e horizontais?

2. Desenvolvemos procedimentos e comportamentos para reuniões de trabalho que asseguram clareza de objetivos e adequada administração do tempo?

3. Os comportamentos propostos para as reuniões estão internalizados em cada um, de forma a promover a eliminação das atmosferas críticas e assegurar o
aumento da empatia entre os membros do grupo?

4. Todos os funcionários foram treinados para desenvolver suas habilidades de relacionamento e negociação e os resultados estão sendo acompanhados e reforçados
continuamente?

5. Movimentamos um processo de vigilância ambiental permanente envolvendo todas as áreas da empresa, para a identificação contínua de oportunidades, ameaças
e problemas nos ambientes interno e externo?

6. Nossas atividades de solicitação de mercados (propaganda, promoção, etc) são pautadas pelo conhecimento apurado das demandas, necessidades e perspectivas
de nossos clientes ativos e potenciais?

7. Nossas atividades de vendas são comandadas por uma ótica de relacionamento de parceria de alto nível com nossos clientes e revendedores? Os vendedores
e todos aqueles que mantêm contatos com os clientes são continuamente treinados para a adoção de posturas e comportamentos adequados a esse fim?

Lista de Verificação para a Motivação

1. Dedicamos especial atenção à manutenção de um ambiente físico condigno e de uma política de salários e benefícios nivelada com os melhores padrões do
mercado?

2. Nossos funcionários recebem educação formal para enquadrar-se nessa proposta? Não esperamos que eles assim procedam espontaneamente? Nós os orientamos
e estimulamos para que façam isso?

3. São propostos objetivos e incentivos quanto à qualidade de desempenho individual e contribuição para os resultados do grupo; esses incentivos são adequadamente
promovidos entre os funcionários?

4. O enriquecimento do trabalho individual e de relacionamento de parcerias no trabalho é meta constante, suportada por avaliação sistemática de desempenho,
segundo quesitos prévia e plenamente conhecidos pelos funcionários?

5. A contribuição dos funcionários para os planos e decisões da empresa é estimulada e bem vista, recebendo sempre feedback adequado?

6. Garantimos a cada funcionário cobertura gerencial para suas necessidades de desempenho, crescimento pessoal e satisfação no trabalho?

Lista de Verificação para a Liderança

1. Nossos diretores e gerentes estão inequivocamente empenhados em fazer acontecer, assegurando que todos os nossos projetos sejam plenamente levados a
cabo?

2. Eles assumem sempre total responsabilidade pelas ações de seus subordinados, jamais atribuindo publicamente a qualquer um deles a culpa por erros, atrasos
ou omissões?

3. Em sua relação particular com cada subordinado, eles estão empenhados em sua orientação, treinamento e supervisão, tendo em vista a prevenção e a correção,
em tempo, de desvios de desempenho?

4. Como conseqüência dessa ação gerencial, todos os funcionários estão desenvolvendo sua capacitação e motivação em direção ao autocontrole e à autogestão?

5. Cada subordinado está sendo liderado por meio de comportamentos adequados ao seu nível de capacitação e motivação?

6. Todos os indivíduos e equipes trabalham com objetivos tangíveis mas desafiadores, capazes de estabelecer o nível adequado de tensão para melhoria contínua
de desempenho?

7. O ponto de maior destaque na pauta da liderança é a dinamização (aumento da velocidade com ganhos de qualidade) de todas as atividades da empresa?

Texto de Roberto Lira Miranda

Caso 24

Que Pilares você acrescentaria a estes?

Tendências do Marketing

Ainda e sempre em voga, o Marketing vem se desenvolvendo como uma ciência que tem como objetivo satisfazer as necessidades do consumidor. Para isto deve
estar voltado ao indivíduo que efetua suas aquisições, produtos e serviços, não pelo que elas são e sim pelo que proporcionam, a satisfação, o desejo,
o prazer, etc. Mas para isto a psicologia do consumidor, do entender o outro, deve estar em evidência, aliada à tecnologia da informação...

Encontramos em várias empresas pequenas, médias, grandes, o exemplo de marketing aplicado voltado à individualização. Métodos simples que sugerem um contato
intimo e permanente e que trazem resultados. Observe um local perto da sua casa, empresa, trabalho e com certeza encontrará alguém que implantou algumas
coisas simples e funcionais. A esta aplicação deu-se o nome de Maximarketing e Database Marketing. Com o apoio da informática, aliada ao desenvolvimento
constante de softwares e hardwares, obtemos a possibilidade de fragmentar os mais diversos segmentos e seus consumidores, compilando um número infinito
de informações, muitas vezes detalhadas de cada consumidor ou nicho. Estas informações, se bem trabalhadas pelo marketing, trazem resultados imediatos
e orientativos. Também porque, entre estas facilidades, colocou-se à mão dos consumidores armas para o contato direto, cliente x empresa, por exemplo os
0800, contatos telefônicos, e-mails, contatos utilizando-se da informática.

Este novo tipo de marketing também recebe outros nomes tais como, marketing de relações, marketing integrado, além dos dois já citados.

O objetivo principal das novas tendências é trabalhar para a clientização de massa, fazer com que o cliente torne-se fã dos nossos produtos, serviços, empresas
e colaboradores. Para isto surgiu mais uma forma do marketing que é o Marketing do Relacionamento, que evolui na mesma velocidade das informações e deve
estar imperando em todos os canais. Sem a pretensão de tapear, ele nada mais é que uma forma de estratégica de fazer negócios, pois o feed-back para aceitação
ou não passa a ser contínuo ao desenvolvimento e oportunidades que o mercado oferece e espera.

Em todas as suas variações e tendências vistas até agora podemos afirmar que marketing é uma questão de criar mercados e não somente participar. É no dialogo
constante com o mercado que se busca a qualidade que se espera do novo marketing. Mas para que ele dê certo não pode estar somente nas mãos do pessoal
de marketing. Deve permear toda a organização, nos mais variados setores, influenciando, pessoas, produtos, serviços e afetando resultados em um movimento
constante de ação e reação.

Onde produto deve ir de encontro ao cliente e suas vontades. O preço pelo custo da satisfação das necessidades. O ponto de venda pela conveniência na facilidade
de compra. E a promoção atrelada à comunicação para a era do relacionamento. Tudo isto para ainda lhe dizer: cuidado com o consumidor, respeite-o e o entenda.

Caso 25

Conforme apresentado anteriormente, há uma tendência mundial no sentido do marketing individualizado.

Essa tendência obriga as empresas a manterem um cadastro de cliente cada vez mais detalhado, de acordo com sua necessidade individual, de modo a atendê-lo
melhor.

Como atuante do marketing que busca resultados, relacione os itens que deveriam constar de um bom cadastro de informações. Justifique cada um.

"Conhecimento. Quanto mais dividirmos, mais ele se multiplica".

Carlos Andres J. Ganzelevitch Vargas

O Poder do Comprometimento

Enquanto não estivermos compromissados haverá sempre a hesitação e também a possibilidade de recuar à ineficácia. Em relação a todos os atos de iniciativa
e de criação, existe uma verdade elementar, cuja ignorância já matou um sem número de planos e idéias esplêndidas, de produtos, de serviços e pessoas.

No momento em que nos comprometemos a trabalhar para sermos diferentes, fazer um mundo diferente, começando por nós mesmos, a providência divina se põe
em movimento.

Todos os tipos de coisas, então, acontecem para nos ajudar, que, em outras circunstâncias, nunca teriam ocorrido.

Todo um fluir de acontecimentos surge ao nosso favor, como resultante do compromisso assumido. Todas as formas imprevistas de coincidências, encontros e
ajuda material, que nenhum homem sonha sequer poder existir.

Qualquer coisa que você desejar fazer ou sonhar é só ter a coragem para começar, o poder de fazer, e realizar esta em cada gesto do que você faz.

Esta coragem, este gesto, contém em si mesma o poder, o gênio e a magia.

(Goethe)

BIBLIOGRAFIA

1. HOUAISS, Antônio. Dicionário Prático da Língua Portuguesa, 1a. Edição - Editora Melhoramentos, 1975.

2. KOTLER, Philip. Administração/Marketing, 4a. Edição - Makro Books, 1994.

3. O'BRIEN, James A. Sistemas de Informação, 9a. Edição - Editora Saraiva, 2001.

4. WERNECK, Hamilton. Como Vencer na vida sendo professor, 3a. Edição - Editora Vozes, 1992.

5. WEIL e TOMPAKOW, Pierre e Roland. O Corpo Fala, 53a. Edição - Editora Vozes, 2001

6. COBRA, Marcos. Administração de Vendas, 4a. Edição - Atlas, 1994

O Profissional

Paulo Roberto Kroich Gomes, 20 anos de experiência em vendas como atendente, vendedor, Supervisor e Gerente de Vendas. Formado em Letras/Comunicação. É
Especialista em Marketing Empresarial pela FAE/PR; História e Filosofia da Ciência pelo IBPEX-PR; Magistério Superior pelo IBEPX-PR. Extensão: Utopia -
Administração do Futuro - Faculdade Bezerra de Menezes-PR. Mestrando em Comunicações Linguagem Verbal e não Verbal pela UTP-PR. Extensão: Planejamento
e Controle Financeiro (INPG-PR), Consultoria empresarial (UFSC-SC - em Curso), IGPN Empreendedorismo, entre muitos outros cursos.

Sendo especialista em comunicação interpessoal e pelos trabalhos desenvolvidos em diversas empresas de diversos ramos, tem como objetivo principal a utilização
das ferramentas da Gestão Empresarial e Comunicação para unir, através da linguagem, o homem, a ciência e seus serviços, criando o desenvolvimento contínuo
da sociedade, dos profissionais e produtos e serviços nela inseridos.

É autor do livro o Profissional do Atendimento do Século XXI - 2a. Edição. Editado pela Editora Juruá:

www.jurua.com.br

É dirigente da Vocare Consultoria Treinamento e Marketing com diversos clientes já atendidos os quais conferem a Vocare atestado de capacidade técnica,
pelo conhecimento da teoria e prática, aplicados em seus trabalhos obtendo como resultados soluções satisfatórias e mensuráveis realizando trabalhos de
treinamento em algumas instituições de ensino, e empresas e nossa nacionais, tais como SENAC e SEBRAE, entre outras.

Este livro de Marketing de Resultados é um material exclusivo. Foi desenvolvido pela Vocare para os participantes dos treinamentos dos Cursos da Vocare,
aulas, palestras, orientações na consultoria e assessoria ministradas pelo Consultor e professor Paulo Roberto. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida,
copiada, transcrita ou mesmo transmitida por meios eletrônicos ou gravações, sem a permissão, por escrito, do autor. Ela faz parte do livro do autor, da
apostila,
O Profissional do Atendimento do Século XXI,
editado pela Editora Jurua:
www.jurua.com.br
e do livro Ação e Reação, já pronto para ser encaminhado a uma editora que tiver interesse, e deste que coloco à disposição dos internautas e pessoas afins,
que é o Marketing de Resultados, além de muitas outras apostilas e trabalhos.

Os infratores serão punidos pela lei da cultura e autoria cuja Lei é a n°. 9.610/98, a qual protege os registros e direitos autorais.

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__________________
Julho 2003
Paixão Cigana
Marion Mckenna

Novela

Col. A COR DA PAIXÃO

Paixão Cigana (resumo da obra)

Quando Nicole Horton regressou a Shermontt depois da morte da mãe, pensou que o passado estava definitivamente enterrado. Que ninguém recordaria já o escândalo depois do qual se vira obrigada a abandonar a aldeia sete anos antes. Que nunca lhe chamariam, como antes, "a amante do cigano". Mas Nicole enganava-se. Alguém tinha esperado por ela dia após dia, mês após mês, ano após ano, ansioso por vingança. Alguém que a havia amado loucamente e que se sentira morrer quando ela rompera o pacto de amor eterno que, na juventude, ambos haviam selado ao luar.


- O que vês no meu futuro? Um marido rico e muitos filhos? - perguntou Nicole Horton à sua grande amiga Rita, fixando os melancólicos olhos azuis sobre as cartas que repousavam no grande rectângulo de tecido felpudo estendido no chão.
- Talvez num futuro longínquo, porque no futuro próximo...
- Alguma coisa horrível? Então não me digas. Acho que tenho medo de conhecer o destino.
- Pronto, então não te digo mais nada - obedeceu Rita, começando a ordenar o baralho.
- Não estava a falar a sério, continua a ler as cartas
- apressou-se a dizer Nicóle. - Afinal, como tu dizes, até o tarô se pode enganar.
- Sobretudo em mãos pouco experientes como as minhas - respondeu a jovem, entre risos.
- Mas és cigana, alguma coisa deves saber.
- Só de ouvir a minha avó. Às raparigas costumam ensinar esta arte quando fazem quinze anos.
- Falta-te pouco.
- Menos de dois meses.
- És tão nova - riu-se a rapariga.
- Pois sou, só quarenta dias mais nova que tu - retorquiu Rita, um pouco agastada.
- Não te aborreças - disse Nicole. - E diz-me o que anuncia esse horrível naipe sobre o meu futuro.
- É a torre, uma carta difícil. Haverá mudanças



drásticas na tua vida e tudo o que te dava segurança desaparecerá.
- E esta aqui?
- Essa é o presente.
- Gosto dos desenhos. O casalinho parece feliz.
- Os amantes. Terás um amante, Nic.
- Então diz-me como será ele - apressou-se a pedir a sonhadora Nicole, que passava os dias a ler romances de amor.
Rita retirou as cartas da mesa, juntou-as ao resto do baralho e voltou a baralhar com mão segura, colocando o monte em frente da amiga.
- Parte em três - indicou.
Nicole obedeceu. Rita pegou então nos três conjuntos, misturou-os novamente, distribuiu as cartas sobre o tapete verde e pediu a Nicole que lhe desse uma carta. Ao olhar a carta escolhida, os seus olhos brilharam.
- Rei de copas, querida, está muito bem.
- Não percebo.
- Terá dinheiro, será apaixonado e com cabelo escuro. Apegado à terra, paciente e sensual. E, cuidado, este rei é do mais rancoroso que existe.
- É como se o estivesse a ver. Só falta que me digas o nome - comentou Nicole, na brincadeira.
- Mais respeito, rapariga. Nunca tomes o destino de ânimo leve - respondeu a improvisada pitonisa.
- Obrigada. Gostei muito.
- Então agora tens de me pagar.
- Quanto?
- Algo simbólico, porque uma cigana que se preze deve sempre receber algo quando diz a sina, pois caso contrário perde os seus dons.
Nicole rebuscou nos bolsos, sabendo de antemão que não iria encontrar dinheiro.
- Tem de ser dinheiro? Posso dar-te uma prenda?
- Acho que sim. Nunca me ocorreu perguntar isso à avó Carmen.
Então a rapariga tirou um belo anel de prata com ametistas que trazia no anelar direito e deu-o a Rita.
- Sempre gostaste dele.
- Não, não posso aceitá-lo. É muito valioso e tu gostas dele.
- Fica-te bem e já há tempos que to queria dar.
Nicole agarrou na mão morena da amiga e pôs-lhe o anel. Os olhos da cigana brilharam por instantes.
- À noeterna amizade.
- Não duvides que será eterna - acrescentou Rita.
Entardecia, as aulas já haviam terminado há muito, mas elas tinham ficado no pátio a conversar.
Nenhuma das duas era bem-vinda no lar da outra, por isso costumavam reunir-se ali, debaixo de uma frondosa árvore, a árvore da memória eterna.
A recordação daquela tarde longínqua entristeceu Nicole. Desde então tinham passado sete terríveis anos e ela já não conservava nenhuma ilusão da adolescência passada.
Quem dera que a vida não a tivesse separado da sua querida amiga Rita e da sua terra.
Mas não voltava por um motivo alegre, e sim para



acompanhar o pai na sua dor. Havia dois dias que tinham enterrado a mãe que falecera após doença prolongada.
Agora que tinha partido para sempre, já não lhe guardava rancor, embora tivesse preferido não estar com ela nos seus últimos momentos. Para quê contar-Lhe quanto a tinha feito sofrer o homem com quem a mãe a obrigara a casar?
O comboio em que Nicole viajava atravessava velozmente campos e vales.
A paisagem era lindíssima, mas o coração da rapariga estava de luto e os seus pensamentos regressavam insistentemente ao passado, aquele passado em que fora tão feliz.
Também pensava no pai, nas dívidas que acumulara durante os últimos tempos, na situação desesperada em que se encontrava. Mark Horton, um rico herdeiro acostumado a não se privar de nada, não aguentaria passar a velhice na miséria.
Mas Nicole já lhe tinha dado o pouco que herdara do marido, e, a menos que a herança da sua mãe fosse suficiente, não sabia como havia de conseguir salvá-lo da pobreza.
O homem tinha-lhe confessado na sua última carta que se preparavam para vender a espectacular mansão onde ela tinha vivido quando pequena.
Como é que alguém tão inteligente como ele tinha chegado a tal situação?
Preferia não saber, mas suspeitava que o jogo e as mulheres tinham sido a perdição de Mark Horton.
Nicole tornou a recordar a tarde em que a sua amiga Rita lhe tinha deitado as cartas.
As duas jovens conheciam-se desde a infância. Sempre tinham gostado muito uma da outra, embora as respectivas famílias não consentissem aquela amizade.
Aparentemente eram diferentes uma da outra como o dia da noite, mas tinham algo em comum, algo impossível de descrever por palavras, uma certa qualidade espiritual que as colocava mais perto dos anjos do que dos seres humanos.
Nicole era descendente de ingleses. Loira, esbelta, e delicada, os seus pais asseguravam que ela tinha sangue nobre nas veias e queriam que ela se desse com pessoas da alta sociedade.
A origem de Rita era muito diferente. Tinha algo de árabe e muito de andaluza. Os seus antepassados tinham percorrido de carroça toda a Europa, mas os seus pais, mais modernos, tinham-se radicado na América.
No entanto, continuavam a ser ciganos. Viviam num grande casarão sem móveis, adornado unicamente com caros tapetes persas. Dormiam em colchões e sentavam-se em almofadas de seda coloridas.
Usavam roupas típicas e preferiam ter pouco contacto com pessoas que não pertenciam à sua comunidade. Mas tinham mandado os seis filhos para a escola, a fim de aprenderem a ler e a escrever.
Os dois menores, Rita e Adén, eram inteligentíssimos. Rita destacava-se mais, provavelmente por ser extrovertida. Pelo contrário, Adén, era calado e solitário. Sofria em silêncio o facto de ser diferente dos outros.
Durante os seus anos de estudante estivera sempre na defensiva. Provavelmente por isso nunca era convidado para as festas dos seus companheiros.
Rita tinha orgulho neste irmão que era quase dez
anos mais velho do que ela e que a tratava como se fosse um tesouro.
Matarei qualquer um que se meta contigo dissera ele quando ela fizera doze anos.
No dia seguinte, Rita, chorosa, contara isto a
Nicole, pois receava que o temperamento do seu irmão afastasse todos os pretendentes.
Talvez tenha sido nesse momento que Nicole se
começou a interessar por ele. Ela não tinha irmãos e sentia a falta de quem a protegesse.
- Sei tomar conta de mim, Adén. Talvez um dia
destes me convidem a ir ao cinema, como fazem todas as raparigas - tinha-lhe dito Rita nessa ocasião.
- Tu não te juntarás a nenhum deles porque és cigana, minha irmã. Sabes muito bem que um dia destes te apresentarão a um dos nossos para que cases - tinha sido a resposta firme do jovem.
Quanto tinha custado a Rita convencer os seus de que o seu destino era outro? Nicole supunha que muitíssimo. No entanto, a rapariga tivera mais sorte do que ela, pois conseguira chegar à universidade, fizera-se médica e vivia em Nova Iorque.
Adén, por seu lado, tinha ficado na aldeia. Fizera fortuna instalando várias casas de jogo nos arredores
de Shermont e continuava solteiro.
Claro que nunca tinha contado isto ao pai, que se
recusava a mencionar o nome do homem que, erradamente, ele pensava ter desonrado a sua filha.
Foi uma antiga vizinha que casualmente encontrou no Canadá quem lhe revelou quanto se havia modificado o tímido Adén desde que ela desaparecera da sua vida.
Agora está rico e altivo, tinham sido as palavras de Beverly Summers. Mandou construir uma casa que parece um castelo nos arredores da aldeia e, segundo contam, vive ali com um harém de ciganas e uma avó velha que trouxe de Espanha: Em Shermont todos têm medo dele e eu não queria tê-lo por inimigo.
Nicole esperava que Adén não lhe guardasse rancor, embora suspeitasse que isso era quase impossível: Ansiava encontrá-lo e contar-lhe a razão por que o tinha deixado.
- Shermont. Vamos parar dentro de cinco minutos - gritou o guarda.
Nicole olhou pela janela à procura do pai.
Era evidente que o senhor Horton não estava à espera dela. Nicole ficou hesitante, não sabendo se devia esperar ali algum tempo ou dirigir-se directamente a casa. Teria ele recebido o seu telegrama? Ou o bom homem pensava que ela vinha no comboio da noite?
- Boa tarde, menina. Precisa de alojamento? - perguntou-lhe uma velhota muito mal vestida.
- Não, obrigada, tenho casa aqui.
- Pois não me recordo de si. Como se chama?
- Nicole Horton.
- A filha da falecida. Então, seja bem-vinda - disse-Lhe a desagradável velha, com uma expressão malévola no seu estranho rosto.
- Obrigada - respondeu a rapariga, agarrando nas
malas e começando a andar, dirigindo-se para o quiosque de lotaria onde, com certeza, o velho Jack estaria a vender os escassos dez bilhetes que os habitantes de Shermont lhe compravam todos os meses.
Enquanto caminhava, Nicole apercebeu-se de que
a velha cantarolava num idioma estranho.
Finalmente chegou ao quiosque, mas em vez de encontrar Jack viu um bilhete que dizia: Venda de lotaria das 12 às 18 horas,
As ruas pareciam desertas e não havia ninguém nas redondezas. A sua única alternativa era ir a pé ! embora tivesse um longo caminho a percorrer.
Recordou a última vez em que tinha estado naquela estação. Tinha quinze anos e estava sob o efeito de narcóticos. Para a poder levar sem resistência para um internato, a mãe pusera-lhe na comida comprimidos para dormir.
Recordava vagamente ter chegado de automóvel e de caminhar apoiada no pai.
- O miserável não te terá engravidado - insistia a mãe, uma e outra vez.
- Já te contei tudo o que se passou entre nós. Não chegámos a nada, mamã. Deixa-me em paz!
- Eu não vou ter paz, Nicole. Enganaste-me e manchaste o bom nome da família. Misturaste-te com quem não te merece.
- Chega! Cala-te!
- Daqui a pouco já ficas longe de mim e não terás que suportar os meus comentários. Ficarás só a ouvir a voz da tua consciência.
- Que sabes tu da minha consciência?
- Sei muito, porque sou tua mãe.
- Então devias saber que amo o Adén e que mais cedo ou mais tarde vou casar com ele.
- Não me faças rir - dissera a mãe.
- Ris do amor porque nunca o conheceste, mãe.
- Como podes estar tão certa disso?
- Alguém que pensa desta forma nunca poderá ter-se entregado completamente a outra pessoa.
E foram assim a discutir durante as dez horas de viagem. O senhor Horton calava-se, como sempre fazia junto à mulher.
Passados poucos dias, Nicole ingressava num chamado colégio de meninas, que parecia mais uma prisão do que um colégio.
Um ano mais tarde, a mãe deu-Lhe a opção de se casar com Raymond Evans, um amigo da família com mais trinta anos do que ela, dono de uma cadeia de hotéis.
- Estás marcada, Nicole - dissera-lhe a mãe para a convencer. - Esta é a oportunidade de te casares como uma mulher decente e viver como uma rainha. O homem é rico, generoso e gentil. Estou certa de que te fará feliz.
A princípio, Nicole recusou, mas Raymond foi
visitá-la ao colégio e fez-lhe uma proposta.
Tinha o cabelo grisalho e olhos azuis, belos e frios.
- A tua mãe disse-te que desejo casar contigo?
- Sim.
- E tu que achas?
- Eu acho que sou muito nova para me casar.
- Mas já tiveste noivo - disse o homem, pronunciando a palavra noivo com uma entoação ofensiva.
- Isso foi no ano passado.
- Continuas a gostar dele?
- Prefiro não responder.
- Porque se estás apaixonada por ele podemos fazer uma combinação.
- Uma combinação?
- Casas comigo e continuas a vê-lo.
- Não percebo.
- É simples, minha querida. Na prática não poderei ser teu marido. Entendes? Sabes a que me refiro?
- Acho que sim - respondeu ela.
- Há uns anos tive um acidente que me deixou incapacitado como homem.
- Então para que quer casar comigo - perguntou Nicole.
- Sou uma pessoa pública e até ao momento consegui ocultar a minha condição, mas já se começam a ouvir rumores. Não quero que as pessoas saibam da minha incapacidade. E uma jovem bela como tu ajudar-me-ia a ganhar o respeito de todos.
- Mas não posso casar com alguém que não conheço, alguém que não amo - protestara ela.
- Podes, sim. Quando fizeres dezoito anos divorciamo-nos e poderás casar com esse rapazito que tanto amas. Entretanto, poderás encontrar-te com ele sempre que quiseres desde que sejas discreta. É melhor que aceites, de outra forma ficarás aqui fechada durante três anos, até à maioridade, e quando saíres já ele te terá esquecido.
- Preciso de pensar nisso.
- Daqui a quinze dias quero uma resposta.
Ela, ingenuamente, aceitara. Tinha querido falar antes com Adén, pedir-Lhe a opinião. Mas sabia que Lhe interceptavam as cartas, pois nunca tivera resposta às missivas que lhe enviara ao longo daqueles meses.
Raymond prometera-lhe que, assim que casassem, viajariam juntos até Shermont e a deixaria entrar em contacto com Adén. Ela explicar-Lhe-ia a situação e haviam de conseguir encontrar-se, embora o casal passasse a maior parte do tempo no Canadá. Mas tudo fora um vil engano. Após a cerimónia, Raymond levara-a para o seu país e nem sequer a deixara visitar os pais.
Na realidade, mantinha-a fechada, permanentemente vigiada por uma empregada.
A princípio, Nicole pensara que conseguiria divorciar-se facilmente ao atingir a maioridade.
Mas a primeira vez que o insinuou, o marido agrediu-a com força até a deixar quase inconsciente.
Não era a primeira vez que a maltratava nem seria a única.
- Terás que me matar para te livrares de mim, maldita - dissera-lhe ele. - Ou então, morrer, para poderes sair desta casa. Comprei-te e agora pertences-me.
- Podes ter comprado um casamento, mas não me compraste a mim. Nunca gostarei de ti. Amava Adén mas nunca me deitei com ele - defendera-se a frágil rapariga, enquanto se esquivava dos golpes.
- Pois não é isso que consta, mas nem sequer me vou dar ao trabalho de verificar, já que não o posso fazer eu mesmo.
- Juro-te.
- Pois então, pior para ti, pois vais continuar virgem durante muito tempo.
Nicole lembrara-se de pedir ajuda ao pai, mas receava que Raymond fosse capaz de cometer algum crime violento. Confiar na mãe era inútil, pois a senhora Horton venerava o genro e não iria acreditar em nada de negativo sobre ele.
Também não podia contar com Adén, que nessa altura devia pensar que ela o tinha abandonado e traído. Portanto, aos dezasseis anos, Nicole teve de aceitar o facto de estar só, longe da sua casa e à mercê de um desequilibrado.
Lamentavelmente Rita dissera a verdade ao ler-lhe
a sina, pois tudo o que lhe dava segurança tinha desaparecido da sua vida.
O pior já passou pensava agora Nicole, à medida que se aproximava do seu antigo lar.
Com vinte e dois anos sentia-se uma velha. Cansada de carregar as malas e os seus pensamentos, deteve-se depois de ter percorrido seis ruas. Então um automóvel travou ao seu lado e um rapaz desenvolto convidou-a a entrar com delicadeza.
- Desculpa, queres que te ajude? Essa bagagem é muito pesada para ti. Entra que eu levo-te.
- És muito amável, mas já falta pouco - agradeceu a rapariga com um sorriso forçado.
- Se é isso que te preocupa, comportar-me-ei como um cavalheiro.
- Não tenho dúvidas sobre isso.
- Espera. és Nicole Horton, não é verdade?
- Sou. Conheço-te?
- Claro. Sou Jimmy Evans, fomos colegas no preparatório. Os meus pêsames pela tua mãe.
- Obrigada. Estás muito mudado, Jimmy. Tinhas o cabelo mais claro e...
- E era muito mais gordo, não é verdade?
- Bem, a mudança favorece-te - reconheceu a rapariga, delicadamente.
- Agora que já sabes quem sou, deixas que te leve a casa?
- Claro, e confesso que é um alívio. O que aconteceu? Porque é que as ruas estão tão desertas?
- Já te vais inteirar das mudanças que houve desde
que partiste. É verdade que estás casada?
- Enviuvei há seis meses.
- Lamento.
Nicole teve de se conter para não confessar que
enviuvar fora o melhor que lhe acontecera desde o casamento, embora tivesse sido horrível ocupar-se do seu terrível marido durante a prolongada doença.
Ela tinha tratado dele com dedicação sem, contudo, ter alguma vez sentido o reconhecimento dele.
Talvez Raymond pensasse que ela estava à espera da herança. Mas Nicole sabia perfeitamente que o marido tinha feito testamento a favor da sua única irmã, deixando-lhe apenas uma pequena propriedade em muito mau estado.
No mesmo dia em que Raymond morrera, a irmã pedira-lhe para abandonar a casa, pois já tinha comprador para ela.
Nada deixou mais feliz a jovem do que sair daquela casa. Telefonou ao pai, que se mostrou de acordo em que ela regressasse à casa familiar e lhe fizesse companhia depois da morte de Betty Horton.
- É aqui, não é - perguntou Jimmy, parando o carro em frente da mansão dos Horton.
- Foste muito amável em me trazer, Jimmy. Não te convido a entrar, pois nem sequer sei se o meu pai está em casa, mas não faltará oportunidade.
- Será um prazer - assegurou Jimmy, galante.
Nicole tocou à porta com timidez. Esperou quase dez minutos e depois insistiu com determinação. Alguém começou a praguejar. Nicole tremia.
- Quem é - perguntou finalmente um homem,
que pronunciava as palavras com dificuldade.
- Sou eu, a Nicole.
Passado pouco tempo a porta abriu-se. Então Nicole pode ver o pai, que, com dificuldade, passava a mão pelo cabelo.
- Por que não avisaste que vinhas?
- Enviei um telegrama ontem à tarde. Julguei que o tinhas recebido.
O homem fez um esforço de concentração. Muita gente tentara contactar com ele durante os últimos dias mas ele não atendera ninguém.
Após o enterro encerrara-se no grande casarão com várias garrafas de uísque, disposto a brindar ao espírito da falecida até perder a noção do tempo.
Mark Horton não tinha sido particularmente feliz ao lado da mulher, mas sabia que nenhuma outra teria suportado as suas ausências e infidelidades como a orgulhosa Betty.
Ocupava-se muito de Nicole e, sendo uma mãe severa, desejava o melhor para a jovem, embora ele pensasse que ela se tinha equivocado ao casá-la com um homem velho que vivia tão longe de Shermont.
Nunca concordara com tal união, mas Betty era quem tomava todas as decisões que diziam respeito à filha. Provavelmente o facto de a ter encontrado na cama com o cigano fora uma coisa tão terrível que só passara quando a vira vestida de branco frente ao altar. As poucas vezes que tinham viajado ao Canadá para a visitar tinham notado que a rapariga estava
demasiado calada, provavelmente ressentida com a mãe e também com ele.
E agora, depois de tanto tempo, Nicole estava outra vez em Shermont.
- Entra. Vais encontrar tudo numa desordem mas cá nos arranjaremos - disse Mark com um gesto afectuoso.
- Não te preocupes, papá. É natural que não tenhas tido disposição para tratar das coisas.
No entanto, e apesar destas palavras, Nicole tentou ocultar a impressão que Lhe tinha causado o aspecto deteriorado da casa e do seu próprio pai.
A casa estava na penumbra e o pó tinha-se acumulado sobre os majestosos móveis de cedro e as teias de aranha abundavam em todos os cantos.
Dezenas de copos sujos amontoavam-se sobre a mesa do bar e algumas garrafas vazias davam conta do novo hábito do seu pai.
- Despediste todos os empregados?
- Eles é que se despediram, Nikki. Há mais de três meses que eu não lhes pagava.
- A mamã tinha a sua própria conta bancária. Esse dinheiro chega para pagar a hipoteca da casa?
- Esse dinheiro agora é teu e mesmo que o usássemos para pagar a hipoteca não chegaria.
- A dívida é assim tão grande?
O senhor Horton não respondeu. Limitou-se a encolher os ombros.
Nicole não disse nada. Agarrou nas suas coisas e começou a subir as escadas rumo ao quarto.
Ali tudo se encontrava como ela tinha deixado. Quando abriu a porta do roupeiro, os olhos encheram-se de lágrimas, pois lá estava o vestido de festa que tinha usado na noite dos seus quinze anos, quando se apaixonara por Adén.
Deixou a porta do roupeiro aberta e recostou-se na cama, começando a recordar o que tinha acontecido na semana anterior a essa festa.
A sua falta de interesse para a realizar, quão difícil fora fazer com que a Rita fosse, e, finalmente, a paixão entre ela e o rebelde e terno Adén.
Aquele Adén que certamente já não era o mesmo. Aquele Adén que tanto a amara.
- Onde estiveste, Nicole - perguntara a senhora Horton à filha sete anos antes, quando a vira entrar em casa em bicos dos pés.
- Por aí, mãe - respondera Nicole com o seu habitual tom de voz doce.
- Outra vez com más companhias! Pedi-te para chegares cedo. Tens de me ajudar com os convites para a tua festa, filha.
Nicole suspirou. A mãe insistira em lhe organizar uma festa de quinze anos, digna de uma princesa.
Mas escrever à mão, um a um, os cem convites era o cúmulo: A menina Horton tem o prazer de convidar para a sua apresentação em sociedade, a realizar no dia dez de Junho às nove horas, na mansão Horton. Agradece-se a confirmação da sua presença.
- Tenho trabalhos de casa para fazer.
- Pois vais fazê-los mais tarde, agora é preciso acabar os quarenta convites que faltam, caso contrário não vão chegar a tempo.
- Onde vamos alojar os familiares, mamã?
- Bem, arranjaremos lugar nos quartos de hóspedes. Ou, se for preciso, alugamos quartos no hotel.
- Isso vai ficar numa fortuna.
- É para teu bem. Uma menina da sociedade deve ser apresentada aos quinze anos. O jornal até vai publicar a tua fotografia.
- Isso também custa muito dinheiro.
- Não te preocupes tanto, querida. Na tua idade só deverias pensar em vestidos e não em dinheiro.
- Vou tentar.
- Precisamos de falar de outra coisa.
- Estou a ouvir.
- Sei que desejas que todas as tuas companheira estejam presentes, mas eu preferia que a Rita ficasse em casa.
- Já falámos sobre isso, mamã. Eu quero que a Rita esteja comigo.
- E se vem vestida de cigana? Que vergonha!
- Não vem.
- Tens a certeza?
- Absoluta.
- Espero não me arrepender por te dar autorização para a convidares.
- Tem calma, mamã - foram as palavras de Nicole enquanto beijava a senhora Horton.
- Está bem, mas trata dos convites. Vou à cozinha para tratarem do jantar do teu pai.
- Ele vem comer?
- Com ele nunca se sabe, mas espero que sim.
O senhor Horton dedicava-se ao comércio, mas ninguém sabia ao certo que tipo de produtos ele comprava e vendia. Na verdade a sua ocupação era fazer de herdeiro. Tinha recebido seis propriedades do pai e era com as rendas que sustentava a família.
As duas famílias, para ser mais exacto, pois aquele cavalheiro tivera há cerca de oito anos um filho da sua amante.
Nicole não conhecia esta faceta do pai, e a senhora Horton, se a conhecia, nunca o dera a entender.
Entretanto, o senhor Horton dividia-se entre os dois lares, já que tanto a sua esposa legítima como a sua amante o tratavam como um grande senhor.
A única pessoa do mundo em relação à qual tinha uma atitude diferente era com Nicole. Por ela era capaz de qualquer sacrifício. Amava-a e desejava vê-la feliz. A festa de anos, por exemplo, seria feita à custa de uma das propriedades mais pequenas.
O seu administrador opusera-se à venda, mas como as outras casas já estavam hipotecadas, o banco recusara-se a fazer novo empréstimo.
- Ao menos, com o produto desta venda, resgata uma das hipotecas, Mark - aconselhara-Lhe Furks, o administrador.
- Metade da venda será para gastos familiares e a
outra metade para uma eventualidade.
- Sabes muito bem que daqui a três meses não te
restará nada. Que farás então? Vais continuar a vender tudo o que tens?
- Não, não vou.
Durante uns tempos Mark cumpriu a sua palavra.
Até que uma casa de jogo se instalou em
Shermont, três anos depois do casamento de Nicole. Foi a perdição daquele homem que deixou nas
mesas de póquer o pouco que lhe restava da herança familiar.
O resultado foi desastroso.
A mulher ficou doente do coração e morreu
passados sete meses.
E ele, ao querer recuperar a hipoteca pagando em
dinheiro parte da dívida, ficou a saber que alguém já a tinha adquirido para lhe ficar com a casa.
Essa pessoa era o dono do casino, o maldito cigano que tinha dado cabo da vida da filha.
Para que quereria ele a casa?
Tudo se podia esperar daquele monstro, e Mark Horton maldisse o momento em que esse homem pisara pela primeira vez o chão da sua casa e seduzira Nicole, na noite de apresentação à sociedade.
Ele e a irmã nunca deveriam ter cruzado a porta da mansão Horton.
Mas o dano estava feito e o homem, para afogar as
mágoas, voltou a servir-se de um copo de uísque que bebeu de um só trago.

- Tens de me deixar ir - implorara a pequena Rita ao pai, com o rosto banhado em lágrimas, dois dias antes da festa em casa dos Horton.
- É para teu bem, Rita, prefiro que não te mistures com eles.
- Então por que me mandaste para a escola? Diz-me, pai. Foi porque querias uma vida melhor para nós. E agora que estou prestes a ser aceite pelas pessoas da minha idade, tu atravessas-te no meu caminho. Queres que viva ressentida com as pessoas, como Adén?
O pai de Rita era severo e autoritário, mas também sabia reconhecer quando alguém dizia a verdade.
- És capaz de ter alguma razão.
- Eu prefiro agradar-te, pai - apressou-se a dizer ita, com meiguice. - Mas fica a saber que ficarei cheia de pena por não ir à festa da minha amiga. Vocês não gostam dela porque não a conhecem o suficiente.
- Não gosto que te mistures com esses novos ricos com pretensões a nobres - disse o homem. - Mas está bem, podes ir, mas com duas condições.
- Quais são?
- Uma é que vás de trança e não te maquilhes.
- Mas, pai.
- Não há mas. Rita. Não quero que andes a provocar os homens.
- E qual é a segunda condição?
- Levas o Adén, que tomará conta de ti.
- Sabes bem que o Adén detesta festas. Nem sequer
me vai deixar falar com os meus companheiros.
- Melhor. Estará morto por se vir embora e não te perderá de vista durante toda a noite.
- Primeiro tenho de perguntar a Nicole se posso levar mais um convidado.
- Então pergunta, que eu depois falo com o teu irmão.
- Ao menos diz-lhe que me deixe dançar umas vezes. Senão fico sentada à mesa como uma estátua.
- Eu digo-lhe.
- Obrigada, pai.
- Espero que saibas comportar-te e que não me venha a arrepender desta decisão.
- Prometo, pai.
E foi assim que no sábado, às nove em ponto, uma adolescente e um homem de pele morena tocaram à porta dos Horton.
Eram Rita e Adén. Ambos irreconhecíveis, segundo as pessoas presentes.
Elegantíssimos, com aquele andar orgulhoso que os distinguia, o cabelo brilhante e ambos de azul.
Belos como a noite, diria Nicole depois na escola.
As duas pessoas mais belas que já conheci. "
Nicole Horton havia sempre de recordar a noite dos seus quinze anos como o momento em que tinha dito adeus à meninice.
Para ser mais preciso poderia dizer-se que este adeus foi dado quando foi receber a sua amiga Rita e deparou com o olhar de Adén.
- Feliz aniversário, menina Horton - dissera ele estendendo-lhe a mão em vez de a beijar, como os restantes homens presentes na festa.
- Obrigada, Adén. Há muito tempo que não nos víamos.
- A terra é pequena, mas às vezes as pessoas não se encontram - respondera ele com voz séria.
- Pois é. De qualquer forma, a Rita fala muito de ti.
- Espero que diga coisas boas.
- Diz que és um maravilhoso desportista - comentou Nicole, com medo de parecer tonta diante daquele homem mais velho que ela.
- A minha irmã exagera.
E, arrogante, desviou a vista de Nicole, dando por terminada a conversa.
No entanto, aquela rapariga não lhe tinha sido indiferente, bem pelo contrário.
Nicole parecera-lhe extremamente bela. Era delicada como uma boneca de porcelana e ao mesmo tempo muito sensual, com aquele vestido decotado que deixava entrever os seios pequenos.
Então Adén lembrou-se de Judie, a rapariga com quem se encontrava todos os domingos para desafogar os seus desordenados instintos masculinos. As pernas de Judie eram grossas e os seios, generosos. Quando a tinha nua nos seus braços, queria sempre ocultar o rosto nesses seios, mas Judie deixava bem claro que lhe cobraria o dobro para satisfazer
esse capricho.
Nicole, pelo contrário, era mais inglesa que o chá. A adén ela fazia lembrar as mulheres que habitualmente o excitavam. Entretanto, Nicole não levara a mal a reserva daquele atraente convidado. Sabia por Rita que Adén era extremamente tímido com as mulheres. Só de o olhar de soslaio, Nicole sentia o sangue aflorar-lhe ao rosto.
A boca de Adén era muito sensual e foi essa boca o que mais encantou Nicole. Voltou a olhá-lo e encontrou fogo nesses olhos. Não pôde evitar desviar a vista até à boca dele, enquanto, inconscientemente, passava a língua pelos lábios.
Nessa noite não houve beijos nem carícias. E talvez não tivesse chegado a haver nada entre eles se os seus corpos não tivessem entrado em contacto durante a dança. A culpada tinha sido Rita, que os obrigara a dançar flamenco, enquanto os convidados batiam palmas à volta dos dois. No entanto, naquela noite, Nicole ainda ignorava as provações que teria de passar antes de se unir àquele homem.
Tudo acontecera muito rapidamente. Depois de terem dançado outros ritmos durante grande parte da festa, um dos convidados tinha proposto dançarem o flamenco.
Rita entusiasmou-se e comentou que o irmão era um grande dançarino.
Ninguém sabia que Nicole gostava de flamenco E costumava praticar sozinha no seu quarto, em frente ao espelho. Mas nunca tinha dançado em público, nem com um cigano por par.
Por isso, quando as amigas a empurraram para a pista e a deixaram frente ao seu companheiro de dança, esteve a ponto de começar a chorar.
Ele, apercebendo-se da situação, agarrara-lhe na
mão e dissera-lhe:
- Calma, que vamos mostrar-lhes que somos o melhor par que há nesta festa.
E ela tinha-se deixado guiar por ele, fascinada pela
harmonia que se ia criando entre eles.
Talvez por isso a timidez transformou-se em audácia e começou a dançar como se estivesse em transe.
Só tinha olhos para Adén, para o seu corpo moreno que se agitava como uma chama cada vez mais ardente. Então soube que seria daquele homem. Ambos o souberam.
e Ninguém se deu bem conta disto, excepto Rita que
recordou com uma mistura de alegria e pânico o rei de copas que saíra à sua amiga no tarô: um Moreno, sensual, apegado à terra e rancoroso.
Mas então porque é que o tarô anunciara que Nicole
se encontraria com a Torre? Qual era a dolorosa
separação que aguardava a amiga?
Rita pensou em voltar a consultar os naipes quando chegasse a casa, mas por medo não o fez e só voltou a pegar nelas muitos meses depois, quando o dano já estava feito.
Quando os amantes foram obrigados a dizer adeus.

Era um domingo esplêndido e cheio de sol. A menina Horton, supostamente descendente de nobres ingleses, vestia uns calções e tinha o cabelo apanhado atrás, pois a tarefa de pôr em ordem aquela enorme casa não podia ser levada a cabo vestida de cerimónia.
O trabalho árduo pusera-a de bom humor e cantarolava uma melodia da infância, ao mesmo tempo que colocava sobre uma mesa um monte de pratos que tinha acabado de lavar.
O pai saíra cedo e ainda não regressara. Mas ela não estava preocupada, pois conhecia bem os hábitos erráticos de seu pai.
Muito cedo fora à missa, tentando passar despercebida. Provavelmente, jimmy Evans já tinha posto a correr a notícia da sua chegada, pois, à saída da igreja, muitos dos seus antigos companheiros aproximaram-se para lhe dar as condolências, e inclusivamente as mulheres mais velhas que tinham conhecido e respeitado a sua mãe abraçaram-na, dando-lhe as boas-vindas.
- Estás muito bem - fora o comentário da senhora Sheridan, sua antiga professora.
- Obrigada, professora Sheridan.
- Pois agora que és uma mulher viúva, soa mal que me trates por professora. Basta dizeres senhora Sheridan.
- Obrigada, senhora Sheridan. Nos últimos meses não tenho ouvido muitas palavras bondosas.
- Os homens são cegos no Canadá?
- Conheci muito poucos - disse Nicole, rindo-se.
- Pois se não soubesse como és tímida, não acreditaria nisso. Assim os jovens de Shermont vão agradecer a pouca audácia dos canadianos. Se ficares aqui uma temporada, garanto-te que acabas casada com um dos rapazes cá da terra.
Nicole corou. Talvez a velha professora ignorasse que ela tinha sido a amante do cigano, Pelo menos, a mãe contara-lhe que aquele era o comentário que tinha corrido.
- Nunca percebi por que te mandaram para um colégio tão longe de casa - continuou a senhora Sheridan. - Alguns diziam que tinhas ficado noiva de ádén Shamir, mas. que mal pode haver nisso?
- Pensei que todos me condenavam - disse Nicole.
- Condenar-te? Fica a saber que nunca ninguém te condenou por esse amor. Talvez se hoje fosses a mulher de Adén te condenassem porque esse rapaz transformou-se num demónio. Trouxe o vício para este lugar e a maior parte das pessoas detesta-o por isso.
- Duvido que o detestem aqueles que deixam o dinheiro nos seus salões.
- Claro! Mas as mulheres desses pervertidos seriam capazes de matar o senhor Shamir com as próprias mãos.
- E vão muitos homens a esses sítios?
- Demasiados. Novos e velhos. Alguns não apostam, mas ficam no Andaluzia a beber grande parte da noite. As mulheres têm a entrada proibida e eles sentem-se a salvo ali.
Esta conversa tinha aliviado Nicole. Era evidente que a mãe Lhe tinha mentido e que ninguém na terra sabia que a tinham encontrado na cama com Adén. Tinha medo de falar com o reverendo Foster, o velho pároco que tantos sermões lhe havia dado durante o seu breve romance de adolescência.
Mas o velho religioso tinha sido transferido para outra paróquia e no seu lugar estava o padre Raggio, um napolitano. Era uma pessoa extremamente sensível que a escutou com atenção durante meia hora.
- Agora deves concentrar-te em ajudar moralmente o teu pai, pois as boas acções devem ser concretas, e geralmente Deus coloca-as ao nosso alcance - foram as suas palavras quando Nicole concluiu o seu relato. - Eu não sou daqueles que acreditam que a culpa ajude, e se deves arrepender-te de alguma coisa na vida é de não fazeres o que consideras correcto em cada momento.
- Receio que seja difícil ajudar o meu pai. Perde as ilusões e só pensa em beber.
- Com paciência e fé ajudá-lo-ás a recuperar.
Fora um grande consolo falar com ele. E também com Jimmy Evans que, delicadamente, se oferecera para a acompanhar ao cemitério para que Nicole visitasse a sepultura da mãe.
- O ano passado perdi a minha mãe e entendo perfeitamente o que sentes - dissera Jimmy. - Sei que em crianças não convivemos muito, mas agora gostaria que fossemos amigos. Muitos dos nossos antigos companheiros saíram da terra.
- Mas eu vi vários dos nossos antigos companheiros na igreja.
- É verdade, mas foram mais os que saíram do que os que ficaram aqui.
- A propósito, sabes alguma coisa da Rita? Era a minha melhor amiga, mas a última vez que soube dela foi há dois anos.
- Pois acho que se dedicou à medicina, vive em Nova Iorque e tem um rapazinho. Um menino Pequeno. Com meses.
- Quando se casou?
- Não se casou. Claro que a família nunca fala deste assunto, mas em terras como esta sabe-se tudo.
- O pai é cigano?
- Claro que não. Disseram-me que é um médico divorciado.
- Pois eles não lhe perdoarão.
- A quem te referes?
- Aos Shamir. À família.
- Tu conhece-los melhor do que eu - disse Jimmy.
- Sim, conheço-os e para eles será como se a Rita tivesse morrido. Espero que o seu companheiro seja boa pessoa e a saiba proteger.
- Dizes isso com tristeza.
- Não é fácil uma mulher estar longe da família.
- Não foi fácil para ti, pois não?
- Já passou.
- Ainda bem que conservas o optimismo. Bem, deixo-te aqui.
Fazendo uma saudação, Nicole despediu-se e entrou no cemitério. Ao chegar junto da campa da mãe, pôs-se de joelhos e contou-Lhe tudo o que tinha passado nos últimos anos.
Quando saiu do cemitério, Nicole enfiou pelo bosque e quando chegou junto ao rio encostou-se a uma árvore, relembrando tempos passados.
Via-se a si própria sentada na orla da água, com os pés descalços ao lado do pai que a ensinava a pescar.
E das lições de pesca passou rapidamente para a fatídica noite do seu pacto com Adén, nesse mesmo sítio, ao luar.
Rita fizera quinze anos um mês e meio depois de Nicole. Para ela não houve festa, apenas um jantar familiar muito agradável e uma quantia em dinheiro que ficaria no banco até à sua maioridade.
- Olha, filha - dissera-lhe o pai. - Sabes que eu gostaria de te ver casada com um dos nossos. Mas os teus irmãos já me deram netos e eu estou disposto a aguardar mais algum tempo. Podes continuar a estudar e quando fizeres dezoito anos logo veremos.
Adén teve um sorriso cúmplice para com a irmã. Aquele rapaz estava diferente. Noutra altura teria discutido com o pai por não respeitar as tradições de família, mas devia estar a acontecer alguma coisa para ele não insistir que uma jovem cigana devia casar com alguém da mesma raça.
Fisicamente também estava diferente. Emagrecera e cuidava mais da sua aparência. Sem dúvida que se tratava de alguma mulher, foi o que pensou sua mãe.
Havia semanas que o ouvia sair de casa e regressar silenciosamente de madrugada para dormir algumas oras antes de ir trabalhar. Quem seria a rapariga? Tinha perguntado a Rita, mas esta fizera-se desentendida.
- Achas que ele tem noiva, mãe?
- Eu sei que tem, Rita. Os meus filhos não me enganam.
- Pode ser que desta vez os teus pressentimentos não estejam certos.
- Deves gostar muito dela.
De facto, Nicole era a sua melhor amiga.
No início, a ciganita ficara ciumenta com aquela relação.
Mas quando os dois lhe pediram ajuda, os sentimentos negativos desapareceram por completo. Nessa noite, por exemplo, iam os três para o rio velejar. Tinham uma cesta preparada com doces, e velas brancas.
Tencionavam ficar até ao amanhecer. Rita estava encantada com a ideia, que tinha sido de Adén. Os irmãos despediram-se dos pais como todas as noites e, quando a casa ficou em completo silêncio, suaves pancadas na porta deram a entender a Rita que eram horas de partir.
E lá foram, disfarçando o riso e levando a cesta.

Era meio-dia em Shermont. Mas para Nicole, sentada em frente ao rio, era meia-noite.
Recordava o seu último encontro com Adén, os festejos junto a Rita e ao seu amado, e o que tinha acontecido depois.
Imaginou os irmãos saindo furtivamente de casa. Atravessaram a aldeia e passados poucos minutos chegaram ao bosque, nas margens do rio. Graças ao luar intenso não precisaram de acender lanternas.
Estenderam uma manta e Adén fez uma fogueira.
- Esta chama é que vai custar a apagar de um sopro - comentou ele para a irmã, na brincadeira.
- Pois eu já pedi os meus desejos, de modo que ta cedo, pois penso que deves ter muita coisa a pedir à Virgem.
- Que mais poderia pedir? já tenho o que preciso.
- Casar-te com ela, palerma. Ficarem juntos para sempre.
Logo que pronunciou estas palavras, Rita arrependeu-se. O rosto do irmão pôs-se sombrio, como se uma nuvem lhe tivesse toldado os olhos.
- Pois por agora isso é impossível.
- Claro, mas quando ela for maior poderá escolher.
- Ainda falta muito tempo e talvez ela mude de opinião.
- Não, meu irmão, digo-te que não.
- Como podes ter tanta certeza?
- Perguntei ao tarô - afirmou a ciganita.
- O que é que andaste a perguntar? - perguntou Nicole, que se aproximava.
- Por vocês - respondeu Rita.
Nicole aproximou-se da amiga e deu-lhe
uma caixa de madeira pintáda à mão, que no interior tinha belos e caros cosméticos.
- Que maravilha! Mas o meu pai mata-me se a vê; ele não quer que eu me maquilhe.
- Também pensei nisso - disse Nicole, retirando do bolso uma chave. - Como vês, o estojo tem fechadura. Guarda-o bem que ninguém descobrirá. Parece-te mal, Adén - perguntou a rapariga, enquanto tirava um lápis da caixa e pintava os lábios.
- Não - respondeu ele. - E mesmo que parecesse não vos ia estragar a festa.
Estava uma noite muito fria. Brindaram, cantaram, comeram e acabaram a olhar o rio, as duas amigas de mão dada e Adén abraçado à sua jovem noiva.
Sentia-a tremer sob os seus braços e sabia que, se insistisse, ela seria sua, mas preferia esperar e respeitar a sua inocência.
Recordava o primeiro beijo que Lhe dera na primeira vez que se tinham encontrado a sós.
Tinha-a rodeado com os seus braços morenos e puxara-a suavemente, separando-Lhe pouco a pouco os lábios com a sua doce língua. Ela encostara-se a ele e, oferecendo-lhe a sua boca húmida.
Depois daquela tarde, todos os dias se repetia a mesma cena. Ambos abraçados, de pé, junto a uma árvore, acariciando-se durante horas ou olhando-se, de mãos dadas, falando sobre os seus pais ou sobre a infância sem nunca se atreverem a falar do futuro. Se ela tivesse sido cigana, talvez Adén lhe devesse ter proposto casamento depois de fazer amor
com ela pela primeira vez, ali mesmo.
Mas Adén preferira não deixar a sua marca naquela rapariga. Sabia que ambas as famílias se oporiam à união e tratava de ocultar o seu desejo e esperar.
Inclusivamente deixava que ela provocasse a sua pronunciada virilidade nos momentos em que a excitação parecia enlouquecê-la, geralmente quando ele lhe mordiscava os seios.
- Continua, Adén, continua.
- Que fazes se eu parar?
- Amarro-te à árvore, tiro-te a roupa e provoco-te até não conseguires resistir-me.
- Experimenta.
- E tu deixavas?
- De boa vontade. Mas teremos tempo para isso, Nicole - retraía-se ele, consciente do perigo de tal
situação.
Nem sequer se permitiu fazer amor com ela naquela noite em que a despiu e beijou cada centímetro da sua pele.
- És belíssima. Devias ficar assim sempre, sem roupa, como uma selvagem - dissera-lhe.
- E eu gostaria de estar assim sempre para que me olhasses.
- É incrível, mas não tens vergonha nenhuma.
- Deveria ter?
- Não sei, nunca despi nenhuma jovem neste sítio.
- E noutro - perguntou Nicole.
- Pois claro, sou um homem.
- E fizeste amor com muitas - perguntara ela.
Ele fechara os olhos, tentando controlar a sua excitação. E, a seguir, beijando-a com doçura, ajudara-a
a vestir-se.
Tudo isso recordou Adén nessa noite no rio, abraçando-a e olhando para o fogo.
Pensava quanto mais tempo conseguiriam resistir
os dois àquela paixão.
Ninguém soube se tinham passado minutos ou
horas quando Rita suspirou e se pôs de pé.
- Que fazes, irmã? Combinámos esperar os três pelo amanhecer.
- Estou cansada. Recordarei sempre esta noite, mas
agora preciso de estar sozinha.
- Estás triste, ou é impressão minha - perguntou.
- Não estou nada - respondeu Rita, que, vagamente intuía que algo de mal os aguardava, depois de tanta felicidade.
- E se formulasses mais algum desejo, perante a Lua, enquanto o fogo arde - propôs Nicole.
- Mais que pedir um desejo, tinha pensado noutra
coisa.
- Em quê - perguntaram os enamorados ao mesmo tempo.
Então a morenita começou a falar numa língua
estranha, dirigindo-se ao irmão.
- Não, Rita, recuso-me.
- Mas que mal tem?
- Nenhum, mas a Nicole desconhece estes costumes.
- Se fosse cigana já lho terias pedido.
- Com certeza, mas não é.
- Pedido o quê - perguntou Nicole.
- Um pacto - respondeu Rita, apesar do olhar de desagrado do irmão. - É como uma promessa, mas eterna. Aqueles que se amam unem o seu sangue e os seus corações para que nada os possa separar.
- Então é como um casamento - comentou a jovem.
- É mais sagrado do que um casamento, Nicole - disse a amiga com voz triste. - Quem romper o pacto está a atraiçoar Deus.
- Então deveríamos fazê-lo, Adén - pediu Nicole.
- Assim ficamos unidos para sempre. Como se faz?
- Posso, ao menos, explicar-Lhe - pediu Rita ao irmão.
- Explica, mas parece-me uma ideia perigosa.
- Tem de haver uma testemunha, mas além dessa testemunha mais ninguém deve conhecer o segredo. Os namorados fazem um pequeno golpe no pulso e pedem ao Criador que os converta num só ser.
- Estou disposta a correr o risco - disse Nicole, convencida de que nunca amaria outro homem como amava Adén.
- Pois para sempre é demasiado tempo para ti,
rapariga.
- Acho que tu é que não te queres unir a mim.
- Estás enganada.
- Então, corta-me - desafiou Nicole, colocando as palmas da mão para cima.
- Não tenho navalha - mentiu ele.
Então a rapariga agarrou na faca com que tinham partido o bolo, foi ao rio lavá-la e estendeu-a a Adén. Adén agarrou na faca, queimou a ponta até ficar em de fogo, submergiu-a em água e, olhando para ela, fez um pequeno corte no pulso. Tomou a mão esquerda da noiva e repetiu a operação. Finalmente, unindo as duas feridas, disse em voz solene:
- O teu sangue nas minhas veias, o meu sangue nas tuas veias. Um mesmo rio que ninguém conseguirá separar. Nem a distância nem a morte. Não conheceremos traição, nem distância, nem morte.
Depois lambeu a ferida de Nicole e fê-la lamber a sua, olhando-a fixamente.
Ambos souberam que passariam juntos aquela Noite. E também o soube Rita, a quem foram levar à porta de casa.
- Sejam cuidadosos - recomendara ela.
Mas eles, esquecendo essa advertência, tinham cometido a loucura de entrar no quarto de Nicole pela janela.
Adén, fora de si, tinha tomado a noiva nos braços. despira-lhe a roupa. Colocara-a então sobre os lençóis e beijara-lhe o sexo. A rapariga, a princípio algo assustada devido ao risco da situação, foi-se descontraindo pouco a pouco. Ele, sabiamente, acariciava-Lhe o monte de Vénus e beijava-lhe o sexo como se fosse a sua boca. Com medo de gritar, ela abraçara com força a almofada e depois suplicara àquele homem que a fizesse sua.
- Tira a roupa, deita-te comigo, meu amor.
- Ainda não.
- Estou farta de te ouvir dizer isso - comentara.
- Lembra-te que acabámos de fazer um pacto. I
quer dizer que nos casaremos, Nic. Não gostarias de ser minha na noite de núpcias? - perguntou-lhe Adén. - Quero-te vestida de branco.
- E que me farás na noite de núpcias - insistira ela.
- Pois, em princípio, o mesmo que hoje.
- E depois?
- E depois eu deito-me e tu despes-me.
- Maravilhoso. Continua.
- Eu ficarei muito, muito quieto e tu virás por
cima de mim.
- Óptimo, como se fosse eu a possuir-te.
- Exactamente. E depois saberás quando parar.
- E se me farto de estar sobre ti?
- Nesse caso damos a volta.
- Serás meigo comigo?
- Claro.
- É que tenho um pouco de medo.
- Eu sei.
- Gostava que experimentássemos agora mesmo.
Então o rapaz, para a satisfazer, levara-a novamente ao êxtase. E também ele chegara ao clímax, tendo o cuidado de não a penetrar.
Nicole, exausta, tinha adormecido nos braços dele E ele adormecera também. A fatalidade fizera o resto, pois a senhora Horton, intuindo algo estranho, irrompeu pelo quarto da filha às quatro da manhã.
O marido chegara a casa às três da manhã, completamente bêbedo e furioso porque não o tinham deixado entrar na casa de jogo. - Maldito bastardo - dissera ele ao espadaúdo segurança que lhe tinha barrado a entrada -, foi neste sítio que deixei toda a minha fortuna e agora não sou senhor de beber um copo e de me sentar a uma das mesas.
- Tenho ordens, senhor Horton - havia sido a breve resposta do mulato.
- Quem lhe deu essas ordens? O estupor do seu
patrão? Esse ladrão que me roubou a minha casa?
Como resposta estava para levar um murro na
cara, mas quando o segurança se preparava para atacar, uma mão firme agarrou-o, ao mesmo tempo que uma voz viril murmurava, para que o senhor Horton não o ouvisse:
- Deixa-o ir, Sammy. Ele não está bom da cabeça.
O mulato então, imperturbável, tinha ouvido durante meia hora os maiores impropérios daquele homem que no passado fora, sem dúvida, um cavalheiro. Quando Mark Horton se fartou de insistir, foi-se embora, arrastando os pés.
No primeiro andar da casa de jogo Andaluzia, um
homem, envolto numa densa nuvem de fumo, viu-o
partir. Era Adén e não apreciara nada a vingança.
Planeara-a com cuidado durante dois anos: destruir por completo os Horton e apoderar-se de tudo o que lhes pertencia.
Quando conseguira a hipoteca da mansão ficara muito satisfeito. Mas agora, vendo o velho completamente acabado, sentira uma pena tal que se lhe partia o coração.
Eles não tiveram compaixão por mim quando lhes fui suplicar que não levassem Nicole, pensou.
Naquela altura, a orgulhosa Betty recebera-o na magnífica sala da sua mansão. Comunicara-lhe que já era tarde, que Nicole estava num internato de raparigas e que ela tinha melhores planos do que entregar a filha a um cigano.
- Eu amo-a, senhora. E ela ama-me.
- Que pode saber de amor uma criatura de dezasseis anos - perguntara a mulher. - Além disso, a pessoas da nossa classe pouco interessa o amor. A minha filha casará com alguém de boas famílias, que Lhe dê um apelido respeitável e filhos sãos. Você também não queria isto para uma filha sua.
E Adén saíra derrotado desse encontro. Com o passar do tempo foi-se convencendo de que aquela mulher tinha razão, que Nicole nunca o tinha amado, que ele apenas tinha sido um capricho para essa menina rica que nunca lhe escrevera uma carta. Quando soube que a rapariga tinha casado com
um milionário, pensou que morria. E foi então que jurou vingar aquela ofensa. Dedicou-se durante anos
a ganhar dinheiro.
Era um grande jogador de póquer e organizou encontros clandestinos em que, literalmente, limpou alguns dos seus vizinhos.
Logo conseguiu autorização para montar uma casa de jogo. Mandou construir um edifício imponente nos arredores da terra, a caminho de Tiffany, uma cidade vizinha que tinha poucos locais de diversão. E, em menos de um ano, passou a ser o homem mais rico do distrito.
Pouco depois associou-se a um prestamista que, no mesmo casino, emprestava pequenas quantias aos jogadores, cobrando-lhes juros milionários. Passado pouco tempo as quantias converteram-se em jóias, automóveis e títulos de propriedade.
Muitos haviam deixado todas as suas posses naquelas mesas. Entre eles encontrava-se Mark Horton, pai da sua antiga noiva.
Agora era dono daquela mansão, mas não se tinha ainda atrevido a tomar posse dela.
Talvez se Nicole tivesse ficado no Canadá ele tivesse permitido que o velho se mantivesse na casa. Mas a traidora tinha regressado, e Adén queria ver Nicole arrastar-se tal como se arrastava o seu pai. Dirigiu-se então para o escritório que o usurário ocupava. Sem bater à porta, entrou para conversar com ele. O seu nome era Dick ODonell.
- Prazer em ver-te, Dickie. Quanto ganhámos hoje?
- Ainda pouca coisa, chefe. Aos domingos muitos homens ficam em casa.
- Tenho uma coisa para fazeres, Dick.
- O que é?
- Lembras-te do velho Horton?
- Como não havia de me lembrar? Foi um grande
cliente.
- Pois quero que amanhã mesmo lhe envies um
aviso de despejo. Tomarei posse da casa no espaço de
trinta dias.

- Já o devia ter feito.
- Não o quis fazer antes da esposa morrer.
- E o chefe acha que a coisa se resolve facilmente, ou que teremos de ir a tribunal?
- Suponho que iremos a tribunal. Vai-se demonstrar que ele falsificou a assinatura da mulher, mas...
- Mas o quê?
- O perito em caligrafia é um bom amigo da casa.
Adén dirigiu-se à garagem e foi para casa no seu
Mercedes cor de fogo, decidido a desafogar as mágoas
nos braços de Minie, a sua última conquista.
Mas quando chegou a casa e viu a ruiva a dormir
placidamente, resolveu ficar sozinho naquela noite e encerrou-se no escritório, dando duas voltas à chave.

Eram quase dez horas quando Nicole saiu da cama. Na noite anterior tinha esperado a chegada do pai e deitara-se às três da manhã. O homem não tinha querido comer e encerrara-se no quarto.
- Faz a tua vida, Nicole, e deixa-me em paz. Tu e eu
somos dois viúvos, maiores de idade, que vivem sob o mesmo tecto, pelo menos até nos porem fora.
- Preocupas-me, papá. A continuar assim, vais
ficar doente.
- Pois seria o melhor para ti. Se eu morrer antes que arrematem este sítio já não poderão tirar-to.
- Então que mo tirem. Ou julgas que eu ia trocar a tua vida por estas quatro paredes?
- São mais de quatro, rapariga. E eu, das mulheres espero qualquer coisa.
- Não sou uma mulher qualquer. Sou tua filha.
- E que tem? Não me deves nada. Eu ofereci esta casa a esse cigano.
- Que dizes?
- O que estás a ouvir. Agora este sítio pertence àquele tipo que dizia amar-te tanto. Talvez nessa altura ele já só pensasse na fortuna.
Foi como se tivessem cravado um punhal no coração de Nicole.
- Pensei que tinhas negociado com um prestamista.
- Um prestamista que trabalha para o cigano. Uma vez fui pedir ao Adén que me deixasse pagar a hipoteca de alguma forma, mas aquele asqueroso tem-me rancor pelo que se passou e tratou-me que nem um cão. E esta noite, para que vejas do que é capaz, mandou porem-me fora do seu clube de jogo.
- Tens a certeza? Adén não seria capaz de tal coisa.
- Esse teu amigo destruiu nesta terra mais famílias
do que a febre amarela. Mas ainda vai ser pior quando instalar os clubes nocturnos.
- Clubes nocturnos?
- O homem farta-se de ter a mesma mulher todas
as noites. Dizem que as vai escolher lindas, tão belas como as que vivem sob o seu tecto.
- Ele vive com mulheres?
- Umas dez ou doze, todas europeias, jovens e dóceis. Um repugnante harém cigano.
- E o padre não faz nada? Como permite uma
coisa dessas?
- O cura é um bom homem, mas o juiz deixa-se comprar por pouco.
Então o velhote dera meia volta e subira as escadas que conduziam ao quarto que durante mais de trinta anos partilhara com a esposa.
Nicole ficara sozinha, chorando de dor e impotência. Que tinha acontecido a Adén? Era possível que um jovem tão doce e puro se tivesse transformado num monstro? No fundo ela sabia que em parte era responsável por tal transformação.
E se lhe pedisse perdão? E se Lhe contasse tudo o que tinha sofrido, suplicado e rezado durante aqueles intermináveis sete anos, Voltaria para ela?
Adormecera pensando naquilo e agora, à luz da manhã, parecia-lhe fácil alcançar o seu objectivo.
Mas o optimismo durou pouco, pois, quando se dirigia à cozinha para tomar o pequeno-almoço, encontrou no vestíbulo um sobrescrito lacrado que deitou por terra as suas esperanças.
Estava dirigido ao pai, mas ela abriu-o. Tal como supunha, era uma ordem de despejo. Deviam sair da casa no prazo de sete dias.
Não havia dúvidas: Adén sabia que ela estava em Shermont e acabava de lhe dar as boas-vindas. Se aquele homem queria guerra, ia tê-la. Mas antes iria falar pessoalmente com ele. Queria que ele lhe dissesse aquilo mirando-a nos olhos. Estava consciente do perigo que corria, do que significava ter quebrado o pacto de sangue, mas a culpa não fora sua. Ela tinha aceitado casar-se para estar perto de Adén. Fora um sacrifício vão! Odiou a mãe, Raymond e também o pai pelo que lhe haviam feito. Odiou Adén por não acreditar nela. E odiou-se a si mesma por ter sido ingénua.
Irei pedir-lhe que me deixe em paz e ao meu pai, prometeu a si mesma.
Procurou o número do seu antigo noivo e, tremendo, discou os números, pedindo aos seus santos que fosse ele a atender e não uma das suas queridas.
- Quem é - atendeu uma voz feminina com um sotaque estrangeiro.
- Desejo falar com o senhor Adén Shamir.
- Da parte de quem é?
- Uma amiga - respondeu a jovem, aliviada porque a sua interlocutora era uma velha e não uma das amantes do seu antigo amor.
- Qual delas?
- Chamo-me Nicole Horton.
- Que prazer! Não a esperava tão cedo.
- Como diz?
- Conhecemo-nos no sábado.
- Nós?
- Olha que a tua memória é tão má como a tua reputação, rapariga.
- Não sei do que está a falar, senhora.
- Adén está a dormir. Telefona à tarde.
E aquela pessoa desligara o telefone sem esperar resposta. Nicole pensou, pensou, mas não conseguia recordar ninguém com aquela voz.
Às duas da tarde tentou novamente. Desta vez foi o próprio Adén quem atendeu.
- Estou.
- Olá. Sou a Nicole.
Fez-se um desagradável, doloroso e longo silêncio.
- Julguei que terias a decência de não voltar.
- A minha mãe morreu.
- Eu sei.
- E os teus pais?
- Debaixo da terra - respondeu ele, brutalmente, como se a quisesse agredir com palavras.
- Quero que nos encontremos.
- Para quê?
- Gostaria de te contar o que se passou, aquilo que passei durante estes anos - disse Nicole, à beira das lágrimas.
- Já não me interessa.
- Não queres saber por que me casei?
- Os motivos são o menos. Faltaste à tua palavra e
ponto final.
- De qualquer maneira, preciso de falar contigo.
- Queres que te devolva a hipoteca .
- Sim.
- Foi o que eu supus.
- É pelo meu pai. Perder a casa vai matá-lo.
- Não percebo porquê. Quando jogou ao póquer,
isso não lhe importou.
- Está doente.
- Que tem?
- Está mentalmente doente.
- Pois digo-te que esse é um mal incurável. É melhor esqueceres isso e voltares para o Canadá.
- Não tenho para onde ir.
- Julguei que te tinhas transformado numa viúva
rica e que me ias oferecer uma boa quantia pela casa dos teus antepassados.
- Pois estás enganado. O meu marido deixou o
dinheiro todo à irmã.
- Deves ter sido muito má esposa.
Nicole calou-se. Recordou por instantes as últimas
semanas de Raymond, as noites que passara acordada a tratar dele, as agressões que tinha recebido dele.
- Tens razão, Adén, fui uma má esposa, mas não
sou má filha - foi a resposta que Nicole deu.
- Pois eu não te vi no funeral da tua mãe, embora pouco me importa o que fazes. Tens com que pagar a hipoteca ou não?
- Não tenho dinheiro, mas poderia trabalhar para
te pagar.
Foi então que uma ideia macabra assomou à mente do homem.
- Poderia interessar-me.
- Deixas-me pagar em prestações?
- Veremos. Vou mandar alguém buscar-te daqui a
uma hora e conversaremos em minha casa. Talvez cheguemos a um acordo.
O coração da rapariga começou a bater furiosamente. E se Adén a matasse?
Seria melhor para ti que eu morresse agora mesmo - dissera-Lhe ele.
E para Nicole aquelas palavras haviam sido uma espécie de ameaça velada: o seu pai seria capaz de tudo, até de se suicidar se fosse para a rua.
- Daqui a uma hora estou aí. Não precisas de mandar ninguém.
- Mas fá-lo-ei porque sou um cavalheiro - dissera
ele, com sarcasmo. - Então, até logo.
Às quatro da tarde, o Mercedes vermelho de Adén
estacionou em frente da mansão Horton.
Um motorista de farda branca bateu à porta e foi
atendido por uma rapariga loira, vestida com um
sóbrio fato de cor malva. Uma vez no carro, encolheu-se num canto temerosa e começou a massajar as têmporas, pois parecia que a cabeça lhe estalava.
Cerca de vinte minutos depois, o Mercedes detinha-se em frente a um portão de ferro, que rodeava uma gigantesca propriedade privada.
O motorista fez um gesto ao rapazito que estava de
vigilância para que levantasse as barreiras e seguiu
pelo caminho que conduzia ao edifício. Tratava-se de
uma casa de pedra, muito sóbria, semelhante a um
pequeno castelo medieval. O motorista abriu a porta
do automóvel, ajudou-a a descer e acompanhou-a
até à porta. Aí, uma jovem com uniforme rosa, conduziu-a directamente ao escritório do proprietário.
O silêncio era absoluto. Dava a impressão que na casa todos dormiam. E assim era, já que as dez jovens
habitantes da mansão costumavam fazer a sesta nos
seus quartos. O escritório, no rés-do-chão, estava
impecavelmente arrumado.
A rapariga sentou-se numa poltrona e esperou.
- Boa tarde - disse uma voz nas suas costas.
Era ele. Mais corpulento, com alguns cabelos brancos, impecavelmente vestido.
- Prazer em ver-te, Adén - disse Nicole.
- Deixa de lado as formalidades. Senta-te e ouve.
- Estou a ouvir - respondeu ela, magoada com
tanta frieza.
- Vou devolver-te a hipoteca.
Os olhos de Nicole brilharam de alegria. Aquilo
iria devolver ao pai o gosto pela vida.
- Mas só ta devolvo se assinares este contrato.
- De que se trata?
- Disseste que estavas disposta a trabalhar para
cancelar a dívida de Mark Horton.
- Assim é.
- Pois estou a oferecer-te um emprego.
A jovem empalideceu. Lembrou-se do clube nocturno que Adén estava para abrir em Shermont.
- Que tipo de trabalho?
- Lê.

Ela tentou ler, mas estava tão nervosa que tinha a á
vista toldada. Então começou a entender.
- Parece-te bem?
- Ainda não acabei.
- Pois eu resumo-te. Serás a minha governanta
durante um ano. Cumprido esse prazo poderás levantar a hipoteca e não nos voltaremos a ver.
- Não me parece que seja um bom negócio para ti.
poderias conseguir uma governanta por muito
menos.
- Mas não teria o grande prazer de te ter ao meu serviço. De vez em quando posso dar-me ao luxo de fazer um mau negócio.
- E que tipo de tarefas inclui o contrato?
- Nenhuma que te possa dar prazer, rapariga. Para isso já tenho quem o faça nesta casa.
Então era verdade, aquele homem tinha ali o seu
harém e ia obrigá-la, durante um ano, a presenciar as orgias que tinham lugar todos os dias.
Esteve prestes a atirar-lhe à cara aquele contrato,
mas logo se lembrou dos anos terríveis que passara junto ao marido e chegou à conclusão de que, para
ela, aquela provação era uma brincadeira de crianças.
Era evidente que Adén queria vingar-se, fazê-la
sofrer. Então deixá-lo ter esse prazer não era um
preço demasiado elevado se fosse para evitar o sofrimento de seu pai. No entanto, havia um problema.
Que diria Mark Horton se soubesse que a sua filha estava ao serviço daquele pervertido?
- Trabalharei para ti, Adén, mas não quero que o
meu pai saiba. Aliás não quero que ninguém na terra saiba.
- Temes pela tua reputação - comentou ele.
- Talvez.
- Nem as minhas raparigas nem eu diremos nada sobre a tua presença aqui. Inventa uma desculpa qualquer para o teu pai e diz-lhe que aos domingos poderás visitá-lo. Será o teu dia de folga. De acordo?
- De acordo.
- Espero-te amanhã às oito.
- Aqui estarei.
Nicole assinou o contrato, pensando que lhe doía mais aquela caneta sobre o papel do que o golpe na carne que Adén lhe fizera havia anos.
Aquele tinha sido um pacto de amor e este era um pacto de ódio.
A diferença era que ela agora ia cumprir a sua parte do trato e, assim, talvez que o compromisso que outrora houvera entre os dois se desfizesse para sempre. Saiu da mansão no mesmo Mercedes que a tinha levado. Às cinco em ponto da tarde saiu do automóvel- à porta de sua casa. Sem sequer se despir, estendeu-se sobre a cama e desatou a chorar.

Eram oito em ponto da manhã quando a menina Nicole Horton se apresentou na estância Shamir para ocupar o seu novo posto de governanta. Não tivera dificuldade em sair de casa sem ser vista que, a essa hora, o seu progenitor dormia, depois
da habitual bebedeira nocturna. Deixara-lhe uma
nota sobre a almofada:
Querido papá: Quando acordares não me vais encontrar em casa. Fui até Tiffany, a localidade aqui ao lado para começar a trabalhar como governanta de uma família muito agradável, os Chester.
Agrada-me poder ganhar algum dinheiro e também conhecer gente nova.
Além disso, creio que isto servirá para reflectirmos
sobre tudo o que aconteceu durante estes anos.
Pela mamã, desejo que haja paz entre nós.
Se concordares, virei visitar-te todos os domingos.
Desejaria que, ao menos, pudéssemos ir juntos à igreja e almoçar em casa como nos velhos tempos.
Trata de ti. A tua filha que te ama, Nicole.

Mentir não agradava muito à rapariga, mas estava
certa de que Deus lhe perdoaria porque era por uma
boa causa.
Tinha ido a pé até ao seu novo emprego, pois sabia
que, se alugasse um táxi, no dia seguinte toda a gente
na terra estaria a comentar.
Levava pouquíssima bagagem. Apenas três vestidos, roupa interior e o conjunto de toucador com banho de prata que pertencera à sua avó.
Para ela era quase um ritual todas as noites escovar
o cabelo centenas de vezes com a antiga escova que
pertencera a Sara Horton.
Que diria a avó ao vê-la naquela triste situação?
Mas a avó já não estava ali para lhe indicar o bom
caminho. Tão-pouco ali estava a sua mãe que provavelmente teria preferido vê-la morta do que criada do cigano, como ela chamava a Adén.
Ela, no entanto, só sentia dor face à situação. Tanta dor que se comportava como um autómato.
Adén Shamir era seu inimigo e durante um ano queria vê-la sofrer, humilhá-la, despertar os seus ciúmes, destruí-la.
Ao chegar ao portão, o segurança pediu-lhe a identificação. Quando chegou à porta não precisou de
tocar à campainha pois esta abriu-se.
- Entre, entre - disse com amabilidade a rapariguinha que a recebera no dia anterior. - Sou a Jazmin e trabalho com o senhor há seis meses. Este é um bom sítio, vai ver que se habitua - acrescentou com gesto cúmplice e desapareceu na cozinha.
Uma vez que parecia que não havia ninguém para se ocupar dela, Nicole deixou a mala na entrada e começou a percorrer as divisões do rés-do-chão.
Primeiro admirou a ampla e luminosa sala de jantar.
Os móveis de cedro, o lustre de cristal, o piano e os
cortinados faziam pensar que aquela divisão pertencia a um respeitável casal de velhos de boa família.
Nicole transpôs outra porta e viu-se na sala de
estar. O contraste com a divisão anterior era notável.
Ambas as divisões pareciam pertencer a duas casas
distintas. julgou estar numa cena das Mil e Uma
Noites, no salão de algum sultão. O lugar era gigantesco. Estava completamente rodeado por biombos de vidro biselado que davam para o jardim. O soalho estava coberto de almofadas muito ornamentadas.
Havia no centro uma salamandra e um grande samovar de prata. Nem quadros, nem cadeiras, nem artefactos eléctricos.
Embora ali houvesse luz artificial, dezenas de velas e lamparinas davam um toque mágico àquele lugar encantado. Até ao momento aquele era o único canto que evocava um lar de ciganos.
Continuou a andar e contou três quartos de banho, uma espectacular biblioteca, o escritório onde estivera no dia anterior e um compartimento fechado à chave.
Este último era diminuto mas tinha um pequeno quarto de banho privativo. Era o quarto que Adén tinha reservado para ela, longe dos quartos principais, mas também a boa distância da ala dos criados.
No andar de baixo não havia mais nada para explorar excepto a cozinha, claro. Pensou que era o momento de conhecer a cozinha. Aproximou-se da porta e viu três pessoas a trabalhar.
A jovenzita que a recebera não se encontrava entre elas. O lugar cheirava a fritos e a especiarias.
- Bons dias. Sou Nicole Horton - apresentou-se -, a nova governanta.
Duas das pessoas presentes corresponderam à saudação. A terceira, uma mulher vestida de negro que estava de costas, deu meia volta e sorriu-lhe.
- É a segunda vez numa semana que lhe dou as boas-vindas - disse, com um sotaque estranho.
Nicole não conseguiu evitar um grito. Era a mesma velha que encontrara na estação dos comboios, na noite da sua chegada.
Pensou ver um ar de satisfação malévola naqueles pequenos olhos negros e tremeu ao pensar que seria obrigada a conviver durante meses com aquela estranha criatura. A velha estendeu-lhe a mão e disse, com sarcasmo:
- Trata-me por senhora e lembra-te que aqui quem manda sou eu.
- Encantada, senhora - obedeceu Nicole, apertando a mão fria daquela desconhecida.
- Para começar, podes distribuir o pequeno-almoço pelos quartos. Algumas das meninas acordam cedo para comer e depois continuam a dormir.
- Só preciso que me indique o caminho.
- Então leva isto ao primeiro andar, a terceira porta à direita. Não há que enganar, pois é a única onde encontrarás à porta vários pares de sapatos.
- Muito bem, senhora - foram as palavras de Nicole, enquanto carregava uma pesada bandeja que continha bolos, café, ovos com bacon e frutos que chegavam para alimentar um batalhão.
Degrau a degrau, Nicole foi-se aproximando do seu objectivo. Quando chegou à porta do quarto suspirou aliviada. Colocou a bandeja no chão e bateu à porta. Ninguém respondeu. Voltou a bater e ouviu uma voz infantil.
- Entra, entra. Cuidado que podes acordar as outras e elas ficam aborrecidas contigo.
Uma miudita com cerca de doze anos, em cuecas e com um xaile de cores pelos ombros, abriu-lhe a porta e apontou para uma mesa num canto.
Os seus seios eram tão pequenos que parecia um rapazito, mas a sua cabeleira azeviche e o seu rosto delicado pertenciam a uma miúda que mais tarde se iria tornar uma mulher maravilhosa.
Tinha os olhos maquilhados e era óbvio que não estava habituada a desmaquilhar-se antes de se deitar.
- Põe tudo ali. Quem quiser que se sirva. Se faltar alguma coisa, eu chamo-te.
A cena que observou naquele quarto espantou a nova governanta.
Umas oito ou nove rapariguinhas, entre os doze e os
vinte anos, dormiam semidespidas sobre colchões
colocados no chão.
Nicole imaginou o belo Adén a dormir entre aquelas beldades precoces, e uma onda de fúria percorreu-a dos pés à cabeça.
- Vai-te embora, mulher. Já te disse que te chamamos se nos faltar alguma coisa.
- A que horas almoçam? Sou a nova governanta,
explicou Nicole, que desejava saber mais sobre todas
aquelas pequenas.
- Bem, algumas à uma, outras às duas. À medida que vão acordando, vão lá abaixo buscar qualquer coisa à tia Felisa.
- E depois, que fazem? Estudam, trabalham?
- Não. Sabemos ler e escrever - respondeu a rapariga com orgulho. - Isso é suficiente. Vamo-nos casando.
- Têm noivo?
- Claro - assegurou a rapariga, segura de si.
- cala-te ou arranco-te as tranças - gritou alguém debaixo de uma grossa manta.
Avisei-te. Até logo. Talvez te peça que me faças as tranças. As minhas irmãs recusam porque dizem que passo o tempo a queixar-me.
- É só dizeres.
Um pouco estonteada, Nicole fechou a porta do estranho quarto. Quando se dispunha a descer as escadas, uma potente voz de homem ordenou do quarto vizinho:
- Tu aí, traz-me o café. E despacha-te.
Nicole, obediente, foi buscar à cozinha a bandeja do
senhor Adén, que a tal tia Felisa já tinha preparado.
- Leva já isso. Se fica de mau humor, vai-nos arreliar o dia inteiro. Corre.
A jovem, rezando para não tropeçar, subiu as escadas a toda a velocidade.
A bandeja continha unicamente um termos com dois torrões de açúcar e uma barra de chocolate.
recordou com ternura que Adén adorava chocolate. Boquita de mulata era como costumava chamar-lhe enquanto desembrulhava uma barra de chocolate e lhe pintava os lábios com aquela pasta escura e doce, para logo a beijar e ficar também ele
com a boca suja. Bateu à porta.
- Entra.
De olhos baixos passou o umbral.
Pôs a bandeja sobre uma mesa, mas, quando se dispunha a sair, o homem agarrou-a pelo pulso.
- Costuma dizer-se bom dia. Quem te ensinou as boas maneiras?
Ao saudá-lo, olhou-o de frente. Estava descalço, sem camisa, vestido unicamente com umas calças de linho brancas.
No seu quarto não havia nada de nada, apenas um colchão grande e a foto dos pais numa moldura, no chão.
- Tens de me escolher a roupa de hoje, faz parte do teu trabalho. Vou tomar um duche, depois chegas-me a roupa - disse ele, apontando para um armário que ocupava toda uma parede.
Nervosíssima, Nicole abriu as portas do armário e foi envolvida por uma requintada fragrância.
No guarda-fatos estavam arrumados dezenas de fatos, camisas, roupa interior e filas de sapatos. i Uma vez que ignorava a ocupação de Adén para esse dia, optou por um discreto fato castanho claro de muito bom corte e por uma camisa marfim, Meias e sapatos castanhos e roupa interior completaram o conjunto.
- Deseja que Lhe chegue a roupa - gritou a jovem.
- Foi o que eu disse.
- Mas o fato podia enrugar-se com o vapor do banho.
- Se preferires saio completamente nu e vou eu mesmo buscá-lo.
- Claro que não.
Ofendida, Nicole atravessou a porta entrando num grande quarto de banho.
Colocou a roupa sobre um banco. Olhou para o recanto onde Adén tomava banho. Era de acrílico, com textura meio opaca, mas da porta da entrada conseguia distinguir a sua silhueta.
Continuava a ter o maravilhoso corpo de sempre. horrorizada, Nicole apercebeu-se de que se lhe humedecia o sexo e que os bicos dos peitos ficavam tensos sob a blusa. Pensou em sair dali mas estava como que hipnotizada, a pouca distância do único homem a quem conhecera intimamente, do homem que a havia feito tão feliz.
Então apareceu Adén, nu, e ao vê-la ali regressou.
- Julguei que já tinhas saído. Desculpa.
a rapariga saiu daquele quarto morta de medo e desejo. Era a primeira vez que o via nu. Na noite em que tinham dormido juntos ele tinha mantido vestidas as cuecas. Ela tinha-lhe acariciado insistentemente o sexo, e ele ficara com uma enorme erecção, mas não tinham ido mais longe, certos de que tinham pela frente todo o tempo do mundo. Infelizmente, enganavam-se. Hoje Adén parecera-lhe tão másculo como no passado.

levar o pequeno-almoço aos quartos, classificar os livros da biblioteca, fazer a lista das compras semanais, receber as chamadas telefónicas e ajudar as raparigas a aperfeiçoar o seu inglês, foram algumas das diversas tarefas que Nicole levou a cabo na sua primeira semana de trabalho.
Felizmente, escolher a roupa de Adén não passou a fazer parte dessa lista, já que - depois da desagradável cena do primeiro dia, o seu ex-noivo não lhe voltara a pedir tão embaraçoso serviço.
A princípio, Nicole pensou que não aguentaria com tanto trabalho, mas foi tomando gosto à incessante actividade e acabou por gostar de desempenhar aquelas tarefas.
Sobretudo ensinar inglês às raparigas dava-lhe
grande prazer, já que as ciganitas eram alegres, inteligentes e afectuosas, se bem que indisciplinadas.
- Esborracho-te o nariz se voltares a usar os meus colares - foram as palavras de Nair, a mais velha, enquanto arrancava uma cadeia de prata com seis corais do pescoço da pequena Amira.
Estavam em plena aula de inglês e a miúda, depois de morder a mão da sua agressora, começou a insultá-la na sua língua.
- Chega, meninas. Se não prestam atenção nunca
poderão ir à rua sozinhas, sem um tradutor que vos
acompanhe. Não gostariam de ir comigo a uma praia, por exemplo, e conversar com as pessoas como se fossem verdadeiras cidadãs americanas?
Esta última proposta acalmou os ânimos das jovens, se bem que Nair tenha feito um gesto ameaçador à travessa Amira.
Evidentemente que todas aquelas jovenzitas precisavam de aprender boas maneiras, mas era natural que assim fosse já que haviam sido educadas pela tal Felisa, mãe de Minie, a noiva de Adén.
Nesta altura já Nicole sabia toda a verdade. ou
pelo menos parte dela.
Aquela história do harém tinha sido um boato lançado por algum invejoso, já que todas as raparigas que viviam na mansão Shamir eram simplesmente irmãs e primas de Minie, uma ciganita de vinte e dois anos, muito bela, que Adén conhecera na terra dos avós. Minie não tinha pai e todos os seus irmãos
tinham partido para trabalhar na cidade.
No total eram seis irmãs e com ela viviam quatro
primas que tinham ficado órfãs muito novas.
Dez mulherzitas entre os doze e os vinte anos que viviam na casa de Adén Shamir.
Se tivessem ficado na Europa talvez tivessem
acabado por casar com algum velho, pois só as mulheres com dote podiam aspirar a um varão . Mas graças ao seu protector haviam escapado à fatalidade e, de momento, também às responsabilidade do matrimónio.
Adén, entusiasmado com Minie, propusera à velha as dez raparigas para sua casa na América, comprometendo-se a dar um dote a cada uma delas para que pudessem casar na Europa quando fizessem dezoito anos. Claro que a velha também vira uma oportunidade para si mesma, pois até Adén aparecer na aldeia, tudo tinha sido miséria.
Entre a sua gente tinha fama de bruxa, mas apesar de tudo as filhas e as sobrinhas gostavam dela, pois dava-Lhes completa liberdade.
Quando Adén a conhecera, atravessava o pior momento da sua vida.
O pai e a mãe tinham falecido no espaço de um ano e meio, a irmã mais nova exercia medicina noutro estado, os irmãos mais velhos cuidavam das suas próprias famílias e ele tinha mandado construir uma casa onde sentia medo de viver.
Foi então que viajou para a Europa, para procurar
uma noiva tão cigana como ele. Minie foi a eleita.
Para Minie, Adén era atraente, mas a sua conversa aborrecia-a. Não lhe interessavam os negócios nem os problemas emocionais do seu noivo, só os seus beijos e cálidos abraços e as prendas que lhe oferecia.
Durante os primeiros meses, Minie estivera muito contente na mansão. Mas Adén, a princípio por ciúmes e depois por falta de atenção, mantinha-a prisioneira naquele sítio, como um pássaro numa gaiola de ouro. Ultimamente, a rapariga tinha discutido com a mãe, pois desejava voltar à sua terra.
- Estás louca, rapariga! Queres que tornemos
a viver como dantes? Já te esqueceste do que é deitares-te de estômago vazio, ou sair para plantar tomate
às três da manhã?
- Ele é bom, mãe, mas aqui estamos sós. Sinto
falta dos nossos amigos, das festas.
- Tu sentes falta de outra coisa e vais senti-la o resto da vida.
- Que eu saiba não é pecado desejar.
- Não é, mas este será melhor marido que o outro.
- Claro que sim, mas é do outro que eu gosto.
- E que te oferecia ele? Uma tenda suja em que mal
poderias criar um filho por ano.
- A mãe fala assim porque se casou com o homem que amava.
- Assim foi. Mas deixemos de lado os teus problemas de amor, pois temos um mais grave para resolver.
- Qual é?
- Essa nova governanta que o teu noivo contratou.
- A loira? O que é que tem
- Não sabes que foi noiva de Adén?
- E que faz aqui?
- Isso é o que tu devias averiguar.
- Vou fazê-lo, mãe. Não gosto que toquem no que
me pertence.
- Assim está muito melhor. Talvez gostes mais dele do que pensas. Às vezes, uma mulher só sabe que está apaixonada quando outra lhe tira o que ela julgava muito seguro.
- E acha que é isso que pode acontecer?
- Não sucederá enquanto eu viver nesta casa.
- Já lhe pedi que não se meta com as suas magias. Se um homem me quiser, tem de me querer a mim, e não às suas poções.
A velha calou-se. Temia que a presença de Nicole
arruinasse os seus planos. Minie tinha, até ao momento, tomado precauções para não engravidar.
Mas uma criança mudaria tudo, pois ela assim teria direito de exigir ao homem que casasse e cumprisse a lei. Tinha de instruir correctamente a filha e marcar um encontro para um dia fértil. Por nada do mundo estava disposta a perder um genro como aquele. Entretanto, ela própria se encarregaria de fazer a vida negra à loira. Talvez conseguisse assustá-la e fazer com que se fosse embora.
Mas a rapariga inglesa era forte de espírito, reconhecia Felisa. Era forte e estava louca pelo seu futuro genro.
- Senhora Felisa, o jardineiro magoou a mão e não conseguimos parar a hemorragia - disse Nicole.
- Tragam-no cá imediatamente.
- Está à porta. Chamo um médico?
- Então diz-lhe que entre - disse a cigana.
O homem, mortalmente pálido, sentou-se e estendeu uma mão tapada com a camisa ensanguentada.
- Bom torniquete, mas insuficiente - sentenciou a velha e saiu da cozinha, dirigindo-se ao seu quarto. Minutos mais tarde, voltou a entrar trazendo uma grande caixa.
Dentro dela podiam ver-se montes de frascos com
ervas, pós e estampas coloridas.
Nicole, sem saber muito bem porquê, estremeceu
quando a velha abriu a caixa. Mas mais impressionada ficou quando a velha retirou o garrote ao homem, destapou um frasco com cheiro a leite coalhado e, polvilhando uma espécie de farinha sobre a ferida, pronunciou umas estranhas palavras.
A farinha tingiu-se de vermelho e pouco de pois a
hemorragia parou.
Nicole pensou se aquilo não poderia provocar uma
infecção ao pobre homem e, nesse instante, como se
tivesse lido o pensamento, a velha disse:
- Tu, que és jardineiro, trata-te de duas em duas
horas com aloé. Isso fará com que a ferida cicatrize.
- Obrigado, senhora - disse o homem.
- Estás a olhar para onde - gritou a velha para a desconcertada Nicole. - Nós cá não precisamos dos médicos para curar as pessoas.
A rapariga ficou admirada pois estava precisamente a considerar a hipótese de chamar um médico para examinar o jardineiro. Mas nessa altura recordou-se de Rita. Segundo a sua antiga amiga, a medicina cigana era excelente.
Talvez tenha sido eu quem chamou Rita com os meus pensamentos, especulou semanas mais tarde Nicole, quando a sua amiga chegou inesperadamente à mansão do seu irmão para pedir ajuda.
Foi uma sorte eu ter presenciado o que aconteceu, disse naquele momento a jovem, pois Rita tinha desafiado terríveis perigos para se encontrar com Adén e a única coisa que obtivera dele fora uma dolorosa e sincera ameaça de morte.

Chovia torrencialmente e todas as mulheres da casa dormiam. Todas menos Nicole, que esperava a chegada de Adén, oculta atrás das cortinas do seu quarto, com o olhar fixo no lugar onde ele costumava estacionar o Mercedes vermelho nunca antes das quatro da manhã.
O seu quarto ficava num ponto estratégico da casa,
pois dali podia observar-se perfeitamente quem entrava e saía, e também saber em que quartos superiores se apagavam as luzes.
Nesse dia, Adén tinha chegado mais cedo do que
de costume. Provavelmente tivera pouco trabalho.
Nicole viu-o sair do pequeno parque de estacionamento, empapado em água e sem guarda-chuva. Preparava-se para correr as cortinas e ir dormir quando reparou que estava a acontecer algo fora do vulgar.
O homem ia subindo as escadas que davam para a mansão quando uma sombra, até ao momento escondida entre as árvores, se interpôs no seu caminho e falou com ele.
A jovem governanta esteve prestes a soltar um grito, mas teve o bom senso de se conter.
Pela estatura física, a sombra pertencia a uma mulher completamente vestida de negro.
A mulher tentava conversar com Adén. Mas o homem - deduziu Nicole - não quis escutá-la, uma vez que a empurrou violentamente, fazendo com que ela caísse de costas no chão.
Da janela era impossível escutar o que diziam.
Então Nicole abriu a janela e espreitou com cuidado.
O que ouviu despedaçou-lhe o coração.
- Nunca deverias ter vindo a minha casa. Tu já não
tens família.
- Adén, pelo menino. - suplicava ela.
- Quero lá saber do teu bastardo.
- Tem o teu sangue.
- suponho que também o meu apelido.
- Supões mal. Spencer reconheceu-o.
- Reconheceu-o e pôs-se a andar ao mesmo tempo.
- Transferiram-no. A princípio escreveu-me.
Depois mudou-se e perdi o seu paradeiro.
- Fugiu de ti, queres dizer. Mas não me interessa.
- Mas digo-te que vou presa, não tenho com quem
deixar ficar o menino.
- Deixa-o num orfanato. Esse é o sítio para onde
vão as crianças que não têm família.
- Como podes ser tão cruel?
ao pronunciar estas palavras o lenço escuro que
tapava a cara da mulher caiu.
Nicole reconheceu Rita, a sua amiga.
- Devia matar-te - acrescentou Adén.
-Pois então mata-me. Se tenho de ir para a prisão e o meu filho vai ficar em mãos estranhas, prefiro estar morta do que sofrer tamanha dor. .
- Tens muitos irmãos. Vai tentar a sorte com outro.
- Tu sempre foste o melhor.
- Mas mudei, Rita.
- Por causa dela?
- Que diabo me importa ela? Vive aqui, aqui
mesmo. Agora é minha empregada e sinto por essa desgraçada tanto afecto como pelo seu cão.
- Dizes que Nicole vive aqui?
- Não te atrevas a procurá-la, porque farei com ela
o que devia ter feito quando regressou a Shermone.
- Seria perfeito. Um crime duplo. Matas a tua irmã
e a tua ex-amante. Assim, a tua honra fica lavada.
- Ouve-me - gritou ele, furioso, abanando-a.
Para mim as duas estão mortas há muito tempo. É como se estivesse a falar com um cadáver, e se não desapareces imediatamente da minha casa, direi à segurança que dispare contra uma intrusa.
- Então vou-me embora, mas o que se passar com o Peter vai pesar-te na consciência.
- Olhos que não vêem.
- Julguei que eras bom.
- Pois não sou - foram as últimas palavras de Adén.
A mulher, empapada em água, sentou-se num
degrau e começou a chorar. Do seu quarto, Nicole conseguia ouvir os gemidos. Então, sem pensar, abriu a janela toda e saltou para o jardim.
Estava em camisa de dormir e descalça. Aproximou-se silenciosamente da sua amiga.
- Aqui estou.
Rita levantou a cabeça e cravou os seus olhos no rosto meigo de Nicole.
- Ele disse que estavas aqui, mas pensei que mentia.
- Pois vês que é verdade.
- E que fazes?
- Depois te conto. Vem comigo antes que nos descubram.
E Nicole conduziu Rita até à janela do seu quarto.
Ajudou-a a tomar balanço para trepar e, passados minutos, já ambas estavam a salvo.
No entanto, ao correr a cortina, Nicole reparou que no quarto da tia Felisa havia luz.
Está a espiar-nos, pensou:
Chegou então o momento de abraçar a sua amiga e chorar as mágoas que tinham atingido ambas durante aqueles sete anos de separação.
- Que te aconteceu? Porque dizes que vais presa"? - perguntou Nicole.
- Descobriram-me no hospital a tratar uma criança com um emplastro de ervas. Havia algum tempo que eu usava os meus próprios medicamentos quando um caso se tornava difícil e muita gente sabia, mas não o director. O miúdo curou-se mas começaram a investigar e convenceram a família do rapaz a apresentar queixa e eu, ao saber que me tinham acusado de negligência médica, fugi com o Peter.
- Eu sabia que tinhas tido um filho. Onde está ele?
- Em casa de uns antigos vizinhos. Eu sabia que a Màry trataria dele durante algumas horas e que seria discreta. Mas se a cunhada dela souber, amanhã toda a gente sabe que estou aqui e a Polícia virá buscar-me. Estou desesperada, Nic. Que será do meu menino se eu for presa? Quem cuidará dele?
- Eu cuido, querida - prometeu Nicole. - Mas talvez tenhamos uma ideia melhor para não ficarem separados. Queres ir buscá-lo agora?
- Estás louca? Se o Adén nos descobre até pode matar-nos. Conheço bem o meu irmão e sei quando fala a sério.
- É verdade que com uma criança será mais difícil, se bem que...
No rosto de Nicole viu-se um sorriso, expressão
que Rita sabia interpretar perfeitamente.
- Em que estás a pensar? Diz-me.
- Ouve, a quinta do teu irmão é muito grande. tem alguns sítios secretos que talvez nem ele mesmo conheça. Perto do rio, a quinze minutos da caminho, existe uma pequena cabana que deve ter sido usada em tempos por pescadores. Pode ser que alguém a utilize no Verão, mas com este tempo duvido que
haja alguém que se aventure até lá.
- Sei o que estás a imaginar.
- Melhor. Iremos agora mesmo investigar.
- Com esta chuva?
- É mais seguro. Talvez amanhã o Adén venha revistar o meu quarto. Levaremos o mínimo de coisas, roupas e fósforos. Tu ficas escondida e eu mando um amigo buscar o menino. Se tudo correr bem, amanhã ao meio-dia mostrarás ao Peter o novo lar
- Acho que estás maluca, mas não tenho alternativa.
- Vai correr tudo bem. Confia em mim.
- Sempre confiei em ti.
E então Nicole desatou a chorar como uma criança nos braços da amiga, enquanto repetia uma e outra vez:
- Obrigada pelo que disseste. És a única pessoa que
não me condenou.

Jimmy Evans portara-se como um verdadeiro amigo. Numa secreta conversa telefónica, Nicole contara-lhe o sucedido e o rapaz, largando as suas obrigações, levara a criança até à cabana do rio, deixando-a a salvo nos braços da sua angustiada mãe. .
Também tivera o bom senso de carregar o carro com lenha, velas, leite em pó, cereais, frutos e outros
artigos de primeira necessidade de que a fugitiva necessitaria enquanto ali estivesse.
Rita ficara impressionada com a gentileza daquele ;
cavalheiro a quem recordava como um rapaz obeso.
O tempo tinha sido generoso com ele, tanto como
havia sido cruel com ela. Teria ficado surpreendida se
soubesse que Jimmy a tinha considerado adorável.
Para aquele homem não havia nada de mais belo
do que aquela mulher vestida de negro e com olhos
doces, que embalava o filho.
Claro que dissimulou muito bem o seu entusiasmo
masculino, pois sabia que aquela mulher não estava
em condições de ouvir piropos.
Nem com Nicole falou Jimmy do seu segredo, embora a jovem se tenha apercebido do que estava a acontecer com o seu amigo.
- Diariamente à meia-noite ambos se encontravam
nas imediações da mansão Shamir para visitar
Rita, que estava muito só.
Para Nicole esses encontros diários foram-se convertendo num agradável hábito, pois podia ver o pequeno Peter, a quem já amava como se fosse seu, e divertir-se uma ou duas horas com a amena conversa de Jimmy. Percebia que esses momentos eram vitais para Rita, que estava moralmente destroçada.
- Porque não aproveitas a tua estada aqui e escreves um livro sobre Medicina cigana - propôs Nicole, consciente de que seria muito importante para Rita ter um objectivo a cumprir.
- Excelente ideia - entusiasmou-se Jimmy. - Vou trazer-te uma máquina de escrever, folhas, tudo o que precises. Tenho um amigo editor em Nova Iorque que poderá interessar-se pelo material.
A princípio, Rita tinha resistido, mas no fim fora a
elaboração daquele livro que a salvara.
Escrevê-lo e ocupar-se de Peter tomava todo o seu tempo, e as semanas foram passando.

Mas quis a maldade da velha Felisa que essa felicidade acabasse abruptamente, pois a cigana descobriu que todas as noites Nicole se ausentava de casa, e, desejosa de acabar com a rival da sua filha de uma vez por todas, correu a contar ao seu futuro genro, sugerindo-lhe que a jovem tinha um amante.
- Tem a certeza do que me está a dizer? Não
será que a rapariga se limita a dar uns passeios
por aí - perguntou Adén quando a tia Felisa lhe contava que a sua governanta saía todas as noites às escondidas pela janela.
- Duvido que uma mulher bonita como ela vá apanhar frio sem razão. Que eu saiba, já quando era
jovem era dada a muitos passeios pelo rio.
Adén mordeu os lábios para não insultar aquela velha que, de forma tão estúpida, o censurava pelo seu passado com Nicole.
E para que aquela bruxa não continuasse a humilhá-lo, fingiu que Lhe era completamente indiferente tudo o que ela lhe estava a dizer.
- Pois eu pago-lhe para trabalhar durante o dia e pouco me importa com quem se encontra à noite.
- É que eu não acho próprio que ela se encontre com homens na tua propriedade, ainda mais quando a minha filha se vai tornar a dona da casa.
- E que importância tem para ela um deslize da empregada?
- Pode dar mau exemplo. A minha filha é uma rapariga inocente - acrescentou a velha, fingindo rara intimidade existente entre Minie e o seu namorado.
- Pode ser que tenha razão, Felisa. Eu encarrego-me de resolver o problema.
- Vais despedi-la?
- Quando tomar uma decisão você será a primeira a saber - afirmou ele com autoridade.
Adén estava indignado. Em primeiro lugar com Nicole, que na verdade, mataria se de facto tivesse um amante. Mas, além disso, estava farto de Minie e i de sua numerosa família, já que nos últimos tempos ela punha e dispunha como se a casa fosse sua e as raparigas abusavam da sua generosidade, gastando fortunas em roupas que nunca usariam, uma vez que não se deslocavam sozinhas à cidade i encomendavam modelos caríssimos de Nova Iorqe. Inclusivamente Minie, que a princípio se mostrara dócil e activa, passava agora os dias a dormir e aos fins-de-semana queixava-se de tédio.
- Estou farta de estar aqui fechada. Quando casarmos quero fazer uma grande viagem, sem irmãs nem primas. Também quero ter um automóvel e assim poderei passear quando estiveres fora de casa.
- Primeiro precisas de aprender a conduzir e
melhorar o teu inglês, querida - tinham sido as duras palavras de Adén.
Além disso, desde que Nicole vivia naquela casa já não desejava Minie como antes.
Apenas a visitara nos seus aposentos uma ou duas vezes nos últimos três meses e não tinha sido com grande convicção.
Minie era bonita. Tinha uma cintura deliciosamente estreita, a pele macia e era carinhosa com ele entre os lençóis. No entanto, era um pouco passiva para os gostos dele. Claro que de todas as formas, casaria com ela.
Mas antes de pensar em casamento tinha uma
conta para ajustar com Nicole, uma conta que lhe
havia dado cabo da juventude e que ainda hoje ó
atormentava. Do que ele necessitava verdadeiramente era de a possuir. Supunha que assim a sua obsessão por ela desapareceria e deixaria de a desejar.
Primeiro iria segui-la para verificar se ela tinha de facto um amante. Depois, se isso fosse verdade, torná-la-ia sua. Por fim despedia-a e punha-a fora de casa, uma vez que a sua conduta indecente permitia dar por terminado o contrato que tinham assinado.
Foi assim que Adén Shamir, um homem jovem e rico, se escondeu no seu próprio jardim nessa mesma noite com o olhar fixo na janela de Nicole.
Quando a rapariga saltou pela janela com os sapatos na mão e se escapuliu em bicos de pés, tomando o caminho que dava para o rio, ele seguiu-a a uma distância prudente.
Era sexta-feira, havia Lua Cheia e estava muito frio. Mas além disso não era uma sexta-feira qualquer, pois fazia sete anos desde o pacto de amor que Nicole Horton e Adén Shamir haviam celebrado.
Nicole estava triste, muito triste. Adén casar-se-ia em breve com Minie e ela passaria o resto da vida com o pai.
Nunca lhe passara pela cabeça gostar de outro
homem como, por exemplo, Jimmy Evans.
Mas o seu amigo estava loucamente apaixonado
por Rita, e Nicole sabia que também Rita estava
entusiasmada com o seu carinhoso protector.
Para não fazer esperar Jimmy, Nicole acelerou o passo. Estava mais nervosa do que era habitual.
Talvez fosse a Lua Cheia que tivesse influência no seu estado de ânimo.
Mas sentia-se observada. Quando viu Jimmy à sua espera tranquilizou-se. No entanto, nessa noite, Jimy não se distraiu como era costume com os relatos de Rita. Por isso deixou mais cedo aquela carinhosa companhia e regressou ao seu quarto, disposta a abraçar a almofada, como tinha feito durante
todos aqueles anos.
Ver Nicole com aquele homem tinha despertado em Adén um ódio que ele pensava já ter superado.
Escondido no bosque, observou os namorados
desaparecerem no bosque e não foi capaz de os
seguir, pois sabia que se os visse beijarem-se ou fazer
amor acabaria por os matar.
No dia seguinte à sua discussão com Rita mandara um dos empregados de confiança verificar o paradeiro da rapariga. Era sua irmã e não a deixaria numa situação critica: Claro que a sua ajuda seria anónima, pois preferia que Rita o considerasse um canalha do que algum dia ser acusado por um dos
seus de não ter honra.
Estranhava que os seus homens não tivessem descoberto o paradeiro da irmã. Esperava que ela estivesse bem, longe da Polícia.
Esqueceu por momentos aquele problema e recordou Nicole a cumprimentar o misterioso homem que a aguardava. Quando os imaginou atravessar o bosque de mão dada, fez-se-lhe um nó na garganta.
Desesperado, mergulhou a cabeça no rio. O frio permitiu-lhe pensar e tomar uma decisão.
Tal como havia planeado antes, esperá-la-ia no quarto. Nessa mesma noite tomaria posse do seu corpo, ainda que ela levasse na pele o cheiro do outro e o sabor do outro nos lábios.
Adén Shamir regressou a casa, envolto na escuridão, como um bandido.
Avançou em bicos de pés até ao quarto de Nicole. Fechou a porta à chave e aguardou com a calma de um caçador que sabe ter a presa segura.
Ela não se fez esperar.
Ele admirou a sua figura delgada quando ela entrou pela janela. Era bela, sem dúvida.
E mais bela lhe pareceu quando fechou a janela, cerrou as cortinas e se despiu.
Adén nem sequer esperou que ela vestisse a camisa de dormir. Desligou o candeeiro e saltou sobre ela. A mulher quis gritar, mas ficou paralisada pelo medo. Primeiro o medo, depois a surpresa. Porque reconheceu o cheiro do seu homem logo que ele a empurrou sobre a cama, assim como reconheceu o doce gosto dessa boca tão amada, quando uma língua exigente lhe separou os lábios e lhe começou a percorrer a boca.
Era Adén.
Adén que a beijava, que a mordia, lhe apertava os seios, lhe afastara as pernas e lhe acariciava o sexo
com uma impaciência muito diferente do passado. Ele não tinha a mesma consideração que o homem que tinha respeitado a sua virgindade.
Assustava-a, mas ao mesmo tempo despertava nela um fogo mais intenso. Os seus lábios eram mais ásperos. Os seus beijos agressivos. As suas mãos agarravam-na com demasiada força e tirara-lhe as calcinhas com rapidez. Nicole mordeu os lábios para não gritar de dor e de prazer. O sexo do homem penetrava-a com ansiedade e determinação. Tratou de se descontrair, de sentir o clímax que se aproximava, lento, depois da dor que a tinha atravessado.
Depois de morrer de dor julgou morrer de prazer,
E Adén voltou a entrar nela várias vezes.
não quis perguntar-se o que estava a acontecer,
por que razão ele a possuía daquela forma selvagem.
Também não foi capaz de imaginar o que sucederia depois entre eles.
A quem poderia importar o futuro quando o presente lhe oferecia tal prazer?
Provavelmente tão-pouco. quis que ele perguntasse alguma coisa, pois ao fazê-la sua, manteve-se em silêncio. Tinha julgado que a primeira vez entre ambos seria uma delicada posse e não aquela sede insaciável, aquela busca frenética de uma satisfação que não parava de o deixar feliz. Possuir aquela mulher, morrer uma e mil vezes.
Perdê-la também seria morrer.
Amava - com desespero, com loucura. Tanto que até pensava estar a ser vítima de uma alucinação pois quase poderia julgar que Nicole era virgem. Mas ela tinha sido casada e agora tinha um amante, por isso Adén pôs essa ideia de parte. Uma vez satisfeitos os seus apetittes, saiu do quarto, enquanto pronunciava palavras que tiraram a jovem violentamente do seu êxtase:
- Dou-te uma hora para que desapareças. Se não me obedeceres esta será a última noite da tua vida.
- Não percebo. Então o que significa o que se passou agora entre nós?
- Há sete anos, em casa dos teus pais, eu devia ter feito o que fiz hoje. Assim talvez me tivesses respeitado e não te tivesses casado com esse velho.
- Continuo a não entender. Então, porquê esta noite?
- É a minha vingança. Desta vez sou eu quem vai casar mas quis ver como eras na cama. Apanhei uma desilusão, pois pensei que fosses uma mulher mais ardente. Põe-te a andar, Nicole, pois não quero ofender a minha noiva com a tua presença aqui.
- Não te preocupes - respondeu. - Eu vou.
- Quero-te fora da minha propriedade. Vou soltar os cães esta noite e se te apanham...
Nicole estremeceu. Algo na voz dele lhe provocou pânico. Evidentemente que o ódio dele era maior que o desejo.
Na verdade, não acreditava que Adén fosse capaz de lhe fazer mal. mas o risco era grande. Lavou-se rapidamente, vestiu-se e saiu. Durante uns minutos estivera no céu, mas agora estava de novo no Inferno.
- Acalma-te, Nic, acalma-te - insistia Rita enquanto vestia o miúdo e preparava um pequeno saco.
- É que não resisto a isto, Rita. Amo-o.
- E ele ama-te a ti, Nicole, mas o seu orgulho é mais forte.
- Não estou segura, amiga. Ele disse que eu o tinha decepcionado esta noite.
- E tu acreditaste?
- Não sei, Rita, é possível. Tu bem sabes que eu nunca tinha estado com outro.
- Deverias ter-lhe dito.
- Tive vergonha.
- Porquê?
- Porque estive casada.
- Pois quem deveria envergonhar-se era quem esteve casado contigo.
- É melhor não falarmos dele.
- Está tudo pronto. Vamos?
- Sim, temos de ir depressa. Corremos perigo.
E as duas mulheres começaram a andar pelo caminho junto ao rio.
Uma vez fora da propriedade de Adén, sentiram-se
mais aliviadas.
- Toma conta do Peter - disse Rita. - Eu vou buscar uns ramos secos e faremos uma boa fogueira, como nos velhos tempos.
Nicole sentou-se então, apoiando as costas contra
uma árvore. Abraçou o pequeno com ternura e começou a entoar uma canção para o adormecer.
Imaginou-se de regresso ao Canadá. O melhor seria ir com Rita e Peter. Por algum motivo era sua amiga, a sua melhor amiga, sua irmã.
Quando saiu do quarto de Nicole, Adém começou a caminhar como um sonâmbulo, no andar de baixo da casa, sem saber muito bem o que fazer. Debatia-se entre a vontade de correr para os
braços da sua antiga noiva e dizer-lhe quanto a amava, ou cumprir friamente a sua vingança. Tinha a cabeça às voltas, doía-lhe o corpo, o coração batia desordenadamente.
Lembrou-se vagamente que Minie marcara com ele um encontro para essa noite.
Tenho algo especial preparado para ti - dissera ela. - Acorda-me quando chegares.
Iria mais tarde, um pouco mais tarde.
Ignorava que a tia Felisa lhe montara uma armadilha para essa mesma noite.
A velha, depois de ameaçar a filha, conseguira que ela acedesse a usar os seus unguentos e a seguir os seus conselhos para ficar grávida.
- Minie, hoje é o dia. Deves fazer com que ele te visite no teu quarto antes de amanhecer. Daqui a nove meses verás o resultado desta noite.
- Preferia não ser mãe tão cedo.
- Mas já tens vinte e dois anos! Eu tive o primeiro aos dezoito e bem orgulhosa estou.
- Eram outros tempos, mãe.
- Sei o que estou a dizer, Minie. Se não seguras hoje mesmo este homem, em menos de um mês estaremos de regresso à aldeia.
- Acha que o Adén vai faltar à sua promessa?
- Acho que ele nos daria algum dinheiro. um punhado de dólares antes de subirmos para o avião.
- Se nos der dinheiro não vejo qual é o problema.
- Não entendes? Seria matar a galinha dos ovos de ouro. A quantia chegaria para vos casar e pouco sobraria para mim quando fosse velha.
- Eu cuidaria de si.
- Cuidarás de mim tanto como o fizeste até agora,
o que quer dizer, nada.
- Não tem saudades dos rapazes, mãe?
Então um longo silêncio substituíra o entusiasmo
daquela velha mulher que pela primeira vez durante a discussão, se sentiu vulnerável.
- Sim, dos rapazes, sim. E também da minha
comadre.
- E então?
- Viver aqui tem o seu sabor. Somos as rainhas
deste castelo americano.
- Eu sinto-me mais prisioneira do que rainha.
- Dá-lhe um filho e verás.
- Talvez tenha razão, mas está segura de que a
providência está do nosso lado?
- Talvez sim, talvez não. Mas saberemos isso muito
em breve.
Enquanto isto acontecia no piso superior, Adén,
ignorando por completo o que tramavam as duas
ciganas, tentava acalmar-se.
Que diriam os seus antepassados se soubessem que
ele amava uma americana? Perdoar-lhe-iam ou iam
expulsá-lo da comunidade? - Era impossível dizer, já que algumas mulheres eram aceites entre os ciganos se a família do noivo estivesse de acordo. embora o inverso nunca se
passasse, pois a mulher que se unia a um estranho desonrava os seus por três gerações.
Tratando de imaginar se os seus avós teriam aceite Nicole, acabou por adormecer. Teve sonhos maravilhosos.
Acordou sobressaltado. Olhou para o relógio. Tinham passado quase duas horas desde que saíra do quarto de Nicole. Ela já se teria ido embora.
Têla-ia perdido para sempre?
Adén esquecera Minie por completo, que o aguardava no andar de cima, perfumada com água de sas e com a pérola mágica na mão esquerda.
Esquecera tudo, excepto Nicole e por isso correu célere ao quarto dela, sem saber muito bem se preferia encontrá-la ali ou não.
A porta estava aberta. Entrou e acendeu a luz.
As roupas da rapariga continuavam a ocupar o guarda-fatos. Mas a mulher não estava lá. Olhou para a cama. Ela provavelmente por pudor, tinha coberto a cama com a colcha antes de sair.
Arrancou-a com um puxão, para aspirar uma vez mais o doce odor de ambos, unido pela primeira vez num só odor.
Então, desconcertado, descobriu aquela mancha de sangue no lençol. Ainda estava húmida.
Recordou tudo o que tinha sucedido havia pouco tempo entre aquelas quatro paredes: a doçura e a timidez da rapariga, a sua resistência e o repentino prazer. Seria possível aquilo?
Ele tinha sido mesmo o seu primeiro homem?
Tratara-a como se fosse uma qualquer, quando aquela mulher escondia algum segredo horrível.
O seu casamento devia ter sido um fracasso. Onde
estaria ela agora? Agarrou na camisa de dormir azul
dela e foi buscar um dos seus mastins, Black.
Acariciou-o, fê-lo cheirar a peça de roupa e disse-lhe:
- Leva-me a ela. Encontra-a depressa.
O animal pareceu compreender pois, assim que
Adén lhe colocou a trela, começou a seguir o rasto de
Nicole, a perseguir o seu cheiro por entre as árvores.
Felizmente, a Lua iluminava o caminho.
Adén reconheceu o local onde havia visto Nicole
com aquele homem. Quando o cão tomou o caminho para o rio, as pegadas tornaram-se mais nítidas sobre a terra. Chegaram à cabana.
Black deteve-se um momento ali, confuso, e depois
tentou continuar. Mas Adén impediu-o.
Já nem sequer se lembrava daquela precária construção na sua propriedade. Ia lá dentro dar uma vista de olhos. Primeiro viu a mesa e as quatro cadeiras.
Logo a seguir avistou a máquina de escrever e algumas folhas soltas com nomes de plantas e fórmulas para preparar medicamentos caseiros.
Ele conhecia muito bem aquelas receitas, a mãe
usara-as quando ele estava doente. Viu a lareira e ao
aproximar-se verificou que ainda estava quente.
Entrou no outro quarto. Só tinha uma cama, um
aquecedor e um berço. No berço, solitária e minúscula, estava uma meia azul celeste. Então ficou a
saber tudo. Adén agarrou na meia e beijou-a.
Sentiu uma compaixão infinita pela criança que
tinha perdido a meia. Era seu sobrinho e ele virara-lhe as costas. Percebeu perfeitamente a razão por que Nicole saía todos os dias à noite. Onde estariam agora ela e Rita? Quem era o homem que a acompanhava essa noite? Oxalá o sujeito estivesse com elas. De contrário, que iriam elas fazer com uma criança naquela noite gelada?
Saiu da cabana e ordenou a Black que continuasse à procura.
Cerca de uma hora depois, sujo de lama e com frio avistou a fogueira e as duas mulheres sentadas frente a ela, aquecendo as mãos em absoluto silêncio.
Que estranha é a natureza humana! - escreveria Rita Shamir num dos seus famosos ensaios intitulado Médicos da Alma, muitos anos depois daquela terrível noite. Estranha porque anos de dor podem desaparecer num instante, e então o ser humano esquece o sofrimento como se este nunca tivesse existido, disposto a continuar, confiante como um recém-nascido, preparado para a felicidade. Talvez ao escrever este parágrafo Rita tivesse recordado o seu irmão Adén, com o rosto banhado em lágrimas, aparecendo entre as árvores do bosque como um fantasma e estendendo os braços para que Nicole lhe desse Peter.
Sete anos de rancores, de tristezas, de ciúmes e de
incerteza tinham ficado para trás com um simples abraço, quando os enamorados, finalmente, se perderam nas margens do rio.
Logo a seguir tinham-se sentado os três junto à
fogueira a contar as suas histórias, ou melhor, as partes que os outros não conheciam das suas histórias.
Rita falou do pai do seu filho, do homem que tinha
prometido cuidar dela e a abandonara. Também falou da esperança que jimmy trouxera à sua vida.
- É puro como uma criança e forte como devem ser os homens. Nenhum homem, cigano ou não, me teria ajudado como ele o fez, sem esperar nada em troca - explicou Rita ao irmão, que a escutava em silêncio.
Nicole contou como o seu cruel marido a
havia enganado, falou dos anos sem paixão. Do seu
regresso a Shermont e do seu infinito e incondicional amor por Adén. E Adén, por último, falou dos esforços vãos para esquecer a mulher que tinha no sangue, da depressão em que caíra, do muito que se arrependia pelo mal que tinha feito àquela comunidade naqueles anos desesperados.
E então, ao concluir a conversa, os três fizeram um
novo pacto. Continuariam unidos como irmãos e como amigos. Foi assim que viram o amanhecer sobre o rio e que regressaram a casa.
As mulheres precisavam de repor forças depois do
que tinham passado.
E o homem tinha de resolver a sua situação.
Falaria com Minie, dar-lhe-ia um bom dote, assim
como às outras raparigas.
E foi assim que nessa manhã Adén Shamir rompeu
o seu compromisso com Minie e pediu Nicole em
casamento.
Claro que antes, como bom romântico que era, a
convidou para um jantar íntimo no salão cigano do seu castelo. Trinta lamparinas e velas brancas estavam acesas, aguardando a chegada da rapariga. E um homem, com camisa colorida de mangas largas e calças pretas, aguardava-a, reclinado sobre os inúmeros almofadões daquele seu refúgio. Ela chegou, com um elegante vestido azul celeste. quando ele começou a acariciá-la descobriu, encantado, que ela não levava nem soutien nem calcinhas.
Despiu-a, então. Mordiscou-lhe os mamilos e possessivamente fê-la sua.
Depois comeram e beberam, despidos, antes de voltar a fazer amor, e adormeceram abraçados, tal como dormiriam as restantes noites das suas vidas. O despertar foi doce. Teve gosto a chocolate, guloseima que aquele rapaz grande continuava a comer todas as manhãs, pois recordavam-Lhe os beijos travessos que ele e Nicole tinham trocado junto ao rio.

Era uma manhã de Verão. Em Shermont, metade da população saía da igreja. Quatro adultos, duas crianças e um cão preto avançavam pelo caminho que dava para o rio. Os homens com canas de pesca na mão e as mulheres, uma loira e outra muito morena, com as cestas de alimentos.
- Peter, abriga-te do sol, querido - disse uma das mulheres para a criança mais velha, um morenito dos seus quatro anos, vestido de encarnado.
- Eu gosto do sol, mamã.
- Eu sei, mas daqui a pouco já estás a tomar banho e poderás tirar a roupa.
- E a mim, deixas-me tomar banho - perguntou
o outro miúdo, de cabelo claro e olhos cor de trigo à mulher loira.
- Claro, meu amor. O teu pai irá nadar contigo.
- E tu vais pescar como sempre, mamã?
- Acho que não - riu-se a jovem, enquanto acariciava o avultado ventre que provavelmente já não Lhe permitia fazer grandes esforços.
- Estás bem, querida? Queres sentar-te? - perguntou um dos homens, olhando-a com ternura.
- Não, Adén, já te disse que ainda faltam uns dias para o parto.
- Se tu o dizes. podíamos pedir à Rita que consultasse o tarô. Que dizes, irmã?
- Não trago as cartas, mas também não fazem falta.
Lembra-te de que a tua mulher previu com um mês
de antecedência o dia em que o Thomas nasceria.
- Sim. Às vezes parece mais cigana do que nós.
- E a nossa filha herdará esse dom, querido.
- Será menina?
- Aposto contigo cem dólares.
- Nada de apostas, lembra-te, Nicole.
A mulher sorriu com doçura para o marido que
logo depois de se casar tinha cumprido a promessa que fizera quando ela lhe dera o sim.
Ao ouvido, no altar, ele tinha jurado fechar o
Andaluzia no dia seguinte.
Logo havia reiterado a sua promessa ao tomá-la nos braços para entrar em casa e descobrir, com um estremecimento, que ela não levava roupa interior, como ele uma vez havia sonhado.
Adén comprometera-se formalmente a fechar as casas de jogo e a ganhar a vida com um trabalho respeitável.
A princípio não soubera bem o que havia de fazer com os dois imponentes edifícios vazios que tinham constituído o centro de reunião dos apostadores. Mas logo, graças a uma inteligente sugestão da Nicole, tinha transformado as casas de jogo em salões de baile e entretenimento para a juventude.
Basta de usura, basta de casinos, basta de vícios. mont precisa de alegria, alegria sã e dar-lhes-ei isso. Assim, quando os nossos filhos crescerem, não quererão deixar esta terra, dissera ele.
O negócio resultou e, com efeito, atraiu muita juventude às desoladas ruas da localidade.
Mark Horton, seu sogro, foi encarregado de conduzir esse negócio, trabalho que permitiu ao velhote ser rodeado de gente jovem e alegre, como ele gostava. e, ao mesmo tempo, dedicar-se a uma tarefa útil que lhe fizesse desaparecer a depressão que tinha tido a ponto de lhe custar a vida.
Mas a sua obra não terminou ali. Também criou um hospital de pediatria dirigido pela sua irmã Rita. Tinha três andares, unidade de terapia intensiva e uma ala baixa onde se albergavam as mães das crianças que estavam internadas e viviam longe de Shermont.
Parte do capital para a construção daquele complexo hospitalar e também a ideia haviam sido de Rita que, além de ter ganho a causa em que era acusada de negligência, se tinha tornado famosa na América devido aos seus livros de medicina natural
Não tinha sido fácil para ela enfrentar a justiça.
Tinham sido meses de angústia, mas era uma Shamir e ganhara a causa graças à sua força de vontade, já que tinha percorrido quase todos os cantos do país a relatar o seu caso, despertando desta forma uma polémica que agitou as instituições media americanas. Poderia a ciência ignorar a tradição?
Não era um preconceito condenar métodos curativos que os médicos desconheciam?
Por acaso o homem não se tinha curado durante séculos com plantas e outros elementos da natureza?
Por fim, após três anos, Rita Shamir conseguiu
que alguns médicos, os mais jovens, usassem os seus preparados quando era caso disso.
E a sua popularidade também havia beneficiado em Shermont, pois todos os dias dezenas de pessoas viajavam até àquela pequena localidade para a consultar.
Ela atendia-as a todas, mas saía do consultório cedo e ia para casa pois Peter era pequeno e precisava dela.
Claro que não era só por Peter que corria para casa,
mas também por Jimmy seu marido, que se havia revelado um homem muito apaixonado, tanto que costumavam fazer amor todas as tardes, quando a criança dormia.
- Não tens de regressar ao trabalho - repreendia-o ela com ternura.
- Primeiro o prazer, doutora. A doutora mesmo diz que não há nada melhor para a saúde do que fazer amor com quem se ama.
- E mantenho.
Então?
- Às vezes receio que fiques comigo para me agradar. que estejas preocupado com a loja.
- Confio nos meus empregados, querida. E daqui a uma hora volto para lá - respondia ele, enquanto lhe beijava ternamente a nuca e lhe acariciava os seios.
E Rita não resistia.
Adén e Nicole havia tempo que tinham seguido aquele exemplo, embora ambos preferissem o abrigo da noite para desfrutarem da intimidade que dia a dia crescia entre ambos.
- Como mudaste nestes últimos tempos - dizia ele. - És a melhor fêmea que já tive.
- Parece-lhe decente dirigir-se nesses termos à sua adorada esposa - repreendia ela, carinhosamente.
- Pois dizer o contrário seria faltar à verdade - respondia ele, enquanto lhe tirava rapidamente a roupa e a deixava cair no leito amplo, disposto a possuí-la mil vezes até ao amanhecer.
Em tudo isto pensava Nicole enquanto se dirigiam ao rio. E por isto esteve a ponto de derramar unas lágrimas quando as crianças descalçaram os sapatos e enfiaram os pés na água, convidando os a imitarem-nas.
- Venham, venham connosco, assim podemos
ir mais longe - pediam os pequenos, aos gritos.
- Já vamos. Esperem um momento.
Então os homens descalçaram-se também, dispostos a brincar com os miúdos naquela água fresca e cristalina.
As mulheres sentaram-se à sombra.
- Que bom é vê-los divertirem-se assim. Connosco nunca fazem tantas travessuras.
- São todos varões e entendem-se.
- Por isso é que eu gostaria de ter uma menina.
Devias imitar-me.
- Talvez já o tenha feito.
- Estás grávida - exclamou Nicole, abraçando efusivamente a amiga.
- ainda não sei. Peço-te que não digas nada. não
quero alimentar falsas esperanças ao Jimmy.
- Agora que me dizes, noto que tens os olhos mais brilhantes - disse a loira, olhando a amiga nos olhos.
- Em breve o saberemos. Mas para já, cala-te. Eu vou buscar uns ramos para fazermos uma fogueira - decidiu Rita, pondo-se em pé.
- Como nos velhos tempos.
- Como nos velhos tempos e como nos novos, amiga. Porque nada nem ninguém nos voltará a separar.


Fim
CASTELO BRANCO CHAVES
O ROMANCE HISTÓRICO NO ROMANTISMO PORTUGUÊS
Biblioteca Breve, nº 45
SÉRIE LITERATURA

Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.

O ROMANCE HISTÓRICO NO ROMANTISMO PORTUGUÊS
COMISSÃO CONSULTIVA
JACINTO DO PRADO COELHO
Prof. da Universidade de Lisboa
JOÃO DE FREITAS BRANCO
Historiador e crítico musical
JOSÉ-AUGUSTO FRANÇA
Prof. da Universidade Nova de Lisboa
JOSÉ BLANC DE PORTUGAL
Escritor e Cientista
DIRECTOR DA PUBLICAÇÃO
ÁLVARO SALEMA
CASTELO BRANCO CHAVES
O Romance histórico
no
Romantismo português
MINISTÉRIO DA CULTURA E DA CIÊNCIA
SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA
Título
O Romance Histórico no Romantismo Português Biblioteca Breve /Volume 45 Instituto de Cultura Portuguesa
Secretaria de Estado da Cultura
Ministério da Cultura e da Ciência
(c) Instituto de Cultura Portuguesa
Direitos de tradução, reprodução e adaptação
reservados para todos os países

1.ª edição ¯ 1979
Composto e impresso
nas Oficinas Gráficas da Livraria Bertrand
Venda Nova - Amadora ¯ Portugal
Janeiro de 1980

ÍNDICE
Pág.
I / GENERALIDADES E ANTECEDENTES .... 6
II / OPOSIÇÕES E OBJECÇÕES......... 18
III / O ROMANCE HISTÓRICO NO PRIMEIRO ROMANTISMO PORTUGUÊS .......... 25
Herculano................... 25
Garrett ..................... 32
Oliveira Marreca................. 36
Rebelo da Silva ................. 37
IV / O ROMANCE HISTÓRICO NO SEGUNDO
ROMANTISMO PORTUGUÊS .......... 42
Rebelo da Silva ................. 45
Andrade Corvo................. 48
Arnaldo Gama................. 49
Camilo Castelo Branco............. 50
V /VÁRIAS CONSIDERAÇÕES FINAIS ..... 56
RELAÇÃO SUMÁRIA DE ROMANCES
HISTÓRICOS, ORIGINAIS PORTUGUESES,
PUBLICADOS DE 1837 A 1867.......... 69
NOTAS..................... 85
BIBLIOGRAFIA BREVE ............. 89

6
I / GENERALIDADES E ANTECEDENTES

Quando em Portugal apareceram as primeiras
tentativas de novela histórica, publicadas no Panorama, já as principais literaturas europeias
haviam produzido as suas obras-primas deste
género 1, assim como também, por esse mesmo
tempo, já a obra de Walter Scott havia deixado de
ser o paradigma e o cânone da novela histórica 2.
Este retardamento resultava de duas causas
convergentes: o atraso da vida social e política no
Portugal de então; o quase completo alheamento do
movimento cultural e artístico europeu em que se
vivia no país e do qual o português só tomava
consciência quando emigrava. E para o
compreender e nele participar, mesmo nestas
circunstâncias, era condição necessária que
pertencesse à nova geração, àquela que nascera já
nos alvores do século XIX. Dentro do país, a
irrequietação literária mantinha-se apenas no prélio
pacato em que se debatiam elmanistas e filintistas
3 . As ousadias dos mais velhos, daqueles que
promoveram ou acompanharam a revolução de
1820, concentravam-se todas no campo da política
7
e ainda aí, com timidez e hesitação, proclamando os
direitos do povo em nome da Santíssima Trindade.
Herculano, no início da sua carreira literária, em
1834, escrevia no Repositório Literário: "O movimento
intelectual da Europa não passou a raia de um país
onde todas as atenções, todos os cuidados estavam
aplicados às misérias públicas e aos meios de as
remediar. Os poemas ¯ Dona Branca e Camões ¯
apareceram um dia nas páginas da nossa história
literária sem precedentes que os anunciem, um
representando a poesia nacional, o romântico; outro a
moderna poesia sentimental do Norte, ainda que
descobrindo às vezes o carácter meridional do seu
autor. Não é para este lugar, o exame dos méritos e
deméritos destes dois poemas; mas o que devemos
lembrar é que eles são para nós os primeiros e até
agora únicos monumentos de uma poesia mais
liberal do que a dos nossos maiores." 4
Mas Dona Branca e Camões escreveu-os Garrett no
exílio. Foi durante a sua primeira estadia em
Inglaterra, em 1824, que aprendeu a ver e a sentir
"romanticamente" e foi de lá que veio com o
propósito de descobrir no povo e nas tradições
populares o verdadeiro génio nacional da sua pátria
que o mesmo era, para os nossos românticos
incipientes, o de instaurar, nestes domínios da
Nova Arcádia, o Romantismo.
"Lembra-se ¯ escrevia Garrett a Duarte Lessa
em 1824 ¯ das nossas conversas de Londres sobre
antigualhas portuguesas e o muito que delas se
podia aproveitar quem de nossas legendas e velhas
histórias e tradições fizesse o que tão bem fazem
ingleses e alemães, que é vesti-las de adornos
8
poéticos, e sacudir-lhes a poeira dos séculos com
bem assisada escolha e apropriado modo? Pois
desde então (e já de mais tempo me fervia isto na
cabeça) não fiz eu senão pensar no jeito com que
me haveria para armar assim uma cousa que se
parecesse, mas que de longe, com tanta cousa boa
que por cá há por estas terras de Cristo, e que pelas
nossas, de tão ricos que somos, se esperdiçam e
andam a monte, por desacerto de letrados e
barbarismos de ignorantes." 5
Estas "antigualhas", "velhas histórias" e
"tradições" cujo aproveitamente literário já de mais
tempo lhe fervia na cabeça, fora-lhe então
provavelmente sugerido por Filinto Elísio que
planeara uns "Fastos" portugueses e para tal obra
compusera vários quadros acompanhados de muitas
notas. Numa delas confessou Filinto: "Tinha, à
imitação de Ovídio, começado estes Fastos, onde
desse conta das nossas festas cristãs das nossas
romarias, círios, festejos que as acompanham, e
outros ritos que são de nosso uso, quando uma
doença, e depois outras ocupações me atalharam de
as continuar. Deito este bosquejo a Deus e à
ventura; se me constar que agrada, prosseguirei,
incluindo nela os avisos que me vierem das pessoas
que quiserem concorrer para consagrar num poema
nacional os usos dos nossos maiores, ou os que nós
instituímos." 6
Mas certamente o que a leitura de Filinto nunca
lhe sugeriu foi o ser essa a matéria que havia de
constituir uma nova estética literária e ser esse o
caminho para a ressurreição do génio nacional.
9
Não fosse, porém, a leitura das Reliques of ancient
English Poetry de Thomas Percy, a das obras de
Shakespeare e das de Byron e a dos romances de
Walter Scott, não estivesse Garrett mergulhado no
ambiente onde se desenvolvia a poesia romântica,
que as sugestões de Filinto não o teriam tornado
poeta dos tempos novos.
Foi por esta época, a do seu exílio em Inglaterra
e em França, de 1823 a 1826, quando compôs os
poemas Camões e Dona Branca, "todo namorado
das melancolias do romantismo", que Garrett
delimitou o âmbito que viria a ser o do nosso
primeiro romantismo, propondo-se a dotar
Portugal de uma literatura nacional e própria
("Vamos a ser nós mesmos, vamos a ver por nós, a
copiar a nossa natureza, e deixemos em paz gregos,
romãos e toda a outra gente") cujo fulcro se
encontraria na nossa Idade-Média essencialmente
conservado na alma do povo: "O que é preciso
estudar é as nossas primitivas fontes poéticas, os
romances em verso e as legendas em prosa, as
fábulas e crenças velhas, as costumeiras e
superstições antigas.. Por tudo isso é que a poesia
nacional há de ressuscitar verdadeira e legítima." 7
Os dois poemas "românticos" de Garrett não
obtiveram, ao seu aparecimento, grande aceitação
do público, tendo a primeira edição de Dona Branca
levado cerca de vinte anos a esgotar-se 8, o que
denota a lentidão com que a literatura romântica em
Portugal ia formando o seu público. Mas não era
então o que importava mais; interessava
principalmente que as jovens vocações literárias se
tomassem da novidade. Essas, efectivamente, foram
10
conquistadas e não exagerou Garrett quando, ao
traçar a sua autobiografia publicada no Universo
pitoresco, afirmou: "Da sua publicação (Camões e
Dona Branca) data e procede quanto até hoje se
está fazendo para ilustrar a nossa história, os nossos
usos, as cousas da nossa terra."
A formação, desenvolvimento e mutação do
público ledor nas várias épocas da literatura estão a
reclamar um estudo. É tarefa que mais incumbirá
aos estudos de história social do que aos de
natureza propriamente literária, embora sob este
aspecto hajam de trazer esclarecimentos que
interessam a alguns problemas de história literária.
No estudo do que podemos chamar "o
fenómeno romântico" e particularmente no da
evolução e vasta expansão do romance no século
XIX, impõe-se o estudo do público que recebia com
interesse crescente essas produções da arte literária
e muito particularmente o da variação dos seus
níveis de qualidade consoante os vários sectores
sociais desse público.
A massa de leitores que havia de constituir o
público do romance histórico em Portugal (é ao
romance histórico que nos havemos de cingir),
particularmente desde 1840 a 1860, vinha preparada
desde muitos anos antes pela leitura das traduções,
geralmente infiéis, da novelística estrangeira,
abundantemente editadas 10. José Agostinho de
Macedo em O Desaprovador (1818) denunciava
essas novelas como corruptoras e escrevia: ".. as
mulheres, os mancebos, e a maior parte das pessoas
que têm alguma tintura de educação, lêem
avidamente Novelas Francesas; este é um dos mais
11
vastos e mais poderosos canais por onde se tem
derivado a torrente da corrupção em Portugal.. As
novelas produzem todos os males, e nenhum bem,
e deste naufrágio universal se salvam unicamente
duas ¯ Argenis de Barclay e o Telémaco de Fenelon.
As mais estragam o espírito, corrompem o coração,
pervertem a vontade, envenenam os costumes, e
têm todo o poder de dar cabo da língua
Portuguesa." 11 E não eram só as novelas francesas
que caíam sob a férula de Macedo, eram também as
inglesas, o Tom Jones, os romances de Richardson
que ele, aliás, admirava, e até "um maldito Werther,
apóstolo do suicídio, não faltando Quixotes que se
queiram matar por amor de uma mulher de quem se
aborreceriam logo se com ela casassem, e ela se
começasse a queixar de flatos histéricos, vapores,
frieiras e indigestões. . " 12
Além deste público que a novela histórica vinha
encontrar em Portugal predisposto à sua leitura,
concorriam a aumentá-lo e a desenvolvê-lo os
emigrados que regressavam à pátria, já iniciados em
França e na Inglaterra na nova literatura.
Contribuíam também ¯ e destacadamente ¯
para a divulgação do gosto pelo novo género
literário as traduções das novelas de Walter Scott,
bem como os periódicos literários cujo
aparecimento se multiplicava, cabendo, entre eles, a
primazia ao Panorama.
Além de todos estes factos, há a considerar o
fenómeno económico-social do incremento da
pequena burguesia portuguesa que se vinha
revelando desde as invasões francesas e a que a
12
vitória liberal animara a aspirações de maior lustro e
melhor ilustração.
Ora a literatura que o primeiro romantismo
português oferecia à burguesia indígena, estava
acondicionada ao grau da sua cultura e, pelos temas
e motivos, lisongeava-lhe a dignidade política e
social em que se considerava investida.
Já dissemos que Garrett estabelecera em
doutrina e na prática o que havia de constituir a
estética literária do primeiro romantismo português
e suas sequelas: estudo do Portugal medievo, onde,
segundo ele e Herculano, existia em potência o
autêntico Portugal com as suas vigorosas forças
criadoras, que só o povo guardava ainda nos seus
costumes, crenças e tradições.
Mas Garrett, batalhador social e político, não
podia limitar-se a tão pouco e proclamava também
que a literatura moderna havia de ser pedagógica,
esclarecendo e educando pela poesia, pelo drama e
pelo romance.
Aconteceu assim, como sempre tem acontecido
desde então, que este nacionalismo, esta pureza
castiça vinha toda feita de fora, talhada pela moda
europeia mais recentemente conhecida.
Entre o aparecimento dos poemas "românticos"
de Garrett e as primeiras tentativas de novela
histórica, em 1839, mediaram cerca de dez anos.
Rebelo da Silva notou o facto e justificou-o:
"..sem a língua se achar aperfeiçoada a ponto de se
domar à narração flexível e variada do romance,
sem o estilo familiar se ter formado, e se prestar as
inversões, reticências e laconismos do diálogo, era
13
preciso apropriar à novela todos os géneros, desde
o epistolar até ao épico, porque ela abrange todos,
exercitando-os repetidas vezes. Além da forma
literária, tornava-se indispensável recorrer às fontes
originais, refazendo a história, restituindo os
caracteres e estudando os costumes. No meio de
tais dificuldades quem pode pois estranhar que o
lavor improbo de sujeitar a inspiração e infezar o
talento meses e anos a cegarem-se sobre
pergaminhos apodrecidos entre vermes e pó,
obstasse ao desenvolvimento desta manifestação de
arte, e tanto tempo mediasse entre o poema
romântico e a publicação da novela histórica?" 13
A vencer tais dificuldades se consagrou
Herculano, já então devotado com predilecção aos
estudos da história pátria, à leitura dos velhos
cronistas e às andanças para conhecimento dos
arquivos e cartórios do país.
Em 1835 fizera no Repositório Literário a sua
profissão de fé romântica: "Diremos somente que
somos românticos, querendo que os portugueses
voltem a uma literatura sua, sem contudo deixar de
admirar os monumentos da grega e da romana: que
amem a pátria mesmo em poesia; que aproveitem
os nossos tempos históricos, os quais o
Cristianismo, com sua doçura, e com seu
entusiasmo, e o carácter generoso e valente desses
homens livres do norte, que esmagaram o vil
império de Constantino, tornaram mais ledos que
os dos antigos: que desterrem de seus cantos esses
numes dos gregos, agradáveis para eles, mas
ridículos para nós e as mais das vezes inarmónicos
com as nossas ideias morais; que os substituam por
14
nossa mitologia nacional na poesia narrativa; e pela
religião, pela filosofia, e pela moral na lírica. Isto
queremos nós e neste sentido somos românticos."
14
Mas enquanto Herculano se adestrava na novela
histórica, publicando em O Panorama e no Cronista as
suas primeiras tentativas no género, sucediam-se as
traduções em língua portuguesa das novelas do
Walter Scott; de 1836 a 1838 pelo menos treze
traduções 15. Nas revistas e jornais literários de
então, eram frequentes os artigos sobre o
romancista escocês e as dissertações acerca do
género por ele criado.
Em notícia crítica das duas traduções de Quintino
Durward aparecidas em 1839, lê-se no volume do
Panorama desse ano: "Parece a muitos que a
tradução de uma novela é a coisa menos importante
e talvez a mais escusada do mundo ¯ em tese
poderá ser isto verdade, em hipótese nem sempre.
Pegar ao acaso em uma dessas mil novelas que os
franceses atiram à imprensa anualmente, como
mercadoria para o comércio, e traduzi-la em
português choco e bastardo, entra na tese; mas
trasladar uma novela, como algumas de Walter
Scott, onde às vezes se aprende mais história que
nos livros dos historiadores ¯ porque estes narram
sucessos, e aqueles juntam época e gerações ¯ e
trasladá-la em português corrente e limpo, longe de
ser coisa inútil, é um bom serviço que se faz à
literatura portuguesa. São as novelas os livros que
por maior número de mãos correm, e, quando
instrutivas e vertidas em boa linguagem, podem,
por isso mesmo, fazer grande benefício, não só
15
instruindo e deleitando, mas habituando o vulgo
dos leitores a pouco e pouco se aborrecerem dos
desconcertos, barbarismos e neologismos
escusados, de que anda inçada essa linguagem de
novelas e conversações, a que chamam, cremos que
por escârneo, língua portuguesa. Nesta hipótese
entra, em nosso entender, a tradução de Quintino,
feita pelo Sr. Ramalho.
Todas as pessoas que têm lido no original as
obras de Walter Scott, sabem quão grande
dificuldade achava quem quiser traduzir com
primor qualquer das suas novelas, e poemas. Essa
dificuldade venceu-a o Sr. Ramalho excelentemente,
dando-nos a sua tradução, com toda a energia,
natureza e verdade, as galas nativas com que o
escritor escocês adornou o seu Quintino.
Infelizmente, não podemos dizer o mesmo da
versão feita em Paris: o Sr. Moura, posto que mais
aprimorasse esta obra do que a tradução de Ivanhoe,
ainda está longe de merecer os elogios que de bom
grado lhe daríamos, se nossa consciência nos não
obrigasse a ser justos. Serviu-se, segundo nos
parece, da versão francesa de Defauconpret, que
por certo não é a mais fiel. Foi por isto, talvez, que
a sua tradução tem o gravíssimo defeito de estar
incompleta, faltando-lhe a conclusão da obra, que o
autor escreveu muito depois de ter publicado o seu
livro, e que se acha nas edições inglesas mais
modernas, bem como na versão francesa de
Montemont que, a não traduzir do original, o Sr.
Moura devia antes ter seguido." 16
E, no Panorama, Herculano não só preparava o
público para o novo género de novela como
16
também acumulava informações eruditas para
ilustração dos futuros novelistas, seja sobre a
arquitectura gótica, situação das diversas classes
sociais na Idade-Média, antigos foros e costumes,
milícia, monumentos, cronistas portugueses, etc.,
etc.
Em 1837, O Panorama publicou, sem nome de
autor, uma narrativa intitulada Quadros de História
Portuguesa ¯ Morte do Conde Andeiro e do Bispo de
Lisboa ¯ 1383. É apenas um esboço daquela
narrativa que, mais tarde, Herculano intitulou
Arrhas por foro de Espanha. Em 1838 o mesmo jornal
literário publicou uma outra narrativa: O Castelo de
Faria e pouco depois O Mestre Assassinado, Crónica
dos Templários ¯ 1320, ambas anónimas. Nesta
última pretendeu o autor, sugestionado pelo Ivanhoe,
pintar um quadro das violências dos Templários.
Tentativa tosca.
Seguiu-se, na série, Mestre Gil, também sem
nome a autorizá-lo, mas que Herculano confessou
pertencer-lhe. Nesta "Crónica do Século 15.º"
transparece a imitação do Quintino Durward de Scott,
cujo tempo histórico, como é sabido, é o da luta
entre Luís XI e o Duque de Borgonha. No trabalho
de Herculano o fundo histórico é o da luta de D.
João II com os duques de Viseu e de Bragança. Aí,
já o diálogo tem vivacidade e os personagens,
embora pouco individuados, são recortados com
certo jeito pitoresco. Além disto, a narrativa aparece
já com alguns laivos da "cor local" requerida em tal
género de escritos. Mestre Gil é quase um sósia do
barbeiro de Luís XI, e o nosso D. João II não deixa
de lembrar o rei francês tal como Scott o pintou no
17
seu romance. É também deste mesmo ano A
Abóbada, já autorizada com o nome de Herculano,
onde os progressos técnicos, linguísticos e cor
histórica revelam o nosso primeiro romancista
histórico.
Em 1839, Herculano publica no Panorama a
narrativa O Cronista ¯ Viver e Crer de outros tempos. A
acção passa-se no reinado de D. João III, quando
começaram a correr as notícias da chegada da bula
papal que concede ao rei a autorização para o
estabelecimento do "tribunal da fé" em Portugal.
Ao compilar as Lendas e Narrativas enjeitou
Herculano esta narrativa que lhe saíra da pena
inferior à Abóbada e à Morte do Lidador.
Também Cunha Rivara tentou por esta altura
(1840), nas colunas do Panorama, cultivar o género;
Um Feiticeiro (Crónica da Inquisição), é uma narrativa
dialogada em que se descrevem os trabalhos por
que passou Luís de la Penha, mágico e feiticeiro, a
contas com a Inquisição até à realização do auto de
fé em que figurou na cidade de Évora.
Esta fastidiosa enumeração, que podia ser
bastante alargada para além do essencial, julgamos
ser suficiente para dar o ambiente de audiência ao
género de ficção literária que com o Monge de Cister
vai aparecer em Portugal, com um êxito até aí
desconhecido em aceitação de obras literárias
originais.
18
II / OPOSIÇÕES E OBJECÇÕES
Em Portugal não houve "batalha romântica", nem
os românticos do Primeiro Romantismo encontraram
oposições que os tornassem aguerridos e polémicos.
José Agostinho de Macedo, o único capaz de lhes sair
ao caminho, estava morto e não havia mais ninguém
disposto ao combate. Certamente muitas das figuras
acreditadas da cultura portuguesa de então relutaram
em aceitar a nova escola - mas não saíram a combatêla.
Conhece-se 16 uma carta de D. Frei Francisco de S.
Luís, o futuro Cardeal Saraiva, datada de 23 de
Fevereiro de 1839, que é reveladora dessa posição.
Escreve o erudito: "O toque de que acima falo é o
romântico, sobre o que julguei conveniente explicar-me.
¯ Devo confessar que ouvi e li muitas vezes esta
palavra, sem poder conhecer bem o que ela
significava, e tendo vergonha de o perguntar.
Um dia lembrou-me de ir consultar o Diction.
français portugais et portug.-franc., que me dizem ser feito
por alguns portugueses doutos e impresso em Paris
em 1812 ou 1816. Achei com efeito este artigo:
Romantique, adj. m. et. femin., que lembra novelas,
situações delas, etc. Diz-se dos sítios. V. S.ª julgará se esta
19
definição é clara e adequada: eu pouco aproveitei com
ela. Quando ouvia falar em certas peças de Teatro,
que agora se fazem em quadros, diziam-me: é
romântica. Quando li algures versos que eu não
entendia à primeira leitura, dizia eu: Camões,
Ferreira, Sá de Miranda não escreviam assim; a
resposta era: é estilo romântico. A isto instava eu:
romântico dizem que é o que lembra novelas.. Eu tenho
lido com gosto, por exemplo, o Palmeirim, e
entendo-o bem; logo o estilo romântico não é que
se esvanece em elevações místicas ininteligíveis.
Um dia apertei, um pouco de mais, um
apaixonado das romanticidades e ele não achou
refúgio, disse-me por último, que em tudo havia
modas, e que esta era actualmente a moda da
linguagem. Daqui para diante não podia o argumento
dar mais passos; porque quem se opõe à moda é
jarreta, é tonto, é do tempo dos Afonsinhos, e eu não
queria nenhum destes sobriquets. ¯ Veio enfim de
Paris um meu amigo e bom literato, e pedi-lhe que
me dissesse o que lá entendiam por romântico.
Respondeu-me que era o desprezo das regras estabelecidas
pelos clássicos em todos os géneros de literatura. Veja V. S.a
se eu podia ser amigo do romântico, entendido neste
sentido."
Mais adiante, na mesma carta, acrescenta: "Em
resumo: escrevam-se embora novelas; escrevam-se
histórias pitorescas; escrevam-se belas descrições de
lugares, sítios, de vistas de países; pintem-se com
cores próprias os grandes quadros da natureza, as
suas obras grandiosas e magníficas, os seus
ornamentos, os seus brincos, todas as suas lindezas;
mas faça-se tudo isto em português inteligível,
20
casto, fluido, lúcido ¯ no português de Camões, de
Fr. Luís de Sousa, de Lucena, de Fernão Mendes,
de Francisco de Morais etc, etc." E, finalmente:
"Não sou tão dos tempos antigos que me reduza a
só laudator temporis acti; não queria (nem por
sombras) reprimir os esforços, os arrojos, os felizes
atrevimentos de uma imaginação viva, ardente, às
vezes impetuosa, etc. O que só quero, ou desejo, é
que em tudo isto haja modo e regra e temperança".
Há tolerância neste desacordo e a crítica é
tímida e os propósitos pacíficos.
D. Frei Francisco de S. Luís não se apercebeu
do problema de linguagem que se impunha à
expressão da nova literatura, errando rotundamente
ao julgar que era com estrita fidelidade à linguagem
de Camões ou de Francisco de Morais que a nova
poesia, o novo drama, a nova novela se podiam
realizar. Mais tarde, Camilo Castelo Branco usaria
de critério semelhante na apreciação da obra de Eça
de Queirós.
Também Francisco Freire de Carvalho
repudiava o Romantismo, considerando-o o novo
gongorismo da actual Escola Francesca; e se é certo que
anunciou, com propósitos impugnadores, uma
Memória sobre o género de poesia denominado romântico e sua
comparação com o denominado clássico, é também certo
que nunca o publicou.
Os reparos polémicos ficavam reservados,
faziam-se na intimidade da epístola ou da palestra.
Na imprensa, apenas um ou outro folhetinista mais
rabugento, ocultando o nome em pseudónimo ou
inicial, saía a despique. Cito, como exemplo
frisante, um que no Correio de Lisboa, no número de
21
15 de Fevereiro de 1839, não podendo conter a sua
indignação pela revolução "que o género romântico
fez na sociedade, na literatura, na política e até na
religião", terminava o seu folhetim, assinado apenas
pela inicial Z, com a seguinte síntese que não é
brilhante mas significativa: "Romanticismo ¯ é a
luz que alumia o actual século ¯ é a demagogia da
literatura e do coração, seus terríveis efeitos são, a
anarquia literária, e o egoísmo sentimental".
De resto, em Portugal, os próceres da nova
escola apresentaram-se desde o início mais como
renovadores do que como revolucionários:
renovadores da linguagem literária, ressuscitadores
da tradição nacional, iniciadores da nova estética e
novos géneros e mais libertadores da tirania
imitativa do "clássico" do que propriamente da
literatura clássica.
Castilho, ao prefaciar em 1841 a sua tradução de
As Metamorfoses de Públio Ovídio Nasão, opõe
justificadas razões ao medievalismo romântico: "Mas
(objectarão alguns) não são estas antigualhas grecoromanas,
as que hoje valem e se procuram no
mercado intelectual, mas sim as da idade-média; é
isto:
primeiro, porque as da idade-média, com
estarem mais próximas, estão por ora menos
averiguadas, e ainda as não reduziram, como as
romanas e gregas notícias, a dissertações, tratados e
lexicons amplíssimos; ainda não tiveram seus
Grevio, Gronovio, Heinsio, Petisco, Rosin,
Winckelmann, Maffeo, Montfaucon, Banier,
Muratori, Donato, Kirchmann, Beif, Fabretti,
Bianchini, Roberto Estevam, Neuport, etc.;
22
segundo, porque a Cavalaria, com sua profissão
de fé para com Deus, lealdade para com os
homens, amor, galantaria, e protecção para com as
mulheres, vem, muito mais do que o Paganismo,
com as opiniões e costumes do nosso tempo;
e terceiro, porque por esta mesma segunda
razão, e por serem superstição e barbaria da idademédia
muito mais fecundas em terror, de
necessidade haviam de prevalecer, como
prevaleceram, para moda.
Não dirão que enfraqueço ou dissimulo os
argumentos contrários; mas são eles por ventura
invencíveis? Examinai-os de perto.
O primeiro terá grande força por parte dos
autores, mas nenhuma por parte dos leitores, que
são infinitamente maior número.
Para um escritor, que entre os do seu país quer,
pode, e deve primar, facilmente concordo em que o
explorar minas virgens lhe há-de ser muito mais
agradável trabalho, do que lançar mão das riquezas
já por outros amontoadas. Mas desses verdadeiros
criadores da história íntima da sua Pátria, e lidos
por todos, quantas dúzias me apontareis? Teve a
Inglaterra um Walter Scott; poderia ter a França um
Vítor Hugo; começou e há-de chegar a ter Portugal
um Herculano. Quanto ao restante dos escritores e
escrevinhadores, e a todo o comum do Público,
especialmente entre nós, tão nosso é o que nos
livros dos Gronorios está averiguado, como o que
anda nas crónicas fradescas e cartórios do Reino jaz
escondido. Tão nova lhes será, e por isso tão
grotesca, a descrição da ceia de Trimalcião miudada
por Petrónio, como o de um jantar de homens de
23
armas à roda da caldeira e à sombra do Rico
Homem Egas Moniz. Tão insólita e divertida coisa
a relação que Apuleio lhes fará das posses e
malefícios das feiticeiras da Tesalia, como a lenda
das diabruras do Santo Frei Gil.
O segundo argumento, que versa sobre a maior
analogia que dizem ter com este mundo da
Liberdade o mundo feudal, por ser cristão,
cavaleiro e namorado, por negação se contraria;
porque se bem lançarmos as contas, achar-se-á que
não temos nós, ainda hoje, menos daqueles
remotíssimos Pagãos, do que destes Cristãos
afastados. Romana é a raiz das nossas leis; romano
o princípio de bom número dos nossos costumes;
romana e romaníssima uma boa parte dos
acidentais do nosso culto; romanas muitas das
nossas superstições; e até romana a nossa língua,
em palavras, em figuras e tropos, sem alusões e
reminiscências, sem rifões e anexins e até pela
diuturnidade do trato, com que ainda há dois dias,
frequentávamos romanos e romaníssimas ficaram as
feições das nossas virtudes e o carácter guerreiro e
vagabundo da nossa glória". 17
A citação foi longa, mas tão ignorados estão hoje
os escritos de Castilho que ela se justifica ¯ porque
ele foi o mais esclarecido e o mais elegante dos
opositores que o nosso primeiro romantismo
encontrou à sua estética. Castilho considerou "o
maravilhoso" romântico como muito menos
expressivo e muito menos belo que "o maravilhoso"
pagão. Castilho não acreditava no "popularismo
estético" dos nossos românticos e com uma razão
muito sólida, uma vez que Portugal contava então
24
mais de 90 % de analfabetos. Para o tempo que ia
"noveleiro e dramático", em que o sublime da arte
consistia, segundo Castilho, "em estender o ânimo dos
leitores sobre uma ideia, como sobre um pôtro de
martírio, dar-lhe tratos e queimá-lo a fogo lento"
consistindo a sua principal missão em "entristecer,
aterrar e desanimar a espécie humana".
Quanto à moral, Castilho considerava que, na
literatura antiga, cada atentado contra ela só tinha o
seu próprio nome, ao passo que na novela e no drama
românticos o adultério, o roubo, o homicídio
aparecem sedutoramente atractivos. Para ele era falsa
toda a arte literária que não tivesse por escopo a
beleza e por fim a dignidade humana. 18
Não teve Castilho impugnação, nem, que fosse
notório, houve romântico que levantasse a luva. Os
românticos portugueses só se bateram na guerra civil
¯ no campo das letras não lutaram e, em verdade,
mesmo que o desejassem, não tinham com quem.

25
III / O ROMANCE HISTÓRICO

NO PRIMEIRO ROMANTISMO PORTUGUÊS
HERCULANO
Respondendo a críticas que o increpavam por
haver alterado a verdade histórica nas suas crónicasromances
publicadas no Panorama, Herculano
respondia nas colunas da mesma revista: "Nós
procuramos desentranhar do esquecimento a poesia
nacional e popular dos nossos maiores: trabalhamos
por ser historiadores da vida íntima de uma grande e
nobre, e generosa nação, que houve no mundo,
chamada Nação Portuguesa". Termina a sua resposta:
"Alargámo-nos nesta nota, porque alguém nos
increpou de havermos alterado a história em várias
crónicas-romances que temos publicado,
principalmente no Mestre Gil e na Abóbada; era-nos
lícito fazê-lo; mas cremos que não o fizemos em
cousa essencial; nisto demos crónica, no vestuário
com que o enfeitámos demos romance. Não
confundamos ideias; o extra-histórico não é contrahistórico.
Vivem acaso naquelas duas.. novelas, se
quiserem ¯ as épocas a que aludem? Não teremos
26
tanto orgulho, que sem receio, o afirmemos. Mas se
com efeito aparece, em uma o modo de existir português,
do tempo de D. João II, noutro o crer e sentir
robustíssimo do reinado de D. João I, diremos sem
hesitar que saímos com o nosso intento. Preso por
mil, preso por mil e quinhentos, diz o velho adágio.
Vá aqui mais uma humilde opinião nossa. Parecenos
que nesta cousa chamada hoje romance-histórico
há mais histórias do que nos graves e inteiriçados
escritos dos historiadores".
Nesta breve nota encontra-se estabelecido o
cânone do romance histórico tal como o concebeu
e praticou Herculano:
a) revivescência da poesia nacional e popular;
b) representação, com base erudita, da vida
íntima das épocas passadas;
c) ressurreição estética da vida social da época
histórica em que decorre a acção novelística,
expressando o modo de sentir e existir do povo.
Este cânone é, mutatis mutandis, aquele que se
pode deduzir da leitura dos romances de Walter
Scott. Mas a lição que Herculano recebeu do grande
novelista escocês não foi apenas a que assim se
pode esquematizar. Também nas obras de Scott
apreendeu Herculano o princípio da não apresentar
as figuras com existência histórica como
personagens centrais do enredo. O romance
histórico não comporta heróis que tivessem tido
existência histórica, com destaque singular, sob
pena de impossibilitar a representação social
múltipla e vária que necessariamente há-de compor
o quadro histórico em que se insere a acção
imaginada.
27
Não é possível saber se o interesse de Herculano
pelos estudos históricos e sua consagração a eles,
proveio da leitura apaixonada que fez dos romances
de Walter Scott. Houve já quem conjecturasse ¯
não me recordo quem ¯ que a vocação de
Herculano para os estudos de natureza histórica se
revelara no tempo em que ele frequentara a aula de
diplomática, antecedentemente ao exílio.
É muito verosímil; mas se não foi Scott quem
nele despertou o interesse por tais estudos, foi ele
certamente quem lhe revelou o que eles têm de
sedutor. Estava-se então numa época em que o
interesse pela História constituía não só o fundo da
cultura mas também um dos mais vastos e ricos
recursos ao divertimento dos espíritos.
Em quase todas as épocas da história se verifica,
em cada uma delas, a criação da sua utopia própria,
geralmente prospectiva. A utopia romântica teve a
particularidade de se projectar sobre o passado, de
ser uma utopia retrospectiva.
Toda a utopia se cria como uma compensação
das realidades presentes; os românticos, porém,
antes de a visionarem no futuro, fizeram-na
transitar pelo passado, e esse foi o toque de
genialidade de Walter Scott e a verdadeira causa da
quase universal aceitação da sua obra.
Augustin Thierry, na sexta das suas Lettres sur
l'Histoire de France escreve: "A leitura dos romances
de Walter Scott fez voltar muitas imaginações para
a idade-média, a qual, anteriormente, por
menosprezo, era desconhecida; e se presentemente
se está realizando uma revolução na maneira de ler
e escrever a história, isso se deve principalmente à
28
leitura dessas composições aparentemente frívolas"
19.
Herculano parece ter considerado a História e a
novela histórica como dois elementos de actuação
convergente. Mais: no entusiasmo pelo romance
histórico, na admiração pela obra de Walter Scott ¯
"modelo e desesperação de todos os romancistas"
¯ equiparava a História ao ficcionismo da história
ao escrever no Panorama: "Novela ou História qual
destas duas causas é a mais verdadeira? Nenhuma,
se o afirmarmos absolutamente de qualquer delas.
Quando o carácter dos indivíduos ou das nações é
suficientemente conhecido, quando os
monumentos, as tradições e as crónicas desenharam
esse carácter com pincel firme, o novelista pode ser
mais verídico do que o historiador; porque está
mais habituado a recompor o coração do que é
morto pelo coração do que é vivo, o génio do povo
que passou pelo do povo que passa."
Desde o aparecimento de Mestre Gil, da Abóbada
e da Morte do Lidador, Herculano conquistara um
público que lhe ficou fiel e discípulos que o não
negaram. Testemunham-no não só as sucessivas
reedições dos seus romances, como também o seu
discípulo Rebelo da Silva, que em 1848 escrevia no
jornal A Época: "Esse nome escrito no rosto da
Harpa do Crente, da História de Portugal, do Presbítero, e
ultimamente no Monge de Cister é tão conhecido na
casa patriarcal das províncias como no faustoso
aposento da cidade". 20
Em 1840, Herculano escreveu o seu primeiro
romance histórico ¯ o Monge de Cister ¯ que só veio
29
a ser publicado em volume em 1848, para
entretanto dar a primazia de estampa ao Eurico
(1844), elaborado durante o ano de 1843.
O Monge de Cister está composto dentro dos
princípios estéticos e dos objectivos que o seu autor
adoptara para o género novelístico cujas primícias
lhe ficaram a pertencer na literatura portuguesa. O
Monge faz parte de uma série romanesca intitulada O
Monasticon, "concepção complexa, cujos limites não
sei de antemão assinalar", e que o autor, depois de
escrito o Eurico, deixou apenas em díptico.
O Eurico, porém, já não é só uma crónica-romance
mas, principalmente, uma crónica-poema, "lenda ou
quer que seja dos presbítero godo."
Esse hibridismo elevou, pela poesia do "eu"
romântico, o Eurico à categoria de uma das obras
representativas do Romantismo. A densa atmosfera
de fatalidade nos amores de Eurico e Hermengarda,
a solução pela morte de um e loucura da outra
estavam na índole da concepção do amor mais
generalizada entre portugueses: amor louco, morte
por amor.
Outra virtude romântica que explica o lugar que
o Eurico veio ocupar na produção literária do
romantismo português ¯ direi até peninsular ¯ foi
a época escolhida, que tanto satisfez ao gosto da
época pelo exotismo no tempo, talvez a mais
atraente sedução a que o romântico sucumbia.
No Eurico, Herculano foge já ao cânone por ele
próprio estabelecido, dominado pela feição do seu
temperamento poético ¯ elegíaco e soturno. De
resto, só os medíocres são ortodoxos na escola
30
literária; os grandes e os maiores não se sujeitam ao
constrangimento da regra.
Castilho, ao apreciar o Eurico na Revista Universal
Lisbonense condena-lhe a originalidade dizendo: "O
Eurico, em nossa particular e respeitosa opinião, é
um livro mui notável para ser lido, muito impróprio
para ser inculcado como vade mecum." ¯ "Os seus
desenhos são severos, grandiosos e todos a negro.
Foi uma valente mão a que os perfez; só outra
valente mão os poderia copiar, e faria mal se o
fizesse. São como as poesias de Ossian:
maravilham, e largam-se" ¯ "O que hoje
principalmente carecemos, o que pedimos, e o que
esperamos virá aparecendo, são obras correntes,
acessíveis a todos os entendimentos, adaptáveis a
todos os gostos, espelhos do mundo, da alma e do
coração, três coisas em que há sempre misturada
toda a sorte de cores e de tons." 21
Assim, Castilho já então aparecia a propugnar
por uma novelística divulgadora de conhecimentos,
de moral acomodada às conveniências, "acessível a
todos os entendimentos", aquilo que viria a ser o
romance histórico do segundo romantismo.
O Monge de Cister, festejado como a nossa
primeira novela histórica aquando da sua
publicação, constitui o segundo quadro de O
Monasticon e conta a luta íntima entre uma violenta
paixão de vingança e o preceito cristianíssimo do
perdão. Pretende ressuscitar a época do rei D. João
I e está recheado de erudição arqueológica
suficientemente adequada a um romance. Neste
particular, o poder descritivo do autor é
incomparavelmente maior do que o evocativo.
31
Herculano não possuía em grande medida o
poder de criação novelística e o Monge de Cister, no
que respeita a acção e personagens, foi todo
descrito em tons sombrios e, se na parte histórica,
em vários lances, rivaliza com Scott, na elaboração
da parte fictiva ficou aquém das obras do
romancista escocês.
Em 1843, Herculano começou a publicação, no
Panorama, de O Bobo, obra a que parece ter
dedicado particular interesse, a ponto de o retomar
já no fim da vida, em Vale de Lobos, para
aperfeiçoamento e publicação em volume. A
refundição e aperfeiçoamento do texto publicado
primitivamente não os terminou Herculano ¯ e a
primeira edição, lançada pelos editores em 1878, só
parcialmente aparece melhorada. 22 É no Bobo que
mais evidentemente se revela a débil capacidade de
criação novelística de Herculano; e o pretendido
romance ficou, na sua composição defeituosa, mais
como um livro de história do que como romance
histórico.
De muito maior mérito novelístico são, afinal, as
crónicas-novelas aparecidas em primícia no
Panorama e na Ilustração e mais tarde reunidas em
Lendas e Narrativas. Em A Abóbada atingiu
Herculano, como novelista histórico, a sua obra
mais perfeita em relação aos próprios princípios
estéticos. De resto, essas crónicas-novelas
considerava-as ele como "monumentos dos
esforços do autor para introduzir na literatura
nacional um género amplamente cultivado nestes
nossos tempos em todos os países da Europa". 23
32
GARRETT
As tentativas de Garrett no género de novela
histórica datam de 1825. No seu espólio literário
foi encontrado um manuscrito de duas páginas e
meia intitulado A Excelente Senhora ¯ Romance
Histórico, com data de Agosto 1825. 24 A Dra.
Ofélia Paiva Monteiro no seu minucioso trabalho A
Formação de Almeida Garrett ¯ Experiência e Criação,
Coimbra, 1971, informa-nos que essas "três
escassas páginas", "contemporâneas da publicação
da elegia a Camões, revelam-nos expressivamente
esse mesmo estado íntimo que se reflecte em toda a
estilização do poema: a "crise" aguda da nostalgia
do exilado, roído de saudades da pobre pátria
distante, entre os tons deslavados de um país hostil
para o seu sentimento". 25
Também no mesmo espólio foi encontrado o
plano de um outro romance histórico, A Torre do
Lavre, cuja acção decorreria no reinado de D. João
I.
Sem dúvida que, por este tempo, Garrett,
fascinado pela obra de Walter Scott, se tentou pela
novela histórica, concebendo planos que não
executou, certamente por falta de conhecimentos
históricos e arqueológicos que lhe permitissem leválos
avante.
Em 1827, num artigo consagrado a Walter Scott
aparecido no Cronista, Garrett, analisando a técnica
literária de Walter Scott, surpreende a mestria com
que o romancista escocês construía a verdade poética
sobre a verdade histórica. É nesse artigo que Garrett
33
afirma que a "verdade do romancista" é uma
verdade relativa que difere da "verdade absoluta" do
historiador.
Mais tarde, de Paris, em carta datada de 12 de
Junho de 1833, Garrett escrevia a José Gomes
Monteiro: "Comecei ali (no Porto) um romance em
prosa, a que dei o título de Arco de Sant'Ana e cujas
cenas principais se passam na cidade velha, que, por
estar o meu quartel no Colégio, tive ocasião e vagar
de estudar. Se houver umas semanas de sossego de
espírito, é provável que o acabe. ¯ Se leu a Notre
Dame de Paris, de Vítor Hugo, é um tanto nesse
género o meu romance; e se o não leu, recomendolhe
que o faça."
Em 1841, retomou o romance, deixado em
meio, mas só em 1844 o terminou.
Como Garrett o confessou a Gomes Monteiro,
o Arco de Sant'Ana não teve por paradigma a obra
novelística de Scott mas sim o romance de Vítor
Hugo, ou seja, com o predomínio do pitoresco
sobre o histórico. E se na realização a obra
garrettiana não faz lembrar o modelo, isso resulta
certamente da diferença de temperamentos
artísticos e das diversas capacidades ficcionistas de
cada um dos romancistas. Quanto a "processo",
Garrett aproveitou a lição de Notre Dame. Declarou
Vítor Hugo acerca do seu romance histórico: "Le
livre n'a aucune prétention historique, si ce n'est
peut-être peindre avec quelque science et quelque
conscience, mais uniquement par aperçus et
échappées, des lois, des arts, de la civilisation enfin
au XVe siècle. Au reste, ce n'est pas la ce qui
34
emporte dans le livre. S'il a un merite, c'est d'être
une oeuvre d'imagination, de caprice, de fantaisie."
Garrett, no prefácio da segunda edição de Arco
de Sant'Ana confessou: "Quem desenhou e pintou
este quadro nunca pensou fazer senão um esboceto,
um estudo, um capricho." Na advertência à edição
de 1850 deixou declarado: "O romance é deste
século: se tirou o seu argumento do décimo quarto,
foi escrito sob as impressões do décimo nono; e
não o pode nem o quer negar o autor."
Assim, "o modo de ser e viver", os sentimentos,
crenças, paixões das gentes da época escolhida,
segundo os processos de Walter Scott e a estética
do romance histórico preconizada por Herculano
não entraram nas preocupações de Garrett ao
elaborar o Arco de Sant'Ana. E aqui se nos apresenta
uma pecha que, por vezes, aparece na obra de
Garrett, aquilo a que António Arroyo, com muito
espírito, chamara ¯ o "chinó de Garrett", ou seja,
neste caso, a lisonja aos interesses, gostos ou
caprichos da sociedade do seu tempo e,
simultaneamente, a ocultação de qualquer ou
quaisquer deficiências que ¯ no que respeita ao
Arco de Sant'Ana ¯ era a falta de conhecimentos
arqueológicos suficientes.
Por outro lado, um romance histórico cujo
argumento decorre no século XIV mas escrito sob
as impressões do século XIX, subtrai-se desde logo
ao que havia de fundamental no género e fizera a
sua fortuna nas preferências do público da época
romântica.
Não possuindo, repito, conhecimentos
arqueológicos suficientes nem bastantes para a
35
reconstituição descritiva do Porto do século XIV,
como Herculano fizera para a Lisboa da época de
D. João I, pode bem dizer-se que a acção de Arco de
Sant'Ana decorre como se fosse num palco sem
cenário, o que, numa novela histórica, constitui
falta capital. Acresce não possuírem os personagens
individuação característica, havendo os que são
falsos, embora à maneira romântica.
Pode, por tudo isto, considerar-se o Arco de
Sant'Ana como um romance histórico de declínio e
deterioração do género, o que, de resto, à data da
sua publicação, estava acontecendo em quase todas
as literaturas europeias. Desde 1830, o romance
histórico desenvolve-se nas potencialidades que o
género possuía e aproxima-se das épocas históricas
mais próximas, perdendo aquilo que fora um dos
seus principais atractivos: o exotismo no tempo.
O romance histórico, não obstante, continuará a
ser cultivado e a possuir em Portugal um público
fiel durante todo o curso do século XIX, embora,
para o fim da centúria, sem dignidade literária. No
segundo romantismo ainda apresentará obras de
qualidade literária, mas na verdade,
independentemente do mérito da linguagem, o
género foi perdendo as suas características
essenciais, derivando "para uma fácil dramatização
de situações amorosas, num quadro de imaginação
em que os actores vivem com as ideias e os
sentimentos do nosso tempo" ¯ segundo o juízo de
Sampaio Bruno 26.

36
OLIVEIRA MARRECA

Nos domínios literários do romance histórico,
Herculano teve dois discípulos: Oliveira Marreca e
Rebelo da Silva, este último na sua primeira fase de
romancista. Ele os aconselhou e, na parte erudita,
assiduamente os auxiliou.
Marreca foi publicando de 1844 a 1853, no
Panorama, um romance histórico, O Conde Soberano de
Castela, que mereceu a Herculano elogiosa
referência, com especial relevância para as aptidões
do autor. "Enfim, O Conde de Castela do Sr. Oliveira
Marreca, vasta concepção posto que ainda
incompleta, foi, porventura, inspirada pelo exemplo
destas fracas tentativas (as reunidas em Lendas e
Narrativas) e das que em dimensões maiores o autor
empreendeu no Eurico e no Monge de Cister. Carácter
grave e austero digno dos tempos antigos, e que a
Providência colocou no meio de uma sociedade
gasta e definhada por muitos géneros de corrupção,
como condenação muda, homem sobretudo de
ciência e de consciência, o Sr. Oliveira Marreca
trouxe estes dois dotes eminentes para o campo do
romance histórico, onde ninguém, talvez, como ele,
poderia fazer a Portugal o serviço que Du Monteil
fez à França, isto é, popularizar o estudo daquela
parte da vida pública e privada dos séculos semibárbaros
27, que não cabe no quadro da história
social e política".
Marreca não satisfez às esperanças de Herculano
que, pelo transcrito, parece ter esperado mais dele
como historiador do que propriamente como
37
romancista, ao indicar-lhe o exemplo de Amam
Alexis Monteil, autor da Histoire des Français de divers
états aux cinq derniers siècles e de uma Poétique de
l'histoire.
Para Herculano, uma das missões do romance
histórico era a da divulgação da "vida pública e
privada" das épocas passadas que ele não
considerava propriamente objecto da grande história
social e política. Reconhecendo no autor do Conde
Soberano de Castela mais aptidões para a investigação e
construção dessa história do que dotes para, pela
ficção novelesca, a divulgar, sugeriu-lhe uma obra
histórica no género da de Monteil.
No entanto, o estilo de Marreca nesta novela
possui uma correcção e uma austeridade que o
aproxima do estilo de Herculano.
O Conde Soberano de Castela é uma obra que possui
qualidade literária mas não tem vida, bastante
convencional nos personagens e no movimento dos
sentimentos e paixões. É, em resumo, uma obra de
aplicação literária, mas está longe, muito longe, de
ser uma criação. Tem lugar na história literária, mas
não conta, literariamente, como valor estético.
REBELO DA SILVA
Pela sua produção novelística de 1840 a 1848
Luís Augusto Rebelo da Silva pertence ao primeiro
38
romantismo. A partir de 1848 é Rebelo da Silva
quem abre novos caminhos à novela histórica em
Portugal.
As tentativas de romance histórico de Rebelo da
Silva na primeira fase da sua produção pecam por
falta de qualidade e carácter próprio. A influência da
obra ficcionista de Herculano é por demais evidente
e até, por vezes, excessivamente acentuada.
Em 1840, Rebelo da Silva publicou no
Cosmorama Literário a narrativa Tomada de Ceuta, obra
que deixou incompleta; em 1842 apareceu na Revista
Universal Lisbonense com a novela Rausso por Homizio e
em 1848 deu à estampa Ódio velho não cansa. Esta
última novela, dedicada, oferecida e consagrada a
Herculano, foi quase toda escrita em casa do
historiador, na Ajuda, em "ditosos dias de paz e de
estudo" e nele pretendeu o autor "interpretar pela
Arte um dos capítulos da sua História de Portugal". 28
Na introdução confessa-se Rebelo da Silva fiel à
estética de Herculano, embora o não siga
explicitamente. "Se a novela histórica e o drama
quizeram deveras fazer-se nacionais hão-de aprender
aí muito no Nobiliário; porque o espírito pode ter a
intuição da sociedade passada, e adivinhar a
existência íntima de épocas, que talvez não seja erro
denominar de eras heróicas da nossa história. Um
resto da vida e das crenças, que eram a alma dos
primeiros séculos, ainda anima aqueles retratos meio
apagados" 29. Mais adiante: "Em assuntos históricos
o dever do romance consiste em cunhar com a
verdade mais aproximada a expressão fiel do viver e
crer de Portugal, ou de outra qualquer nação, numa
designada época. Se não prestarmos às gerações
39
extintas os sentimentos e as crenças que as
animaram, e as paixões humanas, que as inspiraram,
tudo se fará menos entender e aplicar a história na
sua essência mais filosófica." 30
O romance, na sua execução, ficou longe dos
princípios enunciados pelo autor, mas não discrepou
do geral da novelística histórica da época. Com
excepção de alguns fundos paisagísticos, de uma ou
outra diversão sentimental ou de brevíssimas
descrições de castelos, a novela é constituída por
sucessivos diálogos onde se tenta caracterizar e
animar os personagens.
Nesta primeira fase, Rebelo da Silva não deu a
medida das suas faculdades de novelista histórico.
Dá-la-á anos mais tarde, num outro
condicionalismo estético.
*
* *
Augustin Thierry, apreciando o Ivanhoe de Walter
Scott, escreveu a certo lance: "Encontram-se nele
cenas de jovialidade de tal modo singelas, de tal
modo palpitantes que, apesar da distância dos
tempos aonde o autor se coloca, se podem
representar ao espírito sem esforço. É que no meio
do mundo que já não existe, Walter Scott tem o
cuidado de colocar o mundo que existe, e que
existirá sempre, quero dizer, a humanidade, de que
conhece todos os segredos. Tudo quanto há de
particular no tempo e nos lugares, o exterior dos
homens, o aspecto do país e das habitações, os
40
costumes, os usos, estão descritos com a verdade
mais exacta; e todavia a erudição imensa, que
fornece tantos pormenores, não se deixou perceber
em parte alguma. Walter Scott parece possuir para o
passado o dom de segunda vista, que certos
homens se atribuem para o futuro".
Esta síntese, que me parece perfeita, da estética
e do génio criador do grande romancista, esclarece
o êxito retumbante da sua obra e da divulgação e
adaptação do género à pluralidade das literaturas
cultas.
Na obra dos romancistas históricos do nosso
Primeiro Romantismo, alguma se apresenta com as
plenas qualidades tão frisantemente delineadas por
Thierry? Se exceptuarmos Arras por Foro de Espanha e
A Abóbada, de Herculano, teremos de concluir pela
negativa ¯ e daí o envelhecimento de todas essas
novelas que hoje só constituem textos de estudo.
Discretamente, com vénia e sem intuitos
polémicos, a crítica do tempo deu a entender que o
reconhecia. Já vimos o que Castilho disse de Eurico;
de Arco de Sant'Ana, fugindo a fazer uma apreciação
geral, bordou apenas comentários justíssimos acerca
das alusões políticas de que o romance de Garrett
está coalhado: "As nossas questiúnculas pequenas
(porque pequenas são), e sem poética nobreza,
porque são hodiernas, intercaladas nesta formosa
fábrica de recordações do nosso mundo velho, que
são grandes porque as vemos de longe, e que são
nobres porque um nobre talento passou por ali,
destoam-nos aos ouvidos, quanto mais não seja
como aos olhos do arquitecto antiquário destoam
os enxertos mesquinhos, na frontaria dos
41
Jerónimos, e dá-nos pena ver que foi o próprio
autor, quem assim andou arrebicando de ornatos
postiços e supérfluos o seu monumento, cujo preço
e valia ele devia conhecer, como toda a gente. Faznos
pena, porque todos estes enxertos são tão
morredoiros, que dentro em cinquenta anos, nem já
inteligíveis ficarão". 31
António Pedro Lopes de Mendonça foi mais
incisivo na sua crítica: "Não consideramos
entretanto o Arco de Sant'Ana um monumento,
como em outros géneros o poeta tinha criado
escrevendo D. Branca, o Camões e o Frei Luís de Sousa.
A obra revela as qualidades de um grande escritor,
mas não atinge as proporções arquitectónicas,
perdoem-nos o termo, que graduam as eminentes
concepções que a crítica soleniza na história
literária moderna.
Não acusamos no Arco de Sant'Ana nem a
simplicidade da acção, nem os contornos vagos com
que as figuras aparecem desenhadas. A profusão dos
incidentes dramáticos, e a abundância dos
personagens não constituem nem classificam o mérito
de um romance.
Mas um homem da lição e talento do Sr. Visconde
de Almeida Garrett, escolhendo uma época tão
notável da nossa história, não devia ser tão parco em a
retratar, em a firmar na imaginação." 32

42
IV / O ROMANCE HISTÓRICO NO SEGUNDO ROMANTISMO PORTUGUÊS

Em Portugal, o Primeiro Romantismo acompanha
a instauração do regime liberal na sua fase política e de
destruição das estruturas sociais e económicas do
"Portugal Velho". O Segundo corresponde ao período
de estabilidade do novo regime com a política
pacificadora da "Regeneração", o incremento
económico resultante dos melhoramentos materiais no
país e no enriquecimento da burguesia pela
especulação e pela aquisição dos bens expropriados às
ordens religiosas.
Necessariamente, este novo enquadramento social,
económico e político havia de condicionar uma
literatura diferente na substância e na temática, para o
que também muito concorriam a lição e exemplo das
literaturas estrangeiras, principalmente a francesa. Por
isso, em 1855, António Pedro Lopes de Mendonça
escreveu: "Há duas tendências invencíveis na
literatura, em todas as literaturas: a primeira é de
enriquecer-se, em certas origens, a segunda, e é isso
do nosso tempo, é de se apropriar rapidamente da
substância que outras nações periodicamente
elaboram. Queres atacar este vício?.. diz que o vapor,
43
que os caminhos de ferro, que os telégrafos, que a
imprensa desapareçam, para que cada nação cultive
o seu próprio espírito, isolada das outras. Meu
querido, essas apelações para a nacionalidade
literária são estéreis, e não passam de um lugar
comum." 33
Os interesses dos leitores estavam
preferentemente volvidos para os temas actuais ou
para as épocas de passado mais próximas e mais
afins. Desvanecia-se o interesse pelo medievalismo,
como havia profetizado Castilho. O Liberalismo,
com o advento da burguesia, criara um outro
público menos interessado nos aspectos
retrospectivos da sua classe do que nos então
actuais e prospectivos.
O romance histórico de Walter Scott, cujo
mestrado se impôs a Herculano, introduziu na
novelística um elemento novo: o pormenor
descritivo dos costumes, dos meios e das coisas por
meio do qual o leitor recebia uma sugestão mais
viva da realidade. Foi pelo romance histórico que
na ficção se nobilitaram os pormenores e foi por
eles que se alcançou a caracterização das épocas no
seu viver íntimo e quotidiano. Ora, o romance
histórico tinha necessariamente de ser, pela sua
confinação à história e à arqueologia, um género de
transição para a novelística contemporânea, exigida
pelos interesses dos novos tempos. O interesse pelo
passado, e particularmente pela Idade-Média, não
podia conservar por muito tempo o interesse do
público e o gosto dos romancistas.
Por isso o seu ciclo se encerra logo que na
Inglaterra, na França, na Itália e em Portugal o
44
romance histórico produziu as suas obras mais
representativas ou mais perfeitas. Les Chouans de
Balzac, Le Rouge et le Noir de Stendhal e Vanity-Fair
de Thackeray, todos estes romancistas admiradores
de Walter Scott, abrem a era do romance de
observação sobre as sociedades suas
contemporâneas, em que vão prosseguir as suas
obras, consagrando em definitivo o mais belo e
mais duradouro género da literatura universal.
Dado o atraso com que a literatura portuguesa
acompanhava as grandes literaturas europeias, o
romance histórico continuou a ser cultivado em
Portugal, não só por romancistas de segunda
ordem, mas até pelo maior génio literário do
romantismo português: Camilo Castelo Branco.
Porém, nas obras de qualquer romancista que
durante o Segundo Romantismo português
cultivaram a novela histórica, o género,
exceptuando as da autoria de Camilo, não manteve
a sua dignidade literária, vindo a cair na mera
divulgação da história e na fantasia da aventura, no
mero folhetim. E quando assim não foi, quando o
romancista apurava a sua obra e revelava qualidades
e méritos dignos de serem considerados, tais
novelas eram relegadas pela mocidade ¯ e não só
por ela ¯ para os domínios da literatura obsoleta.
Silveira da Mota, apreciando a obra novelística de
Arnaldo Gama, constatava: "Já hoje não está em
voga o romance histórico. Puseram-no nas listas de
proscrição os Silas e os Mários das novas escolas
literárias." 34

45
REBELO DA SILVA

Rebelo da Silva abandonou a temática medieva
das suas primeiras produções novelísticas e com o
conto A última corrida de touros em Salvaterra (1848) e
os romances A Mocidade de D. João V (1852) e
Lágrimas e Tesouros (1863) escolhe o século XVIII e a
primeira invasão francesa (Casa de Fantasmas, 1865)
para enquadramento histórico das suas novelas.
Esta aproximação de épocas mais recentes e dele
melhor conhecidas permitiu-lhe uma maior
facilidade de desenho e descrição dos ambientes
históricos, da caracterização dos personagens e do
desenvolvimento da acção.
Afigurou-se-lhe que, descrevendo os costumes
portugueses no século XVIII, proporcionava aos
seus leitores um quadro que lhes era "quase
familiar" 35, o que, certamente, passada a moda
medievalista, começava a ser requerido pela mais
jovem geração, embora ainda não satisfizesse ao
que já, entre os mais cultos, se exigia do romancista.
Disso teve consciência Rebelo da Silva, como se
depreende destas suas palavras no prólogo à
primeira edição de A Mocidade de D. João V:
"..devia conformar-se (o autor) com a moda,
encarregando os personagens de um papel
filosófico-social, profundamente regenerador; mas,
apesar do lustre que o romance podia receber da
novidade, resistiu à tentação; porque entendeu
sempre que a arte não precisa do foro pequeno da
política para ser a primeira das ilustrações
intelectuais." 36
46
A Mocidade de D. João V foi dos mais aplaudidos
romances de Rebelo da Silva e é aquele que conta
mais edições. O romancista havia planeado uma
trilogia "em que se debuxasse o vulto e a cor da
época essencialmente dramática, que entre nós é
dominada pela figura de D. João V, espécie de rei
popular apesar do seu governo absoluto" 37. Os
dois romances que, com A Mocidade, constituíriam o
tríptico projectado, não foram escritos, embora
onze anos depois, aquando do aparecimento da
segunda edição de A Mocidade, ainda Rebelo da Silva
prometesse As Férias de El-Rei como uma segunda
parte do romance reeditado, "novela que apenas
aguarda por algumas semanas de mais repouso e
tranquilidade para oferecer ao leitor.. etc., etc. 38.
Rebelo da Silva não renega Walter Scott como
modelo mas confessa: "O que o famoso romancista
escocês conseguiu com seus heróis, procurou o
autor imitar de longe a respeito das figuras deste
ensaio". Efectivamente, há na Mocidade personagens
de talhe autenticamente scottiano, quer no desenho
moral, quer na sua representação social. O padre
Ventura, audaciosa personalização da Companhia
de Jesus, é sem dúvida uma das criações mais felizes
do ficcionismo romântico e é de lamentar que a sua
estatura por vezes diminua, sacrificada a
necessidades da intriga amorosa, que é francamente
má.
Mas tão "quase familiares" considerava Rebelo
da Silva os costumes portugueses do século XVIII
com os do seu tempo, que não hesitou em trasladar
para os primeiros anos do século de setecentos
personagens seus contemporâneos, bem
47
conhecidos na sociedade de Lisboa. É o caso do
abade Silva, retrato caricatural do abade Castro ¯
António Dâmaso de Castro e Sousa ¯ abade titular
de Santa Eulália de Rio de Moinhos, no
arcebispado de Braga, e autor de vários folhetos de
poucas páginas que Rebelo da Silva ridicularizava.
Foi este abade muito mundano, assíduo aos bailes
dos marqueses de Viana e às récitas de Farrobo no
teatro das Laranjeiras.
Mas se Rebelo da Silva não foi fiel à história na
criação dos seus personagens, se os não estudava na
época mas os copiava do seu tempo, também é
certo que não escrupulizava em estudar
originalmente a sociedade e os meios em que
decorriam os seus romances. Em Lágrimas e Tesouros
foram os dois livros de Beckford sobre Portugal
que lhe forneceram todo o ambiente histórico em
que decorre a fantasia da acção 39.
Nos romances históricos de Rebelo da Silva
ficaram muitas páginas e até capítulos que ainda
hoje se podem ler sem enfado; e, apesar dos seus
defeitos, mais originados na falta de aplicação e
lavor do que na ausência de dotes, afigura-se-nos
que a obra de ficcionismo histórico de Rebelo da
Silva se mantém num nível superior àquele em que
o género viria a cair no último quartel do século.

48
ANDRADE CORVO

Engenheiro militar, professor na Escola
Politécnica, João de Andrade Corvo publicou em
1850 um romance histórico intitulado Um Ano na
Corte cuja acção decorre na corte portuguesa
durante a crise da deposição de D. Afonso VI. A
grande falha deste romance é a de movimentar
figuras históricas como se fossem personagens de
ficção, o que automaticamente as torna falsas no
campo da história e nos domínios da ficção. Por
outro lado, apesar de diversos artifícios, a acção do
romance não se escusa à condição de história
romanceada. A composição de Um Ano na Corte foi
cuidada, tem equilíbrio e Andrade Corvo teve o
bom gosto de fugir às longas descrições que cindem
a acção bem como às divagações descabidas, então
tanto em uso. Além destas qualidades, Andrade
Corvo, como romancista, revelou ciência do
diálogo e da composição dos quadros.
Apesar destas qualidades de técnica literária, Um
Ano na Corte ficou como romance sem influência na
evolução do género, nem significado no contexto
da nossa literatura romântica.

49
ARNALDO GAMA

Na introdução ao romance Um motim há cem anos,
Arnaldo da Gama definiu com exactidão o seu
conceito de romance histórico e a maneira como o
praticava: "..queria uma novela, um romance
histórico, que toda a gente lesse, que toda a gente
quisesse ler" ¯ "a maneira de ensinar a história
àqueles que não se aplicam aos livros, àqueles cuja
profissão os arreda de poder fazer estudos sérios e
seguidos, é o romanceá-la, dialogando-a, e dando
vida à época, dando vida aos personagens, dando
vida às localidades; mas a vida que lhes é própria, a
vida da época, ressuscitando no estilo da
conversação, nos usos e costumes, nos trajos, nas
ideias e nas localidades."
Resvalara-se assim da obra cuja primazia era a
arte literária, para um primeiro objectivo de
divulgação histórica, arqueológica, etnográfica,
enramalhetada numa historieta sentimental onde,
em geral, se falsifica a condição humana dos
amorosos. As figuras históricas que intervêm por
conveniências de enredo ou arbitrária concepção do
romancista, são muitas vezes adulteradas, viciando a
vida histórica que se pretendeu divulgar.
Arnaldo Gama foi, de entre os romancistas
históricos do nosso Segundo Romantismo, aquele
que mais se aplicou ¯ e cuidadosamente o fez ¯ à
parte histórica, arqueológica e até etnográfica da sua
obra. Os romances históricos Um motim há cem anos
(1861), O Sargento-Mor de Vilar (1864), O Segredo do
Abade (1864), A Última Dona de S. Nicolau (1866), o
50
Filho do Baldaia (1866), ficaram repletos de
descrições históricas e arqueológicas que muito
prejudicam o equilíbrio da composição, suspendendo
frequentemente a acção, imobilizando os
personagens ao primeiro assomo para lhes descrever
os trajos, fatigando a atenção do leitor com
descrições arqueológicas de vária ordem. Incapaz de
estilizar em síntese as épocas passadas e visionar
artisticamente a vida que foi, Arnaldo Gama
sobrecarrega os seus romances com abundantes
pormenores sem alcançar os efeitos a que só um
temperamento de escritor verdadeiramente artista
pode chegar.
Perdeu-se em Arnaldo Gama um historiador da
vida social portuguesa e a literatura não ganhou um
verdadeiro romancista nem um grande prosador.
Camilo Castelo Branco que, aliás, reconheceu a
aplicação de Arnaldo Gama aos estudos históricos,
recusava-se a ler os seus romances. Em Março de
1867, escrevia a Castilho: "As novidades literárias do
Norte são um romance de Arnaldo Gama, que
nunca lerei. A D. Ana é êma que devora estas
escumalhas de ferro. Lê tudo." 40
CAMILO CASTELO BRANCO
Já depois de ter escrito Luta de Gigantes, Camilo,
em carta de 23 de Novembro de 1865, anunciava ao
51
director do Jornal do Comércio: "Faço conta de escrever
um romance histórico do século passado para
desenfastiar os paladares aborrecidos das paixões de
casaca e luva." 41
Paixões vividas no presente ou no passado, não
importa ao grande escritor a época em que se
viveram; o que lhe importa, o que lhe interessa, o
que o sugestiona e move são as paixões
desencadeadas em enredos empolgantes.
De resto, para Camila a História foi sempre
considerada como uma apreciação subjectiva dos
acontecimentos passados, exactamente como a
novela camiliana havia sido sempre uma visionação
muito circunstanciamente subjectiva da vida sua
contemporânea. Por isso o principal ingrediente da
novela histórica de Camilo é a vida de personagens
dominados pela fatalidade das circunstâncias ou
arrastadas pela voragem das paixões.
Daí o romance histórico de Camilo, sob o ponto
de vista da arte literária, possuir as mesmas
qualidades dos seus romances de costumes
contemporâneos e num como noutros é igualmente
densa a concentração narrativa e o diálogo conciso
como principal agente do desenvolvimento da acção.
Em 1865, Camilo publicou a Luta do Gigantes
declarando: "Não lhe chamo romance, porque é
história autenticada por documentos, não lhe chamo
história porque seria presunção imprópria da minha
humildade aforar-me em fidalguias tamanhas."
Até à data da elaboração deste livro, Camilo não
cultivara o romance histórico. Com Luta de Gigantes
apresenta uma obra que se coloca entre a história e o
romance, uma narrativa histórica onde se dá a
52
liberdade de frequentemente se evadir da rigidez dos
factos e esquecer a leitura rigorosa dos documentos e
a obediência fiel aos seus textos 42.
Como Camilo confessa, descobriu então em si
"o pendor que me inclina a esgravatar no pó das
bibliotecas". Tem quarenta anos e sente a
necessidade de variar as suas produções.
Luta de Gigantes é uma narrativa histórica
romanceada 43, chegando Camilo, em carta para
Castilho a chamar-lhe romance 44, o que não é
insólito, pois até no texto assim designa o género
da obra 45.
Camilo, com sarcasmo, classificou a Luta de
Gigantes de "laudanum puro". Se assim realmente
julgava, enganou-se. Não há página de Camilo que
seja enfadonha e muito menos onde o romancista
deparou com uma paixão. Nesta narrativa, o ódio é
o personagem central.
Luta de Gigantes lê-se com interesse vivo pelo
vigor narrativo e pela sugestão do ambiente
histórico criado sem rigores de pormenor mas, ao
que se me afigura, por sortilégio da linguagem que,
embora muito particular do romancista, tem um tão
bom sabor à prosa dos nossos clássicos de
seiscentos.
Cuido que quando Camilo anunciava a Castilho
um romance decorrido no século XVIII se referia
àquele que publicou em 1866 com o título O Judeu.
Anteriormente, porém, havia prometido um outro
romance com o título de O anel do cantador-mor,
história encontrada no Gabinete histórico de Fr.
Cláudio da Conceição. É um episódio que nada tem
a ver com a vida de António José da Silva; Camilo,
53
porém embrechou num só os dois romances.
Processo arbitrário mas muito do escritor com
oficina literária e necessidade de manter produção
regular.
Camilo não cuidou, ao contrário de Arnaldo
Gama, de divulgar a História. Quando muito,
divulgou sentimentalismo, muito seu, sobre figuras
e épocas históricas e sem escrúpulos de rigor,
apesar de se mostrar biqueiro neste ponto quando
trata ou aprecia obra alheia. Anotando o seu
exemplar do Teatro de Garrett, no final do drama
Um auto de Gil Vicente escreveu: "Quando assim se
mutila e deturpa a tradição, não é permitido usar
nomes históricos de tão alto quilate."
Escrevendo o "romance" de António José da
Silva, Camilo não cuidou em ler o processo
inquisitorial do Judeu. Ele próprio o confessa 46, e as
fontes biográficas que utilizou foram o Ensaio
biográfico e crítico de Costa e Silva (tomo 10.°) e o
Dicionário Bibliográfico Português, de Inocêncio. O
contador-mor Luís Pereira de Barros, António José
da Silva, Francisco Xavier de Oliveira, apresenta-os
o romancista mais ou menos conformados com as
fontes bibliográficas que conhecia e os personagens
que à volta deles gravitam, a própria tessitura dos
factos, são meras conjecturas ou arbitrárias
fantasias que a leitura do processo logo rectifica.
Nos romances históricos de Camilo, os
personagens que tiveram existência histórica são
personagens muito seus, inventados ou
adivinhados. António José da Silva, o Cavaleiro de
Oliveira, no Judeu, Brás Garcia de Mascarenhas e D.
Diogo César em Luta de Gigantes, são exemplos
54
frisantes destas infidelidades à História. No
entanto, como em nenhum outro dos nossos
novelistas históricos, os seus romances são
povoados e neles circula, vive, fala e age gente viva.
São pessoas que vivem nas suas paixões e nas suas
desgraças, cumprindo seus fados. Não são
personagens históricos, são personagens camilianos.
Pio Baroja escreveu um dia: "El escritor puede
imaginar, naturalmente, tipos y intrigas que no ha
visto; pero necessita siempre el trampolin de la
realidad para dar saltos maravillosos en el aire. Sin
ese trampolin aún teniendo imaginación, son
impossibles los saltos mortales."
E é justamente o caso de Camilo, quer no
romance histórico, quer no romance de costumes:
um destino vivido, um caso acontecido, a desgraça,
a dor, a paixão ¯ foram os trampolins para os
"saltos mortais" da sua imaginação.
A biografia do médico Brás Luís de Abreu lida
no Dicionário de Inocêncio dá-lhe um romance: O
Olho de Vidro (1866); o episódio histórico do
atentado frustrado contra D. João IV dá pretexto a
dois romances que rotula de históricos: O Regicida
e A Filha do Regicida; o uxoricídio praticado pelo
médico Isaac Eliot serve-lhe de núcleo ao romance
A Caveira da Mártir.
Minudências históricas, "cor local" ¯ em vão se
hão-de procurar nos romances históricos de
Camilo. Tampouco atmosfera social e
correspondência entre os personagens, na sua
maneira de sentir e pensar, e a época em que o
romancista os coloca. Parece-nos, no entanto, que
os romances históricos de Camilo têm de avultar
55
destacadamente no conjunto da novelística histórica
do romantismo português, não por virtudes
próprias do género, mas pela magia da linguagem
em que estão escritos, pelo poder estético que
possuem ali onde se fundem os elementos fictivos
com elementos históricos, caldeados nas vivas
paixões humanas.

56
V /VÁRIAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Parafraseando o que D. Francisco Manuel de
Melo deixou escrito, na Carta de Guia de Casados,
sobre o Amor, pode bem dizer-se do Romantismo:
"Esta coisa a que o mundo chama Romantismo não
é só uma coisa, porém, muitas, com um próprio
nome."
Daí a indeslindável complexidade que torna
impossível reduzi-lo a uma definição rigorosa, pelo
que nos parece ter tido razão Paul Valéry quando
afirmava que para tentar definir o Romantismo
seria primordialmente necessário que aquele que o
tentasse tivesse perdido completamente a noção do
rigor. 47
Carlos Mesquita, num trabalho notabilíssimo
que infelizmente ficou incompleto, escreveu a
propósito: "Quando julgámos ter combinado em
uma definição, senão todos, pelo menos os
caracteres mais essenciais do movimento que
abrangeu todas as manifestações da mentalidade
europeia, poesia, crítica, artes, romance, filosofia,
história ¯ surgiria no espírito do leitor ou mesmo
no nosso a ideia de um poeta, de um romancista, de
um escritor político, de tal forma resistente à
57
inclusão na fórmula, que o laborioso mas frágil
edifício desabaria num momento com a introdução
forçada de mais esse hóspede. E, além de
necessariamente estreita, a nossa definição, mau
grado todos os nossos esforços para atingir a
máxima clareza, apenas para os iniciados seria
inteligível. Para os outros, para os que nela
procurassem noções nítidas, direcção para leituras,
síntese e complemento de estudos fragmentários,
toda a clareza e toda a simplicidade que julgássemos
ter conseguido não passariam nunca de
impenetrável obscuridade.
Com efeito, como proceder por definição
relativamente a um momento da história da
mentalidade ocidental, simultaneamente religioso e
quase ateu; revolucionário até ao anarquismo e
conservador até ao ponto de ver manifestações em
todas as instituições sociais, apaixonado pela Idade-
Média, na arquitectura, nos costumes
cavalheirescos, nos trajos, mas por vezes helénico;
desdenhoso da realidade e da vida moderna e
burguesa, contra que buscava refúgio no passado e
nos sonhos quiméricos, e ao mesmo tempo
apaixonado pelos aspectos mais prosaicos da
actualidade, a ambição da grandeza social, a febre
do dinheiro, o crime, e descobrindo uma inteira
poesia oculta nos mais humildes aspectos deste
mundo". 48
Tinha portanto justificação a perplexidade do
nosso D. Frei Francisco de S. Luís quando
perguntava o que era Romantismo sem atinar com
quem lho definisse. Se tivesse consultado os
próceres do romantismo europeu, não teria
58
adiantado. Em França, entre 1820 e 1827, Madame
de Staël, Stendhal, Vítor Hugo e os redactores do
jornal Le Globe tentaram-no em vão, porque nem as
definições de Stendhal se coadunavam com as de
Hugo, nem as de qualquer destes com as de
Madame de Staël, nem ainda a de cada um deles
com as dos teóricos de Le Globe. Heine, ao esboçar
uma pequena história do romantismo alemão,
definiu-o apenas num dos seus aspectos restritos, o
que equivaleu a não o ter definido: "..o
renascimento da poesia da Idade-Média, como ela
se manifestava nas canções, na arquitectura, na
pintura, na arte, na vida da época", definição muito
próxima da que havia sido dada por Wieland.
Goethe, com o seu genial bom senso, numa das
conversas com Eckermann, disse-lhe um dia:
"Porquê todo este alarido entre o clássico e o
romântico? O que importa é que a obra seja
realmente boa e perfeita; se o for, tornar-se-á
clássica." 49
E foi o que veio a acontecer, e será o que há-de
acontecer a toda a obra de arte realizada
genialmente, seja qual for o seu rótulo.
Circunscrevendo-nos, como aqui compete, ao
romance histórico na contextura do Romantismo,
havemos de verificar que nenhum outro género
podia corresponder mais cabalmente aos anelos do
movimento romântico na sua feição nacionalista,
evocadora do passado, erudita e divulgadora,
aristocrática e populista. Nenhum outro género,
também, melhor havia de satisfazer à predilecção
romântica pelo pitoresco e pela cor local.
59
E, no entanto, o Romantismo não deixou em
qualquer literatura um romance histórico que se
elevasse às culminâncias de uma obra-prima
universal. Só muito posteriormente, e sem
quaisquer filiações ou afinidades com o movimento
romântico, Tolstoi criou Guerra e Paz e Anatole
France escreveu Les Dieux ont Soif. E foram criadas
estas obras, com tal qualidade, justamente por
estarem isentas desses preconceitos da estética e da
ética românticas.
"Para construir um romance ¯ escreveu
Tchekov ¯ temos de conhecer as leis da simetria e
do equilíbrio das massas. Um romance é um
palácio: devemos poder andar por dentro dele sem
nos sentirmos surpresos ou aborrecidos como se
estivéssemos num museu."
Ora uma das causas da caducidade do romance
histórico, talvez a maior fragilidade da sua contextura
essencial, como género literário e, principalmente,
como romance, foi o do leitor se haver de sentir nele
como num museu. Não havia simetria nem equilíbrio
de elementos ¯ porque o descritivo arqueológico ou
simplesmente histórico desequilibrava a composição
e o pitoresco dos personagens e dos meios, no geral,
degenerava da realidade natural.
E, ainda aí, o romance histórico representava,
expressamente, o essencial da estética romântica,
como escola literária.
Os "sete mil e quinhentos bravos" que
desembarcaram no Mindelo, depois do exílio
passado na Inglaterra ou na França, trouxeram nas
suas bagagens o Romantismo. Era uma jovem
60
geração que vinha fazer de Portugal um país novo. À
peuple nouveau, art nouveau, proclamara Vítor Hugo no
prefácio de Hernani, quase na mesma página onde
havia declarado que o Romantismo era o liberalismo
na literatura.
A Portugal, o Romantismo chegara atrasado, mas
viera a tempo. Os românticos portugueses, depois
de, como soldados, terem dado à pátria a liberdade,
propunham-se dotá-la com uma nova arte que tinha
por objecto a ressurreição das suas tradições
poéticas.
"Pobres, fracos, humilhados ¯ escreveu
Herculano ¯ depois de tão famosos dias de poderio
e de renome, que nos resta senão o passado? Lá
temos o tesouro dos nossos afectos e
contentamentos. Sejam as memórias da pátria, que
tivemos, o anjo de Deus que nos revoque à energia
social e aos santos afectos da nacionalidade. Que
todos aqueles a quem o engenho e o estudo
habilitaram para os graves e profundos trabalhos da
história se dediquem a ele. No meio de uma nação
decadente, mas rica de tradições, o mister de
recordar o passado é uma espécie de sacerdócio.
Exercitem-se os que podem e sabem, porque não o
fazer é um crime. E a arte? Que a arte em todas as
suas formas externas represente este nobre
pensamento; que o drama, o poema, o romance
sejam sempre um eco das eras poéticas da nossa
terra. Que o povo encontre em tudo e por toda a
parte o grande vulto dos seus antepassados." 50
Estas eras poéticas, certamente se haviam de
entender como épocas épicas, dado o propósito
dinamizador com que eram tomadas como exemplo;
61
mas o épico romântico não podia ser o do heroísmo
cavalheiresco ¯ era o épico burguês, a gesta da
ascensão, pelo labor e pelas virtudes cívicas, do povo
à burguesia ¯ agora, finalmente, triunfante.
O romance histórico tal como Walter Scott o
criara, adequava-se mais do que qualquer outro dos
géneros literários ao propósito, e por isso se difundiu
por todo o Ocidente culto, num êxito até aí nunca
igualado. O romancista escocês criou discípulos em
todas as literaturas cultas e Scott, com Byron, foram,
no tempo, os mananciais, cada um de sua maneira,
das duas grandes correntes que vieram aumentar o
caudal ideológico e ético que desde J. J. Rousseau
arrastava as sociedades europeias.
A obra de Walter Scott, porém, diferenciava-se
essencialmente das que estavam impregnadas de
"rousseauismo" e de "byronismo"; o exotismo no
tempo, ou seja o ambiente histórico, já não existente,
em que se desenvolviam as ficções, permitia a
acomodação à moral racional, às crenças religiosas e
à expressão dos sentimentos nacionalistas e
patrióticos que as guerras napoleónicas despertaram
em todas as nações por elas devastadas.
Os romances de Walter Scott revelaram ao
público duas qualidades que constituíram a sua
força extraordinária: a representação do passado
com a verosimilhança do presente e o aparecimento
na acção novelística ¯ muitas vezes em primeiro
plano ¯ do povo, da gente simples e até da gente
anormal e irregular, marginal como hoje se diz.
Por estes dons ficou Scott, potencialmente,
como um dos mais poderosos criadores do
romance moderno. O romance "scottiano" teve
62
naquilo que constituiu o seu êxito imediato ¯
temática histórica e cor local (principalmente
quando Scott escrevia da Escócia, sua terra natal) ¯
a sua condição de caducidade (foi a parte de museu);
mas, pela técnica e pela observação do homem
social, ficou como o género, por excelência, de
fecunda transição da novela do século XVIII para o
romance social do século XIX. Por isso, não se pode
negar legitimidade à opinião que considera a
Comédia Humana como o desenvolvimento e
prolongamento das novelas de Walter Scott.
Henri Brémond escreveu uma vez, com aquela
desenvoltura de juízos que lhe foi tão particular,
que havia tantos romantismos quantos eram os
românticos. Julgamos menos excessivo e não tão
polémico arriscarmo-nos a dizer que cada povo
teve o seu romantismo.
No que não queremos que se julgue que
afirmamos ter tido cada povo uma literatura
romântica radicalmente própria, nacional,
emanando das suas profundezas étnicas. Julgamos
que cada povo teve um romantismo conforme ao
seu grau de cultura e à condição social-económica
em que se encontrava.
O romantismo português logo no seu início se
anunciou como reatador da tradição, restaurador da
genuinidade dos costumes nacionais e das
instituições positivas e exequíveis em que se havia
de alicerçar a liberdade. Embora não o fosse
expressamente confessado, impunha-se que o
romantismo fosse a literatura da classe burguesa,
porque, também para os nossos primeiros
românticos, a literatura havia de ser integrada
63
socialmente. E Herculano, tanto ou mais do que
Garrett, assim o concebia. O romantismo, em
Portugal, havia de ser uma arte populista e nacional,
em oposição ao classicismo como arte peregrina ao
serviço do absolutismo monárquico, porque o povo
era "o grande poeta de todos, o grande guardador
de tradições (Garrett-Viagens). Por isso se impôs
aos nossos primeiros românticos a descoberta das
tradições que se propunham reatar e desenvolver.
Herculano foi procurá-las na nossa Idade-Média ¯
instituições, tradições populares e costumes ¯ e
Garrett no Romanceiro.
Oliveira Martins deixou nas páginas do Portugal
Contemporâneo uma crítica sagaz e pitoresca desta
busca das tradições originais do povo português, tal
como os românticos a tentaram e entenderam,
precipitando-os "em aventuras singulares": "Uma
das mais conspícuas ¯ disse Martins ¯ foi decerto
a tentativa de criar uma tradição nacional
portuguesa, contra os elementos de uma história de
cinco séculos, quando a duração total da nossa
história não excedia sete. Mas esses dois primeiros
afiguravam-se os puros: sendo o resto erros,
desvios da genuína tradição. De tal forma se
obedecia à moda que lavrava nas nações
germânicas; mas, nesses países, a tradição medieval
era viva, estavam ainda de pé as instituições antigas;
pois só na França e na Espanha se tinham
constituído absolutismos, e só a Península tinha
tido, para além dos territórios europeus, vastos
domínios ultramarinos" (5.ª ed. II, p. 132).
E concluía:
64
"Em vão, portanto, o romantismo procurava
uma tradição. Não a achava, porque as ideias
filosófico-económicas condenavam as conhecidas; e
não havendo outras a descobrir, os românticos
implantavam um género literário de importação da
Escócia, à Walter Scott, sem conseguirem acordar
no povo lembranças desses dois séculos de Idade-
Média de que ele não tinha recordações, porque
neles a vida da nação não tivera carácter próprio"
(id. pág. 135).
Assim, a temática da novelística histórica do
primeiro romantismo português foi
acentuadamente medievalista, pois a ideação
estética da Idade-Média em Portugal oferecia, ao
mesmo tempo, satisfação à predilecção romântica
pelo exotismo no tempo (aliás de rigor muito
duvidoso) a par da revocação para as memórias da
adolescência da nacionalidade.
Mas como é inevitável em tudo o que é artificial,
as incoerências internas da nova literatura foram-se
revelando. António José Saraiva, no seu livro
Herculano e o Liberalismo em Portugal notou-o
frisantemente em duas páginas de boa síntese, das
quais destaco: "As obras de ficção de Herculano
têm, com efeito, um miolo cavalheiresco e
passadista pouco congruente com o intuito de criar
uma literatura para a classe média, a classe
revolucionária. Enquanto a revolução abolia a
nobreza, o Eurico, o Lidador, o Alcaide do Castelo
de Faria, a Dama do Pé de Cabra, o Bobo,
exaltavam os feitos e cantavam as tradições dessa
nobreza. E que feitos? Precisamente aqueles donde
a nobreza tirara os seus pergaminhos e em prémio
65
dos quais recebera os bens da coroa, que Mouzinho
aboliu." (pág. 196, 1.ª ed )
Por outro lado, cedo se começou a revelar a
discrepância e até oposição que havia entre a
sociedade liberal e a sociedade romântica: "A
sociedade é materialista; e a literatura, que é a
expressão da sociedade, é toda excessivamente e
absurdamente e despropositadamente
espiritualistas" (Garrett ¯ Viagens, Cap. III).
Além disto, a literatura que havia de servir a
liberdade e a tolerância, sua condição necessária,
redundara favorável à reacção e, por isso, já em
1844, o mesmo Garrett, ao prefaciar a primeira
edição de O Arco de Sant'Ana, denunciava como
se haviam pervertido os propósitos pedagógicos do
medievalismo romântico: "E, todavia, confessamos
a verdade; estas modas de "renascença", esta paixão
do gótico em literatura e arquitectura, este horror
ao clássico, inspirado pela escola romântica, tem,
sim, tem ajudado mais do que se cuida nas funestas
tentativas de reacção e retrocesso social que, há
trinta anos a esta parte, andam ensaiando as
oligarquias anãs do nosso século para se
substituírem às gigantescas aristocracias dos tempos
antigos."
Simultaneamente, com o progresso e
apuramento dos estudos históricos, começou a
reconhecer-se quanto a Idade-Média das novelas
históricas era convencional e falsa. E já um dos dois
grandes mestres da escola romântica em Portugal
não hesitava ¯ como quem daí lava as mãos ¯ em
satirizar a elaboração e textura dos romances
históricos nacionais:
66
"Trata-se de um romance, de um drama ¯
cuidas que vamos estudar a história, a natureza, os
monumentos, as pinturas, os sepulcros, os edifícios,
as memórias da época? Não seja pateta, senhor
leitor, nem cuide que nós o somos. Desenhar
caracteres e situações do vivo da natureza, colori-los
das cores verdadeiras da história.. isso é trabalho
difícil, longo, delicado, exige um estudo, um
talento, e sobretudo um tacto! Não senhor: a coisa
faz-se muito mais facilmente. Eu lhe explico.
"Todo o drama e todo o romance precisa de:
"Uma ou duas damas,
"Um pai,
"Dois ou três filhos, de dezanove a trinta anos,
"Um criado velho,
"Um monstro, encarregado de fazer as
maldades,
"Vários tratantes, e algumas pessoas capazes
para intermédios.
"Ora bem; vai-se aos figurinos franceses de
Dumas, de Eugénio Sue, de Vítor Hugo, e recorta a
gente, de cada um deles, as figuras que precisa,
gruda-as sobre uma folha de papel da cor da moda,
verde, pardo, azul ¯ como fazem as raparigas
inglesas aos seus álbuns de scrapbooks; forma com
elas os grupos e situações que lhe parece; não
importa que sejam mais ou menos disparatados.
Depois, vai-se às crónicas, tiram-se uns poucos de
nomes e de palavrões velhos; com os nomes criamse
os figurões, com os palavrões iluminam-se..
(estilo de pintor pinta-monos). ¯ E aqui está como
nós fazemos a nossa literatura original" (Garrett ¯
Viagens, Cap. V).
67
Os escritores com tendências ou aspirações a
romancistas começaram a voltar os seus interesses
literários para a sociedade contemporânea, não
menos superficialmente, e os novelistas históricos
abandonaram o medievalismo e foram avançando
no tempo histórico até aos alvores do século XIX.
O público, porém, continuava a considerar o
romance histórico como o romance sério, o romance
de categoria, cuja leitura distraía e aproveitava.
Camilo, que teve sempre uma intuição aguda das
preferências do público ledor, apesar de todo
voltado para o romance de costumes
contemporâneos, ao escrever o seu primeiro
romance, aparecido em volume, O Anátema, deu-lhe
tintura histórica.
Rebelo da Silva, para atender à sua clientela,
deixou a Idade-Média e escolheu o século XVIII,
como época dos seus principais trabalhos
novelísticos, chegando a elaborar um romance cuja
acção decorre durante a primeira invasão francesa
(A casa dos Fantasmas); Arnaldo Gama tem a sua
melhor obra novelística no Um Motim há cem anos
(século XVIII) e no Sargento-Mor de Vilar decorre a
acção durante a segunda invasão francesa; Camilo
Castelo Branco, nos romances históricos, cinge-se
aos séculos XVII e XVIII; António da Silva Gaio em
Mário traça o quadro e o ambiente da tirania
miguelista; Pinheiro Chagas, que não pode ser
considerado na categoria de um romancista
histórico mas de um folhetinista de motivos
históricos ou pretensamente históricos, no geral
preferiu ou o período da Restauração de 1640 ou os
finais do século XVIII.
68
O romance Mário de Silva Gaio tem como
subtítulo Episódios das Lutas Civis Portuguesas de 1820 a
1834 e ficou como uma das mais interessantes
produções novelescas que as lutas liberais
inspiraram, além do valor que lhe pode ser
justamente atribuído de precursor do que viria a ser
o romance de Júlio Dinis. Estamos mesmo em
supor que Mário preparou o público ledor
português para a aceitação da obra do autor de As
Pupilas do Senhor Reitor.
Ao surgir a questão Bom Senso e Bom Gosto e ao
revelarem-se, pela rebelião e pela polémica, os
valores da nova geração que vinha destruir os
bustos olímpicos do constitucionalismo e da escola
romântica, o romance histórico já há muito
encerrara o seu ciclo. Em verdade, não ficara
representado por nenhuma grande obra literária,
embora tivesse sido cultivado pelas três mais
eminentes figuras da literatura do período
romântico: Herculano, Garrett e Camilo.
Também não exerceu influência alguma sobre a
evolução posterior do género romance. O romance
histórico, em que os primeiros românticos puseram
tanta fé e tamanha esperança, deixou de si apenas o
folhetim de pretexto histórico e intuitos patrióticos
ou meramente políticos. E foi, então, um género
literário popular ¯ mas como toda a literatura
popular, para o ser, só o foi baixando de qualidade
e de nível.

69
RELAÇÃO SUMÁRIA DE ROMANCES HISTÓRICOS, ORIGINAIS PORTUGUESES, PUBLICADOS DE 1837 A 1867

Esta relação, inevitavelmente sucinta e
incompleta pela natureza não erudita da publicação
em que se insere, pode dar ao leitor que seja
simples curioso neste género de estudos uma
panorâmica da produção das novelas históricas em
Portugal no decurso de trinta anos, a contar do
aparecimento das primeiras tentativas no género.
Para além da última data em que balizei a relação, o
romance histórico teve ainda novos autores, com
largo público ¯ autores que vinham do Segundo
Romantismo e o continuavam, público que restava
fiel a um género de leitura que considerava sério.
Podemos citar, desde já, Pinheiro Chagas e Alberto
Pimentel. Os romances históricos de qualquer
deles, influenciados por Alexandre Dumas, os de
Pinheiro Chagas e na esteira de Camilo os de
Alberto Pimentel, pertencem à degeneração do
género, acompanhando a dissolução do
romantismo.
70
Ao percorrer a relação, logo se nota que, a não
ser as narrativas, novelas ou romances da autoria de
Alexandre Herculano, de Garrett, de Marreca, de
Andrade Corvo, de L. A. Rebelo da Silva, de
Arnaldo Gama, de Camilo Castelo Branco e de
Silva Gaio, toda a outra produção ficou
literariamente inexistente.
São obras, todas elas, mais ou menos, daquele
"pobre rapaz" que Garrett desenhou "de calça de
xadrez, colete polca e bengalinha de caoutchou, que
se sentou na sua cadeira moyen-âge e sonhou que
vinha da Palestina.. ele chegou agora de Sam
Carlos." À parte os números XXII e XXXIV que
merecem ser lidos, não pelo seu mérito, mas pela
sugestão do tema que forneceram a Garrett para o
seu genial Frei Luís de Sousa, à parte estes, nem
com muito boa vontade se conseguirá vislumbrar o
mínimo mérito em qualquer das novelas históricas
relacionadas.
Não incluímos, propositadamente, três obras de
ficção que têm significado e relevância para o
estudo da evolução da novela histórica na direcção
do romance de costumes contemporâneos,
considerados e anunciados pelos seus autores como
romances históricos. São eles: Luísa e Júlia,
romance histórico ¯ Lisboa, 1835; e O Sapateiro de
Azeitão, romance histórico-político, baseado nos
principais factos sucedidos em Portugal entre os
anos de 1830 e 1846 ¯ Lisboa, 1865. Ambas as
obras são da autoria de Francisco Pedro Celestino
Soares, sendo a segunda uma continuação da
primeira, também romance histórico-político sobre
71
factos e acontecimentos ocorridos em Portugal de
1828 a 1833.
O outro é o romance muito conhecido de
António Augusto Teixeira de Vasconcelos ¯ O
prato de arroz doce (Porto, 1862) cuja acção decorre
durante a revolução portuense de 1846-1847 em
que o autor não só foi testemunha mas também
participante..
Estes três romances podem ser considerados ¯
à distância a que estamos dos acontecimentos neles
descritos ¯ como realmente "históricos", tendo o
último tal valor documental que João Chagas, num
daqueles seus desvarios de ogerisa a homens que
valiam muito mais do que ele, pôde dizer que o
Portugal Contemporâneo de Oliveira Martins foi dela
decalcado.
I 1837 ¯ Quadros da História Portuguesa
¯ Morte do Conde Andeiro e do
Bispo de Lisboa, 1383, "O
Panorama", 1.° ano, 1837, 1.°
vol., pp. 53 a 55.
II 1838 ¯ O Castelo de Faria ¯ Crónica
do Século XIV, "O Panorama",
2.º ano, 2.° vol., 1838, pp. 93 a
95.
III ¯ O Mestre Assassinado ¯
Crónica dos Templários, 1320,
"O Panorama", 2.° ano, 2.º vol.,
72
1838, pp. 255-6, 262-3, 271-2,
286-8, 295, 303-4
IV ¯ Mestre Gil ¯ Crónica do Século
XV, "O Panorama", 2.° ano, 2.°
vol., 1838, pp. 358-9, 366-8,
374-6, 383-4, 388-9, 399-400,
404-8.
V 1839 ¯ D. Carlos e Filipe II
(Fragmentos da História de
Espanha), 1567, "O
Panorama", 3.° ano, 1839, pp.
38-40, 47-48.
VI ¯ A Morte do Lidador, 1170 (ass.
A. H.), 3.° ano, 3.° vol., 1839,
pp. 180-182, 190-192.
VII ¯ Três Meses em Calecut ¯
Primeira Crónica dos Estados da
Índia, 1498, "O Panorama", 3.°
ano, 3.° vol., 1839, pp. 7-8, 14-
16, 23-24, 29-32.
VIII ¯ A Abóbada ¯ Crónica Monástica,
1401, "O Panorama", 3.° ano,
3.° vol., 1839, pp. 85-88, 94-6,
100-104, 109-112, 117-129.
IX ¯ O Cronista ¯ Viver e Crer de
outros tempos, 1535, "O
Panorama", 3.° ano, 3.° vol.,
1839, pp. 300-4, 305-9.
X ¯ ANTÓNIO AUGUSTO CORRÊA
DE LACERDA: D. Sebastião, o
Encoberto, Romance-poema,
Lisboa, 1839.
73
XI ¯ FRANCISCO LOPES DE
AZEVEDO VELHO DA
FONSECA: O Castelo de Lanhoso
¯ Crónica do tempo d'el-rei D.
Sancho II, "Revista Literária do
Porto", tomo II (saiu
anónimo).
XII 1840 ¯ Um Feiticeiro (Crónica da
Inquisição), J. H. da C. R., "O
Panorama", 4.° vol., 4.° ano,
1840, pp. 12-14.
XIII ¯ O Sapateiro de Sevilha (anedota
histórica), "O Panorama", 4 °
vol., 4.° ano, 1840, pp. 209-
212.
XIV ¯ O Pintor Rubens ¯ História do
17.° século, J. M. da C. R., "O
Panorama", 4.° vol., 4.° ano,
1840, pp. 249-252, 260-263,
266-269.
XV ¯ Três dias do reinado de Carlos
Magno, "O Panorama", 4.º vol.,
4.º ano, 1840, pp. 355-8, 363-6.
XVI ¯ O Cavaleiro e o Peão ¯ Ano de
1328, "O Panorama", 4.º vol,.
4.º ano, 1840, pp. 404-6.
XVII 1841 ¯ O Monge de Cister ¯ Romance
Histórico (Fragmentos), 1388-
1389, "O Panorama", 5.° vol.,
5.º ano, 1841, pp. 6-8, 20-24,
29-30, 42-44, 53-55.
XVIII ¯ O Infante Santo (1437), "O
Panorama", 5.° vol., 5.° ano,
74
1841, pp. 261-3, 267-70, 273-6,
282-5, 289. 2.ª parte: 301-4,
310-12, 316-19, 325-27.
XIX ¯ D. Alonzo, "O Panorama", 5.°
vol., 5.° ano, 1841, pp. 294-5,
298-300, 305-8, 314-16, 322-24,
330-332, 339-41.
XX 1842 ¯ Arrhas por foro de Espanha, "O
Panorama", 5.° e 6.° vol.,
respectivamente, pp. 356-60,
377-80, 402-5 e 4-8, 26-31, 33-
40, 42-3, 50-55.
XXI ¯ D. Pedro e D. João Carvajal ¯
Romance histórico, 1312, "O
Panorama", 5.° e 6.° vols.,
respectivamente, pp. 375-6,
394-6, 413 e 19-21, 157, 180-3,
205-8, 218-20, 229-32.
XXII ¯ Manuel de Sousa Coutinho ¯
Romance histórico, 1575-1632, O
Panorama", 6.º ano, pp. 237-9,
243-40, 250-252.
XXIII ¯ Gonçalo Hermigues ¯ O Tragamouros
¯ Romance histórico,
"Panorama", 6.° ano, N.° 44.
XXIV ¯ O que foram portugueses! 1640
(pequeno esboço de um quadro
grande), "O Panorama", 6.° vol.,
pp. 259-61, 265-8, 276-8, 282-4.
XXV ¯ L. A. REBELO DA SILVA:
Rausso por homizio, "Revista
Universal Lisbonense", ano
1842.
75
XXVI 1843 ¯ Bem Querer e Mal Fazer ¯
Memórias insulares, 1531, "O
Panorama", 7.° vol., pp. 6-8, 12-
15, 26-27, 53-55, 66-67.
XXVII ¯ O Bobo, 1128, ALEX.
HERCULANO, "O Panorama",
7.° vol., (introdução), pp. 10-12
(D. Bibas), pp. 19-23 (o Sarau),
pp. 37-40 (Receios e
Esperanças), pp. 44-48 (a
Madrugada), pp. 51-2 (Como de
um homenzinho se faz um
homenzarrão), pp. 77-79
(Reconciliação), pp. 106-9
(Generalidade), pp. 125-127 (o
subterrâneo), pp. 141-144 (A
mensagem), pp. 169-173 (A boa
corda de cânave.. ), pp. 202-6
(Amor e vingança), pp. 226-230
(Conclusão), pp. 242-246.
XXVIII ¯ A Meditação no Promontório
(Fragmento de um livro
inédito), "O Panorama", 7.° vol.,
pp. 117-9.
XXIX ¯ O Cavaleiro Negro ¯ Episódio
histórico, "O Panorama", 2.º
vol. da 2.ª série, pp. 180-3.
XXX ¯ O Brazeiro, "O Panorama", 2.°
vol. da 2.ª série, pp. 218-20,
238-40, 252-6.
XXXI ¯ A Dama de Pé de Cabra (conto de
junto ao lar), "O Panorama", 2.°
76
vol. da 2.ª série, pp. 279-80,
311-14, 330-3.
XXXII ¯ Manuel de Sousa de Sepulveda, de
A. D'O. MARRECA, "O
Panorama", 2.° vol. da 2.ª série,
pp. 308-12.
XXXIII ¯ FERNANDO LUÍS
MOUSINHO DE
ALBUQUERQUE: O Passeio do
Fantasma ¯ Legenda do Século
16.°, "O Panorama", 2.° vol. de
2.ª série, pp. 366-68.
XXXIV ¯ Ao cabo de oito anos só a nova de
que morrera, por NUNO MARIA
DE SOUSA MOURA, "O
Panorama", 2.° vol. da 2.ª série,
pp. 377-79.
XXXV 1844 ¯ O Monasticon I ¯ Eurico o
Presbítero, por ALEXANDRE
HERCULANO, Lisboa, Tip. da
Sociedade Promotora de
Conhecimentos Úteis, 1844.
XXXVI ¯ ANTÓNIO PEREIRA
ARAGÃO: Elisa ou a portuguesa
virtuosa ¯ Romance português,
histórico e original, Lisboa, Tip. de
Luís Corrêa da Cunha, 1844.
XXXVIID ¯ D. Leucadia Sancha de Ataíde,
por J. FREIRE DE SERPA, "O
Panorama", 3.° vol. da 2.ª série,
pp. 153-54, 166-168, 175-6.
XXXVIII ¯ Não vale a lição mil dobras?
(Episódio das guerras da sucessão
77
entre Castela e Portugal), por SILVA
LEAL JÚNIOR, "O Panorama",
3.° vol. da 2 .ª série, pp. 186-9,
194-6, 202-5, 254-6.
XXXIX ¯ Ataúlfo de Compostela (Lenda
religiosa), 852, por SILVA LEAL
JÚNIOR, "O Panorama", 3.º vol.
da 2.ª série, pp. 250-2.
XL 1852 ¯ O Conde Soberano de Castela ¯
Fernão Gonçalves, 912-970, por
OLIVEIRA MARRECA, "O
Panorama", 3.° vol. da 2.ª série,
pp. 28-30, 34-35, 44-46, 50-52,
58-60, 66-69, 74-76, 83-85, 90-
92, 89-101, 130-2, 138-40, 145-8,
156-58, 161-3, 170-1, 210-2, 220-
24, 234-37, 260-4, 273-7, 314-8,
321-3, 376-8, 395-7, 400-1; vol.
10.º (1853), 301-4, 308-11, 317-9,
325-6, 330-5, 391-4, 349-51, 356-
8, 364-6, 371-3, 398-9, 404-5,
413-14; vol. 11.° (1854), pp. 106-
8, 127-8, 146-8.
XLI 1845 ¯ ALMEIDA GARRETT: O Arco de
Sant'Ana ¯ Crónica Portuense
Manuscrito achado no Convento dos
Grilos do Porto por um soldado do
Corpo Académico, Lisboa, na Imp.
Nacional, 1845 (até ao cap.
XVIII apareceu anónimo).
XLII ¯ ALEXANDRE HERCULANO: O
Alcaide de Santarém, "Ilustração",
vol. 1.°.
78
XLIII 1846 ¯ O Castelo de Santa Olaia ¯ Lenda
do século XI, (Fragmento), "O
Panorama", vol. 9.° (1.° da 3.ª
série) pp. 3-6, 10-12, 18-20.
XLIV ¯ O Hadjeb de Kordova (978-992),
"O Panorama", 9.° vol., pp. 26-
27, 35-36, 42-44, 51-53, 66-68.
XLV 1847 ¯ ANTÓNIO PEREIRA ARAGÃO: A
orfã portuguesa e o seu tutor, ou as
duas últimas venerandas vítimas da
usurpação dos Filipes ¯ Romance
original, Lisboa, Tip. de Luís
Corrêa da Cunha, 1847, 4 tomos.
XLVI ¯ Ódio velho não cansa (Romance
histórico) por L. A. REBELO da
SILVA, "O Panorama", vol. 9.°,
pp. 234-6, 242-6, 249-52, 258-
60, 266-8, 273-7, 284-6, 291-2,
298-301. (Nestas páginas só foi
publicada parte do romance.
Depois foi republicado desde o
início mas refundido, p. 389 do
mesmo volume do "Panorama" e
ainda pp. 398-9, 403-4, 411-13;
Vol. 11.° (1853), pp. 2-4, 13-14,
22-24, 29-31, 34-36, 43-45, 53-
54, 59-61, 74-76, 84-87, 94-95,
98-100, 106-109, 124-126, 132-
134, 138-40, 154-6, 162-4, 170-2,
181-3, 188-9, 197-8, 203-4, 212-
14, 219-20, 227-8, 238-40, 260-2,
268-71, 275-7, 282-4. (Apareceu
em volume em 1849); Também
79
foi publicado na "Época"
(1848).
XLVII ¯ ALEXANDRE HERCULANO: O
Monasticon II e III ¯ O Monge de
Cister ou a Época de D. João I,
Tomos I e II ¯ Lisboa, Imprensa
Nacional, 1848.
XLVIII ¯ AIRES PINTO DE SOUSA DE
MENDONÇA E MENESES: O
Mestre de Calatrava ¯ Romance
histórico, Lisboa, 1848.
XLIX 1849 ¯ AIRES PINTO DE SOUSA DE
MENDONÇA E MENESES: Rui de
Miranda ¯ Romance histórico
original português, Lisboa, 1849.
L 1850 ¯ ALMEIDA GARRETT: O Arco de
Sant'Ana ¯ Crónica Portuense ¯ II,
Lisboa, na Imp. Nacional, 1850.
LI ¯ JOÃO DE ANDRADE CORVO:
Um Ano na Corte, Lisboa, tip.
Revista Universal Lisbonense,
1850-1851, 4 tomos 8.°.
LII 1851 ¯ ALEXANDRE HERCULANO:
Lendas e Narrativas, Tomos I e II.
LIII 1852 ¯ L. A. REBELO DA SILVA: A
Mocidade de D. João V ¯ Romance
histórico, publicado na "Revista
Universal Lisbonense".
Apareceu em volume nos anos
1852-1853, 4 tomos, tip. da
Revista Universal.
LIV ¯ JOÃO AUGUSTO NOVAIS
VIEIRA: A Marquesa de Camba ¯
80
Romance histórico do tempo de D.
Pedro, o Cruel, Porto, tip. J. L. de
Sousa, 1852.
LV 1853 ¯ ANTÓNIO PEREIRA ARAGÃO:
Virgínia, Afonso e Corina, ou o mais
nobre sacrifício do coração de duas
virgens ¯ Romance histórico
português, Lisboa, tip. de Luís
Corrêa da Cunha, 2 tomos.
LVI 1854 ¯ D. Sebastião ¯ O Desejado ¯
Lenda nacional, por F. M.
BORDALO, "O Panorama", vol.
11.°, pp. 380-3, 388-90, 396-8,
405-7, 413-16 ¯ vol. 12.°
(1855), pp. 2-4, 10-12. (Foi
primitivamente publicado na
"Revista Universal" no ano de
1844).
LVII 1855 ¯ Ignoto Deo ¯ Tradição portuguesa,
por F. M. BORDALO, "O
Panorama", vol. 12.° pp. 170 -2,
179-81, 187-8, 194-6, 201-2.
LVIII ¯ OVoador ¯ 1709-1724, por F.
M. BORDALO, "O Panorama",
vol. 12.º pp. 250-2, 262-4, 278-
80, 284-5, 293-4, 301-3.
LIX 1856 ¯ O Braxão d'Elvas (Tradução
portuguesa), por J. DE TORRES,
"O Panorama", vol. 13.°, pp. 1-
13, 9-12.
LX ¯ A Pena de Talião, por L. A.
REBELO DA SILVA, "O
Panorama", vol. 13.°, pp. 18-22,
81
26-30, 69-71, 83-5, 93-6, 114-6,
134-6, 138-9.
LXI ¯ O Pagem da Rainha ¯ Romance,
por SOARES FRANCO JÚNIOR,
"O Panorama", vol. 13.°, pp.
333-4, 346-7, 354-6, 362, 369-
71, 378-81.
LXII 1857 ¯ MATILDE DE SANTA ANA E
VASCONCELOS: O Soldado de
Aljubarrota ¯ Romance histórico,
Lisboa, na Imp. Nacional,
1857.
LXIII ¯ ANTÓNIO COELHO LOUSADA:
Os Tripeiros ¯ Romance crónica do
século XIV, Porto, Tip. de J. J.
Gonçalves Bastos, 1857.
LXIV ¯ O Galeão de Enxobregas (Cenas
navais do século XVII), por F. M.
BORDALO, "O Panorama", vol.
14.°, pp. 330-2, 346-8, 353-5,
361-4, 370-2, 379-81.
LXV 1858 ¯ ANTÓNIO DA SILVA GAIO:
Mário ¯ Episódios das Lutas Civis
Portuguesas de 1820 a 1834,
1858.
LXVI ¯ LUÍS JOAQUIM DE OLIVEIRA E
CASTRO ¯ A filha de Afonso III
ou a conquista do Algarve ¯
Romance, "Revista Popular",
1858.
LXVII ¯ ANÓNIMO ¯ Quem o alheio veste
na Praça o despe ¯ "O
Panorama", vol. 15.°, pp. 188-
82
9, 194-5, 201-2, 210-11, 219-
22, 230-1.
LXVIII 1861 ¯ ARNALDO GAMA ¯ Um motim
há cem anos (Crónica portuense do
século XVIII), Porto, Tip.
Comércio, 1861.
LXIX 1863 ¯ BERNARDINO PEREIRA
PINHEIRO ¯ Sombras e luz ¯
Romance do reinado de D. Manuel,
Lisboa, Tip. Francoportuguesa,
1863.
LXX ¯ LUÍS RIBEIRO DE SOTTO
MAIOR: Esposa na lide ¯ Romance
histórico.
LXXI ¯ MENDES LEAL JÚNIOR ¯
Crónicas do século XVII ¯ I ¯
Infaustas aventuras de Mestre
Marques Estouro, vítima duma
paixão ¯ II ¯ A porta de S. Jorge
¯ Os Mosqueteiros de África.
LXXII ¯ ARNALDO GAMA: O Sargento-
Mor de Vilar ¯ Episódios da
invasão francesa de 1809, Porto,
Tip. do Comércio, 1863, 2
tomos.
LXXIII 1864 ¯ ARNALDO GAMA: A última dona
de S. Nicolau (Episódio da história
do Porto no século XV), Porto,
Tip. do Comércio, 1864.
LXXIV 1864 ¯ ANTÓNIO FRANCISCO
BARATA ¯ O Rancho da Carqueja
¯ Tentativa de romance histórico,
baseado nos acontecimentos
83
académicos do século passado,
Coimbra, Imp. Literária, 1864.
LXXV 1865 ¯ CAMILO CASTELO BRANCO:
Luta de gigantes, Porto, Tip. do
Comércio, 1865.
LXXVI 1866 ¯ CAMILO CASTELO BRANCO: O
Judeu ¯ Romance histórico, Porto,
Tip. de António José da Silva
Teixeira, 1866, 2 tomos.
LXXVII ¯ ARNALDO GAMA: O Filho de
Baldaia, Porto, em casa da
Viúva Moré Editora, 1866.
LXXVIII ¯ ALEXANDRE HERCULANO: O
Bobo, Rio de Janeiro, Tip.
Perseverança, 1866.
LXXIX ¯ CAMILO CASTELO BRANCO: O
olho de vidro ¯ Romance histórico.
(Em folhetins no "Jornal do
Comércio").
LXXX 1867 ¯ M. PINHEIRO CHAGAS: A Corte
de D. João V ¯ Romance
histórico, Lisboa, António Maria
Pereira, 1867.
LXXXI ¯ CAMILO CASTELO BRANCO: O
Senhor do Paço de Ninães, Porto,
Tip. do Comércio, 1867.
LXXXII ¯ Beatriz ¯ Cenas da vida íntima
dos Açores no século XVIII, por
VICENTE MACHADO DE FARIA
E MAIA, "O Panorama", vol.
17.° pp. 258-9, 270-2, 288-90,
296-8, 309-11, 322, 329-30, 336-
8, 344-6, 360-2, 377-8, 385-6.
84
LXXXIII ¯ M. PINHEIRO CHAGAS: A noiva
do Cadafalso (Episódio da guerra
do Rossillon), "O Panorama",
vol. 17.°, pp. 3-4, 10-12, 34-5,
63-4, 70, 102-3, 123-4, 130-2,
142-3, 154-5, 166-7, 170-2, 218-
20, 234-6.

85
NOTAS

1 De 1814 a 1828 publicou Walter Scott as suas principais
novelas históricas: 1814, Waverley; 1815, Guy Mannering; 1816,
The Antiquary; 1817, Rob Roy; 1819, The Bride of Lammermoor;
1820, Ivanhoe, The Monastery e The Abbot; 1821, Kenilworth; 1823,
The Talisman; 1828, The Fair Maid of Perth.
O americano Cooper, de 1821 a 1828, havia publicado os
seus principais romances sobre os índios americanos e primeiros
colonos.
Em França: em 1826 Alfred de Vigniy publicou Cinq Mars;
em 1829 Mérimée aparece com um dos mais perfeitos romances
históricos da literatura francesa: Chronique du règne de Charles IX
e Balzac publica Les Chouans, na segunda versão; finalmente, em
1831, Vítor Hugo dota o Romantismo com Notre Dame de Paris.
Em 1827 enriquece Manzoni a literatura italiana com uma
das suas obras-primas: I Promessi Sposi.
2 Com muita agudeza crítica notou Lukacs no seu valioso
trabalho sobre o romance histórico: "Assim, o romance
histórico, que em Scott promanara do romance social inglês,
volta com Balzac à descrição da sociedade contemporânea,
donde se segue que a idade do romance histórico ficou
encerrada".
3 Garrett foi filintista e Castilho elmanista.
4 P. 5.
5 Memórias Biográficas, 1 ° vol., p. 350.
6 Obras Completas de Filinto Elísio ¯ Paris, 4.° vol., p. 29.
Estes quadros de Filinto Elísio, em verso e em prosa, constituem
um encantador repositório da vida popular portuguesa na 2 ª
metade do século XVIII e, como tal, valioso documento
86
etnológico do qual Teófilo Braga aproveitou muitas informações
para a sua obra O Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições.
7 Introdução ao 2.° vol do Romanceiro.
8 A 1.ª edição de Camões é de 1825 e a 2.ª de 1839; e 1.ª
edição de D. Branca é de 1826 e a 2.ª de 1846. Entre estas datas,
de cada um dos poemas houve duas ou três edições brasileiras.
9 Vol. III (1843), p. 302.
10 Consultar: A. Gonçalves Rodrigues, A novelística
estrangeira em versão portuguesa no período pré-romântico ¯ Coimbra
¯ Bibl. da Universidade, 1951.
11 O Desaprovador, n.º 1, p. 2.
12 O Desaprovador, nº 1, p. 8.
13 Obras Completas de L. A. Rebelo da Silva ¯ Estudos Críticos V
¯ Apreciações literárias, Vol. 2.º, p. 11.
14 Opúsculos, tomo IX, 3.ª est. p. 69.
15 Em 1835: O Talismã (The Talisman); 1836: A Desposada de
Lammermoor (The Bride of Lammermoor); 1837: Os Puritanos da
Escócia (Old Morality);O Oficial de Fortuna (The Legend of
Montrose); Ivanhoe, Os Desposados (The Betrothed), O Talisman
ou Ricardo na Palestina; 1838: O Misantropo, ou o Anão das Pedras
Negras (The Black Dwarf); A Prisão de Edimburgo (The Heart of
Midlothian), Ivanhoe, Quintino Durward em duas edições, uma
em tradução de Ramalho e Sousa e outra na de Caetano Lopes
de Moura. Artigos em jornais e revistas posso aqui apontar os
seguintes: "Arquivo Popular", vol. 1.° (1837), p. 349; "O
Cronista", vol. 2.° (1827), p. 87; "O Correio das Damas", vol. 1.°
(1836), p. 44-vol. 3.° (1838), p. 30; (1839), p. 127, vol. 4.° (1840),
p. 69; "Diário do Governo" n.º 91 (1835), artigo de Herculano;
"O Entre-Acto" ¯ vol. 1.º (1837), pp. 2 e 11; "O Mosaico", vol.
1.º (1839), p. 150; "O Panorama", vol. 2.º (1838), p. 303 e 353;
vol. 3.° (1839), p. 128, 225, 321, 384, 424; vol. 4.° (1840), pp. 47,
64, 80, 104; vol. 5.° (1841), p. 329; "Revista Literária do Porto",
vol. 5.°, p. 341; "Revista Teatral", vol. 1.º (1840), p. 2 e 6.
Limitámos estas referências bibliográficas até 1840 em
conformidade com o texto.
Sobre a introdução e divulgação da obra de Walter Scott em
Portugal veja-se o nosso trabalho ¯ Walter Scott ¯ Algumas notas
sobre a introdução da sua obra em Portugal, in "História" (Série A),
vol. 2.°, fasc. 1, Lisboa, 1935.
16 O Conimbricense, n.º 5781 (1903).
87
17 Castilho ¯ Obras Completas ¯ Vivos e Mortos ¯ 2.° vol., pp.
51 a 54.
1 8 "..dois extremos sobretudo se hão-de evitar: a mentira
absurda dos ornamentos velhos, e a dessaborosa e prosaica
verdade de certos acessórios, nomes próprios, e tecnologia, ainda
não consagrada pela posse do estilo nobre.
Deve-se dar a realidade, mas aperfeiçoada e ageitada,
cortando dela tudo quanto for vulgar e mesquinho, ou o parecer;
e não a acrescentando com massas sobrepostas, mas só onde
convier, e com muito tento, soprando-a (permita-se-nos a
expressão) por dentro para a avultar" ¯ Castilho ¯ Obras
Completas ¯ Vivos e Mortos, 6.º vol., p. 32.
19 Lettres sur l'Histoire de France.. etc., par Augustin Thierry
¯ 5 è m e ed. Paris ¯ Just Tessier, Libraire 1836, p. 62.
20 Obras Completas de L. A. Rebelo da Silva ¯ ob. cit., 1.º vol.,
p. 13.
21 Vivos e Mortos, 7.º vol., p. 9.
22 O Bobo só apareceu em volume, em Portugal, a seguir à
morte de Herculano. Em 1846, extractada da 1.ª versão
publicada no "Panorama", apareceu, no Rio de Janeiro, em
contrafacção.
23 Não temos conhecimento de ter sido feito até hoje, nem
sequer em teses universitárias, qualquer estudo das variantes das
crónicas-novelas de Herculano no seu trânsito das páginas de "O
Panorama" para as dos dois tomos de Lendas e Narrativas.
Afigura-se-me ser um estudo que se impõe.
24 Inventário do espólio literário de Garrett por Henrique de Campos
Ferreira Lima, Coimbra, 1948, p. 18.
25 Obra cit., 2.º vol., p. 326.
26 Bruno ¯ A Geração Nova, p. 19.
27 A acção do romance de Marreca decorre nos anos de 912
a 970.
28 Ódio velho não cansa ¯ dedicatória.
29 Obra cit. ¯ Introdução.
30 Id., ib.
31 Castilho ¯ Obras Completas ¯ Vivos e Mortos, 7.° vol., p. 88.
32 Memórias da Literatura Contemporânea, por A. P. Lopes de
Mendonça, Lisboa, 1855, p. 94.
33 Id. ib., p. 3.
34 Horas de Repouso, p. 63.
88
35 Prólogo da 1.ª edição de Mocidade de D. João V (Servimonos
da 5.ª ed., l.º vol., p. 8).
36 Id. ib.
37 Id., p. 7.
38 Id., p. 8.
39 Recollections of an excursion to the Monasteries of Alcobaça
and Batalha e os Sketches of Spain and Portugal.
40 Castilho e Camilo ¯ Correspondência trocada entre os
dois escritores, Coimbra, 1924 ¯ Carta de C. C. Branco para C.,
de 26 de Março de 1869, p. 198.
41 Idem, ib., p. 250.
4 2 Vejam-se as notas preliminares de Fernando Castelo
Branco às últimas edições de Luta de Gigantes, do Regicida e de
A Filha do Regicida, de O Olho de Vidro, de Cavar em Ruínas, de
O Judeu, etc..
43 Veja-se, por exemplo, a fala de Diogo César e o diálogo
Diogo César ¯ Frei Martinho.
44 "Remeto hoje a V. Ex.ª a Luta de Gigantes. É cousa
aborrecida. As senhoras do Porto têm dito deste romance pior
do que eu poderia dizer delas. É laudanum puro."
45 Luta de Gigantes, 3.ª ed., p. 215.
46 O Judeu, 4.ª ed., 2.º vol., p. 209. O processo de
António José da Silva só foi publicado em 1895 na
"Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro"
(tomo 58.º) por cópia oferecida pelo historiador
Varnhagen.
47 Variété II, p. 147.
48 Romantismo Inglês I ¯ Introdução ¯ "O Instituto",
vol. 58.° (1911), pp. 548-549.
49 Eckermann ¯ Conversations avec Goethe ¯ Aux
Éditions Henri Jonquières, Paris, 1930 ¯ tomo II, p.
379.
50 O Bobo ¯ 10.ª ed., pp. 13-14.

89
BIBLIOGRAFIA BREVE

RELATIVAMENTE AO ROMANCE HISTÓRICO
EM GERAL
H. Taine ¯ Histoire de la Littérature Anglaise, Paris,1873.
Tomo 4.º.
Louis Maigron ¯ Le Roman historique à l'époque romantique,
Paris, 1912.
Pierre Trahard ¯ Le Romantisme défini par "Le Globe" ¯
Les Presses Françaises, Paris, 1924.
Henri Brémond ¯ Pour le romantisme, Paris, 1924.
G. Lukacs ¯ Le Roman Historique ¯ Petite Bibliothéque
Payot, Paris, 1977.
Carlos Mesquita ¯ O Romantismo Inglês, I - Introdução ¯ O
"Instituto", vol. 58.° (1911).
Walter Allen ¯ O Romance Inglês ¯ Trad. portuguesa, Ed.
Ulisseia.
Paul Van Tieghem ¯ Le Romantisme dans la Littérature
Européenne.

RELATIVAMENTE AO ROMANCE HISTÓRICO EM
PORTUGAL
Obras Completas de L. A. Rebelo da Silva ¯ Estudos Críticos
- V ¯ Apreciações Literárias.
A. Herculano ¯ Opúsculos. Tomo IX.
A. F. Castilho ¯ Obras Completas ¯ Vivos e Mortos.
A. P. Lopes de Mendonça ¯ Memórias da Literatura
Contemporânea, Lisboa, 1855.
Castilho e Camilo ¯ Correspondência trocada entre os dois
escritores, Coimbra, 1924.
90
J. F. Silveira de Mota ¯ Horas de Repouso, Lisboa, 1881.
Bruno ¯ A Geração Nova ¯ Os Novelistas, Porto.
T. Braga ¯ História do Romantismo em Portugal, Lisboa, 1880.
¯ Garrett e o Romantismo, Porto, 1903.
¯ Garrett e os Dramas Românticos, Porto, 1905.
¯ As modernas ideias na literatura portuguesa, Porto, 1892, 2
vols.
Fidelino de Figueiredo ¯ História da Literatura Romântica
Portuguesa, Lisboa, 1913.
António José Saraiva ¯ Herculano e o Liberalismo em Portugal,
Lisboa, 1949.
Castelo Branco Chaves ¯ Walter Scott ¯ Algumas notas sobre a
introdução da sua obra em Portugal ¯ Revista "História", (Série
A), Lisboa, 1935.
A. Gonçalves Rodrigues ¯ A novelística estrangeira em versão
portuguesa no período pré-romântico, Coimbra, 1951.
Maria Leonor Calixto ¯ A literatura "Negra" ou "De Terror" em
Portugal nos século XVIII e XIX, Lisboa, 1956.
Fernando Castelo Branco ¯ Notas preliminares às últimas
edições de A Luta de Gigantes, de O Regicida, de A Filha do
Regicida, de O Olho de Vidro, de O Judeu, de Cavar em Ruínas
(obras de Camilo Castelo Branco), Parceria A. M. Pereira,
Lisboa.
João Gaspar Simões ¯ História do Romance Português, 3 vols.
Vitorino Nemésio ¯ História de um livro: "Eurico" ¯ ed. do
Centenário da 1.ª ed. de Eurico O Presbítero, Livraria
Bertrand, 1944.
¯ A Mocidade de Herculano, Lisboa, 1934, 2 vols.
¯ Relações Francesas do Romantismo Português, Coimbra, 1936.

Revistas e jornais

O Chronista", 1827.
"Archivo Popular", 1837.
"O Correio das Damas", 1836, 1838, 1839, 1840.
"Diário do Governo", 1835.
"O Entre-Acto", 1837.
"O Mosaico", 1839.
"O Panorama", 1838, 1839, 1840, 1841, etc.
"Revista Literária do Porto".
"Revista Teatral".
"O Conimbricense".

Fim
Biblioteca Breve

SÉRIE MÚSICA

MÚSICA TRADICIONAL PORTUGUESA Cantares do Baixo Alentejo

COMISSÃO CONSULTIVA

JACINTO DO PRADO COELHO
Prof. da Universidade de Lisboa

JOÃO DE FREITAS BRANCO
Historiador e crítico musical

JOSÉ-AUGUSTO FRANÇA
Prof. da Universidade Nova de Lisboa

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL
Escritor e Cientista

DIRECTOR DA PUBLICAÇÃO
ÁLVARO SALEMA

JOÃO RANITA DA NAZARÉ

Música tradicional portuguesa

Cantares do Baixo Alentejo

M.E.C.
SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA

Título

Música Tradicional Portuguesa

Biblioteca Breve / Volume 26

Instituto de Cultura Portuguesa
Secretaria de Estado da Cultura
Ministério da Educação e Cultura

(c) Instituto de Cultura Portuguesa

Direitos de tradução, reprodução e adaptação,
reservados para todos os países

1.ª edição - 1979

Composto e impresso
nas Oficinas Gráficas da Livraria Bertrand Venda Nova - Amadora - Portugal
Fevereiro de 1979

ÍNDICE

Prefácio 7

Introdução 9
Achegas etnográficas 18
Forma de execução e características 27
Análise estrutural e formal 48
Notas 73

Textos de referência 79

Bibliografia citada 97

A MEUS PAIS

PREFÁCIO

Por razões de vária ordem, nunca nos fora dada a oportunidade para apresentar, em língua portuguesa) o resultado das investigações que temos vindo a fazer, desde 1966, sobre um dos aspectos mais importantes - senão mesmo o mais importante
- da cultura musical tradicional portuguesa: os cantares do Baixo Alentejo.

A. elaboração do texto que informa o presente volume remonta, assim, a 1969-70, ano em que concluímos a tese de doutoramento que elaborámos no Instituto de Musicologia da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de Paris sobre o tema Un répertoire de musique populaire et son acculturation au XX siècle. Région centre-sud du Portugal.

Contudo, dada a vastidão do assunto, apenas poderemos tentar sistematizar, no âmbito da presente publicação, alguns dos aspectos mais relevantes do trabalho já realizado, aspectos que dizem respeito à análise do próprio material sonoro e que se

inscrevem no que consideramos o primeiro nível deste género de estudos: o da etnografia musical

Numa outra oportunidade daremos a conhecer as premissas sociológicas e, sobretudo, antropológicas de que essas investigações se revestiram. No momento presente estas encontram-se, aliás, numa fase de profunda reformulação mercê de uma reflexão mais cuidada sobre os diferentes géneros de documentos que fomos coligindo ao longo dos anos.

A. sua realização foi possível graças aos diversos subsídios e às sucessivas bolsas de estudo que nos foram atribuídas por duas instituições - Instituto de Alta Cultura e fundação Calouste Gulbenkian - às quais apresentamos os nossos agradecimentos. Reservamos para futuras publicações, a referência a algumas personalidades que se interessaram pelo bom termo do nosso trabalho e a quem estamos, de idêntica maneira, profundamente reconhecidos.

Por último, desejamos testemunhar todo o nosso apreço aos organizadores e membros dos grupos de cantadores que contactámos no Baixo Alentejo e nos auxiliaram na recolha da sua música. A simpatia e o entusiasmo que, por vezes, nos foram dispensados nas localidades em que nos detivemos, obrigam-nos a confirmar-lhes toda a nossa estima e a relembrar-lhes que, afinal, o trabalho que efectuámos conjuntamente não foi em vão e contribuiu mesmo, mercê da publicação deste estudo, para um melhor conhecimento e valorização da sua cultura.

Novembro de 1977

INTRODUÇÃO

De nada valeram os conselhos dos nossos mais ilustres homens de letras bem como de alguns estudiosos mais esclarecidos que, desde os finais do século passado, têm vindo a defender, entre nós, a necessidade de se proceder ao estudo sistemático da nossa cultura tradicional em todos os seus domínios e nos seus mais diversos aspectos, chamando, por vezes, a atenção dos nossos governantes para o interesse que haveria em dotar o país de instituições específicas que tivessem a seu cargo a investigação das diferentes facetas da realidade cultural portuguesa. Remontam ao século passado, por exemplo, as seguintes linhas de Teófilo Braga que parecem não ter envelhecido e, pelo contrário, se mostram absolutamente actuais, se se tiver em conta, do ponto de vista ideológico, a respectiva distância no tempo: "Vê-se como estes aspectos da vida são um documento científico para penetrar o génio dos povos. Hoje mais do que nunca, convêm a Portugal estes estudos; porque, na decadência que por toda a parte nos ameaça, a revivescência do génio nacional depende da vitalidade da sua tradição." 1

Tão pouco serviram as admoestações de investigadores estrangeiros que, vivendo algum tempo entre nós, acabaram por se interessar pelo estudo de alguns aspectos desta cultura: "Que Portugal não cometa o erro da Inglaterra. Nós, ingleses, só demasiado tarde acordamos para o valor e beleza da nossa herança folclórica nacional." 2 Passados os quarenta anos que nos separam da redacção destas linhas, poderíamos eventualmente esclarecer o seu autor de que o erro foi cometido - e até mesmo de uma maneira deliberada, a julgar pela pouca importância que os nossos governantes resolveram atribuir ao desenvolvimento dos terrenos de estudo que constituem essa herança. E o que se depreende de algumas comunicações apresentadas ao 1.° Congresso de Etnografia e Folclore de Braga, as quais nos oferecem certos dados sobre a sua situação em 1956. Assim, para Joaquim Roque, o país ainda se não viu dotado de "... quaisquer cursos ou cadeiras de Etnografia. Os programas de vários graus do ensino desconhecem tal matéria, pois nem sequer incluem as mais elementares noções deste importantíssimo ramo do saber humano, que nada justifica seja omitido nos chamados cursos médios ou superiores" 3; e, para Jaime Lopes Dias, os estudos têm "... neste século caminhado vagarosa e, sobretudo, dispersivamente sem uma organização própria, directiva e orientadora para imprimir unidade, e promover a recolha, o estudo, a divulgação e o aproveitamento da nossa riqueza etnográfica e folclórica" 4. Dez anos mais tarde, é uma investigadora francesa que nos traça um pequeno panorama da situação, acabando por afirmar que estes estudos, iniciados de uma maneira tão promissora por José Leite de Vasconcelos, ainda não

10

haviam ultrapassado a fase da etnografia, salvo em alguns casos excepcionais, dado que "a interpretação do material recolhido se encontra inteiramente por fazer" 5.

Deste modo, decorridas várias décadas, não é de estranhar que as negligências governamentais tivessem trazido ao país graves consequências. Por um lado, dificultaram (se é que não cercearam) a gerações sucessivas do nosso escol intelectual o conhecimento da reflexão sociológica e antropológica que os estudos a realizar se incumbiriam de fomentar e difundir, o que consideramos desastroso para o desempenho, com competência, de um certo número de profissões em diversos campos da vida pública do país. Em segundo lugar, contribuiram para a situação confusa (por falta de trabalhos de síntese?) com que entre nós se debatem, actualmente, a maior parte das disciplinas que constituem os diferentes campos das ciências sociais.

Envolvidos no mesmo processo, os estudos da nossa música tradicional não poderiam escapar à situação em que se encontram os estudos da totalidade gnoseológica de que fazem parte. Assim, também aqui o que até agora foi realizado entre nós não ultrapassou a fase da etnografia musical e, tal como nos outros domínios, também "a investigação sistemática de áreas e complexos culturais foi desprezada e a problemática dos contactos de cultura foi ignorada" 6, pela razão simples de que nesta área nem sequer houve uma investigação sistemática. O caminhar vagaroso, embora dispersivo, dos outros campos, não se verificou neste, porque não houve um caminhar: o que foi elaborado a este respeito, revestiu sempre no nosso país um carácter esporádico e inconsequente 7.

11

Deste modo, os pontos de vista, teorias, ideias e achegas de ordem diversa foram-se acumulando nas publicações que saíram, elaboradas por aqueles que se sentiram atraídos por este género de estudos mas que, infelizmente, só raramente possuíam o mínimo de formação específica para os estudos que se propunham realizar 8. Só assim se compreende, por exemplo, que a ~Re%eptionstheorie, exposta por M. Naumann em 1921, se tenha enraizado fortemente entre nós, e a teoria referente à explicação da origem da música tradicional pelo que diz respeito à evolução da música erudita ocidental tenha tido tão fácil aceitação 9. Para este facto parece, todavia, terem contribuído fundamentalmente as afirmações de Rodney Gallop - eram de tal maneira esporádicos estes estudos que, aqueles que se faziam, deixavam durante décadas a marca da reflexão, ainda que incorrecta, que os envolvia - que, a dado momento do estudo que elaborou, tentou esclarecer-nos sobre este assunto: "Presentemente, no entanto, inclinam-se os estudiosos cada vez mais para a teoria de que a arte popular se baseia no que os alemães chamam Gesunkenes Kulturgut^ isto é, na degradação, por assim dizer, de material aprendido. Conforme esta teoria o povo não cria: apenas reproduz. Plagia, assimila, adapta e muitas vezes deforma motivos e temas quase invariavelmente originários de esferas sociais mais elevadas. Assim, os bordados rústicos de toda a Europa resultam de simplificações dos desenhos complicados de tapetes orientais. As danças, jogos e outras diversões do povo são... relíquias de antigas cerimónias, de propósito absolutamente sério. As lendas populares portuguesas, bem como as do resto da Europa, não têm relação com os grandes acontecimentos históricos do país, antes

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derivam em segunda mão, do cabedal, comum a todo o mundo, de antigas fábulas e mitos. Seria possível apresentar, indefinidamente, exemplos desta natureza. Se isto se dá com a poesia e a música, as lendas populares e a decoração, quanto mais natural não será que assim aconteça com a invenção melódica, a mais difícil, talvez, de todas as formas de invenção artística. Em Portugal e noutros países, especialmente nas Vascongadas, encontrei frequentemente camponeses que podiam justificar os seus direitos como autores e improvisadores de versos. Basta pensar nas cantigas ao desafio, nos descantes que brotam de bocas portuguesas, do Minho ao Guadiana. Nunca, porém, encontrei um só camponês que pretendesse, sequer, haver inventado nova melodia" 10.

E claro que, quando este autor tentou a generalização sobre as formas da música tradicional portuguesa existentes no seu tempo, fê-lo à luz destes princípios e seguindo a mesma ordem de ideias, pelo que proferiu uma das muitas absurdidades que proliferam neste campo de estudos: "A minha impressão é que o folclore português assumiu a sua forma definitiva no século XVIII" n. Como se a música tradicional (ou qualquer aspecto da cultura em que esta se insere) pudesse apresentar, alguma vez, uma forma definitiva! Como se as formas culturais, quer as eruditas quer as tradicionais, não obedecessem a um devir constante - nas primeiras muito mais evidente do que nas segundas - que é a consequência da própria dinâmica social em que todas se encontram envolvidas!

Anos mais tarde, porém, podemos constatar que também Jorge Dias aceita os pontos de vista da Re^eptionstheorie, ao escrever as seguintes linhas: "Cremos

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que os problemas relativos à capacidade de delimitar o âmbito das músicas populares nem sempre têm sido bem postos. Nem o estado actual da nossa investigação permite fazê-lo com rigor científico. O povo canta aquilo que ouve cantar, quer a canção venha da Andaluzia, das Astúrias, do Minho ou de uma revista lisboeta. Apodera-se imediatamente do que chega de novo e reprodu-lo. Aí é que estão as constantes psicoculturais de qualquer população. com o tempo, o povo vai seleccionando e adaptando aquilo que lhe fala à alma, e abandona e esquece o que lhe é estranho, e só passageiramente aproveitou. A pouco e pouco as canções, vindas de fora, sofrem uma lenta transformação inconsciente, imposta por um certo ideal musical da terra. Quanto mais marcante for o carácter musical de um povo, mais rápido e nítido se opera o fenómeno selectivo e adaptativo. Nas populações com menor personalidade musical, tal processo é menos radical, ou quase que imperceptível." 12 Neste caso, a incorrecção provém da simplificação, ou da redução, que o autor faz de dois fenómenos de natureza diferente: o da criação musical propriamente dita e o da aculturação de uma determinada população, aculturação essa que, com efeito, pode revestir, do ponto de vista musical, os aspectos assim descritos.

Poderíamos, todavia, multiplicar os exemplos e as citações de autores que, entre nós, adoptaram a teoria atrás mencionada, com todas as consequências que, como vimos, a sua aceitação implica 13. Foi baseada nela, aliás, que algumas contribuições para o estudo da música tradicional do Baixo Alentejo têm vindo a ser apresentadas, dando assim lugar a um amontoado de "teses", sob diversas designações - litúrgica, arabista,

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etc. - mais ou menos fantasiosas, as quais, por sua vez, se encontram na origem das contradições que parecem ressaltar da leitura dos diferentes textos de referência que apresentamos no final deste trabalho 14.

Se é, pois, urgente um balanço crítico dos trabalhos já realizados no domínio da etnografia musical portuguesa, não é menos premente o início dos estudos sistemáticos sobre a recolha do que ainda resta deste aspecto do nosso espólio cultural.

Ontem como hoje, estas tarefas, no entanto, só serão possíveis com a criação de um Centro de Estudos (ou uma instituição análoga) que tome a seu cargo a docência e, sobretudo, a investigação das diversas facetas deste domínio. Ontem, como hoje, a oportunidade é dada, portanto, aos nossos governantes de mostrarem a sua competência e responsabilidade no aproveitamento e exploração da nossa riqueza etnográfica - tão válida e importante como qualquer outra para o desenvolvimento cultural e até mesmo económico 15 do país - e de evitarem (a fatalidade?) de termos que retranscrever, daqui a algumas décadas, as seguintes linhas de António Arroio que, muito embora escritas em 1913, não perderam muito da sua actualidade: "A colheita e colleccionação das cantigas populares - em que pese aos homens conspícuos, graves e consagrados do nosso país - constituem um problema da mais alta transcendência. (...) Envolvendo delicadíssimas questões de entoação, construcção melódica e rythmica e de harmonisação, elle exige em quem o escuta, além de completa educação musical e de especial cultura e preparação, um grande poder de observação e o emprego constante do mais subtil espírito crítico. Não devem pois admirar-se os illustres

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acima citados que, sendo nós notáveis pela ausência destas duas faculdades mentaes, de observação e de analyse, não tenhamos já colleccionado toda a musica do nosso folk-lore, e não o tenhamos feito de uma forma superior; nem tão pouco que alguns trabalhos já publicados e dignos de attenção, embora em limitadíssimo numero, houvessem passado quasi despercebidos no meio da pobreza e inferioridade da nossa producção litteraria." 16

Os oitenta especímenes de música vocal que fundamentaram este estudo foram recolhidos em oito localidades da região centro-sul do país: Aldeia Nova de S. Bento, Cuba, Ferreira do Alentejo, Pias, Santo Aleixo da Restauração, Serpa, Vidigueira e Vila Verde de Ficalho. Constituem, por conseguinte, uma parte das gravações realizadas numa dúzia de povoações do Baixo Alentejo.

O número de cantares que retivemos de cada localidade foi variável. O corpo de textos assim organizado não obedeceu a uma escolha prévia deste ou daquele espécimen: pensámos que o valor científico do presente estudo se deveria obter mercê deste critério. Por outro lado, a estabilidade dos fenómenos observados neste pequeno conjunto de cantares, autorizou-nos a considerá-lo representativo do restante repertório.

As gravações foram feitas nas mais diversas condições, dado que procurámos observar as diferentes funções que estes cantos desempenham ainda nos nossos dias. Gravámo-los na rua, nas tabernas, em jardins de casas particulares, nas dependências das Casas

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do Povo, nos clubes e nas associações das diversas localidades.

A colecção de 1966, gravada em 38 cms/s, faz parte dos arquivos do Departamento de Etnomusicologia do Museu das Artes e Tradições Populares de Paris e tomou a cota número 66.43.

Os espécimes recolhidos em 1967 foram arquivados no laboratório do Instituto de Musicologia da Faculdade de Letras da Universidade de Paris, sob a cota Mag. B.
201. A sua gravação está em 19 cms/s.

Na elaboração das transcrições adoptámos os sinais actualmente usados em etnomusicologia:

; : T T; (T); (#). Q primeiro traduz

um prolongamento da figura; o segundo um encurtamento; o terceiro e o quarto designam uma entoação alta em relação à altura normal; o quinto significa, finalmente, que aquando da repetição do espécimen, um sustenido aparece em substituição do som que se considera normal.

Efectuámos a transcrição de cada cantar respeitando, evidentemente, o seu texto literário.

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ACHEGAS ETNOGRÁFICAS

O repertório da música vocal de tradição oral do Baixo Alentejo é constituído por especímenes conhecidos habitualmente sob a designação de "modas". Estas canções, de características bastante particulares, são criadas e cultivadas, digamos mesmo "segregadas", pelas populações rurais da região do centro-sul de Portugal, região que podemos delimitar, a norte, pelas povoações de Reguengos, Monte de Trigo, Torrão e Grândola; a sul, por Mina de S. Domingos, Mértola, Almodôvar e Odemira; a oeste pelo mar; a leste pela fronteira espanhola compreendida entre Reguengos e Mina de S. Domingos 17.

Esta a delimitação que nos foi confirmada pelos habitantes das povoações que visitámos. Não obstante o carácter impreciso que comporta todo e qualquer traçado deste género de fronteiras, estamos persuadidos de que é esta a área geográfica do repertório de música vocal em questão.

Observamos, no entanto, que não existe uma coincidência absoluta entre a demarcação administrativa designada sob o nome de Baixo Alentejo e a região que

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nos interessa, o que tentamos precisar no mapa que junto apresentamos.

Contudo, quando se pretende citar este repertório, utiliza-se normalmente a designação administrativa de "cantos do Baixo Alentejo" e refere-s e, do ponto de vista geográfico, uma imensa planície entrecortada por alguns vales, pouco profundos, que apresenta, assim,

19

características "sui generis" em relação à morfologia geral do território português.

Estas características não escaparam, aliás, a Léon Poinsard, aquando da sua estada em Portugal em 1910. com efeito, este autor observa que "do ponto de vista social bem como do ponto de vista agrícola, o Alentejo constitui certamente uma das regiões mais curiosas da Europa" 18. Paul Descamps, que em 1935 também veio a Portugal é, a este respeito, um pouco mais preciso: "do ponto de vista social, todavia, o Alentejo constitui de facto uma região" 19.

Sendo a música o nosso terreno de estudo, nela encontramos determinadas características específicas no repertório desta região que se acham ausentes nos das regiões limítrofes. Tentemos portanto situar, ainda que sucintamente, este repertório de música de tradição oral na região atrás mencionada, no intuito de melhor o compreendermos.

Os geógrafos dividem habitualmente Portugal em duas regiões: uma montanhosa, a norte do rio Tejo e uma outra a sul, de características planas, onde se situa esta província que oferece aspectos mediterrânicos bastante acentuados. Poder-se-ia dizer que, se por um lado Portugal apresenta uma natureza mediterrânica, e por outro, uma localização atlântica 20, o Baixo Alentejo é, sem dúvida, uma das províncias portuguesas onde as influências mediterrânicas são mais evidentes. O seu clima é de secura excessiva e de calor bastante intenso durante a estação de verão. O provérbio no-lo diz: "O Alentejo não tem sombra senão a que lhe vem do céu". com raras chuvas e um verão muito longo, o clima é também um factor que sublinha as características mediterrânicas da região.

20

A própria divisão da propriedade evidencia particularidades inexistentes nas outras regiões do país: o latifúndio 21. Resultado das lutas da Reconquista, aquando da ocupação árabe, esta forma de propriedade do centro-sul de Portugal deve a sua origem às doações que foram feitas pelos reis portugueses aos companheiros de armas que participaram na luta contra os mouros. O Alentejo era nessa época muito pouco povoado, apesar da sua imensa superfície. Os reis concediam então terras não somente à nobreza mas também às ordens religiosas, das quais tinham recebido apoio durante a Reconquista. Assim, a origem do latifúndio explica-se não só pelos factos históricos expostos, como também pelas condições climatéricas, além da própria morfologia do terreno.

No que se refere à agricultura, devemos esclarecer que o cultivo dos cereais, mais especificamente do trigo, do milho, do centeio e da cevada, cobre, por vezes, enormes extensões. Por outro lado, as azinheiras, os sobreiros, as oliveiras e a criação de gado constituem os recursos primários do Baixo Alentejo. A agricultura apresenta, deste modo, características mediterrânicas, como já pudemos observar também nos diferentes aspectos geográficos da região, se considerarmos que estas características se manifestam pelo "... predomínio dos cereais, entre estes o trigo e o milho, a importância das culturas arbustivas e arbóreas, a extensão das áreas de regadio e a preponderância do gado miúdo" 22.

Damos, no entanto, a palavra a Léon Poinsard que, a este respeito, teve ocasião de fazer algumas interessantes observações: "No inverno, a chuva permite o crescimento, por toda a parte, de uma bela vegetação os bons terrenos são excepção. Todavia, durante o

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verão as precipitações tornam-se muito raras, a temperatura é frequentemente abrasadora e o termómetro sobe por vezes aos 50 graus. Então toda a vegetação desaparece, com excepção de a das árvores. Em breve, toda a região toma um aspecto desolador e o próprio gado é alimentado com substâncias secas: palha e sementes" 23. Mais adiante, este mesmo autor procura uma explicação para a forma de propriedade, tal como a encontramos ainda nos nossos dias: "Compreende-se que num meio tão sui géneris, não só a propriedade como também a cultura não podiam deixar de tomar uma fisionomia muito particular. A fertilidade muito fraca do solo e a aridez do clima tornavam quase impossível o povoamento espontâneo da região, razão por que durante muito tempo esteve quase deserta. Desde então, a propriedade de grande extensão devia lançar raízes nesta região pouco hospitaleira, onde se encontram domínios que se estendem por milhares de hectares" 24.

Diversos aspectos da vida das populações rurais da região apresentam, ainda hoje, algumas reminiscências das tradições de um passado longínquo: as romanas são as mais antigas, mas as árabes mostram ser as mais evidentes.

Segundo José Leite de Vasconcelos, a dominação romana teve lugar entre o século in a. C. e o século V d. C. Seguiram-se as invasões germânicas e a dominação dos povos nórdicos, até ao século VIII. No entanto, do ponto de vista do encontro destas civilizações, podemos dizer que estes povos foram geralmente assimilados à civilização lusitano-romana, a qual nunca se extinguiu completamente e permaneceu sempre como fundo das civilizações posteriores.

22

Os árabes ocuparam finalmente o território até ao século XIII, altura em que as conquistas portuguesas avançavam já pelo Alentejo. Contrariamente ao que se passou na região norte do país em que a dominação árabe se fez sentir muito ligeiramente, todo o sul suportou, durante quase cinco séculos, esta dominação. É, pois, absolutamente natural que se encontrem ainda presentemente vestígios da sua colonização, sendo no domínio da agricultura - principal fonte de riqueza da época - que esta influência foi mais durável. Assim, e segundo a opinião de Orlando Ribeiro, os árabes teriam reforçado "... o tom mediterrânico que os Romanos haviam começado a imprimir à agricultura" 25.

Aquando da reconquista cristã, todos os vestígios desta colonização se mantiveram, através das populações cristãs que se tinham submetido à dominação árabe da qual tinham beneficiado no referente a alguns métodos de trabalho. Os próprios mouros contribuiram, no período da dominação cristã, para a sobrevivência das influências na região centro-sul do país, acrescentando certas particularidades às dos romanos "... e acumulando, nesta parte do território, elementos de civilização de origem estranha" 26.

A propósito desta mesma acumulação, esclarecemos que um arqueólogo contemporâneo, baseando-se em recentes investigações referentes à época pré-romana, afirmou que "... o povo que durante a Idade do Bronze viveu no Sul de Portugal, possuía uma cultura própria. O enterramento em pequenas cistas, as armas que possuía, os estoques, as tampas sepulcrais insculturadas, a cerâmica que utilizava e a escrita de que se servia, são elementos válidos que atestam uma cultura avançada na época e diferente" 27.

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Segundo este mesmo autor, "são os próprios escritores clássicos que fazem notar o povo cúneo, localizado no Sul de Portugal, com características próprias. Embora os limites desse povo, a Norte, sejam imprecisos, dadas as diferentes interpretações a que os textos estão sujeitos, é facto assente que, no sul do país, os romanos vieram encontrar um povo diferente" 28.

Como vemos, a estrutura étnica e cultural das populações que habitam a região do centro-sul de Portugal tem vindo a modificar-se, evidentemente, ao longo dos séculos e o presente substracto cultural parece não ser mais do que uma condensação de vários elementos provenientes de diferentes etnias que viveram nesta região. No entanto, este substracto sofreu as consequências da transformação social e cultural que se vem operando em todos os países da Europa desde o fim do século passado. Esta transformação penetrou, no entanto, tardiamente na vida das populações rurais do Baixo Alentejo. Ela é o resultado da adesão, igualmente tardia, da sociedade portuguesa ao movimento geral que se observa no Mundo, tendente a um desenvolvimento socioeconómico das sociedades contemporâneas. Não só a forma de propriedade do Baixo Alentejo como também a existência de capitais explicam a opção dos grandes proprietários "... no fim do século passado, pela lavoura mecânica, com apreciável economia de tempo e de braços e aumento da produção da terra. As comunicações rápidas generalizaram o emprego da charrua metálica, de ferro reversível, fabricada entre nós, dos adubos químicos, da debulhadora mecânica, da prensa hidráulica para espremer uvas ou azeitonas..." 29.

Consequentemente, os trabalhos agrícolas realizados por grupos de homens e mulheres desapareceram quase

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completamente com a mecanização da agricultura. Deixou mesmo de se observar a vinda de grupos de trabalhadores das províncias limítrofes, aquando da recolha dos cereais, se bem que estes movimentos migratórios periódicos estejam ainda na recordação das populações da região. Mantém-se unicamente a "apanha dos grãos", realizada geralmente de madrugada por mulheres - os salários neste trabalho são demasiado baixos para homens - e o "varejo", para o qual a técnica ainda não encontrou uma solução adequada.

com a industrialização da agricultura (tractores, debulhadoras, moagens e lagares) a economia arcaica do Baixo Alentejo atravessa, de há muito, uma fase de profunda transformação. E, no entanto, podemos dizer que era esta economia tradicional que, tornando possível a comunhão de homens e de mulheres na luta pela obtenção dos produtos da terra, presidia à criação e à perpetuidade de um dos aspectos mais relevantes do repertório da música vocal de tradição oral da região: os cantares de trabalho. Aliás, o fundo do repertório musical desta região é constituído essencialmente por música vocal, dado que a música instrumental ocupa um lugar de pouca importância em relação à quantidade e à riqueza dos especímenes que aquela apresenta.

Já tivemos ocasião de indicar que estes cantares são designados por "modas". Segundo Manuel Joaquim Delgado esta denominação provém do facto destas canções se divulgarem de boca em boca, entre a população rural da região, caindo assim na moda 30.

Tudo leva a crer que, no começo do nosso século, este repertório era exclusivamente cantado por trabalhadores agrícolas. A "moda" era assim propriedade espiritual de toda a população rural: homens, mulheres e

25

crianças a conheciam e a cantavam, como ainda hoje algumas vezes acontece. Em 1902 ainda se conservava este hábito, segundo Manuel Dias Nunes, pois que os "descantes" eram "... por assim dizer, quase exclusivos dos trabalhadores rurais. Essa pobre e sofredora gente, que leva a vida inteira a moirejar, disseminada por montes e vales, à chuva, ao sol, ao frio, encontra no canto coral como que um doce lenitivo à rudeza do labor que a subjuga desde o berço até à sepultura. E assim, quando os seus ócios lho permitem, ei-los agrupados, os rijos operários do campo, e a percorrerem mansamente as ruas da povoação em estrídulo cantar"

31

Desde então, a transformação social e cultural observada na vida destas populações impede-nos de afirmar que estes cantares sejam unicamente pertença dos trabalhadores agrícolas, dado que estes participam de uma promoção social à medida que se assiste à urbanização crescente dos centros rurais. Por vezes são os próprios serviços públicos que se encontram na base desta promoção. Nos nossos dias existem empregados camarários, maquinistas, tractoristas, carteiros, etc., que foram trabalhadores rurais num passado próximo. Nos arredores de Lisboa encontramo-los entregues às tarefas mais diversas 32. E, no entanto, mesmo longe das suas terras, ainda se reúnem ao entardecer ou à noite, para cantarem em grupo as "modas" da sua região.

E evidente que esta transformação social implica uma transformação cultural que incide sobre os diversos aspectos da vida das populações locais e, especialmente, sobre o seu repertório de música tradicional, como iremos ver.

26

FORMA DE EXECUÇÃO E CARACTERÍSTICAS

As "modas" são cantadas por grupos de trabalhadores agrícolas, sem qualquer género de acompanhamento instrumental. A formação destes grupos não obedece, em princípio, a qualquer critério, dependendo apenas do número de pessoas que participam numa determinada cerimónia. Desta forma, os grupos podem ser constituídos por vozes só masculinas ou só femininas ou, em certas ocasiões, por ambas.

Assim sucedia ainda no começo do nosso século. MicheFAngelo Lambertini descreveu, nessa altura, a execução dos cantares do Baixo Alentejo da seguinte maneira: "Vozes de mulheres expõem a primeira metade da melodia a qual será completada pela união de todas as vozes cantando em terceiras e em oitavas; seguidamente, na segunda estrofe, as mulheres retomam sozinhas a melodia; finalmente, cantando em terceiras e oitavas, por vezes em sextas, o coro repete a peça a partir do princípio" 33.

Embora imprecisa, esta descrição é, contudo, suficiente para nos esclarecer sobre o problema da

27

constituição dos grupos e da execução dos cantos nessa época.

Entregue aos trabalhos agrícolas em que se encontrava só, o trabalhador não podia cantar, evidentemente, senão em homofonia. No entanto, assim que encontrava um companheiro de trabalho, imediatamente se ouvia uma polifonia em terceiras paralelas alternando com esta homofonia. No caso destes trabalhos necessitarem da presença de todo um grupo de trabalhadores, um de entre eles sustentava sozinho a voz superior desta polifonia em terceiras e todos os restantes cantavam a voz inferior em uníssono. Tratava-se, portanto, de uma espécie de diafonia, no sentido etimológico desta palavra.

Nos nossos dias, porém, a perda da função destes cantares nas cerimónias ligadas ao trabalho 34, bem como a institucionalização de grupos de cantadores em inúmeras aldeias e vilas da região encontram-se na origem de uma forma diferente de execução: os cantadores que apresentam as melhores disposições vocais são escolhidos para "solistas" dos grupos, isto é, para cantarem as partes "solo". Em número de dois, três ou quatro, por grupo, tomam a designação de "pontos" e "altos". Os restantes membros do grupo cantam em uníssono e a sua parte é conhecida por "segundas". Quando as mulheres tomam parte nestas execuções, o que é bastante raro nos nossos dias, cantam todas em uníssono, à oitava superior dos homens, sem nunca duplicarem as vozes do "ponto" e do "alto".

As "modas" principiam com a voz do "ponto" que canta a primeira quadra, como no caso do espécimen "Ceifeira linda ceifeira" 35 (Fig. 1).

28

O cantador vai procurar pôr em evidência, neste momento, toda a sua habilidade técnica e, baseado numa estrutura melódica pré-concebida, terá a preocupação de variar os contornos melódicos do espécimen em execução. Esta variação dá assim lugar a uma ornamentação mais ou menos perceptível. A linha melódica de base não perde, no entanto, o seu carácter e torna-se mesmo mais rica e ritmicamente mais diversificada. Encontramo-nos, desta maneira,

Fig. 1

em presença de uma virtuosidade claramente pretendida pelos "pontos", cuja reputação depende fundamentalmente da originalidade e do requinte da sua vocalização. Este fenómeno provoca, aliás, uma competição entre estes cantadores, alguns dos quais chegando a ter uma certa fama na localidade que habitam ou mesmo em toda uma região.

29

Logo que o "ponto" acaba a sua intervenção, o "alto" retoma a mesma estrutura melódica cantando-a à terceira superior e procurando igualmente uma variação para o seu contorno:

Fig. 2

O primeiro verso da segunda quadra é, desta maneira, executado em "solo". No entanto, no começo do segundo verso, as "segundas", retomando a estrutura melódica cantada anteriormente pelo "ponto", juntam-se ao "alto" (Fig. 3).

Eis-nos assim em presença de uma polifonia em terceiras paralelas. Na terceira e quarta quadras o "alto" canta o primeiro verso da terceira quadra e as "segundas" reúnem-se-lhe no princípio do segundo verso; chegados à quarta quadra, o "alto" e as "segundas" continuam a cantar em conjunto, mantendo sempre a mesma estrutura intervalar. Algumas vezes poder-se-á observar que, em certos apoios rítmicos, uma quinta aparece momentaneamente em substituição da terceira, como no exemplo precedente. Outras vezes, depois de ter cantado a terceira, o "ponto" faz ouvir uma quinta, por antecipação da terceira posterior.

30


Fig. 3

No entanto, este fenómeno, bem como o das terceiras substituídas por quartas ou quintas, é bastante raro.

31

Como ilustração podemos apresentar a "moda" "Já lá vão em alto mar":36

Fig. 4

Esta a concepção geral a que, "grosso modo", obedecem os cantares de carácter profano 37.

A entrada das vozes, por sua vez, pode ser feita de várias maneiras: o "alto" poderá cantar somente metade

32

de um verso, antes da entrada das "segundas"; estas e o "alto" poderão começar a execução conjuntamente, quando este último não improvise; o "alto" poderá cantar em "solo" o primeiro verso da quarta quadra ou, improvisando uma nova melodia, poderá não repetir a estrutura melódica dada pelo "ponto"; enfim, as "segundas" poderão cantar uma nova melodia sem nenhuma relação com a do "ponto" ainda que, em princípio, tivessem que a repetir.

Do ponto de vista estético, determinadas observações poderão ser feitas, por vezes, por qualquer membro do grupo o qual chega a exigir do "ponto", e mesmo de todos os restantes membros, uma forma diferente de execução, ouvindo-se então facilmente uma das seguintes expressões: "Pica mais a "moda"!"; "Está puxada!"; "Está ciumenta!"; "Não lhe deixem tanto o rabo!"; "Está alta!"; "Está baixa!", etc.

Por outro lado, antes do início da execução, os cantadores escolhem entre si, e sem que, portanto, lhes seja imposta por alguém estranho ao grupo, a primeira quadra da "moda" a executar.

Afora, como vimos, o seu cunho polifónico, uma outra característica destes cantares, que cremos dever também assinalar, refere-se à qualidade da sua execução. E ainda MicheFAngelo Lambertini que observa, a este respeito, que "os cantares do Alentejo têm sobretudo uma grande beleza e caracterizam-se pela boa execução de grupo" 38. Pessoalmente, parece-nos que a entrada quase sempre enérgica do coro é um dos factores que contribuem para a "grande beleza" referida por este autor.

No seio do repertório musical constituído pelas "modas", vários estilos se foram formando, ao longo

33

dos tempos. Podemos até afirmar que cada localidade apresenta características estilísticas próprias, as quais se traduzem, por exemplo, pelo prolongamento da última sílaba de cada verso ou pela sua eliminação, como no espécimen intitulado "Meu lírio roxo" que recolhemos em Setembro de 1966 em Ferreira do Alentejo:39

Fig. 5

Por outro lado, cada verso poderá ser introduzido pela interjeição "ai!" ou pela conjunção "e".

Sublinhamos ainda, acerca da interpretação e das características estilísticas das "modas", que as próprias populações desta região estabelecem uma diferença entre o repertório da "Margem direita" e o da "Margem

esquerda

Segundo os cantadores, cada margem

34

apresenta características "sui generis", pelo que encontramos um repertório mais numeroso, mais ornamentado, mais nostálgico e mais triste na margem esquerda do que na margem oposta, em que as "modas" tomam uma expressão graciosa e ligeira. No entanto, a este respeito nada nos autoriza a generalizar actualmente com uma tal simplicidade porque, se bem que haja uma diferença perceptível entre cada margem - cada uma considerada globalmente - é contudo necessário ter-se em conta o caso individual de cada povoação. Parecenos que as características de estilo destes cantares dependem, em última análise, do grau de aculturação que as populações destas localidades têm vindo a atravessar, sobretudo desde o início do nosso século, e que não é idêntico em todas as povoações da região.

Estas canções apresentam geralmente contornos melódicos bastante simples: as frases, constituídas normalmente por dois, três ou quatro compassos, permanecem abertas e o ponto de apoio, provisório, da chegada melódica - muitas vezes constituído por valores longos - impele a melodia para a frase seguinte. A "moda" "Senhora Santa Luzia" revela-nos esta simplicidade 41 (Fig. 6).

A nota final de cada frase apoia-se em graus que, segundo as nossas concepções harmónicas, são considerados fracos. Estas frases agrupam-se em períodos, compostos geralmente por oito, dez, doze ou dezasseis compassos.

35


Fig. 6

No entanto, também pudemos constatar períodos formados por onze e catorze compassos, que advêm da irregularidade dos apoios rítmicos verificados ao longo da melodia. Num pequeno número de cantares esta irregularidade levou-nos, aliás, a transcrevê-los em ritmo livre, dado que a barra de compasso não tinha razão de existir, como na "moda" intitulada "Varejo", recolhida em Aldeia Nova de S. Bento em 1966: 42

36

Fig. 7

Em vários casos introduzimos a barra de compasso no momento em que o espécimen abandonava, no seu desenrolar, esta liberdade rítmica.

Os compassos a dois, três e quatro tempos são os mais vulgares e os de cinco não são mais do que a consequência da irregularidade dos apoios rítmicos já referidos. Em muitos casos são as pausas ou as suspensões que, por serem demasiado longas, contribuem para esta irregularidade.

O tempo da maior parte das peças obrigou-nos a adoptar a semínima como o valor rítmico mais conveniente à transcrição de todos os especímenes deste repertório. No entanto, deparámos com alguns casos excepcionais, caracterizados por um tempo ou mais

37

rápido ou mais lento, que acabaram por nos obrigar a escolher outras unidades rítmicas, como aconteceu com a moda "Aurora tem um menino", gravada em Agosto de 1966 numa taberna de Serpa: 43

Fig. 8

A melodia é construída nestes cantares sobre uma base diatónica, notando-se a exclusão absoluta do sistema cromático. No entanto, podem-se apreender inflexões vocais por vezes inferiores ao meio tom, produzidas pela introdução de um ou vários graus intermédios de intervalos de segunda. Este fenómeno constitui um género de trémolo da voz sobre um

38

determinado som. Os intervalos assim vocalizados revelam-se pouco precisos e dependem muito da técnica vocal de cada cantador, que tem como hábito prolongar um grau da melodia por meio de uma oscilação de fraca amplitude antes de deixar cair a sua voz sobre o grau vizinho. Enfim, encontrámo-nos em presença de um "vibrato", cuja função mais plausível é a de "colorir" o sistema diatónico que estrutura a melodia. Se este fenómeno se verifica entre sons distanciados apenas de um tom - o que geralmente acontece em virtude do carácter da melodia - achámo-nos em presença de um simples cromatismo, dificilmente perceptível. Se se intercala entre graus mais distanciados, ouve-se então uma emissão vocal que se situa entre o "glissando" e o portamento, como no caso do espécimen "Já morreu quem me lavava" 44 (Fig. 9).

Estes sons ou grupos de sons assim emitidos têm uma importância muito real na estética musical deste repertório, dado que os micro-intervalos estranhos ao diatonismo parecem deter uma função expressiva.

Por conseguinte, estes cantares são particularmente ornamentados. No entanto, também encontrámos um certo número de especímenes nos quais esta ornamentação têm tendência a desaparecer.

Observámos, por outro lado, a existência de um pequeno número de "modas" de características essencialmente melismáticas, a par de um grande número de cantares de carácter silábico, isto é, nos quais cada sílaba corresponde a um único som. Como

39

Fig. 9

exemplo das primeiras, podemos referir a moda "Muito bem parece" que recolhemos em Cuba, no mês de Setembro de 1967: 45

40

Fig. 10

"Ao romper da bela aurora" é o título do espécimen que, cremos, representativo dos segundos 46 (Fig. 11).

Fazemos notar que em todos estes cantares o âmbito da voz é bastante limitado. com efeito, encontrámos especímenes construídos somente dentro da quinta diminuta e o âmbito mais lato não ultrapassou a décima menor. Por sua vez, os desenhos melódicos, muito simples, bastante ritmados e constituídos por semínimas (ou figuras vizinhas), apresentam-se em forma de fragmentos de escala. A moda "Toda a bela noite",

41

Fig. 11

recolhida na Vidigueira em Agosto de 1966, parece-nos ilustrar perfeitamente estas afirmações 47 (Fig. 12).

A linha melódica não emprega intervalos aumentados ou diminutos e utiliza, na maioria das vezes, séries mais ou menos longas de graus conjuntos, entrecortados por intervalos de quarta, quinta ou sexta, ascendentes ou descendentes. Os primeiros são muito mais utilizados que os últimos. Estes saltos produzem um efeito surpreendente quando seguidos de um regresso imediato ao grau que serve de ponto de partida, ou a um dos seus graus conjuntos.

42

Fig. 12

A maior parte destes cantares de carácter profano foram executados num movimento "andante". O som mais grave foi Dó2; em casos excepcionais pudemos ouvir o Sil. O som mais agudo foi Ré3. O Mi3 foi raro.

Os especímenes de carácter religioso apresentam estes mesmos traços gerais, assim descritos, mas com algumas variantes. A simplicidade dos contornos

43

melódicos é, na verdade, idêntica. No entanto, em relação ao conjunto de peças em estudo, é este o repertório que oferece um maior número de cantares de que a transcrição foi feita em ritmo livre ou meio livre. Neste caso introduzimos algumas barras de compasso, a fim de tornar mais fácil a leitura e a compreensão de cada espécimen, como na moda "O Menino Jesus" que, como a precedente, também foi recolhida na Vidigueira, em Setembro de 1967: 48

Fig. 13

Neste repertório, a substituição da terceira pela quinta, em determinados apoios rítmicos, foi observada num único canto. Por outro lado, não nos foi dado ouvir intervalos de quarta ocupando momentaneamente o lugar da terceira. Pudemos, no entanto, constatar que as inflexões vocais que observámos no repertório profano são aqui mais evidentes, visto estes especímenes se apresentarem, sem sombra de dúvida, mais ornamentados. O cantar que parece melhor ilustrar estas

44

afirmações foi o recolhido em Santo Aleixo da Restauração, em Agosto de 1967: 49

Fig. 14

Podemos, entretanto, observar que no presente espécimen uma única sílaba suporta várias notas e, com

45

uma só excepção, todas as peças deste repertório apresentam um carácter vincadamente melismático.

Por outro lado, a interrupção de graus conjuntos pelo intervalo de quarta descendente ou ascendente, seguida do seu regresso ao grau que serve de ponto de partida, constitui um fenómeno muito mais observável nestes cantares do que nos profanos.

Fig. 15

O âmbito da voz é ainda mais limitado nos especímenes religiosos porque não só pudemos verificar um canto construído unicamente no espaço de uma quinta diminuta, exemplo seguinte 50, como também o

46

âmbito máximo observado nestes cantares não ultrapassou a oitava diminuta.

Uma outra constatação que consideramos importante refere-se ao tempo: estas peças são executadas mais lentamente do que as do repertório profano (Fig. 15). A tessitura é, no entanto, a mesma que a destes últimos.

Enfim, todas estas particularidades confirmam, de certa maneira, a asserção de MicheFAngelo Lambertini, quando considera que estes cantares contêm algo "... de litúrgico e de imponente..." 51.

47

ANÁLISE ESTRUTURAL E FORMAL


Na base da organização dos oitenta especímenes que informam este estudo encontramos duas sedimentações: uma de estrutura modal e outra de estrutura tonal.

Abordemos primeiramente os cantares de carácter profano. Ao analisarmos este repertório, verificámos que se impunha a classificação destes cantares em quatro grupos:

a) de estrutura modal;

b) de estrutura tonal, em que nenhum fenómeno vem contrariar a organização desta estrutura;

c) de estrutura tonal, na qual determinados graus da escala oferecem uma entoação bastante alta (cerca de um quarto de tom) em relação à sua altura normal;

d) de estrutura tonal, à qual se encontram justapostas determinadas escalas modais.

Os cantares do grupo "a") foram executados unicamente no modo de sol. Apenas pudemos detectar três especímenes. A moda "Serpa do Alentejo" que recolhemos nesta vila, em Agosto de 1966, parece-nos representativa deste grupo: 52

48

Fig. 16

Nos três cantares, considerámos como tónica a nota final, o que permite afirmar que este espécimen se encontra em si. Os restantes estão em mi e em dó. Por outro lado, fazemos notar que a chegada a esta nota final se obtém, nestes cantos, sempre por uma descida melódica de graus conjuntos, a partir do terceiro ou do quarto grau da escala (III-I; IV-I). Esta descida parece ter, por conseguinte, uma função cadencial, como se pode depreender, mais claramente, da observação do espécimen em mi, a moda "O Virgem Senhora d'Aires", recolhida em Cuba, em Setembro de 1967: 53

49

Fig. 17

Resta-nos pôr em relevo um fenómeno que se encontra relacionado com algumas observações que faremos acerca dos outros grupos de cantares: no modo de sol, a terceira superior à tónica é maior.

Os três espécimens foram executados sob três formas diferentes: (AA'x A'x A'x AA'x A'x A'); (ABA'B x ABA'B); (AA'x AA'x A).

Todos os cantares do grupo "£)" se encontram em maior, não havendo uma só excepção a esta característica. Em relação ao diapasão, as tonalidades de mi, fá e ré são as mais frequentes; a de mi é, no entanto,

50

a mais utilizada. O espécimen intitulado "Não quero que vás à monda", proveniente de Serpa, representa este grupo: 54

Fig. 18

As cadências realizam-se nestes cantos por meio de certas fórmulas finais que consistem na descida melódica, por graus conjuntos, do quinto, quarto ou terceiro grau sobre a tónica (V-I; IV-I; III-I). No entanto, excepcionalmente, esta fórmula também se pode verificar entre o sexto grau e o primeiro (VI-I).

Observámos, por outro lado, a ausência da nota sensível na fórmula cadencial. Houve, no entanto, uma

51

excepção e, mesmo nesta, a resolução não se faz directamente sobre a tónica visto ter passado momentaneamente pelo segundo grau. A sua função é ainda menos relevante pelo simples facto de não existirem modulações nestes cantares. Num grande número de especímenes, ela nem sequer é um grau constitutivo da organização estrutural.

As frases melódicas constróem-se, regra geral, segundo uma oscilação da tónica à dominante e são cindidas por suspensões em certos graus, inúmeras vezes no quinto, no quarto ou no terceiro.

A maior parte destes cantares oferece, como nota inicial, o terceiro grau, algumas vezes a tónica ou a dominante e, excepcionalmente, um dos restantes graus.

Todos os especímenes apresentam a tónica como nota final.

A forma mais vulgar nestas "modas" é a que utiliza o esquema (AÃ'x A'x A'); no entanto, também se encontra a forma (AB x AB). Observámos, porém, formas muito mais longas, como por exemplo, (AA'x A'x A'x AA'x A x A') ou (AB x AB x AB'x AB'), bem como uma forma muito complexa: (ABA'x BA'B x ABA'x BA'B).

As peças do grupo "^)" apresentam as mesmas características que as classificadas em "b)". No entanto, nas primeiras, em número de cinco, o quarto grau da escala foi, por vezes, cantado demasiado alto, em relação à sua altura normal. Assinalámos, então, este fenómeno, por meio de setas, como no exemplo seguinte, a moda "Vai remando" que, como a precedente, também foi recolhida em Serpa em 1966, tendo sido no entanto executada por Francisco Maria Pais, José Lopes Gato e um coro de dezasseis vozes masculinas:

52

Fig. 19

Estes especímenes foram cantados nas tonalidades de mi, ré e sol. Quatro utilizaram o esquema (AÃ'x A'x A'); o outro apresentou, porém, o seguinte: (AA'x A'x A'xAA'xA'xA').

Em todos os cantos do grupo "d)" a terceira superior à tónica é maior. Se nos quisermos referir a um tipo de estrutura modal nestas "modas", somos obrigados a limitar-nos aos modos de fá e de sol, os únicos em que a terceira superior à tónica é maior:

53

Fig. 20

Relembremos, então, as características intervalares que distinguem estes dois modos do tradicional modo maior.

Em relação a este, o modo de fá apresenta o quarto grau um meio tom mais alto, e o modo de sol o sétimo grau um meio tom mais baixo:

Fig, 21

Sendo assim, podemos então dividir este quarto grupo em dois subgrupos:

54

Primeiro subgrupo: o quarto grau aparece ou como um simples quarto grau do modo maior, ou como um possível quarto grau do modo de fá.

Esta alteração do quarto grau poderia, em princípio, ser interpretada como um percurso, do ponto de vista de modulação, para a dominante. No entanto, o desenho melódico põe bastantes vezes em evidência o carácter modal do si que se comporta como um simples quarto grau do modo de fá. Retomemos a moda "Ceifeira, linda ceifeira" como exemplo, recolhida desta vez na Vidigueira, em Agosto de 1966 55 (Fig. 22).

Segundo subgrupo: é o sétimo grau que varia, apresentando-se ou como sensível ou como sobretónica, isto é, a um tom da tónica.

Esta alteração poderia ser interpretada, do mesmo modo, como o indício de uma modulação para o quarto grau. No entanto, o sétimo grau parece continuar a manter, na maioria das vezes, a sua função na tonalidade, apesar da alteração em que incorre, alteração em que se não verifica uma intenção de modulação, como podemos observar na moda "Onde vais ó camponesa", proveniente de Aldeia Nova de S. Bento 56 (Fig. 23).

Se prosseguirmos o género de análise proposto pela harmonia tonal, constatamos então que, neste quarto grupo se estabelece uma ambiguidade pelo facto de os graus dos modos de fá e de sol - os únicos, como

55

Fig. 22

vimos, que diferem em relação ao modo maior poderem oferecer também eles uma função de modulação, em relação à dominante e à subdominante.

Este aspecto de modulação é, com efeito, posto em evidência pela importância dada ao quinto e ao quarto graus, respectivamente nos cantares do primeiro e do segundo subgrupo.

Por outro lado, a alteração destes graus toma relevância pela maneira como estes, de características "móveis", se apresentam diferentemente no decurso da execução de um mesmo cantar.

56

Fig. 23

Sendo assim, poderemos então facilmente admitir que uma organização tonal, maior, se veio inserir numa estrutura modal pré-existente provocando, nesse momento, uma ambuiguidade estrutural.

No entanto, devemos esclarecer que, nas peças construídas desta maneira, as duas vozes que constituem a polifonia confirmam, sem dúvida alguma, a unidade tonal, através do emprego de fórmulas características que lhe são próprias. Digamos que na indecisão tonal e modal que se estabelece no interior de um mesmo cantar, é a primeira que se torna predominante, até porque a fórmula da cadência final conduz as duas

57

vozes, ou partes, de uma maneira definitiva, a esta unidade.

Além disso, como poderemos constatar no exemplo seguinte, a voz que cria esta indecisão é unicamente a do "alto" - designação, relembramos, da voz superior cantada em "solo" por um cantador - porque o conjunto das outras vozes, cantadas em coro e em uníssono, apresenta sempre uma estrutura vincadamente tonal. Notámos, no entanto, duas excepções a esta particularidade.

Enfim, se uma concepção melódica preside à organização destas peças, situa-se ela no plano meramente individual, ao nível de cada cantador, aquando da execução em "solo", e nunca no momento em que aquele se integra no coro. Assim acontece no espécimen intitulado "Martim Moniz" que foi recolhido, como o precedente, no mês de Agosto de 1966 em Aldeia Nova de S. Bento 57 (Fig. 24).

Os cantares do primeiro subgrupo estão, em relação ao diapasão, nas tonalidades de fá, ré ou mi. Os do segundo subgrupo foram cantados em ré, alguns em mi e um em fá.

No que se refere às formas cadenciais, pode-se constatar, "grosso modo", em todas as peças que constituem o grupo "d)", as mesmas generalidades descritas nas da categoria "b)". No entanto, não encontrámos nenhuma excepção no que se refere à realização da fórmula final, isto é, à descida do terceiro para o primeiro grau por meio de sons conjuntos.

58

Fig. 24

Por outro lado, o ritmo é mais complexo em alguns destes especímenes dos que os classificados na categoria "b)" e é utilizado com fins que visam alcançar uma maior expressão.

No contorno das linhas melódicas, podemos constatar, geralmente, a mesma oscilação da dominante à tónica. No entanto, alguns cantares do primeiro subgrupo apresentam um balancear precisamente contrário a este, quer dizer, da tónica à dominante (I-V). Este último grau aparece, aliás, como nota final.

59

O esquema (AA'x A'x A') é a forma utilizada neste grupo de peças, com algumas excepções, tais como: (AB x AB) ou (AA'x A x A'x AA'x A'x A').

Se fizermos esta mesma análise estrutural e formal nos cantares de carácter religioso, poderemos adoptar também esta divisão em quatro grupos. No entanto, um só espécimen, de entre os dez transcritos, poderá ser considerado de estrutura modal, apesar da entoação do sétimo grau que não aparece perfeitamente estável em certas passagens: "Os Reis" de Cuba 58:

Da mesma maneira que nos cantares profanos, consideramos a nota final deste espécimen como a tónica. Sendo assim, encontra-se no modo de sol, tom de mi.

60

Devemos chamar a atenção, nesta peça, para a descida cadencial por graus conjuntos que se estabelece, neste caso, entre o sexto grau e a nota final (VI-I).

A forma é a do tipo (AB x AB).

No grupo "b)", as tonalidades de mi e lá são as mais frequentemente utilizadas.

A maior parte destes especímenes apresentam o terceiro grau como nota inicial e alguns oferecem-no também como nota final.

Poderemos observar estas particularidades no cantar "Os Reis", oriundo de Vila Verde de Ficalho, onde o recolhemos em Agosto de 1966 59:

Fig. 26

A forma mais generalizada é a (AÃ'x AÃ'); no entanto, também encontrámos os esquemas (AB x AB)

e(AA'xA'x5).

61

Detectámos um único cantar susceptível de ser classificado em "c)", "O Menino Jesus", de Aldeia Nova de S. Bento, que propomos voltar a examinar. Notemos a entoação alta do quarto grau:

Fig. 27

A tonalidade é a de mi maior e o esquema formal obedece ao recorte (AA'x AÃ').

Neste repertório não encontrámos cantares que pudessem ser integrados no primeiro subgrupo do grupo "d)" quer dizer, nos quais o quarto grau da escala criasse qualquer ambiguidade estrutural.

No segundo subgrupo foi possível constatarmos a mesma ambiguidade do sétimo grau, o que ocasiona as consequências que assinalámos aquando da análise dos cantares profanos.

62

Fig. 28

As "modas" deste subgrupo foram todas cantadas na tonalidade de ré. A fórmula final apresentou igualmente aqui um desenho descendente; no entanto, a sua realização processou-se também pela subida da sensível à tónica, após uma breve passagem pelo segundo e, até mesmo, pelo terceiro graus, como aconteceu com a moda "O Menino Jesus", de Vila Verde de Ficalho,

63

recolhida nesta povoação em Agosto de 1966 60 (Fig.
28).

Pudemos observar, geralmente, nestes cantares, um balancear da linha melódica entre a subdominante e a tónica (I-IV-I).

Apresentaram todos o primeiro grau como nota final, e as formas da sua execução obedeceram aos seguintes recortes: (AB x 4); (AB x 3 x Coda); (AA'x 2); (AÃ x 8 x Coda).

A análise do corpo de especímenes em estudo parece revelar, por conseguinte, através de diversas observações feitas ao longo das páginas precedentes, que o repertório de música tradicional do Baixo Alentejo se encontra, nos nossos dias, numa fase de profunda transformação e que as modificações constatadas na estrutura dos cantares representam o aspecto mais importante do seu processo evolutivo.

com efeito, tudo leva a supor que as duas sedimentações que participam actualmente na organização estrutural de todos os especímenes não são senão uma consequência da metamorfose do sistema modal no sistema tonal. Esta afirmação corrobora, em certa medida, a opinião de Constantin Brailoiu, para quem "a tendência ao sistema define mesmo uma das propriedades mais importantes da música dita primitiva: é necessário que os seus elementos constitutivos fundamentais sejam bastante rígidos para que, por um lado, ela possa, privada da escrita, perpetuar-se inalterada, quanto ao essencial, e por outro, tolerar a

64

intervenção constante do arbitrário individual, permanecendo, no entanto, uma música "de todos"". 61

Os dados estatísticos poderão oferecer-nos, por outro lado, elementos importantes sobre o grau actual desta metamorfose. Resumamos, pois, num pequeno quadro, o estado presente desta música vocal tradicional, segundo a quantidade de especímenes analisados. Para os cantares profanos o número de peças que constitui cada grupo é o seguinte:

- Grupo "a)": 3 no modo de sol.

- Grupo "b)": 44 em diversas tonalidades.

- Grupo "c)": 5 em que a entoação do quarto

grau poderia sugerir o modo defá.

- Grupo "d)": 8+10 em que as ambiguidades

estruturais se referem

respectivamente aos modos de f á e de sol.

Para os cantares religiosos a distribuição é a seguinte:

- Grupo "a)": 1 no modo de sol.

- Grupo "b)": 4 em diversas tonalidades.

- Grupo "c)": 1 em que a entoação do quarto

grau poderia sugerir o modo de fá.

- Grupo "d)": 4 em que as ambiguidades

estruturais se referem ao modo de sol.

Se se aceitar o princípio da transformação estrutural no sentido modal-tonal, a tendência desta música seria,

65

pois, a da eliminação dos cantares modais. Os números apresentados indicam que estes, os modais, são unicamente executados em sol e podemos admitir que passamos por duas fases intermediárias - a da entoação demasiado alta e a das ambiguidades estruturais - para chegarmos, finalmente, aos cantos tonais.

Os especímenes religiosos apresentam, contudo, em relação aos profanos, um maior número de peças que "escapam" à estrutura tonal: 6 contra 4. Este facto sugere-nos a possibilidade destes cantares estarem mais ao abrigo de determinados factores que se encontram na origem da sua evolução, por serem executados de uma maneira esporádica.

Cremos, portanto, poder supor que a frequência dos fenómenos de carácter tonal que se incrustaram, pouco a pouco, nas estruturas das peças modais, acabou por se repercutir na percepção musical dos cantadores. E assim, segundo a análise do corpo de cantares transcritos para este estudo, o repertório de música profana oferece 4,2% de especímenes construídos em modal contra 62,8% executados em tonal; à cifra complementar de 32,8% representa as peças em que se observam problemas de ambiguidade estrutural. No repertório religioso estas percentagens são as seguintes:
10% de especímenes construídos em modal contra 40% em tonal. A cifra de 50% refere-se às peças que apresentam problemas de estrutura.

Consideremos, no entanto, uma vez mais, os cantares em que a organização estrutural levanta algumas questões: os da entoação de graus demasiadamente altos e os dos graus considerados "móveis", em virtude de considerarmos estas peças

66

necessariamente representativas das etapas actuais da evolução do repertório.

Admitamos que existe um princípio de evolução da morfologia dos cantares: dada a presença de peças construídas, actualmente, no sistema modal e cantadas, como se sabe, numa polifonia em terceiras paralelas, énos permitido afirmar que, em dado momento da sua evolução, momento que nos é impossível situar no tempo, esta morfologia fixou-se em torno deste género de polifonia e do sistema modal. E parece-nos lícito avançar a hipótese de que, neste, a eliminação progressiva dos modos com a terceira superior à tónica menor se instaurou posteriormente, o que explica a situação actual do repertório descrita nas páginas anteriores.

Ainda que cantados em polifonia, parece-nos que a construção dos cantares modais revela uma mentalidade mais melódica do que harmónica. Estas observações correspondem, aliás, às reflexões de Jacques Chailley, para quem o instinto polifónico "... nunca se manifesta directamente sob uma forma harmónica baseada no baixo fundamental clássico". 62 Neste caso, a questão básica da evolução da morfologia do repertório é, na verdade, a da transição de uma percepção musical que era baseada, outrora, na melodia "livre da influência harmónica" para a que supõe esta influência assimilada, ou prestes a sê-lo.

Assinalámos, nas páginas precedentes, o facto da passagem progressiva de uma à outra destas duas percepções se realizar, do ponto de vista estrutural, pela substituição de determinados graus da escala modal pelos da escala tonal. Por outro lado, podemos facilmente conceber que a influência da música erudita

67

ocidental terá presidido ao desenvolvimento lento e instintivo do sentimento de harmonia nos cantadores desta região.

Enfim, a morfologia do repertório encontra-se, actualmente, na fase precisa em que a ordem melódica, baseada na hierarquia do ciclo das quintas, perde a sua utilização e cede o lugar à ordem harmónica que é fundada, como sabemos, no quadro dos harmónicos. Sobre este assunto, fazemos notar que o intervalo de quinta é ouvido na execução de certos cantares. Esta particularidade é bastante importante, na medida em que ela permite situar o período da evolução desses cantares, à luz da transformação da linguagem musical, período que parece ser o da secção 1 - 6 da ressonância.63

Os resíduos desta transformação são, aliás, detectáveis, visto que no desenrolar do seu processo se estabelece, como vimos, um jogo de interferências, do qual as peças classificadas em "c)" e "d)" são representativas destas afirmações.

Com efeito, afastando a hipótese de que os fenómenos observados na estrutura das peças sejam devidos a intenções expressivas, em virtude destes fenómenos se mostrarem demasiado sistemáticos, não nos resta outra alternativa senão a de constatar que estes dois grupos constituem outros tantos períodos sucessivos da assimilação dos graus de um sistema pelos de um outro sistema.

No primeiro grupo, "c)", o quarto grau, cantado várias vezes numa entoação demasiado alta, a meio caminho dos graus constitutivos de cada sistema, é exemplo de um "grau deslocado", quer dizer, um grau que obteve definitivamente um lugar e cuja origem foi, primitivamente, um fenómeno de atracção.

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Encontramo-nos, assim, em presença de um "acontecimento" esporádico da igualização da altura do grau, o qual, sendo o resultado da igualdade de duas forças exercidas no sentido ascendente e descendente, se apresenta, por momentos, como um novo grau. Este, suportando consequentemente uma atracção vertical, para baixo, até à sua identificação com o grau do sistema tonal, torna-se, desta maneira, o quarto grau deste sistema.

Cremos que este fenómeno de assimilação é devido já à aquisição pelos cantadores de uma mentalidade harmónica.

Sem a perspectiva histórica da evolução da morfologia dos cantares, pareceria estranho e mesmo irracional este fenómeno, dado que ele ocorre, em todas as peças, nos mesmos graus. No entanto, o conhecimento da metamorfose que se operou, convidanos a considerar este facto como a reaparição de resíduos de um período anterior. Não obstante, nas peças religiosas estes resíduos são mais numerosos do que nos cantares profanos. Quer dizer que aquelas se apresentam muito mais próximas da sua fase modal, o que confirma as nossas observações sobre a preservação deste repertório.

A construção das peças do grupo "d)" testemunha uma fase de percepção mais arcaica do que a que acabámos de observar. com efeito, nesta última, os graus considerados como "móveis" apresentam, durante a execução dos cantares, em cada grau, duas entoações de altura absolutamente fixa. Jacques Chailley observa, a este propósito, que a etnomusicologia nos sugere "...vermos aí antigos graus flutuantes canalizados... na primeira etapa da sua estabilização..." 64. A atracção

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vertical dos graus constitutivos da escala modal pelos da escala tonal - o quarto e sétimo neste grupo - exerce assim, nesta fase, uma força mais fraca. No entanto, no nosso repertório, estes graus característicos oferecem já, pelo seu emprego mais frequente, uma tendência para a estabilização e para a sua integração posterior no sistema tonal.

Todavia, em todas estas peças, uma atracção horizontal parece instaurar-se entre os graus fracos e os graus fortes contíguos, para a qual contribuem, de uma maneira fundamental, os sons harmónicos subentendidos.

Os especímenes do primeiro subgrupo oferecem uma ambiguidade estrutural que é criada pelo IV grau e que parece ser a consequência do jogo de atracção que o I e o V graus alimentam, cada um do seu lado.

Estas peças são executadas numa estrutura tonal e a construção das suas linhas melódicas oscila entre estes dois graus. Assim, pela sua própria situação, o V grau ocupa um lugar importante nas melodias. No entanto, o seu poder é ainda maior na medida em que ele permanece subentendido durante a execução das peças: observámos oportunamente que, em certos apoios rítmicos, a terceira da polifonia é substituída por uma quinta. Este facto parece, na verdade, representativo do poder da sua atracção. Por outro lado, lembramos que nas duas peças deste subgrupo, a nota final é o V grau. Toda esta força que o envolve explica então porque é que o "alto" atrai o IV grau para si, a tal ponto que o coloca como a "sua" sensível, isto é, à distância de um meio tom, fazendo crer, por momentos, na modificação da tonalidade da peça. Ora esta sensível não é a da tonalidade do espécimen mas sim o seu IV grau. A

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ambiguidade nasce, então, do emprego deste grau em dois sentidos divergentes, fruto da polarização das linhas melódicas em volta do I e do V graus.

Os cantares do segundo subgrupo apresentam uma ambiguidade estrutural criada pelo VII grau, como já foi dito. Aqui é o IV grau que ocupa um lugar importante na construção das linhas melódicas; o balanceamento destas processa-se entre ele e o I grau. Assistimos então à atracção que se estabelece normalmente entre o VII e o I grau das peças. Todavia, este jogo é contrariado pelo poder do IV grau que, também ele, faz crer, por momentos, que o espécimen está na "sua" tonalidade. A sua presença leva-nos a esquecer a sensível do cantar, sem em contrapartida nos impor a sensível do IV grau
- como no primeiro subgrupo - que coincide com o grau constitutivo da tonalidade da peça. Observamos que, em certas passagens, este IV grau parece subentendido. A ambiguidade resulta, pois, neste subgrupo, do jogo atractivo que se estabelece nas linhas melódicas à volta do I e do IV graus.

Enfim, assistimos à existência de dois géneros de atracção: a que acabámos de descrever, que se incrusta horizontalmente, e que se refere à melodia, e a que foi observada algumas páginas atrás, no respeitante à harmonia. Estas atracções são complementares e representativas, cada uma por seu lado, da passagem da ordem melódica à ordem harmónica. Ambas contribuem para a formação de "piens transitórios" 65 provenientes do sistema tonal ao invadir o modal.

Representativos de determinados "níveis psicológicos" 66, vemos estes "piens" submetidos a forças divergentes, apesar de terem adquirido, no

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entanto, a estabilidade necessária para a transformação profunda da linguagem musical de outrora.

Em suma, os fenómenos de atracção e de igualização, bem como os referentes aos contornos das linhas melódicas, explicam a evolução morfológica do repertório. No que se refere às transformações observadas na forma, quer dizer, na ordenação das partes do discurso musical, esclarecemos que elas se encontram em relação directa com o modo de execução dos cantares: a forma muda segundo as circunstâncias. No entanto, a este respeito pudemos constatar a utilização preferencial do esquema (AA'x A'x A'). Ao procurarmos compreender o porquê desta forma, foram os próprios cantadores que nos explicaram que, aquando dos festivais e dos concursos para que são, hoje em dia, amiudadamente convidados, as limitações do fôlego lhes exigiam adoptá-la.

Por seu lado, a forma dos cantares religiosos polarizou-se em volta do esquema (AB x AB) ainda que se encontre numerosas vezes a forma (AÃ' x AÃ').

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NOTAS

1 In Prefácio ao Cancioneiro de Músicas Populares, de César das Neves e Gualdino de Campos, s. p.

2 Rodney Gallop - Cantares do povo português; p. 36.

3 A. Etnografia, o seu Ensino, as Associações e os Museus; p.
446.

4 Da Vida e Saber do Povo, recolha e estudo - Necessidade de uma Organização em Portugal, p. 76.

5 Colette Callier-Boisvert, L*z vie rurale au Portugal. Panorama dês travaux en langue portugaise, p. 120.

6 Parafraseamos Carlos Lopes Cardoso, in Congresso Internacional dos Investigadores do Conto Popular, p. 158.

7 É evidente que no âmbito deste estudo não nos é possível fazer uma análise aprofundada das fases do processo que estas linhas supõem. Reservamos os elementos que já possuímos, sobre este assunto, para a elaboração de uma história crítica da investigação da música portuguesa.

8 Lembramos as observações feitas a este respeito, em
1946, por Fernando Lopes Graça: "O estudo da canção alentejana está ainda por fazer, tanto por escassez da necessária documentação como por falta de especialistas perfeitamente habilitados que a analisassem no triplo ponto de vista musical, psicológico e sociológico". In Apontamento sobre a canção alentejana, p. 176.

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9 Sublinhamos que a poesia tradicional portuguesa também foi objecto do mesmo género de reflexão.

10 In Cantares do Povo Português, p. 12.

11 Ibidem^.22.

12 In Rio de Onor, comunitarismo agro-pastoril, pp. 381-382.

13 Esclarecemos que Fernando Lopes Graça foi um dos raros estudiosos que, ainda na década de cinquenta, a recusou, tendo então escrito o seguinte: "A teoria do Gesunkenes Kulturgut da escola de Meier foi há muito abandonada como explicação suficiente da formação da música popular. Como havia ela de ser aplicável, por exemplo, ao folclore dos inúmeros povos primitivos sem passado cultural e em que de facto a única música existente é a popular? Como havia ela de dar conta das várias particularidades rítmicas, tonais e estruturais observadas em tantas músicas populares, particularidades que não têm correspondência nas formas históricas de música culta? Como havia ela de explicar as influências recíprocas que em tantos casos se patenteiam entre os dois tipos de música, o que prova bem a existência de duas correntes de certo modo autónomas e que um natural processo dialéctico aproxima em determinadas circunstâncias e momentos? E não se chegou mesmo já a formular a teoria inversa, e não tão arrojada como isso, de que toda a música culta tem a sua origem na música popular, ou, para o dizer menos equivocamente, na música folclórica?", in É a música folclórica uma deformação da música culta?, pp. 222-223.

14 Esclarecemos que também Mário de Sampayo Ribeiro abordou este aspecto da nossa música tradicional, numa conferência dada em 1934 subordinada ao tema "Do justo valor da canção popular".

15 Numa melhor oportunidade exprimiremos o nosso pensamento sobre este assunto.

16 In Sobre as canções populares portuguesas e o modo defazer a sua colheita, p. VIL

17 Uma outra forma de música vocal constituída pelos "cantares de despique" só existe em certas zonas desta região,

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pelo que abordaremos o seu estudo numa melhor oportunidade.

18 Léon Poinsard, Lê Portugal inconnu, p. 55.

19 Paul Descamps, Lê Portugal - Ia vie sociale actuelle, p.
183.

20 Pequito Rebelo, A. terra portuguesa, p. 55.

21 Relembramos que estas linhas foram escritas nos finais da década de 60, sendo por conseguinte anteriores aos acontecimentos políticos que, em 1974, alteraram a forma de propriedade do Baixo Alentejo.

22 Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico', p.
67.

23 Léon Poinsard, Op. cit.,p. 156.

24 Ibidem,^. 156.

25 Orlando Ribeiro, Op. cit., p. 65.

26 Orlando Ribeiro, in Etnografia portuguesa., vol. IV, pp.
629-630.

27 Fernando Nunes Ribeiro, O Bronze meridional português., p. 31.

28 Ibidem, pp. 22-23.

29 Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, p.
90.

30 Manuel Joaquim Delgado, Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo, vol. II, p. 7.

31 Manuel Dias Nunes, Costumes da minha terra - os descantes in "A Tradição", Serpa, Ano IV, p. 8.

32 Sobre este assunto, Júlio Evangelista teve ocasião de escrever em 1962 as seguintes linhas: "Outros vêm para fixarse, trazem uma profissão (pedreiro, carpinteiro, serralheiro, etc.), ou são novos e começam como aprendizes, têm mais facilidades, entram com relativa segurança para o sector secundário, nele se fixando; outros ainda vêm directamente para o comércio, empregos públicos, polícia ou guarda republicana, não trazendo ainda profissão e passando directamente da agricultura para as actividades citadinas", in O Homem do Campo nas profissões da cidade, p. 48.

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33 Michel'Angelo Lambertini, Encyclopédie de la Musique Lavignac, 1.ª parte, tomo IV, p. 2467.

34 Vai longe o tempo em que "nas noites de luar, no verão, os homens em grupos, os braços sobre os ombros uns dos outros, formando um círculo, outras vezes em linha, e a caminhar lentamente pelos amplos caminhos ou estradas, cantavam, e as suas vozes enchiam a noite de uma magia que só pode compreender quem teve a dita de os ouvir. Ao fim de um dia de trabalho duro na ceifa, aqueles homens libertavam-se do peso da vida pelo canto." A Jorge Dias, Da música e da dança, como formas de expressão espontâneas populares, aos ranchos

folclóricou•, p. 8.

35 Recolhido em Aldeia Nova de S. Bento, em Agosto de
1966, foi executado por três "solistas": Manuel Guerreiro Moralinho, Francisco Baioa Soeiro e Manuel Mira Monge e um coro de dezasseis vozes masculinas.

36 Recolhida em Santo Aleixo da Restauração em Agosto de 1967, foi executada por um grupo de quinze homens, tendo como "solistas" Francisco de Almeida Candeias, António Lino e António Estevães Vaz.

37 Contudo, aquando da "reconstituição" de um baile e de uma "arruada", foi-nos dado observar uma execução algo diferente da assim descrita: uma voz de homem ou de mulher vocalizou a primeira quadra de uma "moda" conhecida de todos. O primeiro verso da segunda quadra foi executado por um outro homem (ou mulher) que cantou a mesma estrutura melódica à terceira superior. No segundo verso, todos os cantadores retomaram a estrutura cantada pelo primeiro cantador, com excepção do que a tinha retomado à terceira superior, que a continuou cantando sozinho e paralelamente, à mesma distância intervalar. Chegados ao fim, a peça foi retomada pelo mesmo cantador (ou por qualquer outro) e executada com uma nova quadra. Poderia, no entanto, ter-s e seguido um outro cantar com o mesmo modo de execução.

38 Michel'Angelo Lambertini, Op. cit., p. 2467

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39 Esta "moda" foi executada por dois "solistas": Joaquim Higínio Piedade e José Francisco Camacho, e um coro de dezanove homens.

40 O rio Guadiana intervém como uma fronteira natural na divisão geográfica da região.

41 Este cantar foi recolhido em Pias, em Setembro de
1966, e executado por dois "solistas": Domingos Estrela e Manuel Estrela, e um coro de dezasseis vozes masculinas.

42 Foi executada por um grupo de dezasseis homens, tendo como "solistas" Manuel Guerreiro Moralinho e Manuel Pica Soares.

43 Foi executada por um coro de dezasseis vozes masculinas e dois "solistas": António Pacheco Afonso e José Lopes Gato.

44 Executada por dois "solistas": António Rodrigues Leitão e António Lopes, e um coro de dezoito homens; esta "moda" foi colectada em Agosto de 1966 em Vila Verde de Ficalho.

45 Foi executada por dois "solistas", Manuel José Carriço e Francisco Cabaço Carvalho, e um coro de doze vozes masculinas.

46 Recolhido em Pias, em 1966, foi executado pelos cantadores a que já fizemos referência, nesta localidade.

47 Foi executada por quatro vozes "solistas" - Inocêncio José Ramalho, Joaquim Prego Lança, Joaquim José Lopes e António Calhau Pacheco - e um coro de dezassete homens.

48 Foi executada pelos mesmos cantadores; no entanto, o coro era composto somente por quinze homens.

49 Denominado "Os Reis", foi executado pelos cantadores a que já fizemos referência, nesta povoação.

50 Trata-se da moda "O Menino Jesus", recolhida em Aldeia Nova de S. Bento, em Setembro de 1966, e executada por três "solistas": Cezinando Agostinho dos Santos, Manuel Guerreiro Moralinho e Manuel Mira Monge, e um coro de doze vozes femininas e dezanove masculinas.

51 Michel'Angelo Lambertini, Chansons et instntments, p.
60.

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52 Foi executada por dois "solistas": António Pacheco Afonso e Manuel Paraíba, e um coro de dezasseis homens.

53 Foi executada pelos cantadores a que já fizemos referência, nesta localidade.

54 Foi executada em 1966, pelos cantadores da penúltima peça a que fizemos referência, nesta localidade.

55 Foi executada pelos cantadores a que já fizemos referência, nesta mesma localidade.

56 Executada em Agosto de 1966 por três "solistas": Cezinando Agostinho dos Santos, Manuel Guerreiro Moralinho e Manuel Pica Soares, e um coro de dezasseis homens.

57 Teve como "solistas" Cezinando Agostinho dos Santos, Francisco Baioa Soeiro e Manuel Mira Monge. Coro de dezasseis vozes masculinas.

58 Gravado em Setembro de 1967, este cantar foi executado pelos cantadores a que já fizemos referência, nesta mesma localidade.

59 Foi executado por um único "solista", António Lopes, que fez a voz do "ponto" e do "alto", e um coro de dezassete homens.

60 Foi executada por dois "solistas" - António Rodrigues Leitão e Domingos do Carmo Ascensão - e um coro de dezoito homens.

61 Constantin Brailoiu, ~L,'ethnomusicologie, p. 42.

62 Jacques Chailley, La Radio et k développement de ttnstinct harmonique che^ lês auditeurs^ p. 406.

63 Jacques Chailley, Essai sur lês structures mélodiques^ p. 161.

64 Jacques Chailley, Ethnomusicologie et harmonie classique^ p.
263.

65 Jacques Chailley, Formation et transformation du langage musical^ p. 63.

66 Expressão retida do artigo de Jacques Chailley intitulado "Niveaux psychologiques dans rassimilation du langage musical".

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TEXTOS DE REFERÊNCIA

ARTIGOS

"Cahiram em desuso os velhos autos, quer profanos quer religiosos cTenvolta com os vetustos momos e entremezes; e o Auto do Presépio (ou Colloquios do Presépio) teve afinal em Serpa a derradeira exhibição ahi pelo anno de 1835.

O que ainda subsiste apesar da sua origem secular - tão secular como a do Presépio - é o costume dos descantes ao D eus-Menino, às Janeiras e aos Reis.

Em noite de Natal, ao redor dos grandes lumes alimentados a toros de azinho, reúne cada família principalmente entre a classe camponeza - no maior numero possível dos seus membros. E, enquanto aguardam o repicar festivo dos sinos annunciando a proximidade da clássica missa do gálio, a que assistem os mais devotos, vão alternando a chávena do café e o pezado repasto das bolotas, preparadas em grossas assaduras, com apreciáveis coros ao Deus-Menino."

(Manuel Dias Nunes, Natal, Anno-bom e Réis, em <A Tradição" de Serpa, Ano I, 1899, p. 6)

"Imagina-se lá até onde esta gente, leva o sentimento da sua tragédia!

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Isto pensamos ao vê-los beber, como ao ouvi-los cantar! Parece que n'elles a própria embriaguez resulta ainda n'uma lustração da alma - tal ainda alli a sua attitude!

É que ninguém como o povo alemtejano tem presente a sua nobreza atávica, que parece conservá-lo sempre na expectativa de si próprio, e o leva até à expressão rythmica da sua desgraça naquelles cantos, d'um mysticismo como jamais o sentimos no mais da coral portugueza.

Pela noite, em dias de feira, mais do que nas tendas, vive nos carros, em cujas primeiras filas se junta, como que em tribus, para beber e cantar. De dia vive na modorra do sol, fechado no trabalho que exerce mechanicamente, quando se não dispersa á suggestão da vida cataléptica da campina.

A noite, sim! A noite parece ser para esta gente, de gosto simples e transcendente, como o de nenhuma das nossas variedades ethnicas - o tempo em que desata a alma, em que mais e melhor se revela.

E então que o alemtejano se encontra n'um pretexto de vicio, como os da companha, normalmente nas adegas; em dias de feira, na feira, nos seus carros, pela noite funda até madrugada, hora em que o canto se lhe dispersa no primeiro alvor.

Mysteriosos cânticos! Como Oliveira Martins, quasi sempre o chronista do sonho, como dos nossos pesadelos, errou d'esta vez a figura do alemtejano, ao informar-nos na sua Historia de Portugal do. que elle só rarissimamente cantava!

Bem pelo contrario, podemos afoutamente dizer, o alemtejano e sobretudo o natural do Baixo Alemtejo, rarissimamente deixa de cantar.

Alli o ouvimos sempre, extranho no seu immemorial lirismo e tão singular e entranhadamente dramático como jamais o sentimos!

(...) Se é certo, como observa Renan, que "a litteratura não escripta de cada raça é o que ella produz de mais perfeito" que dizer do génio anonymo que consegue transmittir-se no canto de uma dor tão fundamente melodiosa como o dos pastores do Sul?

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O Canto é no homem como uma espécie de maré alta do sentido, quando elle se ouve em delirio, tão innocente como a criança ou como a ave. Tal o surprehendi aos pastores alemtejanos.

Não se me apartam da memória as suas figuras mumificando traços puros, as boccas mal abertas pela voz lenta, e na garganta a alma estrangulada das modulações do canto que alli faz jorro n'um Ímpeto de lhes arrasar a mascara!

Ha em cada um, dos muitos pastores que vi em attitude de canto, a expressão da sua raça; a ponto de que não encontrariamos melhor symbolo a defini-los que a sua cabeça de terra-cotta, em definitivo tratada pelo sol.

O que jamais pôde fixar-se é o orpheon das suas noites bohemias, d'uma bohemia triste que lhes arde nos cantos e que jamais poderia tomar expressão fora da nave que lhes fecha a campina, ou do céu das suas adegas.

O Coro alemtejano é ainda e, sobretudo, a composição do homem no ermo, o canto da soledade que parece voar-lhe da bocca verdadeiros echos da terra.

Também porventura d'ahi a impressão da sua maneira, d'uma bizarria inegualavelmente evocativa.

(...) Pois que a vida é para o Artista o aspecto delicado das coisas, como quer que sejam e onde quer que existam, de boa alma importa que elle se lhes dê inteiramente. Ora, assim o comprehende o supremo artista - o Povo, e designadamente o povo do Alemtejo, tão extranho na maneira de sentir a phrenologia da sua paizagem, como na razão rythmica e imaginativa das suas canções, que de bom grado sobrepomos ao mais do lirismo e modulações coraes da musica popular portugueza.

corn effeito, bem ao contrario do que pensava Oliveira Martins, no Baixo Alemtejo tudo canta, e, o que é mais, todos sabem cantar.

Velhos e moços ouvimos nós tardes inteiras - as raparigas ensombrando do seu canto as caras redondas, extranhos globos de luz, - a luz âmbar da sua raça; elles, velhos e moços, abstractos na attitude recolhida das coisas; e

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todos, de olhos longe, perdidos na mesma razão originaria do seu lirismo, como fracções d'um convento disperso, entornando, religiosos, a onda triste da sua grande alma!

Porque onde o grande historiador tem razão é na affirmação absoluta da sua tristeza. Ahi sim! No Alemtejo, pôde dizer-s e, quasi não ha alegria. E d'ahi o facto do alemtejano, principalmente o mais meridional, cantar sobretudo a sua tristeza.

(...) A vida é, em regra, uma agonia cómica, mas só os que vêem pelo coração, isto é, os simples sentem o poder irreprimível de a confessar tal qual ella é, e, mais ainda, de a cantar.

Assim a ouvimos, em geral, na sua amargura inteira, ao Povo, quando põe a alma a falar nas suas canções e romances.

Tal tivemos também a fortuna de colhê-la no Alemtejo, sobretudo na feira de Beja, da bocca dos pastores."

(Visconde de Villa-Moura, Terras do SulCantos alemtejanos, em "A Águia", vol. X, 2.a série, Porto, 1916, pp. 62-68)

"Esses vários povos alentejanos sentem a música espontaneamente sem a sugestão de escolas nem a pressão didáctica de Mestres.

Sabe-se como essas canções irrompem da garganta dessa gente humilde, principalmente, de um simples encontro de pessoas em qualquer parte, em quaisquer circunstâncias de convívio colectivo. No trabalho, nas locandas, no estrépito das romarias, nas reuniões familiares. E ninguém lhes ensina como hão-de cantar, como o timbre das suas vozes deverá ser aproveitado. A música está dentro dessa gente e, numa fulminância de espantar, as vozes se empregam justamente na medida dos recursos vocais tornando possível um conjunto coral organizado como se uma direcção técnica o dirigisse e inspirasse.

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(...) A "estepa" alentejana, como já é costume dizer-se, dilata a vista de quem a contempla, sugere a singular melodia dos horizontes, dando-nos a justeza dos planos e o equilíbrio dos contornos.

(...) O que no Alentejo se pretende denominar de áridos é menos a ausência da seiva a fazer germinar a terra do que o formidável complexo da Natureza sem necessitar do arrebique para vos fazer vibrar sem coqueterias, nem artifícios que mais a mão do homem preparou do que a espontânea erupção da vida natural.

(...) A canção do Alentejo perdura pela composta severidade dos campos e, assim mesmo, ela se anima, se agita quando, em certas terras, a Natureza foi menos sóbria e mais roçogante de tonalidades."

(Nogueira de Brito, Cantares do Povo, em "O Diabo", Ano III, n.° 145, 1937, p. 3)

"O canto alentejano é quási desconhecido da maioria dos portugueses que nunca visitaram a grande província. Não está fixado musicalmente em nenhuma colectânea de modas populares nem dele há notícias escritas bastantes para satisfazer a curiosidade. Pelo seu carácter, profundamente típico, deve surpreender os que o ouvirem. Precisa, por isso, o público saber de que se trata.

Um amigo, espírito aberto aos grandes ideais de fraternidade humana, mas apaixonado por tudo que diz respeito ao seu torrão nativo, António Carrilho, lembrou-me que o canto alentejano - de que é cultor - daria tema para um artigo. Disse-lhe que não fazia ideia do que fosse. Do canto alentejano tinha apenas a reminiscência de uma aguarela de Roque Gameiro: alguns homens de jaqueta, chapeirão e cajado, abismados num ar de cisma. Convidou-me a acompanhá-lo numa ida a Mértola, a fim de conhecer o canto,

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no ambiente próprio. Fui e do que vi e ouvi you prestar o meu depoimento.

O canto alentejano, devido à influência do conde de Ficalho, foi bem querido pelos intelectuais do grupo dos Vencidos da Vida, que lhe deram foros de grandiosa afirmação da arte popular. Na revista "A Tradição", publicada ao tempo, foram arquivadas muitas das cantigas que os cantadores compõem ou interpretam. Sobre as origens e características do canto é que pouco se disse. Parece não haver dúvida de que conserva aspectos da melopeia árabe, trazida à Península pelas invasões sarracenas e fixada no solo pela longa ocupação dos moiros. Há, contudo, nas suas frases, de vaga e arrastada modulação, muito das canções eslavas das estepas.

Na sua formação recente e renovação constante influem os pastores que, no fim da semana, regressam ao "monte" a renovar provisões. Durante o período de isolamento imaginam variantes, que no sábado e no domingo cantam em conjunto, introduzindo as "modas novas", que são - embora com outras cantigas - ajustamentos de frases dos velhos temas.

(...) Hoje, à parte a intervenção do harmónio ou concertina, que os amantes das tradições locais têm por sacrílega, o canto é simplesmente vocal, sem a ajuda de qualquer instrumento. É assim em Mértola, onde o ouvi na sua pureza nativa e bárbara grandeza. É por isso que toma aspectos litúrgicos de cantochão. No entanto, o alentejano nada tem de místico, nem frequenta os locais onde poderia receber a influência dos cânticos religiosos anteriores ao gregoriano. É antes um canto que brota da própria terra, toma a ondulação dela e reflecte o drama dos que ali vivem, isolados pelas distâncias, como náufragos numa ilha deserta. É um canto de nostalgia, canto de zagais e ganhões, perdidos nos montados e na campina imensa.

(...) É alguma coisa de profundo e grave, de visivelmente trágico e angustioso. Mesmo quando a letra é alegre, e às vezes irónica, a melodia é sempre de uma desoladora tristeza,

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que comove profundamente até às lágrimas. Basta ver o espectáculo que oferecem os cantadores para verificar que o seu canto é a expressão humana de uma grande amargura, que procura o amparo da fraternidade para não cair no desespero.

Cantam, em regra, quatro a doze homens, e raras vezes mais. A intervenção das mulheres só se dá na ida e no regresso das fainas da apanha da azeitona e na monda triste. O canto é mais de rua do que de interior, onde tem menos ressonância. Contudo, à noite, nas vendas, os trabalhadores cantam. É a sua forma de expressão, porque o alentejano é de poucas falas. Ou queda-se silencioso, hierático, como uma figura de tragédia, ou canta. A noite, nas ruas, no meio da treva densa, ou sob o luar que dá sonho às coisas e aos seres, o grupo de cantadores surge. Caminha devagar. A certa altura pára e forma uma roda apertada. Ás vezes os cantadores põem as mãos nas costas uns dos outros, para se sentirem mais próximos, mais unidos - e o canto sobe na noite.

(...) O canto, que começa como um gemido, ainda de boca fechada, alteia-se e ondula como uma seara tocada pelo vento. Há, por vezes, uma nota mais alta, ramo esgarçado de azinheira velha no meio da campina monótona. Depois termina com um lamento, que vai morrendo e se perde na distância.

Este canto, sem música, que vem do fundo dos séculos, transmitido de pais a filhos na tradição meramente oral, é das mais altas expressões da arte do povo e a plasticização perfeita do drama de quem vive, fixado à terra, nostálgico de felicidade, ansioso de paz fecunda e de vida criadora. Ouvi-lo brotar das máscaras rudes e impenetráveis dos rurais alentejanos nunca mais esquece e afervora nos esforços para que se dê ao homem que trabalha aquilo a que largamente tem jus. Foi assim que senti o canto e disso dou fé."

(Jaime Brasil, O canto alentejano^ em "Notícias Agrícola", Ano V, n.° 214,
1937, p. 3)

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COMUNICAÇÕES

"A questão dos ornamentos ou floreios na música portuguesa, sobretudo nos corais alentejanos, levou a crer, por muito tempo, que as canções do Baixo Alentejo, ou pelo menos, o seu estilo de interpretação, eram exclusivamente de ascendência mourisca.

Em abono desta tese produziam-se argumentos baseados em certas realidades históricas: o prolongado domínio dos árabes nas regiões do Sul; a influência andaluza ou moçárabe; e, sobretudo, o que se conhece da música que ainda hoje se executa no noroeste do continente africano.

A essa tese opõe-se hoje um argumento de lógica verdadeiramente impressionante: se o canto alente j ano é não só melismático mas também polifónico, e se os árabes nunca cantaram polifonicamente, como podia esse povo ter-nos brindado com aquilo que não tinha? Vá, então, de se dizer que a presença da Escola Musical do Claustro de Évora e seu polifonismo criaram o ambiente em que haviam de gerar-se os belos corais do Baixo Alentejo.

Esta nova tese, embora se apresente mais lógica, não logra convencer-nos e leva-nos a fazer uma única pergunta: - se a Escola de Évora era susceptível de tal influência, como é que o canto polifónico não se acantonou no Alto Alentejo, como seria natural, e foi surgir em toda a sua vitalidade no extremo sul da província? Veja-se o que se passa com a Universidade e sua influência no falar do povo. Aqui, bem se reconhece que a região beneficiada é a circundante e não qualquer outra afastada do seu termo. Pois o que é Coimbra no que respeita à linguagem falada, assim Évora seria quanto à linguagem musical.

Em nossa opinião - e aqui se nos oferece uma terceira tese - os corais alentejanos, a duas vozes simples ou com redobramento duma delas, terão sido levados de EntreDouro-e-Minho para o Sul pela gente da reconquista do Algarve e ali se fixaram como privilégio que os homens guardaram para si após a ocupação. Esta tese flui do cotejo

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das formas musicais e do estudo de certas particularidades que se observam no estilo de interpretação."

(Rebelo Bonito, Alguns aspectos da Música Popular Portuguesa., in "Actas do 1.° Congresso de Etnografia e Folclore", Braga, 1956, vol. in, p. 79. Lisboa, Biblioteca Social e Corporativa, 1963)

"Na verdade, o folclore musical do Baixo Alentejo é de uma incomparável grandiosidade emotiva, de uma profunda comunicabilidade sentimental, que nos toca o coração.

Os corais alentejanos, simples e espontâneos, são um grito de alma que impressiona profundamente quem os ouve, não só pela gravidade e sentimentalismo de que se revestem os seus acordes melodiosos, mas também, e sobretudo, pelo misticismo e unção religiosa que inspiram e nos enche a alma.

(...) O cantar está, pois, na alma do Povo Alentejano! É para ele uma necessidade psicológica constante, imponderável, confortante.

Compreende-se que assim seja: enquanto canta, não se sente tão isolado na vastidão imensa destes campos solitários, campos da Distância e da Ausência! (...)

A Planície heróica, estática e silenciosa do Baixo Alentejo, sem os seus corais, seria como catedral gigantesca sem a sonoridade de um órgão, na imagem feliz de Armando Leça...

A salmódia alentejana, com seus acordes a um tempo simples, graves e sonorosos, quando entoada alta madrugada, pelos caminhos, ao saírem os ranchos de trabalhadores para as diversas fainas agrícolas, ou quando, à tardinha, delas regressam, faz-nos evocar sentido e harmonioso hino matinal ou vespertino, erguido em louvor de Deus, na Catedral imensa que é a Natureza!

E com que emoção, com que simplicidade e espontaneidade o Alentejano canta, sempre em atitude de

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respeito e concentração de espírito, de olhos semicerrados, num expressionismo profundo de ritual grave, que nos revela todo o seu encantamento de alma!

Os cantares alentejanos são, incontestavelmente, a verdadeira expressão músico-etnográfica do Baixo Alentejo, um dos seus maiores títulos de recomendação e de atracção para apreciadores e estudiosos de tão característica e perturbante música folclórica."

(Joaquim Roque, A. Música Folclórica do Baixo-AlenTejo no Ciclo do Na't~al, in "Actas do 1.° Congresso de Etnografia e Folclore", Braga, 1956, vol. in, pp. 278-279. Lisboa, Biblioteca Social e Corporativa, 1963)

CONFERÊNCIAS

"O folclore musical alentejano compreende as suas lindas modas, maravilhosos corais a duas, três e quatro vozes, que, tendo passado de geração em geração, chegaram até nós por via oral, íntegros, com alterações apenas acidentais, e que não lhes destroem a feição primitiva. As modas que nós hoje ouvimos cantar, foram cantadas pelos nossos avós, estes apreenderam-nas das pessoas mais idosas, e assim sucessivamente, até parar na origem, na fonte donde brotaram.

Por ser um canto a vozes, o canto alentejano tem de ser chamado um canto polifónico, embora só mereçam esse nome as peças de música abrangidas pelos moldes clássicos de harmonização. Por esse motivo, o canto alentejano é um canto polifónico "sui generis".

E, embora não seja o único, quanto à sua característica geral de ser a vozes - também no Minho se canta a quatro vozes - é-o quanto à sua característica específica, de ser um canto a vozes, que foge do paradigma de qualquer canto polifónico, pela forma como é executado. Além dessa

particularidade, absolutamente original, tem ainda a de ser um canto apaixonado e apaixonante, que tanto nos pode fazer lembrar a música sacra, de elevação espiritual e unção religiosa, como a cantilena árabe da música marroquina.

(...) Desde já previno V. Ex.as de que não defendo a tese arabista quanto às origens do nosso lindo e típico folclore musical. Mas não se pode negar nele uma certa influência dessa corrente tanto mais pronunciada quanto mais perto da fronteira. Nem é para admirar. Não se encontram ainda vestígios da civilização árabe nos costumes dos habitantes da Margem Esquerda? As mulheres de cara tapada, como em Pias, de chapéu na cabeça, como em Serpa, a cegonha para tirar a água dos poços, alguns termos do nosso vocabulário.

(...)

Porque havia de subtrair-se o canto regional a esta mesma influência?

E a unção religiosa não é também evidente nos corais alente j ano s?

(...) No entanto, apesar destas afinidades e semelhanças, não vamos ainda até dizer que o fundo inicial do nosso lindo folclore musical tenha sido de origem puramente religiosa. Como da música berbere, sente-se nos cantares alentejanos uma forte tendência para a música sacra. Mas há outros aspectos do nosso canto que nos fazem ir mais longe na sua origem, isto é, num sentido diferente. E é nesses aspectos que nós vamos, por ventura, encontrar a origem do nosso primoroso canto alentejano.

Que o canto alentejano se encontra envolvido nessas duas correntes - a árabe, de frequentes e aparatosos melismas e a religiosa, de sabor reverenciai e místico - não sofre dúvida nenhuma, já foi dito, e tanto quanto possível exemplificado.

Qual terá sido então a base, a origem do nosso lindo folclore musical? Não é sem dificuldades que entramos neste campo, por ventura o campo de ninguém.

(...) A interpretação do nosso canto popular, para melhor dizer, do folclore popular alentejano, obedece a princípios a que é necessário rigorosamente obedecer, para ser folclore e

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para ser alentejano. Tem princípios fundamentais que o individualizam. Não se canta de qualquer modo, embora nos pareça o contrário. As vozes têm a sua função distinta. É um canto rigorosamente constituído, de princípios formalmente estabelecidos. Alto, Baixo, Segundas e Solistas constituem mais as pedras fundamentais do xadrez musical alentejano, que o resultado em que se fundem, nas duas vozes sobrepostas em terceiras, primeiras e segundas. No entanto, duas zonas inteiramente distintas dividem o canto alentejano quanto à sua interpretação. A Margem Esquerda e a Margem Direita, diremos assim. Na Margem Esquerda as modas são mais leves e mais vivas, talvez mais artificiais, de mais frequentes ornatos. Na Margem Direita, dum modo especial em Peroguarda, o canto é mais rezado, menos profano, mais demorado sem se tornar monótono.

(...) As nossas modas calam fundo na nossa alma. A sua música é tão misteriosa como a própria vida. E parece que uma tristeza infinda enche a alma do Alentejano, e a única forma de a esvaziar é cantar, cantar esses misteriosos corais, solenes e graves...

(...) Se rasga a terra, a moda dá-lhe coragem e alento, é companheira na solidão que o cerca, embála-o docemente, e ajuda-o a cumprir a rude tarefa da sementeira.

(...) Se o frio do Inverno lhe pica os dedos e a cara, ou lhe enregela as mãos, a moda aligeira o serviço, acompanha o ritmo do trabalho e até parece que o frio e a água se contêm em respeito.

(...) Se ao domingo ou dia santo o Alentejano veste o fato melhor, de ver a Deus, é para com ele percorrer as ruas da terra, abrindo falas à namorada nas cantigas que lhe canta...

(...) A inspiração musical do alentejano chega a toda a parte, a todos os campos: o profano e o sagrado.

(...) Que lindos corais de carácter religioso se não cantam por esse Alentejo além!

O canto do "Menino", dos mais vulgarizados, tão terno e tão suave, tão delicioso e tão enternecedor, é para nós o modelo perfeito das peças religiosas do Baixo Alentejo. Não

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se encontra melhor nem mais perfeito em simplicidade e beleza, em graça e ternura. São duma preciosidade inexcedível os cantos do "Menino", de Aljustrel, para nós sem paralelo, de Messejana, da Cuba, de Aldeia Nova de S. Bento e de S. Matias.

(...) Os "Reis", solenes e majestosos, bem próprios das figuras régias do Presépio, são outras tantas peças musicais alente j anãs de reconhecido valor e merecimento.

(...) Mas no Alentejo nem tudo é tristeza e melancolia, nem tudo perde o sentido alegre da vida. Há também o reverso da medalha. Há o Alentejo alegre e vivo, o Alentejo gracioso e esbelto, airoso e sacudido, tão vivamente estampado nos seus cantos coreográficos, nos seus folguedos característicos...

O "Sarapateado" e a "Dança de Tope" de S.to Aleixo da Restauração, a dança "Maquineu", de Amareleja, infelizmente perdida, são números de valor, bem alegres, moldados é certo pela pradigma do nosso lindo canto, de tendência grave e séria.

(...) O Alentejo é, pois, sem dúvida, uma Província onde se canta e se canta bem."

(P. António Marvão, extracto da conferência O Alentejo canta proferida no Salão Nobre da Câmara Municipal de Beja, no dia
17 de Junho de 1956. Braga, Tip. Editorial Franciscana, 1956)

"Foram os senhores convidados a escutar alguns cantos folclóricos de uma das nossas províncias mais ricas e características neste capítulo: a província do Alentejo, ou seja, a província que se estende para lá do rio Tejo, vasto planalto ao sul do País onde predomina a cultura dos cereais, e, sobretudo, da parte mais meridional e interior da mesma província, a que se chama o Baixo Alentejo.

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Seria tentador, num congresso de especialistas da cultura árabe, o poder-se assinalar nos cantos de uma região de Portugal por cerca de cinco séculos dominada pelos Árabes, ou agentes da sua etnia, qualquer influência da música de uma civilização que grandemente prezou esta arte e que dela deixou acentuados vestígios na música de outros povos, da própria Europa mesmo - sem ir mais longe, na da nossa vizinha Espanha. Pretendeu-se, é certo, vislumbrar esta influência no canto popular do Alentejo. Deve, contudo, dizer-se que não se tratava de mais do que de teorias românticas, visionárias ou poéticas, como se queira, sem qualquer correspondência com a realidade e que investigação alguma musicológica verdadeiramente consistente veio corroborar, um que outro arabismo fortuito não podendo formar lei nem estruturar teoria. Tanto pior, não decerto para os estudos árabes, que possuem um vasto e fecundo campo de investigação, mas decididamente para os visionários e os fantasistas do folclore...

Na realidade, a música folclórica do Alentejo, tanto como a do resto do País, é de formação essencialmente europeia.

(...) com efeito, em nenhuma outra música folclórica portuguesa são estas s obre vivências gregorianas tão sensíveis como na música do Alentejo - pelo menos naquelas das suas manifestações que, sob o ponto de vista da etnomusicologia, podemos justamente considerar mais impressivas e significativas, e de que espero podereis ouvir algumas amostras da boca dos cantadores alentejanos que se deslocaram expressamente de Beja para vos regalar.

Digamos algumas palavras sobre o canto alentejano. A primeira particularidade que nele se pode assinalar é o tratarse de um canto colectivo. Na sua mais eminente expressão étnica e artística, a música folclórica alentejana é uma música coral, de formulação polifónica (por aqui diverge ela já radicalmente da música árabe), o mais geralmente cantada por indivíduos do sexo masculino, factores que conferem a estes cantos uma expressão de gravidade, até mesmo de grandeza por vezes épica, não obstante o sentimento nostálgico, o

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lirismo repassadamente "saudoso" de que se acham impregnados.

O mecanismo desta polifonia coral instintiva, simples nos seus lineamentos, é, por via de regra, o seguinte: uma voz solista, o ponto, propõe o canto, não raro de uma certa exuberância melismática; a proposta do ponto, ou solista, é continuada pelo tutti, ao qual outra voz solista, o alto, vem sobrepor-se, formando a sua parte terceiras (ou quintas, nos apoios cadenciais) com o cantus firmus^ podendo, no entanto, variá-la à vontade consoante o princípio da improvisação, como acontecia no antigo discantus e, com efeito, chama-se por vezes no Alentejo descantes a este género de cantos. Tratase, pois, de uma variedade do antigo gymel, ou canto a duas vozes. Parece que em tempos ainda não muito recuados se praticava uma polifonia a três vozes, assentando ainda nas mesmas bases e possivelmente em estilo de fabordão; mas o certo é que tal polifonia se encontra hoje obliterada.

Eis aqui já um dos traços consoante os quais o canto alentejano denuncia a sua descendência do canto gregoriano nas suas formas já historicamente evoluídas, ou, então, com algo que constitui um dos possíveis fundamentos destas formas e que poderiam muito bem preexistir-lhes - a questão ainda se não acha perfeitamente dilucidada em musicologia. Contudo, outros traços de familiaridade podem ser assinalados, quer pelo que respeita à tonalidade, quer pelo que se refere ao ritmo, em numerosos casos de uma grande liberdade e de uma grande flexibilidade prosódica, tal como sucedia no cantochão.

Eu não desejo alongar esta introdução à música folclórica da província do Alentejo, e desejo, sobretudo, evitar o perigo de cair em considerações demasiado técnicas ou especializadas.

(...) Seja-me todavia permitido, para terminar, acrescentar duas ou três reflexões de ordem, primeiro que tudo pessoal, a fim de, em vossa intenção, tentar situar melhor estes cantos na sua ambiência humana e no seu contexto mesológico e psicológico, para assim me exprimir.

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O canto alentejano reflecte incontestavelmente o génio a um tempo altaneiro, caprichoso e, digamos, introvertido das populações que habitam o planalto, do mesmo modo que o seu habitat, que não deixa de se assemelhar a uma vasta e simultaneamente severa estepa. Testemunha ele uma vivência estética colectiva, que pode atrair a atenção tanto do sociólogo como do musicólogo. Já o escrevi, e permita-se-me que o repita aqui:

"Em meu parecer, o povo alentejano é o mais musical da gente portuguesa, entendendo-se por aí a sua disposição ou a sua capacidade natural para se traduzir e consciencializar em canto, a sua rara espontaneidade mélica, enfim, aquilo a que poderemos chamar a sua temperamental disponibilidade lírica, que o leva a achar boas todas as ocasiões, todos os pretextos, para dar largas à sua inata musicalidade. E, porventura, mais do que isso: a gravidade que põe no acto de cantar, para ele verdadeiro acto de identificação colectiva, de comunhão espiritual com os do seu sangue e da sua pátria, para onde quer que vá, onde quer que se encontre. Em roda, os olhos cerrados, expressão concentrada do rosto, o mais das vezes ombro a ombro ou braços com braços em ondulada movimentação, assim entoam os ganhões alentejanos os seus cantos. E é como se cumprissem um antigo e necessário ritual." E agora têm a palavra - a palavra cantada, decerto mais aliciante do que a palavra falada - os amigos do grupo coral Capricho Bejense."

(Fernando Lopes Graça, extracto da palestra Acena do canto alentejano proferida em 1968 e inserta no vol. XIII, pp. 225-229 das Obras literárias. Lisboa, Edições Cosmos, 1973)

ESTUDOS

"Na pequena região de entre Beja e a raia, que compreende Serpa, Moura, e alguns sítios mais humildes,

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conservou-se uma tradição de cantar a três partes, que não tem paralelo na minha experiência de qualquer país. Tentativas rudimentares de harmonização, geralmente em terças e sextas, aparecem em várias partes de Portugal, como de outras terras... Mas o cantar de Serpa é mais complexo do que isto. As vozes, alternadamente, cantavam a melodia, mantinham longas notas, ou vagueavam em devaneios melódicos acima da própria melodia."

(Rodney Gallop, Cantares do Povo Português, Lisboa, Instituto de Alta Cultura,
1937, p. 30)

"Nesse domingo de Páscoa, Beja folgava com balhos caseiros e apreciava nas adegas os despiques à viola e as modas dobradas, pianinhas, entoadas por trabalhadores rurais.

(...) Cantava-s e por toda a cidade a moda:

Ai... ai... ai..., Santinha, santinha, Foge à tua mãe Que eu fujo à minha.

A musicalidade destes corais, como se fora a projecção músico-espiritual das linhas alongadas das searas ondulantes, da enfuziada dos ventos de abril, ou do esmaecer dos trigais; esta paisagem exuberante de luminosidade, quando a terra esmarelecida após o foiçar das ceifas, agostada, desnuda o espacejar dos "montes", das povoações; o silêncio da planura, não o ermo estéril para o adventício, mas o interregno da sua fecundidade, tudo isto entusiasmava...

Certa noite - em Baleizão - após a ceia, andavam na arruada. O grupo caminhava vagaroso, em fileira única, encostados os homens ombro a ombro, entre o casario-bloco aferrolhado, com as silhuetas das chaminés aprumadas.

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(...) Talvez porque uma educação musical nos revelara a beleza melódica dos andantes clássicos, ao ouvir estes coros de alentejanos - dos quais alguns temas se poderiam desenvolver em andamentos lentos de sinfonias - não repetimos as frases feitas em seu desprimor, apodando-os de lúgubres, árabes, monótonos, música de cantochão, etc...

No Baixo Alentejo, os corais são a natural exteriorização dos que sentem a necessidade de não estar sozinhos e, cantando agrupados, se livram daquele silêncio amarfanhador das planícies despovoadas..."

(Armando Leça, Baixo Alentejo, in Música Popular Portuguesa, Porto, Domingos Barreira, s. á, pp. 21-40)

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O ESCAFANDRO E A BORBOLETA
Jean-Dominique Bauby


Esta obra foi publicada originalmente em francês com o título
LE SCAPHANDRE ET LE PAPILLON, por Robert Laffont, Paris, em 1997


1a edição
julho de 1997
Tradução
Ivone Castilho Benedetti


Revisão gráfica – Eliane Rodrigues de Abreu
Produção gráfica – Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos – Studio 3 Desenvolvimento Editorial
Capa – Kátia Harumi Terasaka

SEMPRE-LENDO O MELHOR GRUPO DE TROCA DE LIVROS DA INTERNET



Para Théophile e Celeste,
com os desejos de muitas borboletas.

Quero expressar minha
gratidão a Claude Mendibil,
cujo papel primordial na
realização deste livro será
compreendido por quantos
lerem suas páginas.

PRÓLOGO
Por trás da cortina de tecido rendado a claridade leitosa anuncia que a manhãzinha vem
chegando. Meus calcanhares doem, minha cabeça é uma bigorna, e meu corpo está
encerrado numa espécie de escafandro. Devagarinho, meu quarto vai saindo da penumbra.
Olho detidamente as fotos dos entes queridos, os desenhos das crianças, os cartazes, o
pequeno ciclista em folha-de-flandres, enviado por um amigo às vésperas da Paris-
Roubaix, e a trave que coroa o leito onde me encontro incrustado há seis meses, como um
Bernardo-eremita em seu rochedo.
Não preciso pensar muito tempo para saber onde estou e lembrar que minha vida deu uma
guinada no dia 8 de dezembro do ano passado, uma sexta-feira.
Até então, nunca tinha ouvido falar em tronco encefálico. Naquele dia descobri de chapa
essa peça mestra do nosso computador de bordo, passagem obrigatória entre o encéfalo e
as terminações nervosas, quando um acidente vascular cerebral pôs o tal tronco fora do
circuito. Antes, davam a isso o nome de "congestão cerebral", e a gente morria, pura e
simplesmente. O progresso das técnicas de reanimação sofisticou a punição. Escapamos,
mas "brindados" por aquilo que a medicina anglo-saxônica batizou com justiça de locked-
in syndrome: paralisado dos pés à cabeça, o paciente fica trancado no interior de si
mesmo com o espírito intato, tendo os batimentos de sua pálpebra esquerda como único
meio de comunicação.
Evidentemente, o principal interessado é o último que fica a par desse indulto. Quanto a
mim, tive direito a vinte dias de coma e a algumas semanas de brumas antes de perceber
realmente a extensão dos estragos. Foi só no fim de janeiro que emergi de fato neste
quarto 119 do Hospital de Berck, à beira-mar, onde penetram agora os primeiros clarões
da aurora.
Vai ser uma manhã comum. Às sete horas, o carrilhão da capela recomeça a marcar a
fuga do tempo, de quinze em quinze minutos. Depois da trégua da noite, meus brônquios
obstruídos recomeçam a roncar ruidosamente. Crispadas sobre o lençol amarelo, minhas
mãos me fazem sofrer, sem que eu consiga determinar se estão queimando ou enregeladas.
Para combater a ancilose, ponho em ação um movimento reflexo de estiramento que move
braços e pernas em alguns milímetros. Isso às vezes basta para aliviar um membro
dolorido.
O escafandro já não oprime tanto, e o espírito pode vaguear como borboleta. Há tanta
coisa para fazer. Pode-se voar pelo espaço ou pelo tempo, partir para a Terra do Fogo ou
para a corte do rei Midas.
Pode-se visitar a mulher amada, resvalar para junto dela e acariciar-lhe o rosto ainda
adormecido. Construir castelos de vento, conquistar o Velocino de Ouro, descobrir a
Atlântida, realizar os sonhos da infância e as fantasias da idade adulta.
Chega de dispersão. Preciso compor o início destes cadernos de viagem imóvel e estar
pronto para quando o enviado de meu editor vier tomar o ditado, letra por letra. Na minha
mente, remôo dez vezes cada frase, elimino uma palavra, junto um adjetivo e decoro meu
texto, parágrafo após parágrafo.
Sete e meia. A enfermeira de plantão interrompe o curso de meus pensamentos. Segundo
um ritual bem preciso, ela abre a cortina, verifica traqueotomia e gotejamento, e liga o
televisor para que eu veja o noticiário. Por enquanto, um desenho animado conta a
história do sapo mais veloz do Oeste. E se eu formulasse o desejo de ser transformado em
sapo?

































A CADEIRA
Nunca tinha visto tanto avental branco neste meu quarto tão pequeno. Enfermeiras,
auxiliares de enfermagem, fisioterapeuta, psicóloga, ergoterapeuta, neurologista, internos e
até o chefão do setor, todo o hospital se deslocara para a ocasião. Quando entraram
empurrando o engenho até minha cama, achei que um novo locatário viria tomar posse do
local. Instalado em Berck havia algumas semanas, a cada dia eu abordava um pouco mais a
periferia da consciência, mas não imaginava que relação poderia existir entre mim e uma
cadeira de rodas.
Ninguém ainda me pintara um quadro exato da situação, e, a partir de pedaços de conversas
pescados aqui e ali, eu forjara a certeza de que logo recobraria fala e movimentos.
Meu espírito mundeiro até fazia mil projetos: um romance, viagens, uma peça de teatro e a
comercialização de um coquetel de frutas de minha invenção. Não me peçam a receita, que
esqueci. Logo em seguida me vestiram. "Ajuda a levantar o moral", disse sentenciosamente
a neurologista. Depois da camisola de náilon amarelo, de fato me daria prazer voltar a usar
uma camisa xadrez, velhas calças e o pulôver deformado, não fosse o pesadelo de vesti-los.
Ou melhor, de vê-los passar, depois de mil contorções, por cima desse corpo flácido e
desarticulado que não me pertence mais senão para me fazer sofrer.
Quando fiquei prontinho, o ritual pôde começar. Dois gaiatos me agarraram pelos ombros e
pelos pés, me levantaram da cama e me depuseram na cadeira, sem grandes delicadezas. De
simples doente eu me transformara em inválido, assim como em tauromaquia o novillero se
transforma em torero depois de passar pela cerimônia da alternativa. Não me aplaudiram,
mas quase. Meus padrinhos me levaram a dar uma volta pelo andar, para confirmar se
aquela posição não provocava espasmos incontroláveis, mas eu fiquei bem quieto,
ocupadíssimo que estava em avaliar a brutal depreciação de minhas perspectivas para o
futuro. Só precisaram mesmo calçar minha cabeça com uma almofada especial, pois eu
cabeceava como mulher africana, quando lhe tiram a pirâmide de argolas que lhe esticou o
pescoço anos a fio. "Você se deu bem com a cadeira", comentou o ergoterapeuta com um
sorriso que pretendia conferir caráter de boa notícia àquelas palavras, mas elas na verdade
soavam para mim como um veredicto. De súbito eu entrevia a assombrosa realidade. Tão
ofuscante quanto um cogumelo atômico. Mais cortante que uma lâmina de guilhotina.
Foram todos embora, três auxiliares de enfermagem me puseram de volta na cama, e eu
pensei naqueles gangsters do cinema noir, que penam para meter no porta-malas o cadáver
do importuno que acabaram de apagar. A cadeira ficou num canto, com jeito de
abandonada, com minhas roupas jogadas no encosto de plástico azul-escuro. Antes que o
último avental branco saísse, fiz sinal para que ligasse a TV bem baixinho. Estavam
passando "Números e Letras", programa preferido do meu pai. Desde manhã uma chuva
ininterrupta escorria pela vidraça.
A PRECE
Afinal de contas o choque da cadeira foi salutar. As coisas ficaram mais claras. Não fiz
mais castelos no ar e pude liberar do silêncio os amigos que erguiam uma barreira afetuosa
em torno de mim desde o tal acidente. Como o assunto não era mais tabu, começamos a
falar da locked-in syndrome. Para começar, é uma raridade. Não consola muito, mas a
chance de cair nessa cilada infernal é a mesma que se tem de ganhar a acumulada da loto.
Em Berck, somos apenas dois com esses sintomas, e ainda por cima a minha L.I.S. (1) não
é muito católica. Peco por conseguir virar a cabeça, o que em princípio não está previsto no
quadro clínico. Como na maioria dos casos o paciente fica entregue à vida vegetativa, a
evolução dessa patologia não é muito conhecida. Sabe-se apenas que, se o sistema nervoso
resolver voltar a funcionar, isso vai acontecer na velocidade com que um cabelo cresceria a
partir da base do encéfalo. Portanto, ainda podem transcorrer alguns anos antes que eu
consiga mexer os dedos dos pés.
Na verdade, é na região das vias respiratórias que devem ser esperadas eventuais melhoras.
A longo prazo, há a esperança de recuperar maior normalidade alimentar, sem uso de sonda
gástrica, respiração natural e algum soprozinho que ponha para vibrar as cordas vocais.
Por ora, eu seria o mais feliz dos homens se conseguisse engolir
convenientemente o excesso de saliva que me invade a boca sem parar. O dia
ainda não raiou, e eu já estou exercitando a língua, fazendo-a deslizar pela parte
de trás do céu da boca para provocar o reflexo da deglutição. Além do mais,
consagrei à minha laringe os saquinhos de incenso que estão dependurados na
parede, ex-votos trazidos do Japão por amigas viageiras e crentes. É uma das
pedras do monumento de ação de graças erigido pelos que me cercam, ao sabor
das peregrinações. Em todas as latitudes terão sido invocados em meu favor os
espíritos mais diversos. Tento pôr um pouco de ordem nesse vasto movimento de
almas. Se eu for informado de que, em minha intenção, algumas velas foram
acesas numa capela bretã ou foi entoado algum mantra num templo nepalês,
imediatamente designo um objetivo preciso para essas manifestações espirituais.
Foi assim que confiei meu olho direito a um marabu camaronês, a quem uma
amiga delegou a tarefa de obter para mim a mansuetude dos deuses africanos.
Quanto aos problemas de audição, recorro às boas relações que uma sogra de
coração devoto mantém com os monges de uma confraria de Bordeaux. A mim
eles dedicam regularmente seus rosários, e eu às vezes entro furtivamente na
abadia para ouvir os cânticos subirem rumo aos céus. Isso ainda não deu
nenhum resultado extraordinário, mas, quando sete irmãos da mesma ordem


(1) L.I.S.: Locked-in syndrome.
foram assassinados por fanáticos islamitas, tive dor de ouvidos durante vários dias.
Contudo, essas grandes proteções não passam de muralhas de argila, de muros de areia, de
linhas Maginot, perto da oraçãozinha que minha filha Celeste recita todas as noites a seu
Senhor, antes de dormir. Como adormecemos mais ou menos na mesma hora, embarco para
o reino dos sonhos com esse maravilhoso viático que me livra de todos os encontros
funestos.









































O BANHO
Às oito e meia chega a fisioterapeuta. Silhueta esportiva e perfil de moeda romana, Brigitte
vem pôr para funcionar braços e pernas conquistados pela ancilose. Dão a isso o nome de
"mobilização", e essa terminologia marcial é ridícula diante da magreza da tropa: trinta
quilos a menos em vinte semanas. Eu não esperava um resultado desses quando entrei em
regime, oito dias antes do tal acidente. De passagem, Brigitte verifica se algum
estremecimento porventura não vem anunciar uma melhora. "Tente agarrar minha mão",
pede ela. Como às vezes tenho a ilusão de estar movimentando os dedos, concentro minha
energia para esmagar-lhe as falanges, mas nada se mexe, e ela deposita minha mão inerte
sobre o quadrado de espuma que lhe serve de estojo. Na verdade, as únicas mudanças
dizem respeito à cabeça. Agora já posso fazê-la girar noventa graus, e meu campo visual
vai do telhado de ardósia do prédio vizinho ao curioso Mickey de língua pendente que meu
filho Théophile desenhou quando eu ainda não conseguia entreabrir a boca. À força de
exercícios, chegamos agora ao ponto de nela conseguir introduzir uma chupeta. Como disse
a neurologista: "É preciso ter muita paciência." A sessão de fisioterapia termina com uma
massagem facial. Com seus dedos tépidos, Brigitte percorre todo o meu rosto, a zona
estéril, que me parece ter consistência de pergaminho, e a parte inervada, onde ainda
consigo franzir uma sobrancelha. Como a linha de demarcação passa pela boca, só esboço
meios sorrisos, o que corresponde razoavelmente às flutuações do meu humor. Assim, um
episódio doméstico como a toalete pode inspirar em mim sentimentos variados.
Num dia, acho divertido, aos quarenta e quatro anos, estar sendo lavado, revirado,
esfregado e posto em cueiros como um bebê. Em plena regressão infantil, chego até a sentir
nisso um vago prazer. No dia seguinte. Tudo isso me parece patético ao extremo, e uma
lágrima rola pela espuma do creme de barbear que um atendente espalha sobre minhas
faces. O banho semanal, então me imerge ao mesmo tempo em abatimento e felicidade. Ao
delicioso instante em que mergulho na banheira logo sucede a saudade dos grandes banhos
que eram o luxo da minha antiga vida. Munido de uma xícara de chá ou de um uísque, de
um bom livro ou de uma pilha de jornais, eu me deixava estar de molho muito tempo, a
manobrar as torneiras com os dedos dos pés. São poucos os momentos em que, lembrando
esses prazeres, sinto com tanta crueldade a minha condição atual. Felizmente, não tenho
tempo de me aprofundar. Logo me levam de volta ao quarto, a tremelicar sobre uma maca
confortável como cama de faquir. É preciso estar vestido dos pés à cabeça até as dez e
meia, pronto para descer à sala de reabilitação. Recusando-me a adotar o infame estilo
jogging recomendado pela casa, retorno minhas velhas roupas de estudante anacrônico.
Assim como o banho, meus velhos coletes poderiam abrir pistas dolorosas em minha
memória. Mas neles prefiro ver um símbolo de que a vida continua. E a prova de que
desejo continuar sendo eu mesmo. Já que é para babar, que seja em cashmere.

O ALFABETO
Gosto muito das letras do meu alfabeto. À noite, quando a escuridão é demais, e o único
vestígio de vida é o pontinho vermelho da luzinha do televisor, vogais e consoantes dançam
para mim uma farândola de Charles Trenet: "De Venise, ville exquise, j'ai gardé lê doux
souvenir..." De mãos dadas, elas atravessam o quarto, giram em torno da cama, percorrem a
janela, serpeiam sobre a parede, vão até a porta e saem para dar uma volta.
E S A R I N T U L O M D P C F B V H G J Q Z Y X K W
A aparente desordem desse alegre desfile não é fruto do acaso, mas de cálculos inteligentes.
Mais que um alfabeto, é uma hit-parade em que cada letra é classificada em função de sua
freqüência na língua francesa. Assim, o E vai caracolando na frente, e o W enganchado
atrás para não ser largado pelo pelotão. O B bronqueia porque ficou perto do V, com o qual
é sempre confundido. O orgulhoso J se espanta por estar tão longe, ele que começa tantas
frases (1). Envergonhado porque o H não hesitou em lhe roubar o lugar, o gordo G vai
grunhindo de raiva, e, o tempo todo no "tu lá tu cá", o T e o U saboreiam o prazer de não
terem sido separados. Toda essa reclassificação tem um porquê: facilitar a tarefa de todos
os que quiserem tentar comunicar-se diretamente comigo.
O sistema é bem rudimentar. Meu interlocutor desfia diante de mim o alfabeto versão
ESA... até que, com uma piscada, eu o detenha na letra que é preciso anotar. Aí recomeça a
mesma manobra para as letras seguintes e, não havendo erro, depressinha conseguimos uma
palavra inteira, depois segmentos de frases mais ou menos inteligíveis. Essa é a teoria, as
instruções de uso, a nota explicativa. Mas há a prática, a irreflexão de uns e o bom senso de
outros. Nem todos agem da mesma maneira diante do código, como também se chama esse
método de tradução de meus pensamentos. Quem costuma fazer palavras cruzadas e jogar
mexe-mexe ganha disparado. As garotas se saem melhor que os garotos. De tanto praticar,
algumas conhecem o jogo de cor e nem usam o sacrossanto caderno, metade memento, para
lembrar a ordem das letras, metade bloco de notas, onde são registradas todas as minhas
frases, como oráculos de pitonisa.
Aliás, eu me pergunto a que conclusões chegarão os etnólogos do ano três mil, se por acaso
folhearem esses cadernos onde se encontram, de cambulhada, numa mesma página, frases
como: "A físio está grávida", "Principalmente nas pernas", "É Arthur Rimbaud", e "A
França jogou mal pra burro". Tudo isso entremeado de patacoadas incompreensíveis,
palavras mal compostas, letras perdidas e sílabas desarrimadas.

(1) Alusão ao pronome je (eu). (N.do T.)
Os emotivos são os que se perdem mais depressa. Com a voz em surdina, adivinham o
alfabeto a mil por hora, anotam algumas letras a esmo e, diante do resultado sem pé nem
cabeça, exclamam com o maior descaro: "Sou uma nulidade!" Afinal de contas, até que é
repousante, pois eles acabam assumindo toda a conversa, fazendo perguntas e dando
respostas sem que eu precise ficar instigando. Tenho mais medo dos evasivos. Se pergunto:
"Como vai?", respondem "Bem", e no ato já me passam a jogada. Com esses, o alfabeto
vira tiro de barragem, e é preciso ter duas ou três perguntas prontas de antemão para não
soçobrar. Os pés-de-boi é que nunca se enganam. Anotam todas as letras,
escrupulosamente, e nunca procuram penetrar o mistério de uma frase antes que ela esteja
terminada. Nem pensar em completar uma palavra sequer. Com o pescoço na forca eles não
acrescentarão por iniciativa própria o "melo" ao "cogu", o "mico" que segue o "atô" e o
"nável" sem o qual não há como acabar o "intermi" nem o "abomi". Essa lentidão torna o
processo enfadonho, mas pelo menos são evitados os contra-sensos em que se atolam os
impulsivos quando deixam de confirmar suas intuições. No entanto, entendi a poesia desses
trocadilhos no dia em que, como eu pedisse meus óculos (lunettes), alguém me perguntou
com grande elegância o que eu queria fazer com a lua (lune)...





























A IMPERATRIZ
Já não há muitos lugares na França onde se cultiva a memória da imperatriz Eugênia. Na
grande galeria do Hospital de Berck, espaço imenso e sonoro por onde cinco carrinhos ou
cadeiras de rodas podem rolar lado a lado, uma vitrina lembra que a esposa de Napoleão III
foi madrinha do estabelecimento. As duas principais curiosidades desse micromuseu são
um busto em mármore branco, que nos restitui, no viço da juventude, essa alteza decaída
que morreu aos noventa e quatro anos, meio século depois do fim do Segundo Império, e a
carta em que subchefe da estação de Berck conta ao diretor do Correspondant maritime a
curta visita imperial de 4 de maio de 1864. Dá até para ver a chegada do trem especial, o
rebuliço das jovens que acompanham Eugênia, a travessia da cidade pelo alegre cortejo e,
no hospital, a apresentação dos pequenos pacientes à sua ilustre protetora. Durante certo
tempo, não perdi nenhuma oportunidade de ir cumprir minhas devoções diante daquelas
relíquias.
Vinte vezes reli a narrativa do ferroviário. Misturava-me ao bando tagarela das damas de
honra e, enquanto Eugênia passava de um pavilhão ao outro, eu ia seguindo seu chapéu de
fitas amarelas, sua sombrinha de tafetá e o rastro deixado pela água-de-colônia do
perfumista da corte. Em certo dia de muito vento ousei aproximar-me e enterrar a cabeça
nas pregas de seu vestido de gaze branca, com largas listras acetinadas. Era macio como
creme de leite batido, tinha o frescor do orvalho da manhã. Ela não me repeliu. Passou os
dedos pelos meus cabelos e disse baixinho: "Coragem, meu filho, é preciso ter muita
paciência", com um sotaque espanhol parecido com o da neurologista. Não era mais a
imperatriz dos franceses, mas uma divindade consoladora no estilo de Santa Rita, padroeira
das causas perdidas.
Depois disso, certa tarde em que confiava minhas tristezas ao seu retrato, uma figura
desconhecida veio intrometer-se entre nós dois. Num reflexo da vitrina apareceu um rosto
de homem que parecia ter pernoitado em barril de dioxina. A boca era torta, o nariz
amarrotado, o cabelo desgrenhado, o olhar apavorado. Um olho estava costurado, e o outro
arregalado como o olho de Caim. Por um minuto fixei aquela pupila dilatada sem entender
que simplesmente era eu mesmo.
Fui então invadido por estranha euforia. Não só estava exilado, paralisado, mudo, meio
surdo, privado de todos os prazeres e reduzido a uma existência de medusa, como também
estava horroroso de se ver. Fui tomado pelo acesso de riso nervoso que o acúmulo de
catástrofes sempre acaba por provocar quando decidimos tratar o último golpe do destino
como piada. Meus estertores de bom humor inicialmente desconcertaram Eugênia, até que
ela cedeu ao contágio de minha hilaridade. Rimos até chorar. A fanfarra municipal
começou então a tocar uma valsa e eu estava tão alegre que até me levantaria para convidar
Eugênia a dançar se isso fosse de molde. Teríamos volteado sobre os quilômetros de
ladrilhos. Desde esses acontecimentos, quando enveredo pela grande galeria, parece-me
entrever na imperatriz certo arzinho maroto.













































CINECITTÀ
Para os barulhentos ultraleves que sobrevoam a cote d'Opale, a cem metros de altitude, o
Hospital de Berck oferece um espetáculo fascinante. Com suas formas maciças e
complicadas, as paredes altas de tijolo marrom no estilo das casas do Norte, ele parece ter
caído no meio da areia, entre a cidade de Berck e as águas acinzentadas do canal da
Mancha. No frontão da fachada mais bonita pode-se ler: "Cidade de Paris", como nos
banhos públicos e nas escolas comunais da capital. Criado no Segundo Império para as
crianças doentes que não podiam contar com um clima reparador nos hospitais parisienses,
esse anexo conservou o status de extra-territorialidade.
Se a realidade nos situa em Pás-de-Calais, para a Assistência Pública estamos às margens
do Sena.
Interligados por passadiços intermináveis, os prédios formam um verdadeiro labirinto, e
não é raro cruzar com um paciente de Ménard perdido em Sorrel, nomes de dois famosos
cirurgiões que servem para designar os principais pavilhões. Os infelizes têm olhar de
criança arrancada aos braços da mãe e, tremendo sobre as muletas, vão proferindo
pateticamente "Estou perdido!". Eu, que sou um "Sorrel", como dizem os padioleiros, por
aqui me oriento muito bem, mas isso nem sempre acontece com os amigos que me
rebocam, e eu já peguei o costume de permanecer impassível diante dos tropeços dos
neófitos quando nos entranhamos em caminho errado. Essa pode ser uma oportunidade de
descobrir um recanto desconhecido, de entrever rostos novos, de roubar de passagem um
odor de cozinha. Foi assim que deparei com o farol numa das primeiras vezes em que
empurravam minha cadeira de rodas, logo depois que saí das brumas do coma. Ele apareceu
na virada de uma caixa de escada por onde andávamos perdidos: aprumado, robusto e
protetor com sua libré de listras vermelhas e azuis que lembra malha de rúgbi.
Imediatamente me pus sob a proteção desse símbolo fraterno que vela pelos marinheiros e
pelos doentes, estes náufragos da solidão.
Estamos em contato permanente, e eu lhe faço visitas freqüentes sempre que me conduzem
à Cinecittà, região essencial de minha geografia imaginária do hospital. Cinecittà são os
terraços sempre desertos do pavilhão Sorrel. Voltados para o sul, esses vastos balcões dão
para um panorama de onde emana o encanto poético e defasado dos cenários de cinema. Os
arrabaldes de Berck parecem maquete para trem elétrico. Ao pé das dunas, algumas
barracas dão a ilusão de cidade fantasma do Far West. Quanto ao mar, sua espuma é tão
branca que ele parece saído de um estúdio de efeitos especiais.
Eu passaria dias inteiros em Cinecittà. Ali sou o maior realizador de todos os tempos. No
lado da cidade, filmo de novo o primeiro plano de A marca da maldade. Na praia, refaço os
travellings de No tempo das diligências, e em alto-mar recrio a tempestade dos
contrabandistas de Moonfleet. Ou então me dissolvo na paisagem, e nada mais tenho para
ligar-me ao mundo além de uma mão amiga a acariciar-me os dedos adormecidos. Sou
Pierrot le fou, com o rosto pintado de azul e um rosário de dinamite enrolado na cabeça. A
tentação de riscar um fósforo passa com a velocidade de uma nuvem. Além do mais, é a
hora em que o dia declina, em que o último trem parte para Paris, em que é preciso voltar
para o quarto. Espero o inverno. Bem agasalhados, poderemos ficar até a noite, ver o sol se
pôr e o farol tomar-lhe o lugar, lançando clarões de esperança para todos os horizontes.







































OS TURISTAS
Depois de receber, logo após a guerra, as pequenas vítimas das últimas devastações da
tuberculose, Berck foi abandonando aos poucos sua vocação infantil. Pode-se dizer que
hoje ele combate mais as misérias da velhice, inexorável deterioração do corpo e do
espírito, porém a geriatria é apenas uma parte do afresco que se deve esboçar para dar uma
idéia exata da clientela do estabelecimento. Numa das extremidades do quadro há uns vinte
comas permanentes, pobres diabos imersos numa noite sem fim, às portas da morte. Nunca
saem do quarto. No entanto, todos sabem que estão lá, e eles pesam estranhamente na
coletividade, como consciência pesada. No extremo oposto, ao lado da colônia de velhinhos
desvalidos, encontram-se alguns obesos de aparência feroz, cujas consideráveis dimensões
a medicina espera reduzir. No centro, um impressionante batalhão de estropiados constitui
o grosso da tropa. Salvados do esporte, das estradas e de todos os tipos de acidentes
domésticos possíveis e imagináveis, eles transitam por Berck durante o tempo necessário ao
conserto de seus membros quebrados. Chamo-s de "turistas".
Finalmente, se quisermos que o quadro fique completo, será preciso escolher um canto para
nós, voadores de asas quebradas, papagaios sem voz, aves de mau agouro que fizemos
nosso ninho num dos corredores sem saída do setor de neurologia. Evidentemente,
enfeamos a paisagem. Sei muito bem do leve mal-estar que provocamos quando, rígidos e
silenciosos, atravessamos um círculo de doentes menos desfavorecidos.
Para observar esse fenômeno, o melhor posto é a sala de fisioterapia, onde ficam
misturados todos os pacientes que fazem exercícios de reabilitação. É um verdadeiro Pátio
dos Milagres, ruidoso e colorido. Em meio à algazarra de talas, próteses e aparelhos mais
ou menos complexos, convive-se com um rapaz de brinco que se arrebentou na moto, uma
vovozinha de agasalho esportivo fluorescente que está reaprendendo a andar depois que
caiu de um banquinho, e um meio-mendigo que ninguém ainda entendeu direito como
conseguiu que o metrô lhe arrancasse um pé. Em perfeito alinhamento, essa humanidade
agita braços e pernas debaixo de uma vigilância relaxada, enquanto eu fico amarrado a um
plano inclinado que vai sendo progressivamente posto na vertical. Assim, todas as manhãs
passo meia hora suspenso, numa hierática posição de sentido que lembra a aparição da
estátua do Comendador no último ato do Don Giovanni de Mozart. Lá embaixo, risos,
piadas, interpelações. Gostaria de estar fazendo parte de toda aquela alegria, mas, assim que
pouso meu único olho sobre eles, rapaz, vovó, mendigo, todos viram a cabeça e sentem
uma necessidade urgente de contemplar o detector de incêndio que está preso ao teto. Os
"turistas" devem ter muito medo de fogo.



O SALAME
Todos os dias, depois da sessão de verticalização, um padioleiro me tira da sala de
fisioterapia e me estaciona no quarto, onde fico à espera de algum atendente que venha me
pôr na cama. E todos os dias, meio-dia cravado, o mesmo padioleiro me lança um "bom
apetite" com jovialidade calculada, jeito de se despedir até o dia seguinte. Obviamente, isso
equivale a desejar "Feliz Natal" em 15 de agosto ou "Boa noite" em pleno dia! Em oito
meses, não engoli nada mais nada menos que algumas gotas de água com limão e meia
colher de iogurte, que se extraviou ruidosamente pelas vias respiratórias. O ensaio
alimentar, como foi enfaticamente batizado esse banquete, não se revelou satisfatório. Mas,
que ninguém se preocupe, nem por isso estou morto de fome. Através de uma sonda que
chega até o estômago, dois ou três frascos de uma substância amarronzada suprem as
minhas necessidades calóricas cotidianas. Quanto ao prazer, apelo para a lembrança viva de
sabores e odores, inesgotável reservatório de sensações. Não existia a arte de bem
aproveitar os restos? Eu cultivo a de cozinhar lembranças em fogo lento. Posso sentar-me à
mesa a qualquer hora, sem etiqueta. Se for um restaurante, não há necessidade de reserva.
Se sou eu que cozinho, tudo sai ótimo. O bourguignon está macio, o bife en gelée
translúcido, e a torta de damasco tem o grau certo de acidez. Dependendo do humor,
ofereço-me uma dezena de escargots, um chucrute garni e uma garrafa do dourado
gewurtztraminer "Cuvée vendanges tardives"; ou então degusto um simples ovo quente
onde mergulho palitos de pão com manteiga salgada. Que regalo! A gema vai invadindo o
céu da boca e a garganta no seu escoar longo e tépido. E nunca tenho problemas de
digestão. Evidentemente, emprego os melhores produtos: legumes fresquíssimos, peixes
recém-pescados, carnes muito bem temperadas. Tudo deve ser preparado como manda o
figurino. Para maior segurança, um amigo me mandou a receita da verdadeira andouillette
de Troyes, com três carnes diferentes em embutido fino. Também respeito
escrupulosamente o ritmo das estações. Por ora, refresco-me as papilas com melão e frutos
vermelhos. As ostras e as carnes ficam para o outono, se continuar a vontade, pois estou
ficando moderado, pode-se dizer até ascético. No começo deste longo jejum, a falta que
sentia me impelia a visitar continuamente o meu guarda-comida imaginário. Era uma
verdadeira bulimia. Hoje, poderia quase ficar satisfeito com o salame artesanal que,
amarrado em seu barbante, está sempre a pender num cantinho da minha cabeça. Um
rosette de Lyon de forma irregular. Deixo cada pedaço amolecer um pouco sobre a língua
antes de mastigar, para extrair bem todo o sabor. Essa delícia também é um objeto sagrado,
um fetiche cuja história data de quase quarenta anos. Eu ainda estava na idade das balinhas,
mas já preferia a charcutaria, e a enfermeira de meu avô materno notara que, a cada uma de
minhas visitas ao sinistro apartamento do boulevard Raspail, eu pedia salame com um
encantador ceceio. Hábil na arte de lisonjear a gula de crianças e anciãos, a diligente
governanta acabou matando dois coelhos de uma vez quando me presenteou com um
salame e se casou com meu avô, que logo depois morreu. A alegria de receber um presente
daqueles foi proporcional à irritação que o casamento-surpresa causou na família. Do avô,
guardei apenas uma imagem vaga, uma silhueta deitada na penumbra com o rosto severo do
Victor Hugo das notas de quinhentos francos antigos, em uso na época. Revejo bem melhor
o salame incôngruo no meio dos meus brinquedos e de meus livros infantis.
Receio nunca mais comer nenhum melhor.









































O ANJO DA GUARDA
No crachá acolchetado ao avental branco de Sandrine, está escrito "ortofonista", mas
deveria estar "anjo da guarda". Foi ela que instaurou o código de comunicação sem o qual
eu estaria isolado do mundo. Mas que pena! Se a maioria dos meus amigos aprendeu e
adotou o sistema, aqui no hospital só Sandrine e uma psicóloga o praticam. Por isso, no
mais das vezes só conto com um magro arsenal de mímicas, piscadas e meneios da cabeça
para pedir que fechem a porta, liberem algum dreno, abaixem o som da TV ou levantem um
travesseiro. Nem sempre sou bem-sucedido. Ao longo das semanas, essa solidão forçada
me permitiu adquirir certo estoicismo e compreender que a humanidade hospitalar se divide
em dois tipos. Existe a maioria, que não passará pela soleira da porta sem tentar captar
meus SOS, e os outros, menos conscienciosos, que se eclipsam, fingindo não ver meus
sinais de desespero. Como aquele adorável cretino que desligou o televisor no meio da
partida Bordeaux-Munique, gratificando-me com um "Boa noite" sem apelação. Além dos
aspectos práticos, essa incomunicabilidade pesa um pouco. Ninguém imagina o reconforto
que sinto duas vezes por dia, quando Sandrine bate à porta, põe para dentro uma carinha de
esquilo arteiro e expulsa de uma vez todos os maus espíritos. O escafandro invisível que me
encerra o tempo todo parece menos oprimente.
A ortofonia é uma arte que merece ser conhecida. Ninguém imagina a ginástica que a
língua faz mecanicamente para produzir todos os sons do francês. Por enquanto estou
tropeçando no "L", pobre redator-chefe que não sabe mais articular o nome de seu próprio
jornal. Nos dias mais felizes, entre dois acessos de tosse, encontro fôlego e energia para
sonorizar alguns fonemas. No meu aniversário, Sandrine conseguiu me fazer pronunciar o
alfabeto de modo inteligível. Não poderiam me dar presente mais bonito.Ouvi as vinte e
seis letras arrancadas do nada por uma voz rouca, vinda das profundezas do tempo. Esse
extenuante exercício deu-me a impressão de ser um homem das cavernas em via de
descobrir a fala. O telefone às vezes interrompe os trabalhos. Valho-me de Sandrine para
ouvir a voz de algumas pessoas da família e assim apanhar no ar fragmentos de vida, como
quem caça borboletas. Minha filha Celeste conta suas cavalgadas de pônei. Daqui a cinco
meses, festeja-se seu nono aniversário. Meu pai explica a dificuldade que tem para se
manter sobre as pernas. Está atravessando valentemente seu nonagésimo terceiro ano de
vida. São esses os dois elos extremos da corrente de amor que me cerca e protege. Muitas
vezes me pergunto que efeito esses diálogos de mão única exercem sobre meus
interlocutores. A mim, transformam. A esses telefonemas carinhosos eu gostaria tanto de
não responder só com o silêncio. Que para algumas pessoas, aliás, é insuportável. A doce
Florence não fala enquanto eu não respirar ruidosamente junto ao fone, que Sandrine
mantém colado à minha orelha: "Jean-Do, você está aí?", pergunta Florence inquieta no
outro lado da linha.
Devo dizer que de vez em quando já não tenho muita certeza.
A FOTOGRAFIA
Da última vez em que vi meu pai, fiz a barba dele. Foi na semana do tal acidente. Como ele
não estivesse passando bem, dormi uma noite no seu pequeno apartamento de Paris,
próximo às Tulherias, e pela manhã, depois de lhe preparar o café-com-leite, resolvi livrá-lo
de uma barba de vários dias. Aquela cena ficou gravada em minha memória. Enterrado no
sofá de feltro vermelho, onde tem o costume de dissecar os jornais, papai enfrenta com
valentia o fogo da navalha que lhe ataca a pele distendida. Coloquei uma toalha larga em
torno de seu pescoço descarnado, espalhei uma espessa nuvem de espuma sobre seu rosto, e
tento não irritar demais sua epiderme estriada, cá e lá, por filetes de capilares rompidos. O
cansaço afundou-lhe os olhos nas órbitas, o nariz parece mais robusto em meio aos traços
emaciados, mas o homem nada perdeu de sua soberba, com o topete de cabelos brancos a
coroar desde sempre sua grande estatura. No quarto, ao nosso redor, as lembranças de sua
vida foram-se acumulando por estratos, até formar um desses cafarnauns de velhos, cujos
segredos só eles conhecem. É uma confusão de revistas antigas, discos que ninguém ouve
mais, objetos heteróclitos e fotos de todas as épocas enfiadas no caixilho de um grande
espelho. Lá estão papai, vestido de marinheiro, a empurrar uma roda na ponta de um pau,
antes da guerra de 14, minha filha de oito anos, vestida de amazona, e eu, em negativo
branco e preto batido num campo de golfe mirim. Tinha onze anos, orelhas de abano e um
ar de bom aluno meio palerma: horripilante principalmente porque eu já era um gazeteiro
contumaz.
Termino meu serviço de barbeiro aspergindo no autor de meus dias a sua loção preferida.
Depois nos dizemos até logo sem que ele me fale, sequer uma vez, na carta guardada em
sua escrivaninha, na qual estão consignados seus últimos desejos. Desde então não nos
vimos mais. Eu não saio desta minha vilegiatura em Berck, e ele, com noventa e dois anos,
não tem mais pernas que lhe permitam descer as majestosas escadarias de seu prédio.
Ambos somos uns locked-in syndrome, cada um à sua maneira: eu na minha carcaça, ele no
seu terceiro andar. Agora é a mim que precisam fazer a barba todas as manhãs, e muitas
vezes penso nele, quando um atendente me rala conscienciosamente as bochechas com uma
lâmina de oito dias. Espero ter sido um Figaro mais cuidadoso.
De vez em quando ele me telefona, e posso ouvir sua voz cálida a tremer um pouco no fone
que alguma mão valedora cola à minha orelha. Não deve ser fácil falar com um filho tendo
a certeza de que ele não vai responder. Também me mandou a foto do golfe miniatura. No
começo não entendi por quê. E o enigma teria continuado se alguém não tivesse tido a idéia
de olhar o verso da revelação.Na minha tela de cinema interior começaram a desfilar as
imagens esquecidas de um fim de semana de primavera, em que meus pais e eu fomos
tomar novos ares num povoado ventoso e não muito alegre. Com sua letra trabalhada e
regular, papai simplesmente anotou: Berck-sur-Mer, abril de 1963.
OUTRA COINCIDÊNCIA
Se perguntassem aos leitores de Alexandre Dumas em qual de suas personagens eles
gostariam de reencarnar, os votos iriam para D'Artagnan ou para Edmond Dantes, e
ninguém teria a idéia de citar Noirtier de Villefort, figura sinistra de O Conde de Monte-
Cristo. Descrito por Dumas como um cadáver de olhar vivo, homem já quase totalmente
afeiçoado para o túmulo, esse inválido profundo não faz sonhar, porém estremecer.
Depositário impotente e mudo dos mais terríveis segredos, passa a vida prostrado numa
cadeira com rodinhas, e só se comunica por piscar de olhos: uma piscadela significa sim;
duas, não. Na verdade, o paizinho Noirtier, como o chama a neta com afeição, é o primeiro
caso de locked-in syndrome, e até hoje o único, a aparecer em literatura.
Desde que meu espírito saiu da bruma espessa em que o tal acidente o mergulhou, pensei
muito no paizinho Noirtier. Eu tinha acabado de reler O Conde de Monte-Cristo, e eis que
me via no coração do livro, na mais deplorável das situações. Aquela leitura nada tinha de
casual. Eu alimentava o projeto, por certo iconoclasta, de escrever uma transposição
moderna do romance: a vingança continuaria sendo o motor da intriga, mas os fatos se
desenrolariam em nossa época, e Monte-Cristo seria mulher.
Portanto, não tive tempo de cometer esse crime de lesa-majestade. Como punição eu
preferiria ser metamorfoseado em barão Danglars, em Frantz d'Épinay, em abade Faria ou,
para encurtar a conversa, copiar dez mil vezes: não se brinca com obra-prima. A decisão
dos deuses da literatura e da neurologia foi outra.
Certas noites tenho a impressão de que o paizinho Noirtier vem patrulhar nossos
corredores, com seus longos cabelos brancos e sua velha cadeira com rodinhas, que já conta
um século e precisa de uma gota de óleo. Para desviar o rumo dos decretos do destino agora
tenho em mente uma grande saga cuja testemunha-chave é um corredor de maratona, e não
um paralítico. Nunca se sabe. Pode ser que funcione.













O SONHO
Em geral, não me lembro dos sonhos. Em contato com o dia, perco o fio da meada, e as
imagens se dissipam inexoravelmente. Então, por que aqueles sonhos de dezembro ficaram
gravados em minha memória com a precisão de um raio laser? Talvez seja uma das regras
do coma. Como não voltamos à realidade, os sonhos não têm tempo de se evaporar, mas
vão-se aglomerando e acabam formando uma longa fantasmagoria de ricochetes, como
capítulos de novela. Esta noite, um daqueles episódios acode à minha mente.
Neva forte sobre o meu sonho. Uma camada de trinta centímetros de neve cobre o cemitério
de automóveis que atravesso tiritando com meu amigo. Há três dias, Bernard e eu tentamos
voltar à França, que está paralisada por uma greve geral. Numa estação de esportes de
inverno italiana, onde fomos parar, Bernard havia encontrado um ramal de ferrovia que ia
dar em Nice, mas na fronteira uma barreira de grevistas interrompeu nossa viagem e nos
obrigou a descer em meio à tormenta usando sapatos leves e roupa de meia-estação. O
cenário é lúgubre. Um viaduto passa por cima do cemitério de automóveis, e parece que
aqueles são veículos caídos da rodovia, cinqüenta metros acima, ali amontados, uns sobre
os outros. Temos encontro marcado com um poderoso empresário italiano, que instalou seu
QG numa das pilastras de tal ponte, longe dos olhares indiscretos. Precisamos bater a uma
porta de ferro amarelo que tem um aviso: PERIGO DE VIDA, com esquemas de socorro
aos eletrocutados. A porta se abre. A entrada lembra os estoques de uma confecção de
roupas: vestidos em cabideiros, pilhas de calças, caixas de camisas. Até o teto. Pelo
cabelame, reconheço o cérbero em roupa de guerra que nos acolhe de metralhadora em
punho. É Radovan Karadzic, o líder sérvio. "Meu amigo não consegue respirar", diz-lhe
Bernard. Karadzic me faz uma traqueotomia num canto de mesa, depois nós descemos para
o subsolo por uma luxuosa escadaria de vidro. As paredes forradas de couro fulvo, os sofás
profundos e a iluminação velada dão ao escritório um ar de boate. Bernard discute com o
dono do lugar, um clone de Gianni Agnelli, o elegante dono da Fiat, enquanto uma
aeromoça com sotaque libanês me instala junto a um barzinho. Copos e garrafas foram
substituídos por tubos de plástico dependurados do teto, como as máscaras de oxigênio dos
aviões em perigo. Um barman me acena para que eu ponha um na boca. Obedeço. Um
líquido âmbar com gosto de gengibre começa a escorrer, e sou invadido por uma sensação
de calor que vai da ponta dos pés à raiz dos cabelos. Depois de certo tempo, gostaria de
parar de beber e descer um pouco do banco, mas continuo engolindo longos sorvos, incapaz
de gesto algum. Lanço olhares alucinados ao barman, para chamar sua atenção. Ele me
responde com um sorriso enigmático. Ao meu redor, rostos e vozes se deformam. Bernard
me diz alguma coisa, mas o som que sai em baixa rotação de sua boca é incompreensível.
Em vez dele, ouço o Bolero de Ravel. Fui completamente drogado.
Uma eternidade depois, percebo um alvoroço de combate. A aeromoça com sotaque libanês
me põe nas costas e me carrega escada acima. "Precisamos ir embora, a polícia está
chegando." Lá fora, a noite caiu, e não neva mais. Um vento glacial me corta a respiração.
Sobre o viaduto puseram um projetor cujo feixe luminoso vasculha as carcaças
abandonadas.
"Entreguem-se, estão cercados!", grita um megafone. Conseguimos escapar, e para mim é o
começo de uma longa perambulação. No meu sonho, bem que eu gostaria de fugir, mas, tão
logo tenho a oportunidade, um incrível torpor me impede de sequer um passo. Estou
petrificado, mumificado, vitrificado. Se o que me separa da liberdade é uma porta, não
tenho forças para abri-la. Mas essa não é a única angústia. Refém de uma seita misteriosa,
temo que meus amigos caiam na mesma cilada. Tento de todos os modos preveni-los, mas
o sonho está perfeitamente em fase com a realidade. Sou incapaz de pronunciar qualquer
palavra.
































A VOZ EM "OFF"
Tive despertares mais suaves. Quando recobrei a consciência, naquela manhã de fim de
janeiro, um homem estava inclinado sobre mim e costurava minha pálpebra direita com
linha e agulha, como se remendasse um par de meias. Fui dominado por um medo
irracional. E se, no seu ela, o oftalmo me costurasse também o olho esquerdo, único
vínculo meu com o exterior, único respiradouro do meu cárcere, a viseira do meu
escafandro? Por sorte não fui imerso na noite. Ele arrumou com cuidado o seu
materialzinho em caixas de metal forradas de algodão e, com jeito de promotor que exige
pena exemplar para um reincidente, despachou: "Seis meses". Com meu olho válido,
multipliquei os sinais interrogadores, mas o homenzinho, mesmo passando seus dias a
perscrutar a pupila alheia, ainda não tinha aprendido a ler olhares. Era o protótipo do doutor
Que-se-ferre, altivo, ríspido, arrogante, que convoca imperativamente os pacientes para a
consulta às oito, chega às nove e vai embora às nove e cinco, depois de dedicar a cada um
quarenta e cinco segundos de seu precioso tempo. Fisicamente, parecia-se com o
Pimentinha, cabeça redonda num corpo curto e agitado. Já pouco falante com o comum dos
doentes, tornava-se literalmente fugidio com os fantasmas do meu tipo, não tendo saliva
para gastar dando-nos a mínima explicação. Acabei sabendo por que ele me obturara o olho
por seis meses: a pálpebra não desempenhava mais seu papel de toldo móvel e protetor, e
minha córnea corria o risco de ulcerar-se.
Ao longo das semanas, eu meditava se o hospital por acaso não usaria de propósito um tipo
tão rebarbativo para catalisar a surda desconfiança que o corpo médico acaba por despertar
nos pacientes de longa permanência. Um bode expiatório, digamos. Se ele for embora,
como estão dizendo, de que pernóstico vou poder gozar? À sua eterna pergunta: "Está
vendo em dobro?", eu não teria mais o prazer solitário e inocente de ouvir-me a responder,
em meu foro íntimo: "Sim, estou vendo dois babacas em vez de um."
Tanto quanto de respirar, sinto necessidade de emocionar-me, amar e admirar. A carta de
um amigo, um quadro de Balthus num cartão postal, uma página de Saint-Simon dão
sentido às horas que passam. Mas, para continuar vigilante e não afundar na resignação
indiferente, conservo certa dose de furor, de detestação, nem de mais nem de menos, assim
como a panela de pressão tem sua válvula de segurança para não explodir.
Ta aí! "A panela de pressão"! Poderia ser o título de uma peça de teatro que eu talvez
escreva um dia com base na minha experiência. Também pensei em intitular O olho e,
evidentemente, O escafandro. Todos já conhecem o enredo e o cenário. O quarto de
hospital onde o senhor L., pai de família na flor da idade, aprende a viver com uma locked-
in syndrome, seqüela de grave acidente vascular cerebral. A peça conta as aventuras do
senhor L. dentro do universo médico e a evolução de suas relações com a mulher, os filhos,
os amigos e os sócios que tem na importante agência de publicidade da qual é um dos
fundadores. Ambicioso e meio cínico, não tendo até então amargado nenhum fracasso, o
senhor L. aprende o que é sofrimento, assiste à derrocada de todas as certezas de que se
escudara e descobre que seus parentes são uns desconhecidos. Pode-se assistir de camarote
a essa lenta mutação graças a uma voz em off, que reproduz o monólogo interior do senhor
L. em todas as situações. Só falta escrever a peça. Já tenho a última cena. O cenário está
mergulhado na penumbra, com exceção de um halo de luz que circunda o leito, no meio do
palco. É noite, tudo dorme. De repente, o senhor L., inerte desde que a cortina subiu, afasta
lençóis e cobertas, pula da cama e dá uma volta em cena, sob iluminação irreal. Aí, tudo
fica escuro, e ouve-se pela última vez a voz em off, o monólogo interior do senhor L.:
"Merda, era sonho."



































DIA DE SORTE
Hoje o dia mal amanheceu e o azar já ataca encarniçadamente o quarto 119. Há uma meia
hora o alarme do aparelho que serve para regular minha alimentação começou a soar no
vazio. Não conheço nada mais estúpido e desesperador que esse bip-bip lancinante que me
rói os miolos. De lambuja, a transpiração descolou o esparadrapo que fecha minha pálpebra
direita, e os cílios grudentos me pinicam dolorosamente a pupila. Finalmente, para coroar
tudo, a ponta da sonda urinária se soltou. Fiquei completamente inundado. À espera do
socorro, cantarolo cá comigo um velho refrão de Henri Salvador: "Viens donc, baby, tout
ça c'est pás grave"(1) Aliás, chegou a enfermeira. Maquinalmente, ela liga o televisor.
Propaganda. Um servidor Minitel, o "3617 Milliard", propõe-se responder à seguinte
pergunta: "Você é do tipo que fica rico?"






























(1) Vem cá, baby, nada disso tem importância. (N. do T.)

O RASTRO DA SERPENTE
Quando, por brincadeira, alguém me pergunta se planejo fazer uma peregrinação a Lourdes,
respondo que já fiz. Foi no fim dos anos setenta. Joséphine e eu estávamos vivendo um
relacionamento suficientemente complicado para tentarmos fazer juntos uma viagem
turística, um desses périplos organizados que contêm tantos germes de discórdia quantos
são os minutos de um dia. Quem parte de manhã ignorando onde vai dormir à noite e não
sabendo por qual caminho se chega a esse destino desconhecido, de duas uma: ou é muito
diplomata ou tem infinita má-fé. Joséphine, tanto quanto eu, enquadrava-se na segunda
categoria, e durante uma semana seu velho conversível azul-claro se transformou no teatro
de um drama matrimonial móvel e permanente. De Ax-les-Thermes, onde eu acabava de
concluir uma fase de caminhadas, parêntese incôngruo numa existência devotada a tudo,
menos ao esporte, até Chambre d'Amour, pequena praia da costa basca onde o tio de
Joséphine tinha uma villa, singramos uma rota tempestuosa e magnífica através dos
Pireneus, deixando atrás de nós uma esteira de "pra-começar-eu-nunca-disse-isso".
O motivo essencial de tamanho desconchavo era um grosso volume de seiscentas ou
setecentas páginas, com capa preta e vermelha, donde se destacava um título bem
chamativo. O rastro da serpente contava os feitos e as gestas de Charles Sobraj, uma
espécie de guru de estrada que fascinava e esbulhava os viajantes ocidentais pelos lados de
Bombaim ou de Katmandu. A história dessa serpente de origem franco-indiana era
verdadeira. À parte disso, eu seria incapaz de dar qualquer detalhe, e é até possível que meu
resumo seja inexato, mas me lembro bem mesmo é do domínio que Charles Sobraj exercia
sobre mim também. Se, depois de Andorra, eu ainda concordava em levantar os olhos do
livro para admirar alguma paisagem, quando chegamos ao pico Midi eu simplesmente me
recusava a descer do carro para ir dar um passeio até o observatório. É verdade que naquele
dia uma espessa névoa amarelada envolvia a montanha, diminuindo a visibilidade e o
interesse da excursão. Apesar disso, Joséphine me deixou ali plantado e foi amarrar o burro
duas horas no meio das nuvens. Seria para me desenfeitiçar que ela fazia questão de passar
por Lourdes? Como eu nunca tinha estado naquela capital mundial do milagre, aquiesci
sem opor obstáculo. De qualquer modo, na minha mente exaltada pela leitura, Charles
Sobraj confundia-se com Bernadette Soubirous, e as águas do Adour misturavam-se às do
Ganges.
No dia seguinte, depois de transpor um desfiladeiro que integra o circuito ciclístico francês,
cuja subida me pareceu extenuante mesmo de carro, entrávamos em Lourdes debaixo de um
calor sufocante. Joséphine dirigia, e eu ia no banco ao lado. E O rastro da serpente, grosso
e deformado, pompeava no assento traseiro. Desde aquela manhã eu não ousara tocá-lo, já
que Joséphine decidira que minha paixão pela tal saga exótica era uma demonstração de
desinteresse por ela. Quanto às peregrinações, era o auge da temporada, e por toda a cidade
só se lia "lotado". Apesar disso, fiz uma verdadeira operação pente-fino das reservas de
hotel, para só ver gente a dar de ombros com desdém ou a dizer "lamentamos muito
mesmo", segundo a categoria do estabelecimento. O suor colava-me a camisa às costas e –
importante – o espectro de uma nova briga já pairava sobre a nossa equipagem quando o
porteiro de um hotel da Inglaterra, da Espanha, dos Bálcans, sei lá de onde, informou uma
desistência com o tom sentencioso do tabelião que anuncia aos herdeiros a morte
inesperada de um tio na América. Sim, havia um quarto. Abstive-me de dizer "Que
milagre!", pois sentia instintivamente que ali ninguém brincava com essas coisas. O
elevador era enorme, do tamanho das padiolas, e, dez minutos depois, tomando um banho
de chuveiro, eu perceberia que nosso banheiro estava equipado para receber inválidos.
Enquanto Joséphine, por sua vez, fazia algumas das necessárias abluções, eu me atirava,
vestido apenas com uma toalha, sobre o sublime oásis de todos os sedentos: o barzinho.
Para começar, esvaziei num único gole meia garrafa de água mineral. Ó garrafa, vou sentir
para sempre aquele teu gargalo de vidro sobre meus lábios secos. Em seguida preparei uma
taça de champanhe para Joséphine e um gin-tônica para mim. Como tivesse cumprido
minha função de barman, já ensaiava furtivamente uma retomada estratégica das aventuras
de Charles Sobraj, mas, em lugar do efeito sedativo planejado, a champanhe devolveu vigor
pleno à fibra turística de Joséphine. "Vou ver Nossa Senhora", repetiu num pulo, com a
mesma veemência do escritor católico François Mauriac numa célebre foto.
E lá fomos nós para o lugar santo, debaixo de um céu pesado e ameaçador, subindo na
contracorrente uma fileira ininterrupta de cadeiras de rodas conduzidas por senhoras
caritativas que, ao que tudo indicava, não estavam no seu primeiro tetraplégico. "Se chover,
todas para a basílica!", apregoava a irmã hospitaleira que abria o cortejo com autoridade,
touca ao vento e rosário na mão. De soslaio, eu observava os doentes, mãos deformadas,
rostos fechados, pacotinhos de vida encarangados sobre si mesmos. O olhar de um deles
cruzou com o meu, e esbocei um sorriso, mas ele me mostrou a língua como resposta, e eu
senti corar estupidamente até as orelhas, como surpreendido em falta. Tênis cor-de-rosa,
jeans cor-de-rosa, camiseta cor-de-rosa, Joséphine avançava deslumbrada pelo meio de uma
massa escura: os padres franceses que ainda se vestem de padre pareciam todos ter marcado
encontro ali. Ela beirou o êxtase quando aquele coro de batinas entoou "Soyez la Madone
qu'on prie à genoux", o cântico de sua infância. Só pelo tamanho do lugar, um observador
pouco atento poderia acreditar estar nas cercanias do Parc dês Princês em noite de copa
européia.
Na grande esplanada, diante da entrada da gruta, uma fila de um quilômetro coleava ao
ritmo lancinante das ave-marias. Eu nunca tinha visto fila como aquela, a não ser talvez em
Moscou, diante do mausoléu de Lênin.
- Essa não, eu não vou pegar toda essa fila!
- É pena – retorquiu Joséphine -, faria bem para um descrente como você.
- Nada disso! É até perigoso. Imagine um cara com saúde chegando no meio de uma
aparição. Vai que acontece um milagre, e ele fica paralítico...
Umas dez cabeças se voltaram para mim, para ver quem proferia frases tão iconoclastas.
"Idiota", sussurrou Joséphine. Um temporal mudou o assunto. Já nas primeiras gotas
brotaram mil guarda-chuvas em geração espontânea, e um cheiro de poeira quente flutuou
na atmosfera.
Deixamo-nos arrastar até a basílica subterrânea onde se reza missa das seis à meia-noite,
mudando de padre a cada dois ou três ofícios. Eu havia lido num guia que a nave de
concreto, mais extensa que São Pedro, de Roma, poderia abrigar vários Jumbo Jet. Seguia
Joséphine por uma coxia onde havia bancos vagos, debaixo de um dos inumeráveis alto-
falantes que transmitiam a cerimônia com um bocado de eco. "Glória a Deus nas alturas..,
alturas.., turas..." Na hora da elevação, meu vizinho, que era um peregrino previdente, tirou
da mochila uns binóculos de turfista para acompanhar de perto as operações. Outros fiéis
portavam periscópios de ocasião, como os que se vêem em 14 de julho, na passagem do
desfile. O pai de Joséphine me contou várias vezes como começou a ganhar a vida
vendendo esse tipo de objeto na saída do metrô. O que não o impedira de tornar-se um
locutor notório. A partir daí, passou a empregar seu talento de camelô para descrever
casamentos principescos, tremores de terra e lutas de boxe. Lá fora, a chuva cessara. O ar
estava mais fresco. Joséphine pronunciou a palavra "shopping". Para fazer face àquela
eventualidade, eu já havia detectado a rua larga onde as lojas de suvenires se apinhavam
contíguas como num bazar oriental, com seus mostruários da mais extravagante coleção de
bufarinhas religiosas.
Joséphine colecionava: frascos de velhos perfumes, quadros de cenas rurais com vaca
sozinha ou em bando, pratos da comida artificial que faz as vezes de menu nas vitrinas dos
restaurantes de Tóquio e, de modo mais geral tudo o que conseguisse encontrar de mais
kitsch nas suas numerosas viagens. Aquilo foi uma verdadeira paixão à primeira vista. Na
quarta loja, calçada da esquerda, aquilo parecia estar esperando Joséphine no meio de um
mistifório de medalhas beatas, cucos suíços e travessas de queijos. Era um adorável busto
de gesso com uma auréola pisca-piscante como enfeite de árvore de Natal.
- Olha ela aí, a minha Nossa Senhora! – disse Joséphine, sapateando.
- Te dou de presente – disse eu logo, sem imaginar a soma que o vendedor ia me extorquir,
alegando que era uma peça exclusiva. Naquela noite, festejamos a tal aquisição em nosso
quarto de hotel iluminando nossas pantomimas com sua luz intermitente e sagrada. No teto,
desenhava-se uma sombra fantasmagórica.
- Viu, Joséphine, acho que, chegando em Paris, é melhor a gente se separar.
- E você pensa que eu já não tinha entendido!
- Mas Jô...

Já tinha dormido. Quando a situação lhe desagradava, tinha o dom de conseguir mergulhar
num sono instantâneo e protetor. Tirava uma licença da existência por cinco minutos ou
várias horas. Por um momento, fiquei a observar a parede por cima da cabeceira, em seu
entra-e-sai da escuridão. Que diabo poderia levar alguém a forrar todo um aposento com
juta cor de laranja?
Como Joséphine continuasse a dormir, vesti-me discretamente para dedicar-me a uma de
minhas ocupações favoritas: a perambulação noturna. Era minha maneira pessoal de lutar
contra os maus ventos: andar direto em frente, até a exaustão. No bulevar, adolescentes
holandeses emborcavam ruidosamente canecões de cerveja. Fazendo buracos em sacos de
lixo, tinham confeccionado impermeáveis para a chuva. Grades pesadas impediam o acesso
à gruta, mas através delas podia-se ver o clarão de centenas de velas que estavam acabando
de consumir-se. Bem mais tarde meu perambular levou-me de volta à rua das lojas de
suvenires. Na quarta vitrina, uma Maria idêntica já havia tomado o lugar da nossa. Então
voltei para o hotel e de bem longe vi a janela do nosso quarto a piscar em meio à penumbra.
Subi pela escada, tomando cuidado para não perturbar os sonhos do vigia da noite. O rastro
da serpente estava sobre o meu travesseiro, como uma jóia em seu estojo. "Olha só",
murmurei, "Charles Sobraj, eu tinha me esquecido completamente dele."
Reconheci a caligrafia de Joséphine. Um enorme "E" ocupava toda a página 168. Era o
início de uma mensagem que abarcava bem uns dois capítulos do livro e o tornava
completamente ilegível.
- Eu te amo, bobão. Não faça a sua Joséphine sofrer.
Felizmente, eu já tinha passado daquele ponto.
Quando apaguei a Nossa Senhora, o dia já começava a raiar.






















A CORTINA
Encarangado na cadeira que a mãe deles vai empurrando pelos corredores do hospital,
observo meus filhos furtivamente. Se me transformei num pai meio zumbi, Théophile e
Celeste, por outro lado, são bem reais: inquietos e ralhões, não me canso de olhá-los
enquanto andam, simplesmente andam, ao meu lado, dissimulando com um jeito confiante
o mal-estar que encurva seus ombros pequeninos. Com toalhas de papel, Théophile enxuga,
sem prara de andar, os filetes de saliva que escorrem de meus lábios cerrados. Seu gesto é
furtivo, ao mesmo tempo terno e temeroso, como se estivesse diante de um animal cujas
reações são imprevisíveis. Quando diminuímos a marcha, Celeste enlaça-me a cabeça entre
seus braços nus, cobre minha testa de beijos sonoros e repete: "É o meu papai, é o meu
papai", como se fosse um encantamento. É dia dos pais. Até o tal acidente, não sentíamos
necessidade de incluir esse encontro forçado em nosso calendário afetivo, mas dessa vez
passamos juntos todo esse dia simbólico, decerto para demonstrar que um esboço, uma
sombra, um pedaço de pai, ainda é um pai. Fico dividido entre a alegria de vê-los viver,
mexer-se, rir ou chorar durante algumas horas e o medo de que o espetáculo de todos esses
sofrimentos, a começar pelo meu, não seja a distração ideal para um menino de dez anos e
sua irmãzinha de oito, ainda que tenhamos tomado em família a sábia decisão de não
adoçar a pílula.
Vamos até o Beach Club. É assim que chamo um pedaço de duna exposta ao sol e ao vento,
onde a administração teve a amabilidade de colocar mesas, cadeiras e pára-sóis, e até de
semear alguns botões-de-ouro que crescem na areia, em meio ao capim nativo. Nesta
espécie de eclusa à beira-mar, entre o hospital e a verdadeira vida, pode-se sonhar que uma
fada madrinha vai transformar todas as cadeiras de roda em carrinhos à vela(1). "Vamos
brincar de forca? Você é o enforcado", diz Théophile, e eu gostaria de responder que já
basta ser paralítico, se meu sistema de comunicação não impedisse as réplicas na lata. A
piadinha mais fina embota-se e gora quando perdemos vários minutos para acertá-la.
Quando chega, nem nós mesmos entendemos muito bem o que parecia ter tanta graça antes
do ditado laborioso, letra por letra. A regra, portanto, é evitar essas agudezas intempestivas.
Com isso, perdem-se as faíscas da conversação, aquelas palavrinhas certeiras que vão e
voltam como bola em jogo de pelota basca; e incluo essa falta de humor forçada entre os
inconvenientes do meu estado.
Enfim, vamos de forca, esporte nacional das classes de sétima. Encontro uma palavra,
outra, e embatuco na terceira. Na verdade, não estou mais com cabeça para o jogo. Uma
onda de tristeza me invadiu. Théophile, meu filho, está ali, sentadinho, com o rosto a
cinqüenta centímetros do meu, e eu, o pai, não tenho

(1) Tipo de triciclo movido à vela, comum em certas praias da França. (N. do T.)
mais o simples direito de passar a mão naquela cabeleira basta, de beliscar aquele cangote
aveludado, de estreitar até deixar sem fôlego aquele corpinho macio e tépido. Como
descrever? É monstruoso, iníquo, revoltante ou horrível? De repente, não seguro mais. As
lágrimas afluem, e de minha garganta escapa um espasmo rouco que sobressalta Théophile.
Não fique com medo, hominho, eu gosto de você. Continuando no seu enforcado, ele
termina a partida. Faltam duas letras, ele ganhou e eu perdi. Num cantinho de caderno ele
acaba de desenhar a forca, a corda e o supliciado.
Quando a Celeste, está fazendo cabriolas sobre a duna. Ignoro se no que vou dizer se deve
ver um fenômeno de compensação, mas, desde que levantar uma pálpebra começou a me
parecer halterofilismo, para mim ela virou uma verdadeira acrobata. Anda de pé-coxinho,
planta bananeira, faz ponte invertida e encadeia rodopios e saltos perigosos com uma
flexibilidade de gata. À longa lista de profissões que aventa para o futuro, chegou a
acrescentar equilibrista, depois de professora, top-model e florista. Após conquistar o
público do Beach Club com suas piruetas, nosso projeto de show-woman dá início à parte
cantada do espetáculo, para grande desespero de Théophile, que acima de tudo detesta
aparecer. Fechado e tímido tanto quanto a irmã é exibicionista, ele me odiou cordialmente
no dia em que pedi e obtive permissão para tocar o sino de entrada de sua escola. Ninguém
pode prever se Théophile viverá feliz, mas com certeza viverá escondido.
Fico pensando como foi que Celeste conseguiu montar aquele repertório de canções dos
anos sessenta. Johnny Halliday, Sylvie Vartan, Sheila, Clo-Clo, Françoise Hardy, nenhuma
estrela daquela idade de ouro deixa de atender a pedidos. Ao lado dos grandes sucessos que
todos conhecem, da tralha imprestável, como o tal trem de Richard Antony, que depois de
trinta anos ainda não parou realmente de apitar nos nossos ouvidos, Celeste canta sucessos
esquecidos que deixam como rastro a poeira das recordações. Desde a época em que eu
punha sem cansar aquele quarenta e cinco rotações de Claude François no Teppaz de meus
doze anos acho que nunca mais voltei a ouvir "Pobre menina rica". No entanto, assim que
Celeste trauteia (bem desafinada, por sinal) os primeiros compassos dessa canção, voltam-
me com precisão incrível todas as notas, todas as estrofes, todos os detalhes do
acompanhamento vocal e orquestral, até o ruído de ressaca que dura o tempo da introdução.
Revejo a capa do disco, a foto do cantor, sua camisa listrada com colarinho abotoado, que
me parecia um sonho inacessível, pois minha mãe a achava vulgar. Revejo até a quinta-
feira à tarde em que comprei o disco de um primo de meu pai, grandalhão legal que tinha
uma loja minúscula no subsolo da estação Norte e vivia com uma bagana fincada no canto
da boca. "Se sozinha nesta praia, pobre menina rica..." O tempo foi passando, e as pessoas
começaram a desaparecer. Minha mãe foi a primeira a morrer, depois Clo-Clo morreu
eletrocutado, e o primo gentil, cujos negócios tinham periclitado um pouco, espichou as
canelas, deixando uma tribo inconsolável de crianças e animais. Meu armário está cheio de
camisas de colarinho abotoado, e acho que o ponto da lojinha de discos passou para um
vendedor de chocolate. Como o trem para Berck sai da estação Norte, qualquer dia talvez
eu peça a alguém que vá averiguar, de passagem.
"Muito bem, Celeste!", exclama Sylvie. "Mãe, não agüento mais", rosna Théophile. São
cinco horas. O carrilhão, cujo som de ordinário me parece tão amigo, adquire tom de dobre
de finados quando anuncia o instante da separação. O vento levanta um pouco de areia. O
mar retirou-se para tão longe que os banhistas não são mais que pontos minúsculos no
horizonte. Antes de pegarem a estrada, as crianças vão espichar as pernas na praia, e nós
ficamos sozinhos, Sylvie e eu, silenciosos, a mão dela apertando meus dedos inertes. Por
trás dos óculos escuros que refletem um céu puro, ela chora de mansinho sobre nossas vidas
implodidas.
Reencontramo-nos em meu quarto para as últimas efusões. "Tudo bem aí, meu chapa?",
pergunta Théophile. O chapa tem um nó na garganta, queimadura de sol nas mãos e o
cóccix esbodegado de tanto ficar na cadeira, mas teve um dia maravilhoso. E vocês,
garotos, que vestígios guardarão dessas excursões pela minha infinita solidão? Partiram. O
carro já deve estar correndo por Paris. Eu mergulho na contemplação de um desenho
trazido por Celeste, que logo foi dependurado na parede. Uma espécie de peixe de duas
cabeças, com olhos orlados de cílios azuis e com escamas multicoloridas. No entanto, o
mais interessante desse desenho não são esses detalhes, mas a sua forma geral, que
reproduz de modo perturbador o símbolo matemático do infinito. O sol entra e inunda o
quarto. É a hora em que seus raios cintilantes vão bater em cheio na minha cabeceira. Na
emoção da despedida, esqueci de fazer-lhes sinal para que fechassem a cortina. Deve vir
algum enfermeiro antes do fim do mundo.





















PARIS
Afasto-me. Lenta mas decididamente. Assim como o marinheiro vê desaparecer a costa de
onde zarpou para a travessia, eu sinto meu passado esvanecer-se. Minha antiga vida arde
ainda em mim, mas vai-se reduzindo cada vez mais às cinzas das lembranças.
Desde que fixei domicílio a bordo deste escafandro, fiz duas viagens-relâmpago a Paris,
sempre por ambientes hospitalares, para ouvir pareceres de sumidades da medicina. Na
primeira vez sucumbi à emoção quando por acaso a ambulância passou diante do prédio
ultramoderno onde outrora exerci a condenável atividade de redator-chefe de um famoso
semanário feminino. Inicialmente reconheci o prédio vizinho, uma antiguidade dos anos
sessenta, cuja destruição era anunciada num cartaz, e depois a nossa fachada, um espelho
só, onde se refletiam nuvens e aviões. Na frente, estavam algumas dessas figuras
conhecidas com quem cruzamos todos os dias durante dez anos, sem nunca poder dar-lhes
um nome. Quase desatarraxei a cabeça para ver se algum rosto mais conhecido passava por
lá, atrás da mulher de birote e do parrudão de avental cinzento. O destino não quis. Quem
sabe se dos escritórios do quinto andar alguém não viu minha carruagem passar? Derramei
algumas lágrimas na frente do bar onde às vezes ia comer o prato do dia. Posso chorar
discretamente. Os outros acham que meu olho está lacrimejando.
Da segunda vez que fui a Paris, quatro meses depois, fiquei quase indiferente. A rua já se
vestira de julho, mas para mim continuávamos no inverno, e era um cenário de filme o que
me projetavam por trás dos vidros da ambulância. No cinema dão a isso o nome de
transparência: o carro do herói avança por uma rua que desfila numa parede do estúdio.
Grande parte da poesia dos dilmes de Hitchcock está na utilização dessa técnica, nos
tempos em que ainda era imperfeita. Minha travessia de Paris, em si, deixou-me neutro. E
no entanto tudo estava lá. As donas de casa com vestidos floridos e os adolescentes de
patins. O ronco dos motores dos ônibus. As imprecações dos motoqueiros. A place de
l'Opéra saída de um quadro de Dufy. As árvores tomando as fachadas de assalto e um
pouco de algodão no azul do céu. Nada faltava, só eu. Eu estava em outro lugar.










O LEGUME
"Dia 8 de junho faz seis meses que minha nova vida começou. Suas cartas se acumulam no
armário, seus desenhos nas paredes, e, não podendo responder a todos, tive a idéia de
recorrer a estes samizdats para contar meus dias, meus progressos e minhas esperanças. De
início quis acreditar que nada havia acontecido. No estado de semiconsciência que se segue
ao coma, via-me já de volta ao turbilhão parisiense, acompanhado tão-somente de um par
de muletas."
Essas eram as primeiras palavras da primeira correspondência que no fim da primavera
decidi enviar de Berck a meus amigos e conhecidos. Endereçada a uns sessenta
destinatários, essa missiva teve certa ressonância e reparou um pouco os malefícios de
outros rumores. A cidade, monstro de cem bocas e mil ouvidos, que nada sabe mas tudo
diz, tinha resolvido me pregar uma peça. No café de Flore, um desses redutos do
esnobismo parisiense, de onde as fofocas são lançadas como se fossem pombos-correios,
amigos íntimos tinham ouvido de uns cacarejadores desconhecidos o seguinte diálogo,
proferido com a gula do abutre que descobre uma gazela estripada. "Está sabendo que o B.
virou legume? – dizia um. – Claro, estou por dentro. Legume, é sim, legume." A palavra
"legume" devia parecer saborosa ao paladar daqueles corvos, pois foi repetida várias vezes
entre dois bocados de welsh rarebit. Quanto ao tom, dava a entender que só um idiota não
estaria sabendo que agora eu privava mais do comércio das hortaliças que da companhia
dos homens. Vivíamos em tempo de paz. Os portadores de falsas notícias não eram
fuzilados. Se eu quisesse provar que meu potencial intelectual continuava sendo superior ao
de um salsão, tinha de contar só comigo mesmo.
Assim nasceu uma correspondência coletiva que prossigo mês a mês, e que me permite
estar sempre em comunhão com as pessoas de quem gosto. Meu pecado de orgulho
produziu seus frutos. À parte alguns irredutíveis que mantêm um silêncio obstinado, todos
entenderam que é possível encontrar-se comigo em meu escafandro, ainda que às vezes ele
me leve para os confins de terras inexploradas.
Recebo cartas notáveis. Elas são abertas, desdobradas e expostas diante de meus olhos
segundo um ritual que o tempo fixou e que confere à chegada do correio um caráter de
cerimônia silenciosa e sagrada. Leio pessoalmente todas as cartas com grande zelo.
Algumas até são muito sérias. Falam do sentido da vida, da supremacia da alma, do
mistério de cada existência, e, por um curioso fenômeno de inversão de expectativas, são as
pessoas com as quais eu mantinha as relações mais fúteis que tratam com mais
familiaridade essas questões essenciais. A leviandade delas mascarava interesses
profundos. Será que eu era cego e surdo ou será que a luz de uma desgraça se faz necessária
para iluminar a verdadeira face de um homem?
Outras cartas contam, em sua simplicidade, os pequenos fatos que demarcam a fuga do
tempo. São rosas colhidas no crepúsculo, a indolência de um domingo chuvoso, uma
criança que chora antes de dormir. Captadas ao vivo, essas amostras de vida, essas
baforadas de felicidade me comovem mais que qualquer outra coisa. Tenham elas três
linhas ou oito páginas, venham do longínquo Levante ou Levallois-Perret, guardo todas
essas cartas como um tesouro. Um dia gostaria de colar todas, uma após outra, para fazer
uma fita de um quilômetro, que ficaria flutuando ao vento como uma auriflama à glória da
amizade.
Espantará os abutres.





































O PASSEIO
Calor de chumbo. Assim mesmo gostaria de sair. Faz semanas, talvez meses, que não saio
dos limites do hospital para o passeio ritual pela esplanada à beira-mar. A última vez foi no
inverno. Turbilhões gélidos levantavam nuvens de areia, e enfrentando o vento alguns raros
zanzadores iam oblíquos, fechados em casacos grossos. Hoje tenho vontade de ver Berck
em traje de verão, a praia que conheci deserta e que dizem estar lotada, a multidão
descontraída de julho. Para chegar à rua, saindo do pavilhão Sorrel, é preciso atravessar três
estacionamentos cujo pavimento rugoso e irregular submete as nádegas a dura prova. Eu
tinha esquecido o doze que se corta num percurso que tem placas de esgoto, valetas e carros
estacionados na calçada.
Eis o mar. Guarda-sóis, pranchas de windsurfe e uma barreira de banhistas completam o
cartão postal. É um mar de férias, dócil e bem-comportado, nada a ver com o espaço
infinito de reflexos acerados que se contempla dos terraços do hospital. No entanto são as
mesmas concavidades e cristas, o mesmo horizonte nevoento.
Percorremos a esplanada, num vai-e-vem de copinhos de sorvete e de coxas carmesins.
Imagino-me a lamber uma bola de sorvete de baunilha de cima de uma pele jovem e
queimada pelo sol. Ninguém realmente presta atenção em mim. Em Berck a cadeira de
rodas é tão banal quanto uma Ferrari em Monte-Carlo, e por todos os cantos cruza-se com
pobres-diabos do meu tipo, desengonçados e chiantes. Desta vez Claude e Brice me
acompanham. A primeira eu conheço há quinze dias, o segundo há vinte e cinco anos, e é
estranho ouvir meu velho cúmplice contar-me à jovem mulher que todos os dias vem tomar
o ditado deste livro. Meu temperamento pavio curto, minha paixão pelos livros, meu gosto
imoderado pela boa mesa, meu conversível vermelho, tudo é passado em revista. Parece até
um contista a exumar lendas de um mundo submerso. "Eu não o via desse jeito", diz
Claude. Meu universo agora está dividido entre os que me conheceram antes e os outros.
Que figura pensarão que fui? No meu quarto não tenho sequer uma foto para mostrar-lhes.
Paramos no alto de uma vasta escadaria que dá para o bar da praia e para um belo
alinhamento de cabines de banho de cores pastéis. A escada me lembra a grande entrada do
metrô Porte-d'Auteuil por onde, menino, eu passava ao voltar da piscina, com os olhos
embaciados de cloro. Molitor foi destruída há alguns anos. Quanto às escadas, para mim
não passam agora de becos sem saída.
"Quer voltar?", pergunta Brice. Protesto energicamente, sacudindo a cabeça em todos os
sentidos. Nem pensar em dar meia-volta antes de atingir o verdadeiro objetivo daquela
expedição. Passamos depressa ao largo de um carrossel à moda antiga cujo realejo me
tortura os ouvidos. Cruzamos com Fangio, uma curiosidade do hospital, onde é conhecido
com esse apelido. Rígido como a justiça, Fangio não pode sentar-se. Condenado a ficar em
pé ou deitado, desloca-se de bruços sobre um carrinho que ele mesmo aciona com uma
rapidez surpreendente. Mas quem é de fato esse negrão com porte atlético que abre alas
apregoando: "Atenção, aí vem o Fangio!"? Ele me escapa. Finalmente, chegamos ao ponto
extremo do nosso périplo, bem na ponta da esplanada. Se eu quis percorrer todo este
caminho, não foi para descobrir nenhum panorama inédito, mas para me repastar com os
eflúvios que emanam de um modesto abarracamento na saída da praia. Estacionam minha
cadeira ao ar livre, e sinto que minhas narinas vibram de prazer ao aspirarem um perfume
vulgar, enjoativo e absolutamente insuportável para o comum dos mortais. "Nossa!", diz
uma voz atrás de mim, "que cheiro de gordura queimada."
Quanto a mim, não me canso do odor das fritas.


































VINTE A UM
É isso aí. Descobri o nome do cavalo. Chamava-se Mithra-Grandchamp.

Vincent deve estar atravessando Abbeville. Para quem vem de Paris de carro, é aí que a
viagem começa a parecer comprida. À rodovia deserta e ultra-rápida sucede uma estrada de
duas mãos, onde se forma uma fila ininterrupta de automóveis e caminhões.

Na época desta história, há mais de dez anos, Vincent, eu e alguns outros tínhamos a sorte
inaudita de dirigir um matutino hoje desaparecido. Industrial apaixonado pela imprensa, o
proprietário cometeu a derradeira audácia de confiar o "filho" à mais jovem equipe de
Paris, numa época em que já se urdia o tenebroso complô político e bancário para privá-lo
do título que ele havia criado cinco ou seis anos antes. Sem que soubéssemos, conosco ele
estava jogando sua última cartada naquela briga, e nós investíamos todas as nossas energias
naquilo.

Vincent agora está passando pelos cruzamentos onde é preciso deixar à esquerda as
indicações de Rouen e Crotoy e tomar o caminho estreito que leva a Berck, passando por
uma enfiada de pequenas aglomerações. Essas giratórias confundem quem não está
acostumado. Vincent, porém, não perde o rumo, pois já veio me visitar várias vezes. Ao
sentido de orientação, ele soma, extremado, o da fidelidade.

Portanto, estávamos o tempo todo em ação. De manhãzinha, tarde da noite, fins de semana
e às vezes de madrugada, éramos cinco a executar com alegria inconsciente um trampo para
uma dúzia. Vincent tinha dez grandes idéias por semana: três excelentes, cinco boas e duas
desastrosas. Meu papel era de certo modo obrigá-lo a fazer uma triagem, contrariando seu
temperamento impaciente, que gostaria de ver realizado na mesma hora tudo o que lhe
passasse pela cabeça.

Daqui posso ouvi-lo arreliar ao volante e a esconjurar a Viações e Obras Públicas. Dentro
de dois anos a rodovia vai chegar até Berck, mas por enquanto é só um canteiro de obras
que se vai percorrendo em baixa velocidade, preso atrás dos trailers.

De fato, a gente não se largava. Vivíamos, comíamos, bebíamos, dormíamos, amávamos,
sonhávamos só pelo jornal e para o jornal. Quem teve a idéia de ir naquela tarde ao prado?
Era um belo domingo de inverno, azul, frio e seco, e em Vincennes havia corrida. Nenhum
de nós dois era turfista, mas o cronista de turfe tinha-nos em consideração suficiente para
nos convidar à sua mesa do restaurante do hipódromo e revelar a fórmula mágica que abre
as portas do mundo misterioso das corridas: uma informação de cocheira. Segundo ele, era
coisa de primeira, produto garantido, e, como o Mithra-Grandchamp partia com um
favoritismo de vinte por um, a coisa prometia um premiozinho interessante, bem mais que
um provento de pai de família.

Lá vem Vincent chegando à entrada de Berck e, como todo o mundo, se perguntando por
um momento, com angústia, que diabo veio fazer aqui.

Tinha sido um almoço divertido na grande sala de refeições que encima toda a pista de
corridas e recebe, em grupos endomingados, gangsters, proxenetas, sentenciados em
liberdade condicional e outros bons meninos que gravitam no universo do turfe. Satisfeitos
e fartos, sugávamos avidamente longos charutos enquanto esperávamos o quarto páreo
naquela atmosfera cálida, onde as fichas criminais crescem como planta em estufa.

Quando dá de cara com o mar, Vincent vira e sobe a grande esplanada sem reconhecer,
atrás da multidão de veranistas, o cenário desértico e gelado da Berck hibernal.

Em Vincennes esperamos tanto que o páreo acabou dando a largada sem nós. O guichê de
apostas foi fechado no nosso nariz antes que eu tivesse tempo de tirar do bolso o maço de
notas que o pessoal da redação me confiara. Apesar das recomendações de discrição, o
nome de Mithra-Grandchamp tinha percorrido todos os setores, e, de azarão desconhecido,
o boato o transformara em animal lendário, no qual todos quiseram apostar. Só restava
assistir à corrida e esperar que... Na entrada da última curva Mithra-Grandchamp começou
a despregar. Na saída já estava com cinco corpos de vantagem, e nós o vimos transpor a
linha de chegada como num sonho, deixando o competidor mais próximo quase quarenta
metros atrás. Um verdadeiro avião. No jornal, devia ser uma exaltação só na frente do
televisor.

O carro de Vincent envereda pelo estacionamento do hospital.O sol está fortíssimo. É aí
que os visitantes precisam ter peito para transpor, com um nó na garganta, os últimos
metros que me separam do mundo: as portas de vidro que se abrem automaticamente, o
elevador número 7 e o terrível corredorzinho que leva ao quarto 119. Pelas portas
entreabertas só se avistam jazentes e entrevados que o destino relegou aos confins da vida.
Diante desse espetáculo alguns perdem o fôlego e precisam primeiro perder-se um
pouquinho, para chegarem ao meu quarto com a voz firme e os olhos menos marejados.
Quando se precipitam, finalmente, parecem mergulhadores com apnéia. Sei mesmo de
quem perdeu as forças ali, diante da minha soleira, e arrepiou carreira até Paris.
Vincent bate e entra bem silencioso. Ao olhar alheio já estou tão acostumado que mal
reparo nos ligeiros clarões de pavor que o percorrem. Ou, em todo caso, já não me causam
comoção. Com meus traços atrofiados pela paralisia tento compor aquilo que eu gostaria
que fosse um sorriso de boas-vindas. A esse esgar Vincent responde com um beijo na testa.
Ele não muda. Com aquela coroa de cabelos ruivos, aquelas carrancas, o corpo atarracado a
dançar num pé e noutro, tem todo o jeitão do sindicalista gaulês que veio ver um
companheiro vitimado por uma explosão na mina. Com a guarda meio baixa, Vincent
avança como um pugilista categoria parrudo-frágil. No dia da funesta vitória de Mithra-
Grandchamp, ele desabafou: "Burros. Nós somos uns burros. O pessoal do jornal vai cair
de porrada em cima da gente." Era sua expressão favorita.
Para ser franco, eu tinha esquecido Mithra-Grandchamp. A lembrança dessa história acaba
de acudir à minha memória, deixando um rastro duplamente doloroso. A saudade de um
passado que não volta e, principalmente, o remorso pelas oportunidades perdidas. Mithra-
Grandchamp são as mulheres que não soubemos amar, as chances que não quisemos
aproveitar, os instantes de felicidade que deixamos escapar. Hoje me parece que toda a
minha existência não terá sido senão um encadeamento desses pequenos fiascos. Uma
corrida cujo resultado conhecemos, mas cujo páreo somos incapazes de embolsar. A
propósito, escapamos daquela reembolsando todas as apostas.






















CAÇA AO PATO
Além dos diversos inconvenientes inerentes à locked-in-syndrome, sofro de séria
desregulagem de meus porta-guimbas. Do lado direito, meu escutador está completamente
avariado, e à esquerda minha trompa de Eustáquio amplifica e deforma os sons de mais de
dois metros e meio de distância. Quando um avião sobrevoa a praia puxando a faixa
publicitária do parque de diversões da região, eu poderia acreditar que me enxertaram um
moedor de café no tímpano. Mas esse é um estrépito passageiro. Muito mais urticante é a
zoada permanente que vem do corredor quando, apesar dos meus esforços de sensibilizar
todo o mundo para o problema dos meus abanos, alguém deixa de fechar a porta. É salto de
sapato batendo no linóleo, é carrinho se chocando, são conversas se encavalando, é gente se
interpelando com voz de agente da bolsa em dia de liquidação, é rádio ligado que ninguém
escuta, e, cobrindo tudo isso, uma enceradeira elétrica é a antecipação sonora do inferno.
Também há pacientes terríveis. Conheço um cujo único prazer é ouvir sempre a mesma fita.
Tive um juveníssimo vizinho a quem deram de presente um pato de pelúcia munido de um
sistema de detecção sofisticado. Emitia uma musiquinha aguda e lancinante sempre que
alguém penetrava no quarto, quer dizer, oitenta vezes por dia. Felizmente o pequeno
paciente voltou para casa antes que eu começasse a pôr em prática meu plano de extermínio
do pato. Assim mesmo ainda o trago na manga, pois a gente nunca sabe que cataclismos as
famílias desoladas são capazes de provocar. O prêmio do vizinho mais extravagante,
porém, cabe a uma doente cujos sentidos tinham sido transtrocados pelo coma. Ela mordia
as enfermeiras, agarrava os atendentes pela parte viril da anatomia deles e não conseguia
pedir um copo d'água sem gritar "fogo!". No começo, esses falsos alarmes desencadearam
verdadeiras manobras de guerra, mas depois rendendo-se, o pessoal acabou por deixá-la
berrar à vontade a qualquer hora do dia e da noite. Essas sessões conferem ao setor de
neurologia um quê de "casa de orates" até que excitante, e, quando mandaram nossa amiga
gritar em outras bandas o seu "Socorro, estão me matando!", até que fiquei chateado.
Longe desse escarcéu, no silêncio reconquistado, posso ouvir as borboletas voando pela
minha cabeça. É preciso muita atenção e até certo recolhimento, pois o seu adejar é quase
imperceptível. Uma respiração mais forte basta para abafá-las. Aliás, é espantoso. Minha
audição não melhora, mas eu as ouço cada vez mais. De fato, as borboletas devem dar-me
ouvidos.








DOMINGO
Pela janela, avisto as fachadas de tijolo ocre a se iluminarem sob os primeiros raios de sol.
A pedra assume exatamente o matiz rosado da gramática grega de Rat, lembrança do tempo
de colégio. Não fui brilhante helenista, até pelo contrário, mas gosto desse matiz cálido e
profundo que ainda me abre um universo de estudos, onde se convive com o cão de
Alcibíades e com os heróis das Termópilas. Os comerciantes de cores dão-lhe o nome de
"rosa antigo". Nada a ver com o rosa esparadrapo dos corredores do hospital. Muito menos
com o malva que recobre plintos e envasaduras do meu quarto. Que mais parece
embalagem de perfume ruim.
É domingo. Pavoroso domingo em que, se por azar nenhum visitante se fizer anunciar,
acontecimento algum de espécie alguma virá romper a indolente sucessão das horas. Nada
de fisioterapeuta nem de ortofonista nem de psicóloga. Uma travessia do deserto, tendo
como único oásis uma lavadinha ainda mais sucinta que de costume. Nesses dias, o efeito
retardado das libações do sábado à noite, conjugado à saudade dos piqueniques em família,
das partidas de tiro ao prato ou da pesca ao lagostim, impossíveis por causa do plantão,
mergulha as turmas de atendimento num torpor mecânico, e a sessão de lavagem tem mais
de escorchamento que propriamente de hidroterapia. Uma dose tripla da melhor loção não
basta para mascarar a realidade: fede-se.
É domingo. Se for o caso de pedir que liguem o televisor, não se pode errar o alvo. Assunto
altamente estratégico. Sim, porque podem passar-se três ou quatro horas antes do retorno da
boa alma capaz de mudar de canal, e às vezes é melhor renunciar a um programa
interessante quando ele é seguido por uma novela chorosa, por um jogo insípido e por um
mesa-redonda cheia de gritos. Os aplausos sem quê nem para quê me arrebentam os
ouvidos. Prefiro a quietude dos documentários sobre arte, história ou animais. Olho-os sem
ouvir os comentários, como quem contempla o fogo da lareira.
É domingo. O sino badala gravemente as horas. Na parede, o pequeno calendário da
Assistência Pública, cujas folhas vão sendo arrancadas dia após dia, já indica que é agosto.
Por qual paradoxo o tempo, imóvel aqui, corre ali desenfreadamente? No meu universo
encolhido as horas se espicham e os meses passam como relâmpagos. Não me conformo de
estar em agosto. Amigos, mulheres, filhos se dispersaram no vento das férias. Em
pensamento, entro sorrateiro nas barracas onde eles se aboletaram para o verão, e azar meu
se esse giro me dilacera um pouco o coração. Na Bretanha, uma revoada de crianças chega
de bicicleta do mercado. Todos os rostos iluminados por sorrisos. Algumas há tempos já
chegaram à idade dos grandes cuidados, mas por aqueles caminhos orlados de rododendros
todos podem reencontrar a inocência perdida. Hoje à tarde vão dar a volta na ilha de barco.
O motorzinho vai ter de lutar contra as correntes. Alguém se deitará na parte da frente do
barco, fechará os olhos e deixará o braço arrastar-se ao sabor da água fria. No sul, é preciso
internar-se no oco das casas torturadas pelo sol. Os cadernos se enchem de aquarelas. Um
gatinho de pata quebrada procura os cantos sombrosos de um jardim de padre e, mais
longe, na Camargue, uma nuvem de novilhos cruza ao largo de um banhado de onde sai um
perfume de anis. Em todos os lugares se aceleram os preparativos para o grande encontro
familiar que de antemão provoca um bocejo de desânimo em todas as mamães, mas que
para mim assume feição de rito fantástico e esquecido: o almoço.
É domingo. Perscruto os volumes que se empilham no parapeito da janela e formam uma
pequena biblioteca bastante inútil, pois hoje ninguém virá ler para mim. Sêneca, Zola,
Chateaubriand, Valery Larbaud estão ali, a um metro, cruelmente inacessíveis. Uma mosca
toda preta pousa no meu nariz. Contorço a cara para apeá-la. Mas ela se aferra. Os
combates de luta romana já vistos nos Jogos Olímpicos não eram tão ferozes. É domingo.
































AS MOCINHAS DE HONG KONG
Adorava viajar. Por sorte, ao longo dos anos consegui armazenar um número suficiente de
imagens, eflúvios e sensações para poder ir-me daqui nos dias em que um céu cor de
ardósia anula qualquer perspectiva de passeio. São estranhas perambulações. O cheiro
ranço de um bar nova-iorquino. O perfume de miséria do mercado de Rangum. Pedaços do
mundo. A noite branca e vítrea de São-Petersburgo ou a incrível incandescência do sol de
Furnace Creek, no deserto de Nevada. Esta semana, é um pouco diferente. Todas as
manhãs, ao alvorecer vôo para Hong Kong, onde ocorre o seminário das edições
internacionais do meu jornal. Continuo dizendo "meu jornal", apesar de tal formulação já
se ter tornado abusiva, como se o possessivo constituísse um desses fios tênues que me
ligam ao mundo que se mexe.
Em Hong Kong tenho alguma dificuldade para encontrar o caminho, pois, ao contrário de
muitas outras cidades, esta eu nunca visitei. Sempre que se ofereceu a ocasião de ir, uma
fatalidade maliciosa me manteve afastado desse destino. Quando eu não ficava doente na
véspera da partida, perdia meu passaporte ou uma reportagem me chamava para outros
céus. O acaso, em suma, fechava-me suas portas. Uma vez, dei meu lugar a Jean-Paul K.,
que ainda não tinha passado vários anos numa masmorra de Beirute a recitar a classificação
dos grands crus de Bordeaux para não ficar louco. Seus olhos sorriam por trás dos óculos
redondos quando me trouxe um telefone sem fio, o que na época era o cúmulo da
modernidade. Eu gostava bastante de Jean-Paul, mas nunca mais revi o refém do
Hezbollah, decerto com vergonha de ter escolhido para mim, naquela época, um papel de
figurante num universo de plumas e paetês. Agora sou eu o prisioneiro, e ele o homem
livre. E, como não conheço todos os castelos do Médoc, precisei procurar outra ladainha
para povoar as horas mais vazias. Conto os países onde meu jornal é editado. Já existem
vinte e oito nessa ONU da sedução.
A propósito, onde estão vocês, minhas caras confreiras, incansáveis embaixadoras do nosso
french touch? O dia inteiro, num salão de hotel, vocês foram sabatinadas em chinês, inglês,
tailandês, português e tcheco, tentando responder à mais metafísica das questões: quem é a
mulher Elle? Agora as imagino espalhadas por Hong Kong, pelas ruas abarrotadas de néons
onde se vendem computadores de bolso e tigelinhas de sopa, seguindo com seu trotinho
miúdo as pegadas do nosso diretor-presidente e sua eterna gravata-borboleta, ele que
conduz tudo em passo de marcha forçada. Meio Spirou(1), meio Bonaparte, só pára na
frente dos arranha-céus mais altos, medindo-os de cima a baixo com um ar tão presunçoso
que qualquer um diria que os vai engolir.
Para onde vamos, meu general? Vamos pular a bordo do hidroavião que leva a

(1) Personagem concebido por Rob-Vel para o semanário Spirou. É uma espécie de criado
vestido de libré escarlate. (N.doT.)
Macao para ir queimar alguns dólares no inferno, ou então, que tal subir até o bar Felix do
hotel Peninsula, que foi decorado pelo designer francês Philippe S.? Um ataque de
narcisismo me faz optar pela segunda alternativa. Eu, que detesto ser fotografado, tenho um
retrato naquele luxuoso botequim aéreo, reproduzida no encosto de uma cadeira entre
dezenas de outras figuras parisienses cujas fotos Philippe S. mandou tirar. Evidentemente
essa operação foi realizada algumas semanas antes que o destino me transformasse em
espantalho de pardais. Não sei se minha cadeira tem mais ou menos sucesso que as outras,
mas, por favor, que ninguém conte a verdade ao barman. Esse pessoal é muito
supersticioso, e aí mais nenhuma daquelas deslumbrantes chinesinhas de minissaia iria
sentar-se sobre mim.




































A MENSAGEM
Se aquele recanto do hospital tem um falso ar de colégio anglo-saxão, os freqüentadores da
cafeteria não saem do Círculo dos Poetas Desaparecidos. As moças têm olhar duro, os
rapazes têm tatuagens e às vezes anéis nos dedos. Reúnem-se em suas poltronas para falar
de briga e moto, acendendo um cigarro no outro. Todos parecem carregar alguma cruz
sobre os ombros já encurvados, arrastar um destino miserável em que a passagem por
Berck nada mais é que uma peripécia entre a infância de cão espancado e o futuro de
excluído profissional. Quando dou uma volta por aquele antro esfumaçado, faz-se um
silêncio de sacristia, mas não consigo ler nos olhares deles nem piedade nem compaixão.
Pela janela aberta ouve-se o palpitar do coração de bronze do hospital, o sino que faz o
firmamento vibrar quatro vezes por hora. Sobre uma mesa abarrotada de xícaras vazias, jaz
uma pequena máquina de escrever, com uma folha de papel rosa inserida de través. Ainda
que por enquanto a página esteja virgem, tenho certeza de que dia ou outro haverá uma
mensagem em minha intenção. Estou à espera.


























NO MUSEU GRÉVIN
Esta noite visitei em sonho o museu Grévin. Estava bem mudado. Ainda existiam a entrada
em estilo Belle Époque, os espelhos deformadores e o gabinete fantástico, mas haviam sido
eliminadas as galerias de personagens da atualidade. Numa primeira sala, não reconheci de
imediato as estátuas expostas. Como o encarregado do guarda-roupa as tivesse posto em
traje de passeio, precisei examiná-las uma a uma e vesti-las mentalmente com um avental
branco antes de entender que aqueles sujeitos de camiseta, aquelas moças de minissaia,
aquela dona de casa petrificada com seu carrinho de supermercado, aquele rapaz com
capacete de motoqueiro eram, na realidade, os enfermeiros e atendentes dos dois sexos que
se sucedem à minha cabeceira da manhã à noite. Todos estavam lá, fixados na cera, os
delicados, os brutais, os sensíveis, os indiferentes, os ativos, os preguiçosos, aqueles em
cujas mãos não passo de um doente a mais.
No início, alguns me aterrorizaram. Não via neles senão cérberos da minha prisão,
cúmplices de um abominável complô. Depois, odiei outros, quando me torceram um braço
ao me porem na cadeira de rodas, me esqueceram uma noite inteira diante do televisor, me
abandonaram numa posição dolorosa apesar de minhas reclamações. Durante alguns
minutos ou algumas horas eu os mataria. Depois, como o tempo acaba por engolir até os
rancores mais frios, eles se transformaram em seres familiares que bem ou mal cumprem
uma delicada missão: carregar um pouco a nossa cruz quando ela nos pesa demais sobre os
ombros.
Enfeitei-os com apelidos que só eu conhecia, para poder interpelá-los com minha
tonitruante voz interior quando entrassem no meu quarto: "Hello, olhos azuis! Salve,
grande Duduche(1)?!" Evidentemente eles não sabem de nada disso. O cara que dança em
volta da minha cama e assume poses de roqueiro para perguntar "Como vai?", é David
Bowie. O Fessor me faz rir com sua cabeça de criança grisalha e o ar sério que afeta para
descarregar sempre a mesma frase: "Desde que nada aconteça". Rambo e Terminator, como
dá para perceber, não são exatamente modelos de ternura. Prefiro a senhorita Termômetro,
cuja dedicação seria exemplar se ela não esquecesse sistematicamente esse objeto nas
dobras de minha axila.
O escultor em cera de Grévin captara de modo desigual as carrancas e carinhas dessa gente
do norte, domiciliada há várias gerações entre os ventos da cote d'Opale e as terras gordas
da Picardia, que tão logo se encontram a sós não deixam de falar o linguajar deles. Alguns
tinham pouca semelhança com o real. Seria preciso o talento de um daqueles miniaturistas
da Idade Média, cujos pincéis davam vida, como por encanto, às multidões das ruas de
Flandres. Nosso artista

(1) Personagem de história em quadrinhos. Trata-se de uma espécie de contestador inocente.
(N.doT.)
não tem esse dom. No entanto, soube captar com ingenuidade o charme juvenil das
estudantes de enfermagem, seus braços roliços de moças dos vinhedos e o matiz carmíneo
que tinge suas faces cheias. Ao sair da sala, disse cá comigo: "Até que gosto desses meus
carrascos."
Na sala seguinte tive a surpresa de descobrir meu quarto de hospital, aparentemente
reproduzido com toda a fidelidade. De perto, porém, verificava-se que fotos, desenhos e
cartazes eram um patchwork de cores imprecisas, um cenário destinado a criar ilusão a
certa distância, como os detalhes de um quadro impressionista. Na cama, não havia
ninguém, só uma concavidade no meio dos lençóis amarelos, aureolada por luz alvacenta.
Aí, não tive dificuldade nenhuma para identificar as pessoas que se espalhavam pelas duas
passagens estreitas que ladeavam aquela cama abandonada. Eram alguns amigos chegados
que pareciam ter brotado espontaneamente em torno de mim no dia seguinte à catástrofe.
Sentado num banquinho, Michel preenchia conscienciosamente o caderno onde meus
visitantes registram minhas frases. Anne-Marie arrumava um buquê de quarenta rosas.
Bernard, com uma das mãos, mantinha aberto o Diário de um adido de embaixada, de Paul
Morand, e, com a outra, fazia um gesto de advogado. Pousados na ponta do nariz, seus
óculos de aro de metal completavam-lhe o ar de tribuno profissional. Florence pregava
desenhos de crianças num painel de cortiça, com os cabelos negros a emoldurarem um
sorriso melancólico, e Patrick, encostado a uma parede, parecia perdido em pensamentos.
Desse quadro, que parecia quase vivo, emanava uma grande suavidade, uma tristeza
compartilhada e uma concentração da afetuosa seriedade que sinto a cada visita desses
amigos.
Quis prosseguir minha viagem, para ver se o museu me reservava outras surpresas, mas em
certo corredor escuro um guarda assestou a luz de sua lanterna em cheio no meu rosto.
Precisei fechar os olhos. Quando acordei, uma enfermeirazinha de verdade inclinava-se
sobre mim com seus braços roliços e uma lanterna de bolso na mão: "Seu comprimido para
dormir, quer agora ou daqui a uma hora?"













O FANFARRÃO
Nos bancos do liceu parisiense, onde puí meus primeiros jeans, sentava-me ao lado um
garoto comprido e rubicundo chamado Olivier, cuja mitomania galopante tornava simpático
o convívio. Com ele, não era preciso ir ao cinema. A poltrona era sempre a melhor, e ao
filme nunca faltavam efeitos. Na segunda-feira, ele já nos colhia de chapa com umas
histórias de fim de semana dignas das Mil e Uma Noites. Se não tinha passado o domingo
com Johnny Hallyday, era porque tinha ido a Londres ver o próximo James Bond, a menos
que lhe tivessem emprestado a nova Honda. As motos japonesas estavam chegando à
França e inflamavam os pátios de recreio. Da manhã à noite nosso colega nos embalava
com pequenas mentiras e grandes rodomontadas, sem receio de estar sempre a inventar
novas histórias, mesmo que elas contradissessem as anteriores. Órfão às dez da manhã,
filho único na hora do almoço, ele podia descobrir que tinha quatro irmãs à tarde, das quais
uma era campeã de patinação artística. Quanto ao pai, digno funcionário público na
realidade, transformava-se, conforme o dia, em inventor da bomba atômica, empresário dos
Beatles ou filho incógnito do general de Gaulle. Uma vez que o próprio Olivier tinha
renunciado a pôr ordem em suas embrulhadas, não caberia a nós censurar toda aquela
incoerência. Quando nos servis uma gamela realmente muito indigesta, manifestávamos
alguma reserva, mas ele protestava boa-fé com uns "Juro" tão indignados que a gente
precisava ceder logo.
Ao fim e ao cabo, Olivier não é piloto de avião de caça nem agente secreto nem conselheiro
de nenhum emir, conforme tinha projetado. Como é lógico, exerce na publicidade o seu
inesgotável talento de dourador de pílulas.
Arrependo-me um pouco de tê-lo olhado com superioridade, pois agora invejo Olivier e sua
maestria na arte de enganar-se com histórias. Não tenho certeza de que algum dia terei tanta
facilidade, mesmo que comece a criar para mim gloriosos destinos de substituição. Quando
me dá na veneta sou corredor de Fórmula 1. Com certeza já me viram em algum circuito,
Monza ou Silverstone. O misterioso carro branco sem marca nem número sou eu. Deitado
em meu leito, ou melhor, no meu cockpit, vou engolindo curvas em velocidade máxima, e
minha cabeça pesadona, por causa do capacete, vai-se inclinando dolorosamente sob o
efeito da gravidade. Também sou soldado numa série de televisão, sobre as grandes
batalhas da História. Fiz Alésia, Poitiers, Marignan, Austerlitz e Chemin dês Dames. Como
fui ferido no desembarque da Normandia, ainda não sei se vou dar um pulo em Dien Bien
Fu. Nas mãos da fisioterapeuta sou um zebra do circuito francês de ciclismo na noite de
uma etapa antológica. Ela acalma meus músculos estourados pelo esforço. No Tourmalet eu
simplesmente "voei". Ainda ouço o clamor da multidão na subida para o cume e, na
descida, o ar assobiando nos raios do aro. Cheguei quinze minutos antes de todos os
bambambãs do pelotão. "Juro!"

"A DAY IN THE LIFE"
Agora que quase chegamos ao fim do caminho, falta mencionar aquela sexta-feira, 8 de
dezembro de 1995, de funesta memória. Desde o começo tenho vontade de contar meus
últimos momentos de terráqueo em perfeito estado de funcionamento, mas adiei tanto que
agora sinto vertigem, na hora de dar esse salto de elástico para dentro do meu passado. Já
não sei mais por qual lado pegar aquelas horas pesadas e vãs, inapreensíveis como as gotas
de mercúrio de um termômetro partido. As palavras se esquivam. Como descrever o corpo
macio e tépido da morena junto à qual acordamos pela última vez sem nem prestar atenção,
quase a praguejar? Tudo era cinzento, viscoso e resignado: o céu, as pessoas, a cidade
estafada por vários dias de greve dos transportes públicos. À semelhança de outros milhões
de parisienses, Florence e eu começávamos como zumbis, olhar vazio e feições cansadas,
aquele novo dia de descida para uma barafunda inextricável. Executava maquinalmente
todos os gestos simples que hoje me parecem miraculosos: fazer a barba, vestir a roupa,
engolir uma tigela de chocolate. Algumas semanas antes tinha marcado aquela data para
testar o novo modelo de uma indústria automobilística alemã, cujo importador poria à
minha disposição um carro com motorista durante o dia inteiro. Na hora marcada, um rapaz
bem treinado está esperando à porta do edifício, encostado a uma BMW cinza-metálica.
Pela janela, observo o carrão maciço, suntuoso. Com minha velha jaqueta jean, pergunto-
me que impressão vou dar naquele carango para alto executivo. Apóio a testa no vidro para
sentir o frio, Florence me acaricia a nuca com delicadeza. Os adeuses são furtivos, nossos
lábios mal se roçam. Já me lanço escada abaixo, pelos degraus que cheiram a encáustica.
Esse vai ser o último odor dos tempos passados.
I read the news today, oh boy...
Entre dois boletins apocalípticos sobre o trânsito, a rádio transmite uma música dos Beatles,
"A day in the life".Eu ia escrever uma "velha" música dos Beatles, puro pleonasmo, já que
a última gravação deles foi em 1970. Pelo bois de Boulogne, a BMW desliza como tapete
voador, casulo de maciez e voluptuosidade.O motorista é simpático. Conto-lhe meus planos
para a tarde: ir buscar meu filho em casa da mãe dele, a quarenta quilômetros de Paris, e
trazê-lo para a cidade no começo da noite.
He did not notice that the lights had changed...
Desde que eu abandonara o domicílio familiar em julho, Théophile e eu não tínhamos ainda
estado realmente cara a cara, numa conversa de homem para homem. Planejo levá-lo ao
teatro, para ver o novo espetáculo de Arias, e depois ir comer umas ostras numa cervejaria
da praça Clichy. Já decidi, vamos passar o fim de semana juntos. Só espero que a greve não
contrarie tais projetos.
I'd like to turn you on...
Gosto do arranjo desse trecho, quando toda a orquestra sobe num crescendo até a explosão
da nota final. Parece um piano caindo do sexagésimo andar. Pronto: Levallois. A BMW
pára em frente ao jornal. Marco encontro com o motorista para as quinze horas.
Na minha escrivaninha, só um recado, mas que recado! Preciso ligar urgentemente para
Simone V., ex-Ministra da Saúde, ex-mulher mais popular da França e ocupante vitalícia do
escalão mais alto do Panteão imaginário do jornal. Como esse tipo de telefonema nunca é
ditado pelo acaso, começo perguntando o que poderíamos ter dito ou feito para provocar
alguma reação naquela personagem quase divina. "Acho que ela não ficou muito contente
com a foto do último número", diz eufemisticamente meu assistente. Consulto o dito
número e topo com a foto incriminada, montagem que mais ridiculariza do que valoriza
nosso ídolo. Esse é um dos mistérios da nossa profissão. Trabalhamos semanas num
assunto, que passa e repassa entre as mãos mais experientes, e ninguém vê a mancada,
perfeitamente detectável, aliás, por um estudante de jornalismo depois de quinze dias de
estágio. Cai sobre mim uma verdadeira tempestade telefônica. Como está convencida de
que há anos o jornal urde um complô contra ela, tenho enorme dificuldade para convencê-la
de que, pelo contrário, lá ela goza de verdadeiro culto. De ordinário, esses reparatórios
ficam por conta de Anne-Marie, diretora da redação, que com todas as celebridades
demonstra uma paciência de Jô, ao passo que eu, em se tratando de diplomacia, estou mais
para capitão Haddock do que para Henry Kissinger. Quando desligamos, depois de
quarenta e cinco minutos, sinto-me um verdadeiro capacho.
Embora seja de bom-tom achar que são reuniões "um tanto aborrecidas", as senhoras e os
senhores redatores-chefes de grupo não perderiam por nada no mundo um daqueles
almoços que Geronimo (também cognominado Luís XI e aiatolá por seus fãs) organiza para
"pôr o papo em dia". É lá, no último andar, na mais vasta das salas reservadas às refeições
da alta direção, que o grande chef destila em pequenas doses os sinais que permitem
calcular a cota de amor de seus súditos. Entre a homenagem secundada por uma voz de
veludo e a réplica seca como uma ferroada, ele possui todo um repertório de mímicas,
caretas e coçaduras de barba que ao longo dos anos aprendemos a descodificar. Daquela
última refeição quase não me lembro, a não ser de que bebi água à guisa de taça de
condenado. No menu, acho que havia carne de boi. Talvez tenhamos contraído a doença da
vaca louca, de que ainda não se falava na época. Como sua incubação é de quinze anos, dá
tempo de ficar vendo chegar. A única morte anunciada era a de Mitterrand, cujas notícias
mantinham Paris em suspense. Será que ele sobreviveria ao fim de semana? Na verdade,
ainda viveria mais um mês inteiro. O aborrecido mesmo desses almoços é que eles são
intermináveis. Quando me encontro de novo com o motorista, a tarde já começa a se pôr
sobre as fachadas de vidro. Para ganhar tempo, esgueiro-me como ladrão pelo escritório,
sem me despedir de ninguém. De qualquer modo, são mais de quatro horas.
- Vamos ficar presos na ratoeira.
- Desculpe.
- É mais pelo senhor...

Por um instante, tive vontade de mandar tudo passear: cancelar o teatro, adiar a visita de
Théophile, enfiar-me na minha cama com um pote de queijo branco e um livro de palavras
cruzadas. Decido resistir à sensação de abatimento que me atenaza.
- É só pegar a estrada.
- Como quiser.

Por mais potente que seja, a BMW empaca na balbúrdia da ponte Suresnes. Passamos ao
longo do campo de corridas de Saint-Cloud, do hospital Raymond-Poincaré em Garches.
Não consigo passar por lá sem ter uma recordação sinistra de infância. Quando estudava no
Liceu Condorcet, um professor de ginástica nos levava ao estádio de la Marche, em
Vaucresson, para aulas ao ar livre, que eu abominava mais que tudo no mundo. Um dia, o
ônibus que nos transportava colheu em cheio um homem que saía correndo do hospital,
sem olhar para lado nenhum. Foi um tremendo barulho, uma freada fortíssima, e o sujeito
morreu na hora, deixando uma trilha de sangue sobre o vidro do ônibus. Era uma tarde de
inverno como esta. À espera de que fossem feitas todas as perícias, chegou a noite. Outro
motorista nos levou de volta a Paris. No fundo do ônibus, íamos cantando "Penny Lane"
com voz trêmula. Sempre os Beatles. De que canções se lembrará Théophile quando tiver
quarenta e quatro anos?
Depois de uma hora e meia de estrada chegamos ao destino, diante da casa onde morei
durante dez anos. A neblina cobre o grande jardim por onde ressoaram tantos gritos e
gargalhadas nos tempos de felicidade. Théophile nos espera na entrada, sentado na mochila,
pronto para o fim de semana. Gostaria de telefonar para Florence, minha nova
companheira, e ouvir sua voz, mas ela deve ter ido para a casa dos pais, acompanhar a
prece da sexta-feira à noite. Tentarei ir até lá depois do teatro. Só uma vez assisti a esse
ritual numa família judia. Foi ali mesmo, em Montainville, em casa do velho médico
tunisiano que pôs meus filhos no mundo. A partir daí, tudo se torna incoerente. Minha
visão se turva e minhas idéias se embaralham. Assim mesmo sento ao volante da BMW,
concentrando-me nos clarões alaranjados do painel. Manobro em marcha lenta, e no feixe
dos faróis mal distingo as curvas que já fiz milhares de vezes. Sinto o suor perolar-me a
testa, e quando cruzamos com um carro vejo-o em dobro. No primeiro cruzamento encosto
no meio-fio. Saio titubeante da BMW. Mal me seguro em pé. Desabo sobre o banco
traseiro. Tenho uma idéia fixa: voltar à cidadezinha, onde também mora minha cunhada
Diane, que é enfermeira. Semiconsciente, peço a Théophile que vá correndo buscá-la assim
que chegarmos à frente da casa dela. Alguns segundos mais tarde, Diane está ali. Examina-
me em menos de um minuto. Seu veredicto: "É preciso ir para a clínica. O mais depressa
possível." São quinze quilômetros. Dessa vez o motorista sai cantando pneu em estilo
esportivo. Sinto-me esquisitíssimo, como se tivesse engolido LSD, e digo-me que essas
fantasias não são mais para a minha idade. Em nenhum instante me passa pela cabeça que
talvez esteja morrendo. A caminho de Mantes, a BMW vai ronronando agudinho, e nós
ultrapassamos toda uma fila, abrindo caminho a poder de buzinadas. Quero dizer alguma
coisa, como: "Esperem. Vai melhorar. Não vale a pena arriscar um acidente", mas da minha
boca não sai som algum, e minha cabeça balança, incontrolável. Os Beatles me voltam à
memória com a canção daquela manhã. And as the news were rather sad, I saw the
photograph. Rapidinho chega a clínica, as pessoas correm por todos os lados. Transferem-
me para uma cadeira de rodas; meus membros estão bambos. As portas da BMW estalam
baixinho. Algum dia alguém me disse que se conhece o bom carro pelo timbre desse clique.
As lâmpadas fluorescentes dos corredores ofuscam-me a vista. No elevador, desconhecidos
me dizem palavras encorajadoras, e os Beatles atacam o final de "A day in the life". O
piano caindo do sexagésimo andar. Antes de espatifar-se, tenho tempo para um último
pensamento. É preciso cancelar o teatro. De qualquer modo, nós teríamos chegado tarde.
Vamos amanhã à noite. A propósito, onde foi parar Théophile? E afundo no coma.






























A VOLTA
O verão está chegando ao fim. As noites ficam mais frescas, e eu volto a esconder-me
debaixo dos grossos cobertores azuis carimbados: "Hôpitaux de Paris". Os dias vão me
trazendo de volta, cada um com seu quinhão, os rostos conhecidos que ficaram entre
parênteses no tempo das férias: a camareira, o dentista, o mensageiro, uma enfermeira que
se tornou avó de um menino chamado Thomas e o homem que em junho quebrou um dedo
numa armação de cama. Reencontram-se marcas e hábitos, e essa primeira volta ao hospital
fortalece em mim uma certeza: sem dúvida comecei uma nova vida, e é aqui, entre este
leito, esta cadeira de rodas, estes corredores, que ela transcorre, em nenhum outro lugar.
Chego a resmungar a musiquinha do Canguru, hino-parâmetro de meus progressos em
ortofonia:
"O Canguru pulou o muro,
O muro do zôo,
Meu Deus como era alto,
Meu Deus como era lindo."

Da volta dos outros só recebo ecos abafados. Volta às atividades artísticas, volta às aulas; é
a volta do parisiense, de que logo vou saber mais coisas quando os viajantes retomarem o
caminho de Berck com os alforjes cheios de novidades mirabolantes. Parece que Théophile
já está circulando com aqueles tênis em cujos saltos se acende uma luzinha a cada pisada.
Dá pra segui-lo no escuro. Enquanto espero, saboreio a última semana de agosto com o
coração quase leve, pois pela primeira vez desde muito tempo não tenho aquela horrível
impressão de contagem regressiva que se inicia no começo das férias e estraga
inexoravelmente a maior parte delas.
Com os cotovelos sobre a mesa rolante de fórmica que lhe serve de escrivaninha, Claude
relê estes textos que vimos extraindo pacientemente do vazio todas as tardes, há dois meses.
Sinto prazer em rever certas páginas. Já outras nos decepcionam. Juntando tudo dá um
livro? Enquanto a ouço, fico observando seus cachos escuros, as faces muito pálidas que o
sol e o vento pouco rosaram, as mãos engastadas de longas veias azuladas e a cena que se
tornará imagem-lembrança de um verão passado em estudos. O caderno azul, cujos rostos
de folha ela vai preenchendo com uma caligrafia exuberante e conscienciosa, o estojo
escolar cheio de esferográficas, a pilha de lenços de papel prontos para as piores
expectorações e a bolsa de ráfia vermelha, de onde ela extrai, vez por outra, uma moeda
para ir buscar café. Pelo zíper entreaberto da bolsinha, percebo uma chave de hotel, um
bilhete de metrô e uma nota de cem francos dobrada em quatro, como se fossem objetos
trazidos por uma sonda espacial enviada à Terra para estudar os tipos de hábitat, de
transporte e de troca comercial em vigor entre os terráqueos. Esse espetáculo me deixa
desamparado e pensativo. Haverá neste cosmo alguma chave para destrancar meu
escafandro? Alguma linha de metrô sem ponto final? Alguma moeda suficientemente forte
para resgatar minha liberdade? É preciso procurar em outro lugar. É para lá que vou.

Berck, julho/agosto de 1996.

FIM.
SEMPRE-LENDO O MELHOR GRUPO DE TROCA DE LIVROS DA INTERNET
Richard Simonetti
Quaisquer que sejam suas origens, geralmente a depressão instala-se a partir de nossas disposições íntimas e da maneira como enfrentamos os desafios da existência. Nesse particular, a experiência tem ensinado que o bom humor e a reflexão, o rir aliado ao refletir,
fortalecem o ânimo e iluminam caminhos, permitindo-nos evitar ou deixar seus escuros abismos,
marcados pelo desencanto de viver. Não há depressão que resista ou se instale num coração risonho, plugado em cérebro disposto a justificar sua existência com o exercício da razão. Essa é a proposta deste livro, conforme o estilo consagrado do autor, oferecendo páginas bem humoradas como introdução a reflexões sobre a existência humana que nos permitem espantar tensões e angústias que alimentam a depressão.
tÉÈÊÊËÊHlÈ
EDITORA
85-86359-47-5

9788586359477
ABAIXO A DEPRESSÃO!
Tristeza no coração é como traça no pano.
Camões
Estar triste é quase sempre pensar em si mesmo.
France
Se existe um inferno na Terra, ireis encontrá-lo no coração do homem deprimido.
Burton
Proíbe a entrada da tristeza em teu coração, mas se já entrou, proíbe-lhe a saída ao rosto.
São Martinho Dumiense
Os que estão ocupados não têm tempo
para as lágrimas.
Byron
Há gente que procura a tristeza como se precisasse
sofrer para sentir. Paul Bourget
Tristeza não paga dívidas.
Ditado popular
SUMÁRIO
Aviso Oportuno............................13
Das Baratas...............................17
Santa Simplicidade .........................23
Toc-Toc-Toc...............................27
Diálogos .................................31
Se Fosse um Homem de Bem .................35
Linhas Divisórias...........................39
Baldes D'água........... ..................43
Salvo-Conduto.............................49
Para Evitarem Surpresas.....................53
Observar os Sinais..........................59
Não Mandem Gravatas......................63
O Santo Casamenteiro.......................69
O Preguiçoso..............................73
Cegos....................................77
Ingenuidade...............................81
Ranger os Dentes...........................85
Dar o Pão ................................91
O Jogo da Atenção........................ .95
A Música e a Letra .........................99
Com ou Sem .............................103
A Ajuda Divina ...........................107
Resoluções...............................113
Cidadania...............
Do Modo mais Difícil.....
Investimentos............
Vamos Aderir?...........
Dia dos Vivos............
Até a Última Linha .......
O Destino de Nossa Família
O Garçom .............
O Que se Pode Levar ....
Aviso Oportuno

Caro leitor.
Para que você não se julgue ludibriado por estelionato literário ou propaganda enganosa, devo dizer-lhe que não há, nos trinta e um capítulos deste livro, nenhuma referência explícita às causas endógenas ou exógenas, físicas ou espirituais da depressão.
Faço isso deliberadamente.
As pessoas ameaçadas por esse que foi considerado o mal do século XX, e certamente o será deste, acabam enfastiadas com as incontáveis referências e abordagens sobre o assunto.
Se for o que lhe acontece, imagino que também esteja farto de prescrições médicas e, particularmente, dos insistentes e dispensáveis conselhos que todos têm para dar, e disso fazem questão, sobre nossas dores e dissabores.
Quaisquer que sejam suas origens, esteja certo de

que a "deprê", como dizem os jovens, sempre econômicos no vernáculo, geralmente instala-se a partir de nossas disposições íntimas e da maneira como enfrentamos os desafios da existência. Nesse particular, a experiência tem ensinado que o bom humor e a reflexão, o rir aliado ao refletir, fortalecem o ânimo e iluminam caminhos, permitindo-nos evitar ou deixar seus escuros abismos, marcados pelo desencanto de viver.
Não há depressão que resista ou se instale num coração risonho, plugado em cérebro disposto a justificar sua existência com o exercício da razão.
***
Não posso prometer que o dinheiro lhe será devolvido pela editora, caso não fique satisfeito com este "produto", como o fazem os agenciadores de vendas.
Estou certo, entretanto, de que há de sentir-se feliz desde já, ao saber que o dinheiro que investiu neste "medicamento" será inteiramente aplicado nos serviços assistenciais do Centro Espírita Amor e Caridade. Beneficiará gente paupérrima, que tem motivos de sobra para ficar deprimida.
Quanto ao mais, conforme ensinam os indefec-
tíveis manuais de auto-ajuda, pensamento positivo! Nesse propósito, como reforço para enfrentar serenamente as contrariedades que alimentam a depressão, diga, altissonante, a frase bem-humorada que está numa camiseta que comprei em viagem pelo Nordeste: "Xô aperreio1."
Bauru, dezembro de 2003.
Das baratas
ão era um modelo de dona-de-casa, meio para a
1. Não era um modelo de dona-de-casa, meio para displicência.
Não obstante, esforçava-se por evitar restos de alimentos ao léu e acúmulo de pratos e panelas por lavar, mantendo relativa ordem na cozinha.
Isso porque, como é próprio da sensibilidade feminina, guardava instintivo horror às baratas. Elas costumavam fazer incursões quando seu lado desleixado aflorava.
Então, literalmente, sapateava, espavorida, a gritar por socorro, como se ameaçada por monstros.
Depois, reclamava, indignada:
- Só queria saber por que Deus criou esse bicho indecente!
Em meio a um desses chiliques, o filho de sete anos, na sua inocência, tentou uma explicação:
- Será, mamãe, que não foi para você botar ordem na cozinha?
***
Bem, caro leitor, certamente não foi para isso apenas, mesmo porque as baratas são fósseis vivos.
Povoam o planeta há milhões de anos, muito antes do aparecimento do Homem, ou que existissem donas de casa às voltas com elas.
Terá sido um cochilo divino, um erro de planejamento?
Considerando que o Criador "á a inteligência suprema do Universo, causa primária de todas as coisas ", como está na questão primeira de O Livro dos Espíritos, certamente não agiu como mero aprendiz de feiticeiro ou um doutor Frankenstein a dar o sopro da vida a aberrações.
Obviamente, o Eterno tinha um objetivo ao colocar em nosso planeta esse famigerado ortóptero, da família dos blatídeos, vulgo "barata".
Quando não benéfico estimulante da limpeza na cozinha, e outras funções menos conhecidas, temos nele
um dos estágios pelos quais passa o princípio espiritual em evolução, no desdobramento de experiências necessárias ao seu acrisolamento, a caminho da razão.
Não fique perplexo, leitor amigo. É isso mesmo!
Provavelmente já andamos por lá, no reino das baratas, em priscas eras, quando éramos apenas um projeto de Espírito, tanto quanto animamos multifários seres, no reino vegetal e animal, até que começássemos a exercitar o bestunto.
***
Ainda que desconhecendo, talvez, tais meandros da evolução anímica, Franz Kafka (1883-1924), o genial escritor tcheco, descreve, no livro Metamorfose, a aterradora experiência de um homem que se transforma numa barata.
Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas,
agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos...
Horripilante fantasia, que inverte a ordem natural e evoca a metempsicose, doutrina milenar, presente nas tradições religiosas das mais antigas culturas. É uma idéia equivocada, a contrariar a realidade proposta pela Doutrina Espírita:
A evolução é via de mão única.
Para nossa felicidade, jamais retornaremos a estágios inferiores da Criação, embora muita gente bem o mereça.
Creio que você já ouviu, amigo leitor, em relação a certas pessoas, expressões assim: barata tonta (não sabe o que faz), entregue às baratas (sem rumo, abandonado, negligenciado), sangue de barata (não reage às provocações).
Pois é! Se existisse a involução, teríamos a ficção de Kafka transformada em realidade.
***
Em sua infinita sabedoria, o Criador estabelece que, além de servir como degrau para o princípio espiritual em evolução, os seres inferiores tenham outras utilidades, favorecendo o equilíbrio ecológico, que sustenta a vida na Terra.
Às baratas reservou, também, a nobre missão de estimular disciplinas que nos ajudam a vencer a
displicência que caracteriza o ser humano, no estágio de evolução em que nos encontramos, envolvendo, não raro, a higiene e a limpeza. Abençoada barata!
Santa Simplicidade!
condenado foi conduzido ao local onde arderia em
O condenado foi conduzido ao local onde arderia em chamas, uma das mais cruéis formas de execução adotadas pelos tribunais inquisitoriais, na Idade Média.
Nas proximidades, observou, admirado, a iniciativa de uma senhora. Recolhia gravetos secos e os juntava à lenha que seria usada, a fim de facilitar a combustão.
Não se contendo, exclamou:
- O santa simplicidade!
Essa observação é atribuída a João Huss (1369-1415), célebre teólogo e sacerdote tcheco, precursor da Reforma Protestante, injustamente condenado à fogueira por atrever-se a contestar determinados dogmas, claramente incompatíveis com a mensagem evangélica.
Admirável a sua coragem. Enfrentou com serenidade as chamas, não se furtando ao comentário espirituoso.
Diga-se de passagem: deram-lhe uma última oportunidade para salvar-se da fogueira, renegando suas idéias, ao que redarguiu:
- Deus sabe que nunca ensinei ou preguei o que me tem sido atribuído por falsas testemunhas. Tenho desejado apenas uma coisa - a conversão dos homens. Nesta verdade do Evangelho, que tenho transmitido, quero alegremente morrer.
E deixou-se queimar, entoando cânticos de louvor a Jesus.
Postura típica dos grandes missionários. Convictos das idéias que defendem, situam-se acima das limitações de seu tempo e enfrentam o establishment sem temores ou dúvidas, dispostos ao sacrifício da própria vida, a fim de manter fidelidade aos seus princípios.
Como ocorreu com o próprio Cristo, o martírio desses heróis dispara reações em cadeia que culminam com avanços significativos em favor do progresso humano.
O aspecto curioso para o qual chamo sua atenção, amigo leitor, é a iniciativa daquela mulher.
Julgava, em santa simplicidade, como destaca o mártir, cumprir piedoso dever.
Literalmente, pôs-se a jogar lenha na fogueira.
Essa expressão define uma iniciativa freqüente das pessoas, envolvendo palavras e atitudes que tendem a agravar situações complicadas.
Há uma diferença significativa:
Raramente têm a marca da inocência.
Exprimem pura maldade, em expressões assim:
• Tem razão em desconfiar de seu marido. Eu o vi conversando com uma loira, em atitude suspeita!
• Sua antipatia por aquele indivíduo é justificável. Noutro dia falou mal de você!
• Fez bem em afastar-se daquelas pessoas. São expoentes da hipocrisia!
• Só você mesmo, para tolerar as impertinências desse seu amigo. É um neurótico!
• Suas informações sobre nosso chefe são fichinha. .. Sei muito mais!
• Se fosse comigo procurava a polícia. Botaria na cadeia esse mau-caráter que o prejudicou!
• Não faça acordo nenhum. Cobre seus direitos, tintim por tintim!
Jesus exalta como bem-aventurados os pacificadores, em O Sermão da Montanha.
Informa que serão chamados Filhos de Deus.
Todos somos frutos do amor divino, mas, para que nos habilitemos à condição de herdeiros dos patrimônios celestes, é fundamental que nos disponhamos a trabalhar com o Criador pela pacificação dos homens.
Se fizermos o contrário, não teremos nem mesmo o benefício da "simplicidade" para justificar nossas ações. Em dois mil anos de Cristianismo, estamos todos perfeitamente conscientes de que não devemos jogar lenha ou, mais modernamente, gasolina, na fogueira das dissensões humanas.
Toc-Toc-Toc
Três velhinhas tomavam o chá da tarde. Preocupada, ponderava uma delas:
- Minhas queridas, creio que estou ficando esclerosada. Ontem me vi com a vassoura na mão e não me lembrava se varrera a casa ou não.
- Isso não é nada, minha filha - comentou a segunda -, noutro dia, de camisola ao lado da cama, eu não sabia se tinha acabado de acordar ou se me preparava para dormir.
- Cruzes! - espantou-se a terceira. - Deus me livre de ficar assim!
E deu três pancadas na mesa, com o nó dos dedos,
toc-toc-toc, enfatizando:
- Isola!
Logo emendou:
- Esperem um pouco. Já volto. Tem gente batendo na porta!
***
Pois é, leitor amigo, parece que velhice é sinônimo de memória fraca, raciocínio lento, confusão mental...
Sabemos que a evocação do passado e o registro do presente dependem das conexões entre os neurônios, as chamadas sinapses. Há uma perda de ambos com o passar do tempo.
O cérebro também envelhece.
Mas, e o Espírito?
Não reside no ser pensante, imortal, a sede da memória?
Não está o Espírito isento de degeneração celular? Obviamente, sim!
Ocorre que, enquanto encarnados, dependemos do corpo para as inserções mnemónicas na dimensão física, tanto quanto o pianista depende do piano ou o orador depende das cordas vocais.
Uma das razões pelas quais não temos consciência das vidas anteriores é a ausência de registros relacionados com elas em nosso cérebro.
Pelo mesmo motivo, temos dificuldade para lembrar as experiências extracorpóreas, durante as horas de
sono, na emancipação da Alma, como define Allan Kardec.
Natural, portanto, que tudo o que afeta a massa cinzenta, perturbe a memória - acidentes, concussões cerebrais, distúrbios circulatórios, doenças degenerativas, envelhecimento...
***
Sabe-se hoje que é possível prolongar o viço, cultivando existência saudável - ginástica, alimentação adequada, disciplina de trabalho e repouso, ausência de vícios...
Da mesma forma, podemos conservar, até a idade provecta, a acuidade mental, desde que nos dispo-nhamos a elementar cuidado: exercitar os miolos. Todo labor intelectual, que implica em movimentação dos neurônios, é salutar.
Neste aspecto, os pesquisadores têm valorizado a leitura. A concentração exigida, quando lemos, é um exercício prodigioso para o cérebro, tanto mais vigoroso quanto maior o grau de concentração e o empenho por digerir o que lemos.
A experiência demonstra: as pessoas que cultivam o hábito de ler chegam mais longe com lucidez, preservam a memória, não obstante o avançar dos anos.
Sem movimentar os neurônios a velhice perde-se em sombras.
É preciso conservar a vivacidade, o ideal de aprender, de desdobrar experiências, considerando que sempre é possível ampliar horizontes, fazer novas aquisições.
Alguém poderia contestar, afirmando que seria pura perda de tempo na idade provecta, em contagem regressiva para vestirmos o pijama de madeira e nos transferirmos para a cidade dos pés juntos.
Ocorre que lá ficarão apenas nossos despojos carnais.
Espíritos imortais, habitaremos outros planos do infinito.
Portanto, nenhum aprendizado será ocioso. Um velhinho de oitenta anos propôs-se a tocar piano. O professor alertou:
- Estudo longo e cansativo. Pela ordem natural, o senhor não usufruirá desse aprendizado.
E ele, animado:
- De forma alguma! Se não der para tocar aqui, serei pianista no Além!
Certíssimo!
É assim que crescemos espiritualmente e mantemos "azeitadas" as engrenagens da mente, para que nunca nos falte esse élan que valoriza e torna feliz a existência, promovendo nossa evolução.
Praza aos céus seja essa a marca de nossos dias.
Toc-toc-toc!
Diálogos
O casal vivia às turras, brigas homéricas, sarcasmos, ironias recíprocas...
Houve o que chamaríamos ruptura da relação, naquela fase em que até o olhar incomoda.
Esse é um aspecto curioso da vida conjugal.
No período áureo, de envolvimento passional, os pombinhos se entendem pelos olhos. Parecem ler o pensamento, um do outro.
Com o desgaste da relação, olhar dá choque.
- O que foi? Nunca viu?!
É o fim do casamento.
Um casal chegou a esse extremo.
Não obstante, ambos consideraram a inconveniência da separação. Tinham cinco filhos. Nenhum dos dois admitia ficar sem eles.
E havia a questão financeira. Dividida a família, seriam duas casas para manter, despesas dobradas, nível de conforto prejudicado.
Assim, decidiram continuar sob o mesmo teto, mas... sem papo!
Situação embaraçosa!
Há na vida conjugal a necessidade fundamental de comunicação, até por questões práticas, envolvendo a economia doméstica.
O jeito foi ter os filhos como intermediários, gerando memoráveis "diálogos".
Ela:
- Diga ao seu pai que acabou o arroz. Ele:
- Diga à sua mãe que está gastando demais. Ela:
- Diga ao seu pai que vá para a cozinha. Ele:
- Diga à sua mãe que vá para o diabo que a carregue!
Ela:
- Diga ao seu pai que não é preciso. Moro com ele!
Pior aconteceu quando os filhos saíram de casa. Alguns se casaram, outros foram trabalhar fora.
Já idosos e acomodados, sem coragem de encarar a separação, passaram a se comunicar através de bilhetes, com recados sintéticos e malcriados:
- Diabo, acabou o arroz!...
***
Bem, prezado leitor, vida conjugal não é bolinho, como se diz popularmente.
Hippolyte Taine (1828-1893), filósofo e historiador francês, dizia:
Estuda-se um ao outro durante três semanas; ama-se três meses; disputa-se três anos; tolera-se trinta anos; e os filhos recomeçam.
Ouve-se, no meio espírita, a recomendação de "tolerar o cônjuge nesta vida, para livrar-se dele na outra ", inspirada na idéia macabra de que casamento é carma, uma cruz a ser carregada até o calvário de redenção, envolvendo, não raro, a convivência com desafetos de existências anteriores.
Básico engano! A finalidade do casamento não é suportarem-se reciprocamente os cônjuges, como quem cumpre penalidade.
Casamento é ficha de matrícula na Escola do Lar, oferecendo-nos o ensejo de aprender a lição fundamental: mudar de pessoa, na conjugação do verbo de nossas ações. Da primeira do singular - eu, sob inspiração do egoísmo, para a primeira do plural - nós,
sob a bênção ao altruísmo.
A partir do empenho por essa mudança, surge a família, célula básica da sociedade, bênção de Deus em favor de nossa estabilidade espiritual e emocional.
Obviamente, há dificuldades, envolvendo a convivência de dois seres que são diferentes, sob o ponto de vista biológico e emocional, mas serão facilmente superadas se houver a consciência de que estamos juntos para nos harmonizarmos, não para nos suportarmos.
Como dizia um confrade:
- Jesus espera que nos amemos, não que nos amassemos!
Sempre será útil, nesse propósito, o exercício de civilidade.
Não me refiro ao verniz social que adquirimos na escola, mas à disciplina das emoções, considerando ser imperioso que respeitemos o próximo, a começar por aquele que está mais perto de nós, alguém que vive sob o mesmo teto.
Se houver respeito, ficam abolidas a agressividade, a palavra áspera, a prevaricação, a displicência, a desatenção, a omissão, males que conturbam o lar.
Esforçando-nos nesse sentido, haveremos de nos dar tão bem que a idéia da separação jamais nos ocorrerá, ainda que convivendo com hipotéticos desafetos do pretérito.
Se Fosse um Homem de Bem...
Acidente grave!
O carro derrapou na pista molhada e capotou, caindo na ribanceira. Perda total.
Milagrosamente, o motorista escapou, ileso.
Em casa, após abraçar os familiares, orou, agradecendo a proteção do Céu.
Espírita, buscou inspiração em O Evangelho segundo o Espiritismo, abrindo-o ao acaso.
Leu, no capítulo V:
Se fosse um homem de bem, teria morrido.
Dúvida atroz. Como deveria sentir-se:
Eufórico por não ter morrido?
Acabrunhado por não ser um homem de bem?
Interpretando literalmente o texto, poderíamos supor que os bons são mais suscetíveis de... morrer!
Os maus são preservados, tanto quanto possível, talvez para que sofram mais, purguem seus pecados e se danem!
Obviamente, não é assim, embora tenhamos Espíritos bons que vêm à Terra para jornada breve, retomando, sem delongas, ao Plano Espiritual.
A propósito, lembro-me de um mentor espiritual que, preocupado com seus pupilos, um casal que retardava o cumprimento de compromissos de trabalho junto à infância desvalida, reencarnou como seu filho.
Desde logo despertou nos pais imenso carinho, em sublime ligação afetiva.
Aos cinco anos adoeceu e desencarnou, conforme planejara.
A dor de perdê-lo anulou nos genitores todas as ilusões e despertou neles a vocação religiosa.
Ligando-se ao Espiritismo, logo se inspiraram no cumprimento da tarefa procrastinada, dedicando-se, amorosamente, às crianças de um orfanato.
***
Fénelon, um dos colaboradores de Kardec na
codificação da Doutrina Espírita, assina a mensagem que tem por título aquela citação, que constitui equivocado ditado popular.
Ele adverte que seria uma blasfêmia assim considerar.
Há gente boa que vive bastante.
Há gente má que tem existência breve.
Basta lembrar os jovens que se envolvem com a criminalidade. A expectativa de vida para eles é de vinte anos, não por prêmio à bondade, mas por lamentável comprometimento com a maldade.
Poucos ultrapassam essa idade, habilitando-se a penosos reajustes no plano espiritual e atormentados resgates em futuras reencarnações.
***
Não há dia e horário determinados para morrer. Salvo circunstâncias excepcionais, a extensão da existência humana relaciona-se com nossas ações. Regra básica:
Os que vivem para o Bem são protegidos, evitando-se, tanto quanto possível, lhes suceda algo não programado.
Podem ter vida breve (como ocorreu com o mentor que planejou desencarnar aos cinco anos), média ou longa, mas, normalmente, de conformidade com o prazo que lhes foi concedido.
Os que se comprometem com o erro, o vício, o
crime, a irresponsabilidade, a imprudência e outros desvios, próprios da imaturidade humana, ficam à deriva, no encapelado mar em que se aventuram. Correm riscos maiores.
Portanto, meu caro leitor, nossa única preocupação deve ser a de sustentar existência nobre e digna, cumprindo nossos deveres.
Assim, quando partirmos, em qualquer circunstância, poderemos dizer que se cumpriu a vontade de Deus.
Linhas Divisórias
Conta Ramiro Gama, no livro Lindos Casos de Chico Xavier, que durante algum tempo o grande médium realizou reuniões mediúnicas em Pedro Leopoldo, contando apenas com seu irmão José, que era o dirigente e o doutrinador.
Certa feita o mano viajou, atendendo a compromissos profissionais. Era preciso arranjar um substituto, a fim de que o trabalho de assistência espiritual não fosse interrompido.
Mudara-se para Pedro Leopoldo um senhor rústico de nome Manoel, conceituado como experiente doutrinador de Espíritos obsessores.
José foi procurá-lo.
Manoel, prestativo, aquiesceu de boa vontade.
No dia aprazado compareceu à reunião, portando grosso exemplar da Bíblia, que costumava usar em suas pregações.
Manifestou-se um mentor, a recomendar:
- Meu irmão, esses Espíritos que vão se apresentar são endurecidos. Aplique neles o Evangelho, com veemência.
- Pois não! Vossas ordens serão fielmente cumpridas. Logo em seguida, Chico recebeu o primeiro
obsessor.
Manoel, interpretando ao pé da letra a recomendação, passou a mão na Bíblia e, usando-a como um porrete, passou a desferir golpes na cabeça do médium.
- Tome Evangelho! Tome Evangelho!...
A reunião foi imediatamente interrompida. Chico ficou vários dias com dolorido torcicolo. Sempre de bom humor, comentava:
- Sou, talvez, a única pessoa que já recebeu uma "surra de Bíblia".
***
O hilário episódio teria destaque num compêndio sobre excentricidades na prática mediúnica.
Ressalta o fato de Manoel não saber a diferença entre veemência e violência.
Freqüentemente vemos na seara espírita algo
semelhante, envolvendo companheiros incapazes de distinguir linhas divisórias, em vários aspectos da vivência cristã.
Alguns exemplos:
• Diante do malandro contumaz. A energia cristã:
- Deixaremos de atendê-lo até que se disponha a mudar.
A agressividade:
- Ponha-se para fora! Mau-caráter! Cara-de-pau!
• Diante do deslize alheio. O comentário cristão:
- Não nos cabe julgar. Oremos por ele. A fofoca:
-E tem mais...
• Diante do aprendiz pouco assíduo. A disciplina cristã:
- Recuperemos o tempo perdido. A intransigência:
- Está eliminado!
• Diante dos desvios doutrinários. A iniciativa cristã:
- Vamos organizar um estudo. A prepotência:
- Vamos acabar com eles!
• Diante dos problemas de relacionamento: O entendimento cristão:
- Eu preciso melhorar. A pretensão:
- Ele precisa melhorar.
• Diante das dificuldades no serviço. A postura cristã:
- Perseverarei. A inconstância:
- Desistirei!
Para definir quando deixamos de ser cristãos, caindo no resvaladouro das fraquezas humanas, é preciso conquistar os dons da compreensão, filha da reflexão.
Ajudaria muito o empenho da auto-análise, tendo as lições de Jesus por parâmetro.
Se pretendemos um bom trabalho, aproveitando as oportunidades abençoadas de edificação que a Doutrina Espírita nos oferece, é preciso cuidado.
Estejamos atentos às linhas divisórias.
Evitemos usar o conhecimento espírita-cristão como se fosse arma contundente, a fustigar o crânio de nosso irmão.
Baldes D'Agua
Conta-se que Xantipa, esposa de Sócrates (470-399 a.C), possuía pavio curto.
Inquieta e irritadiça, não raro ocasionava-lhe problemas.
Certa feita, depois de azucriná-lo por ninharias, enfurecida com sua serenidade, jogou-lhe um balde d'água.
Aos amigos e discípulos que observaram aquela impertinência, ele comentou, bem-humorado:
- Depois das trovoadas sempre vem a chuva.
Reação típica do filósofo, cujo comportamento era marcado pela serenidade, mesmo diante das turbulências provocadas por aqueles que o rodeavam, particularmente a voluntariosa cara-metade.
As raízes de sua estabilidade emocional estavam nele próprio. Não dependia de fatores externos, dos humores alheios.
Rudyard Kipling (1865-1936), reportando-se às características do homem de verdade, com agá maiúsculo, destaca, no famoso poema "Se":
Se és capaz de conservar o teu bom senso e a calma, Quando os outros os perdem, e te acusam disso.
Exatamente como Sócrates fazia, mesmo ao enfrentar situações bem mais graves que aquele inusitado banho.
Demonstrou isso diante da própria Xantipa, quando foi condenado a beber cicuta pelo crime de estimular as pessoas a pensar.
Ela, agitada:
- Sócrates, os juízes te condenaram à morte! Ele, tranqüilo:
- Os magistrados também estão condenados, pela Natureza. Também vão morrer!
Ela, inconformada: -És inocente...
Ele, imperturbável:
- Querias que eu fosse culpado?
***
O caminho dessa admirável estabilidade íntima está na famosa sentença do oráculo de Delfos, não raro atribuída ao próprio Sócrates:
Conhece-te a ti mesmo.
Respondendo a uma indagação de Allan Kardec, em O Livro dos Espíritos, questão 919, o Espírito Santo Agostinho revela que desvendaremos o continente interior com a análise diária de nossas ações.
É fundamental identificar o que há de certo ou de errado em nós, aprendendo a cultivar acertos e eliminar desacertos.
Há quem busque ajuda alheia, nesse mister, envolvendo profissionais de saúde, religiosos, amigos de boa vontade...
E válido, sem dúvida, mas melhor seria eleger um roteiro preciso, como um mapa que nos permita devassar os refolhos de nossa alma.
O mais precioso, o mais perfeito, todos o sabemos, é o Evangelho, em que Jesus define e exemplifica os caminhos que devemos seguir.
É
E preciso investir alguns minutos diários no confronto entre nossos impulsos e a orientação evangélica.
E que apliquemos a mesma desenvoltura e rigor com que julgamos o comportamento alheio.
Poderíamos começar pelos "baldes d'água" que nos jogam, quando as pessoas nos contrariam ou nos atingem com leviandades.
O que faria Jesus em nosso lugar?
Lembramos a sua recomendação em O Sermão da Montanha (Mateus, 5:44):
... orai pelos que vos perseguem e caluniam.
Não se trata de mera retórica. Foi exatamente o que fez Jesus, na suprema injúria da Cruz, quando, elevando o pensamento a Deus, rogou:
- Pai, perdoa-lhes. Não sabem o que fazem.
Emocionalmente não seremos afetados se, em todas as circunstâncias, nos dispusermos a orar pelos que nos injuriam.
Complicado, não é mesmo, leitor amigo?
Contrariar o impulso de jogar uma geladeira em cima do ofensor e, ainda, orar por ele!
Um amigo, homem generoso e dedicado à Doutrina Espírita, explicava:
- Sou cheio de defeitos. Um deles é não levar desaforo para casa. Se alguém me ofende, peço licença a Allan Kardec e suspendo, temporariamente, a fé espírita. Apenas alguns minutinhos, suficientes para colocar
o atrevido em seu devido lugar, dizendo-lhe "poucas e boas"!
Nosso querido codificador há de agitar-se na sepultura, ante disparates dessa natureza.
Como justificar semelhante atitude quando prestarmos contas de nossas ações, no retomo à Espiritualidade?
Alegaremos que não sabíamos, que não tínhamos noção de que um comportamento assim é desastroso?
Certamente, esse juiz severíssimo - nossa consciência - não aceitará tal argumento, porquanto a ênfase da Doutrina Espírita está na reforma íntima, que implica em superar tais reações, típicas da inferioridade humana.
Imperioso, nessas situações, além de orar pelos que nos ofendem, pedir por nós mesmos.
Rogar ao Céu, ardentemente, que trave nossa boca, a fim de não nos comprometermos com destemperos verbais.

Salvo-Conduto
Quando escrevia o livro Quem Tem Medo da Morte?, estive no crematório, em Vila Alpina, São Paulo, a rim de colher informações sobre a incineração de cadáveres.
Pretendia, como o fiz, escrever um capítulo sobre o assunto.
O administrador, gentilmente, mostrou-me como funciona o serviço, ressaltando que dentro do forno a temperatura é de aproximadamente três mil graus centígrados.
Podemos imaginar o que seja isso, lembrando que a água ferve a cem graus. Segundo ele, é uma tem-
peratura tão elevada que tudo ali entra em combustão, caixão, metais, enfeites, roupas, pregos, sapatos... Até o cadáver!
E, algo espantoso: quanto mais gordo o defunto, maiores as chamas, porquanto a gordura é um comburente.
Então, amigo leitor, se pensa em ser cremado, faça um regime para... morrer!
Caso contrário, vai ser aquele fogaréu!
***
Perguntará você:
- E o Espírito? Se ligado ao corpo, no momento da cremação, o que acontecerá?
Certamente "morrerá" de susto. Imaginará estar confinado no inferno.
- Meu Deus, vim parar na caldeira do Pedro Botelho!
Brincadeirinha, amigo leitor. Qualquer cristão sabe que Céu e Inferno não são locais geográficos, mas estados de consciência. Jesus dizia (Lucas, 17:21):
...o Reino de Deus está dentro de vós!
O inferno também.
Depende de como vivemos, de como sentimos... Se ainda jungido aos despojos carnais, poderá o
Espírito, em princípio, sentir-se devorado pelo fogo.
Impressão desagradável, sem dúvida, mas meramente ilusória.
As chamas do plano físico não afetam a dimensão espiritual nem os que nela se encontram.
Desintegrados os despojos carnais, o Espírito estará liberado.
Aí reside o problema, porquanto poderá enfrentar dificuldades de adaptação, em virtude do desligamento extemporâneo.
Por isso, Emmanuel, o mentor espiritual de Chico Xavier, recomenda que esperemos três dias, se pretendemos os serviços do crematório.
Até lá, salvo exceções, estaremos liberados.
Em Vila Alpina espera-se pelo tempo que a família desejar, sem problema.
Quando lá estive, um cadáver cumpria o prazo de sete dias, solicitado pelo próprio finado. Outro, estrangeiro, estava em autêntica quarentena, há quase um mês, esperando que fossem localizados seus familiares, em outro país.
A família paga uma diária, como num hotel.
Hotel de defuntos.
Preço módico. Não há refeições...
***
No futuro, numa humanidade mais espiritualizada, a cremação será prática rotineira.
Eliminaremos o culto aos cadáveres, que se exprime na visita aos cemitérios. Aprenderemos a cultuar a memória do morto querido na intimidade do coração, substituindo vasos e flores, velas e incenso, pela dádiva de roupas e alimentos aos carentes, em seu nome.
E hão de ficar muito felizes os que partiram, por sentir que a separação sensibilizou nossas almas para a solidariedade, esse salvo-conduto maravilhoso que um dia nos ajudará a transpor com segurança as fronteiras do mundo físico para encontrá-los no continente espiritual.
Para Evitar Surpresas
Preocupada com a possibilidade de ser enterrada viva, perguntava-me a jovem:
- Se acordar na sepultura, o que acontecerá comigo?
- Vai morrer, minha filha.
- Meu Deus! Por quê?
- Encerrada no caixão, dentro da sepultura, em breves minutos faltará oxigênio. Não se preocupe. Você irá desta para melhor sem necessidade de atestado de óbito, velório, rezas... Tudo providenciado por antecipação.
Se você, leitor amigo, apavora-se ante essa perspectiva, é simples resolver.
Peça que coloquem um telefone celular no caixão.
Se acordar, ligue para casa.
Apenas tenha cuidado ao comunicar-se com o familiar.
-Alô.
- Socorro!
- Quem fala?
- Sou eu!
- Eu, quem?
- Seu marido. -Ooooh!...
- Chamem a ambulância! Mamãe sofreu uma síncope!
***
A tafofobia, o medo de ser enterrado vivo, costuma ser relacionada com narrativas de horror, envolvendo cadáveres exumados, que se apresentam arranhados ou virados no caixão, sugerindo que acordaram na sepultura.
Talvez, no passado, até acontecesse, principalmente por ocasião de batalhas ou epidemias. Havia tanta gente para enterrar, que nem sempre os coveiros improvisados percebiam que o suposto defunto estava vivo.
Em circunstâncias normais não há a mínima
possibilidade.
Nenhum morto acorda na sepultura.
Há, sim, o transe letárgico, que imita a morte.
O coração assume ritmo indolente, perto de dezoito batimentos por minuto; o fluxo sanguíneo toma-se lento, o indivíduo fica com aparência de morto, podendo até entrar em rigidez. Mas continua vivo, organismo funcionando, como numa hibernação.
Qualquer médico constatará isso, ao examiná-lo.
O que ocorre é que pessoas muito apegadas à vida física têm dificuldade para se desligar. Permanecem no cemitério por vários dias.
Pior - acompanham a decomposição dos despojos carnais e o banquete dos vermes.
É um fenômeno assustador!
Produz, não raro, traumas violentos. Após o desligamento, o desencarnado sofre alucinações envolvendo aquela situação.
Tenho visto, em reuniões mediúnicas, entidades apavoradas com um cadáver em decomposição que as persegue.
Não raro, estão tão impregnadas daquelas impressões, que o médium sente forte cheiro de carne em decomposição.
Um horror!
Muitos vivenciaram experiências dessa natureza, em existências passadas. Nem todos superaram o trauma.
Daí o medo.
O problema é o despreparo para a grande transição.
Prendemo-nos demasiadamente à vida física, envolvemo-nos com negócios, ambições, vícios e paixões de forma intensa, sem considerar que um dia teremos de deixar isso tudo.
Como se sentiria, leitor amigo, se de repente você fosse colocado nu em um avião e transportado para remota região da África, aqui deixando seus pertences, seus familiares, sua profissão, seu emprego, suas roupas, sua casa?
Que transtorno!
E o que acontece com pessoas alheias à realidade espiritual, quando são seqüestradas pela morte.
***
Bem, há algumas providências que podemos tomar, evitando desagradáveis surpresas no Além:
• Preparar a bagagem permitida: Virtudes e conhecimentos.
• Colher informações: Estudar a Doutrina Espírita.
• Provisionar moedas do Além: Praticar boas ações.
• Cuidar da saúde da Alma: Superar vícios e paixões.
• Conquistar amigos do outro lado: Socorrer seus familiares deste lado.
Assim, não haverá o que temer.
A partida será tranqüila, sem traumas, com amparo espiritual, acolhimento festivo, sentimento de inefável felicidade, sustentado pela consciência do dever cumprido.
Observar os Sinais
O motorista seguia pela avenida. Em dado momento, pretendeu converter à esquerda.
Placa bem visível sinalizava a proibição.
Como bom brasileiro, olhou de um lado e de outro.
Ninguém.
Fez a conversão.
Um guarda o parou.
- Não viu a placa, proibindo virar à esquerda?
- Vi sim, senhor...
- Por que desobedeceu?
- Não vi o senhor.
***
As leis são instituídas para disciplinar a vida social.
Mesmo em culturas primitivas há normas a serem observadas, estabelecendo limites ao livre-arbítrio, para que as pessoas convivam em paz.
Liberdade absoluta?
Somente para o eremita.
Mas isso, contrariando sua natureza gregária, social, tenderá a desajustá-lo.
Já notou, amigo leitor, como os solitários desenvolvem excentricidades?
Falta o referencial.
Se você é casado, tem filhos, convive com pessoas em sua intimidade, fica mais difícil desenvolver manias.
Principalmente os jovens, na sua irreverência, não deixam:
- Que é isso, velho? Saindo de órbita? Surtou?
É preciso, portanto, conviver, evitar a solidão.
Mas é fundamental que, no lar ou na comunidade, estejamos dispostos a observar as disciplinas que regem nossas relações.
Há limites ao livre-arbítrio que devem ser respeitados, com a noção primária, fixada desde Moisés:
Não nos é lícita nenhuma iniciativa passível de causar transtornos ao próximo.
O problema é a imaturidade, que leva o indivíduo a colocar-se acima das leis, sempre que firam seus interesses.
E há os espertos que conseguem burlar os regulamentos, por mais severas as sanções, por mais eficiente a fiscalização.
Esse problema só será resolvido na Terra quando deixar de ser assunto para os órgãos de vigilância, tornando-se compromisso do indivíduo consigo mesmo.
Seria o respeito às leis simplesmente por impositivo da consciência.
***
A religião oferece marcante contribuição nesse particular, acenando com uma vida futura onde nos pedirão contas do que estamos fazendo na Terra.
Destaca-se o Espiritismo, que não se limita a especulações teológicas. Abre a cortina que separa o Além do aquém, dando-nos conta do que nos espera.
Importante destacar, nesse aspecto, o testemunho daqueles que lá vivem.
Em O Céu e o Inferno, Allan Kardec reporta-se ao contato com Espíritos que sofrem tormentos terríveis, relacionados com as mazelas que cultivaram no trânsito terrestre.
Detalhe interessante, amigo leitor:
Muitos sofrem, não por infrações cometidas diante das leis humanas, mas por terem desrespeitado as leis de Deus, sintetizadas no amai-vos uns aos outros, preconizado por Jesus.
. Um companheiro desencarnado nos disse, certa feita, na reunião mediúnica:
- O Espiritismo é o bê-á-bá da vida espiritual. Não temos dificuldade para nos readaptarmos, mas é terrível o sentimento de frustração ao constatar que não fizemos nem dez por cento do que nos competia, num tremendo descompasso entre a teoria e a prática.
A sinalização espírita é bem clara, apontando para o esforço do Bem.
Se optarmos por desvios determinados pela inconsequência, envolvendo acomodamento e omissão, paixões e vícios, fraquezas e mazelas, inevitavelmente virão as sanções de nossa consciência, impondo-nos retificações penosas, marcadas por desajustes e sofrimentos.
Não Mandem Gravatas
Nos idos de sessenta, século passado, já eram concorridas as sessões públicas do Centro Espírita Amor e Caridade, em Bauru.
Ontem, como hoje, uma motivação básica: a procura de auxílio para males do corpo e da alma.
Embora a racionalidade que caracteriza o Espiritismo, um contato com o Céu de pés firmes na Terra, as pessoas insistem em ver na doutrina codificada por Allan Kardec o apelo ao sobrenatural, sonhando prodígios em favor de sua saúde e bem-estar.
Tardam em compreender que o melhor benefício que devemos buscar no Centro Espírita é o esclareci-
mento quanto aos objetivos da jornada humana, o que estamos fazendo neste "vale de lágrimas", de onde viemos e para onde vamos.
A par do consolo que oferece, o Espiritismo explica que os males que nos afligem são decorrentes de nossas mazelas, inspiradas no velho egoísmo humano.
Portanto, é preciso dar-lhe o contraveneno: a caridade.
A equação é simples.
- egoísmo + caridade = felicidade
Embora a caridade seja muito mais que simples doação de algo de nossa propriedade, é a primeira idéia que nos acode quando cogitamos de exercitá-la.
E porque os Centros Espíritas situam-se como postos avançados nos domínios da solidariedade, atendendo multidões de carentes, somos sempre convocados a contribuir para a sustentação de seus abençoados serviços.
Alguns dos apelos nesse sentido, que eu ouvia, ainda jovem, nas reuniões públicas do CEAC, fixaram-se em minha memória, por sua bem-humorada singularidade.
- Meus amigos - dizia o dirigente -, tudo o que puderem enviar será muito bem aproveitado - gêneros alimentícios, eletrodomésticos, móveis, utensílios, roupas... Pedimos, porém, encarecidamente, atentarem à utilidade do que oferecem. Muita gente nos manda gravatas. Para quê? Pobre não usa gravata. Só se for para enforcar-se...
***
Hoje, como ontem, a Doutrina Espírita enfatiza a mesma necessidade de exercitarmos desprendimento. É preciso contribuir para a melhoria das condições de vida de multidões que vivem abaixo da linha da pobreza.
As instituições já não recebem gravatas velhas, algo supérfluo na atualidade, destinado a ocasiões ceri-
Não obstante, acontece pior. Muita gente imagina que pratica a caridade doando o que ficaria melhor no monturo.
Ao avaliar velhos trastes, em face de faxina, reforma ou mudança, o imprestável é piedosamente remetido às instituições filantrópicas.
Se a "vítima'' escolhida conta com um serviço de recolhimento domiciliar, fica perfeito. É só telefonar e a viatura vem buscar o entulho, evitando despesas para livrar-se dele.
E incrível, leitor amigo, mas, infelizmente, metade das doações recebidas constitui material imprestável!
Alguns exemplos:
• Vetustos aparelhos elétricos. Ficariam bem em museus...
• Roupas bolorentas e rotas. Nem para pano de chão...
• Carcomidos sapatos, sem o par. Para pernetas?...
• Medicamentos vencidos. Impulso homicida?...
• Móveis imprestáveis.
Só em cenário de bombardeio...
• Colchões desconjuntados e encardidos. Para faquires?...
• Carcaças de brinquedos. Estímulo à imaginação?...
• Cereais carunchados. Coisa de terrorista...
É só o trabalho de recolher e jogar fora, o que demanda esforço dos voluntários e do motorista, gasto de gasolina, tempo perdido.
***
Permita-me, prezado leitor, definir uma regra básica que devemos observar quando nos dispomos a atender aos apelos da solidariedade.
Usaríamos sem constrangimento o que vamos doar?
Se não serve pava nós, por que haverá de servir para alguém?
Se passível de conserto ou limpeza, tomemos a iniciativa, antes de doar.
Sempre que possível, levemos pessoalmente nosso donativo, tomando contato com a instituição beneficiada conhecendo seus serviços, suas carências...
Então, sim, estaremos exercitando a caridade, o bem que praticamos quando nos desprendemos de utilidades, deixando as inutilidades para os agentes de limpeza.
O Santo Casamenteiro
A jovem era devota de Antônio de Pádua. Orava, genuflexa, diariamente, reiterando rogativas:
- Abençoa meus familiares, dá-lhes saúde e paz. Quanto a mim, santo querido, peço seus préstimos, ajudando-me a encontrar um companheiro, um bom rapaz que realize meu sonhos de um lar feliz, abençoado por muitos filhos...
A família até que ia bem, certamente amparada pelo santo...
Quanto ao casamento, nada feito. Ele parecia fazer ouvidos moucos.
Entrava ano, saía ano, e nada de aparecer o príncipe encantado.
Já quase conformada em ser "titia", viu-se, certa feita, em sonho, diante do grande pregador do Evangelho.
Sem vacilar, cobrou-lhe resposta às reiteradas solicitações.
- Meu santo, tenho feito tudo para merecer suas graças, arranjando-me um companheiro, conforme sua especialidade. Guardo recato. Pouco saio, fugindo às tentações. Só vou à igreja... Comungo diariamente, acendo velas em sua homenagem, repito o rosário duzentas vezes, rogo ardentemente... O que está faltando?
O santo sorriu:
- Minha filha, tenho procurado ajudá-la, mas está difícil, porquanto depende de você. Participe da vida social, freqüente uma escola, integre-se em serviços comunitários, amplie seu círculo de relações... Dê uma chance ao amor!
***
André Luiz faz interessante observação, em Ação e Reação, psicografia de Chico Xavier:
Deus ajuda as criaturas por intermédio das criaturas.
Sempre há Espíritos dispostos a atender nossas rogativas, quando orientadas pelo coração, em empenho contrito de comunhão com a Espiritualidade.
Podemos dirigi-las a Deus, a Jesus, aos santos, aos guias, protetores, aos anjos, de acordo com nossas convicções religiosas.
Os santos autênticos, Espíritos iluminados que passaram pela Terra, como Francisco de Assis, Antônio de Pádua, Tereza D'Ávila, Maria de Nazaré, Simão Pedro, não têm condições para atender, pessoalmente, às multidões que os procuram, em milhões de preces a eles dirigidas, diariamente.
Para tanto, contam com enorme contingente de auxiliares, que em seu nome ajudam os fiéis.
O mesmo acontece na área espírita, com veneráveis entidades, como Bezerra de Menezes, Eurípides Barsanulfo, Cairbar Schutel, Batuíra e, hoje, o nosso querido Chico Xavier.
Em nível mais modesto, há familiares, amigos e mentores desencarnados, que atentam às nossas rogativas, a partir de singelas iniciativas.
Jamais estaremos desamparados.
Contamos, invariavelmente, com o amparo das criaturas de Deus que, em nome do Criador desenvolvem iniciativas que visam nosso bem-estar.
Ficaríamos surpreendidos se tivéssemos consciência do permanente empenho de nossos amigos espirituais, buscando ajudar-nos a aproveitar as oportunidades de edificação da jornada humana.
E o fazem por amor ao Bem, como é próprio dos Espíritos que vivenciam em plenitude as leis divinas, conscientes de que a felicidade do Céu está em socorrer as necessidades da Terra.
***
Não obstante, é preciso atentar a um detalhe quando rogamos auxílio aos benfeitores espirituais.
Eles não são babás, chamados a cuidar de marmanjos.
Sua função primordial é nos inspirar a fazer o melhor.
Mostram caminhos.
A iniciativa de caminhar é nossa.
E preciso sair a campo, lutar pelo ideal, trabalhar pela realização de nossos sonhos, para que não nos situemos como a jovem que estava ficando para titia, por fechar-se numa redoma, sem acesso para o "príncipe encantado".
O Preguiçoso
Era indolente por vocação. Infenso a qualquer iniciativa, vivia miseravelmente.
Ainda que não faltassem oportunidades de melhorar sua condição, logo tratava de afastar-se da "tentação".
Para dar-lhe uma lição, no empenho por "acordá-lo", algumas pessoas decidiram simular seu enterro, comunicando-lhe:
- Já que você não se dispõe a mexer-se, melhor que vá para debaixo da terra.
E o enfiaram num caixão e seguiram para o cerni-
tério, sem que nosso herói reagisse, guardando a habitual indiferença.
Durante o cortejo, um transeunte perguntou quem era o "defunto".
- É um preguiçoso que não serve para viver. Não tem onde morar, nem o que comer...
Compadecendo-se, o desconhecido ofereceu:
- Se o problema é de comida, posso ajudar. Darei um saco de arroz para sustentá-lo.
O "falecido", que tudo ouvia, levantou a tampa do caixão:
- Em casca ou limpo?
- Em casca.
- Então, pode seguir com o enterro.
***
Pois é, amigo leitor, a indolência é, realmente, a "morte em vida". O indivíduo perde a iniciativa e passa a vegetar, alheio à dinâmica da existência, sinônimo de movimento. .
Raros os que não se envolvem com a ociosidade em alguma fase da vida, exprimindo tendências bem típicas do estágio evolutivo em que se situa a humanidade.
A própria encarnação, o vestir do escafandro de carne para o mergulho na matéria densa, é um dos recursos usados por Deus para despertar o"defunto".
Submetidos a um corpo que deve ser sustentado e
protegido, sob a égide do instinto de conservação, ve-mo-nos na contingência de "dar duro", para atender às suas necessidades.
Se permanecêssemos indefinidamente no mundo espiritual, onde ninguém morre de fome ou frio e se sobrevive sem abrigo, tenderíamos a estacionar.
Fssa necessidade está bem definida na simbologia bíblica, quando Jeová diz a Adão que deveria ganhar o pão de cada dia com o suor do rosto.
Abençoado suor, que nos liberta da inércia.
***
Uma fase crítica, nesse particular, diz respeito à chamada terceira idade, depois dos cinqüenta, no outono da existência.
Não raro, situação financeira estável, garantido o sustento diário pelos proventos de aposentadoria, as pessoas entendem que podem desfrutar as benesses da ociosidade.
Lembrando a história que abriu estes comentários, podemos afirmar que num estágio dessa natureza, quando perdemos a disposição de aprender, de produzir para a sociedade, de crescer em conhecimento, de lutar contra as imperfeições, só servimos mesmo para... morrer.
Imagino que Deus nos dá tempo limitado na Terra, justamente porque há uma tendência para nos acomodarmos, caindo num marca-passo espiritual.
Aprendemos com a Doutrina Espírita que não há retrocesso. Ninguém retrograda nos caminhos da evolução, mas raros fogem ao estacionamento, a partir de determinada idade, acomodando-se às próprias mazelas.
Então, vem a morte, um choque evolutivo de alta voltagem, a agitar nossa alma.
Somos projetados no mundo espiritual, onde se faz a aferição da jornada humana, com a avaliação de méritos e deméritos, a determinarem em que região estagiaremos e a natureza das novas experiências, sempre objetivando nosso crescimento.
Com o tempo, tendemos a nos acomodar.
Vem o choque reencarnatório.
Mais alguns decênios, novo acomodamento.
Vem o choque desencarnatório.
Assim, de choque em choque, habilitamo-nos a superar a tendência ao dolce far niente, para assumirmos as responsabilidades de filhos de Deus, chamados a colaborar com o Nosso Pai na obra da Criação.
Cegos
professor fazia uma exposição sobre os malefícios do alcoolismo, destacando os prejuízos que traz à saúde.
A título de ilustração, colocou sobre a mesa um copo com álcool. Em seguida jogou lá dentro um verme que, quase instantaneamente, morreu.
- Vejam que coisa terrível a ação do álcool! -comentou o professor.
Um aluno, que observava atentamente, comentou, admirado:
- Poxa, professor, fico feliz! Nunca terei vermi-noses!
***
Incrível como o alcoolismo provoca uma obnu-bilação na mente do indivíduo.
Por mais inteligente e culto, por maiores as evidências quanto aos males do álcool, ele tem mais facilidade para imaginar supostas virtudes. Parece-lhe sempre que há exagero, que as informações não são confiáveis.
O álcool é eficiente desinibidor. Pessoas tímidas animam-se com algumas doses. Tomam-se comunicativas.
Ocorre que há um rebote perverso. À medida que o organismo se condiciona, passa a exigir doses cada vez maiores para sustentar os mesmos efeitos. Instala-se a dependência.
A carência passa a deprimi-lo, submetendo-o a insuportável ansiedade. E vai num crescendo, aniqui-lando-lhe a vontade e comprometendo-lhe a existência.
***
Além do acomodamento às próprias mazelas, o alcoólatra sofre o assédio de viciados do Além. Estes, diante de condicionamentos perispirituais que os atingem, buscam a satisfação valendo-se de uma associação psíquica com suas vítimas.
É um transe mediúnico às avessas. Ao invés do médium captar os pensamentos do Espírito, é o Espírito
quem capta as sensações do "médium".
Daí a dificuldade em superar o vício, porquanto, além da dependência física, há a pressão espiritual.
O alcoólatra interna-se em clínica de desintoxicação. Sai "limpo". No primeiro bar por onde passa, vem o impulso irresistível, sob ação dos parceiros desencarnados.
Começa tudo de novo.
Noutro dia, ao ouvir sobre o assunto, um bebum animou-se com o raciocínio torto dos viciados:
- Bem, se morto poderei contar com um "caneco vivo", não há por que guardar grandes preocupações. Futuro garantido!
Se conhecesse a situação dos viciados desencarnados, não ficaria tão animado.
Os alcoólatras que experimentam o delirium tremem, quadro patológico que lhes impõe pavorosas visões de criaturas monstruosas, estão simplesmente contemplando os Espíritos que os assediam, em estado de lamentável desequilíbrio e grande sofrimento.
É o que o espera.
***
Freqüentemente, pessoas nos perguntam o que fazer em favor de familiares alcoólatras.
Podemos, no Centro Espírita, anotar seus nomes para trabalhos de vibração e desobsessão e encaminhá-los ao atendimento fraterno, bem como colocá-los em
contato com grupos de apoio.
Há, também, organizações beneméritas como a dos Alcoólicos Anônimos, que realizam maravilhoso trabalho de recuperação.
Fundamentalmente, oremos muito, rogando a Deus lhes dê consciência do mal que fazem a si mesmos e desperte neles o anseio de renovação.
Somente a partir daí estarão habilitados a iniciar a árdua jornada de sua recuperação.
Ingenuidade
Estava "a perigo".
Precisava, urgentemente, de dinheiro. Após "passar nos cobres" objetos de uso pessoal e variados pertences, decidiu vender algo menos palpável. A própria alma!
Anunciou num site de leilões da Internet e, pasme leitor amigo, encontrou comprador!
Vendeu a indigitada por trinta e um dólares. Foi entregue acondicionada numa garrafa, devidamente tampada.
Moral da história:
Jamais perderemos dinheiro, apostando na ingenuidade humana.
Sempre há alguém disposto a pagar pelo absurdo.
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Essa curiosa história lembra um dos grandes clássicos da literatura universal: Fausto, de Goethe (1749-1832), em que o personagem-título vende sua alma ao demônio.
O tinhoso dispôs-se a atender seus desejos na Terra para tiranizá-lo no Além.
Segundo a teologia ortodoxa, demônios são anjos que pecaram antes da criação de Adão, condenados ao inferno.
Conservando a inteligência e os poderes angelicais, passaram a empregá-los para exercitar o mal, procurando induzir à perdição nós outros, pobres mortais, alheios às suas desavenças com o Todo-Poderoso.
Os anjos rebelados têm produzido estragos, sempre dispostos a "comprar" as almas, explorando as fraquezas humanas.
É fácil constatar isso.
Basta observar o panorama desolador de nosso mundo. Sucedem-se, incessantes, guerras, crimes, mentiras, traições, vícios, envolvendo indivíduos e coletividades, perpetuando desajustes e dores.
Tem-se a impressão de que os demônios são mais poderosos que Deus, pondo em dúvida atributos divinos como:
• Onisciência.
Criou anjos sem saber que iriam se perder, nem que induziriam os homens à perdição.
• Onipotência.
Não conseguiu evitar que se perdessem.
• Misericórdia
Não lhes ofereceu infinitas oportunidades de reabilitação.
• Justiça.
Impôs-lhes eterna danação, sem considerar que a extensão da pena não pode ultrapassar a natureza do crime.
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A Doutrina Espírita desfaz milenares enganos a respeito do demo.
Não há seres devotados ao mal perene.
Há apenas filhos rebeldes de Deus, submetidos a leis inexoráveis de evolução, que mais cedo ou mais tarde modificarão suas disposições, reconduzindo-os aos roteiros do Bem.
Afirma Jesus que Deus não pretende perder nenhum de seus filhos {João, 6:39).
E não perde mesmo, ou não seria o Onipotente.
Os demônios de hoje serão anjos amanhã.
Séculos de lutas e sofrimentos, no desdobramento de inexoráveis experiências evolutivas, porão juízo em suas mentes conturbadas.
Em última instância, diabos somos nós, quando nos comprometemos com o mal.
"Vendemos" nossa integridade por ninharias, aos demônios interiores da cobiça, da ambição, do vício, dos prazeres sensoriais, e perdemos o rumo da vida.
Arremedos do gênio da lâmpada de Aladim, cerceamos voluntariamente nossas potencialidades de filhos de Deus, ao nos tomarmos meras "almas em conserva", voluntariamente prisioneiros de reluzentes e comprometedoras paixões.
Ranger os Dentes
Durante palestra no Centro Espírita, em remota cidadezinha, o expositor notou que o pessoal ligado à instituição não tinha dentes, todos banguelos.
Certamente algum problema relacionado com a má qualidade de vida, envolvendo água, alimentação, escovação, falta de flúor, hereditariedade...
Ao final, em conversa com um dos dirigentes, perguntou:
- Desculpe a curiosidade, mas por que o pessoal aqui não tem dentes?
- Extraímos todos.
- Houve problemas?
- Foi para evitá-los no Além.
- Quem orientou?
- Nosso guia. Diz respeito ao "choro e ranger de dentes" a que se refere Jesus. Informou que não haverá choro se evitamos o ranger dos dentes, indo sem eles.
***
Bem, amigo leitor, parafraseando um ditado italiano, podemos dizer que certamente non e vero, não é verdade, mas sei bene trovato, é uma boa história, a ilustrar um dos problemas mais freqüentes nos Centros Espíritas pouco afeitos ao estudo: a irracional submissão aos "guias".
Não raro, o dito-cujo é o próprio médium, a exercitar, inconscientemente, sua vocação para liderar, ou um Espírito galhofeiro que se apresenta como tal, aproveitando-se da credulidade das pessoas.
Ainda que estejamos diante de legítimo orientador, nem sempre este tem condições ideais para orientar.
Diz Allan Kardec, em Obras Póstumas, na segunda parte, ao falar de sua iniciação no intercâmbio com o Além:
Um dos primeiros resultados que colhi das minhas observações foi que os Espíritos, nada mais sendo do que as almas dos homens, não possuíam nem a plena sabedoria, nem a ciência integral; que o saber de que dispunham se circunscrevia ao grau que haviam alcan-
çado, de adiantamento, e que a opinião deles só tinha o valor de uma opinião pessoal.
Reconhecida desde o princípio, esta verdade me preservou do grave escolho de crer na infalibilidade dos Espíritos e me impediu de formular teorias prematuras, tendo por base o que fora dito por um ou alguns deles.
Há duas importantes observações a respeito do assunto, em O Livro dos Médiuns, de dois mentores que orientavam Kardec:
Item 266, Espírito São Luís, ou Luís IX (1214-1270), rei de França, famoso por sua bondade e integridade, canonizado pela igreja católica em 1297:
Qualquer que seja a confiança legítima que vos inspirem os Espíritos que presidem aos vossos trabalhos, uma recomendação há que nunca será demais repetir e que deveríeis ter presente sempre na vossa lembrança, quando vos entregais aos vossos estudos: é a de pesar e meditar, é a de submeter ao cadinho da razão mais severa todas as comunicações que receberdes; é a de não deixardes de pedir as explicações necessárias a formardes opinião segura, desde que um ponto vos pareça suspeito, duvidoso ou obscuro.
Item 230, Espírito Erasto, que foi discípulo de Paulo de Tarso:
... Na dúvida, abstém-te, diz um dos vossos velhos provérbios. Não admitais, portanto, senão o que seja, aos vossos olhos, de manifesta evidência. Desde que uma opinião nova venha a ser expendida, por pouco que vos pareça duvidosa, fazei-a passar pelo crisol da razão e da lógica e rejeitai desassombradamente o que a razão e o bom senso reprovarem. Vale mais repelir dez verdades do que admitir uma única falsidade, uma só teoria errônea.
Elementar, portanto, caro leitor, que nos habituemos a examinar cuidadosamente as orientações que venham da Espiritualidade, sem medo de perguntar e até de contestar as que pareçam fugir à coerência doutrinária.
Diga-se de passagem: os mentores legítimos exercitam infinita paciência. Não se aborrecem com nossas dúvidas.
***
Oportuno lembrar, nesse particular, que a natureza dos Espíritos que nos trazem notícias e orientações guarda correspondência com as intenções do grupo.
Se desejamos receber manifestações produtivas, orientemos a reunião para o estudo, insistindo na serie-
dade, no empenho do Bem, no ideal espírita... Seguramente atrairemos mentores espirituais em condições de ajudar.
Mas, se conforme ocorre com freqüência, estivermos voltados para os interesses imediatistas, alheios às realizações espirituais, certamente atrairemos orientadores sem orientação, capazes de sugerir aberrações como extrair os dentes na Terra para não rangê-los no Além.
Dar o Pão
O delegado criticava, veemente, o mendigo:
- Você é um mau-caráter! A senhora registrou Boletim de Ocorrência, reclamando de sua atitude. Se foi tão atenciosa; se piedosamente deu-lhe um pão, por que jogou a pedra na janela de sua casa, quebrando a vidraça?
O mendigo ficou indignado.
- O doutor está enganado! Não foi pedra! Atirei foi o pão empedrado que a sovina me deu!
***
Bem poderíamos discorrer sobre a ingratidão ou, pior, o responder com o mal ao bem que nos fazem.
Creio, entretanto, leitor amigo, que seria mais oportuno destacar, neste episódio, constrangedora questão: o atendimento ao pedinte.
Em princípio as pessoas tendem a encará-lo como mero importuno, que vem perturbar sua tranqüilidade ou interromper seus afazeres.
O impulso inicial, costumeiro, é informar, taxativo, sufocando a consciência e amputando o vernáculo:
-Tem nada não!
Os mais "generosos" apressam-se em estender-lhe alguns centavos, interrompendo o relato de suas carências, a despachá-lo de pronto.
Quando se dispõem a "perder tempo", vão um pouco além, oferecendo "mimos" como surrados trapos, restos de refeição, pão amanhecido...
Sendo o infeliz atendido por um ateu, até se admite semelhante comportamento. Afinal, descartada a existência de Deus e a sobrevivência da alma, tudo é permitido, especialmente tratando-se de descumprir singelos deveres de solidariedade.
Lamentável que, com raras exceções, esse comportamento é adotado por aprendizes do Evangelho, que deveriam, por elementar norma de comportamento, levar em consideração a recomendação de Jesus (Mateus, 7:12):
- Tudo o que quiserdes que os homens vos façam, fazei-o assim também a eles.
Se fôssemos nós a evocar a compaixão alheia; se estivéssemos carentes, sofridos, atormentados, gostaríamos de ouvir incisiva negativa ou de receber mísero pão amanhecido?
É preciso cuidado para não nos enquadrarmos na melancólica observação de Jesus, lembrando o profeta Isaías:
... - Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim.
***
Sebastião Carlos Gomes, antigo diretor do CEAC, afirmava que, ao passarem pela quadra em que mora algum espírita, os carentes que solicitam auxílio sempre vêm ter à sua porta, como que guiados por invisível mão.
Explicava que os bons Espíritos os inspiram, considerando que os moradores, embora feitos do mesmo material que caracteriza a Humanidade, em que um ingrediente básico é o egoísmo, estão conscientes de que devem lutar com todas as forças contra essa tendência visceral, exercitando a solidariedade.
Aí está, leitor amigo, algo para pensar, se você pretende orientar sua existência pelos princípios codificados por Allan Kardec.
E se aquele que o procura foi guiado por agentes do Bem? Empenhados em ajudá-lo, sopraram-lhe, pelos condutos espirituais, nos refolhos de sua mente:
- Bata naquela porta! Ali mora um espírita, o cristão de consciência desperta. Ali será respeitada sua dignidade de ser humano e serão atendidas suas necessidades!
Se não correspondermos às expectativas da Espiritualidade, nossa consciência, mais cedo ou mais tarde, nos cobrará pela omissão.
Considerando esse manancial divino que é a Doutrina Espírita, a esclarecer que o próximo é o nosso caminho para Deus, imperioso observar outro princípio apresentado por Jesus (Lucas, 12:48):
. A quem muito foi dado, muito se pedirá.
O Jogo da Atenção
Admirável a concentração daquela senhora. Freqüentadora assídua de reuniões de assistência espiritual, no Centro Espírita, era admirada pelos próprios expositores. Sentiam-se lisonjeados com seu interesse, olhos fixos neles, modelo de atenção.
Alguém lhe perguntou como conseguia manter-se ligada o tempo todo, mesmo diante de palestrantes menos cativantes.
- Fui orientada a respeito. Disseram-me que é um preparo para o passe magnético. Então trato de não perder uma só palavra...
- Que técnica usa?
-Nada sofisticado. Limito-me ao "jogo da atenção".
- Como funciona?
- Quando o expositor começa a falar, proponho-me a formar o abecedario, a partir da letra inicial das palavras que pronuncia. Com isso fico "acesa", habilitando-me a receber um passe "no capricho".
Está aí uma solução criativa para a desatenção.
Bem poderia ser usada por esposas de políticos, que acompanham seus maridos nas campanhas eleitorais. Seria fácil passar a imagem de plena atenção, ainda que ouçam dezenas de vezes a ladainha do candidato.
***
Não se anime, leitor amigo.
No Centro Espírita esse jogo não funciona.
Lembro episódio ilustrativo, envolvendo Júlio César (100-44 a.C).
O grande imperador romano passava meses fora de casa, em campanhas militares, o que ensejava um clima de fofocas, envolvendo a fidelidade de sua mulher, Pompeia.
Certa noite, um jovem de nome Clódio foi surpreendido andando pelos corredores do palácio. Logo surgiu o boato de que ia encontrar-se com a imperatriz.
César inocentou o rapaz no tribunal. Ele foi absolvido, mas o imperador acabou repudiando a esposa.
Quando o questionaram sobre esse comportamento contraditório, explicou:
- À mulher de César não basta ser honesta. Deve parecer honesta.
Invertendo a observação de César, podemos dizer que não basta aparentar que estamos concentrados na exposição doutrinária.
Imperioso que estejamos realmente assimilando conteúdos.
E não se trata de mero preparo para o passe magnético. Este, na verdade, é um tratamento de superfície. Cuida de efeitos.
As palestras atacam as causas profundas, originárias do comportamento. Oferecem um roteiro para as pessoas superarem seus desajustes, mudando o rumo de suas vidas. Daí a importância da atenção, não como mero jogo, mas como empenho de aprendizado.
***
Várias causas são evocadas para justificar a desatenção.
Cansaço, esgotamento, distração, enfermidade, preocupação, e até influências espirituais.
Pode ser algo disso ou tudo isso, mas, fundamentalmente, o problema é de motivação.
Enquanto as pessoas procurarem o Centro Espírita como quem vai a um hospital, em busca de cura para males do corpo e da alma, sempre haverá tais dificuldades.
Quando nos compenetrarmos do significado da Doutrina Espírita e estivermos realmente interessados em aprender, teremos toda a atenção do mundo, habilitados ao "jogo da sabedoria", que premia os participantes com a solução dos enigmas da existência, sobrepondo-se ao imediatismo terrestre.
Somente assim superaremos o estágio primário:
Espírita por aparência.
Seremos promovidos a um nível superior:
Espírita por essência!
A Música e a Letra
O empresário convidou um funcionário de sua empresa, homem simples, para a palestra de emérito professor.
No dia seguinte, perguntou-lhe:
- Então, o que achou?
- Maravilhoso! Fala divinamente!
- Entendeu?
- Não senhor! Fiquei "boiando". Apreciou a música, não entendeu a letra! Menos mal.
***
Vivemos mergulhados num oceano de vibrações, envolvendo as emissões mentais de bilhões de espíritos encarnados e desencarnados que vivem em nosso planeta.
Como se fossem emissoras de rádio em cadeia, formam correntes de vida mental, determinadas pela sintonia.
Envolvem desde os padrões mais baixos, os que vivem perto da animalidade instintiva, aos mais altos, Espíritos sublimados, cultores do Bem e da Verdade.
Nossos estados emocionais, determinados pelos impulsos que nos movem, são exacerbados e reali-mentados por vibrações que colhemos na faixa em que estagiamos.
É um empurrar para baixo ou para cima, como girar o dial de um receptor de rádio para captar determinada emissora.
Por isso, a primeira providência, quando estamos "na pior" é mudar a sintonia, cultivando bons pensamentos e envolvendo-nos com idéias renovadoras.
***
Valem os recursos mobilizados pelas escolas psicológicas, religiosas e filosóficas.
Ainda que seus representantes não tenham noção
senso, a uma sintonia melhor.
Nesse particular, leitor amigo, forçoso reconhecer que o Espiritismo vem numa vanguarda.
Jamais os problemas humanos foram tão bem equacionados.
A conceituação doutrinária desdobra maravilhosa visão do mundo espiritual, que nos permite decifrar os enigmas do destino humano.
Ficamos sabendo de onde viemos, por que estamos na Terra e para onde vamos, por que enfrentamos problemas e dissabores, dores e dificuldades, na jornada humana.
Isso nos oferece algo inestimável à segurança de viver, conscientes de que não estamos entregues à própria sorte.
Tomando conhecimento das realidades espirituais, tendemos a modificar as motivações existenciais, a privilegiar o Espírito que viverá para sempre, acima do ser frágil de carne que desaparecerá na sepultura.
Com isso elevamos o teor vibratório, ligamo-nos a correntes superiores de vida mental e nos livramos de perturbações e influências espirituais desajustantes.
***
Poderíamos dizer, nesse particular, que o expositor espírita é um especialista em "tomadas". Orienta-nos para que nos desliguemos daquelas que não interessam
vida mental saudável, a partir de conexões adequadas.
As idéias espíritas, quando assimiladas, produzem prodígios de renovação, oferecendo-nos condições para uma existência mais tranqüila e feliz.
Aqui esbarramos no problema da "letra" e da "música".
Pode a "música" ser belíssima, mas se não entendermos a "letra", estaremos diante de uma pintura "de vanguarda", que impressiona pelo inusitado de suas formas e cores, mas de significado impenetrável ao cidadão comum.
Daí a responsabilidade dos comunicadores espíritas, envolvidos com a palavra escrita e falada.
Não vale a facilidade de expressão, exprimindo musicalidade, se o conteúdo é complicado, de difícil entendimento.
É bem como a história daquele erudito professor, que se propôs a provar a existência de Deus, numa palestra.
A "música", exprimindo sua erudição, concei-tuação, voz, dicção, era perfeita.
Após a palestra, um ouvinte aproximou-se.
Homem simples, de poucas letras, comentou:
- Ói, moço, apesar de tudo o que o senhor disse, continuo acreditando em Deus.
Linda "música".
"Letra" ininteligível!
Com ou Sem...
A bela vivenda atendia às necessidades do casal.
Ampla e confortável, pintura impecável, quintal espaçoso, sortido pomar, garagem para vários automóveis...
Além do mais, uma pechincha. Segundo o corretor, o proprietário tinha urgência na venda. Fora, certamente, um golpe de sorte, concretizar tão bom negócio, antes de outro felizardo.
Após a mudança, não tardaram em perceber seu equívoco. Coisas estranhas e assustadoras aconteciam ali, envolvendo pancadas nas paredes, gritos na madru-
Ficou evidente o porquê do suposto "bom negócio.
A casa era habitada por fantasmas empenhados em atormentá-los, como num filme de terror.
Após algumas noites insones e apavorantes, deixaram a propriedade mal-assombrada e entraram com ação judicial para cancelar a compra.
Alegavam que fora sonegada a informação de que havia fantasmas, antigos moradores que não admitiam intrusos.
Inusitadamente, o juiz que julgou o processo deu-lhes ganho de causa, anulando a transação. Não se deu conta de que, com sua sentença, estava reconhecendo, oficialmente, a sobrevivência da Alma e a possibilidade de intercâmbio com o Além.
Essa realidade foi descortinada pela Doutrina Espírita, desde a codificação, com o lançamento de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, em 18 de abril de 1857.
Multidões de Espíritos nos rodeiam. São as almas dos mortos, a agir entre nós, de conformidade com suas tendências, interesses e necessidades.
O plano espiritual não está em compartimento estanque, à distância das misérias humanas.
É tão-somente uma projeção do plano físico. Começa exatamente onde estamos. E aqui ficam todos aqueles que, libertando-se dos laços da matéria, pelo fenômeno da morte, permanecem ligados aos interesses
Nas reuniões mediúnicas, de assistência espiritual, é comum nos depararmos com Espíritos em tal situação.
Perturbam-se e perturbam os familiares, porque não lhes dão atenção, algo óbvio, já que ninguém os vê.
Pode acontecer, também, que a família venha a mudar-se. O desencarnado permanece apegado ao imóvel. Exaspera-se quando surgem inquilinos, imaginando estar às voltas com uma invasão de propriedade.
E se, entre os novos moradores, há alguém dotado de sensibilidade psíquica, fatalmente sentirá algo dessa influência a incomodá-lo.
Trata-se do que chamaríamos "obsessão pacífica", porquanto não há a intenção de prejudicar. E apenas a reação de alguém perplexo, diante de algo que escapa à sua compreensão. Não há por que nos sentirmos constrangidos a deixar a residência.
Basta buscar auxílio no Centro Espírita, onde há serviços de assistência espiritual para solução desses problemas.
Atraídas às reuniões mediúnicas, as entidades serão esclarecidas e encaminhadas a instituições socorristas do plano espiritual, com o que desaparecerão os fenômenos perturbadores, provocados por sua presença.
Se a moda pega, se prospera o exemplo da família que se sentiu lesada por comprar uma casa habitada por fantasmas, teremos uma alteração substancial nos anúncios de venda ou locação de imóveis.
Será indispensável a observação "cora " ou "sem " fantasmas, para evitar indesejáveis processos judiciais de anulação.
A Ajuda Divina
Chovia torrencialmente. O rio transbordava, as águas invadiam o vilarejo.
Aquele crente, que morava sozinho em confortável vivenda, multiplicou orações, pedindo a assistência do Céu.
Em dado momento, ante o avanço da enchente, foi para o telhado, confiante de que Deus o salvaria. As águas subindo...
Passou um barco recolhendo pessoas ilhadas. - Não é preciso. Deus me salvará! As águas subindo...
- Fiquem tranqüilos! Confio em Deus. As águas subindo...
Passou um helicóptero...
- Sem problema! Deus me protegerá.
As águas subiram mais, derrubaram a casa e o homem morreu afogado...
Diante do Criador, na vida eterna, reclamou:
- Oh! Senhor! Confiei em ti e me falhaste!
- Engano seu, meu filho! Mandei um barco, uma lancha e um helicóptero para recolhê-lo!
***
Não estamos entregues à própria sorte, como sugere o pensamento materialista de Jean Paul Sartre (1905-1980).
O Senhor não esquece ninguém. A todos estende sua mão complacente, dando-nos condições para enfrentar nossas dificuldades e dissabores.
Há um problema: raramente identificamos a ação divina. Isso porque as respostas de Deus nem sempre correspondem às nossas expectativas.
Pedimos o que desejamos.
Deus nos dá o que precisamos.
Os temporais da existência simbolizam as esfregadas da Providência Divina, ensejando mudança de rumo.
Senão, vejamos:
1. A doença respiratória...
2. O lar em desajuste...
3. A dificuldade financeira...
4. A perda do emprego...
5. O acidente automobilístico...
São situações constrangedoras que nos perturbam. Pedimos a ajuda divina.
Deus vem em nosso auxílio, mas é preciso que nos disponhamos a tomar o barco do futuro, deixando no passado velhas tendências.
Podemos considerar, na mesma seqüência, que:
1. O tabagismo afeta os pulmões.
2. A incompreensão conturba o relacionamento afetivo.
3. A indisciplina nos gastos faz rombos nas contas.
4. A displicência profissional resulta em demissão.
5. A irresponsabilidade no trânsito favorece desastres.
A pouca disposição em encarar nossos erros e desacertos, como causa de nossas dificuldades e problemas, neutraliza a ação divina em nosso benefício.
As crises sugerem mudanças.
Se não mudamos com elas, sempre nos sentiremos abandonados por Deus, incapazes de identificar o socorro divino.
***
A propósito vale lembrar interessante texto, que me veio ter às mãos, sem indicação do autor:
Pedi a Deus para tirar os meus vícios. Deus disse:
- Compete a ti superá-los.
Pedi a Deus para fazer completo meu filho deficiente.
Deus disse:
- Seu Espírito é completo. O corpo é temporário.
Pedi a Deus para me dar paciência. Deus disse:
- Paciência não é dádiva. É aprendizado.
Pedi a Deus para me dar felicidade. Deus disse:
- Eu dou bênçãos. Felicidade depende de ti.
Pedi a Deus para me livrar da dor. Deus disse:
- Sofrer te afasta do mundo e te aproxima de Mim.
Pedi a Deus para fazer meu espírito crescer. Deus disse:
- Deves crescer por ti próprio. Farei a poda para que dês frutos.
Pedi a Deus todas as coisas que me fariam apreciar a vida. Deus disse:
- Eu te darei Vida para que aprecies todas as coisas.
Pedi a Deus para me ajudar a amar os outros como Ele me ama. Deus disse:
- Ahhh! Finalmente entendeste!
Resoluções
No mês de dezembro, as indefectíveis resoluções do Ano-Novo.
As pessoas listam iniciativas que visam melhorar a qualidade de vida:
• Saúde
- Queimarei gorduras indesejáveis, malhando na academia.
- Desenferrujarei as pernas com caminhadas diárias.
- Porei cadeado na boca, reduzindo o excesso de peso.
- Deixarei de ser o bobo na outra ponta do cigarro aceso.
• Vida familiar
- Não implicarei com meu marido, por não pendurar a toalha de banho, guardar os chinelos ou limpar os sapatos ao entrar em casa.
-Não me irritarei com minha cara-metade, quando estiver "atacada", nos dias de tensão pré-menstrual.
- Nunca mais direi que feliz foi Adão, que não tinha sogra.
-Não verei meus filhos como "aborrecentes" interessados em me enlouquecer.
• Vida social.
- Escovarei minha conversa. Nada de palavrões, mesmo quando aquele motorista desavisado me dê uma fechada, quase provocando grave acidente.
- Serei amigo fiel da verdade. Não mandarei dizer que não estou em casa quando me procure alguém que não quero receber.
- Não passarei adiante boatos e fofocas, contendo o impulso de dar asas à imaginação como quem solta penas ao vento.
• Religião
- Encontrarei tempo e disposição para participar das reuniões doutrinárias, na casa Espírita que freqüento.
- Estarei atento às palestras, mesmo quando fale
aquele expositor que costuma dar-me sono.
- Assumirei encargos sem preocupação com cargos.
- Efetuarei regulares contribuições, sem cogitar de celestes premiações.
Resoluções assim, se observadas, representam uma semeadura de bênçãos. O problema é que constituem letra morta na cartilha existencial.
Cogitamos de fazer muito e não fazemos nada.
Por isso costuma-se dizer que de boas intenções o inferno anda cheio.
Melhor reduzi-las a um mínimo, concentrando esforços em torno delas.
Detalhe essencial:
Evoquemos a proteção do Céu!
Quando associamos as resoluções à oração, fiéis aos nossos bons propósitos, realizamos prodígios de renovação.
Há uma prece famosa, atribuída a Reinhold Niebuhr (1892-1971), teólogo americano.
Trata-se da famosa Oração da Serenidade, que resume com perfeição o que nos compete fazer.
E uma combinação notável de três resoluções, para as quais evocamos o apoio divino:
Senhor, dá-nos a graça de aceitar com serenidade as coisas que não podem ser mudadas...
Coragem de mudar as coisas que devem ser mudadas...
E compreensão para distinguir umas das outras.
A morte de um ente querido, a amputação de uma perna, a lesão do nervo ótico, a esterilidade e outros males irreversíveis podem ser situados como cármicos, nas experiências humanas.
O que de pior podemos fazer, em tais situações, é cair no desespero e na revolta, que apenas multiplicam nossos padecimentos.
Há os que vão mais longe no desatino: tentam a fuga, mergulhando nessa porta falsa, que é o suicídio, a preci-pitá-los em dores mil vezes acentuadas.
Quando aceitamos, confiando em Deus, fica mais
fácil.
A submissão é o fardo leve a que se referia Jesus.
Por outro lado, há situações que podem e devem ser modificadas.
Algumas são geradas por nós mesmos, como o vício, a solidão, a tristeza...
Outras, como a pobreza e o desemprego, são contingências, aparecem em decorrência das mazelas da sociedade humana.
Podemos superá-las, confiando em nós mesmos e em Deus.
***
Há um problema:
Geralmente arremetemos contra o inexorável e nos
acomodamos ao superável.
Por isso as pessoas, não raro, envolvem-se com mudanças infelizes, gerando situações comprometedoras que podem ser resumidas em breves diálogos:
- Meus pais implicavam com meu gosto pelas madrugadas, a receber visitas, puxar um fumo, ouvir som da pesada...
- Reformulou seus hábitos?
- Reformulei o endereço! Moro sozinho.
- Estava sem espaço na agenda para as atividades religiosas.
- Encontrou tempo?
- Dei um tempo! Voltarei quando estiver menos atarefado.
- lndignava-me a corrupção no setor público onde trabalho.
- Alterou a localização?
- Alterei a opinião! Entrei no esquema. Ninguém é de ferro.
- Andava muito irritado com minha esposa.
- Mudou o relacionamento?
- Mudei de esposa!
- Lia, apavorado, as publicações sobre os malefícios do fumo. Um horror!
- Deixou de fumar?
- Deixei de ler!
Pessoas assim estão mal inspiradas.
Acomodam-se ao que é imperioso mudar.
Pretendem mudar o que deve ser preservado.
Daí a necessidade de pedirmos a Deus nos dê a bênção da compreensão, para distinguir com clareza a iniciativa correta.
Então, sim, desfrutaremos em plenitude nossos dias, cumprindo o que Deus espera de nós.
Cidadania
Logo após a Segunda Guerra Mundial, dois homens almoçavam num restaurante londrino. A carne estava racionada. Cada cliente só podia comer um bife.
Um deles, brasileiro, após saborear o seu, pediu outro ao garçom. Este lhe disse que não poderia atendê-lo, em face da restrição vigente. Nosso patrício sorriu, superior:
- Norma ingênua. Posso entrar noutro restaurante e comer mais um bife.
O garçom, imperturbável:
- Sem dúvida, o senhor pode fazer isso. Um inglês não faria.
Quando dizemos que o cidadão é o indivíduo no pleno uso de seus direitos civis e políticos, exprimimos uma definição pela metade.
Cidadão é, também, o indivíduo cônscio de suas responsabilidades perante a sociedade.
Se leis são instituídas, visando disciplinar o relacionamento social e favorecer o bem-estar coletivo, compete-lhe observá-las, integralmente.
Em países de cultura milenar, povos conscientes e esclarecidos, a cidadania é exercitada em plenitude, envolvendo direitos e deveres, em favor do bem-comum.
O inglês, no pós-guerra, período de grande escassez, observava estritamente o racionamento, a fim de que toda a população pudesse receber as proteínas da carne.
Nosso povo, ainda pouco preparado para o exercício da cidadania, está sempre está disposto a exercitar o "jeitinho brasileiro".
Em sua expressão mais simples, diríamos que é a arte de burlar as leis e os regulamentos em proveito próprio, sem cogitar de que, invariavelmente, haverá prejuízo para outrem.
***
Os ingleses não tinham a fiscalização em seus calcanhares para obrigá-los a cumprir as normas.
Sua observância era uma questão de maturidade.
Será a plenitude da cidadania, considerados os direitos e os deveres inerentes à convivência social, mera decorrência do tempo?
Teremos que esperar por uma cultura brasileira milenar para alcançar tal conquista?
Certamente, não!
A educação pode agilizar o processo.
Não se trata da mera instrução que recebemos na escola, o verniz social, mas da educação fundamental, no lar, a partir do comportamento dos adultos.
Se os pais não passam para a criança o exemplo de cidadania, de cumprimento de seus deveres, de respeito pelas leis, de fidelidade à verdade, como iremos mudar a mentalidade patrícia?
Um amigo dizia-se estarrecido com o que presenciou, certa feita, num jogo de futebol.
Em dado momento, um menino de seus oito anos, indignado com suposta falha de arbitragem, proferiu palavrões. "Homenageou" a senhora mãe do juiz, atribuindo-lhe aquela profissão pouco recomendável.
O pai o olhava sorridente, orgulhoso de sua atitude intempestiva.
Que se pode esperar de um adulto que recebeu, na infância, esses estímulos ao destempero e à vulgaridade?
Outro exemplo:
Um homem perdeu uma pasta com vários documentos.
Terrível transtorno! Ali estavam o RG, título de

eleitor, carteira de motorista... Logo recebeu um telefonema.
- Meu filho encontrou sua pasta.
- Ah! Ótimo! Fico agradecido e aliviado.
- Vai lhe custar cinqüenta reais.
- Não entendo...
- O garoto quer uma recompensa.
- E se eu não pagar?
- Não vai ter a pasta de volta.
- Isso é extorsão!
- Você deve saber, meu amigo, que achado não é roubado.
Foi combinado o local para a "troca".
Ocorre que o dono da pasta, familiarizado com a legislação, levou um policial junto e o "esperto" pai do menino foi autuado em flagrante delito.
Não sabia que, segundo a lei, estava enquadrado em apropriação indébita, equivalente a furto.
Como pode, uma criança que recebe tal orientação do genitor, comportar-se de forma disciplinada e honesta, cumprindo seus deveres de cidadania?
***
Nesse aspecto, a Doutrina Espírita é instrumento divino, com lições incisivas que nos fazem pensar.
Destaque para a Lei de Causa e Efeito, segundo a qual sempre receberemos de retomo todos os prejuízos que causarmos ao próximo.
Lembrando o episódio na Inglaterra, o bife que subtrairmos ao vizinho, hoje, será o bife que faltará em nosso prato, amanhã.
É fundamental cumprir nossos deveres como cidadãos, a partir do elementar dever de ajudar os que passam por privações, atendendo à própria consciência. E não estaremos fazendo grande coisa, leitor amigo. Apenas o mínimo necessário para que, na roda das reencarnações, não nos vejamos privados, amanhã, do direito de nos alimentarmos adequadamente.
Do Modo mais Difícil
A senhora, diante do médico, apresenta a adolescente de dezesseis anos.
- Doutor, minha filha perdeu o apetite, está anêmica, tem náuseas e tontura... Por favor, veja o que a menina tem!
O médico, após examiná-la:
- Minha senhora, sua "criança" está esperando outra criança. Está grávida de três meses!
A senhora, indignada:
- Impossível! Ela nunca esteve a sós com um homem! Não é verdade, minha querida?
- Claro, mamãe!
O médico vai até a janela e contempla o firmamento.
- O que o senhor está fazendo? - pergunta a jovem, visivelmente nervosa.
- Da última vez que isso aconteceu, nasceu uma estrela no Oriente e chegaram três reis magos. Não quero perder o espetáculo!
***
Por traz da jocosidade dessa história, há o drama de um milhão e cem mil adolescentes que ficam grávidas anualmente, no Brasil, não raro aos doze anos, sem nenhum preparo para a maternidade.
Complicam seu futuro, prejudicam seus estudos, vêem-se às voltas com compromissos e responsabilidades para os quais não estão preparadas.
Há quem considere semelhante situação um carma, uma fatalidade programada.
Idéia lamentável! Sugere que situações dessa natureza são impostas por Deus, quando, na verdade, decorrem da iniciativa humana. Gravidez na adolescência não é fruto de inexorável determinismo.
Fácil demonstrar isso.
Quando medidas educativas são tomadas, tende a decrescer a ocorrência.
No Estado de São Paulo houve 148.018 casos em 1998.
Não obstante o crescimento da população, o índice caiu para 116.368, em 2002, a partir de um programa de orientação sexual, aplicado nas escolas.
A questão que se levanta é quanto à concepção, que envolve um Espírito de retomo à Terra para experiências evolutivas.
Pergunta-se:
Não é a reencarnação um processo que exige planejamento da espiritualidade, com todos os cuidados para localizar o reencarnante na família adequada, no tempo previsto? Se uma adolescente de doze anos engravida, não está inserida nesse contexto?
Não é bem assim. Em boa parte ocorre o que denominaríamos reencarnação natural, envolvendo Espíritos que, ligados psiquicamente aos parceiros do sexo, podem ser atraídos à experiência humana pelo campo vibratório que se instala quando ocorre a concepção.
Poderá o leitor contestar, evocando a observação de Jesus:
Não cai uma folha de uma árvore sem que seja pela vontade de Deus.
Bem, depende do significado que emprestamos à expressão vontade.
Se considerarmos desejo, intenção, determinação, estaremos justificando o assassinato, o estupro, o roubo, o adultério, a traição, como decorrentes dos desígnios divinos, um absurdo.
O mal é sempre obra do homem, não de Deus.
Mais correto considerar consentimento, admitindo que Deus nos concede o livre-arbítrio, com o compromisso de respondermos por nossas ações.
Nestes tempos de liberdade sexual confundida com libertinagem, em que sexo se tornou sinônimo de amor (daí esse horrível fazer amor), as pessoas, principalmente os adolescentes, exercitam sua sexualidade, sem considerar que pode resultar, como acontece freqüentemente, em gravidez não desejada.
Ela é consentida por Deus, envolvendo experiências dolorosas, preocupações e dificuldades que reverterão em seu próprio benefício.
Aprendem hoje o que não devem fazer para que amanhã façam o que deve ser feito, disciplinando suas emoções e contendo seus arroubos juvenis.
Investimentos
Conta Esopo (620-560 a.C.) que um homem muito avarento vivia preocupado com a segurança de seus bens.
Depois de muito pensar sobre o assunto, resolveu que o investimento mais seguro seria o ouro.
Aplicou todas as suas economias em expressiva quantidade do nobre metal, que fundiu numa única barra maciça.
Enterrou-a num bosque e todas as noites visitava seu tesouro para deleitar-se.
Numa dessas oportunidades um ladrão o seguiu. Descobrindo o esconderijo, voltou mais tarde, desen-
terrou o tesouro e fugiu com ele.
Ao tomar conhecimento do grave prejuízo que sofrerá, o avarento desesperou-se. Só faltou enlouquecer de dor.
Um vizinho, buscando consolá-lo, falou, incisivo: - Por que está tão transtornado, meu amigo? Se o ouro que você guardava fosse uma simples pedra, daria no mesmo, pois não tinha nenhuma serventia para você.
***
Sábias palavras!
O dinheiro amoedado, na volúpia de entesourar, é peso morto a aprisionar-nos na avareza que, como define Balzac (1799-1850), è esse nó corredio que aperta cada dia mais o coração e acaba por sufocar a razão.
Se sumir, não haverá nenhuma repercussão em nossa vida.
Há pessoas que poupam o tempo todo e acumulam razoável capital que nunca irão usar. Servirá apenas para suscitar disputas entre os herdeiros, quando o poupador bater as botas.
Há um provérbio chinês bem significativo:
Mesmo que tenhas dez mil plantações, só podes comer uma tigela de arroz por dia; ainda que a tua casa tenha mil quartos, nem de dois metros quadrados precisas para passar a noite.
E há as tensões, as dúvidas e a perda de algo precioso, conforme define outro exemplar da sabedoria chinesa:
Quem abre o coração à ambição, fecha-o à tranqüilidade.
Melhor combater tais tendências, aprendendo a investir algo de nossos recursos no Banco da Providência, minorando aflições, atendendo enfermos, alimentando famintos, oferecendo melhores condições de vida para muita gente que vive miseravelmente.
O lucro auferido com investimentos dessa natureza é imediato, exprimindo-se em inefável sensação de paz.
O bem estendido ao redor de nossos passos é bênção de Deus em nossas vidas.
***
Questão crucial:
Quando se trata de abrir a bolsa em favor do próximo sempre cogitamos das sobras.
Invariavelmente, porém, sob inspiração do velho egoísmo humano, sempre nos parecerá indispensável o dinheiro amoedado, ainda que o tenhamos sobrando nos cofres.
Por isso o fecho costuma emperrar. E de Séneca judiciosa observação envolvendo a maneira como superestimamos nossas necessidades:
Para a nossa avareza, o muito é pouco. Para a nossa necessidade, o pouco é muito.
Assim, quase nada sobra para o Banco da Providência.
Por isso Jesus nos oferece o exemplo da viúva pobre {Lucas, 21:1-4), dando a entender que o valor está em darmos o que vai fazer falta.
E considere, leitor amigo:
Geralmente, esse "fazer falta" está em nossa cabeça, como sugere o filósofo romano.
Talvez nos estimule reconhecer que os investimentos nos Bancos do mundo, por mais que rendam, não acrescentarão um só centavo aos valores espirituais.
Tudo ficará aqui, quando formos convocados pela Morte à viagem de retorno. Se só eles merecem nossa atenção, estaremos mal, "ao relento", na espiritualidade.
Quanto aos investimentos no Banco da Providência, estes rendem dividendos para a Vida Eterna, habilitando-nos a estada em "hotel cinco estrelas", no Além, amparados por generosos benfeitores.
***
Se alimentamos a intenção de emprestar a Deus, recomenda-se algum critério, evitando sustentar a malandragem e a indolência, que, infelizmente, grassam por aí.
O ideal será escolhermos intermediários confia-
veis. São as instituições que desenvolvem serviços assistenciais e promocionais de forma transparente e produtiva.
Nelas são identificados os legitimamente carentes, desenvolvendo-se, em seu benefício, ações no sentido de promovê-los, reorganizando suas vidas.
Usando expressão bem atual, ajudam os excluídos a encontrar um lugar na sociedade, construindo seu futuro.
O Centro Espírita envolvido com o trabalho social, na vivência dos princípios de caridade que norteiam o Espiritismo, enquadra-se perfeitamente nessa condição.
Ali se desenvolvem os mais variados serviços em favor da população carente, onde todos podemos fazer valiosos investimentos de dois tipos:
• Em espécie.
Aplicar parte de nossos rendimentos, de forma disciplinada e perseverante, com a mesma regularidade corri que pagamos contas de água, luz e telefone.
• Em serviço.
Aplicar parte de nosso tempo para engrossar as fileiras de voluntários que desenvolvem serviços de assistência e promoção social, sob a bandeira da solidariedade.
Então, sim, estaremos contabilizando créditos abençoados na Poupança do Céu, em favor de uma existência
mais feliz na Terra e um retomo tranquilo à vida espiritual.
Vamos investir?
Vamos aderir?
O novo voluntário em serviços de assistência familiar dizia-se dotado de inusitados poderes mentais. Afirmava, incisivo:
- Em nosso grupo de trabalho, no Rio de Janeiro, movimentávamos objetos, controlávamos animais, acalmávamos loucos furiosos... Todos o podemos fazer. Demanda apenas treinamento, desenvolvendo nosso potencial.
Certa feita participou de uma visitação domiciliar a enfermos. Numa das casas o grupo deparou-se com um pit-bull. O cão mostrava os dentes, ameaçador, do outro lado do portão.
Como a assistida era paralítica e naquele momento não estava presente sua irmã para prender o animal, o grupo dispunha-se a seguir adiante, quando nosso companheiro adiantou-se:
- Deixem comigo! Resolverei o problema.
Concentrando seu potencial vibratório no animal, a fim de imobilizá-lo, abriu o portão e entrou.
O cão não tomou conhecimento de seu poder mental. Parecendo até mais excitado, avançou, furioso, sobre o intruso.
Nosso herói fez meia-volta num átimo e, com a velocidade dos apavorados, saltou de volta, não sem antes receber uma dentada nos fundilhos, "homena-gem"ao seu atrevimento.
***
Bem, prezado leitor, descartando tais excessos de imaginação, podemos conceber a mente humana como poderoso gerador de energia magnética. Ela se expande ao nosso redor, guardando compatibilidade com a natureza de nossos sentimentos.
Se a pessoa cultiva tendências negativas, terá um padrão vibratório de baixo teor, formando um clima pessoal denso, escuro, pesado, que a infelicitará.
E tenderá a contaminar o ambiente onde se encontra, da mesma forma que alguém gripado disseminará, pela respiração, os vírus de que é portador.
Nossas vibrações fazem o ambiente pessoal.
As vibrações dos moradores fazem o ambiente doméstico.
As vibrações da população fazem o ambiente urbano.
Se o tempo se fecha, carregado de nuvens, há o perigo de descargas elétricas, que causam estragos.
Se o ambiente psíquico de uma cidade é denso, ocorrem, em maior intensidade, crimes, acidentes, tragédias, mortes, como raios destruidores que se abatem sobre a população.
***
Relata André Luiz, em Nosso Lar, psicografia de Chico Xavier, que, saindo do Umbral, a região trevosa que circunda a Terra, admirou-se ao entrar na cidade espiritual que dá título ao livro.
Céu azul, sol brilhante, sem nuvens, sem nevoeiro...
Explicaram-lhe que era o resultado do compromisso dos moradores com o exercício do Bem, em pensamentos e ações.
Ficou sabendo, então, que a atmosfera densa e escura do Umbral, que situaríamos como um "purgatório", é formada pelas vibrações mentais de bilhões de Espíritos encarnados e desencarnados, ainda dominados por sentimentos inferiores, paixões e vícios.
Para melhorar nosso ambiente psíquico, do lar e da cidade onde moramos, o caminho é o mesmo dos
habitantes de Nosso Lar:
Exercitar bons pensamentos e ações, cumprindo nossos deveres perante Deus e o próximo.
Se o Bem se situar como a marca de nossos dias, estaremos em paz.
Se os moradores da casa fizerem assim, haverá harmonia no lar.
Se os habitantes da cidade tiverem o mesmo direcionamento, haverá drástica redução de crimes, mortes, problemas, dores, angústias, enfermidades...
Abençoado bem-estar se derramará sobre a comunidade.
O envolvimento de toda uma população com essa diretriz é algo quimérico, distante, em face da inferioridade humana.
Não obstante, toda a jornada, por mais longa, começa com o primeiro passo.
Que tal, leitor amigo, se nos dispuséssemos a participar de uma "corrente do Bem"?
Seria o empenho permanente de fazer algo em favor do próximo, solicitando, como pagamento, que o beneficiário se comprometa em idêntica iniciativa.
Crescendo esse movimento abençoado, estaremos iluminando o Mundo, com promissoras perspectivas de uma existência feliz e tranqüila para todos, a vida em abundância, segundo a expressão de Jesus.
Há, a propósito, ilustrativa história:
Uma senhora esperava, há uma hora, no acostamento, que alguém parasse para ajudá-la a trocar o pneu furado de seu carro. Finalmente, um motorista estacionou por perto e aproximou-se.
- Meu nome é Bryan. Posso ajudá-la?
Ficou preocupada. Estava vestido com simplicidade, carro maltratado, bem diferente do seu, novinho em folha. E se fosse um assaltante?
Mas ele logo foi pegando o macaco hidráulico e rapidinho trocou o pneu.
Ela não sabia como agradecer. Perguntou quanto lhe devia. Bryan sorriu:
- Não foi nada. Gosto de ajudar pessoas, quando tenho chance. Sou grato a Deus pelas dádivas recebidas, embora viva modestamente. Tenho um lar abençoado, uma esposa adorável. Se realmente quer me reembolsar, da próxima vez que encontrar alguém em dificuldade, tente fazer o mesmo.
Alguns quilômetros adiante, ela entrou numa lanchonete de beira de estrada. A garçonete aproximou-se. Tinha luminoso sorriso, não obstante os pés doendo, o cansaço, por um dia inteiro de trabalho estafante. E havia a sobrecarga da gravidez. A barriga proeminente revelava avançada gestação.
Atenciosa, limpou a mesa com cuidado, atendendo, solícita, a freguesa.
A senhora admirou seu jeito carinhoso e se perguntava como alguém, em tal situação, conservava a dispo-
sição de exercitar a gentileza.
Então, recordou de Bryan e de sua recomendação.
Após a refeição, enquanto a jovem buscava troco para uma nota de cem dólares que lhe dera, a senhora partiu.
Quando a garçonete voltou, notou algo escrito no guardanapo, sob o qual havia mais quatro notas de cem dólares.
Não conteve as lágrimas, ao ler:
Alguém me ajudou uma vez e da mesma forma lhe estou ajudando. Não me deve nada. Eu já tenho o bastante. Se realmente quiser me reembolsar, não deixe este círculo de amor terminar em você.
Naquela noite, ao deitar-se, ficou pensando no bilhete.
Como a freguesa soubera o quanto ela e o marido precisavam daquele dinheiro?
Virou-se para ele que dormia ao lado, deu-lhe um beijo e sussurrou:
- Tudo ficará bem, meu querido. Eu te amo muito, Bryan.
Se houvesse um levantamento estatístico, ficariam admiradas as pessoas ao constatar que naquela noite foram menos numerosos os acidentes e as ocorrências policiais.
É que um círculo de luz estendera-se pelas adjacências, a partir de uma corrente de amor, a iluminar os caminhos e a neutralizar as trevas.
Façamos, leitor amigo, a nossa corrente sagrada, cultivando bons sentimentos, bons pensamentos, boas ações...
Generosos mentores nos ajudarão nesse empenho, e o Bem se estenderá ao redor de nossos passos, favorecendo nossa cidade com um ambiente tranqüilo e ajustado, onde possamos viver em paz.
Vamos aderir?
Dia dos Vivos
Lar em festa:
- Nasceu alguém?
- Morreu.
- Era tão ruim assim?
- Era muito bom!
- Regozijam-se com sua morte?
- Festejamos sua liberdade.
- Estava preso?
- Libertou-se do corpo.
Este diálogo aparentemente absurdo teria cabimento em antigas culturas orientais.
Sabiamente, pranteavam o nascimento e festejavam a morte, partindo de dois princípios:
• Nascer é iniciar uma jornada de dores e atribulações, enfrentando longo degredo neste vale de lágrimas.
• Morrer é desvencilhar-se das amarras e ganhar a amplidão.
São perfeitamente compatíveis com a Doutrina Espírita, que nos fala da reencarnação como uma experiência difícil, complicada, mas necessária, no estágio de evolução em que nos encontramos.
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E, digamos, uma materialização a longo prazo, uma armadura de carne que vestimos, a limitar nossas percepções. Ligação tão íntima, tão entranhada, que o corpo passa a integrar nossa alma, como um apêndice, submetendo-nos a vicissitudes como a dor, o desajuste, a doença, a senilidade, próprios dos seres biológicos, a se acentuarem à medida que se desgastam suas células.
Por outro lado, o esquecimento das experiências anteriores tende a gerar insegurança. O reencarnante situa-se perdido no presente, a caminhar para o futuro sem o referencial do passado.
E há, ainda, o contato com pessoas que dizem respeito ao pretérito. Estará às voltas com sentimentos gratuitos e contraditórios de simpatia e antipatia, afinidade e rejeição, envolvendo gente de seu relacio-
namento, particularmente os familiares.
O consolo está em saber que se trata de uma contingência evolutiva, no estágio em que nos encontramos.
A carne é a lixa grossa que desbasta nossas imperfeições mais grosseiras.
O esquecimento do passado é a bênção do recomeço, a fim de que possamos superar paixões e fixações que precipitaram nossos fracassos no pretérito.
A convivência com afetos e desafetos de vidas anteriores é a oportunidade de consolidar afeições e desfazer aversões.
Mas... enfrentar tudo isso em estado de amnésia, sem a mínima noção do porquê dessas experiências!...
Barra pesada!
***
Já desencarnar é o alijar da armadura, a retomada das percepções, o retomo à amplidão, a celebração da Vida em plenitude, sem as limitações humanas.
Se houvermos conquistado um mínimo de vitórias, na luta contra nossas imperfeições; se algo fizemos em favor do bem comum, combatendo o egoísmo; se aprendemos a conjugar os verbos amar, perdoar, compreender, na vivência do Evangelho, teremos festiva recepção, marcada pela alegria da missão cumprida.
Estavam certas as antigas culturas orientais.
Quem sabe, um dia, quando essa realidade for melhor assimilada pela Humanidade, haveremos de
mudar as comemorações do dois de novembro. Não mais o dia dos mortos. Mais apropriadamente, o dia dos vivos!
Até a Última Linha
A os sábados realizavam os "zaddikins ", interessantes reuniões que eram dedicadas aos comentários dos textos sagrados e ao estudo das tradições israelitas.
Um dia, quando a sala se achava repleta de discípulos e curiosos, o zaddik Issac Lip tomou da palavra e narrou o seguinte:
- Naquele dia, Adão chegou ao declinar da tarde. Intrigada com a estranha demora do esposo, Eva o interrogou, um tanto maliciosa e um tanto abespinhada: "Onde estiveste, querido, todo esse tempo? Por que demoraste tanto para chegar? " Com palavras reticentes, meio gaguejantes, desculpou-se Adão com motivos que,
f
para um habitante do Eden, não pareciam dos mais aceitáveis. Eva não insistiu. Aceitou as evasivas fraquíssimas do esposo e deixou-o em paz. Adão, sem mais palavras, deitou-se, de bruços, sobre o tapete macio da relva e dormiu pesadamente. Eva, sentada a seu lado e nada conformada com a indiferença do companheiro, pôs-se a contar, em voz alta: "Um, dois, três, quatro, cinto, seis, sete, oito, nove..."
Neste ponto o velho zaddik fez ligeira pausa e interrogou, em tom malicioso, os ouvintes:
- Surge, agora, meus amigos, grave problema. Que estava a Mãe Eva contando, naquela tarde, enquanto Pai Adão dormia pesadamente sobre o chão aveludado do Paraíso?
Permaneceram todos em silêncio. O enigma parecia desafiar a imaginação dos mais cultos e brilhantes talmudistas. O orador insistiu, com um sorriso matreiro, sem mudar de tom.
- Vamos! Que estava a Mãe Eva contando? Como seus interlocutores continuassem calados,
explicou:
- A nossa Mãe Eva contava as costelas de Pai Adão, a fim de apurar se faltava alguma.
***
Tive o prazer de conhecer e ouvir, em duas oportunidades, em Bauru, na década de cinqüenta, num ciclo de conferências, o escritor que registrou essa anedota.
Trata-se do professor Júlio César de Melo e Souza.
Não sabe quem é, prezado leitor?
E se eu disser Malba Tahan?
Pois é! Ambos são a mesma pessoa.
Malba Tahan foi o codinome adotado para suas incursões nos domínios da literatura, encantando gerações que se sucedem, best seller permanente, com suas maravilhosas histórias.
É um extraordinário recurso didático, até para ensinar matemática, feita de números, que aparentemente não tem nada a ver com as referidas, feitas de palavras. Quem leu O Homem que Calculava, seu livro mais famoso, sabe do que estou falando.
Colégio lotado, ouvíamos Malba Tahan literalmente eletrizados. Tendo formação em artes cênicas, dava um toque especial às narrativas dramatizadas. Prendiam a atenção e aguçavam a imaginação.
Tanto tempo se passou e recordo várias delas, especialmente uma sobre as relações sentimentais, quando não dão certo.
Certa feita o Amor desejou atravessar caudaloso rio. Procurou um barqueiro. Este se recusou a transportá-lo.
Um segundo exprimiu idêntica negativa.
O terceiro barqueiro consultado dispôs-se a atendê-lo.
Em meio à travessia, o Amor perguntou-lhe quem eram os dois colegas que não quiseram ajudá-lo a passar para a outra margem.
Ele explicou:
- O primeiro barqueiro é o sofrimento; o segundo, o desprezo.
- E quem é você?
- Sou o tempo.
Perfeito!
Se a experiência amorosa não dá certo, pode haver sofrimento, rancor, ressentimento, desprezo, mas só o tempo acalmará nossa inquietação.
Só o tempo faz passar o amor!
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O grande mérito da história é favorecer a associação dos conceitos de quem fala com as rotinas existenciais dos que ouvem, fixando-os indelevelmente.
Didaticamente é perfeito.
Há algum tempo participei de um ciclo de palestras, em pequena localidade, no interior de Minas. Terminada a reunião, conversando com uma senhora, ela afirmou:
- Lembro-me de sua primeira visita a nossa cidade.
- Está equivocada. Nunca estive aqui.
- Pois eu me recordo até da história que contou. O encontro redentor de um ex-prisioneiro das galés com santo padre.
Bingo! A senhora estava absolutamente certa.
É um episódio do livro Os Miseráveis, de Victor Hugo. Costumava apresentá-lo, no desdobramento de uma palestra.
Ela não guardara os detalhes, mas registrara o essencial, que estava na história.
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Grande parte dos ensinamentos de Jesus, o Mestre por excelência, era transmitida na forma de parábolas, histórias com fundo moral.
O Filho Pródigo, O Bom Samaritano, O Semeador, A Ovelha Perdida, O Fariseu e o Publicano, são algumas das mais importantes.
Sustentaram, indelevelmente, sua doutrina, perpe-tuando-se na tradição oral, antes que fossem fixadas definitivamente pelos evangelistas.
Use e abuse das histórias, caro leitor.
Alegres, edificantes, evocativas, ilustrativas, esclarecedoras, emocionantes, são pedaços da vida que ligamos à nossa vida, buscando o melhor para nós...
O Destino de Nossa Família
O comprador dirige-se ao atendente da livraria, no shopping.
- Preciso de doze metros quadrados.
- Papel de parede é na tipografia ao lado.
- Quero livros.
- Por metros quadrados? -E encadernados!
- Coleções?
- De preferência.
- Tem os nomes?
- Não importa. É para decoração...
Lamentavelmente, leitor amigo, há quem compre livros "a metro", com essa finalidade. Fica sofisticada e atraente uma biblioteca adornada com encadernações luxuosas e multicores, simetricamente dispostas.
Mas, e o conteúdo?
Aurèlien Scholl é contundente:
Nada há que mais se pareça com um idiota, quando está elegantemente vestido, do que um mau livro luxuosamente encadernado.
Com livros encadernados ou não, é fundamental formemos nossa biblioteca.
Edmondo de Amicis, escritor italiano, dizia:
O destino de muitos homens dependeu de ter havido ou não uma biblioteca na casa paterna.
Idéia interessante, que enseja indagações pertinentes.
Fazia parte de nosso destino haver livros capazes de nos influenciar, em nosso lar, nos verdes anos?
Ou foi a partir da existência deles que se forjou nosso destino?
Se ficarmos com a primeira hipótese, deveremos admitir que tê-los em casa independe de nossa vontade. Se aprouver aos poderes divinos que nos regem,
ficaremos distanciados de páginas que favoreçam nosso futuro.
Certamente a segunda idéia é mais compatível com a boa lógica. Ter livros em casa é uma opção.
Portanto, podemos influir decisivamente em nosso próprio destino e no destino dos nossos, a partir de elementar iniciativa:
Cultivar o saudável hábito da leitura, compondo uma biblioteca doméstica.
Diz o grande Padre Antônio Vieira:
São os livros os mestres mudos que ensinam sem fastio, falam a verdade sem respeito, repreendem sem pejo, amigos verdadeiros, conselheiros singelos; e assim como à força de tratar com pessoas honestas e virtuosas se adquirem, insensivelmente, os seus hábitos e costumes, também à força de ler os livros se aprende a doutrina que eles ensinam.
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O livro ideal tem características marcantes. Satisfaz às aspirações estéticas e necessidades éticas.
Ao prazer da leitura soma-se o apelo à consciência. Conteúdo instigante e educativo. Faz pensar, acrescenta saber.
- É o livro espírita! - enfatizará o confrade entusiasmado com a vasta literatura doutrinária.
Realmente, diríamos que temos nela a literatura do sublime, oferecendo-nos um amplo painel das realidades espirituais, das leis que nos regem, de nosso glorioso destino...
Importante reservar em nossa biblioteca um espaço generoso para os livros espíritas, à disposição dos familiares e amigos, atendendo a todos os gêneros literários, gostos e faixas etárias.
Obviamente, tenhamos o cuidado de selecionar os bons autores, já que também em nossos arraiais há os que têm pouco a dizer e o fazem muito mal.
Assim estaremos contribuindo para que nossos filhos forjem um bom destino, sob inspiração dos abençoados princípios codificados por Allan Kardec.
E haverão de trilhá-lo com alegria, se conseguirmos estimulá-los ao amor pela leitura, como destaca Anthony Trollope:
O amor pelos livros, meus amigos, é o seu passo para a maior, a mais pura, a mais perfeita satisfação que Deus preparou para as suas criaturas.
Dura quando todas as outras satisfações perdem o
viço.
Sustenta-nos quando todas as outras recreações desaparecem.
Durará até a nossa morte.
Fará nossas horas agradáveis, enquanto vivermos.
O Garçom
A senhora estava inconformada com a morte de Manoel, seu marido, que durante décadas fora dedicado garçom, num dos melhores restaurantes da cidade.
Desejosa de receber conforto, guardando a esperança de poder comunicar-se com ele, via mediúnica, passou a freqüentar reuniões num Centro Espírita.
Certo dia vários médiuns reuniram-se com ela ao redor de uma mesa e, após orações, chamavam, em coro:
- Manoel! Manoel! Manoel!
Durante vários minutos repetiram a evocação, e
nada do "morto comunicar-se. Alguém sugeriu:
- E se o chamássemos como os clientes do restaurante fazem?
- Boa idéia, vamos tentar! E todos, em coro:
- Garçom! Garçom! Garçom! Uma voz ecoou na sala:
- Pois não!
- Manoel! - exclamou, emocionada, a senhora.
- Não, eu sou o Juvenal!
- E o Manoel?
- Negativo. Ele não atende esta mesa!
***
Essa é de doer, não é mesmo, caro leitor?
Não obstante, oferece o ensejo de algumas considerações, envolvendo a tendência que caracteriza grande parte das pessoas que procuram o Espiritismo querem notícias de mortos queridos.
Há Centros Espíritas que se dispõem a atendê-las, mas sem os necessários cuidados, a começar pelo equívoco de promover reuniões mediúnicas públicas, com a presença de consulentes que não têm a mínima orientação doutrinária.
Desconhecem o fenômeno mediúnico e as dificuldades que envolvem o contato dos mortos com os vivos.
Você poderá dizer que Chico Xavier dedicou-se
durante décadas ao exercício dessa função, recebendo milhares de mensagens de conforto, consolo e esperança dos que se foram aos que ficaram. É verdade!
O grande médium de Uberaba encarnou bem a figura do Consolador, prometido por Jesus. Transmitia com extrema fidelidade notícias dos "mortos" aos familiares "vivos".
E todos se identificavam pelos nomes, apelidos, situações, episódios marcantes, fatos da intimidade doméstica, as circunstâncias da morte e outros detalhes, não raro esquecidos, o que tomava aquele contato inquestionável.
Vezes sem conta o Espírito causava estranheza, referindo-se a familiares desencarnados que ninguém conhecera, que os receberam no Além. Posteriormente, o pessoal mais antigo da família confirmava a informação.
Consideremos, entretanto, que médiuns de seu naipe não se improvisam. Chico foi um Pelé da Mediunidade. Raros apresentam competência remotamente semelhante.
Normalmente os médiuns enfrentam suas próprias limitações, que os impedem de "incorporar" de forma clara e objetiva as idéias e informações transmitidas, principalmente quando envolvem datas e nomes.
Tendem a uniformizar o teor dessas mensagens, despertando a desconfiança dos consulentes, que desconhecem as dificuldades que envolvem o intercâmbio.
Isso não significa que se deva suprimir esse aspecto
consolador da Doutrina Espírita, mas que o façamos com critério.
É todo um campo a ser cultivado, mas com a disciplina sugerida em O Livro dos Médiuns. A medida que médiuns e dirigentes preparem-se adequadamente, haverá condições para um intercâmbio que nos permita o consolo do contato com os mortos queridos de forma produtiva e proveitosa, sem dar ensejo a históri; jocosas, do tipo "ele não atende esta mesa".
O Que se Pode Levar
No velório:
- Deixou bens? -Sim.
- Algo significativo?
- Para ele, sim.
- O que deixou?
- Tudo o que possuía!
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Só há uma certeza na vida - a morte. Todos morreremos um dia.
Só há uma certeza na morte - nada levaremos. Tudo permanecerá aqui.
Ficarão bens, propriedades, riquezas, jóias, dinheiro...
Até mesmo um mísero alfinete será confiscado na rigorosa alfandega do Além.
E também posição social, prestígio, fama, poder...
É como se fôssemos seqüestrados, sem direito, sequer, a uma peça de roupa e conduzidos para remoto continente.
Condição penosa para aqueles que não se prepararam adequadamente.
Permanecem presos às situações que vivenciaram.
Angustiam-se com seu isolamento...
Irritam-se por não lhes darem atenção os familiares...
Ficam odientos e desatinados quando presenciam a divisão dos bens entre os herdeiros, situando-os por traidores e larápios.
Vezes inúmeras nos deparamos, nas manifestações mediúnicas, com entidades vivendo esse drama.
Lembro-me de um Espírito recém-desencarnado. Não se conformava com o andamento do inventário. Considerava-se espoliado pelos familiares.
Argumentávamos, procurando apaziguá-lo:
- Meu amigo, lembre-se de que você está no mundo espiritual. Outros devem ser seus interesses, seus desejos e atividades.
- Conversa mole! E tudo meu, fruto do meu suor,
da minha dedicação! Recuso-me a ver meus patrimônios dilapidados, justamente por aqueles que deveriam preservá-los!
- Você jamais foi dono de nada. Era tudo propriedade de Deus. Apenas administrava.
- Balelas! Meus bens estão registrados em cartório! Nas escrituras não consta o nome de Deus!
Diálogo infrutífero.
A fixação de idéias em tomo de nossas fraquezas, sedimentada pelo egoísmo, constitui um bloco monolítico que só o tempo aliado ao sofrimento podem quebrar.
É comum nos depararmos com Espíritos incapazes sequer de reconhecer a realidade espiritual, obcecados pelos interesses que marcaram sua passagem na carne.
Conversei, certa feita, com rico fazendeiro desencarnado, ainda envolvido com a imensa propriedade que centralizara suas atenções. Supunha que fora invadida por estranhos.
Não percebera que haviam decorrido trinta anos desde o seu falecimento, e que os filhos, após o inventário, tinham loteado a fazenda.
***
Meu caro leitor, mais cedo ou mais tarde, amanhã ou dentro de algumas décadas, bateremos as botas, retomando ao mundo espiritual.
Manda a prudência e o bom senso que tenhamos sempre um pé-atrás, isto é, que estejamos atentos, evi-
tando surpresas desagradáveis.
Duas providências, nesse particular, devem merecer nosso empenho:
• Administrar, sem apego, o que vai ficar, reduzindo ao máximo nossa dependência.
• Investir, com empenho, no que podemos levar.
Você talvez estranhe essa última afirmativa. Se não podemos levar nem um alfinete... Não há contradição.
Levaremos, sim, as aquisições que, segundo Jesus as traças não roem nem os ladrões roubam, caracterizadas pelos valores culturais, intelectuais, morais, espirituais...
O conhecimento superior, a cultura bem orientada, as virtudes cristãs, o domínio sobre nós mesmos, a sabedoria, são patrimônios inalienáveis, que irão conosco para onde formos, constituindo-se num "mobiliário" abençoado que nos proporcionará conforto e bem-estar onde estivermos.
A propósito, há esclarecedor diálogo de um turista americano com famoso mestre egípcio que visitou na cidade do Cairo.
Ficou surpreso ao ver que o ancião morava em quarto singelo. As únicas mobílias eram uma mesa e um banco.
A partir dali houve breve e significativo diálogo:
O turista:
- Onde estão seus móveis? O sábio:
- Onde estão os seus? O turista:
- Estou de passagem. O sábio:
- Eu também.
Dalton Trevisan
O VAMPIRO DE CURITIBA
19a EDIÇÃO
EDITORA RECORD
RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO


CIP-Brasil. Catalogaçto-M-fonte Sindicato Nacional doe Editores de Livros, RJ.
Trevisan, Dalton, 1925-
T739v O vampiro de Curitiba / Dalton Trevisan. -
19" ed. 19" ed. rev.- Rio de Janeiro: Record, 199S.
l. Novelas brasileiras. I. Titulo.
78-0276
CDD - 869 9303 CDU - 869.0(*1>32
Copyright O by Dalton Trevisan
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O VAMPIRO DE CURITIBA
EDITORA AFILIADA

Sumário
O vampiro de Curitiba 9 Incidente na loja 15 Encontro com Elisa 22 Contos dos bosques de Curitiba Último aviso 30 Visita à professora 34 Na pontinha da orelha 46 Eterna saudade 56 Arara bêbada 62 O herói perdido 66 Chapeuzinho vermelho 71 Debaixo da Ponte Preta 76 Menino caçando passarinho 82 As uvas 90 A noite da paixão 99
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O VAMPIRO DE CURITIBA
AI, me dá vontade até de morrer. Veja, a boquinha dela está pedindo beijo - beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz. É uma que molha o lábio com a ponta da língua para ficar mais excitante. Por que Deus fez da mulher o suspiro do moço e o sumidouro do velho? Não é justo para um pecador como eu. Ai, eu morro só de olhar para ela, imagine então se. Não imagine, arara

bêbada. São onze da manhã, não sobrevivo até à noite. Se fosse me chegando, quem não quer nada - ai, querida, é uma folha seca ao vento - e encostasse bem devagar na safadinha. Acho que morria: fecho os olhos e me derreto de gozo. Não quero do mundo mais que duas ou três só para mim. Aqui diante dela, pode que se encante com o meu bigodinho. Desgraçada! Fez que não me enxergou: eis uma borboleta acima de minha cabecinha doida. Olha através de mim e lê o cartaz de cinema no muro. Sou eu nuvem ou folha seca ao vento? Maldita feiticeira, queimá-la viva, em fogo lento. Piedade não tem no coração negro de ameixa. Não sabe o que é gemer de amor. Bom seria pendurá-la cabeça para baixo, esvaída em sangue.
Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder? Hei de chupar a carótida de uma por uma. Até lá enxugo os meus conhaques. Por causa de uma cadelinha como essa que aí vai rebolando-se inteira. Quieto no meu canto, ela que começou. Ninguém diga sou taradinho. No fundo de cada filho de família dorme um vampiro - não sinta gosto de sangue. Eunuco, ai quem me dera. Castrado aos cinco anos. Morda a língua, desgraçado. Um anjo pode -dizer amém! Muito sofredor ver moça bonita - e são tantas. Perdoe a indiscrição, querida, deixa o recheio do sonho para as formigas? Ó, você permite, minha flor? Só um pouquinho, um beijinho só. Mais um, só mais um. Outro mais. Não vai doer, se doer eu caia duro a seus pés. Por Deus do céu não lhe faço mal - o nome de guerra é Nelsinho, o Delicado.
Olhos velados que suplicam e fogem ao sgirpreender no óculo o lampejo do crime? Com elas usar de agradinho e doçura. Ser gentilíssimo. A
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impaciência é que me perde, a quantas afugentei com gesto precipitado? Culpa minha não é. Elas fizeram o que sou - oco de pau podre, onde floresce aranha, cobra, escorpião. Sempre se enfeitando, se pintando, se adorando no espelhinho da bolsa. Se não é para deixar assanhado um pobre cristão por que é então? Olhe as filhas da cidade, como elas crescem: não trabalham nem fiam, bem que estão gordinhas. Essa é uma das lascivas que gostam de se coçar. Ouça o risco da unha na meia de seda. Que me arranhasse o corpo inteiro, vertendo sangue do peito. Aqui jaz Nelsinho, o que se finou de ataque. Génio do espelho, existe em Curitiba alguém mais aflito que eu?
Não olhe, infeliz! Não olhe que você está perdido. É das tais que se divertem a seduzir o adolescente. Toda de preto, meia preta, upa lá lá. Órfã ou viúva? Marido enterrado, o véu esconde as espinhas que, noite para o dia, irrompem no rosto - o sarampo da viuvez em flor. Furiosa, recolhe o leiteiro e o padeiro. Muita noite revolve-se na cama de casal, abana-se com leque recendendo a valeriana. Outra, com a roupa da cozinheira, à caça de soldado pela rua. Ela está de preto, a quarentena do nojo. Repare na saia curta, distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o joelho... Redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a coxa fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!
Veja, parou um carro. Ela vai descer. Colocar-me em posição. Ai, querida, não faça isso: eu vi tudo. Disfarce, vem o marido, raça de cornudo. Atrai o pobre rapaz que se deite com a mulher.

Contenta-se em espiar ao lado da cama - acho que ficaria inibido. No fundo, herói de bons sentimentos. Aquele tipo do bar, aconteceu com ele. Esse aí um dos tais? Puxa, que olhar feroz. Alguns preferem é o rapaz, seria capaz de? Deus me livre, beijar outro homem, ainda mais de bigode e catinga de cigarro? Na pontinha da língua a mulher filtra o mel que embebeda o colibri e enraivece o vampiro.
Cedo a casadinha vai às compras. Ah, pintada de ouro, vestida de pluma, pena e arminho - rasgando com os dentes, deixá-la com os cabelos do corpo. Ó bracinho nu e rechonchudo - se não quer por que mostra em vez de esconder? -, com uma agulha desenho tatuagem obscena. Tem piedade, Senhor, são tantas, eu tão sozinho.
Ali vai uma normalista. Uma das tais disfarçada? Se eu desse com o famoso bordel. Todas de azul e branco - ó mãe do céu! - desfilando com meia preta e liga roxa no salão de espelhos. Não faça isso, querida, entro em levitação: a força dos vinte unos. Olhe, suspenso nove centímetros do chão, desferia vôo não fora o lastro da pombinha do amor. Meu Deus, fique velho depressa. Feche o olho, conte um, dois, três e, ao abri-lo, ancião de barba branca. Não se iluda, arara bêbada. Nem o patriarca merece confiança, logo mais com a ducha fria, a cantárida, o anel mágico - conheci cada pai de família!
Atropelado por um carro, se a polícia achasse no bolso esta coleção de retratos? Linchado como tarado, a vergonha da cidade. Meu padrinho nunca perdoaria: o menino que marcava com miolo de pão a trilha na floresta. Ora uma foto na revista do dentista. Ora na carta a uma viuvinha de sé-
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timo dia. Imagine " susto, a vergonha fúlgida, as horas de delírio na alcova - à palavra alcova um nó na garganta.
Toda família tem uma virgem abrasada no quarto. Não me engana, a safadinha: banho de assento, três ladainhas e vai para a janela, olho arregalado no primeiro varão. Lá envelhece, cotovelo na almofada, a solteirona na sua tina de formol.
Por que a mão no bolso, querida? Mão cabeluda do lobisomem. Não olhe agora. Cara feia, está perdido. Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante ao peso das espigas maduras. Oxigenada, a sobrancelha preta - como não roer unha? Por ti serei maior que o motociclista do Globo da Morte. Deixa estar, quer bonitão de bigodinho. Ora, bigodinho eu tenho. Não sou bonito, mas sou simpático, isso não vale nada? Uma vergonha na minha idade. Lá vou eu atrás dela, quando menino era a bandinha do Tiro Rio Branco.
Desdenhosa, o passo resoluto espirra faísca das pedras. A própria égua de Átila - onde pisa, a grama já não cresce. No braço não sente a baba do meu olho? Se existe força do pensamento, na nuca os sete beijos da paixão.
Vai longe. Não cheirou na rosa a cinza do coração de andorinha. A loira, tonta, abandona-se na mesma hora. Ó morcego, ó andorinha, ó mosca! Mãe do céu, até as moscas instrumento do prazer - de quantas arranquei as asas? Brado aos céus: como não ter espinha na cara?
Eu vos desprezo, virgens cruéis. A todas poderia desfrutar - nem uma baixou sobre mim o olho estrábico de luxúria. Ah, eu bode imundo e chifrudo, rastejariam e beijavam, a cola peluda.
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Tão bom, só posso morrer. Calma, rapaz: admirando as pirâmides marchadoras de Quéops, Quefren e litiquerinos, quem se importa com o sangue dos escravos? Me acuda, ó Deus. Não a vergonha, Senhor, chorar no meio da rua. Pobre rapaz na danação dos vinte anos. Carregar vidro de sanguessugas e, na hora do perigo, pregá-las na nuca? Se o cego não vê a fumaça e não fuma, ó Deus, enterra-me no olho a tua agulha de fogo. Não mais cão sarnento atormentado pelas pulgas, que dá voltas para morder o rabo. Em despedida - ó curvas, ó delícias - concede-me a mulherinha que aí vai Em troca da última fêmea pulo no braseiro - os pés em carne viva. Ai, vontade de morrer até. A boquinha dela pedindo beijo - beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz.
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INCIDENTE NA LOJA
JNeLSiNHO marcou o cartão, desceu pelo elevador com o guarda-livros. Pediu que o justificasse perante o gerente, no caso de se atrasar: almoçava com o tio chegado de viagem.
- Por que não fala com o homem?
O herói mordia o canto da unha e, de instante a instante, sugava uma gota de sangue.
- O bruto me deixa aflito.
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No bar da esquina o primeiro cálice - um
gole só.
- Cuidado, rapaz. Bebe muito depressa.
Metendo-se na vida alheia, não se queixe a guarda-livros quando mergulhe no poço do elevador. Nelsinho virou mais dois tragos, saiu para a rua ensolarada. Olhava o relógio de pulso, embora sem pressa nem rumo, seguindo de longe as damas; ah, esquecera o óculo escuro, admirar-lhes as prendas sem se denunciar. Não resistiu a um, chope bem gelado e enxugou o bigodinho.
Graças a Deus pelas mulheres, tão bem feitas para serem acariciadas - ratinho branco, gato angorá, porquinho-da-índia. Algumas gostaria de embalar no colo. A outras pediria, virando o olho, que lhe queimassem o cabelo do peito na brasa do cigarro. Para onde girasse a cabeça, lá estavam elas, braços nus, a penugem dourada arrepiandose aos seus beijos soprados na brisa fagueira. Seguiam a passo decidido, estremecendo as bochechas rosadas, indiferentes e tão distraídas que, se olhavam para ele, era através dele: nuvem, folha de papel, gota d'água. Voltando-se irritado, acompanhava o balanço dos cabelos na nuca, a ondulação das saias no boleio aliciante dos quadris.
Cão sequioso, a língua de sol resfolegava-lhe no pescoço. Jogou o paletó ao ombro, o toureador no seu manto de glória. Estava para o amor, não fosse a humilhação da carteira vazia - até a última das mulheres tem o seu preço. Mais um vale no caixa, o guarda-livros iria denunciá-lo ao gerente: o poço do elevador era o fim do espião. Sonolento da bebida, os bancos da praça convidavam-no para o descanso reservado aos pais de família. Resistiu impávido, desviou-se para uma rua
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transversal, observou a mocinha na calçada oposta - É ela. Agradeceu com falsa modéstia - Obrigado, Senhor. Eu não mereço.
Sem perdê-la de vista, preparava a abordagem. Os cartazes na parede sugeriam que fosse ao cinema. Vestiu o paletó para bem impressionar, atravessou a rua. Ultrapassou-a alguns passos, fingiu que lia os anúncios. Na vitrina a figura sinistra de galã barato: desde quando se reflete a imagem do nosferatu? Esfregou o lenço no nariz, onde latejava uma espinha - tarde demais para espremê-la. Então o coração de Nelsinho disparou: um amigo da família vinha ao seu encontro. Ainda não o avistara, escondeu-se atrás de uma coluna do saguão - vai saber que persigo a menina.
Ela admirava os deslumbrantes cartazes de Ava Gardner, não havia reparado em Nelsinho. Antes que pudesse olhar através dele - folha de papel, nuvem, gota d'água -, cumprimentou-a risonho e cuidadoso de não revelar o dentinho preto. A ingênua correspondeu ao sorriso. Aguardou um pouco, atrás da coluna, não fosse o amigo da família aparecer. Aflito, rompeu em marcha batida, esbarrou na menina, que estava abrindo a loja vizinha.
- Já vai entrar, meu bem?
Quase gritou, a mão no decote da blusa amarela:
- Puxa, que susto!
Meio sorriso, verificou se era seguido.
- É aqui que você trabalha?
- Trabalha com quem? Ah, sozinha, é? Que importante.
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- O teu patrão?
- Está doente.
- Loja de que é?
Era casa decadente, duas portas. A moça abriu uma das folhas, guardou a chave na bolsa com alça de bambu. Nelsinho relanceou os olhos na escuridão.
- Colchão, acolchoado, travesseiro.
- A que hora você sai?
- Fico até às seis.
- Se a encontrasse na saída?
Não roa a unha, desgraçado, que está perdido.
- Como é? Posso ou não posso?
Ela sorriu, no lábio uma gotinha de suor: sim.
- Ah, seu nome, qual é?
Ó, Senhor, não tens piedade; cometera o primeiro erro, voltando para a menina a orelha boba. Escapou-lhe o nome, já não teria coragem de repetir a pergunta. A seus pés, a nuvem de fogo tremulando no asfalto, como resistir à sedução da fresca penumbra?
- Será que podia entrar?
Avançou na frente dela, que ainda protestou:
- Não tem nada para ver. •
Apertava os olhos, sem distinguir na sombra: pilhas de colchões erguiam-se pelos cantos. Curvou-se a menina, o trinco da segunda folha. O herói descortinou a face calipígia - quem diria, aquela mocinha magra! -, ficou tremendamente excitado. Estou cansado, Senhor, são tantas mulheres e eu tão sozinho. Ela não conseguia suspender a lingüeta, ergueu-se a soprar o dedinho:
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- Veja se laz alguma coisa. Puxe o trinco ao menos.
Sem beber, voltava ao que era: cão lazarento. Na penumbra, o bafio da loja decrépita Encaminhou-se a menina para a outra porta. Nelsinho, ao sacudir o torpor, sentiu debaixo do pé o soalho vacilante e, cruzando com ela, alisou-lhe em furtiva carícia o cabelo ruivo.
- Não. Não me pegue.
Nelsinho inclinou-se para o trinco, o acento lânguido e perverso - Não, não me pegue -, em recusa que, tão indolente, era antes um convite, mudou de idéia e empurrou a porta com o pé. Lá fora, sentado no carro, um motorista gordo bocejando volveu a cabeça tarde demais.
Para surpresa de Nelsinho, não ficou no escuro: os dois quadros luminosos das bandeiras no soalho. A moça, ainda sem entender - meu Deus, terei de fazer uma carnificina? -, bulia na segunda porta. Chegando-se por trás, mãos em concha empolgou-lhe o busto. Sua longa busca recompensada e, sob as barbatanas, encontrou a mansa paz de dois pequenos seios. Surpreendida, sem largar a tranca, inocente do que lhe acontecia:
- Nojento... Seu nojento!
Ao ouvido bom do herói queixume de amor, algum travo de fúria. A moça cravou-lhe as unhas na mão. Ela enterrava as unhas, Nelsinho esmagava os seios com força. Crispando a mão, alegrçu-se de roer as unhas, não a machucava mais do que devia. A menina não resistiu e gemeu, a cabeça inclinada para trás. Deixou que se voltasse. Soltando os seios, agarrou nas duas mãos o rosto.
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Ela girPU e bateu cotfi a bolsa na sua perna di* reita.
Beijou-a duramente na boca. Ela se opôs, sem conseguir afastar o rosto. O herói descolou os lábios pai a recobrar fôlego. A menina fitava-o com susto atrás do óculo de gatinha. Daí a beijou novamente. Continuava se recusando, mas não muito: abateu o braço, a bolsa escorregou. Nelsinho recuou um instante a cabeça para respirar. Na terceira vez a menina retribuiu, ainda de boca fechada - ele sopesava na palma um dos seios, precioso e frágil ovo quente do ninho.
Suspendeu o beijo, olhou ao redor: a luz das bandeiras na chita encarnada dos edredões e travesseiros azuis. O rosto nas mãos, arrastou-a até a pilha de colchões. A moça tombou com um gemido, o vestido suspenso descobriu a combinação branca enfeitada de rendas. De joelho, quis voltar a beijá-la, os dedos agarrados no seio. A bela fugiu com o rosto. Como também usava óculo, constrangido a retirar o seu, que rolou fora do leito e quase deu um grito no susto de quebrá-lo. Imobilizoulhe o rosto, alcançou os lábios e, a beijá-la, subia o vestido, desde o joelho redondo até a amplidão da coxa alvacenta. A calça de malha, teria de rasgar.
Óculo embaçado cia moça, estava de olho aberto? Ela não se mexia, ofegante de medo ou prazer. Nelsinho enterrava-lhe o nariz nos longos cabelos vermelhos - ai, Senhor, de nós dois qual a vítima?
Tateou o soalho empoeirado até achar o óculo. Morcego condenado à caça nas trevas, observou a boca infantil, antes agressiva de batom, indefesa nos lábios finos e entreabertos. Ergueu-se e, a seus
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pés, na trêmula faixa de poeira luminosa, a pecijiha de malna rósea.
Bem educado, deu-lhe as costas para se abotoar, recolheu as medalhas bulindo na corrente. Por sua vez, a bela ajeitou a anágua e as pregas da saia, alisando-a diversas vezes com a mão.
Voltara a sua timidez, uma vontade de chorar, como agir em face das damas? Não queria chegar tarde, podia perguntar a hora.
Também ela se atrasara na abertura da loja; dirigiu-se à porta, apanhando a bolsa no caminho, deslocou a tranca. Em galanteio, Nelsinho abriu a outra porta. Escancarou uma das folhas e abaixou-se para o trinco, que correu fácil. E o gordo que o tinha ouvido ou visto bater a porta? Piscou o olho: o carro lá não estava. A moça entretida com a máquina de escrever. Ah, Senhor, deste-me a voz, não as palavras. Pedir desculpa, combinar encontro, perguntar a hora? Antes que cia se voltasse, partiu sem se despedir.
Bateu o ponto, olhou o cartão. Chegara em tempo: o incidente na loja consumado em poucos minutos. Sentou-se à sua mesa, enrolou o papel na máquina: a mão suja de sangue. Foi ao banheiro lavá-la com receio de infecção. Ao procurar o lenço, não o achou, perdido na loja - o seu nome bordado no canto.
De repente viu-se no espelho, pálido de susto. Umedeceu o cabelo, penteou-se devagar: o cabelo fabuloso de Nelsinho. Sorriu entre surpreso e satisfeito, baixou a cabeça e murmurou: Obrigado, Senhor.
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ENCONTRO COM ELISA
r ARA se abrigar da chuva, o herói entrou no botequim e, entre dois conhaques, admirava-se de relance no espelho. Seguindo a indicação do garçom, afastou a cortina viscosa de franja, atravessou a cozinha, saiu no quintal: a primeira porta à direita.
De volta, deparou à porta com a mulher embalando uma criança no colo. Ia passar, quando ela falou:
- Seu mascarado, hein?
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Rosto na sombra, de costas para a luz, quem seria?
- Poxa, Elisa! Que fazendo aqui? Está mais gorda,
E pensou: De quantos meses, hein?
- Eu cumprimento. O senhor nem olha, não é?
- Desculpe. Não ouvi.
Havia meses trabalhava no botequim. Louca por voltar, e o dinheiro da passagem? Saudosa do filhinho que deixou com a mãe.
- Um senhor me convidou. Fazer vida com ele em Curitiba.
- Você dá o filho para sua mãe. E cuida de outro?
O bebé entendeu, abriu o berreiro.
- Espere aí. Vou pôr na cama.
Elisa cobriu a criança, atravessou correndo o pátio. Cruzou por ela uma menina de uns nove anos, sem se apressar na chuva. Passou de cabeça baixa por Nelsinho, entrou na cozinha.
A bruta fera que, embora domesticada, lambendo a mão ferida do dono, não resiste ao grito do sangue: Elisa vinha para ele, olhava duro e sem piedade.
- Como vai de amores?
- Ninguém me quer.
Atraiu-a pelo braço e beijou-a. Elisa tinha um dente partido, onde a pontinha da língua foi se alojar. A mão empolgava o seio da moça ofegante.
- Só por que eu disse que ninguém me quer? Olhava sem responder, já não tinha voz. Ela
foi ver se havia alguém na cozinha.
Nelsinho observou ao lado da casa mesas e bancos ao ar livre, engradados de garrafas vazias.
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A um canto, a mesa escondida pelo biombo. E a •cabeça louca trabalhando: Onde é que vai ser? Enxugou o óculo na camisa.
Assim que a bela voltou, agarrou-a debaixo da garoa.
- Vamos sentar, meu bem.
- Não vê que o banco está molhado?
- Então ache um lugar.
Frias réstias por entre as frinchas de duas janelas iluminavam as poças. Elisa descobriu um saco enxuto de estopa. Esfregou-o com força no banco, sentaram-se atrás do biombo. Ele desabotoou-lhe a blusa, fez saltar o seio. A garoa umedecia a nuca e a moça arrepiava-lhe os cabelos com •dedo gorduroso.
- Podem dar pela minha falta.
- A que hora você sai?
- Moro aqui, seu bobo.
Em desespero o herói roía as unhas.
- A criança dormindo. Lá no quarto?
- Engraçadinho. E minha filha?
- Que filha?
- Ora, a que passou por aqui
- Não sabia.
- Acho que ela desconfiou. Preciso entrar, volto logo.
- Quanto tempo?
- Dez minutos.
O rapaz mordia-lhe a pontinha da orelha.
- Paciência, meu amor.
Elisa fechou a blusa, mas não se ergueu. Tanto o marido a fizera infeliz, depois abrira asas. A falta do filho, obrigada a deixá-lo com a mãe: ele chorava muito, era despedida. Quem dera al-
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guém a levasse para Curitiba. Nem carecia levar, bastava pagar a passagem, dela e da filha.
- Olhe para lá.
Nelsinho virou o rosto, ela saiu correndo. Ficou só onde é que podia ser? Entre as pilhas de engradados lugar para duas pessoas em pé - ao abrigo, apesar da lama.
O clarão de uma vela no pátio. Alguém que buscava uma bebida qualquer? Encolheu-se atrás das caixas. A menina - era a menina - passou, a mão em concha defendendo a vela do vento. Sondou entre as mesas, foi até o portão e voltou - sem apanhar garrafa nenhuma. Nelsinho girava à medida que ela avançava ou se afastava.
Tão assustado, mordeu os berros do coração. Não conseguiu abrir o portão: encurralado. Entre o muro e a casa dois varais de pontas ameaçadoras. Ia ver o que era e novamente a luz da vela.
Desta vez a menina dava a mão a uma mulher, seria a patroa? Em pânico, o herói desejou sumir na lama. Quem olhasse, enxergaria apenas uma barata, encolhida sob o pé que a vai esmagar. Colou-se ao muro, invisível pelo milagre do seu delírio.
Deixou-se ficar, a perna direita dobrada, com o pé na parede, sem voltar a cabeça. Ela vê que estou bem vestido, sou rapaz de família. Imóvel, debaixo da garoa, enquanto as duas iam e vinham, espiando entre as pilhas de garrafas. A vela iluminava todo o terreno, não podiam deixar de vê-lo - a não ser que a mão do Senhor lhes apagasse os olhos. Fixando duro em frente podia distinguir, ao clarão da vela, que as duas varas eram os pés de um carrinho, voltado contra a parede.
Nem um reflexo bulia no óculo, agachou-se
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no canto escuro, chorou baixinho - ah, com essa eu não contava. Deus do céu, foi a última vez: gotas de vergonha escorriam do queixo na preciosa gravata de bolinha.
Ouviu o chinelinho, mais que depressa enxugou os olhos. A bela não o descobriu no esconderijo até que ele se ergueu.
- O que está fazendo aí?
- Puxa, veio um mundo de gente.
- Quem é que veio? Alguém te viu?
- Tua filha e uma velha desgraçada. Acho que tua patroa.
- Ela te viu ou não?
- É bem capaz.
- Pobrezinho. O coração pulando... Sai da chuva, amor.
Outra vez procurando um lugar. Abraçados cambalearam afundando os pés na poça. Debaixo do beirai, ela coube entre os pés do carrinho sem a roda. A ponta da língua rolou no céu da boca, recolheu-se na falha do dente.
Depois de se pentear, Nelsinho ajeitou a onda na testa.
- Por onde eu saio? Ele na frente, ela atrás.
- Fechado.
- Sei abrir.
O herói assobiava todo lampeiro. Elisa gritou aflita:
- Quando te vejo? Acudiu sem se voltar:
- Em Curitiba.
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CONTOS DOS BOSQUES DE CURITIBA
]NELSINHO encostou a porta, encurralada a moça no canto:
- É hoje.
Roçou a sombra do lábio, a espinha na asa do nariz. Ela voltou-lhe a face: beijou-a ferozmente na boca.
Fechou a porta, empurrando-a com o pé. Cer tá que iriam ficar nos toques e blandícias, pendurou-se ao seu pescoço. Pousou a mão no peitinho,
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ela se encolheu, vergonha do seio pequeno? Era dona experiente, sem provçcá-la não conseguia nada:
- Duvido seja carne - é borracha!
- Não faça isso. Vem gente. - Suspirosa, pesando cada vez mais no seu ombro. - Se vem gente?
O herói estendeu a mão, deu volta à chave:
- Vem não.
Arquejante, estalou os dois colchetes, ergueulhe a blusa. Ela que baixou o sutiá. Surgiram dois bocados cor-de-rosa:
- Nunca vi coisinha mais linda!
Ai, mãezinha do céu, aquilo sim era seio - dois de uma vez, sem mentira. Se apertasse o biquinho espirrava leite?
Brasão de família, ela confidenciou que o da mãe era mais bonito.
- Depressa. Vem gente.
Risinho abafado, queixou-se de cócega.
- Que maravilha - a mão cheia, ele sopesava o fruto. - Ó perfeição da natureza!
Ares de distraída, olho ausente no teto:
- Sou nervosa. Hoje estou fria.
- Como é que você gosta?
- Sem inspiração eu não posso.
- Ah, é...
Beijava-a raivoso, lábio inchado de mordida. Ela titilou a língua no céu da boca. O herói, sem sair do lugar, descreveu duplo salto mortal.
Deslizou a mão no joelho, debaixo da saia cinza. Magra, usava anágua. Assustadiça, arregalou o olho:
- Não. Não. Aqui não.
- Seja boba.
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Conversinha em sussurro, na ânsia louca do. mais cobiçado prêmio da terra.
- Querido, pode vir alguém.
Na última resistência, vencida pela surpresa. Levantou-lhe a anágua e viu - o que ele viu? Babados, brincos e rendas da ilha da Madeira!
- Ai, você me machuca.
Da vacina contra varíola, queixou-se de íngua no braço.
- Já faço benzedura de íngua.
A bela soltou o botão da saia e correu o fecho. Agora de blusa e anágua. Sem blusa. Sem anágua, desfeita aos pés. Magrinha e branca, dava pena - deitou-a no sofá de couro vermelho.
- Espere, meu bem.
Ela derrubou o sapato, raspando na beirada o calcanhar. De joelho no tapete, Nelsinho babujou-lhe o seio.
- Me olhe. Abra o olho.
Toda trêmula, escondeu o rosto no seu ombro:
- Sinto vergonha. Gemido abafado de terror:
- Tenha pena de mim!
- Juro que...
Quem me dera um espelho, uma almofada" um anel mágico.
-... não faço mal.
Sem inspiração, a bela enterrou-lhe a unha no pescoço:
- Me beije. Ai, meu amor - e rilhando com fúria os dentes. - Ai, me beije.
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K)
o
ÚLTIMO AVISO
DUAS da tarde, Nelsinho viu a fulana descer do ônibus. Na esquina o tal Múcio, com quem trocou olhares. Entrou no cinema, o sujeito atrás.
Apagada a luz, sentaram-se na última fila, a conversar em voz baixa. De sua cadeira Nelsinho não os podia ouvir. Certo que não prestavam atenção ao filme. No meio da sessão, Múcio levantou-se e saiu.
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O herói pediu licença, sentou-se ao lado, precisava falar com ela.
- Está louco? Sabe que sou casada. Por ele não fazia diferença.
- Olhe que chamo o guarda.
- Aí, safadinha, pensa que não vi?
- Não tem nada com minha vida.
- Eu não. Teu marido pode ter.
- Se disser alguma coisa, conto que me perseguiu.
- Isso é velho. De você eu sei coisas do ar•co-da-velha.
Ofendida, Odete ergueu-se e, subindo a escada, foi para o balcão. Minutos depois, o rapaz surgiu ao lado.
- Como é? Posso falar com você? Sabia que teu marido tem amante? Sabia que eles se encontram à noite? Ainda não sabe, não é? Já vi os dois juntinhos em tantos lugares. Sei que ele pouco •demora em casa. Trata você aos gritos quando lhe pede dinheiro. Foi seduzido por essa tipa. Me dói •o coração ver você desprezada. É a única de quem •gostei na vida. Tire a máscara dessa sem-vergonha. Também é casada. Mãe de filhost quem sabe do teu marido... O homem dela viaja muito. Na sua ausência, ela se mostra o que é: uma sirigaita. Pode que aconteça uma tragédia quando o marido volte e alguém conte. É bobagem brigar com o teu. Sabe como são os homens. São fracos - não resistem a um palminho de cara bonita. Cuidado •com essa aventureira, que se entrega a ele de olho fechado. Quer um conselho, Odete? Olhe, você dê o desprezo. Faça com ele o mesmo que lhe faz.
Sem responder, a bela foi para a platéia, seguida de Nelsinho. Ameaçou contar ao marido
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assim qtie chegasse. Ora, se falasse qualquer coisa, não a surpreendera com outro? Odete saiu furiosa, esqueceu até a sombrinha. Em casa, descreveu o incidente à sua velha mãe:
- Não se pode ir sozinha ao cinema. Aconselhada pela velha a nada revelar ao
marido. Muito nervoso, alguma desgraça. Odete insistia, olhos sonhadores, na loucura do rapaz. Intrigá-la com o marido não era vingança de um doente de paixão?
Àquela hora o nosso herói telefonava para o
marido:
- Boa tarde, seu Artur. Como foi de viagem? Viajar é bom - quando a mulher fica em casa.
-. Que história é essa? Quem está falando? Não estou entendendo.
-- Aqui é um amigo. O nome não Interessa. O caso é tão delicado. Não sei o que diga. Por onde comece. O marido viaja, a mulher fica de namoro. O senhor merece essa falseta? Vou contar o qus sei. A sua mulher... Ela tem um amante!
- Canalha! Dou um tiro na boca. Você prova, seu patife? Então, diga. Quem é que anda com minha mulher?
- Um tal doutor Múcio.
No súbito silêncio, e antes que o palavrão explodisse, Nelsinho desligou. Da folha branca alisou as rugas. Grande sorriso até o fim da carta, em letra de forma, com a mão esquerda:
Dr. Múcio
Grande filho da mãe
Previno-te cuidado! Cuidado!
E)e hoje em diante vou te perseguir
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Já não fiz asneira porque não quis manchar o
meu nome
De hoje em diante farei meus pensamentos Já considerei tua mulher e teus filhos Mas como você é covarde só merece uma bala
na cabeça E te previno pense bem na tua mulher e teus
filhos
E outros inocentes que andam sofrendo no mundo por tua causa Covarde sem-vergonha descarado Pense no futuro do teu lar porque tua vida é
curta.
Se continuar tirando a honra das mulheres casadas Você também é casado e anda corneando os m&
ridos
Não é só com a minha tem muitas outras Não pense que eu sou um covarde como você Tenho coragem para tirar teu miolo fora Talvez você não alcance o Ano Novo Farei uma limpeza em Curitiba Eu só desejo a vingança Derramarei o sangue deste desgraçado na rua Cuide do teu pêlo Ê b último aviso.
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VISITA À PROFESSORA
GIRANDO o pacote no laço do barbante azul, Nelsinho deteve-se diante do prédio esquálido. Conferiu o endereço no embrulho - o santíssimas mães de Curitiba! Ao longo do corredor sinistro, o bafio do lixo nos cantos. Que dona Alice não estivesse em casa - quatro da tarde, escolhida a hora de propósito - e, limpo no seio das famílias, deixaria o regalo com o porteiro. Livre para a sua dama dourada no bar dos marinheiros.
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Aos trancos, arrastou-se o elevador ao segundo andar. Não fosse herói de caráter, esquecia o embrulho ali na porta e adeus, dona Alice. Gemeu baixinho - afinal, a primeira professora da gente, ensinara-o a ler, escrever o nome, as quatro operações - e apertou a campainha. Nenhum som do outro lado. Sabia o que era uma antiga professora, acha você o eterno menino de calça curta. Impossível dar o recado e despedir-se: o pacote era a maçã no primeiro dia de aula. Não o largaria sem que aceitasse um cafezinho e ouvisse os queixumes de solteirona. Vou tocar outra vez e, se não atender, caio fora. Apalpou o objeto - fofo, um cachecol? -, decidiu abandoná-lo na porta. Era tarde: chinelos cansados arrastavamse em surdina. Duas voltas na fechadura - solteirona guardada a sete chaves.
- Como vai a senhora, dona Alice? Lembrase de mim?
No corpo magro a cara gorducha, pisada de sono, olheira doentia. Pela fresta, a voz rouca, que a fisionomia era familiar, do nome não se recordava.
- O Nelsinho, de Curitiba. Seu aluno no grupo Tiradentes.
Escancarou a porta e o sorriso de dentinho amarelo:
- Menino, como cresceu! Meu Deus, quanto tempo...
Um caco de velha - o piolho que se oferece ao machado do estudante. Surpreendeu-o fosse menor que ele. Bem se lembrava, arco-íris de braço nu com o quadro-negro ao fundo, cacho de glicínia azul perfumando a sala - ah, como era linda ao olho míope da infância. No chinelo de pano
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alcançava-lhe o ombro - o mesmo dentinho separado, a sombra de buço no rosto sem pintura.
- Sábado eu cochilo depois do almoço. Acanhada, alisou o negro cabelo, um e outro
fio branco.
- Entregar este pacote. Dona Eponina que mandou.
- Mamãe sempre a abusar dos outros - apertou o embrulho nos dedos trêmulos. - Meia de lã. Muito gentil, Nelsinho. A mãe não sabe da invenção do correio.
Com olho de espanto:
- Então o Nelsinho! Um bonitão. Não precisa encabular. Meus alunos são os filhos que não tive.
Ele, quieto: é da velha professora falar demais.
- Sempre caladão? Não quer entrar?
- A senhora me desculpe. Estou com pressa.
- Deixe de cerimônia. Conversar um pouco. Saber de sua vida. Os colegas como vão?
Nelsinho entrou na sala e, a porta aberta do quarto, avistou a cama larga de casal. Ela encostou a folha:
- Não repare a desordem. Levantei agorinha. Sentou-se no canto do sofá e foi respondendo
- maldição, esquecera a machadinha no outro paletó! - às perguntas sobre os colegas. Uma, casada, mãe de dois filhos - Virgem do céu, como passa o tempo\ Outro, morto em desastre de avião
- o de cachinho, Sérgio, seu preferido.
- Tinha raiva de mim, Nelsinho? Uma vez eu o botei de castigo. De joelho sobre grãos de milho, que horror! Bruxa pavorosa, não era?
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A mais querida das bruxas pavorosas - intata na memória, saia preta e blusa alvinitente de xendinha.
- Capaz de me perdoar, Nelsinho?
- Bem que eu merecia.
- Me conte. Os seus planos. Gostaria de ser médico?
- Não sei, dona Alice. Ando meio perdido.
- Bobagem, menino. Um rapagão feito você! Quantos anos tem?
- Vinte e um - exagerou um ano e, o carão purpurino de donzel aflito, de novo o aluno de mão pecaminosa no bolso. Disfarçando a perturbação, em tom dramático, o desejo de romper com a família. Ser ele mesmo. Dar as costas à velha cidade era nascer segunda vez.
- A vida inteira pela frente, Nelsinho. Pensativa, cruzou a perna - ai, quanto lápis
o menino derrubara a fim de espiar-lhe o joelho roliço. Na coxa branca - ó mãe do céu - a famosa liga: preta e não roxa, como imaginava. Ai, naquele tempo ainda se usavam ligas... Não era tão idosa, dez anos mais, vinte que fosse.
- Nunca devia ter saído de casa.
- Arrependida, dona Alice?
- Menino, por favor. Não me dê senhoria. Deixa tão velha. Olhe, fazer um trato? Dois colegas recordando os anos de escola.
Sem se distrair com nenhum lápis, mal sentado no sofá, ouviu mais de uma hora os tempos que vão longe: não lhe serviu licor de ovo, ao menos um cafezinho.
Da casa para o emprego e do emprego para casa. Chamar de casa àquele apartamento sem ar, sem luz, sem sol? As tipas da repartição, vul-
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gares e fáceis, uma promiscuidade horrorosa. Mocinha que vive só, dar-se ao respeito. Mae do céu, como era difícil! Assediada a toda hora, em todo lugar. Homem? Um grande porcalhão. A moça esteja só, exibe ares de conquistador. Chegavam a bater-lhe na porta. Mal dormia, um ladrão debaixo da cama? Amigos não tinha. Noiva dois anos, o rapaz ganhava pouco, sem meios de casar. Cinco meses antes, transferido para São Paulo.
Tivesse ficado em casa, mas como podia? O escândalo com o diretor do grupo, senhor casado, fora inocente envolvida. Triste, com tosse: um ano no sanatório. O médico proibiu a friagem do sul.
- Ah, Nelsinho, você soubesse... Anoitecia, aquietavam-se os bondes. Era sábado, apertou-lhe a mão:
- Doce alegria o encontro de um curitibano.
Interessado nos quadrinhos da parede - pinheiros ao pôr-do-sol -, sem interromper o monólogo do coração oco na casca vazia da cigarra. Alguns dias em casa para as bodas de ouro dos pais. Fim do ano, a licença suspensa no emprego. Natal, a pior época de estar só. Sozinha no apartamento, a alegria em todos os lares. Blusa nova e luva de croché, estendida na cama, olho pregado no teto Os bondes, a discussão dos bêbados, os vizinhos em volta da mesa.
- Esse teu noivo? Gosta tanto de você. Como é que a deixou?
A mãe dele, grande sirigaita, morria se o filho a abandonasse. Manhã seguinte, a bela abriu os olhos desesperada e chorou três dias, sem coragem de fitar-se no espelho, ir ao emprego, sair a rua. Sem lavar a pintura do rosto, sem cozinhar, passando a leite e bolacha Maria. Noite e dia a
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imaginar-se com a família. Sua alegria eram as visitas a Curitiba. Hóspede de honra, todos cuidavam de agradá-la. Era fevereiro - um soluço partiu a palavra, Nelsinho não desviou o olhar dos pinheiros - e só voltaria em dezembro.
- Não sabe quanto é feliz, menino. Encolhida no canto, fez-se ainda menor:
- Quando viaja?
- Semana que vem.
No silêncio, entre as frases, o gorgolejo das entranhas famintas.
- Largar tudo e cair na orgia. Em Curitiba falam de mim. Que sou de bacanal. Pobre de mim, uma vida de freira. Se meu noivo não se decide,, eu perco a esperança.
Perseguida na repartição, as colegas recebiam aumento, ela se defendia das mãos imundas - todo patrão é porco. Em dúvida se o pai a aceitaria de volta.
- Alberto não se decide, eu perco a esperança. Capaz de uma loucura. O que as outras fazem. Boba, esperando carta do menino, agarrado à saia da mãe.
Piedade ou fome, Nelsinho acudiu:
- Tem algum programa, dona Alice? Se não tem, quer jantar comigo?
Mordeu a língua, arrependido: pouco dinheiro, não podia gastar com a professora. No Rio para uma bacanal com a dama pintada de ouro.
- Pronta em cinco minutos. Fique à vontade. Ouvir música?
Ele deu alguns passos pela sala em penumbra. Cubículo escuro: a cozinha. Na mesa, copo de leite coberto por um pires. E o prato vazio: nem
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lima só migalha. Dona Alice surgiu à porta do quarto.
- Uma condição: pago a metade.
- A senhora é minha convidada.
- Que mal tem? Aqui é costume.
- Aqui pode ser. Não de onde eu venho.
- Bem paranaense, hein? No terceiro disco, ela voltou:
- Estou pronta.
Toda de azul, luva de croché, salto alto. Uma fita no cabelo, não se pintara. Sem brinco ou pulseira - não tinha anel de noiva?
- Quer ir ao banheiro?
Bem paranaense, embora com vontade, o herói recusou.
- Tem restaurante por perto?
- Restaurante é que não falta.
No elevador desceram com um sujeito que, mão no bolso, ficou a encará-la de alto a baixo.
- Reparou no tipo? O prédio é meio suspeito. No quinto andar uma colega promovia festi-
nha. Sugeriu restaurante onde ia com o noivo. Os automóveis em corrida louca e, para atravessar a rua, segurou-lhe o braço. Ao manso toque, Nelsinho examinou-a de relance - gesto natural de defesa. Na calçada, Alice retirou a mão.
- Envergonhada do triste papel. Chega de falar de mim. Conte alguma coisa. Como vai de namorada?
Primeiro assunto que o interessava: a catástrofe da última paixão! Nunca mais gostaria de outra mulher.
Oito horas de uma noite quente de fevereiro: casais à sombra das árvores, escondidos nos portais, ao longe deitados na praia.
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- Cuide-se, menino. Aqui dá muita vigarista. O olhar dos outros, chocados da diferença de
idade entre Nelsinho e a companheira, confundindo-os com um par de namorados. O senhor gordo atalhou o caminho.
- O rapaz é da minha terra. Veja o ar saudável.
Apalpando-lhe o braço, o sujeito em voz baixa:
- Olhe, querida. Não faça isso, minha flor. A bela ria-se - o brilho suspeito do dentinho
de ouro. Outra, não a moça infeliz do apartamento, debruçada no ombro do gordo, muito íntimo.
- Mais respeito, Moreira. Olhe que é do Paraná. O menino pensa que sou bandida.
O herói mordeu-se de raiva. Com ares protetores, ah cadelinha.
- Paciência, Moreira. Não pode ser. Que tal amanhã?
Luz vermelha acendeu na testa de Nelsinho, bruxuleou um momento, apagou-se.
- Vamos, meu bem.
Ela o chamara meu bem. Única mulher que, aos oito anos, meu bem o chamara, nunca mais esqueceu.
No restaurante, Alice beliscou a carne branca do frango. Sem apetite, jantava a hora tardia, essa vida de cidade grande.
- A senhora...
- Me chame de você.
- Mais um pedacinho. Muito magra... Cala-te, boca! Era tarde: olho cheio de terror.
- Magra, não é? Me achou magra, não é? Não tenho passado bem. Uma gripe muito forte.
- Outro conhaque. Não bebe nada?
- Suco de laranja. Fazer companhia.
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A bela evocou o noivo. Nelámho bebericava mais uma dose. Alice acabou aceitando uma cerveja. Falava de futebol, Alberto era fanático. Aprendera tudo a fim de conversar com ele. Triste consolo de sua ausência, no domingo ouvia os jogos de São Paulo.
- Não fumo, obrigada. Me faz mal - e tossiu no lenço machucado entre os dedos.
Outra vez, cala-te boca. Sentimento delicado, a saúde delicada: ano inteiro no sanatório. Nelsinho sonhava com a orgia do doente, a febre o excita. Marcada na cidade natal: moça fraca do peito, falada demais para casar. Bancando a virgem: o tal noivo devia ser amante, quem sabe gigolô. Ai, ai, estou de pileque.
- Pronta?
O programa era o bar dos marinheiros. Chamou o garçom.
- Vamos dividir.
- Que é isso, Alice? Senão me ofendo. Refizeram o caminho, ele um pouco na frente,
tomado de pressa. Ofegante, Alice falava menos. Deixo-a no elevador, nunca mais me vê. Empurrou a porta, bem agitado:
- Que horas serão?
Ela espiou o relógio de pulso:
- Onze e meia. É cedo. Entre um pouco. Uma caminhada e tanto.
Brilhou o foco na testa e não se apagou. Pena, tão abatida, a cara balofa no ressequido corpo.
- Um cafezinho. Depois livre de mim. Abriu a porta, já descalça:
- Mulher é boba. Só usa sapato apertado. Foi botar o chinelo e, no caminho, um disco
na radiola.
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- Entre aqui Ouve melhor.
A bela dirigiu-se ao banheiro. Ele sentou-se na beira da cama. Alguns discos ao pé da radiola: Para a querida Alice, com o amor do... A querida Alice, do seu querido... Alice, sempre querida, com o amor do ... Na capa, em cada dedicatória um nome diferente.
Ela tornava do banheiro, sem o casaco. Ó não, pintara o lábio carnudo. Uma senhora gasta e cansada, a mãe da professorinha - enganar a filha com a mãe seria trair a mais doce lembrança da infância.
Perturbada, Alice encontrou o seu olhar. Arrastando o chinelo, abriu a cortina, debruçou-se na sacada.
- Venha ver.
Grupo de meninos ensaiava marchinha de carnaval.
- O tempo de professora foi o melhor de minha vida.
Sacada estreita e, ao indicar um dos pretinhos, roçou-lhe no braço o peito mirrado.
- Ai, que frio! Toda arrepiada.
- Dormir com esse barulho?
Mão na boca, sofreu acesso de tosse. Em Curitiba a notícia de que desenganada. Durante o jantar, tossiu mais de uma vez, sem largar o lencinho. Arregalada de pavor quando a achou magra. Enxugando as lágrimas, o barulho da rua não era nada. O inferno eram os bondes. Primeiros meses debatia-se na cama até de manhã. Com o tempo a gente acostuma. As vezes um sedativo, não queria se viciar - muito nervosa.
- Como estou arrepiada...
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Entrou no quarto para mudar o disco. Nelsinho cuspiu na rua. Já que não fazia o café:
- Preciso ir.
Ocupada com a radiola, nem ergueu os olhos:
- Alguém esperando? Se não tem, fique aqui. Sem responder, Nelsinho insinuou-se no banheiro - estou perdido, e agora? Duas voltas na chave e urinou, cuidado de não fazer barulho. Como se lançar da janela, se não havia janela? Bonitão no espelho, assim calado, deu um arrotinho: puxa, estou bêbado. Abriu o armário e, atrás do pote de creme, uma caixa de preservativo. Boca amarga, cigarro demais: esfregou a pasta nos dentes. Ensaiou uma frase de despedida. Abro a porta, aceno de longe - Adeus, beleza! e me atiro pela escada.
Abriu a porta e estacou: a luz apagada. O quarto na penumbra vermelha do painel da radiola, um disco em surdina. Imaginou Alice na sacada. Ou na cozinha preparando o café. Então ela se mexeu na cama.
Alguns passos, hesitante no meio do quarto. Outra vez, ela se agitou na cama. Devia-lhe alguma coisa pelas primeiras letras? Arrastava o pé, receio de tropeçar no tapete: não havia tapete. Calcou objeto macio, o pacote das meias, ainda fechado. Na sombra distinguiu a cama, os dois travesseiros, a dona inteirinha nua.
Suplicante, estirou-lhe os braços, crispando os dedos no vazio. Irresoluto, o moço apoiou o joelho na cama.
Chio de triunfo no peito, Alice prendeu-lhe as mãos na nuca. Rosto sanguinolento à luz mortiça, a boca aberta de vampiro descarnado e las-
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eivo - sem poder esperar, a ponta da língua dardejava entre os dentes. Ele se deixou beijar - ó soluço azedo de cerveja -, adeus para sempre ao menino. A agulha recorreu o último sulco e passou a arranhar o disco, sem que nem um dos dois a desligasse.
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NA PONTINHA DA ORELHA
NELSINHO abriu o portão, equilibrou-se nos tijolos soltos e, diante da porta, conchegado no saco de estopa, onde limpava os pés, deu com o Paxá. Tarde o cachorro descobriu que era ele, havia rolado os três degraus com o pontapé. Velho e doente, nem rosnou, apenas gemeu de dor; tremulo, arrastando a perna, perdeu-se no fundo do quintal. O rapaz bateu na porta e, sem esperar, entrou na cozinha deserta. Ouviu as vozes do radio e, pontinha de pé, dirigiu-se para a sala.
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Do corredor espiou a velha na cadeira de balanço, tigela erguida ao peito, a engolir com avidez o caldo de feijão. Imóvel à porta, ele não a tinha enganado: a velha sorvia ruidosamente a sopa, sem deixar de seguir a novela. Nada que denunciasse a atenção - nem piscar de pálpebra, nem arfar de narina, escancarada a boca quando a colher ainda na tigela -, sabia de sua presença desde que saltara do ônibus na esquina. Sob a ladainha dos atores percebia o chio do sapato na areia, o leve toque na porta. Jamais lhe deu as costas - não seria ela, velha matadora, quem se descuidasse do touro. O herói espreitava o dia em que a surpreendesse no sótão, à beira da escada...
- Boa noite, dona Gabriela. Já veio a Neusa?
- Trocando de roupa. - E segundo a regra do jogo: - Que susto, meu filho, me pregou! - •e a colher raspava o fundo da tigela. - O Paxá, coitado, não tem força de latir.
Aviso de que não subestimasse as velhas matadoras: sabia do pontapé no guapeca do coração. Depositou a tigela na mesa do lado. Mão trêmula, alcançou o copo.
- Tomando sua cervejinha, dona Gabriela? Expressão obscena de gozo, bebia de olho fechado.
- Ganhei do Noca.
- A primeira?
- É, sim.
- Acabou a garrafinha de rum? Bigode de espuma na boca encarquilhada.
- Fale baixo, a Neusa escuta.
Exibiu entre as raízes podres o último canino amarelo.
- Um restinho só.
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- Que tal mais uma?
- Minha perdição é você, meu filho. Emprestada, hein? Faço questão de pagar.
- O Zezinho não aliviou a carteira?
- Nem queira saber.
Suspiro nas entranhas da velha, que emborcou o copo. Apressou-se o rapaz em servi-la.
- Bem que escondi - e deu um arrotinho. - Essa tosse Quero ver se descobre.
- Tem muito dinheiro, não é?
A velha girou o rosto - não desvie o olho,, conde Nelsinho. que está perdido.
- Ai de mim. Tivesse dinheiro, estava gemendo e sofrendo nesta cadeira? Pensa que tenho, é?
No buço da velha secavam as bolhas de espuma.
- Quer outra garrafa?
O dedinho inchado de nós catou fiapos da saia.
- Conte para ninguém, meu filho. Senão eles. escondem. Não me dão um gole.
- Fique descansada. É segredinho.
- Cuidado, a Neusa.
Ele virou-se, não disfarçou a careta de desgosto.
- Que foi, meu bem?
- Esse vestido.
Até que engraçadinho, xadrez azul e preto.
- Que é que tem?
- Sabe que tenho pavor.
A virgem há que fazê-la rastejar. Lavar meu pé, enxugá-lo no cabelo perfumado.
- Quer que mude?
Alguma vez iria enfrentá-lo, não hoje:
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- Eobinha de mim.
Neusa ergueu-se para beijá-lo. Ele voltou o rosto e, franzindo a sobrancelha, designou ali a múmia, pescoço torto a fim de aproveitar a última gota. A garrafa vazia deixou a velha amarga. Mal o percebeu instalado na cadeira:
- Ai, meu filho. O que é a doença. Deus te livre sofrer como eu. Velho pode morrer, ninguém liga.
Cruz na boca, ó diaba agourenta.
- Disse bem, dona Gabriela. Cadê o pessoal?
- Lígia no cinema com o Artur.
- E o Zezinho?
- Acha que podiam ir só os dois? Afogá-la no barril de rum - ela e o chantagista do Zezinho.
- Não tem medo de ficar sozinha?
Ela reclinou-se na cadeira, à mostra o tornozelo inchado - um labirinto de grossas varizes roxas.
- O velho sempre só. Nem queira saber o que é viver assim. A ninguém desejo o que sofro. Eu que sei. Isso não é vida. Deus me perdoe. Deus não existe. Se existisse, me deixava tanto sofrer?
Faraó sentado no sarcófago, crispava no joaIho pontudo a mão transparente. Ali grudadas duas, três moscas.
- Justo cada um pague os seus pecados. Não eu, que nunca desejei mal. Me matei de bater roupa no tanque. Gastei os dedos de esfregar a chapa do fogão. Perdi os olhos de costurar à noite. Se alguém devia sofrer não eu - era o Carlito. Devia ter acontecido para o Carlito.
- Ele não morreu?
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- Levou uma vida feliz. E não sofreu para morrer. Os dias bebendo cora as vagabundas. Me arrebentei de trabalhar, condenada a esta cadeira. Ele se regalou e morreu na força do homem.
- Morreu de quê?
- Tumor na cabeça. Sem ninguém. Pedindo o meu perdão. Que o fosse ver na hora da morte. Rezei no velório, isso sim. Perdoar é que não.
Mão no bolso, Nelsinho oatia-se pela saleta, encurralado. Fingindo admirar a Santa Ceia, careta medonha para o papagaio pesteado. Apontoulhe espingarda imaginária na nuca. Se bem não espantasse as moscas, ela coçou o alvo no pescoço. - Me ouvindo, meu filho? Não queira ficar igual a mim. Fui moça feito você.
Lá estava a praguejá-lo, rainha louca. Bem feito, castigo do céu.
Sempre a falar, dirigiu-se à escada, abriu a porta da despensa. Um passo na escuridão, dobrou a cabeça e, sem acender a luz, afastou as latas de açúcar, feijão, arroz, desentranhou outra
garrafa.
- Reze por mim, meu filho. Não sei o que é dormir. Sentada na cama, à escuta... A bulha do morcego. Um grilo preto no canteiro de couve. Lá no degrau os dentes do Paxá estalando. Se não é a cervejinha...
- Não se trata com médico?
- Única esperança é um milagre.
Fez-se o milagre: Neusa assomou à porta. Num salto o rapaz agarrou-lhe a mão. Atravessando o corredor, arrastou-a para a sala vizinha; primeiro exibiu a língua para a velha, entretida em derramar a bebida sem fazer espuma.
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Tirou o paletó, estendeu-se com gemido no sofá. Neusa fechou a janela - Zezinho, oito anos, era o olho da diaba. Ao erguer o braço, a blusa branca revelou nesga de carne: sei que não devo, muito magro, uma tosse feia - se não me cuido, nasce cabelo na palma da mão. A bela sentou-se na ponta do sofá, ele cruzou os pés na mesinha.
- Por favor, Neusa. Nanca me deixe só com ela. Para agüentar tua avó precisa ser santo. Por que não serve vidro moído na sopa?
- Fale baixo. Ela escuta.
- O rádio ligado.
- Ela entende através da parede.
- Bem desconfiei. Ouviu o pontapé no Paxá.
- É bruxa.
- Mudá-la para o sótão. Acaba rolando da escada.
- Não diga bobagem, querido. Chega dessa velha horrorosa.
- Que você fez?
Abriu os braços no espaldar. Neusa apoiou a cabeça no seu ombro.
- Trabalhei.
- Faz tempo que chegou?
- Pouco antes de você.
- Teu patrão paga extraordinário?
- Nem um tostão.
- Não quis se fazer de engraçadinho?
- Seja bobo, querido. É casado.
- E daí?
- Tenho noivo particular.
- Como é que ele sabe?
- Vdcê nunca foi me esperar?
- Que foi que falou?
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- Achou você muito simpático. Até pergunta quando são os doces.
Ah, os doces, e? Jüsses doces, quem vai comer é o Paxá. Ela aninhou-se no peito e, erguendo a cabeça, beijou-o na pontinha da orelha.
- Tenho de esperar muito, querido? Não posso com essa diaba.
- Faça isso não. Todo arrepiado.
A moça prendeu-lhe a cabeça nas mãos, deu um beijo frenético: a língua se oferecia no lábio
entreaberto.
- Não pára de chupar bala de hortelã.
- Quer que jogue?
- Mania essa!
A oportunidade de me salvar: fazer uma cena e adeus, beleza!
- Não fique bravo, meu bem.
Com os olhos procurou um lugar: o vaso de violetas? A janela, fechada. Fitou-o chorosa.
- Que eu engula?
- Se gosta de mim, engole.
Deglutiu a bala inteirinha. Doeu, uma lágrima saltou de cada olho. Esta não me escapa - é minha.
- Falei brincando.
- Tudo que você quiser.
- Tudo, Neusa? Tudo mesmo? Ofereceu-lhe, sim, a boca inchada de beijos.
Crisparam-se as mãos do rapaz no espaldar - sei que não devo, é loucura. A velha na saleta, assim não adianta xarope de agrião. De leve afagou o braço lisinho. Sabe o delírio de uma carne em flor? A mão escorregou - sou fraco, Senhor, não mereço - até empalmar a pêra descascada do seio. O que é prender um pintassilgo no alçapão? O
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herói apertou a pálpebra: o biquinho do pintassilgo beliscava a mão do dono.
Esmagada pelo abraço, a moça libertou uma das mãos e introduziu-a sob a camisa - cinco patinhas úmidas de mosca a arrepiá-lo da nuca à ponta do pé. Derretido de gozo, comprimiu segunda vez a pálpebra - uma coceguinha no céu da boca, prestes a uivar.
Estalavam as molas do sofá. Ó Deus, se a velhota, de repente? Sentou-se penosamente, suportando o peso da moça. Ofegante, respirou de boca aberta, dedo tremente abriu a blusa. Afastou-a do sofá para desprender a blusa, espirrou o sutiã no colo da moça. Sempre nova a descoberta do pequeno seio, metade exata de limão - e precipitouse para beijá-lo. Diante do peito alvacento de pombinha as dores do mundo perdiam o sentido.
Mal o tempo de esconjurar a velha - afogado que afunda terceira vez a cabeça - e rolou, e rolaram os dois pelo sofá, pequeno demais para os acolher. Não podiam deitar-se, suspendeu-a pela cintura, ficaram de pé.
Largou-a um instante, com repelão desfez-se da camisa. Beijou a bela que desfalecia, filhotes famintos roubando alimento um da boca do outro. Mão frenética nas prendas deliciosas, encontrou a lasca da saia, libertou o único botão. Aos poucos a saia preta devassava a calcinha rósea. Um passo atrás, a saia deslizou ao pé da moça: Neusa ai, Neusa! Cheia de aflição, gemeu baixinho - Por lavar, por favor! Desesperado - tomara a velha pense que é o Paxá -, ergueu-a com as duas mãos, que ficasse do seu tamanho. Ela entendeu, alçou-se na ponta do pé, um coube direitinho no outro.
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O herói pairou a nove centímetros do chão. Ao tatalar da asa da loucura: Qual é teu nome? Responda depressa: Quem é você? Depressa - er antes que pudesse, dona Gabriela entrou na sala.
Separaram-se, cambaleando cada um de seu lado. O coração de Nelsinho disparou a mil por minuto. Uma veia, de que nunca suspeitara, latejava na testa a ponto de rebentar: Me acuda, mãe
do céu.
- Que é... a senhora quer, vovó?
Da garganta de Neusa - não era a sua voz. A velha recolheu o braço estendido, balançou a cabeça em silêncio, olho bem aberto. Na teia escura de rugas lampejo azul de desconfiança.
- Por que tão quietos?
O herói estupefato diante da velha que os enfrentava sem piscar.
- Por que está de pé, menina?
- Eu... trocando a lâmpada.
- O foco queimou?
- Agora mesmo.
- Vocês se comportaram? O Nelsinho é de confiança. O que esperando, minha füha? Pegue um foco na despensa.
Neusa pisou o monte de roupa. Ao alcance da megera, junto da porta. Agora estende a mão, agarra a menina - tenho de fazer uma carnificina. Quase um grito, para que o olhasse:
- Quer que eu - a voz partiu-se, continuou sem fôlego - outra cervejinna?
- Muito gentil, meu filho. Daqui a pouco... Se soubesse. Tão só, lá na sala. Uma dor fininha. no coração. Pensei que era o fim.
A moça tornou de mansinho, o seio na mão:
- Aqui o foco, vovó.
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Descalçou o sapato, subiu na cadeira:
- Pronto.
Sentou-se ao lado do rapaz, que enxugava o suor frio da testa. Sempre a vigiar a velha, quase sem vê-la, óculo embaçado. Com um suspiro, a anciã afundou-se na poltrona, repuxou o xale negro polvilhado de caspa.
- Ah, minha filha, você soubesse... Contava para o Nelsinho - e o pé sacudido por tremores, um pangaré que espantasse as varejeiras. - Pagando o pecado de outro. Ah, meus filhos, o que é sofrer como eu - e deu um arroto.
A bruxa de pilequinho.
- Mais uma garrafa, dona Gabriela? Mil garrafas não a fariam calar a boca.
- Gosto de você, Nelsinho. Como de um filho. Deus o livre e guarde da minha doença. Reze por mim.
Derrotado, baixou a cabeça, prendeu três botões da camisa,
- Não queira ficar como eu. Só eu sei. Isso não é vida.
Observando a avó cega e concordando com ela - Sim, vovó. Pois é, vovó. É sim, vovó -, Neusa desabotoou um, dois, três botões e voltou a beijá-lo na pontinha da orelha.
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ETERNA SAUDADE
NELSINHO girou a chave na porta e voltouse para a moça, de pé no meio da sala:
- A família viajou.
Laura oscilava de leve. Deixando escorregar a bolsa no braço, levou a mão aos olhos.
- A sala rodando.
Ele não apanhou a bolsa no tapete.
- Me segure, meu bem.
Sem dar um passo, estendeu a mão e a bela veio conchegar-se no seu peito. Ergueu-lhe o quei-
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xo, observou o rosto pálido, de olho cego - mordeu o lábio com beijo esfomeado. Ao sentir-lhe o peso vacilante, conduziu-a ao sofá, onde ela se deixou cair. Sacudia a cabeça no espaldar e, entre frases desconexas, chamava um nome que Nelsinho não era.
- Por que judia de mim? - a voz dengosa de menininha enjoadinha. - Sempre me tratou mal.
- Louco por você, minha flor. O herói já sem paletó.
- Malvado! Gosta de me humilhar.
- Ora, que bobagem.
Com dificuldade despiu-lhe o casaquinho.
- Culpa minha não foi.
- Bem sei.
- Não. Você não perdoou.
Por que dois, ó Deus, para fazer o amor?
- Lá para dentro.
Sem que ela se erguesse, não lhe baixaria a saia.
- Diga se gosta de mim.
- Você não vê? Quer ir ao meu quarto? Ou de meus pais? Cama de casal.
- Será que não ...
Perdida nas nuvens da bebida, arregalou os olhos:
- Aqui? No quarto de teus pais?
- Que é que tem? É profanação?
O Cristo enorme, todo azul, ocupava a parede na largura da cama. Sentaram-se na colcha trabalhada de croché.
- Que beleza de colcha!
- Beleza teu seio, meu amor.
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M

A beijá-lo em desespero, Nelsinho sentia a Língua engolida pela outra boca.
- Me deu o desprezo.
- O tipo era meu amigo.
- Nadir era o meu amor - e fungou no seu
ombro.
- Ele está morto. Agora tire a roupa.
Ela desabotoou a blusa de brilhante malha
negra.
- Apague a luz.
- Por quê?
- Porque sim.
No escuro, ele descerrou a porta - o clarão do corredor invadiu o quarto. O herói arrancou a camisa. De combinação, perna cruzada, Laura cabeceava, a mão no queixo.
- Tire essa roupa de uma vez.
Já tinha embolado a calça no tapete. Ela se pôs de pé, desprendeu a saia. Aflito, Nelsinho a apanhou e atirou longe.
- Não jogue no chão!
Ela recolheu a saia de seda, dobrou-a sobre o mocho. Tirou a combinação. Tirou o sutiã.
- Tire tudo.
Tirou a calcinha, indecisa no meio do quarto. Recuou até a faixa de luz - nua, duas vezes nua! Antes que o herói desferisse vôo, fechou a porta, deitou-se ao seu lado. Ele estendeu a mão, alisava docemente o ombro. Correu os dedos titilantes pelo seio: uma pêra que, tão madura, oscilava ao peso do biquinho.
- Ai, benzinho, você é mau.
- Quieta.
Entre gemidos balbuciava mil queixas.
- Não.
58
Ele suspendeu o gesto.
- Devagar, meu bem.
Tornou a babujar-lhe a orelha, o pescoço, o ombro, devagar, devagarinho.
- De conta que sou o Nadir.
Debaixo dele o corpo sacudido de tremores.
- Ó, não fale. Por amor de Deus. Não fale no Nadir.
Para se distrair, Nelsinho evocava com ranger de dentes as estrofes imortais de Casimiro de Abreu: Eu me lembro! eu me lembro! - Era pequeno ... Terceira vez ao escandir o verso - Que dura orquestra! Que furor insano!, ela deu um grito:
- Você me arrebenta!
Atropelou o verso, perdeu a consciência. Voltou a si, a unha de leve na nuca.
- Num bem-estar danado. E eu me doendo toda.
O moço ergueu os olhos para o quadro azul na parede:
- Se o pobre Nadir nos visse...
Caiu a lâmina da guilhotina, espirrou longe a cabeça, ainda falando de espanto:
- Que loucura é essa?
Tateou a nuca ferida, acendeu a lâmpada:
- Está doida, minha filha?
- Não. - E, olho fechado, a mordiscar-lhe o queixo. - Estou é com sede.
O golpe assassino das unhas no pescoço. Ele deu três pulos no tapete, a mão escondendo as vergonhas. Abriu a gaveta do camiseiro, escolheu o pijama de bolinha do pai, vestiu a calça: muito comprida, obrigado a enrolar a barra. Dirigiu-se à cozinha, tornou com a garrafa de gim, uma jarra
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A beijá-lo em desespero, Nelsinho sentia a Língua engolida pela outra boca.
- Me deu o desprezo.
- O tipo era meu amigo.
- Nadir era o meu amor - e fungou no seu ombro.
- Ele está morto. Agora tire a roupa.
Ela desabotoou a blusa de brilhante malha negra.
- Apague a luz.
- Por quê?
- Porque sim.
No escuro, ele descerrou a porta - o clarão do corredor invadiu o quarto. O herói arrancou a camisa. De combinação, perna cruzada, Laura cabeceava, a mão no queixo.
- Tire essa roupa de uma vez.
Já tinha embolado a calça no tapete. Ela se pôs de pé, desprendeu a saia. Aflito, Nelsinho a apanhou e atirou longe.
- Não jogue no chão!
Ela recolheu a saia de seda, dobrou-a sobre o mocho. Tirou a combinação. Tirou o sutiã.
- Tire tudo.
Tirou a calcinha, indecisa no meio do quarto. Recuou até a faixa de luz - nua, duas vezes nua! Antes que o herói desferisse vôo, fechou a porta, deitou-se ao seu lado. Ele estendeu a mão, alisava docemente o ombro. Correu os dedos titilantes pelo seio: uma pêra que, tão madura, oscilava ao peso do biquinho.
- Ai, benzinho, você é mau.
- Quieta.
Entre gemidos balbuciava mu queixas.
- Não.
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Ele suspendeu o gesto.
- Devagar, meu bem.
Tornou a babujar-lhe a orelha, o pescoço, o ombro, devagar, devagarinho.
- De conta que sou o Nadir.
Debaixo dele o corpo sacudido de tremores.
- Ó, não fale. Por amor de Deus. Não fale no Nadir.
Para se distrair, Nelsinho evocava com ranger de dentes as estrofes imortais de Casimiro de Abreu: Eu me lembro! eu me lembro! - Era pequeno ... Terceira vez ao escandir o verso - Que dura orquestra! Que furor insano!, ela deu um grito:
- Você me arrebenta!
Atropelou o verso, perdeu a consciência. Voltou a si, a unha de leve na nuca.
- Num bem-estar danado. E eu me doendo toda.
O moço ergueu os olhos para o quadro azul na parede:
- Se o pobre Nadir nos visse...
Caiu a lâmina da guilhotina, espirrou longe a cabeça, ainda falando de espanto:
- Que loucura é essa?
Tateou a nuca ferida, acendeu a lâmpada:
- Está doida, minha filha?
- Não. - E, olho fechado, a mordiscar-lhe o queixo. - Estou é com sede.
O golpe assassino das unhas no pescoço. Ele deu três pulos no tapete, a mão escondendo as vergonhas. Abriu a gaveta do camiseiro, escolheu o pijama de bolinha do pai, vestiu a calça: muito comprida, obrigado a enrolar a barra. Dirigiu-se à cozinha, tornou com a garrafa de gim, uma jarra
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de água e cubos de gelo. Laura envergava o casaco do pijama, todo abotoado. Com as duas mãos unia as abas, muito à vontade na cama sacrossanta da família.
- Me achando bonita?
Gana de expulsá-la aos berros: Cadeliriha!
- Pintou o cabelo?
- Desde que ele morreu.
Sob o paletó, nua e oferecida, uma perna
dobrada.
- Ai, minha perdição é a falsa loira. Cabelo
oxigenado, sobrancelha bem preta!
Nelsinho serviu doses generosas, ela acendeu dois cigarros. Estenderam-se sobre os quadrinhos de croché, obra de um ano inteiro das mãos diligentes da mãe.
- Que tal o Nadir? Melhor que eu?
- Não respeita os mortos? - De repente abriu o casaco. - Que acha de mim?
Mãezinha do céu: dois suspiros redondmhos com uma pitanga na ponta.
- Não há outra igual!
A cabeça da bela pesava-lhe duramente no
braço.
- Ele era melhor?
- Você é um colosso - e mordeu-lhe o
mamilo.
- Poxa, Laura. Não morda, que dói. Alumbramento no fio baboso de voz:
- Ninguém dá nada por você... Magrmho
como é!
Agarrou o copo, bebeu até a última gota. De
voz rouca:
- Ele foi o primeiro amor!
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Olhos sonhadores, evocava o bem-amadoperdido. Nunca mais seria a mesma, tão outra que até pintara o cabelo. Só usava blusa negra de seda - a mortalha da viúva.
- É tarde para chorar.
- Estou em carne viva.
- Não exagere, meu bem.
Queria bancar a virgem - o que nunca havia sido. Encolhia-se no canto da cama, enrolada na colcha.
- Que você tem?
- Com dor.
- Não se íaça de santinha. Depois dele, a quantos se entregou?
- Com o Nadir era diferente! Era amor..
- Um colosso, não era?
Ofendida, sentou-se na cama, estendeu a perna, repuxou a meia até a coxa luminosa de tão branca. Ele a agarrou. Com fúria defendeu-se, ó viúva inconsolável, carpideira da eterna saudade.
- Não quero. Por favor. Agora não.
Mais tarde deixou que ela se vestisse. Acendeu as luzes, olhou em volta. Ufano, um herói pintado de ouro: o quarto era campo de batalha. O cadáver sangrava de suas feridas sem manchar os
lençóis.
- Poxa, sou mais homem do que meu pai.
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ARARA BÊBADA
!
SERIA um donzel até ganhar a confiança
<de sua bela.
- Você é loira natural?
- O doutor não vê?
- A fama da loira é de fria. Só que não acredito.
- A loira não é feito a morena.
_ A morena é mais carinhosa. Você não é católica, é?
- Sou calvinista.
Calvinista, ai, de rostinho abrasado na mesma hora.
- A religião moderna não faz, assim, da virgindade um cavalo de batalha. A moça, sendo direita, pode ter experiência. Autorizada pelo pastor e. conhecer os prazeres da vida.
- Sabia que os turistas acham uma graça em nosso conceito de virgindade?
- Nunca soube.
- Você é temperamento calmo ou nervoso?
- Sou calma.
- Tem os atributos da nervosa; ainda não sabe que é. Suas medidas são perfeitas. Não é você que joga vôlei?
- É, sim.
- Gostaria de a ter visto de calção. Joga •bem?
Sorriso acanhado no canto do lábio. Brinco •de fantasia na orelha. Dente miúdo, o da frente •escurinho. Mãe do céu, a barra da saia rendada aparecendo.
- O vôlei não deixa a perna musculosa?
- Não, o esforço é com o braço. Bicicleta •deixa. Uma colega tem perna assim, de tanto pedalar.
- Moça conhecida?
- Não do senhor.
- Suas formas, pelo que vejo, são ideais. 'Qual é o manequim?
- Quarenta e quatro em cima. Depois alarga para quarenta e seis.
- De busto?
- Noventa e três.
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O herói fechou o olho: Ai, que beleza! Ai, que bom, noventa e três!
- De quadris?
- Pouco mais.
- Noventa e cinco?
- É.
Ó, Deus do céu, noventa e cinco!
Sentadinha, bem composta. Sem cruzar o joelho nem uma vez. Ai, se ela erguesse a saia... só um pouquinho.
- Não é perseguida na rua? Tão apeti... bonitinha. Como é que se defende dos piratas?
Ora essa, pirata - é gíria de meu pai.
^~^~ • • •
- O que não sei é a medida da coxa.
A palavra coxa uma laranja inteira na boca.
- De tornozelo é vinte e um.
- Uma perfeição da mulher é a perna. Mais branca do joelho para cima?
Baixou os olhos, vermelhinha:
- É.
- Muito mais?
^^* • • •
Quem me dera ser mulher - não faria mais que adorar no espelho as minhas prendas.
- Você tem alguma experiência?
- Deus me livre!
Nervosa, afastou o cabelo do olho piscante. Agitado, o peitinho estalava os botões da blusa - não há peso mais doce que um seio maduro na concha da mão.
- Você é fria?
Nem uma é fria se você lhe der três mordidas
na nuca.
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- É tarde. Preciso ir. Até amanhã, doutor.
Assustei a bichinha, fugiu pela porta aberta. Ai de mim, quem ouve, quem atende o soluço da arara bêbada?
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O HERÓI PERDIDO
LSSA criatura não me tira os olhos. Coragem da fulaninha, acompanhada como está! Verdade, alguns tipos não ligam. São eles que as empurram nos braços do outro - isso os excita. Acabei o meu caso com a Lili, não sei se sabia. Quero descanso por algum tempo. Não olhe agora. Me comendo com os olhos. É aquela, sim, na mesa do fundo.
Não te conto nada. Meu velho, a Lili foi uma experiência. Quando a conheci não sabia quem era.
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Apresentados numa festinha. Assim que lhe apertei a mão, adivinhei tudo: úmida e quente. Aquele olhar - corruíra de asinha quebrada - inquieto e subentendido. No meio da frase a voz quebra-se num soluço... Olhar desconfiado, com seu segredo. Como se não desse a pinta. No toque da mão, no arrepio da pálpebra, no próprio rebolado. Uma abre o jogo: Adoro o tipo forte, que amassa na cama, que dá na cara - é certo, gosta de ser maltratada. Outra é preciosa: fala pausada, gesto manso, o anel do dedinho apontando isso e aquilo. Acompanhada de velhota, mãe ou tia, da qual beija a mão trêmula. Ou de coleguinha feia, na esperança que você diga: Veja a Lüi, um coração de ouro.
Os olhos assim de anemia perniciosa. Não piscam, crescem, crescem a fim de engolir. Lili do tipo difícil, finge que é. Convidou-me a ir no dia seguinte ao seu apartamento. Entre, sente-se aqui. Mais perto, não mordo. Ai, meu velho, sou herói perdido. Não te conto nada (tosse). Tomar um xarope de agrião. Então expliquei: Não sou disso, Lili. Eu sei, eu sou viva - e molhava dois dedos na boca para colar a franjinha. Ai, como é gostoso o amor. Gostoso? Sim. É maravilhoso. Visita de cerimônia. Nada houve entre nós. Na porta, ela me envolveu o pescoço - nua debaixo do quimono de seda. Quis me beijar, acendi logo um cigarro. Horror de beijo de língua, preciso cuspir - não na frente dela, claro, não tem culpa - para tirar o gosto. Soube que teve um caso com fulano. Não queira negar, Lili. Mentira daquele safadinho. Não sou o que está pensando - se o meu homem souber ele me mata. Não tem medo? Imagine se alguém vai contar. Ai, ele me mata. Ah, Nelsinho,
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como você é forte - eu não pareço, não é? Me ofereceu cigarro de maconha, desconfio que é viciada. Louquinha, quer beliscar, gosta de morder - olhe o resultado (o rosto chupado, uma espinha no queixo). Desde pequeno fui assim. No olhar das primas eu descobria a paixão. O drama de ter sido bonito demais. (Ora, você ainda é, Nelsinho, ainda
é.)
Por este retrato pode ver. Aos cinco anos, em roupinha de marinheiro. Lili me deixou quase doido por causa deste retrato. Bebia e depois se arrastava no tapete para que eu vestisse a farda. Uma de marinheiro, ela mesma improvisou. Imagine só - um marmanjo deste tamanho! - de calça curta e gorrinho, a fita em legenda prateada. Sonhava em voz alta, eu não podia dormir. No sonho ela que estava de marinheiro. Não te conto nada. Embalada no bercinho pelo maestro Carlos Gomes. O maestro de fraque e botina com polaina de veludo, sabe quem era? Um sátiro disfarçado de músico. Que a despia com luva de couro, sofria de erisipela no dedinho torto de velho. Não me pergunte o significado. Ela se recusou a contar - iria ficar chocado.
Me olha, a safadinha, se estivesse nu. Não sei o que vê (exame demorado no espelho da parede). Parece que sou o tipo. Lili se roía do meu sucesso entre as amigas. No cinema ficava me espiando em vez de prestar atenção ao filme - olha para a tela, minha filha, depois se queixa que não entendeu. Não se vire, pelo amor de Deus. O tipo já reparou. Grisalho, ar tão distinto. Muita criatura prefere o pai de família, acho que é insegurança. Lili me confessou a primeira experiência. Um pobre gordo, não sei quantos filhos. Tanto a
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perseguiu, deixou quase louca. Para se ver livre, a coitadinha acabou aceitando. A mulher soube, exigiu satisfação. Você escolhe entre mim e essa. Já escolhi, anunciou o pai de família. Na mesma hora despediu-se dela e dos quatro filhos. Mais tarde Lili o abandonou - um velho de cinqüenta anos! Ele ameaçou: Se não me quer, só posso morrer. Respondeu a bichinha: Pois que morra. Dias depois, o tipo se suicidou: cortando o pulso, bebendo veneno, abrindo o gás. Quando soube, ela comentou: Bem feito! Eu, hein, com meu marinheiro?
Acertei pelo velho as contas com ela - não deve tratar bem essas criaturas, ainda que o deseje. Olhe a bichinha provocando. Doida de fazer isso na frente do tipo. Quando uma se agarra a você, não o deixa para o resto dos dias. Todas iguais, furiosas de ciúme: Não gosta de mim. Não é mais o mesmo. Onde você foi? Olhou para outra. Se eu demorava, ia me esperar na porta. Bebia no mesmo copo, no lugar da boca. Não suporta tomate, queria comer, entre engulhos, só porque eu gosto. Para me excitar, despia-se diante da janela - no prédio vizinho todos os tarados de Curitiba se agarravam aos binóculos.
De noite gemada com vinho branco. Pela manhã, maçã assada servida na cama - por que não deixa de beber, querido? Não chateia, Lili. Deixe você de fumar. Ah, só me quer para uma coisa. Exibia a cicatriz do pulso, com diversos pontos. Se você me abandona, juro que me mato. Antes escrevo uma carta aos jornais - e saía nua do banheiro rebolando na rumba com a toalha na cintura.
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Na esperança de ressuscitar o amor perdido, pede para apanhar. Judie de mim, meu amor. Toda bicha gosta de ser castigada. Não tapinha leve, bofetão de cinco dedos. Deixe-a se lastimar que, cara inchada, não pode ganhar para você. Deixe estar,, nunca se desculpe. Se ela perde o respeito, meu velho, está acabado como gostosão.
CHAPEUZINHO VERMELHO
APRESSADO, Nelsinho desabotoava-lhe o vestido.
- Antes peça perdão - defendeu-se ela.
- Seja boba - acudiu o moço. - A culpa foi sua.
- Se quiser, tem de pedir desculpa.
- Vai tirar ou não?
Ela sacudiu a cabeça, resoluta. Ao empurrála, bêbados, cada um cambaleou de seu lado:
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- Você é uma... sabe o quê! - e, arrebatado de fúria, enfiou o sapato e vestiu o paletó.
- Se você sair, não precisa voltar - a dona preveniu, um olho de ódio, outro de amor.
- É velha demais para mim.
Bem boa na cama e não tão velha assim.
- Fora daqui, seu moleque!
Risinho de pouco caso, bateu a porta. Tateante avançou pelo corredor escuro; em vez de sair, foi dar na cozinha. Orientou-se à claridade da vidraça e aplicou a boca na torneira da pia. Bebeu a grandes goles, um fio de água molhava a camisa. Enxugou o lábio na manga, de novo no corredor. Achou uma porta e debaixo dela fina réstia.
Se não havia ninguém na casa, além dele e Maria... Intrigado, experimentou o trinco: no quarto cor-de-rosa penteadeira oval. Uma, duas, três bonecas de luxo. E, da cama, sentadinha, sorria a gorda senhora.
- Entre, seu moço.
Dois passos no reino das bonecas: ar adocicado de incenso, pó-de-arroz, esmalte de unha.
- É parenta da Maria?
- Não adivinha? - E sorria, faceira, lábio muito pintado. - É minha filha.
- Tão jovem... - Bem a avozinha do Chapeuzinho Vermelho. - Parece irmã!
No canto do espelho alinhavam-se os galãs de cinema.
- Muito gentil. Você quem é?
- Amiguinho dela.
A gorda afastou o abajur, aninhada na sombra misteriosa. Esqueceu no joelho a revista, em gesto pudico fechou o quimono encarnado.
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Aceita um bombom? - e retirou do lençol caixa dourada. - Como escondida... Lambeu o dedinho curto, a tinir o bracelete: - Segredo de nós dois!
_"", _ De milü ela não vai saber - e beliscava o cachooiro da boneca.
^ não quer sentar? vê-lo correr o olho, encolheu-se no canto: Lugar para mais um.
R^sPeitoso na beira da cama, apanhou a rede fotonovela.
- Os dois brigaram? -• Sabe como ela é.
+_ A°orrecido virava as páginas: dedo peganhen-
lf 1iocolate o olhinho gorducho. j_ ,, E recheado de licor! - e oferecia na ponta aa lm&ua um bocado meio derretido. __ j a a av°zinha ou, no quimono fulgurante de seda, o próprio lobo?
Largou a revista ao pé da cama - voltar à Í f pedir mil perdões? Na mesinha o retrato em moldura prateada.
- Sou eu.
A menina com a cesta de amora. -- Já fui bonita.
Ainda é - retrucou alegre - , ainda é. "rr l1 ito sér*o ao dar na sombra com o olho arregalado de sapo debaixo da pedra.
Seu diabinho! - agarrou-lhe o polegar na mão lambuzada e, antes de soltá-lo, um apertão e mais outro.
Nada de avozinha, é mesmo o lobo. Ao mexer a cabeça, girava a parede e, enxugando o suor da testa, voltou-se para ela:
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- Tem alguma bebida?
Exibiu os dentes alvares de pouco uso:
- Sou melhor que bebida.
Entre divertido e assustado, descansou o cotovelo na cama: propunha-se o lobo devorá-lo? Vislumbrou a cara na sombra: balofa, sem sobrancelha, o cabelo ralo. Por cima do quimono apalpou-lhe o peito: apesar de velha, o seio durinho.
- Quer minha perdição? - Meu Deus, a voz dengosa de menina. - Ai, diabinho peralta!
Brincalhona, correu a unha pela nuca. De repente o gemido rouco:
- Feche a porta.
Encarou-a indeciso - fechada a porta não poderia recuar. Mais que depressa ela prendeulhe a cabeça nas mãos. Aplicou a língua em cheio na boca:
- Deite comigo senão fico louca.
Não era beijo amargo. Ele ergueu-se, deu volta na chave. Desfez-se do sapato, atirou o paletó sobre a revista. Sentado, deixou-se abraçar pela velha; foi beijar a bochecha rechonchuda e arrepiou caminho - uma grossa verruga no queixo, três cabelos crespos que nem molas de relógio.
Os dois a contemplar o teto, o bombom licoroso na língua, ouviram o estalido do trinco.
- Mamãe? - a voz abafada de Maria. - Está dormindo, mãe?
Dedo no lábio, a velhota deu sinal de caluda.
- Responda, mãe. - A maçaneta girou de mansinho, uma e duas vezes. - A luz acesa.
O silêncio do quarto ainda maior.
- A senhora está só?
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Com a revelação, o grito de (dor, os murros na porta:
- Sei que está aí... aí com # senhora...
Ficaram bem quietos, a filha- parou de soluçar, toda a casa em sossego.
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DEBAIXO DA PONTE PRETA
JMoiTE de vinte e três de junho, Ritinha da Luz, dezesseis anos, solteira, prenda doméstica, ao sair do emprego, dirigiu-se à casa de sua irmã Julieta, atras da Ponte Preta. Na linha do trem foi atacada por quatro ou cinco indivíduos, aos quais se reuniram mais dois. Elitão violada por um de cada vez e abandonada entre as moitas, beu choro atraiu um guarda-civil, que a conduziu ate a delegacia.
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A menina nunca tinha visto os homens, não sabia a que atribuir o assalto. Nem qual foi o primeiro, agarrada e derrubada, a cabeça coberta. Arrastada pelo chão, fortes dores nos seios e na"* partes. Que não gritasse por socorro, barbaramente espancada. Apresentou-se com saia de seda preta e blusa vermelha de malha, sujas de lama. No corpo, além de muitas feridas, folha seca, grama e barro. A hora lá pelas dez ou onze.
Miguel de Tal, quarenta anos, casado, foguista, largou o serviço às dez e meia. Ao cruzar a linha do trem, avistou três soldados e uma dona em atitude suspeita. Sentiu um tremendo desejo de praticar o ato. Aproximou-se do grupo e, auxiliado pelos soldados, agarrou a desconhecida, retirando-lhe a roupa e com ela mantendo relação, embora à força. Derrubou-a e, para abafar os gritos, tapou-lhe o rosto com o casaco de foguista. Saciado, ajudou os soldados que, cada um por sua vez, usaram a moça, observados a distância por alguns curiosos, até que dois deles também se serviram da negrinha.
Miguel, arrependido do mau gesto, se oferecepara casar com a menina, só na delegacia soube chamar-se Ritinha, isto é, tão logo apronte os papéis do desquite, de momento é casado.
Nelsinho de Tal, menor, treze anos, estudante,, na noite de vinte e três, conversando debaixo da Ponte Preta com seu primo Sílvio e dois rapazes, deparou três soldados e um paisano atacando uma negrinha, a qual foi atirada ao chão, em seguida, desfrutada pelo civil e, por causa dos gritos, tinha um casaco na cabeça. Ele chegou-se meio desconfiado. Depois do paisano, a vez dos três soldados e, afinal, a de Nelsinho, seguido de António.
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Acabada a brincadeira, voltavam satisfeitos para casa, foram presos e conduzidos à delegacia. Nelsinho se confessa contrariado, atribuindo sua atitude à pouca idade que tem, ações como a que praticou apenas servem para estragar o futuro de um jovem.
Alfredo de Tal, vinte anos, solteiro, soldado, achava-se à noite debaixo da Ponte Preta, na companhia dos colegas Pereira e Durval. Após algum tempo, Durval abordou uma menina, com quem se dirigiu ao mato próximo. Logo Alfredo e Pereira seguiram o companheiro e, um depois do outro, desfrutaram a rapariga. Prestes a partirem, um indivíduo se apresentou como guardião da estrada e, em troca do silêncio, exigiu que segurassem a moça. Então a arrastaram para lugar escondido, onde ninguém escutasse os gritos. Chegaram dois rapazes, um deles de treze anos e, ajudados por todos, se aproveitaram da negrinha. Como era tarde, Alfredo retirou-se com os colegas para o quartel. Só na manhã seguinte soube da confusão, em vista da ordem para comparecer à delegacia.
Durval de Tal, dezenove anos, solteiro, soldado, achava-se com dois amigos perto da Ponte Preta, onde esperava alguma mulher, para com ela passar a noite. Apareceu uma fulana, com quem foi para o mato, a menina gostou do seu cabelo loiro e olho azul. Aproximaram-se os colegas, um de cada vez abusou da pequena.
De repente surgiu um cidadão de maus bofes que, intitulando-se guardião da estrada de ferro, demonstrou grande interesse em participar da festinha, para desgosto da menina, que não se agradou do seu nariz chato, bigode ralo, dente estragado. Arrastaram a negrinha, onde os gritos não
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fossem ouvidos. Chegaram dois rapazes que, auxiliados por todos, serviram-se à vontade. Satisfeitos, retiraram-se Durval e os colegas para o quartel.
Pereira, dezoito anos, solteiro, soldado, encontrava-se às dez da noite na Ponte Preta, com seus colegas Alfredo e Durval, quando por ali passou a menina, tendo um deles exclamado: Que morena linda. A qual parou e perguntou o que havia dito. Começaram a conversar, Alfredo a convidou para dormirem juntos. Ela respondeu: Este loiro tem tempo. Não ia dormir com ninguém, mas podia acompanhá-la. Alfredo saiu com ela, seguidos a distância pelos outros. No muro da estrada de ferro, estacaram. Feita a combinação, entraram no mato. Ela quis dinheiro, não a puderam pagar, estavam de bolso vazio. Saíam do campinho, chegou o guarda da estrada: Já que foi com os praças, tem de ir comigo. A mocinha acudiu: Olha o azar e Sai, fedor.
O morenão enfarruscado insistiu em desfrutar a menina, sendo repelido. Foi derrubada na grama. O tipo afogou-lhe o pescoço, ela chorava e se descabelava de gritar.
Sílvio de Tal, menor, quinze anos, estava com o primo Nelsinho debaixo da Ponte Preta, viu quando a menina passou por ali. Os soldados disseram algumas gracinhas. Um deles a convidou para ir a um quarto, ela respondeu que no campinho era melhor. Foram todos para o campinho. Até que apareceu um paisano e insistiu em abusar da mocinha.
Ao longo da estrada de ferro, Miguel deu com três soldados e uma vagabunda, que com eles mantinha relação. Sentiu grande vontade de partici-
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par da brincadeira, propôs o negócio para a mulher. Esta ofendeu-lhe os brios de homem ao injuriá-lo de - Cafetão, cagüeta, corno manso. Indignado, decidiu provar que era homem. Seguroua com o auxílio dos soldados, mas não praticou o ato, em vista do estado nervoso. Os soldados taparam a boca da menina a fim de abafar os gritos.
O primeiro a desfrutar a mocinha foi Durval, o segundo Alfredo, o terceiro Pereira, o menor Nelsinho foi o quarto e ele, Miguel, o quinto. Ritinha submeteu-se de livre e espontânea vontade ao desejo dos outros, quando chegou a sua vez quis se negar, agarrando-a para não ficar desmoralizado perante a família.
Ritinha estava chorando debaixo da Ponte Preta. Não sabia quem lhe havia feito mal, um dos soldados lhe enfiou a túnica na cabeça. Foram apontados pelo moleque José que de longe viu tudo. Quinze dias que o pai de Ritinha morreu de tumor na barriga. Deflorada havia um mês por um soldado loiro de nome Euzébio.
A casa é de madeira pintada de amarelo. A patroa uma senhora gorda, baixa, morena. Ritinha limpa a casa, lava a roupa, faz todo o serviço. O marido da patroa chama-se Artur. Ela cuida da filhinha do casal. Quando a criança chora, suspende-a de cabeça para baixo, a pestinha perde o fôlego, bem quieta. A patroa deu-lhe um sapato velho e vendeu-lhe dois vestidos, que descontou do ordenado.
Ela não pediu dinheiro aos três soldados, um deles muito simpático, cabelo loiro. Chegou o guardião e disse que pulasse o muro, na estrada de ferro era proibido passar. Ritinha saltou o muro e, atrás dela. os quatro homens, logo seis ou sete.
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A menina se pôs a chorar, o que atraiu o moleque José, espiando de longe.
O guarda mal-encarado bradou: Tem de conhecer homem senão te mato. Primeiro foi o Durval, depois o Alfredo, em seguida o Pereira, agora a minha vez, oba! Ritinha começou a gritar e quis correr, foi agarrada pela perna.
Os tais a derrubaram do outro lado do muro. Fizeram o que bem quiseram, largada bastante ferida no seio e nas partes, até que o guarda-civil a encontrou, queixosa de frio e dor.
O guarda-civil Leocádio, ao passar debaixo da Ponte Preta, viu uma negrinha chorando.
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MENINO CAÇANDO PASSARINHO
- ADVOGADO é padre, minha senhora. Pode confiar.
- Eu sei, doutor Nelson.
- Não se acanhe. Conte a verdade. Enganava seu marido, não é?
- Deus me livre!
- Nesta citação a senhora é culpada.
Dez anos casada. Um par de filhos. Seis meses atrás, uma perda. O resguardo, descansar na
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casa da mãe. De volta, deu com porta e janela trancadas. Na rua, recebeu a contrafé do oficialde-justiça: desquite, alegação de adultério.
- Quem é esse João Maria, citado como cúmplice?
- Um compadre, doutor. Esse não vai contra mim.
Luto da mãe, o vestido preto colante, broche de borboleta. O marido tinha horror da sogra. Não lhe dirigiu a palavra nos três meses em que a velha se hospedou na casa, doente da bexiga. Tenha pena dela - suplicava a mulher. E você? Tem pena de mim?
Óculo escuro: olho roxo de um murro.
- Homem fraco na cama é forte fora dela.
- Como disse, doutor?
- Conte os fatos, minha senhora.
Passeio no campo, o marido, ela e as filhas. Desde que se negava, alegando mal de mulher, o bruto queria agarrá-la à traição. Atalho no bosque, mandou as crianças na frente. Derrubou-a na grama. Com os gritos, as crianças voltaram, nele batiam com a sombrinha: Não surre a minha mãe! Não afogue a minha mãe!
- Cuidar com carinho, dona Olga, de sua defesa.
Na vez seguinte: assinatura da procuração, os preâmbulos. Tão jovem, não definhava longe do marido? A separação de corpos, morando com o pai
- A senhora anda nervosa?
- Nem queira saber, doutor.
- E antes de casar?
- Era bem calma. Agora sofro dos nervos - às vezes tenho ataque!
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Ai, que beleza: ela tem ataque.
- A senhora.. delirava, dona Olga? Olhinho baixo: Sim.
- Um bem que Deus lhe concedeu. Sabe, o delírio, o que há de maravilhoso. A mulher tem convulsão, dona Olga.
^"^ • • •
- É fato científico. Não se acanhe. Advogado em serviço não tem sexo.
- Eu sei, doutor.
- Aqui no escritório muita interrupção. Levo os papéis a um lugar sossegado. No hotel da estação, está bem?
- Sim.
Esperou de quinze para as quatro até quatro e meia - assustei a pombinha, essa não volta mais.
- Dona Olga. Por que não foi?
- Eu fui. O doutor não estava mais. Negaceava, a bichinha, sem dizer que não. No escritório, após o expediente, discutir a
pensão do marido para os filhos. Seis em ponto, Olga entrou na sala de espera. O herói fechou a porta e investiu.
- O doutor era um ídolo. Pensa que mulher separada não é honesta?
- Um beijinho só.
- Olhe que eu grito.
Picaria - só um pouco - se abrisse a porta. Ligeiro beijo roubado, a que não correspondeu.
- Prometo me comportar.
Com a porta aberta - imagine se alguém! - insistiu no assalto. Passos na escada, o elevador ora subia, ora descia. Sentados no sofá, a bela con-
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cedeu-lhe a mãozinha, que cobriu de beijos inflamados.
- Olhe que eu saio.
Ia sentar-se na outra cadeira. Ele arrastava-a para o sofá. Luta silenciosa e feroz: os dedos arranhados pela unha afiada. Despedida cerimoniosa na porta:
- Passe bem, doutor.
- Os seus problemas eu resolvo. A senhora tenha confiança.
Surgiu-lhe o marido uma tarde no escritório:
- Mais algum papel para assinar, doutor?
- Era só.
- Desconfio dela, doutor. Falam muito. Anda enfeitada demais.
- É moça direitinha. O senhor tem prova? Sabe de fato concreto?
- Fato, não sei, doutor. Desconfiança a gente sempre tem. A mulher capricha na roupa de baixo, que o homem se cuide.
Saia preta e blusa branca de rendinha, braço à mostra - uma cicatriz de vacina meio escondida. A moça lia a petição, o doutor lhe afagava o bracinho. A fingir que lia, o rosto abrasado de excitação.
- Vamos lá?
- Lá não dá, doutor. Lá não dá certo. Que o senhor quer de mim? O homem só faz as coisas por interesse. É esse o preço do homem!
Afogueada, a penugem do braço arrepiadinha. Ele não se conteve: alisou-o de alto a baixo com as duas mãos.
O doutor era influente - não sabia de uma vaga de professora?
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- Já se considere nomeada, dona Olga.
À saída, ela fez biquinho com o lábio e, estando de salto alto, forçado a se pôr na pontinha do pé.
- Se der, eu vou. Não sei se posso. Eu não devo.
- Então às cinco?
Choveu bem na hora. Esbarrou no pai dela, o velho farmacêutico.
- Eu mando ela sem falta. O doutor pode confiar.
Olga reagiu, que ele cambaleou de costas.
- Não adianta. Eu não quero.
- Então tudo acabou. O caso foi processado. Quer ir para casa, vá - e arquejava, de fôlego curto.
Entre os artigos de lei, a se lembrar do bracinho arrepiado, o olho amarelo de quem sofre do fígado - eu tenho ataque, doutor! Recado urgente pelo farmacêutico que ela o esperasse em casa, às duas da tarde.
Bateu palmas na porta dos fundos. Olga assomou à janela.
- Entre, que já desço.
Abriu a porta: estaria o diabo do velho? À espreita, quem sabe, atrás da cortina? Ela desceu a escada, repuxando a saia no joelho. O vestido caseiro, em chinelinho.
Imediatamente a agarrou aos beijos e abraços.
- Louco por você.
Abatida, sem pintura, de olheira - ai, mãe do céu, de olheira!
Que dizia ela? Não mais que balbucios:
- Sim, doutor - e revirava o olho. - Ai, doutor.
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Sempre a resguardar-se das três mãos. Uma hora inteira de beijos - o dentinho perfumado.
- Sossegue. Papai entra de repente. O senhor é doido?
Iniciação ao beijo de língua. O vestido afogado no colo, ele não podia espirrar o seio. Mordiscava a ponta da orelha.
- Sabia o que eu queria?
- Sim,
- Desde quando?
- Desde a primeira vez. Da conversa que advogado é padre.
- Ai, Olga. Me beije.
- Aqui não dá. Se papai chega?
- As crianças?
- Mandei no vizinho.
- Deixe. Mais um pouco. Só um pouco.
- Onde já se viu? É loucura.
- Conhece a minha posição. Sou casado. Houvesse risco, o primeiro a não querer.
À roda da casa, fingia coçar o nariz, com a mão no rosto. Na hora combinada, surgiu pressurosa e tossindo, lencinho na boca.
Deu volta à chave. Ela caiu-lhe nos braços, toda trêmula. Nem falar podia, tão assustada. Desabotoava o casaquinho - cuidado, querido, o pregador! Ele arrancou a gravata. Aos cochichos - já era hábito. Bem o marido tinha razão: a maravilhosa roupa de baixo - sedas e rendas! Aos beijos, de pé. Aos beijos, sentados no sofá. Deitados no tapete, rolando.
- Quer que morda ou beije?
- Sim.
- Beije ou morda?
- Sim. Ai, sim. Ai, sim.
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- Abra o olho.
- Gema comigo, anjo. Agora.
O herói gemeu. Ela o acompanhou em tom mais baixo.
- Ai, ai. Eu morro.
Estirada no tapete, bem quieta, a combinação azul acima do joelho.
Ele abotoou o paletó, acendeu cigarro. A bela mordia um grampo, a observá-lo no espelho:
- Mais uma para tua coleção?
- Você é a única.
Foi introduzir uma nota na bolsa.
- Não sou dessas.
Esperou-a no portão dos fundos. No quintal vizinho, um menino caçava, atiradeira em punho e olhar perdido. Gente na rua: a negra velha, um soldado discutia com o barbeiro. Saltinhos saltitando na pedra, ele tossiu três vezes.
- Que imprudência!
De saia xadrez, blusa de lã. Fechada a porta, dela o primeiro beijo:
- Obrigada, meu amor. Pode o que quiser. Agradecida pela nomeação, despiu-se a toda
pressa. Ele, em cueca e meia preta:
- Fique nua.
O seio róseo empinadinho. Já ritual:
- Morda ou beije?
- Sim - a mania de repetir sim, sim. Como é que um bruto desprezava dona tão
querida? Suspiros e, ao apertá-lo nos braços, o cheiro capitoso de égua trêmula.
- Se não corro me atrasava. Bem louca. Você me deixou assim.
- Com o João não fazia . . isso?
- Credo! Isso nunca aconteceu.
O herói beliscava o biquinho do seio inchado.
- Teu marido como é?
Um apressado, procurava-a sem aviso; em seguida dava-lhe as costas. Não ficasse mal acostumada - um trapo sujo atirado no canto.
- Tem me seguido. Não é arriscado vir aqui? Estou com medo.
- Me beije. Não fale.
- Vai enjoar de mim? O homem consegue o que quer. Depois corre atrás de outra.
- Me beije. Ai, Olga. Não fale. Abra o olho. Grande olho amarelo agora bem vermelho
Acuda, Olguinha, me deu ataque.
- Fique de olho aberto.
À saída, assustou-se com o menino trepado na ameixeira.
- Tem gente aí.
- Boba. É um menino.
- Se ele me vê?
Menino caçando passarinho é cego para o que não for passarinho.
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AS UVAS
\
U HERÓI subiu pelo elevador com o velho, um a examinar o outro. Saltaram ambos no quarto andar. Ele apertou a campainha. Na porta ao lado, o velho escolhia uma chave. Nelsinho entendeu na sua careta zombeteira - Olha aí mais um...
- Como vai o doutor? - cumprimentou Ivone, cerimoniosa.
Fechou a porta e sorriu:
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deix~ Tratei você de doutor. Esse velhote não me
, Na mesa um vaso minúsculo de cacto. Espetada ern areia, na haste negra luzia pontinho escarlate.
indian0' Querido> Para roubar teu
Na janela a tarde bruxuleava. Envolto na crisTde °ÍCada' tossiu de leve: ^ só me falta - Muito distinto!
- Que tanta pressa! Nem me achou bonita, ,, umÇasso atrás, que a pudesse admirar: cetim iiegro três voltas do colar dourado. Boca inchada ae batom. Cabelo preto retinto, olho de sombra
** ~~lsa,Vltmia encarnação de Mata Hari.
- ista linda, meu bem.
que escrevia bühete no intervalo
mujer que te Quiere much°> r * das mãos' cruzou-lhe os
nas costas:
- Agora não escapa.
beijou ° ^ Salinha cega bicando às sacudiu a cabeca com gritinhos de
- Por que me convidou?
- Falar com você.
"I,1118^"1 que estava sozinha. Não pensei para conversar.
- Cruzes! Nunca imaginei você queria isso. Aiastado na ponta dos braços:
ülocente do menino. Você
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- Você bem sabe - e forcejando para atraíla, conseguiu derrubar um brinco.
- Viu o que fez?
- Depois eu acho.
- Ai, que horror! Me solte um pouco. Que tal um cigarro?
Com dedos de ponta amarela acendeu um fósforo.
- Fuma demais.
- Tão aflita. . .
- Se quer, vou embora.
- Não - e segurou-lhe a mão, ainda com o fósforo. - Olhe: do lado que cair a cabeça está o meu amor.
A cabecinha negra rolou para ele.
- Gosta de mim, querido? Preciso tanto de alguém. Tão só desde que a mãezinha morreu.
- E teu marido?
- Coitado do Vivi
Espreguiçavam-se nos cantos as primeiras sombras da noite.
- Quer umas uvinhas, querido?
Na ponta do filete ardia a brasinha - Ivone apresentou-lhe o prato com uvas geladas e um guardanapo engomado. No outro lado da mesa, o rosto em nuvem azul de fumaça. Cruzou a perna, exibiu o chinelinho de pompom vermelho.
- Nervoso?
- Nem um pouco.
- Eu sim. Nunca enganei o Vivi. Boa a uva, não é?
- Ótima. Você quer?
- Já provei.
Batia o cigarro no vasinho de cacto. Ali no ombro uma pinta de beleza.
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- Um beijinho na tua pinta! No estremeção de peixe arisco:
- Sinto cócega. Ah, se o Vivi. . . Nem quero pensar!
- Onde é que ele está?
- Por aí.
- É bom para você?
- Muito. Atencioso, bem educado. Apanhou na radiola o retrato de moldura prateada.
- Se não é parecido com você. Por isso gostei dele. O primeiro beijo lá na varanda?
- Eu podia esquecer? - e roçou o lábio no ombro, errou a pinta. - Você era virgem?
- Que pergunta.
- É certo o que dizem do Vivi?
- Bem que noivo diferente. Pobre de mim, chorei de alegria. Moço prendado, falava línguas. Só beijinho de muito respeito. Uma educação inglesa. Depois você sabe...
- Que foi que houve?
- Abri de repente a porta: aos beijos com o filho do porteiro!
Aspirou o cigarro ao ponto de recolher as bochechas.
- Simpático teu apartamento.
- Quer conhecer?
Ivone indicou a cozinha. Abriu a porta do quarto:
- Desculpe a desarrumação.
O quarto em perfeita ordem, duas camas de solteiro. Desta vez conseguiu beijá-la, sem que retribuísse.
- Espere. Limpar os lábios.
- Mais um beijinho.
93

- Não auero manchar tua camisa. Apanhou lenço de papel sobre a penteadeira.
Ele observou as costas até achar a pinta - agora deixá-la nuazinha. Junto da cama, a lâmpada no garrafão azul.
- Muito original. Olhando-o pelo espelho:
- Não é mesmo?
Voltou-se: rubros como antes, grossos de batom. Ele começou a beijar-lhe o pescoço, uma veia pulsava forte. Correu os dedos, esquecidos na nádega - louco por vestido com botão."
- Como é que é?
- O que, meu bem?
- A gente tira?
- Que pressa, cruzes! - o biquinho de contrariedade. - Conversar um pouco.
- Tenha paciência, filha. Não é hora. Aborrecida, afastou-se dois passos:
- Está bem. Tire a roupa.
Sacou o vestido pela cabeça, tanta prática que nem se despenteou. Ele tirou o paletó.
- Um cabide?
- Penduro aqui mesmo.
De costas, jogou a calça ao pé da cama. Virou-se e o que viu? Ela de sutiã, anágua, chinelinho de pompom. Em cueca, nosso herói investiu. Ergueu a saia, surpreendeu a coxa no espelho - a matrona é avó torta da donzela. Para se consolar, fechou o olho e fungou-lhe no pescoço. Repelão violento o fez cambalear:
- Que é? Que foi?
- Espere um pouco.
94
Acendeu o cigarro, apanhou no guarda-roupa uma toalna, que estendeu sobre a eoicna encarnada.
JNielsinho despiu a cueca, apenas de camisa e sapato, üla o encarou e, a mão atras, abriu o sutiã: horrendo peito llácido. iüxcitadíssimo ao vê-la tirar a caicinna, só de anágua. Que se debateu aflita:
- E o brinco?
- Que brinco? Ah, depois eu acho.
- Como é apressado, que horrorl Vou lavar as mãos.
- Agora não. Depois.
- Tem de ser já.
Sem se confessar deprimido, o herói exibiu-se no espelho, admirou as suas graças. De frente e de perfil, erguendo a aba da camisa - grande cadela, deixa estar, ela me paga!
Ivone saiu do banheiro, soltou a anágua, pisou sobre ela - nua, cigarro na boca! Desviou-se mais uma vez do abraço:
- Não tira o sapato?
Foi sentar-se na cama, acendeu novo cigarro na brasa do outro.
Nelsinho livrou-se do sapato. Trêmulo, beijava-lhe o braço, o pescoço, a orelha - lembra-se, querida, a noite na varanda?
- Cuidado. Eu te queimo.
Fumava sem pressa, a boca feroz, olho no teto.
- Sossega, meu bem. Olha a cinza na colcha. Ergueu-se no cotovelo, amassou o cigarro no
cinzeiro. De repente envolveu-o num abraço apertado. Sem explicação, deitou a gemer alto: Ai, ai, ai! Empurrou-o, sacudiu a cabeça:
- Bonito o teu olho esquerdo!
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Agarrou-o com violência, entre ais lancinantes. O rosto afundado no cabelo, Nelsinho espirrou duas vezes.
- Que foi, bem? Resfriou?
- A velha asma.
Sem aviso, a defender-se com unha e cotovelo:
- Me machucando. Trocar de posição. Mais para baixo. De mau jeito. Não desmanche o penteado.
Ele seguia as instruções, frustrado e miserável. Ivone enlaçou-lhe o pescoço e beijou-o, a gemer fora de tom. No meio do beijo, estremeceu a pálpebra, aos poucos abrindo o olho. Fixou-o no fundo da pupila, franziu a testa. Nelsinho começou a resfolegar, lavado de suor frio.
- Nervoso, bem? - melíflua, suspirou a bela.
Em desespero, fechando o olho, tornou a beijá-la: boca escarninha, cheia de dentes. Fio de baba escorreu no queixo, ela desviou o rosto:
- Incomodou-se hoje, não foi?
Inibido pela expressão de censura, o sulco na testa acusadora, ainda pediu:
- Me beije, querida.
- Não fique nervoso. Já passa.
- Você é que sabe - a voz sumida.
- Isso acontece.
Na separação dos corpos suados um estalo obsceno. Nelsinho deixou-se rolar de costas.
- Pois é. Acontece a qualquer um - com amargura medonha na alma.
- Bem quietinho - as palavras untuosas de doçura. - Como eu e meu marido.
Compassiva, afofou o travesseiro, que descansasse a cabeça. Alcançou lencinho na gaveta,
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enxugou-lhe a testa em agonia. Dois cigarros na boca, acendeu-os, estendeu-lhe um.
- Primeira vez? - a menina inocente na varanda.
Não queria conversa, preocupado em não se distrair.
- Nunca me aconteceu.
- Será que das uvas? - os seios sacolejando com o risinho de pouco caso.
- Se a gente ficasse de pé?
De pé, não deu resultado: a visão medonha da nádega no espelho. Depois, sentados. E deitados retomaram os cigarros. Nelsinho de costas, ela apoiada no cotovelo, a soprar-lhe a fumaça no olho. Com a mão livre, Ivone ofereceu entre o indicador e o polegar o seio opulento; sem entusiasmo, ele sorveu o leite mais triste. O coração pulsava no travesseiro e rangia no colchão. Tornou o suor a escorrer-lhe da testa.
- Igualzinho ao Vivi.
Ivone aspirou fundo, soprou deliciada pelo nariz: uma vez com um homem. Abordada na rua. Na própria lua-de-mel. Nunca soube quem era. Em vez de indignar-se, recolheu-o no apartamento. Tristonho, Nelsinho observava o desejo afoguearIhe as faces, rouca de perturbação. Engoliu em seco: esmagou a boca de beijos, com receio de que o empurrasse para rematar a frase. Entreabriu o olho a gozar o triunfo, notou a ruga incrédula na testa. Ai dele! a exaltação gloriosa esvaiu-se em derrota sem remédio.
- Não se canse tanto, meu bem. Pode ter uma coisa!
Concluiu em sossego a história, na verdade muito interessante.
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- Com calor? Que abra a janela?
- Fique quieta. - E com humildade. - Não sei o que... A primeira vez.
- Meu maridinho é bem assim.
A vez do herói acender os cigarros. No silêncio, choro de criança no apartamento vizinho, um relógio ao longe deu as horas. Último clarão do crepúsculo na janela. Chegou até ele a flagrância enjoativa do incenso: Deus, ó Deus, por que não morri de asma aos cinco anos?
Ivone saltou da cama, os peitos bamboleantes, foi apanhar um fósforo na sala. Voltou com o pratinho:
- Não quer acabar as uvas?
Deitado, beliscou dois e três grãos. Chupou o sumo, devolveu a casca ao prato. Apanhou outro bago. Tão desconsolado, em vez de cuspir, engoliu a semente e a casca.
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A NOITE DA PAIXÃO
IlELsiNHO corria as ruas à caça da última fêmea. Nem uma dona em marcha vagabunda, os bares apagados.
Na estreita calçada esbarrou com dois vultos, depressa levou a mão ao bolso. Haviam-no apalpado com dedo indiscreto, não eram ladrões. Voltou-se e lá estavam, gesto lânguido, voz melíflua:
- Onde vai, bonitão?
Aqueles dois chamariam bonitão a qualquer bicho da noite. Dobrando a esquina, deu com a
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pracinha do bebedouro antigo - onde as mariposas?
A igreja quase deserta, imagens cobertas de pano roxo. Sem se persignar, Nelsinho avançou pela nave, o ranger da areia debaixo do sapato Arriado de sua cruz, ali o velho Cristo,^ entre quatro círios acesos. No banco as megeras, véu preto e preta mantilha, olho à sombra da mão na testa. Uma prostrou-se no cimento, depositou beijo amoroso na chaga do pé.
Nelsinho escolheu a nota menor, deixou-a cair na bandeja. Espreitado pelas guardiãs ferozes do defunto, completou o giro, sovina de beijo. Observou a imagem pavorosa e reprimiu, não soluço de dor, engulho de náusea: Por tua culpa, Senhor, todos os bordéis fechados. Pomposa boneca de cachinho. Falas de sangue, ó Senhor, e não sangras - as viúvas nem espantavam as moscas na ferida aberta.
Escândalo das beatas, inclinou-se a visitante, saía preta, blusa verde, casaco vermelho. Cabeleira solta no ombro, cada gesto um estalo de couro, beijou o pé trespassado. Não olhou para Nelsinho; por mais que se ignorassem, eram os escolhidos. O herói atravessou o templo, deteve-se nos três degraus. Com a estiagem, brilhavam no largo abandonado as lisas pedras negras. A seu lado o furtivo farfalhar da courama. Fixando em frente, ele murmurou:
- Onde é que a gente vai?
- Ali na esquina. Pequena pausa.
- Quanto tempo?
~ O resto da vida, Madalena
700
Desceram os degraus, a bela transferiu a bolsa para o ombro esquerdo, enfiou-lhe a destra no braço. Ele indicou um casarão decrépito:
- Sabe quem mora aqui? A grande paixão da minha vida - uma tal Marta. Casada com um bancário, Petrônio.
- Não fique triste, querido. Todinha do amor. Foi bem de Páscoa?
- De Páscoa ainda não fui.
- Ah, eu pensei. . . Não é hoje a Páscoa?
- Hoje é sexta-feira, minha flor. Que horas são?
- Quase onze.
- A própria noite da paixão. Amanhã é Aleluia.
- Que a gente ganha ovos?
- Dia de malhar Judas. Porventura sou eu, Senhor?
Envergonhada, apertou-lhe o braço:
- É, sim, meu bem.
No fundo do corredor uma harpia nariguda atrás da mesa.
- Vão pousar?
Os quartos da frente reservados por meia hora.
- Meu tempo está no fim.
A velha pediu à dama de couro a revista, que repontava da bolsa, e apanhou no escaninho a chave número nove. Nelsinho estendeu uma nota para a bruxa, apoiou-se na escrivaninha. A revista disputada entre as duas até que, sem aviso, a patroa correu o tampo e prendeu-lhe o dedo.
- Machucou, bem? - acudiu a velha, jubilosa, revista na mão.
- Não - com uma careta de dor soprava a unha.
101

- Foi sem querer.
Entregou a chave à sua companheira e o troco para ele. Lá se foram os dois para o famoso quarto, a cama de casal encostada à parede. Ao canto, a bacia no tripé; debaixo dela, o jarro com água. Cabelo no olho, a mulher não se mexia.
- Que foi?
- Tão triste que podia morrer.
A patroa confiscara a fotonovela, nunca mais iria devolver.
- Devolve, sim.
- Não é a primeira vez.
Ele suspendeu-lhe o queixo. Escondia o rosto, até que o olhou e sorriu, amorosa. Com susto, descobriu que era banguela. Nem um dente entre os caninos superiores - terei de beber, ó Senhor, deste cálice?
Para esconder a perturbação foi fechar a porta. Mal se voltou, ela veio ao seu encontro, envolvendo-o em couro úmido e carne rançosa. Que será de mim, Deus do céu? Pobre consolo, imaginou a dona mais fabulosa na cama. Esperança de ganhar tempo:
- Não tem medo, minha filha?
- De você, querido?
- Castigo do céu. A noite santa. O amor é maldito.
- O perdão dos meus pecados. Lá na igreja.
- Não minta, vai para o inferno. Quantas vezes entrou e saiu da igreja? À caça de homem.
- Deus me livre! Agarrou-lhe a cabeça:
- Tão mocinho! Lábio grosso de mulher... Beijar tua boca.
- Se fosse o diabo? Perder a sua alma?
702
- Conversa é essa? Não gostou de mim. É isso?
Olho frio e perverso que, a uma palavra indiscreta, se incendiaria de fúria. O herói acovardou-se - a salvação é apagar a luz.
Desvencilhou-se dela, sacou o paletó, sentou-se na cama. A tipa conchegou-se, repuxou-lhe a cabeça, entrou a mordê-lo: ali no pescoço a falha dos dentes.
- Te morder todinho.
- Faça isso não - suplicou, espavorido.
- Tirar sangue!
Montada nos seus joelhos, completamente vestida, os pinotes faziam estralar a cama.
- Tome e coma: isto é o meu corpo.
- Você o amigo da Joana?
- Nem Joana nem Suzana.
- Então é meu.
Nelsinho abriu-se em sorrisos - eis o homem! Não quis perder o entusiasmo, pôs-se de pé. Abriu o laço da gravata. Ela puxou-o pela camisa e, à sua mercê, voltou a cavalgá-lo, sela nova rangendo. Ao retirar o casaco, a desgraçada fedia que era uma carniça. Inclinou-se sobre ele, o cadáver no caixão velado pela última carpideira.
- Teu corpinho feito para o amor?
- Esta noite, minha filha, o amor é pecado. Esta noite ele gera monstros.
- Tem a lábia do diabo.
- Tu o disseste - e entregou-se ao sacrifício.
- Quer que eu faça?
Agarrada a ele, sentados na cama, a saia acima do joelho, esfregava-lhe a perna grosseira e áspera.
- Que eu faça? - gritou terceira vez.
103

Na agonia do amor, sofresse até o, último alento.
- Faça tudo, querida.
- Tudo o quê?
- O que sabe.
Apressada, desabotoava-lhe a camisa. Riscoulhe nas costas a unha afiada - a do mindinho mais longa. Antes que refletisse no mistério, a sua voz impaciente:
- Apago a luz?
Cheio de medo, pediu que não. Debaixo dela, debateu-se em desespero:
- Espere um pouco. Perdi a abotoadura.
Tirou a camisa, de calça e meia. Foi acariciarlhe o seio. Espantou-se da expressão distante, já desinteressada da cerimônia.
- Não esqueceu?
- Ah... Não te paguei?
Alcançou no bolso da calça uma nota, que ela escondeu no casaco. Sem mais demora, livrou-se do suéter. A decisão dela contagiou-o: Faça-se o que deve ser feito.
Diante da penteadeira, a bela admirou a imagem grotesca do poder e da glória:
- Tiro tudo?
Desatava o nó do cadarço, ergueu a cabeça:
- Tudo.
Ele subiu na cama para não arrastar a calça no pó. A mulher dobrou uma perna, depois outra, safando-se da saia preta de couro - a coxa com nervura azul de varizes. Sentou-se para enrolar as meias. Deixou cair o sutiã. Foi deslumbrar-se no espelho, o seio na mão. Buscou ali o olhar de Nelsinho - depressa ele o desviou. A criatura deu
104
volta à cama Enroscou-se nele, as unhas pelo corpo, estremecendo-o todo. Enfiou-lhe a língua na orelha - Que se faça tua vontade, Senhor, e não a minha.
Ao vê-lo deitado, grudou-lhe a boca no peito, lambeu a maminha: Poxa, isso que é mulher! Desceu a cabeça, sempre a beijar e, na altura do umbigo, rincho obsceno. Aos beijos tornou ao pescoço, logo arrepiou caminho e, no umbigo, outra vez o relincho de satisfação. Preparando para o sacrifício, espargia no corpo o bálsamo aromático. Agora fazia-lhe cócega no pé, escondendo-o no longo cabelo. O focinho rapace farejava a prenda secreta.
- Não morda.
Naquele instante ela abocanhou o queixo. Só sentia a língua. Aos poucos babujava e titilava ao redor da pombinha do amor - vai morder?
- Pare! - resistiu com toda a força. - Não faça isso.
Ela voltou a sugar o queixo. O herói alerta ao vazio dos dentes. Aterrado, defendeu-se com a mão no pescoço. Súbito a mulher recuou a cabeça. Cobrou fôlego, veio de novo, fungando. Quis morder, ele não deixou. Suspensa nos braços, o cabelo arrastando na colcha, todinha nua. A sacolejar o estrado, esfregava-lhe no peito os seios volumosos. Também nu, de meia preta, o rosto lambuzado de mil beijos. Sem jamais colher a flor do desejo, ela urrou de frustração - cravou-lhe os caninos no pescoço. Nelsinho alçou-se nas mãos, com ela aferrada ao ombro.
- Tiro sangue.
- Agora chega.
105

- Você não escapa - e encarniçava-se na perseguição feroz.
Ultimo alento, berrou espavorido:
- Tem água aí? - Mal se acreditou livre, suspirou com alívio. - Encharcado de t>uor.
A criatura jogou-lhe uma toalha. Trouxe o jarro com água, retirou uma bacia de baixo da cama. Ele deu-lhe as costas, esfregava as mãos no sudário viscoso, ouvia o chapinhar na bacia Sentiu comichão no pé, o bicharoco pedia a toalha. Quando percebeu, instalada outra vez a seu lado. Pudera, reclamava o beijo.
- Estou perdido! - gemeu do fundo da alma.
Ela começou tudo de novo. Corria a unha na espinha, ele se retorcia inteiro. Pastava-lhe o pescoço, lambia o mamilo, com sopro e relincho.
- Pare com isso! - E ao ver-lhe a expressão medonha: - Mais devagar.
- Antes queria, não é?
Todos dormem, ninguém me açode: agora fecho os olhos e desmaio de tristeza.
- O galo cantou três vezes. Emburrada, a mulher coçava as perebas. Não
se passou um minuto, a deslizar-lhe a mão furtiva no peito, logo na barriga. Soergueu-se no cotovelo:
- O corpinho dele. Tão magro e branco. O do outro.
Apoderou-se da mão, dava-lhe mordida ligeira. Nelsinho sofria o oco dos dentes. Implacável, ela insistia no encalço da boca. Aos poucos abateu-lhe a resistência - Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?
Em cheio a ventosa obscena, ó esponja imunda de vinagre e fel. - Está consumado.
106
Um grito selvagem de triunfo, beijava-o possessa, olho aberto. Ele apertou a pálpebra, não ver a careta diabólica de gozo.
Cada um levantou-se de seu lado. Já vestido, abriu a porta, sem se despedir. A mulher não envergara a primeira peça de couro.
O relógio da torre anunciava o fim da agonia. Na rua deserta as badaladas terríveis rasgaram o silêncio de alto a baixo. Nelsinho suspendeu o passo, a terra fugia a seus pés:
- Sou inocente, meu Pai.
José Eduardo Agualusa
CATÁLOGO DE SOMBRAS
contos

Este livro foi digitalizado por Sandra Leonor Ferreira em Setembro de 2008 para uso exclusivo de deficientes visuais.

Contacapa:
Fernando Pessoa exilado no Brasil interessa-se pelo candomblé. Descendentes de um marinheiro da Vasco de Gama, em Malindi, no Quénia, cantam a história para melhor
a preservarem. Numa praia de Pernambuco um pescador sonha com uma baleia e lança-se ao mar. O filho de um oficial de Nicolau II, o último Czar da Rússia, atravessa
o Sul de Angola carregando uma velha máquina de projectar. Contos de um mundo que fala português.

Badanas:
José Eduardo Agualusa nasceu a 13 de Dezembro de 1960 na cidade do Huambo, em Angola.
É membro da União dos Escritores Angolanos e exerce a profissão de jornalista, sendo colaborador do jornal Público e da RDP-África.
A Conjura (1989), o seu primeiro romance, recebeu o Prémio Revelação Sonangol. Seguiram-se A Feira dos Assombrados (novela, 1992), Estação das Chuvas (romance, 1996),
Nação Crioula: A Correspondência Secreta de Fradique Mendes (romance,1997) - Grande Prémio de Literatura RTP-1997, Fronteiras Perdidas, Contos para Viajar, (1999)
- Grande Prémio do Conto da A.P.E., A Substância do Amor e Outras Crónicas (crónicas, 2000), Estranhões e Bizarrocos (contos para crianças, 2000 - com ilustrações
de Henrique Cayatte) - Prémio Nacional de Ilustração, 2001, do IPLB e Grande Prémio de Literatura para Crianças da Fundação Calouste Gulbenkian, O Homem que Parecia
um Domingo (contos, edição de bolso, 2002), O Ano em que Zumbi Tomou o Rio (romance, 2002) e Catálogo de Sombras (contos, 2003).


Biblioteca Nacional - Catalogação na Publicação Agualusa, José Eduardo, 1960-
Catálogo de sombras: contos. (Autores de língua portuguesa)
ISBN 972-20-2556-2
CDU 821.134.3 (673)-34 "19"

Publicações Dom Quixote
Rua Cintura do Porto
Urbanização da Matinha, Lote A - 2.° C
1900 - 649 Lisboa• Portugal

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor
(c) 2003, José Eduardo Agualusa e Publicações Dom Quixote
Capa: Atelier Henrique Cayatte, com a colaboração de Rira Múrias Foto da contracapa: Marcelo Buainain
Revisão tipográfica: Álvaro Marques
1.ª edição: Outubro de 2003
Depósito Legal n.? 199383/03
Pré-impressão: VHM-Produções Gráficas, Lda.
Impressão e acabamento:
Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda.


Índice
Catálogo de sombras 11
A Casa Secreta 29
O homem da luz 41
Discurso sobre o fulgor da língua 51
A bigger splash 59
O corpo no cabide 69
Rita cantava uma canção redentora 77
O rei do parque 85
Deus passou por aqui 91
Se nada mais der certo leia Clarice 97
Felizmente chovia 103
O homem que parecia um domingo 109
O uivo amarelo dos girassóis 115
Falsas recordações felizes 121
Bom Repouso 127
Uma silhueta ardendo ao crepúsculo 133
A vida escrita 139
Últimos momentos 145


Para a Kelly Cristina

Catálogo de Sonbras

Ao princípio ri-me com o acontecido, ri-me sem gosto, como se riem os infelizes apanhados em situações ridículas pelas câmaras de televisão. Parecia-me um desses
jogos literários tão do agrado de Jorge Luís Borges, um fatigado truque de espelhos, com objectos impossíveis e livros antigos surgindo do nada para inquietar a
realidade. Pedro Rosa Mendes descobriu o livro num velho alfarrabista em Alcântara, Maranhão, escondido entre títulos de poesia brasileira dos anos quarenta. Os
meus amigos sabem que alimento com carinho, há longos anos, uma pequena biblioteca monstruosa. Incluo nesta todo o género de erros, aberrações e atrocidades, mas
também milagres e prodígios, desde obras com títulos insensatos ou revoltantes a plágios descarados, volumes com capas invertidas, outros com graves erros de ortografia
no próprio título, árduas utopias que nunca ninguém lerá. Guardo, por exemplo, o trabalho de um obscuro escritor angolano, Marcial Faustino, constituído apenas pela
dedicatória e três breves textos. Uma nota, na contracapa, assegura tratar-se de um romance.
13

O grosso da obra, cento e oitenta e sete páginas, é constituído pela dedicatória, certamente a mais longa da literatura universal. O autor começa por dedicar o livro
ao "saudoso Presidente Agostinho Neto", umas vinte e cinco páginas, explicando o motivo da sua devoção, e depois à esposa, trinta e tantas páginas, a cada um dos
vinte e dois filhos e por aí fora. Interessantíssima, a dedicatória. Presumo que seja - e vejo nisto uma genial ousadia literária! -, um romance disfarçado de dedicatória.
"Conheces?!"
Tomei o livro das mãos do meu amigo: "Catálogo de Sombras", de Alberto Caeiro, Editora Íbis. Uma nota, na última página, indicava que qualquer correspondência para
o autor ou editor deveria ser dirigida à Calçada de Eleguá, n.º 15, em São Paulo. Folheei-o rapidamente e não reconheci um único verso. O estilo, contudo, atordoou-me
- inconfundível. Foi então que me lembrei de Borges.
"Talvez seja simplesmente", arriscou, afagando o queixo, o meu amigo, "um obscuro homónimo brasileiro do mais famoso heterónimo português."
Não podia ser tão simples. Não era a coincidência dos nomes que me perturbava, era a coincidência do génio. Guardei o livro entre "As Quibíricas" de Frei Joanes
Garabatus, aliás António Quadros, e uma rara edição do "Luuanda", de Luandino Vieira, mandada imprimir em Lisboa por um agente da PIDE.
11

António Quadros, poeta e pintor português, criou diversos heterónimos, entre os quais o guerrilheiro negro Mutimati Barnabé João, autor de "Nós, o Povo", panfleto
poético que emocionou e agitou os dias febris da independência em Moçambique. "As Quibíricas" principia onde os "Os Lusíadas" conclui, tendo a mesma estrutura e
aproximadamente o mesmo número de versos da obra de Camões. Quanto à edição pirata do "Luuanda", o que a torna interessante não é apenas a falsidade, mas sobretudo
a perversidade. Publicou-a um agente da polícia política portuguesa, em 1965, aproveitando o escândalo resultante da atribuição a Luandino Vieira, então detido na
Prisão do Tarrafal sob a acusação de pretender criar uma rede bombista, do Grande Prémio de Literatura da Associação Portuguesa de Escritores. O livro traz uma nota
assegurando que foi impresso em Belo Horizonte, Minas Gerais, dado falso, é claro, mas o único capaz de justificar o seu comércio numa altura em que as editoras
portuguesas não podiam publicá-lo.
Nunca consegui esquecer Alberto Caeiro. Volta e meia retirava-o da companhia de Luandino Vieira e Frei Joannes Garabatus e relia-o. Percebi que a ilusão me vencera
ao citar um dos falsos versos, acreditando ser um dos legítimos, numa roda de adeptos. Foi naquele exacto momento, enquanto os devotos do poeta me atormentavam com
questões ansiosas, e eu balbuciava evasivas, tentando evitar o ridículo de admitir haver citado um verso apócrifo, que decidi ir até ao fim. Tinha de descobrir quem
escrevera o livro.
15

Decorreram meses. Em Março de 2001 fui a São Paulo visitar a biblioteca de José Mindlin, peregrinação obrigatória para quem quer que se interesse pelo nosso idioma.
Saí com o coração aos saltos, depois de ter folheado dois exemplares de "Os Lusíadas", de 1572, um com a figura do pelicano, no frontispício, voltada para a direita,
e o outro com a mesma figura voltada para a esquerda. Mindlin mostrou-me também uma edição original dos sonetos e canções de Petrarca; alguns dos versos, que atacavam
a corte de Roma, haviam sido cobertos a nanquim pela censura da época. O tempo, porém, encarregou-se de apagar o nanquim censório devolvendo ao futuro as palavras
proibidas. Aquele livro ficaria bem na minha biblioteca. O estado de euforia em que saí deu-me coragem para chamar um taxi e indicar ao motorista um endereço que
sabia de cor:
"É para o número 15 da Calçada de Eleguá."
O homem hesitou. Em trinta e quatro anos de praça jamais ouvira falar em tal lugar. Sabia eu a zona? Não, eu não sabia nada, além do nome da rua, e talvez a rua
já nem se chamasse mais assim, mas estava disposto a pagar-lhe uma generosa gorjeta se ele conseguisse encontrá-la. Levámos o resto da tarde. Já a noite se atirara,
estridente e luminosa, sobre a imensa cidade, quando o taxi me deixou junto a um prédio baço, baixo, numa calçada de pedras tortas. Toquei à campainha mas nenhum
som me anunciou. Bati à porta, primeiro levemente, depois com esforço, por fim já sem esperança alguma, e foi só então que ela se descerrou.
16

O olhar escuro, a mão grossa, de unhas sujas, segurando a porta - não, não era aquilo o que eu esperava. A bem dizer não sei o que esperava. Creio que esperava um
milagre, na figura de um fantasma magro, de ombros curvos, chapéu na cabeça, óculos redondos, um ridículo bigode branco; no sujeito à minha frente, porém, tudo era
real e bruto.
"O que o senhor desejar"
Livros, disse-lhe. Livros e papéis antigos. Alguém me contara que em tempos havia funcionado ali uma editora e eu queria saber se não teriam ainda alguns livros
esquecidos. Disse-lhe que trabalhava para um sebo e que pagava bem por livros e papéis antigos. O homem sacudiu o torpor dos ombros. Cheirava a álcool:
"Editora? Quem vivia aqui era um doutor. Um doutor inglês. Morreu faz tempo ... "
Abriu a porta um pouco mais e só então reparei que estava em tronco nu, de bermudas e sandálias, e que tinha o desenho de um tridente tatuado no peito. Lá dentro
tudo era escuro e revolto. Sim, disse com esforço, arrastando a voz, havia livros. Havia papéis. A mãe dele, Dona lnácia, trabalhara trinta e cinco anos para o doutor,
limpando a casa, fazendo a comida, cuidando do velho nos seus últimos dias, e este ao morrer deixara-lhe tudo. Os livros guardara-os ele, há anos, numa arrecadação,
no quintal, onde estavam protegidos da chuva.
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"Quer ver?"
Queria. Levaria o meu erro até ao fim. Segui o homem através das ruínas. O chão, em madeira corrida, havia cedido nalguns pontos. Também o tecto não estava em melhor
estado. A humidade deslizava pelas paredes, entre teias de aranha e uma flora pálida, e com ela vinha um cheiro forte a coisas mortas. O quintal, aquilo a que ele
chamava o quintal, não passava de um pequeno pátio entalado entre muros altos. Num dos cantos erguia-se uma construção precária, em madeira, com tecto de zinco,
que a mim me pareceu um galinheiro. Estava cheia de livros. Escolhi um ao acaso. "Pânico", poesia, de Anthony Moraes. O modelo da capa, simples, elegante, era idêntico
ao de "Catálogo de Sombras", com a única diferença de que no de Anthony Moraes uma pequena ave pernalta, poisada no canto inferior direito, substituía o nome da
editora. Estremeci.
"Está bem", disse. "Quanto quer por tudo?" Regressei na manhã seguinte acompanhado por uma amiga, Kelly Araújo, professora de História de África, que aceitou guardar
os livros no seu apartamento, mesmo sem suspeitar dos meus motivos. O homem vestira-se para nos receber, com um fato claro, ou que já fora claro, e estava mais loquaz.
Disse-nos que o inglês, o senhor Carlos Roberto, como o cantor, Roberto Carlos, sim, mas ao contrário, morrera em 1970 de problema de coração e fora enterrado num
cemitério
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ali perto. Quis saber se ele vivera sozinho durante todo aquele tempo:
"Não casou? Não tinha namoradas?"
O homem olhou para mim, olhou para Kelly, e baixou a voz:
"Não, não, ele não era desse género, não doutor. O doutor Carlos Roberto era pessoa muito séria, muito respeitadora. Minha mãe sempre dizia, o doutor Carlos Roberto
não cai em pecado nem em pensamento."
Contei trinta exemplares de "Catálogo de Sombras", de Alberto Caeiro; vinte e três de "Pânico", de Anthony Moraes, luso-chinês de Hong Kong, conforme adianta uma
breve nota na contracapa; havia ainda um volume de contos, "Tudo sobre Deus", da autoria de um paulista de ascendência italiana chamado Francisco Boscolo, e um grande
número de revistas inglesas e brasileiras.
"E cartas?! Ele não deixou cartas?..,"
O homem olhou-me num espanto mudo. Expliquei-lhe que muita gente aparece nos sebos à procura de correspondência antiga. Certas cartas, as confissões de um poeta
ao seu editor, por exemplo, podem valer algum dinheiro depois de ambos mortos. Disse-lhe isto enquanto lhe entregava duas notas de cem reais. O rosto do homem abriu-se
num golpe de luz. Sim, havia cartas, mas a senhora sua mãe, Dona Inácia, levara-as consigo. Levara também alguns livros.
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Dona Inácia regressara à aldeia natal, no recôncavo baiano, não queria morrer em São Paulo, longe dos sobrinhos, das primas e dos primos, longe da grande paz da
sua infância, e levara alguns dos pertences do inglês, como se fossem relíquias. Vez por outra mandava notícias. Ele não conhecia a terra da mãe. Mostrou-me um envelope
que recebera há pouco:

Inácia Assunção
Nossa Senhora do Silêncio
Cachoeira - Bahia

No dia seguinte, era um sábado, já eu estava dentro de um avião com destino a Salvador, e poucas horas mais tarde saltava de um ônibus na cidade de Cachoeira. Caía
a tarde. Uma luz dourada projectava-se horizontalmente de encontro às velhas paredes. As pessoas, os cachorros, inclusive os pássaros, moviam-se devagar, como se
tivessem sido todos apanhados numa mesma armadilha de mel. Aluguei um quarto num antigo convento, a Pousada do Carmo, vesti o fato-de-banho e fui nadar na piscina.
Não havia mais hóspedes. Nessa noite alguém me levou a uma cerimónia de candomblé. Só me recordo do fragor ansioso dos atabaqucs, crescendo, crescendo, crescendo
sempre, e das mulheres rodopiando num transe feliz. À saída veio ter comigo um homem magro, com um fino bigode impertinente que me tomou pelo braço, apresentou-se,
"Sou o Alexandre", e sem que eu lhe perguntasse nada disse estar disposto a levar-me até Nossa Senhora do Silêncio por apenas cinquenta reais.
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"Daqui até Silêncio, velho, são trinta quilómetros, mas choveu nos últimos dias e a estrada está má. A ir e a vir conte com tempo. Ponha tempo nisso. Espere por
mim na Pousada. Estarei lá às oito."
Eram exactamente sete horas e cinquenta e cinco minutos quando Alexandre entrou no restaurante da pousada (eu bebia um sumo de papaia) e se sentou ao meu lado. Abriu
um pão de leite, barrou-o fartamente com manteiga, depois com mel e compota e comeu-o. Serviu-se do leite e do café, juntou duas colheres de açúcar e sorveu devagar
a bebida quente. Só então pareceu reparar em mim:
"E aí, José?! Dormiu bem? Joaninha tá lá fora, doida pra dar uma voltinha com você."
Joaninha era uma velha Harley-Davidson. Na anterior encarnação fora certamente um veículo poderoso. Ainda havia nela uma certa nobreza, a mesma arrogância com que
os casarões coloniais de Cachoeira troçavam da morte, e isso comoveu-me. Montei naquela espécie de dinossauro mecânico e confiei a alma ao Criador. Alexandre revelou-se
um optimista. A estrada estava em mau estado, sim, nos lugares onde havia estrada. Uma boa parte do percurso, porém, tivemos de o fazer a corta mato, por caminhos
de areia abertos a custo entre uma vegetação de arame farpado. Nenhum carro teria conseguido passar por ali.
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Nossa Senhora do Silêncio faz justiça ao nome.
Creio que toda a gente acompanhou a nossa chegada, uma boa meia hora antes, as curvas, as derrapagens, as hesitações, só pelo estrépito do motor. Encontrei Dona
Inácia sentada junto à porta de casa, direita e solene como uma rainha, enquanto em redor das suas saias piava e ciscava uma alegre ninhada de pintos. A pele do
rosto, lisa e negra, brilhava como um espelho. Trazia o cabelo, de um fulgor impossível, preso em duas longas tranças. Os olhos eram vivos e trocistas. Enfrentou-me
sem surpresa:
"Tenho estado à sua espera, moço, há trinta anos que o estou esperando. O doutor disse que você viria. Fique sabendo que não vendo nada, vender não vendo, nem deixo
que leve daqui papel nenhum. Mas se quiser olhar, tudo bem, pode olhar,"
Entrou em casa e regressou minutos depois com duas caixas de sapatos, cheias de papéis, que pousou na areia. A sombra de uma mangueira adoçava o ar. Havia um banco
encostado ao tronco. Sentei-me nele, coloquei uma das caixas nos joelhos e abri-a. Não sei quanto tempo fiquei ali. Alexandre trouxe-me uma coca-cola e desapareceu.
Provei-a, estava quente. Minutos depois, ou várias horas, veio uma menina com uma sopa. Finalmente, ergui os olhos e dei com os de dona Inácia. Mostrei-lhe a fotografia
de um homem magro, num jardim, segurando entre as mãos um livro aberto.
"Este senhor é que era Charles Robert Anon?" "Carlos Roberto, sim, o meu patrão ... "
"Ele falava bem português?"
"Muito bem, falava muito bem, mas com forte sotaque. Até ao fim falou sempre com forte sotaque inglês - como o senhor. .. "
Tirei da primeira caixa uma outra fotografia. Um velho alto e forte, de bigode e cavanhaque branco, enorme cachimbo entre as mãos, olhava directamente, fixamente,
para a objectiva. Parecia um hipnotizador de circo posando num cartaz. A imagem devia ter sido recolhida no mesmo jardim, talvez na mesma tarde, que a anterior.
"E este sujeito - quem é?"
"Esse é o doutor Aleister" Dona Inácia falava com firmeza. "Só o vi duas vezes mas uns olhos assim eu não esqueço, não. Quem pode esquecer? Era estrangeiro e não
sabia uma palavra em português. Ele e o doutor Carlos Roberto só conversavam lá na vossa língua. Eu não compreendia nada."
Alexandre reapareceu abraçado a uma moça alta, delgada, com um vestido leve, que a luz parecia dissolver. Tinha flores no vestido e no cabelo. Riu-se para mim, num
riso húmido, e Alexandre ralhou com ela, fingindo-se zangado. Depois apontou para oriente e eu vi a escuridão fechar-se sobre as espinheiras. O meu tempo terminara.
Dentro de poucas horas não haveria luz. Devolvi as caixas a Dona Inácia e disse-lhe que
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voltaria em breve. Os olhos dela brilhavam de troça. Quis saber, numa última jogada, se a velha senhora lera as cartas e o que pensava de tudo aquilo. Qual a sua
opinião sobre o senhor Charles Robert?
"Não tenho opiniões", respondeu-me: "Existo."
O céu apagou-se antes que alcançássemos a estrada.
Alexandre acendeu os faróis. Julgo que conduzia por puro instinto. Eu via, numa vertigem, as lâminas afiadas das espinheiras, o fio de areia branca do caminho, o
abismo escuro e as estrelas, e depois tudo isto ao mesmo tempo. Estava ainda tão atordoado com o que lera que em momento algum me assustei.
"Como sabes que o caminho é este?"
"Não sei", gritou. "Vamos saber quando chegarmos." Quando chegámos dei-lhe os cinquenta reais. Dei-lhe mais cinquenta. Depois convidei-o a jantar. Expliquei-lhe
que tencionava voltar brevemente a Cachoeira e pedi-lhe para manter em segredo, tanto quanto possível, a nossa viagem a Nossa Senhora do Silêncio.
No dia seguinte, em São Paulo, contei a Kelly o que descobrira, contei-lhe tudo desde o princípio, como estou fazendo agora, a partir daquela tarde em que Pedro
Rosa Mendes sacudiu diante dos meus olhos um pequeno volume chamado "Catálogo de Sombras" e até ao momento em que pousei no joelho uma caixa cheia de papéis velhos.
Eu próprio ia descrendo do que contava.Numa das caixas, disse, havia várias cartas assinadas por Aleister Crowley,
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o mago inglês que visitou Fernando Pessoa em Lisboa, no Verão de 1930; essa visita terminou, como se sabe, de forma bizarra, com Fernando Pessoa e alguns amigos
a encenarem o suicídio de Crowley - este, asseguravam, lançara-se à Boca do Inferno, em Cascais. Numa carta endereçada a Charles Robert Anon, e datada de Dezembro
de 1936, Aleister Crowley recorda o episódio, tratando-o como uma anedota, troçando da polícia portuguesa e dos agentes da Scotland Yard enviados a Portugal para
resolver o mistério. "Foi uma morte ridícula", admite. E escreve, logo a seguir: "Já a sua, de tão prosaica, resultou muito mais convincente; resultou, sobretudo,
conveniente." A terminar, antes de se despedir, pede a Anon que lhe envie com urgência "algumas libras". Numa outra carta, duas semanas depois, volta a pedir dinheiro,
acrescentando ter gasto mais do que supunha com os documentos ingleses que enviara para Lisboa.
Kelly riu-se, desconfiada, como eu me rira ao ver pela primeira vez um exemplar do "Catálogo de Sombras". Viu-me tão sério, porém, que se assustou. Em Janeiro de
2002 aceitou ir comigo a Salvador. Fornos preparados, com uma boa máquina digital, capaz de fotografar documentos, e um gravador de qualidade. Na Pousada do Carmo,
em Cachoeira, ninguém sabia de Alexandre. Como já acontecera antes foi ele quem nos encontrou. Apareceu na pousada, no café da manhã, dois dias após a nossa chegada:
"Você chegou tarde, velho, Dona Inácia já se foi."
Foi?
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"É! Desencarnou. Ela pediu para lhe entregar isto." Abriu uma pasta de couro e tirou a fotografia de Charles Robert Anon, num jardim, com um livro aberto entre as
mãos. Nas costas da fotografia, a mesma que eu vira antes, em Nossa Senhora do Silêncio, alguém escrevera a lápis numa caligrafia infantil: "Pai Dionísio."
Sacudi a cabeça, perplexo: "Pai Dionísio?!"
"Eu era menino, mas lembro dele, sim, esteve aqui várias vezes. Nós temos em Cachoeira os terreiros de candomblé mais antigos do Brasil."
Encolhi os ombros. E daí?
"Pai Dionísio, o senhor não sabe?, foi um grande médium. Ele começou por vir aqui, ao Centro Espírito, e depois se interessou pelo candomblé e pela macumba. Virou
pai de santo. Depois morreu e virou uma entidade. Conheço até um ponto de macumba ... "
Pontos de macumba são canções de exaltação e evocação de entidades. Alexandre ergueu a voz de falsete:
"Lá vem Pai Dionísio
Lá vem, lá vem
com suas quatro sombras
abrindo o caminho:
Caciro, Seu Álvaro, Reisinho e Pessoa.
Lá vem pai Dionísio, Oh gente!,
Preparem o vinho,
A enção, padrinho
Oh gente boa!"

Kelly começou a rir. Dessa vez eu ri-me com ela.
Ri-me às gargalhadas, em convulsão, até que as lágrimas me saltaram dos olhos, e continuei a rir, sem conseguir controlar-me, enquanto Alexandre sacudia a cabeça:
"Não sei, não", disse: "Acho que Exu anda por perto."
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A CASA SECRETA

(Vila da Barra do Rio Grande, Brasil, Março de 1995)

Levantei os olhos para ver o rio, fechei-os, um instante, atordoado pelo liso esplendor das águas, e o livro caiu-me das mãos. Quando os reabri encontrei o velho
pousado à minha frente.
"'Os Lusíadas"?" - devolveu-me o volume. - "Somos sem dúvida o eco de outras vozes."
Não o saberia desenhar. Esqueci-me entretanto da forma do seu rosto, se usava barba ou bigode, se tinha o nariz afilado, ou, pelo contrário, largo, a boca húmida,
ou, antes, severa e seca. Não me recordo. Lembro-me, porém, dos olhos. Se o reencontrasse agora, numa rua agitada de Lisboa, seria capaz de o reconhecer só pelos
olhos. Aliás, só o poderia reconhecer pelos olhos, pelo claro e trocista brilho dos olhos.
Contou-me que o avô, o pai do pai, fora amigo de Richard Burton. Não do actor, é claro, referia-se a Richard Francis Burton, o grande viajante inglês, um dos primeiros
europeus a visitar a cidade santa de Meca, e o primeiro, sem dúvida, a contemplar o Lago Tanganica. Richard Burton desceu o rio São Francisco, em 1869, uma bela
aventura, descrita com muitos
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pormenores (talvez até com um excesso de pormenores) em "Viagem de canoa, de Sabará ao Oceano Atlântico". Foi naquele mesmo cais, numa tarde idêntica, que o seu
avô o conhecera. O aventureiro lia Camões. Mais tarde traduziria "Os Lusíadas", não para o inglês moderno, o que lhe parecia tarefa ingénua, mas sim para o idioma
que se falava em Inglaterra no tempo de Luís de Camões.
O velho estendeu-me a mão. Apresentou-se - Domingos da Paixão Neto. Tinha uns olhos profundos, cor de mel, que faiscavam como faróis na tarde morna. "Sabe o que
levou Burton a interessar-se pel' 'Os Lusíadas?' "
Eu não sabia.


(Malindi, Quénia, Junho de 2002)

Encontrei Joseph Mendo, no Parque dos Répteis, com um pequeno crocodilo bem seguro entre as mãos. "Pegue! Pegue!", insistia, aproximando o animal do rosto de uma
mulher muito ruiva, a pele coberta de sardas, que recusava, recuando, aos gritos e risos e rápidas exclamações de horror, enquanto as amigas, um par de gémeas tão
altas quanto ela, mas loiras, de um loiro flamante, repetiam em coro com o queniano:
"Pega! Pega!"
O crocodilo parecia envergonhado com o triste espectáculo a que o sujeitavam. Suponho que o forçavam
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àquilo todos os dias, ou que o tivessem atordoado, antes, com três boas pauladas. O certo é que se limitava a abanar molemente a cauda, sem energia nem revolta.
Deixei que as turistas se afastassem e fui falar com Joseph Mendo. Imaginara-o a cercar-me com perguntas. Sombrio, esquivo, um rio turvo em meio ao nevoeiro. Julguei
que procurasse negar com vigor a minha presunção:
"Banda kwa Mreno? Não, não, bwana, nunca ouvi falar!"
A Banda kwa Mreno (Casa Portuguesa, em Swahili) fora o motivo que me trouxera até ali. Aconteceu o contrário: Joseph Mendo sorriu. Abriu um riso largo, de dentes
magníficos, e abraçou-me:
"Está a falar com a pessoa certa."
Usava um bigode estreito, uma fina linha desenhada sobre o lábio, à maneira de Clark Gable e isso, não sei porquê, tornava-o ainda mais simpático. Nessa noite jantei
em casa dele, uma vivenda modesta, com telhado de zinco, sala e quarto, num bairro desmazelado de Malindi. Victória, a mulher de Joseph, era uma senhora gorda e
luzidia, que caminhava como se flutuasse, e falava como se suspirasse. Parecia um balão, redonda, e todavia mais leve do que o ar.
Depois que terminámos o jantar, assim que Victória recolheu as chávenas do chá, Joseph Mendo levou-me ao quarto. Abriu um enorme armário e tirou, da gaveta superior,
um gibão de cetim, muito gasto, que me colocou nas mãos.
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A seguir ajoelhou-se e retirou, de sob a cama, um volume comprido embrulhado num lençol. Quando o desembrulhou vi que era uma espada.
"Lê!", ordenou-me apontando a lâmina. À luz desmaiada da única lâmpada do quarto inclinei-me sobre ela, como por sobre as sombras da História, e decifrei, com esforço,
por entre a ferrugem demorada e a persistente ruína dos séculos, um nome antigo - Diogo Mendes.


(Vila da Barra do Rio Grande, Brasil, Março de 1995)

A luz já quase se dissipara, engolida pelas águas, e o que havia agora era um torpor cálido, um rumor vegetal, borboletas escuras adejando entre as largas sombras.
O voo furtivo dos morcegos.
"Em Portugal ainda lêem 'Os Lusíadas'?"
Disse-lhe que os jovens portugueses eram forçados a ler "Os Lusíadas" no liceu. Isso explica porque muitos não o leram nunca. Domingos da Paixão Neto suspirou resignado:
"Deviam proibi-lo", disse: "Se o proibissem seria um sucesso."
Contou-me que comprara duas grandes fazendas, ali perto, na margem direita do rio, e que plantava maconha entre pés de mandioca. A melhor maconha do Brasil. Rezava
todos os dias a São Judas Tadeu, padroeiro das causas impossíveis, pedindo-lhe força para lutar contra os ecologistas, os hippies e toda a múltipla malandragem insensata
que defende a legalização das drogas leves:
"Bom é o interdito. Adão e Eva viviam num paraíso tropical. Certamente tinham boas mangas, abacaxis, papaias, goiabas, maracujás, talvez até graviolas. Porque iriam
se interessar por maçãs - esse frutinho insípido? Apenas porque lhes fora proibido."
Pousou em mim o alegre brilho dos olhos:
"Foi na África", disse. "Foi lá no Quénia, na costa oriental da África, que Burton começou-se a interessar pela aventura marítima dos portugueses - e pel' 'Os Lusíadas',
está claro. Venha até minha casa. Vou mostrar-lhe uma carta que Burton escreveu ao meu avô."


(Fragmentos de uma carta de Richard Francis Burton a Domingos da Paixão, escrita em Damasco, em Fevereiro de 1869)

"Disseram-me que havia portugueses na ilha. Quis conhecê-los. Levaram-me a um homem, negro como os demais, de nome Peter Mendo, que me confidenciou, sem que lhe
tremesse a voz, ser descendente de um marinheiro de Vasco da Gama - um lançado. Ri-me com gosto na cara dele."
"Os, assim chamados, portugueses de Melinde, ou Malindi, vivem da pesca e alguns, poucos, do comércio de copra.
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São de estatura baixa, enxutos de carnes, propensos ao álcool e à fantasia, e, de uma forma geral, desprezados pelos outros povos. Ao contrário da maioria dos habitantes
da costa, os quais seguem a doutrina de Maomé, os portugueses de Melinde, afirmam-se cristãos - esdrúxulo cristianismo este, que une a sagrada cruz de Cristo a primitivas
e grosseiras evocações animistas."


(Malindi, Quénia, Junho de 2002)

Reencontrei Joseph Mendo dois dias mais tarde (era um sábado) na oficina de um dos primos. Levaram-me os dois, de carro, até uma escola primária. Esperavam-nos ali,
na sala de aulas, toda a família, ou pelo menos uma boa parte, uns trinta homens e mulheres, eles de calças negras e camisa branca, refulgente, elas em panos escuros,
com pesados lenços cobrindo as cabeças.
Tinham encostado as cadeiras ao longo das paredes.
No topo da sala, sobre a mesa da professora, brilhava a espada de Diogo Mendes.
Após o ritual dos cumprimentos, com demorados abraços, perguntas, gargalhadas, ofereceram-me uma cadeira. O grupo organizou-se como um coral, as mulheres à direita
e os homens à esquerda. Dois dos homens, à frente, carregavam compridos batuques artes anais, feitos de pele de antílope bem esticada. Um outro trazia
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uma flauta de bisel. Foi este quem deu início à cerimônia, soprando uma melodia aérea, levemente árabe, à qual, ao fim de dois minutos, se juntaram os batuques,
primeiro num sussurro, depois cada vez mais rápidos, num galope urgente, e então um dos homens irrompeu a cantar, numa poderosa voz de tenor, arrastando o coral.
Levei alguns minutos para compreender, em sobressalto, que cantavam em português, ou melhor, num idioma em ruínas que, séculos antes, havia sido o nosso. Levei bastante
mais tempo, quatro a cinco dias, para compreender que aquilo que eles cantavam eram fragmentos de um diário - o testemunho de um marinheiro que Vasco da Gama deixou
em Melinde, um lançado, e que por ali ficou fazendo filhos. Ao que parece, muitos filhos.

O diário de Diogo Mendes.

(Fragmentos do diário de Diogo Mendes - um exercício de arqueologia oral)

Sobre as mulheres de Melinde:
"Têm as donas de Melinde escuras frontes, e os crespos cabelos tão bem apartados em trabalhosas tranças e tão lustrosos e vivos, que de os olhar nunca me canso.
As tetas soltas no ar, e altas, mui animosas, contas ao pescoço, e um fino cendal cobrindo mal o que a vergonha entre nós ocultar ordena.
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São elas, Senhor, a minha perdição."

Sobre as festas populares:
"Muito folga o gentio destas terras! Muito cantam e bailam e se de início o ouvido se me revoltava, sujeito ao rude estrondo de tantos tambores e atabaques, agora
me cativa o dito som, e também eu já bailando vou, seguindo a turba."

Sobre as habitações do gentio:
"Não têm portas, nem outra segurança, as casas dos negros, e são todavia mui seguras, pois não entram eles nelas a roubar, como entre nós é vício. E tanto afrontam
as mais frias cerrações e os mais duros chuveiros, mantendo o fervor, quanto a bruteza deste grande sol que aqui há, permanecendo sempre frescas e deleitosas."


Julgo que os descendentes de Diogo Mendes decidiram transformar em canções o diário do avô português, transmitindo-o depois, nesse formato, de geração em geração,
como forma de melhor o preservarem. Pouco a pouco, porém, à medida que se iam esquecendo do sentido das palavras, passaram a atribuir-lhes propriedades mágicas.
Joseph Mendo explicou-me que cada canção, cada fragmento do diário, cumpre (cumpria) um diferente propósito. Uma servia para esconjurar espíritos maléficos; com
outra atraia-se a fortuna.
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Com esta evitava-se o paludismo, com aquela combatia-se a tristeza. Assim, por exemplo, a Canção da Lua, na realidade um fragmento do diário no qual Diogo Mendes
exalta a beleza das mulheres de Melinde e o seu talento para os brinquedos do amor, era cantada nas noites de lua cheia às adolescentes recém-menstruadas, acreditando-se
que dessa forma se asseguraria a sua fertilidade.
Hoje tudo isto caiu em desuso. Fui, receio, a última pessoa a ouvir a voz longínqua de Diogo Mendes. Ou não - quiçá a música seja, realmente, folha mais firme do
que o ferro de uma espada.
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O HOMEM DA LUZ

Para o Miguel Petchkovsky e Paula Tavares

Nicolau Alicerces Peshkov tinha uma cabeça enorme, ou talvez o corpo fosse mirrado para ela, o certo é que parecia colocada por engano num físico alheio. O cabelo,
o que restava, era daninho e ruivo e o rosto coberto de sardas. O nome improvável, a fisionomia ainda mais extraordinária, tudo isso se devia à passagem pelas terras
altas do Huambo de um russo extraviado, um russo branco, que nos seus delírios alcoólicos se vangloriava de ter servido Nicolau II como oficial de cavalaria. Além
do nome e das sardas Nicolau Alicerces Peshkov herdara do pai a paixão pelo cinema e uma velha máquina de projectar. Foi precisamente o nome, as sardas, a máquina
de projectar, digamos pois, a herança russa, que quase o levou a enfrentar um pelotão de fuzilamento.
Antes disso havia passado dois dias e uma noite escondido dentro de uma caixa de peixe seco. Acordara sobressaltado com o latido dos tiros. Não sabia onde estava.
Isso acontecia-lhe sempre. Sentou-se na cama e procurou lembrar-se, enquanto o tiroteio crescia lá fora: chegara ao entardecer, pedalando na sua velha
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bicicleta, alugara um quarto na pensão de um português, despedira o miúdo James, que tinha família na vila, e fora-se deitar. O quarto era pequeno. Uma cama de ferro
com uma tábua por cima e sem colchão. Um lençol, limpo mas muito usado, puído, a cobrir a tábua. Um penico de esmalte. Nas paredes alguém pintara um anjo azul. Era
um bom desenho, aquele. O anjo olhava-o de frente, olhava para alguma coisa que não estava ali, com o mesmo alheamento luminoso e sem esperança de Marlene Dietrich.
Nicolau Alicerces Peshkov, a quem os mucubais chamavam o Homem da Luz, abriu a janela do seu quarto para se inteirar das razões da guerra. Espreitou para fora e
viu que ao longo de toda a rua se agitava uma turba armada, militares alguns, a maioria jovens civis com fitinhas vermelhas amarradas na cabeça. Um dos jovens apontou-o
aos gritos e logo outro fez fogo na sua direcção. Nicolau ainda não sabia que guerra era aquela mas compreendeu que, qualquer que fosse, estava do lado errado -
ele era o índio, ali, e não tinha sequer um javite (machadinha) para se defender. Saiu do quarto, em cuecas, entrou pela cozinha, abriu uma porta e encontrou um
quintalão estreito, fechado ao fundo por um alto muro de adobe. Conseguiu saltar o muro, trepando por uma mangueira esquálida, que crescia ao lado, e achou-se num
outro quintal, este mais ancho, mais desamparado, junto a uma barraca de pau a pique que parecia servir de arrecadação.
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Pensou em James Dean. O que faria o garoto naquela situação? Certamente saberia o que fazer, James era um especialista em fugas. Viu um tanque de lavar roupa, com
água até cima, coberto por uma lona. James Dean entraria para dentro do tanque, e ficaria ali, o tempo que fosse necessário, à espera que lhe nascessem escamas.
Ele, porém, não cabia naquela prisão. O corpo até se encaixava mas não a cabeça. Estava neste desespero, podia ouvir a turba a aproximar-se, quando deu com a caixa
de peixe. O cheiro era pavoroso, um odor forte a mares putrefactos, mas tinha o espaço exacto para um homem agachado. Assim meteu-se dentro da caixa e aguardou.
Espreitando por uma fresta viu chegar a malta das fitinhas. Arrastavam pelo pescoço, empurravam, faziam avançar a pontapé e à coronhada, cinco pobres tipos cuja
única culpa, aparentemente, era falarem umbundo. Deitaram os homens de costas e recomeçaram a bater-lhes, com as armas, com os cintos, com grossos paus, gritando
que aquilo era apenas o matabicho. Uma mulher apareceu pouco depois segurando uma pistola, afastou os agressores com um simples olhar, encostou a arma à nuca de
um dos desgraçados e disparou. A seguir fez o mesmo com os outros quatro. Trouxeram depois dois rapazes e quatro senhoras, uma delas com um filho pequeno às costas,
todos chorando e lamentando-se muito. Ao verem os cadáveres, a gritaria aumentou. Um dos soldados destravou a arma: "Quem chorar os mortos morre também."
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Os outros começaram a espancar o grupo, não poupando sequer a criança, ao mesmo tempo que um sujeito com uma câmara de filmar dançava em redor.
Nicolau Alicerces Peshkov afastou o rosto da fresta e fechou os olhos. Não lhe valeu de nada: mesmo com os olhos fechados viu dois dos jovens com fitinhas violarem
uma das senhoras; viu-os matarem a criança, à coronhada, e o resto do grupo a tiro e pontapés.
Saiu da caixa ao entardecer do dia seguinte. Estava tão exausto, era tal o tumulto no seu peito franzino, que não se apercebeu do militar, ali mesmo, sentado junto
à caixa, vigiando os cadáveres. O homem olhou-o surpreso, alegre como um garoto que tivesse acabado de achar um brinde dentro de um bolo-rei, e conduziu-o pela mão
ao quartel da polícia. À entrada um homem muito alto, magro, de barba cerrada, parecia esperar por eles. Levaram-no até uma sala sem janelas, fizeram-no sentar-se
numa cadeira. O homem alto perguntou-lhe
o nome.
"Peshkovr Nicolau Peshkov?! O camarada é russo?
Calha bem. Eu estudei em Moscovo, na Lubianka, falo russo melhor do que português."
E desatou numa algaraviada hermética que pareceu divertir toda a gente. Nicolau Peshkov riu-se também, vendo os outros rir, mas apenas por uma questão de cortesia,
porque o que realmente lhe fazia falta era chorar.
O homem alto ficou bruscamente sério. Apontou para uma maleta de couro sobre a sua secretária:
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"Conhece isto?"
Nicolau Peshkov reconheceu a mala onde guardava o projector e os filmes. Explicou quem era. Há quarenta anos que percorria o país com aquela máquina. Orgulhava-se
de ter levado a sétima arte aos desvãos mais longínquos de Angola -lugares esquecidos pelo resto do mundo. Na época colonial viajava de comboio. Benguela, Ganda,
Chianga, Lépi, Catchiungo, Chinguar, Cutato, Catabola, Camacupa, Munhango, Luena. Onde o comboio parava ele saía. Estendia a tela, colocava o projector sobre o tripé,
armava meia dúzia de cadeiras de lona para os notáveis da vila. O povo, esse, vinha de muito longe, dos sertões em redor, de lugares com nomes secretos, inclusive
de lugares sem nome algum. Ofereciam-lhe cabras, galinhas, ovos, carne de caça. Sentavam-se do outro lado da tela, contra a luz do projector, e viam o filme pelo
avesso.
A guerra após a independência destruiu o caminho-de-ferro e ele ficou amarrado às cercanias das grandes cidades. Perdeu em pouco tempo tudo quanto havia conseguido
nos vinte anos anteriores. Fixou-se no Sul. Viajava de bicicleta, com o seu ajudante, o jovem James Dean, entre o Lubango e a Humpata, entre a Huíla e a Chibia.
Por vezes arriscava descer a Mossâmedes. Talvez Porto Alexandre. Baía dos Tigres. Não saía dali. Levava um lençol branco, prendia-o à parede de uma cubata, qualquer
parede servia, preparava o projector e passava o filme. James Dean pedalava a sessão inteira para produzir a electricidade. Numa noite serena, sem lua, não havia
melhor sala de cinema.
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O homem alto ouviu-o com interesse. Tomou notas. "Pode provar que é efectivamente o cidadão que pretende ser?"
Provar? Nicolau Peshkov tirou do bolso da camisa um papel amarelado e desdobrou-o cuidadosamente. Era um recorte do Jornal de Angola. Uma entrevista publicada cinco
anos antes: O Último Herói do Cinema. Na fotografia, a preto e branco, Nicolau AIicerces Peshkov posava ao lado da sua bicicleta, as mãos no guiador, a enorme cabeça
ligeiramente fora de foco.
O homem alto agarrou no recorte, voltou-o, e começou a ler um artigo qualquer sobre a importação de farinha de bombó. "Não é esse, chefe, não é esse", gemeu Nicolau
Peshkov, "leia por favor a reportagem que está do outro lado. Veja a fotografia. Sou eu." O homem alto olhou-o com desdém:
"Camarada Peshkov, você, um sujeito que ignora a língua paterna, é você que me diz o que devo ou não devo ler?!"
Leu o artigo até ao fim. Até ao fim, não, porque o artigo estava cortado a meio.
"Onde está o resto desse artigo?" Nicolau Alicerces Peshkov falou devagar:
"Chefe, não é esse o artigo. O artigo que interessa, através do qual posso provar que sou de facto a minha própria pessoa, esse artigo está do outro lado."
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O homem alto perdeu a paciência:
"Porra! Pensas que aqui somos todos burros?! Estou a perguntar onde está o resto deste artigo. Se você não responder eu lhe mando fuzilar por ocultar informação.
Vou contar até dez."
Talvez ele não saiba contar até dez - pensou Nicolau Peshkov. Infelizmente sabia. Contou até dez, pausadamente, e depois girou a cadeira e ficou um longo momento
a olhar a parede. Voltou-se, abriu a maleta que estava sobre a secretária e retirou o projector.
"Mostra-nos lá o filme, fantoche. Quero saber o que andaste a filmar. Objectivos militares, está-se mesmo a ver."
Nicolau Peshkov pediu um lençol limpo, um martelo e pregos. Esticou o lençol e pregou-o à parede. Montou o projector sobre uma cadeira. Não disse nada. Tinha aprendido
muito nas últimas horas. O filme era, de alguma forma, obra sua. O trabalho de uma vida. Montara-o, quase fotograma a fotograma, recorrendo ao que sobrara dos filmes
do pai. Pediu que apagassem a luz. Um dos soldados subiu para um banco e desenroscou com cuidado a lâmpada do tecto.
Peshkov ligou a máquina à corrente e uma luz puríssima caiu sobre o lençol. Na primeira cena via-se uma família a ser atacada por pássaros dentro da sua própria
casa. O episódio impressionou muito os assistentes (impressionava sempre). O homem alto falou por todos: "Já viram?! Passarinhos tipo mabecos." A seguir apareceu
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um velho empoleirado sobre um telhado a tocar violino. "É para enxotar os pássaros", concluiu um dos guardas, "esse cota é feiticeiro." Viu-se ainda um caubói a
beijar a namorada em frente a uma cascata. Finalmente um homem de olhos tristes, chapéu na cabeça, despediu-se de um casal num aeroporto. Quando o casal embarcou
apareceu um outro sujeito com uma pistola, mas o tipo do chapéu foi mais rápido e deu-lhe um tiro. O casal devia estar ainda a fugir dos pássaros. The End.
A luz do projector tremeu, apagou-se, e fez-se um grande silêncio. Finalmente o homem alto levantou-se, subiu para o banco, e voltou a enroscar a lâmpada da sala.
Suspirou.
"Você pode ir Peshkov, Desapareça. O filme fica." Nicolau Alicerces Peshkov saiu para a rua. Uma lua imensa brilhava sobre o mar. Puxou um pente do bolso traseiro
das calças e alisou com ele os seus últimos cabelos ruivos. Endireitou as costas e foi à procura de James Dean. O miúdo saberia o que fazer.
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DISCURSO SOBRE O FULGOR DA LÍNGUA

O Velho Firmino rondava-nos vagamente por ali, sempre absorto, extraviado, soprando no ar ensopado misteriosas ladainhas. Eu via-o descer as escadas tropeçando em
aliterações:

"E fia, fluente, [rouxa claridade
Flutua como as brumas de um letargo."

Uma espécie de escuridão escapava-se dele, como de um abismo, enquanto declamava Cruz e Sousa:

" Vozes veladas, veludosas vozes,
volúpias dos violões, vozes veladas
vagam nos velhos vórtices velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas."

A Fernando Pessoa, esse, amava-o ainda com maior fervor. A ele e a toda a sua legião de heterónimos. Rezava-os:

"Mas em torno à tarde se entorna
A atordoar o ar que arde
Que a eterna tarde já não torna!
E em tom de atoarda todo o alarde
Do adornado ardor transtorna
No ar de torpor da tarda tarde"
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Eu deixava-me afundar no ar de torpor da tarda tarde. Estendia-me numa das redes e logo caía num sonho rápido, em algum lugar ainda mais a Sul, entre torrentes de
água fria, sob um céu nu e metálico, nalguma praia de veludo refrescada pela brisa salgada do mar. Despertava minutos mais tarde, encharcado em suor, louco de sede,
sufocado por aquele ar de ácaros, saía pela porta aos tropeções, cruzava a rua, e desfalecia de bruços no balcão do bar em frente, implorando pelo amor de Deus uma
cerveja estupidamente gelada.
Chegara ali como um náufrago, de mochila às costas, e logo me fascinara o improvável alfarrabista, ou sebo, nome mais comum no Brasil, ocupando por inteiro os dois
andares de um fatigado casarão colonial. Se eu fosse alfarrabista teria imenso trabalho para organizar a minha loja de forma a que parecesse naturalmente desorganizada.
Um alfarrabista organizado, metódico, sugere-me algo vagamente monstruoso, capaz de ofender a ordem natural das coisas, um pouco como um lagarto com duas cabeças,
um advogado ingénuo, um general pacifista. A maioria das pessoas que frequentam alfarrabistas gostam de pensar que caminham entre o caos, e que em meio àquele grave
e silencioso tumulto podem, de repente, tropeçar na primeira edição d' Os Lusíadas, ao preço de um romance de Paulo Coelho.
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Houve um tempo, romântico, em que essas coisas podiam realmente acontecer. Um tempo em que os alfarrabistas ainda respeitavam a desordem. Os novos profissionais
desta área são, desgraçadamente, muito bem informados e ainda mais bem organizados. No sebo do Velho Firmino Carrapato, porém, a desordem era legítima e muito antiga.
Três gerações de Carrapatos haviam contribuído com o seu demorado labor para aquele esplêndido caos. Os livros multiplicavam-se, empilhados pelo chão, ou desalinhados
por metros e metros de incertas estantes em alumínio, sem outra lógica que não fosse a da sua chegada ali. O Velho Firmino dispusera cinco ou seis redes amarradas
às colunas, junto às largas portadas abertas para a rua, de forma que era possível folhear os livros com alguma comodidade, rezando para que a brisa da tarde fosse
capaz de abrandar o calor, sim, mas não forte o suficiente para transformar em irremediável pó, pura poeira erudita, os papéis antigos.
Firmino gostava de mim. Estranhara ao princípio o meu sotaque - de onde vinha eu? Angola?! -, olhara-me perplexo:
"Na África?! E lá falam português? .. "
Disse-lhe que sim, que falávamos português, tal como muita gente em Moçambique, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor, e, é claro, em Portugal. Não,
isso não, contestou o velho, em Portugal não. Os portugueses já mal falam português.
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Na verdade, acrescentou, nem sequer se pode dizer que falem, isso carece de demonstração. Ele vira, meses atrás, um filme português e não compreendera uma única
palavra. Os actores emitiam uns vagos murmúrios, mantendo a boca fechada, como se fossem ventríloquos, com a diferença de que os bons ventríloquos falam pelo próprio
umbigo, ou o alheio, falam pelos cotovelos, falam inclusive pela boca fechada de um português, e sempre com relativa clareza. Argumentei, já um pouco irritado, que
isso tinha a ver com a deficiente qualidade técnica do som dos filmes portugueses, bem como, é certo, com a má dicção de alguns dos actores, e depois dei o braço
a torcer, e concordei que sim, que os filmes portugueses deviam ser exibidos com legendas, não apenas no Brasil mas também em Portugal. Estávamos nisto quando, sereno
como um milagre, entrou na loja um português. Era um homem franzino, e no entanto sólido e elegante, com o crânio rapado, uma barbicha rala, bem desenhada, uns óculos
de aros redondos, em prata, que deviam ser herança de algum remoto antepassado.
"Boa tarde! Posso entrar?"
Também ele falava sem abrir a boca, mas parecia simpático, de forma que o chamei, apresentei-lhe o alfarrabista, e em breves palavras dei-lhe conta da nossa querela.
Um pequeno clarão iluminou os óculos do português e ele sorriu. A questão recordava-lhe uma tese que Agostinho da Silva defendera.
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Talvez a tese de Agostinho nos parecesse um tanto bizarra e sem suporte científico - mas era poética. Disse isto e ficou muito sério:
"A poesia acerta mais do que a ciência. Na natureza, por exemplo, a beleza é utilitária, isto é, não existe no universo fulgor sem serventia. Se os cientistas fossem
à procura da beleza ao invés da funcionalidade chegariam mais depressa à funcionalidade."
Segundo Agostinho da Silva as línguas afeiçoam-se às geografias que colonizam. Num horizonte amplo, desafogado, o sotaque é mais aberto, e numa paisagem fechada
ele tende a fechar-se. Assim, no Brasil, em Angola ou em Moçambique as pessoas falam a nossa língua abrindo mais as vogais, e nos Açores, na Madeira, em Portugal
continental, mas também em Cabo Verde, fecham-nas.
Foi assim, através da poesia, que o português conquistou o árduo coração de Firmino Carrapato. Naquela tarde fossou tranquilamente pelos salões, sem pressa, não
hesitando em desfazer e refazer as pilhas poeirentas. Quando a luz já começava a declinar chamou o velho. Firmino foi estudando com vagar os livros que o português
escolhera. Lia alto o título, via o estado da lombada, sopesava-os. Um deles, um grossos volume ricamente encadernado, pareceu intrigá-lo:
"Discurso sobre o Fulgor da Língua? Foi um doutor daqui, do Maranhão, que escreveu isso, mas nunca ninguém o leu. Tem a certeza que quer levar?"
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O português assentiu com a cabeça. O velho murmurou qualquer coisa (pareceu-me reconhecer um verso de Pessoa) e depois encolheu os ombros:
"Tá bom. Esse eu ofereço ... "
Uma semana depois dei com o português sentado num bar de rastafáris. Estava feliz como um rio. Antes que eu lhe perguntasse alguma coisa mostrou-me um papel:
"Quem achar este bilhete queira por favor dirigir-se ao meu advogado, em São Luís do Maranhão, com o exemplar do livro onde o encontrou." Vinha depois o nome e o
endereço do advogado.
O português sorriu:
"Você não vai acreditar: herdei um casarão em Alcântara!"
O bilhete fora escrito pelo autor do grosso volume que o Velho Firmino lhe oferecera. O infeliz falecera anos atrás, desiludido com a desatenção do mundo, mas não
sem antes ter redigido um testamento em que doava o palacete da família a quem quer que provasse ter comprado e lido o seu único livro. O português exultou:
"E sabe uma coisa? O livro é bom!"
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A BlGGER SPLASH

Tomás não sabe fingir. Baixou os olhos, afundou os olhos nos papéis. Tirou o estetoscópio do pescoço, sem olhar para mim, e arrumou-o cuidadosamente numa gaveta.
Vai dizer que lamenta muito, pensei, vai dizer que lhe faltam as palavras. Lembrei-me da tarde em que nos tornámos irmãos de sangue, ferindo os pulsos com um canivete
e atando-os depois um contra o outro, com um lenço, como os índios nos filmes. Eu era Apache; ele caubói. Ia perguntar-lhe se continuava a gostar de caubóis, mas
então Tomás sacudiu a cabeça horrorizado:
"Lamento muito ... "
Foi nesse instante que perdi o medo. Acho que alguma coisa na minha alma mudou de estado. O gelo espesso da angústia dissolveu-se de um só golpe, como chamaria uma
cozinheira a isto, ponto de pérola? Ponto de rebuçado?, um duro nó de espinhos que se desatasse. Fez-se em mim um grande sossego, provavelmente até sorri; perguntei-lhe:
"Quanto tempo?"
Tomás ergueu os olhos e viu um menino com penas na cabeça. Nós, a pedalarmos junto ao rio, um Apache e um caubói, irmãos de sangue. Talvez me tenha visto
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a atravessar as ondas, agarrado à prancha, na tarde em que o salvei. Eu a dançar com Júlia - "Quem é o anjo?" - e os três abraçados, poucos meses depois, no casamento
deles. Fui o padrinho dos gémeos. Creio que viu tudo isto, num fulgor, como eu próprio vi, porque levou as mãos ao rosto e ficou assim por um largo momento. Achei
que seria ridículo tentar consolá-lo. Deixei-me estar, calado, a olhar o céu lá fora. Finalmente ele limpou os olhos à manga da camisa, como se tivesse voltado a
ser rapaz, e disse-me:
"Nove meses. Tens no máximo nove meses. Podes viver seis, sete, com algum conforto. Os últimos vão ser difíceis."
Agora sei tudo sobre a minha morte. Saio para o sol e alegro-me porque está um dia quente de Verão e o céu brilha. Esta tarde não vou à galeria. Compro a biografia
de Bruce Chatwin, do Nicholas Shakespeare, e leio-a na praia. Já é noite quando entro em casa. Vera Regina acha-me um ar estranho. Palavras dela:
"Estás com um ar estranho."
Não me pergunta nada. Tenho em casa, na parede da sala de visitas, uma cópia em tamanho real de A Bigger Splash, 243,8 cm por 243,8 em, que David Hockney pintou
em 1967. Pago a um jovem artista para me fazer cópias exactas das minhas obras preferidas. Os meus amigos acham isso de muito mau gosto. Tomás, por exemplo, costuma
cuspir numa tela de Edward Hopper - ou melhor, no caso, do Lúcio Falaz, é esse o nome
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do jovem falsário -, Rooms by the Sea, que mandei colocar no escritório:
"Acho mais honestas as flores de plástico."
Eu também não gosto de flores de plástico - porque não são flores. Um óleo sobre tela, porém, é um óleo sobre tela. Uma aguarela é uma aguarela. Se eu fosse muito
rico comprava os originais. Se eu fosse pobre não comprava pósteres. Os pósteres, sim, são flores de plástico. Sento-me em frente de A Bigger Splash, a cópia, e
demoro-me a vê-la. É uma composição simples. Uma casa, duas palmeiras, uma cadeira de lona, e, em primeiro plano, uma prancha e a piscina. Alguém acabou de saltar,
mas não se vê corpo nenhum, apenas a água em desordem. O silêncio, um súbito splash, e o silêncio de novo. Eu ainda não mergulhei de vez, penso, estou suspenso no
ar. Aquele é o meu retrato amanhã. Um pouco de água em convulsão e o peso puro do mistério no instante seguinte.
Bárbara liga-me para o telemóvel. Tem dormido mal.
Dói-lhe a cabeça. Quer saber se eu já conversei com Vera Regina e lhe contei toda a verdade, exige uma decisão minha, mas não é sobre isso que fala. Bárbara nunca
fala sobre isso. Nunca exige nada. Não pronuncia sequer o nome de Vera Regina. Queixa-se do calor, ou do frio, e da largueza das noites. Diz-me, por exemplo:
"Sou atravessada pela escuridão."
O negrume da noite atravessa-a, explica, da mesma forma que a luz atravessa os vitrais. Bárbara ama as elipses e as metáforas. Ocorre-me, numa vertigem, que
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a estou a sonhar, a ela e à voz com que me diz estas coisas. Respondo que sim a tudo, como aqueles sujeitos delicados, aos quais alguém interpela em aramaico, e
eles, para que o outro se não ofenda por desconhecerem a língua, vão com a cabeça assentindo sempre.
Deito-me e adormeço logo. Acordo a meio da noite com uma sensação de desastre eminente. Vera Regina abraça-me pelas costas. Chora baixinho.
"Meu amor, meu amor."
Tem sido assim nas últimas noites. Finjo que durmo.
Adormeço, e continuo a ouvi-la a chorar em sonhos, "meu amor, meu amor", mas na manhã seguinte, quando acordo, encontro-a refeita, apenas uma sombra leve sob os
olhos, e o forte sorriso de sempre:
"Dormiste bem?"
Penso em contar-lhe tudo. Sobre a Bárbara? Não, não, isso já ela descobriu. Durante anos fui-lhe fiel (a Vera Regina) apenas por preguiça. Hoje sou-lhe infiel pela
mesma razão. Penso, isso sim, em revelar-lhe a notícia da minha morte mas desisto de o fazer no mesmo instante. Não me assusta a morte; o que temo é a promiscuidade,
ter de a partilhar, ter de a viver com alguém até ao fim. A minha morte é um enigma íntimo.
"Fazes-me uma torrada? E um ovo, por favor, um ovo estrelado."
Despeço-me dela com um beijo. Contenho-me para não a abraçar. Digo-lhe que vou para a galeria, como faço todas as manhãs, e efectivamente sigo nessa direcção.
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Dois quarteirões adiante, porém, viro à esquerda. Em poucos segundos mergulho na desordem do trânsito. O telemóvel toca. Deixo-o tocar três vezes; depois desligo-o
sem tentar saber quem fez a chamada. Lembro-me da primeira vez que saltei sozinho de asa-delta. Não senti medo. O que experimentei foi uma espécie de arrebatamento,
um furor incontrolável - compreendi que estava sozinho.
Fui ver o Lúcio Falaz. Ele recebeu-me na cozinha. É um rapaz frágil, de uma palidez artificial, que se veste sempre de preto. Imagino que vá para a cama com um pijama
preto. Frequenta um curso de arte, à tarde, e à noite trabalha na morgue. Não se queixa:
"É muito tranquilo. Os meus clientes são pessoas calmas."
Quero que ele volte a pintar uma cópia de A Bigger Splash, idêntica em tudo ao original, mas acrescentando duas figuras:
1.º figura) Eu próprio, emergindo da água em convulsão;
2.ª figura) Vera Regina, sentada na cadeira de lona, do outro lado da piscina.
Dou-lhe uma fotografia minha, tipo passe, e outra de Vera Regina, vestida com um biquíni amarelo. Fiz essa imagem, há cinco anos, num hotel em Marrocos. Nessa época,
creio, fomos felizes. Lúcio Falaz recebe a minha proposta com um entusiasmo que me surpreende:
Cool!, suspira: "isso é pós-moderno!. .. "
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Sou galerista. Trabalho com arte. Não sei o que é o pós-modernismo. Vou para a praia ler a biografia de Bruce Chatwin. O homem que aluga as cadeiras recebe-me como
se eu fosse um cliente habitual. Arrasta uma cadeira e um guarda-sol e coloca-os a poucos metros do mar. Traz-me, sem que eu diga nada, uma garrafa de coca-cola,
porque foi isso que lhe pedi ontem. Leio durante uma hora. Depois ligo o telemóvel e disco o número de Bárbara. Digo-lhe que quero terminar tudo. Pensei muito e
concluí que a nossa relação é prejudicial a ambos. Sou inflexível. Ouço-a chorar, do outro lado, e isso aflige-me, mas não mais do que se estivesse comodamente sentado
num cinema, a ver, no ecrã, uma actriz agonizando. Desligo o telefone. Tento desenhar num pequeno caderno, que trago sempre comigo, o rosto de Bárbara mas não consigo.
Desenho facilmente o rosto de Vera Regina. Desperta-me o estrídulo do telemóvel. Grita assim quando tem mensagens. Há cinco mensagens novas. Leio a primeira:
"Houve uma troca de chapas. Tu estás bem. Liga-me." É de Tomás. A segunda também é dele. Pede que o desculpe pelo erro. A terceira e a quarta mensagens ainda são
de Tomás. "Ninguém sabe de ti, cabrão. Liga-me já ou volto a matar-te." Não vou ligar tão cedo. Vou deixá-lo cozinhar em lume brando. A quinta mensagem é de Vera
Regina:
"Amo-te."
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O céu, lá muito em cima, tem a mesma cor do mar. Brilha como uma esmeralda. Fecho os olhos, e quando os reabro é como se me debruçasse sobre um imenso abismo azul.
Vacilo, quase desmaio. Caio (acho que caio). Mergulho rapidamente em direcção à luz.


O CORPO NO CABIDE

"Por vezes, ao acordar, sinto que a minha alma não cabe no corpo."
Ela disse isto e depois calou-se, como se fosse ficar assim para sempre, como se tivesse esgotado tudo o que lhe restava para dizer até ao fim da vida. A frase,
lançada com frieza no silêncio húmido do quarto, produziu uma pequena escuridão no espírito do homem.
"o que significa isso?"
A mulher olhou-o com uma espécie de estranhamento. Ele tentou soltar-se daquele olhar. Cobriu o tronco com o lençol.
"Fiz alguma coisa que não devia?"
Momentos antes havia-a abraçado pelas costas, progredindo com cuidado, com vagar, como quem atravessa às escuras uma cidade estranha. Incomodara-o que ela não gemesse
alto. Queria ouvi-la gemer, gritar. Ela continuou:
"Sinto que o corpo me aperta a alma, sei lá, que está curto, entendes?, como se tivesse adormecido com quinze anos e acordasse aos vinte e cinco ainda com a mesma
roupa. Sinto uma grande vontade de despir este corpo e ficar com a alma exposta, inteiramente nua."
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Trazia as unhas pintadas de negro. Ele reparou nisso vagamente inquieto. Lembrou-se de quando era criança e acordava no beliche superior do seu quarto, num comboio
parado algures no interior de África, e ouvia lá fora, na escuridão à solta, os pequenos ruídos do mato. Naquelas unhas pintadas de negro havia alguma coisa de ameaça
- como nos ruídos do mato. O corpo da mulher era longo e liso, semelhante ao de um peixe, e de alguma forma igualmente impossível de aprisionar. Uma luz escura fluía
dela como de um rio ao entardecer. O homem saltou da cama. O que podia dizer?
"Não compreendo as mulheres."
Podia ter dito isto, alguma coisa deste género, mas seria demasiado óbvio. Sentou-se em silêncio, no canto mais afastado do quarto, e acendeu um cigarro. Ela sorriu:
"É assim tão difícil de entender?"
Podia ter dito, "os homens nunca entendem nada", mas seria inútil. As mulheres, na verdade, não precisam que os homens as compreendam. Basta que as ouçam. Ele sabia
disso e assim continuou calado. Ela via-o, ali, no canto do quarto, meio encoberto pelo fumo do cigarro.
"Às vezes gostaria de poder despir este corpo. Despia-o e pendurava-o num cabide, no armário, ao lado dos vestidos que nunca mais voltarei a usar. Cuidaria dele
nos domingos de chuva, de manhã, quando me afligissem as saudades destes dias. Ou talvez, simplesmente, o esquecesse. Farias amor com a minha alma nua?"
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Aborrecia-o que ela não tivesse gritado. A mulher possuía um corpo intenso e vibrante (sim, havia vibrado nos seus braços), mas ao mesmo tempo parecia tão distante
dele quanto um navio pousado na linha do horizonte. Não um navio qualquer: ele via-a como um transatlântico, uma vasta cidade de espelhos e cristais, com as suas
festas junto à piscina, os jantares no grande salão, os bailes de máscaras, os inúmeros assombros nos quais nunca conseguiria penetrar. Pensar nisto deu-lhe vontade
de chorar. Esfregou os olhos. Murmurou:
"Vou deixar de fumar."
Não viajaria jamais num transatlântico. Sentia-se em relação a ela como o pequeno peixe-pescador, um peixe dos abismos oceânicos, cujo macho se une à fêmea com tal
paixão que chega a prescindir do próprio corpo. Também ele dependia inteiramente dela. Ela, no entanto, só o achava interessante enquanto o tinha na cama. Pensou
tudo isto no breve espaço que levou a acender outro cigarro. Deixaria de fumar no primeiro dia do ano. Não voltaria a fumar.
"Responde. Farias amor com a minha alma nua?" Nos últimos meses aguardara num secreto terror por aquela pergunta. Ou melhor, se quisermos ser precisos, por uma pergunta
naquele tom de voz, não exactamente com tais e tais palavras. O tom de voz é quase sempre mais importante do que a mensagem. O homem chamava-lhe - refiro-me à pergunta
- o enigma final. A Esfinge afiava os dentes, "decifra-me ou devora-me", e o que podia ele responder-lhe?
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"O teu corpo agrada-me muito."
Seria certamente a resposta errada. Qualquer resposta seria a resposta errada. Ele envelhecera. Estava quase sábio. Compreendeu que faria melhor se continuasse calado.
Preferia fingir-se de morto, como alguns pequenos animais quando o predador os alcança. Há sempre a possibilidade de que o predador apenas se pretenda divertir com
a perseguição. Talvez ela não quisesse realmente a sua carne.
"Estou a assustar-te? Quero que te assustes, sim, gosto de te ver assustado. Agora responde: entre o meu corpo e a minha alma o que é que tu escolhias?"
Ele esmagou o cigarro no cinzeiro.
"Porque pintaste as unhas de negro?"
As lagartixas largam a cauda quando se sentem cercadas e a fuga não parece possível. Pode ser que o predador se interesse pela cauda, a qual, durante alguns segundos,
se sacode e salta como uma coisa viva e autónoma, e então consigam esgueirar-se. Ele largou a pergunta como uma lagartixa largaria a cauda. A mulher, porém, não
se deixou iludir:
"Responde!"
O homem compreendeu que estava perdido. Nos últimos meses tentara preparar-se para aquele instante. Agora, porém, agora que tudo ia realmente acontecer, sabia que
não estava preparado. Nunca estaria. Respirou fundo. Precisava de um cigarro. O seu último cigarro. Não esperaria pelo primeiro dia do ano. Fez um esforço para pensar
no mar. Num mar calmo, azul-turquesa,
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sob um grande sol de Verão. A imagem do mar costumava pacificá-lo. O que diria o peixe-pescador à respectiva fêmea se esta decidisse livrar-se dele? Podia dizer-lhe
que a amava, que já não conseguiria viver sozinho; de facto, coitado, não conseguiria. A boca do peixe-pescador funde-se à pele que recobre a fêmea; os sistemas
vasculares do macho e da fêmea unem-se e o minúsculo macho passa a depender inteiramente do sangue da fêmea para a sua sobrevivência. Transforma-se, digamos assim,
num pénis portátil.
O homem sorriu com tristeza; logo a seguir, porém, pensou que um sorriso triste era uma contradição nos termos e esforçou-se por sorrir com ironia. O novo sorriso
ficava-lhe mal, como alguém que sobre uma camisa escura, de corte clássico, colocasse uma gravata de fantasia com desenhos do Rato Mickey apunhalando a Minie (algo
assim).
"Foi um equívoco, sabias?"
Ele, o pénis portátil, fora com ela para a cama pela primeira vez, há oito meses, graças a um equívoco feliz (poderia dizer, agora, que fora um equívoco feliz?).
Não que não a desejasse; desejava-a, sim; mais do que isso, amava-a com uma paixão sem esperança. Uma noite encontrou-a num congresso e levou-a a jantar. Enquanto
consultava o menu, exausto, distraído, a pergunta saltou-lhe dos lábios:
"E depois disto, o que queres fazer? Vamos para a cama?"
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Pretendia dizer, é claro, vamos dormir, cada qual na sua cama. Ela não lhe deu, contudo, tempo para se explicar. Olhou-o de frente, com os mesmos olhos cruéis com
que o olhava agora:
"Vamos."
Ele enfiou a cabeça no menu para esconder a perturbação. O empregado afastou-se muito direito, muito depressa, e explodiu às gargalhadas na cozinha (é assim, pelo
menos, que imagina a cena). Foram para o quarto dela. Havia uma desordem de roupas sobre a cama. A mulher deixou que o vestido lhe deslizasse até aos pés e ficou
nua diante dele, bela como um abismo, a pele negra reluzindo na penumbra.
"Trazias o teu vestido verde, lembras-te?"
Ela não se queria lembrar. Vivia o presente e esquecia o passado. Fazia alarde disso. Atirou o lençol para longe e de novo o esplendor daquele corpo jovem o aterrorizou.
A fêmea do louva-a-deus assassina o macho por luxúria. Um louva-a-deus macho ao ser decapitado executa melhor e com mais vagar os movimentos espasmódicos próprios
da cópula. A fêmea corta a cabeça ao macho e devora-lhe as entranhas enquanto este se agita ansiosamente para atingir o orgasmo. Em algumas espécies, com a excitação,
a fêmea muda de cor e brilha.
A mulher levantou-se e avançou lentamente em direcção a ele. Uma escuridade acesa. Bela como um abismo. Bela como um louva-a-deus fêmea antes da cópula.
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RITA CANTAVA UMA CANÇÃO REDENTORA

Jorge chamou o empregado e pediu um galão e um bolo de arroz. Depois abriu o jornal e procurou as páginas de cultura. Havia um artigo sobre os vinte anos da morte
de Bob Marley. Lembrou-se de vinte anos antes ter lido a notícia do desaparecimento do cantor com um secreto alívio:
"36 anos! Paciência, viveu muito, já não era nenhum menino .... "
Devia ter então 16 anos. Agora tinha 36 e ainda se achava um menino. Também a mãe o achava um menino. Havia ainda a velha empregada cabo-verdiana, a Dona Luísa,
que o conhecia desde pequeno, e continuava a tratá-lo por "Menino Jorge". Mais ninguém o achava um menino. Lembrou-se com angústia do tempo em que ia à Feira Popular,
ao Palácio dos Espelhos, e do quanto ria ao ver-se ancho e luzidio como um boi afogado. Nunca foi capaz de perceber o que aquilo era realmente - uma premonição.
Os espelhos são seres premonitórios, dotados de um espírito insubmisso, como os rinocerontes, e além disso nunca se cansam. Em cada espelho surpreendia hoje, olhando-o
lá do fundo, pálido de susto, o boi afogado de outrora, e já não se ria. Primeiro mandou instalar em casa espelhos ligeiramente côncavos.
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Finalmente, fez com que retirassem todos os espelhos.
Rita dançava reggae. Tinha uma cintura tão fina que parecia impossível existirem dentro dela órgãos activos. Ao dançar requebrava os quadris, sacudia o lume dos
cabelos, erguia os braços, uma rainha de carnaval emergindo das ondas de um mar revolto. Foi ela quem começou tudo:
"Danças?"
O empregado, um velho alto e ossudo como um escadote, trouxe-lhe o galão e um pastel de nata. Olhou para Jorge devagar, sombriamente, enquanto poisava na mesa o
prato com o pastel de nata. Jorge comeu o pastel. Não, não dançava, não havia forma de acertar com o ritmo, era ele para cá e os outros para lá, num infeliz desacerto.
Tinha a certeza de que nas suas costas toda a gente troçava.
"Não consigo", confessou: "Acho que até deus se ofende se eu dançar,"
Ela riu-se: "Sou a Rita", soprou-lhe ao ouvido. "Como a Rita Hayworth." E deu-lhe um beijo no rosto. Saíram de mãos dadas para a noite. O Verão acendia estrelas.
Jorge levou-a a ver o jardim. "Reparaste?" perguntou a rapariga, "as árvores estão cheias de pássaros e de escuridão." Ele só via a escuridão. Segurou-lhe o queixo
e beijou-a na boca. Ela abriu os lábios e deixou-o entrar. Ainda agora, enquanto terminava de comer o pastel de nata, Jorge podia sentir o calor da boca dela.
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A língua dela roçando na sua. Trocaram muitos beijos depois daquele mas é daquele que ele se lembra melhor. Lembra-se do Princípio e lembra-se do Fim, um ano e meio
depois, já o Inverno devorava Lisboa. Pelo meio ficava a vida. A vida inteira. Ao resto ele não chamava vida. No Fim prendeu-lhe os pulsos. Sentiu-a estremecer.
O céu escureceu, começou a chover e nesse instante teve a certeza de que não voltaria a beijá-la. Soltou-a com um suspiro. "The End", disse ela, "como nos filmes."
E foi-se embora pisando com desdém o chão molhado. Ele sentou-se na relva, junto ao lago, e fechou os olhos. Suava. Sentia febre. A chuva picava-lhe a pele. Viver
parecia-lhe uma noite hostil.
Percebemos que estamos a envelhecer quando alguém nos dá cinco anos a menos e isso já não tem importância alguma. Aos vinte não é possível que alguém nos retire
cinco. Aos trinta pode acontecer, e se acontecer é um triunfo. Aos trinta e seis, aos quarenta, aos cinquenta, já não faz qualquer diferença. Jorge deu conta que
tinha envelhecido, e que era irreparável, quando uma jovem cliente lhe deu trinta anos, por simpatia, e isso o encorajou a perguntar:
"Posso convidá-la para jantar?"
E logo ela, num horror sem disfarce:
"Você dá-se conta de que podia ser meu pai?!" Tecnicamente podia, é verdade, mas não era ideia que lhe agradasse. O escadote aproximou-se, numa solicitude ostensiva,
e Jorge viu-lhe as costelas largas desenhadas a suor na camisa branca:
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"Deseja mais alguma coisa?"
"Sim", disse ele: "traga-me o passado por favor." Numa bandeja. Não, claro, Jorge não disse isto. Não disse nada e o homem afastou-se. Jorge pensou em Rita. Vinte
anos depois estava ali à espera dela. Rita ligara-lhe para o telemóvel nessa noite. A meio da noite. Às três horas e quarenta e cinco minutos de uma silenciosa noite
de Verão. O grito do telefone transformou-se no seu sonho num alarme contra bombardeamentos aéreos e ele correu a procurar abrigo. Encontrou o telefone, pousado
na mesa-de-cabeceira, e julgou que continuava a sonhar quando reconheceu a voz:
"Jorge, és tu Jorge? Preciso tanto de falar contigo ... " O que fazia Rita num abrigo antiaéreo, em Bagdad, enquanto os bombardeiros americanos despejavam sobre
a cidade um manto de bombas?
"O que fazes aqui?"
Rita dançava reggae. Rita disparava contra o xerife. Rita esperava em vão. Rita cantava uma canção redentora. Rita, em pé, lutava pelos seus direitos. A fina cintura
requebrando ao ritmo da música. Os longos cabelos em chamas. Os lábios abertos e a língua à espreita.
"O que faço eu aqui? como o que faço aqui?! Um amigo deu-me o teu telefone. Preciso de te ver, de falar contigo. Tenho saudades tuas."
Rita tinha saudades dele vinte anos depois. Combinaram encontrar-se às cinco da tarde na esplanada da "Brasileira". Jorge espreitou o relógio: eram cinco e meia.
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Rodou os olhos pelas mesas. Viu vários turistas alemães, estendidos nas cadeiras, em tronco nu, gozando o sol como se estivessem na praia. Viu um jovem de fato e
gravata, suando muito, discutindo ao telefone uma tragédia qualquer. Havia ainda várias mulheres, sozinhas e em grupos, gordas e tristes como focas num circo, mas
nenhuma era ruiva, nenhuma podia ser a Rita, nenhuma podia sequer ter sido a Rita (nem sequer em pensamento). Esperou mais quinze minutos. Então, ansioso, decidiu
ligar-lhe. Discou o número e no mesmo instante um outro telefone tocou na mesa em frente. Jorge, assustado, desligou e o segundo aparelho calou-se antes que a proprietária
tivesse tempo de o atender. Era uma mulher larga e vermelha, com uma cabeleira cor de enxofre, uns olhos pequenos e vorazes. Jorge chamou o escadote:
"Dê-me a conta", ordenou num sussurro. "Mas o pastel de nata eu não pago, porra', não pedi um pastel de nata ... "
A voz dele era uma lâmina encostada à garganta do garçom. O homem fez a conta, recebeu o dinheiro, deu-lhe o troco e desapareceu na penumbra do café. Jorge levantou-se,
aturdido pelo fulgor da luz de encontro às vidraças. O passado estalou atrás de si.
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O REI DO PARQUE

Outubro brilhava no parque. Eu estava sentado muito quieto, debaixo do sol, procurando prestar atenção às pequenas mudanças. Lula sorria na primeira página dos jornais.
Lembrei-me dele antes de ter mandado alisar a barba e o cabelo, antes de ter suavizado a voz e as maneiras, e da justa ira com que atacava a burguesia. Os jornais
também falavam na iminência de uma guerra. No "Titanic", o filme, percebe-se em meio ao caos, enquanto o navio se afunda num rápido estertor, que um dos passageiros
usa no pulso um moderno relógio digital. A mim, ali no parque, aquela expressão, "iminência de uma guerra", sugeria uma incoerência do mesmo tipo. Foi então que
me sobressaltou um alvoroço de asas. Ergui os olhos e vi um bando de pombos desorganizando o azul puríssimo do céu. Alguma coisa os assustara. Olhei mais atentamente
e reparei que em meio às aves esbracejava um brinquedo mecânico. O estropício soltou-se do bando, num ímpeto, e veio mansamente pousar-me aos pés. Agarrei nele.
Era uma águia de plástico. A seguir surgiu um mendigo. Um sujeito de pele encardida, a cabeleira repartida em grossas tranças, comprida barba enovelada. Vinha muito
direito. Muito seguro dos seus andrajos.
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Sentou-se ao meu lado, tirou-me o brinquedo das mãos e só então se apresentou:
"Boa tarde. Sou o Rei do Parque."
Disse aquilo numa voz grave e firme, um pouco rouca, com uma autoridade que não admitia réplica. Talvez fosse mesmo um rei. Na dúvida o mais sensato é tratar todos
os mendigos como se fossem reis. Hoje em dia, de resto, é difícil reconhecer um rei pelo porte. Pensava nisto quando vi chegar um alegre grupo de estudantes. Um
deles trazia um livro debaixo do braço. Subiu para o chafariz, mesmo diante de nós, abriu o livro ao acaso, e declamou:
"Creio que uma folha de erva não vale menos que a jornada das estrelas, que a vaca ruminando com a cabeça baixa supera qualquer estátua, e que um rato é milagre
suficiente para fazer vacilar milhões de infiéis."
Sorriu vitorioso: "Walt Whitman." Agradeceu com uma vénia ligeira os aplausos, saltou do chafariz e juntou-se aos colegas. O rei também aplaudiu.
"Existo como sou e isso me basta", disse feliz: "Se mais ninguém no mundo o sabe fico satisfeito. E se todos e cada um o sabem fico satisfeito. Há um mundo que o
sabe e é sem dúvida o mais vasto para mim, e esse sou eu próprio."
A minha incredulidade pareceu diverti-lo:
"Não reconhece os versos? Continua a ser Whitman. Lembra um pouco o nosso Fernando, eu sei, só que este é o original."
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Ficamos ambos em silêncio. Eu não me sentia preparado para discutir com um rei, em pleno parque, a poesia de Walt Whitman e Fernando Pessoa. Além disso o rei exalava
um bafo pútrido, como se estivesse morto há vários dias, o que me atordoava. Pensei em levantar-me e desaparecer, seguindo os estudantes, mas não tive coragem. Os
pombos bailavam no chafariz. O rei pegou na águia de plástico, deu-lhe corda, soltou um pequeno travão que prendia as asas, e lançou-a contra as aves. Houve um rápido
tumulto, um rodopio de penas, enquanto o monstro perseguia os pombos, perdia força, e pousava por fim, exausto, na relva próxima. O rei continuou sentado.
"Alguma coisa está para acontecer", disse num tom sombrio. "Repare nas nuvens lá atrás. Às vezes fecho os olhos e vejo a morte a descer as escadas."
Fechei os olhos e vi o tempo voando sobre as cabeças dos estudantes. Vi as nuvens descendo como negros abutres por sobre a cidade. Depois voltei a abri-los e os
meus olhos encheram-se de sol. Nada mudara. A paisagem continuava intacta. As árvores em volta respiravam num vago rumor. O Outono prolongava o Verão. A guerra esperava.
No Brasil, Lula preparava-se para vencer no segundo turno. Ele, o outro, já ficou para trás.
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DEUS PASSOU POR AQUI

A casa esperava por ele à sombra azul dos jacarandás. O silêncio refulgia na cal dos muros. Um cão ladrou ao longe e nesse momento começou a chover. Alberto entrou.
As paredes abraçaram-no. Morcegos soltaram-se das sombras. Mais tarde disse-me:
"Sempre gostei de tempestades."
Isso eu já sabia. Primeiro a chuva batuque-tuque-tocando nos telhados de zinco. Depois o rápido açoite do vento. O ar húmido, denso, carregando o perfume do capim
novo e da terra encharcada. As aves em pânico. O céu riscado de relâmpagos e o fundo ribombar dos trovões. (Etc., etc., etc.)
"Toda aquela fúria, entendes?, é como se a vida troçasse de nós."
Na sala havia apenas dois cadeirões de couro, muito gastos, que lhe trouxeram à memória súbitas imagens da infância. Tinham sido vermelhos. Um mulato muito velho
estava sentado num deles, junto à janela, olhando a tormenta escura que batia de encontro às vidraças. Alberto sentou-se no outro.
"Eles levaram tudo", lamentou o velho, e encolheu os ombros. "Só nos salvámos nós."
Alberto estudou-o com atenção. Procurou imaginar como teria sido o rosto dele vinte e sete anos atrás.
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Esforçou-se por reconhecer no homem os traços de alguém - um empregado, um vizinho, um parente remoto, um amigo dos pais -, com quem pudesse partilhar lembranças.
Não foi capaz. O soalho, muito limpo, contrastava com a sujidade das paredes. Rectângulos claros assinalavam o lugar onde antes, durante décadas, haviam repousado
os retratos da família. Finos túneis de barro, construídos pelas térmitas, cruzavam-se num desígnio secreto. Alguém pintara a tinta vermelha uma caveira com asas.
Por baixo estava escrito:
"Deus passou por aqui."
Alberto levantou-se e foi até à janela. O abacateiro continuava lá, no canto direito do quintal, maior do que nos seus sonhos. Enfrentava a tempestade com os grossos
braços verdes. Sabia que se galgasse por ele (não, é claro, não faria isso, nunca mais faria isso) encontraria gravada no tronco, junto à quarta ramada, uma declaração
festiva:
"Hoje fiz quinze anos."
E a data. Voltou a sentar-se. Os homens deixaram desenhos na pedra dura das cavernas. Hoje continuam, com igual ansiedade, a pintar os muros das cidades, as paredes
dos casarões em ruínas, o metal das carruagens. Fulano esteve aqui. Sicrano passou por aqui. Passam realmente, aves furtivas num céu que se apaga, e tudo em redor
os esquece. Ficam as gazelas correndo nas cavernas, os bois de longos cornos.
O velho adormecera. Fora-se a chuva e o vento sossegara. Uma luz húmida, o último fôlego da tarde, rastejava com esforço por sob as nuvens baixas.
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Alberto ouviu os grilos. Pensou em levantar-se e ver o resto da casa. Apetecia-lhe passear no quintal. Porém, não se moveu. Ali estava, de regresso às paredes da
sua infância, e de repente parecia-lhe que tudo o resto fora em vão - uma falsa partida. Saltara para a água uma fracção de segundo antes do disparo e só percebera
o engano depois de alcançar a margem oposta. Sentado à beira do crepúsculo, como no cimo de um morro, podia ver por inteiro toda a vida que não vivera, mas não se
sentia com forças para um novo salto. O velho despertou. Apontou para a inscrição na parede. Sorriu:
"Aquele fui eu."
A escuridão descia sobre o arvoredo com as suas asas macias. Alberto sentiu que caíam através da noite, ele, o velho, a casa, a fazenda, o país inteiro, como para
dentro de um poço. E então lembrou-se: João - o feitor. João de Deus. O pai entregara-lhe as chaves da casa antes de partirem.
"Toma conta disto, João. Ficas responsável por toda a fazenda. Dentro de dois ou três meses estaremos de volta."
Os morcegos giravam pela casa perseguindo minúsculos insectos. Rápidas faúlhas de sombras, fantasmas num fugaz bailado - ali só eles viam. Alberto teve a impressão
de que o velho se ria. Uma gargalhada escarninha, abafada. Porém, já não era capaz de lhe distinguir o rosto.
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SR NADA MAIS DER CERTO LEIA CLARICE

Tenho medo de ligar a televisão, como quem entra no metro à hora de ponta, e de que por descuido ou por maldade alguém me pise a inteligência: "Desculpe, sim?!,
foi sem querer." Ligo o aparelho, encolhido no meu canto, fingindo que nem estou ali, mas se por acaso os meus olhos tropeçam nalgum sujeito com aspecto de bárbaro,
saio logo. A seguir fecho os olhos e sonho um peixe. Foi um velho pescador pernambucano quem me ensinou isto. Eu estava sentado nas areias de ltamaracá, com um bloco
de papel nos joelhos, concluindo uma aguarela. Ele veio por trás e ficou um momento observando:
"Por que faz isso?", perguntou. "O mar não cabe aí!" Sentou-se ao meu lado. Disse-me que às vezes, ao acordar, lhe doía, do lado esquerdo do peito, a humanidade.
Caminhava então até à praia, estendia-se de costas na areia, e sonhava um peixe.
"Foi Clarice, sabe? Ela me iniciou."
Na altura não compreendi a quem o velho se referia.
Começou por sonhar peixes pequenos, muito rudimentares, só um veloz traço de prata, só uma ligeira vírgula refulgindo no ar, mas com o tempo, à medida que desenvolvia
a técnica, passou a sonhar garoupas, meros,
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inclusive espadartes. A ambição dele era sonhar uma baleia. Uma baleia-azul.
"Esteja atento à cor das águas", preveniu-me: "por exemplo, de manhã, bem cedinho, se o mar estiver liso e prateado, é bom para sonhar savelhas. O camarupim, que
é um peixe nosso, grande, se sonha muito bem depois que chove, e os rios anoitecem o mar. Já os xaréus são melhor sonhados quando o mar azula."
E as sereias? Ele olhou-me atónito:
"Sereias?! Servem para quê, as sereias? Sereias são bichos mal-sonhados, como os ornitorrincos ou os generais. Você há de conseguir fazer melhor,"
Venho tentando. Nunca soube o nome do pescador.
Era um sujeito alto, aprumado como um poste, de olhos acesos e uma pele sadia, bem esticada sobre os ossos. Tinha uma voz tão clara e calorosa que, à noite, enquanto
falava, era como se cuspisse pirilampos. Uma voz daquelas devia poder transmitir-se em testamento. A mim fazia-me lembrar a do Fernando Alves. Contava-se na ilha
que o velho estivera três semanas perdido no mar. Salvara-se por milagre, porque ao décimo terceiro dia Nossa Senhora Aparecida lhe apareceu no saveiro, trazendo
nas mãos um pernil de porco e uma garrafa de litro de coca-cola. Ele próprio me desmentiu o milagre, até um pouco irritado:
"Nossa Senhora Aparecida?! Qual Nossa Senhora, rapaz?! Quem me apareceu foi Clarice Lispector! ... " Em todas as estórias de pescadores há sempre exageros, por vezes
até mentiras descaradas, ou não seriam estórias de pescadores. Neste ponto, porém, sou peremptório - uso esta palavra pela primeira vez na vida; não vêem que reluz?
- ele lia! Era um grande devoto de Clarice Lispector e Alberto Caeiro. Contou-me que Clarice lhe apareceu de madrugada, trazendo nas mãos "Uma Maçã no Escuro", e
lhe leu o romance inteiro. A seguir, depois que o achou mais recomposto, ensinou-o a sonhar peixes.
"Sonhar peixes faz bem à alma. Lembre-se que por cada homem mau no mundo há no mar mil peixes bons."
O meu pescador não tinha televisão. Às vezes acontecia demorar-se num bar, ou na praça (havia uma televisão na praça), e o fragor das guerras alheias roubava-lhe
o sono. Ele sofria com os erros dos outros. Andava pela ilha com "A Hora da Estrela" debaixo do braço, tentando, sem sucesso, converter os demais. Só eu lhe dava
atenção:
"Se nada mais der certo, leia Clarice."
Uma tarde vi-o sonhar um golfinho. "Foi o meu primeiro mamífero", disse-me depois, exausto pelo esforço, "para a semana vou tentar uma orca." Nunca mais voltei a
ltamaracá, nunca mais o vi, mas calculo que por esta altura ele já tenha conseguido sonhar a sua baleia-azul. Já a deve ter lançado ao mar, cento e trinta toneladas
de puro sonho, e o canto dela há-de estar agora ressoando nas águas. Um dia as baleias virão para salvar os homens.
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FELIZMENTE CHOVIA

Chovia. Os gafanhotos caíam atordoados no quintal, primeiro um aqui, depois outro ali, sem desígnio nem força e eram imediatamente devorados pelos pássaros. Os bissondes
esquartejavam-nos vivos. Nós, as crianças, víamo-los desaparecer entre o capim alto, em filas compactas, carregando antenas e asas, olhos soltos, um tórax pulsante,
víamos como o horizonte perdia o brilho, e pressentíamos que alguma coisa ainda mais cruel estava para acontecer. O céu enchia-se de um violento alvoroço e num instante
o asfalto ficava verde, coberto por uma substância viva, ofegante, que se movia e chiava debaixo dos pneus dos carros. Ao fim da tarde já o cheiro era insuportável.
Felizmente chovia.
Os gafanhotos caiaí do céu. Os bissondes, esses, irrompiam de algum lugar secreto, ou de tudo em redor - como um prodígio. Bissondes, ou quissondes, são formigas
guerreiras. Em umbundo, em quimbundo, em quicongo, há umas doze palavras para dizer formiga. Despertávamos algures na noite, tossindo, sufocados, em meio ao fragor
da batalha. A avó, de camisa de noite, os pés nus enfiados dentro de uma bacia de água, castigava os invasores com uma bomba de DDT.
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O pai gritava ordens ásperas por entre a fumaça. Nós ríamos num assombro de crianças. Adormecíamos, sonhávamos com as formigas, acordávamos e elas continuavam ali,
em meio ao fumo tóxico, milhares, milhões de pequenos mecanismos trituradores, com a sua fúria cega e uma fome ancestral. Adormecíamos, sonhávamos, e elas entravam
por dentro dos nossos sonhos, trepando às paredes, atacando as galinhas no galinheiro, os pombos no pombal. Os cães mordiam as patas. Giravam num rodopio de cólera,
giravam aos uivos, mordiam as patas, tentavam desesperadamente extrair os bissondes que se lhes prendiam aos dedos, giravam, uivavam, arrancavam a própria carne
em dentadas ferozes. O pátio ficava cheio de sangue. O cheiro do sangue enlouquecia ainda mais os cães e os bissondes. A mãe implorava:
"Faz alguma coisa! Os bichos estão a sofrer ... "
O pai ia buscar a caçadeira. Arrastavam-nos para o quarto, a nós, às crianças, para que não víssemos aquilo. Mas víamos. Ouvíamos. Acordávamos, sacudíamos os cabelos,
os lençóis, e os bissondes caíam já mortos, ou quase mortos, mas ainda mordendo à toa, mastigando o ar com as grossas pinças de ferro. Felizmente chovia. A chuva
avançava através do céu iluminado e nós corríamos aos saltos diante daquela água grossa, muito limpa, bebendo às golfadas o perfume inebriante da terra molhada.
Com as primeiras chuvas vinham também os salalés. Volteavam a noite inteira em redor das lâmpadas como uma bruma dourada, num zumbido doce,
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até perderem as asas, e pela manhã os passeios acordavam cobertos por um levíssimo tapete diáfano. Salalés e borboletas sempre me pareceram seres sem maldade.
Aconteceu de repente. Distraí-me um momento, uns poucos segundos, distraí-me a olhar os salalés, lá, na nossa tão bela infância perdida, distraí-me com o sofrimento
dos cães, e quando dei conta tinham passado os anos, e agora aqui estás tu, parada na ombreira da porta, à minha frente, sorrindo para mim, os mesmos dentes perfeitos,
os mesmos olhos, a mesma luz macia ascendendo da pele dourada - e todavia não és tu, ou talvez sejas, mas trinta anos depois, e portanto, meu Deus!, como podes ser
tu?
"Lembras-te das chuvas?"
Sim, eu lembro-me. Lembro-me de ti correndo aos saltos à frente das chuvas, o sol iluminando por detrás a tua cabeleira áspera, um anjo loiro, selvagem, solto em
pleno coração de África.
"Posso entrar?"
Entrar?! Mostra-me, ao invés, como se faz para sair.
O que eu quero é regressar contigo, voltar ao lugar de onde vieste, de onde eu vim, lá, onde os salalés abandonaram as asas, para que nós, as crianças, pudéssemos
correr sobre as pedras sem magoar os pés. Aconteceu de repente. Distraí-me um momento, compreendes?, distraí-me uns poucos segundos, distraí-me a olhar as borboletas,
e quando dei por mim tinham passado os anos.
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O HOMEM QUE PARECIA UM DOMINGO

O Velho Fausto parecia um domingo. Costumava vê-lo, manhã cedo, cruzar o passeio, pisando sem ruído as flores das acácias, muito aprumado no seu fato de linho branco,
chapéu de palha, laço e bengala, e tão sem pressa, meu Deus!, cumprimentando com acenos lentos (largos sorrisos) a turba ansiosa. Um dia alguém o provocou:
"Afinal, o que faz você nos dias úteis?"
Ele sorriu, ainda mais generoso, e o claro fulgor dos seus dentes perfeitos cegou o atrevido:
"Todos os meus dias são inúteis", respondeu com solene orgulho: "Eu os passeio."
Durante muitos anos, devo confessar, quis ser como ele. Hoje sei que pecava por excessiva ambição. Trabalhando intensamente qualquer pessoa é capaz de alcançar,
no fim da vida, relativa prosperidade e a admiração dos outros. Um ladrão hábil pode ficar rico em dez ou quinze anos. A conquista do poder também impõe considerável
esforço; isto, já para não falar em santidade ou heroicidade. A inutilidade, porém, exige algo mais difícil: talento. Nem todos podem ser inúteis, realmente inúteis,
da mesma forma que poucos conseguem fazer chorar um violino. Também nem todos merecem ser inúteis.
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Fausto, sim, era inútil - e merecia-o. Foi, enquanto viveu, ocioso e magnífico como uma tela de Gauguin.
Depois veio a Revolução. Nenhuma revolução tolera pessoas desnecessárias. Nas revoluções há os revolucionários e os reaccionários; não há lugar para observadores
e muito menos para imprestáveis. Fausto percebeu isso num dia em que, tendo decidido passar pela Cervejaria Biker para refrescar a alma, encontrou a velha e gloriosa
catedral da boémia luandense transformada numa espécie de centro cultural. Alguém se tinha lembrado de organizar ali uma recepção a um poeta, antigo preso político,
há poucos dias regressado do Tarrafa!. O poeta era um homenzinho miúdo, de densa barba negra, rosto pálido, liso como o de uma criança, mãos muito finas, de dedos
longos, que se moviam com veemência, como se fossem independentes do corpo. Leu alguns poemas e contou histórias da cadeia. Explicou que para conseguir sobreviver
à solidão e ao desespero, fechado sozinho numa minúscula cela escura, se entretivera durante anos a amestrar insectos. Em particular fizera amizade com uma barata,
um bicho amável e inteligente, à qual ensinara a dançar. O poeta calou-se, a cabeça entre as mãos, enquanto na sala se fazia um silêncio comovido. Então Fausto levantou-se
e pediu a palavra:
"O que aconteceu à barata?"
A pergunta ecoou na sala como um traque. Alguém gritou: "Fascista!" Um tipo alto, de bigodes, sentado ao lado do escritor, encolheu os ombros:
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"Calma! O camarada que falou é um notório vadio." O desprezo com que disse aquilo serenou os ânimos.
Encontrei Fausto, horas mais tarde, ainda na mesma mesa. Ardia ao lume brando do crepúsculo. "Gostaria realmente de saber o que aconteceu à barata", disse-me com
tristeza. Ele queria saber que género de música dançava o insecto: rumba, valsa, a velha rebita? Recomendei-lhe mais cuidado com a língua. Podia-se ser preso, naquela
época, por coisas assim. Fausto encolheu os ombros, céptico, terminou de beber a sua cerveja e foi-se embora. Morreu, tempos depois, atropelado por um camião do
exército.
Voltei a lembrar-me dele quando, há poucos dias, um amigo me disse ter descoberto no Cemitério do Alto das Cruzes uma lápide partida: "Aqui repousa Fausto Bendito.
Foi ele quem renunciou à vida / podeis continuar a ocupar o seu lugar / vós, que nos roubastes / Não foi, nunca foi, renunciou-se / atingiu o zero." Reconheci os
versos de Agostinho Neto, musicados depois pelos Irmãos Kafala no belo álbum "Salipo". "E agora vivei, cantai, chorai / e agora casai-vos, matai-vos / embriagai-vos
/ e agora dai esmolas aos pobres / nada me pode interessar / que não sou, não sou / Atingi o zero / Nada me pode interessar / Não sou, não sou / Atingi o zero."
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O UIVO AMARELO DOS GIRASSÓIS

Noite morna. Sábado. Ricardo vagueava alheio ao mundo, amargurado, pensando na vida. Deteve-se um instante (fatal instante) diante de um boteco esquivo, no Leblon,
e reparou numa mulher, negra, belíssima, dançando sozinha ao ritmo de um velho samba da Portela. A mulher chamou-o com um riso esplêndido e ele entrou. Conversaram?
Ricardo não se recorda. Ela estendeu-lhe um copo. O meu amigo bebeu. O líquido era gelado e guardava no fundo um gosto turvo, amargo, que hoje ele se esforça, inutilmente,
por decifrar. Acordou de madrugada, descalço e sem carteira, num ónibus atulhado de gente.
"Onde estou?"
Podia ter perguntado antes, "quem sou eu?", Sentia-se propenso à filosofia. Não esperava que lhe respondessem. Uma matrona luzidia, sentada ao seu lado, informou-o
com um sorriso manso:
"Estamos na Cidade de Deus, meu bem."
Ricardo assustou-se:
"Jesus!", pensou: "Querem lá ver? Morri!" Espreitou pela janela e viu o Inferno deslizar à luz cinzenta do amanhecer. Barracos de tijolo, placas de betão, depósitos
de água, antenas parabólicas.
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Sentiu que o seu cérebro se punha lentamente em marcha, como uma locomotiva fatigada, enquanto lhe vinham à memória as terríveis parangonas dos jornais. Cidade de
Deus, claro!, a grande favela de Jacarepaguá. O ónibus deixou-o, já o sol galgara o horizonte, na Lagoa Rodrigues de Freitas. Ricardo aproximou-se vacilante do brilho
das águas, sentou-se num pequeno molhe de madeira, bebeu a brisa húmida da manhã. Tinha chovido durante a noite. Ao fundo, suspensos sobre as águas, erguiam-se dois
grandes morros. Prédios cresciam no sopé dos mesmos, torpes e escuros como uma doença de pele. Duas garças pousaram ao seu lado, enormes, as patas amarelas, lustrosas
como se fossem feitas de plástico. Um barco flutuava, ancorado, um pouco à frente. Uma dezena de grandes aves pretas, biguás, permaneciam em pé e imóveis, no seu
interior, muito bem alinhadas, o bico voltado na direcção do vento. Ricardo fechou os olhos. Quando os reabriu o mundo já não era o mesmo. Um arco-íris desenrolava-se
à sua frente como uma cobra. Viu-lhe as escamas rebrilhando no dorso, e cada cor cantava, e no conjunto aquilo pareceu-lhe mais largo, sonoro e arrebatador do que
qualquer uma das nove sinfonias de Beethoven. Maravilhou-se: ouvia as cores! Sim, podia ouvir as cores.
A sensação não desapareceu nos dias seguintes, antes pelo contrário, intensificou-se. O espectáculo do sol, ao crepúsculo, incendiando as nuvens, ganhou, para ele,
uma dimensão inédita. Tapava os olhos para não escutar, à beira das estradas, a estridência selvagem das buganvílias em flor, ou, ainda mais doloroso, o uivo amarelo
dos girassóis. Passou a amar, porém, a melodia alegre das telas de Miró. Foi de propósito ao Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, MOMA, ouvir as cores dissonantes
de Jackson Pollock. As piscinas de David Hockney, essas, cantavam só para ele melodias refrescantes.
"Bossa Nova", disse-me um dia, "ou alguma coisa do género, sei lá, samba de salão."
Depois, pouco a pouco, Ricardo voltou a ser um de nós. Hoje percorre os bares de Ipanema e Leblon contando a quem estiver disposto a ouvi-lo a sua incrível história.
Acho que ele próprio se escuta, a cada dia, com crescente incredulidade. Procura ansiosamente a bela mulher negra que numa noite de sábado o chamou para dentro de
um bar com um sorriso luminoso, o envenenou, e lhe roubou a carteira e os sapatos. Não conheço ninguém que busque quem o assaltou com tal amor, tanto carinho, tamanho
desvelo. "Meu irmão", confessou-me recentemente com os olhos rasos de água, "faço qualquer coisa para voltar a ouvir o pôr-do-sol no Arpoador."
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FALSAS RECORDAÇÕES FELIZES

O passado de Gonçalo começou a desmoronar-se à mesa de um bar, no Bairro Alto, várias cervejas depois da meia-noite, quando ao riso sucedeu o cansaço. Tinham discutido
o namoro de Penélope Cruz com Tom Cruise. A conferência sobre racismo em Durban. As vantagens e os perigos do casamento. Então, em meio ao fumo amargo que enchia
a sala, alguém lançou um novo tema - o Primeiro Beijo.
"Nunca me esquecerei", disse ele. "Foi em mil novecentos e setenta e oito, no dia em que fiz dezasseis anos. Tinha ido a um concerto do Chico Buarque com alguns
colegas do liceu. O Chico começou a cantar o Eu te Amo, que aliás não se presta muito para uma declaração de amor, é antes uma canção de despedida. Lembram-se? ..
"
Cantarolou com voz rouca:
"Se nós, nas travessuras das noites eternas / já confundimos tanto as nossas pernas / diz com que pernas eu devo seguir. / Se entornaste a nossa sorte pelo chão,
/ se na bagunça do teu coração / meu sangue errou de veia e se perdeu ... "
Calou-se um momento, o olhar absorto, enquanto enrolava nostálgico uma madeixa do cabelo. Já não lhe restava muito cabelo de forma que aquele tique era um pouco
deprimente. Suspirou.
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"E então ela encostou a cabeça no meu ombro e eu beijei-a."
"É bonito", reconheceu um dos amigos, crítico de música, um tipo que se gabava de saber quase tudo sobre tudo, ou, em alternativa, tudo sobre quase tudo e realmente
sabia. A erudição dele incomodava os outros. "Seria ainda mais bonito se fosse verdade. Isso não pode ter acontecido em mil novecentos e setenta e oito. O Chico
Buarque só criou essa canção, em parceria com o Tom Jobim, dois anos mais tarde."
Gonçalo olhou-o perturbado:
"Disparate! Tenho a certeza que o Chico cantou essa música na noite em que fiz dezasseis anos, portanto em mil novecentos e setenta e oito. Foi nessa noite que comecei
a namorar com a Marisa. Infelizmente nunca mais soube nada dela. Vocês lembram-se da Marisa, não se lembram?"
Não, ninguém se lembrava da Marisa. A Gonçalo, todavia, bastava fechar os olhos para voltar a vê-la. Era uma rapariga alta e flexível, com grandes olhos negros,
melancólicos, e um alheamento pelas coisas do mundo que a fazia parecer imaterial. Apetecia ao mesmo tempo protegê-la e ultrajá-la. Confrontados com a descrição
de Gonçalo todos lamentaram não ter conhecido Marisa. Na mesa ninguém se lembrava dela. Pior: nem sequer se lembravam dele por essa altura.
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"Só te conheci em mil novecentos e noventa", precisou o crítico de música. "Num concerto da Cesária Évora."
Aquilo era demais. Gonçalo levantou-se indignado: "Nunca estive num concerto da Cesária. Nunca!" Ninguém disse nada. Toda a gente sabia que o crítico de música jamais
se enganava nos factos. Menos ainda nas datas. Gonçalo tirou uma nota do bolso e colocou-a sobre a mesa.
"Eu já vou ... "
Nenhum dos amigos procurou detê-lo. Gonçalo saiu aflito para a noite mansa. Qual era a sua recordação mais antiga? Esforçou-se um pouco. Recordava-se de ter assistido
pela televisão à ocupação de Goa pelas tropas indianas. Devia ter uns cinco anos, seis no máximo, ainda não andava na escola. Voltou ao bar e perguntou ao crítico
de música:
"Olha lá, sabes dizer-me quando é que perdemos Goa?"
O outro nem pestanejou:
"A dezoito de Dezembro de mil novecentos e sessenta e um."
Gonçalo respirou fundo. Nessa data ainda nem era nascido. Seria possível que todas as suas memórias fossem apócrifas? Voltou a sentar-se, trémulo, e pediu mais uma
cerveja. Se não podia confiar nas próprias recordações não havia nada em que pudesse confiar. O crítico de música citou Bufiuel:
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"Uma vida sem memória não é uma vida."
Depois percebeu que aquilo não tinha nada de animador e tentou emendar:
"o teu caso não me parece tão grave. Tens uma vida. É falsa, sim, mas afinal de contas é uma vida."
"Mais valem falsas recordações felizes", acrescentou um outro, "do que lembranças autênticas e desgraçadas."
Gonçalo estava inconsolável:
"Vocês acham que eu nunca beijei a Marisa?" Ninguém respondeu. Talvez tivessem bebido demais. Talvez fosse demasiado tarde. Talvez achassem realmente que ele nunca
beijara Marisa.


BOM REPOUSO

Na pequena cidade de Bom Repouso, no litoral pernambucano, existe um monumento destinado a recordar o homem que inventou a cadeira de balanço e o ventilador. Francisco
Gravatá, assim se chamava, foi igualmente o criador da toalha de praia, dos óculos de sol e do pastel de siri. O primeiro ventilador, exposto no Museu do Ócio, atracção
principal de Bom Repouso, era movido a pedais. Na sua fazenda, a escassos quilómetros do Recife, Francisco Gravatá manteve durante décadas uma equipa de quinze escravos
que tinham por única função pedalar. Um deles, baptizado com o nome do amo, viria a tornar-se, já após a Lei Áurea, num dos primeiros campeões de ciclismo do Brasil.
Os detractores de Francisco Gravatá acusam-no, aliás, de ter cultivado o ócio à custa do esforço alheio. Assim foi, concedem os seus defensores, e filosofam - ainda
hoje, para que uns poucos desfrutem a fresca brisa de um ventilador, sentados, de preferência, entre os braços fortes de um cadeirão de balanço, torna-se necessário,
inevitavelmente, o suor de muitos.
Segundo o seu biógrafo, o jornalista Wilson Principal, Francisco Gravatá foi um cavalheiro de fino trato: "Reagia quando atacado.
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Fazia-o porém com tal elegância que os seus opositores ficavam muitas vezes sem saber se o deviam correr à bengalada ou, pelo contrário, agradecer-lhe. Quase sempre
agradeciam-lhe." Em "O Homem que Inventou a Preguiça", Wilson Principal cita a polémica que Francisco Gravatá manteve, nas páginas do "Diário de Pernambuco", contra
o famoso jornalista negro José do Patrocínio, a quem os amigos chamavam (muito justamente) o Tigre Abolicionista:
"Vossa excelência é um homem económico. Tem economizado em tudo, sobretudo na inteligência."
Francisco Gravatá sabia rir de si próprio. Aos que o acusavam de abusar do álcool retorquia: "Sempre bebi com moderação; costumo beber assim horas a fio." A pequena
estátua de bronze, em sua memória, junto ao Museu do Ócio, mostra-o vestido com um casaco largo, provavelmente em brim branco, e um pano amarrado à cintura, como
era prática, na época, entre sobas e macotas da África Ocidental. Os brasileiros, defendia Gravatá, fariam melhor em adoptar um traje adequado ao forte calor dos
trópicos, do que em persistir no hábito severo da moda europeia. Os alegres panos africanos, de que aprendeu o uso com os seus escravos, eram na sua opinião infinitamente
mais cómodos, e até mais elegantes, do que as calças da praxe. Já muito velho, de visita a Paris, foi apresentado a um general russo, inventor das minas antipessoal.
O russo deteve-se um instante, atordoado, diante daquela figura enorme, de pele escura, nariz largo, revolta barba branca, vestido como um negro das estampas etnográficas.
Não se esforçou por ocultar o riso:
"Dizem-me que é inventor. E o que inventou o distinto cavalheiro - a zarabatana?"
O brasileiro manteve o aprumo. Numa voz suave, sem nunca deixar de sorrir, explicou que não, que não se servia da inteligência e da imaginação para conceber engenhos
destinados a ofender a vida. O Homem tem-se mostrado, ao longo dos séculos, acrescentou, capaz de inúmeras perversões, mas essa parecia-lhe a pior. Achava em todas
as guerras, no seu fundamento, uma pulsão primitiva. Sentia pelos militares, e em particular pelos oficiais superiores, uma repugnância quase física. O russo, irritado,
lamentou os tempos modernos, pois via que nos salões de Paris já se estava tornando difícil distinguir os homens das mulheres. Deplorou haver gente incapaz de compreender
a grandeza de uma carga de cavalaria. Exaltou a glória da morte no campo de batalha. "A guerra", enunciou solene, "é a arte suprema." Vituperou depois as raças meridionais,
degeneradas pela mistura de sangues e o excesso de sol. Finalmente, quis saber como reagiria Francisco Gravatá no caso de uma potência estrangeira invadir o Brasil.
O visado dispersou com uma única, sincera, gargalhada, as tropas inimigas:
"Acho que ofereceria, à tal potência, uma das minhas cadeiras. Vossa excelência tenha a bondade, sente-se por favor. Então poderíamos conversar. Não sei de cólera
que resista ao balanço de uma cadeira."
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UMA SILHUETA ARDENDO AO CREPÚSCULO

O sol entrava pelas janelas como um rio, e era puríssimo, sem a ferrugem triste que por vezes carrega quando alcança o chão. As nuvens cintilavam, aos tufos, desalinhadas,
e, no entanto, havia nessa desordem uma tal harmonia que o velho se lembrou dos jardins japoneses. Sim, era um jardim, aquilo, um vasto jardim de nuvens. A luz corria
por sobre os flocos, alvíssimos!, até bater atordoada contra o rápido metal das asas. Devia ser assim a morte, pensou sem surpresa: a luz ao invés do pó. Um homem
ganharia, pouco a pouco, a alada leveza das aves. A pele tornar-se-ia mais diáfana, até que fosse possível intuir o lento palpitar do coração, um pequeno lume, pulsando,
pulsando, sob a carne branda. A luz correndo nas veias. As pessoas despedir-se-iam da família, dos amigos, um por um, sem lágrimas, sem dor alguma, e quando se lhes
apagasse a voz já não seriam mais do que uma silhueta ardendo ao crepúsculo. Fogo fátuo. Ardência marítima. Um leve rumor aceso: adeus.
O velho voava de regresso a casa. Não gostava de aviões. Nunca gostara. Os aviões, é bem certo, reduziram a Terra a uma rede de metro. Tiraram-lhe o mistério e a
grandeza. Também não gostava de auto-estradas,
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nem de pontes, e tão-pouco de telefones. Odiava a Internet. As viagens rápidas, dizia, eram da mesma perversa natureza que o fost food - o triunfo da barbárie através
da tecnologia. Defendia com vigor o regresso da humanidade à lentidão:
"Quanto mais corremos menos tempo temos."
Nas grandes cidades há uma frase que a cada instante se repete, como um mantra, aqui, ali, por toda a parte - "não tenho tempo não tenho tempo não tenho tempo não
tenho tempo não tenho tempo não tenho tempo". Ninguém tem tempo. Os pais não têm tempo para contar aos filhos as histórias com que, quando eram crianças, os seus
pais (ou as avós) os adormeciam. Os maridos não têm tempo para escutar as esposas. As esposas não têm tempo para escutar os maridos. Nas aldeias, pelo contrário,
o tempo cresce, como as ervas, à sombra fresca dos muros. O velho pensou nisto e sorriu. Voava de regresso à sua cidade natal. Quando a deixara era ainda uma pequena
vila de província. Galos puxavam a aurora. Cães, ao longe, ladravam aos sinos. Os pássaros dormiam, em bandos, sob a espessa folhagem das árvores. As crianças, domingo
à tarde, dançavam de mão dada em redor do coreto. As pessoas sentavam-se à soleira das portas vendo a noite baixar sobre os jardins. O rádio era um milagre. Havia
poucos. Os mais velhos espreitavam o céu com desconfiança, podia lá ser!, o ar, o mesmo ar de sempre, agora cheio de vozes. As crianças, essas, espreitavam curiosas
para dentro dos rádios, que eram móveis enormes e solenes, e viam lá dentro as luzes coloridas das cidades grandes, as multidões apressadas do futuro, todas as vozes,
todo o estrépito de um novo mundo em construção.
Tinham passado sessenta anos. Encontraria ainda o casarão feliz, o largo quintal com muros de adobe, onde vivera a infância?
Seria capaz de reconhecer as velhas ruas por entre os altos escombros do progresso?
E se não houvesse já, em lado algum, sinais da sua infância?
O velho estremeceu. Se a sua infância não sobrevivera, nem sequer sob a forma de um abacateiro (com o seu nome gravado no ramo mais alto), sob a forma de um riacho
de águas afáveis, de um pátio de terra batida, de uma escola, ou, nem isso, do canto rouco das cigarras ao entardecer - então não lhe restaria nada. A velhice rouba-nos
o futuro. O futuro rouba-nos o passado.
O velho recostou-se à cadeira e fechou os olhos.
O sol entrava pelas janelas como um rio, e era puríssimo, sem a ferrugem triste que por vezes carrega quando alcança o chão.
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A VIDA ESCRITA

Ergui os olhos e ali estava ele, parado diante de mim, irrevogável, como um manequim de plástico na montra de uma alfaiataria. Sorriu. Tirou da cabeça o fulgor de
um chapéu de palha, um panamá legítimo, pousou-o ao de leve sobre a mesa, num gesto estudado, o orgulho de um avô pelo primeiro neto, e só então falou:
"Importa-se que me sente aqui?"
Sentou-se. O restaurante estava às moscas. Um pouco à frente, junto à porta, dois rapazes alemães trocavam, numa surdina áspera, ríspidas rajadas de palavras, que
a num me pareceram compostas apenas por consoantes, e depois silêncios, olhares carregados de um rancor sem esperança. O empregado aproximou-se da nossa mesa com
o cardápio. O homem ignorou a lista. Apontou para o meu prato:
"O bacalhauzinho está bom? Acho que peço o mesmo .... "
A voz, aguçada como um caco de vidro, arranhava o ar. Senti que me subia a mostarda ao nariz mas continuei calado. Creio que ele adivinhou a minha irritação. Não
voltou a falar até que o empregado reapareceu, muito hirto, distinto como um príncipe, carregando na mão direita uma enorme travessa fumegante com o
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bacalhau. Então, deixou escapar um fundo suspiro de júbilo:
"Ah, o nosso bacalhau com grão! O bacalhau é a glória de Portugal. A pátria servida à mesa."
Dei-me conta, numa vaga repugnância, de que o sujeito havia conseguido despertar-me a curiosidade. Olhei-o atentamente. Era um homem largo, pesado, bem barbeado,
o cabelo negro esticado com brilhantina, a pele lustrosa. Pareceu-me convincente, e todavia inexacto, como o esboço incompleto de um grande artista. Os olhos azuis,
diáfanos, aumentavam essa geral imprecisão.
"Vivo nos livros", disse-me, mergulhando no susto dos meus olhos a água leve dos seus: "Decidi esta manhã que iria viver a vida como se a tivesse escrito, só para
mim, o Eça de Queirós."
"Desculpe?!", soprei quase sem fôlego: "Como assim .... "
O homem expôs-me então, largamente, todo o seu pensamento. Ao nascer, disse-me, devia ser-nos dada a possibilidade de escolher a vida, um estilo de vida, da mesma
forma que escolhemos um livro. O Senhor Deus, ou alguém por Ele, tomaria nota das preferências de cada um, aconselhando géneros e estilos:
"Prefere que a sua vida seja uma comédia romântica, um romance de aventuras, um romance de viagens, ou um policial? E o estilo? Temos o romantismo, o naturalismo,
o neo-realismo, o realismo mágico, eu sei lá, a escolha é sua."
Deveríamos, na verdade, poder escolher até o roteirista. Experimente, continuou o homem, sem abandonar o bacalhau, experimente. Asseguro-lhe que se trata de um exercício
interessante. Amanhã, ao acordar, diga para si próprio - hoje quero ser um personagem de Gabriel García Marquez. Saia depois pelas ruas, e, se o fizer com convicção,
há-de ver que o ar se torna de súbito mais ténue, perfumado, e talvez algum anjo lhe saia ao caminho com um par de asas mais convincente que as dos pássaros.
(Riu com gosto.)
Depois de amanhã, prosseguiu, imagine-se imaginado pelo Fernando Pessoa. Alguém em traços de cinza. Sentado à sua secretária, numa tarde inesgotável, verá a vida
a correr, escura e silenciosa, e cheia de mistérios, como um largo rio. Ou, porque não?, atreva-se a ser um personagem de Rubem Fonseca. Isso implica riscos, eu
sei, existe a possibilidade de ser assassinado a tiro, à facada, inclusive à machadada, caso não domine a arte de caminhar sozinho pelas ruas do Rio de Janeiro.
Mas, em contrapartida, pense nas mulheres. Loiras, morenas, mulatas. Mulheres de corpo flexível, seios perfeitos, dispostas a tudo.
Nesse momento um dos alemães levantou-se, atirou uma última frase, pedregosa, ao rosto do companheiro, e saiu para a luz, porta fora. O homem seguiu-me o olhar.
Sorriu:
"Kaíka - quem sabe? Esse eu não aconselho."
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Não respondi. Passei o resto da tarde a pensar em Gregor Samsa, coitado, a despertar depois de uma noite inquieta, transformado num gigantesco insecto.
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ÚLTIMOS MOMENTOS

(primeiro momento)
No último minuto da sua vida, enquanto lhe amarravam as mãos atrás das costas, Pedro Quevedo, mais conhecido por El Niño, pensou no jogo que perdera na noite anterior:
"Não lhe devia ter oferecido o bispo", disse, olhando de frente o jovem major. "Poderia ter ganho, em apenas duas jogadas, se tivesse avançado o cavalo." El Nino,
capitão do exército cubano, fora capturado pelos guerrilheiros depois de ferido numa perna, durante a batalha de Mavinga. Os guerrilheiros trataram-lhe dos ferimentos
e levaram-no para uma pequena aldeia, um lugar sem nome e sem destino, nas matas do sul do país. El Nino era bem tratado. Não se queixava. Iludia o tédio e o calor
jogando xadrez. Jogava o dia inteiro com os seus captores. Naquela tarde viu o major chegar taciturno, de cabeça baixa, na companhia de três homens altos, desconhecidos,
e soube que não voltaria a jogar. Disseram-lhe para entrar no jipe e ele deixou-se levar. "Como um cão pela trela", pensou, "como um morto no seu esquife." Ninguém
falou até chegarem ao campo de futebol.
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(segundo momento)
No último minuto da sua vida o jovem major pensou em El Niño. Fechou os olhos um instante, sentindo que sufocava de angústia, o coração apertado, a boca seca. Ficava
assim sempre que lhe vinha à memória o rosto sereno, de traços perfeitos, quase femininos, do capitão cubano. "Era meu amigo", pensou: "e eu matei-o." Fechou os
olhos para evitar que as lágrimas saltassem e por isso não viu o voo aflito das perdizes. Não viu o capim ondular, na outra margem do rio, enquanto as nuvens ardiam,
absolutamente imóveis, no grande silêncio do sol-pôr. Quando abriu os olhos era demasiado tarde.

(terceiro momento)
No último minuto da sua vida, Armindo Panguila Pombeiro, ex-comando, pensou no jovem major que matara no Andulo. Fora o seu primeiro morto. Fora também o seu último
morto. Morrera-lhe nos braços. Duas semanas depois Armindo Panguila Pombeiro pisou uma mina. Perdeu um olho, três dedos, a perna direita. Perdeu também a mulher,
secretária numa firma de importações e exportações, moça com sangue nas guelras, ambiciosa, que o foi visitar ao Hospital Militar uma única vez, para lhe dizer,
sem que lhe tremesse a voz, não estar disposta a partilhar o futuro com um aleijado.
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Armindo Panguila Pombeiro meteu o cano da pistola na boca e pensou no major. Gostaria de o ter conhecido melhor, isto é: gostaria de o ter conhecido. Pensou que
talvez ainda o viesse a conhecer, lá, no inferno, e nessa altura poderia pedir-lhe perdão. Depois carregou no gatilho.

(o momento final)
Um grupo de meninos salta o muro do paraíso para roubar maçãs. Saltar muros para roubar fruta é uma coisa que todos os meninos fazem desde o princípio do mundo.
Encontram do outro lado os querubins ociosos, estirando as refulgentes asas ao sol, debicando biscoitos, contando anedotas para matar o tempo. A serpente aceita
servir-lhes de cicerone. Mostra-lhes a árvore original, de cujos frutos comeram Adão e Eva, com proveito ou sem ele, isso, explica o ofídio, é matéria propensa a
controvérsia. Mostra-lhes os serafins, os arcanjos, os tronos, as potências e virtudes, enfim, toda uma legião de gente alada. "E isto aqui", pergunta um dos meninos
apontando para Deus: "Serve para quê?" No paraíso já ninguém se recorda. Nem a serpente, nem os querubins, nem os arcanjos, nem sequer os serafins. Deus, ignorante
dessa geral ignorância, dorme. É muito velho, é uma coisa imensa e absorta. Dorme, como soi dizer-se, a sono solto.
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NOTAS E AGRADECIMENTOS

Escrevi o conto "Catálogo de Sombras", a convite da Clara Ferreira Alves, para a belíssima revista Tabacaria. "A Casa Secreta" resultou de uma proposta do jornal
Expresso; pediu-me o Expresso que escrevesse um conto inspirado num dos cantos d' "Os Lusíadas", e destinado a acompanhar uma edição ilustrada da obra maior de Luís
de Camões - escolhi o Canto II. "O Homem da Luz" foi publicado anteriormente na revista Ficções e depois seleccionado por Vasco Graça Moura para a colectânea "Os
Melhores Contos e Novelas Portuguesas", numa edição das Selecções do Reader's Digest. O conto "Discurso sobre o Fulgor da Língua" surgiu primeiro, numa versão reduzida,
nas páginas da revista Pública, suplemento de domingo do jornal Público; reescrevi-o meses depois para ser publicado numa edição sobre a língua portuguesa e o mundo
lusófono da revista brasileira A Revista. Esta versão está também disponível na Internet nas páginas do Ciberdúvidas (www.ciberduvidas.com). A Bigger Splash foi
escrito a convite da revista Egoísta para um número dedicado ao amor. "O Corpo no Cabide" foi anteriormente publicado na revista Ícone, entretanto extinta. "Rita
Cantava uma Canção Redentora" foi publicado na Magazinr Artes. Todos os outros contos foram publicados originalmente na revista Pública. Aproveito, aliás, para agradecer
à Pública o espaço que me tem concedido.
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TV20081002GENTE EM TRÂNSITO

MÔNICA ROCHA

"Nos relatos que compõem o livro, acho que o 'xeque-mate' é dado na hora exata! Permanece na gente a vontade de continuar lendo o caso. É igual à comida gostosa
que sempre deixa um irresistível desejo de querer mais". Marival Veloso de Matos, diretor da União Espírita Mineira, advogado e conferencista espírita.

JOÃO

Meu nome é João. Nasci em uma cidade do interior de Minas Gerais há 27 anos. Minha vida foi tranqüila no princípio, sem grandes lances de coragem ou covardia. Fui
menino de pés no chão, subindo em árvores e correndo pelas ruas da minha conhecida cidade histórica. Brinquei de arco, de bola de gude e de cabra-cega. Fui guia
de turista. Convivi com pessoas interessantes e fui feliz, muito feliz. Mas por pouco tempo. Muito cedo perdi minha mãe e passei a residir com a nova mulher de meu
pai, uma senhora séria, muito mais velha do que ele e, principalmente, que não gostava de crianças e não fazia segredo disso. Muito menos de crianças nascidas em
outro casamento do marido... De repente, acabaram-se as brincadeiras de menino despreocupado e feliz, embora eu só tivesse 11 anos de idade. Fui escalado para ajudar
nas tarefas domésticas e para mim eram reservados os trabalhos mais complicados e horríveis, pelo menos sob a ótica de um menino. Nunca gostei de lavar banheiros
e muito menos de arrumar cozinha. Cá entre nós, sempre achei que as meninas podem fazer isto melhor, pelo menos melhor que eu. Mas nunca pude discutir nem apresentar
minha opinião. Pior e suprema humilhação para quem adorava chutar água na beira do rio: passei a ser obrigado a andar calçado e vestido, com camisas brancas e calças
pretas, compridas também. Minha madrasta não admitia o meu antigo modo de trajar e agir. E detestava as brincadeiras de rua com os amigos. Para complicar ainda
mais as coisas, meu pai também mudou. E como! Passou até a usar barbas imensas e a se vestir como eu, sempre de mangas e calças compridas. E não saia mais de casa,
a não ser para o trabalho e para as reuniões da nova comunidade religiosa que abraçou. Digo "comunidade religiosa" porque, sinceramente, nunca cheguei a entender
bem que religião ou filosofia era aquela, se era antiga, conhecida, ou recém-criada. Meu amigo Diogo me falou - numa das poucas horas em que conseguimos conversar,
escondidos - que o pai dele havia dito a ele que, naqueles dias, estavam sendo criadas muitas religiões novas por homens que se diziam guias e que, talvez, a de
minha madrasta fosse uma delas. Eu sentia falta - muita falta! - de uma porção de coisas. Principalmente das brincadeiras de papai. Ele sempre brincou muito comigo
e acabávamos dando boas risadas! Mas qual! Para meu desespero, num dia ensolarado de verão, ele comandou uma estranha cerimônia no quintal de nossa casa, acompanhada
por alguns companheiros: foram quebrados, estraçalhados, rádios, televisão, aparelho de som e espelhos. Depois de tudo bem moído - para que ninguém pudesse aproveitar
as sobras - e jogado no lixo, todos comemoraram cantando em círculo, as mulheres de mãos dadas umas com as outras, os homens de braços cruzados. E aí é que eu fiquei
frito mesmo: tinha de ficar perfeitamente limpo e penteado, mas não podia usar espelho! E eu, que nunca soube pentear cabelo nem um pouquinho, tinha de me pentear
sem ver! E como fazia falta a música! Eu e Diogo arranjávamos, de vez em quando, um jeitinho de nos encontrarmos, porque éramos amigos e eu queria notícias do mundo
que eu considerava normal.
Mas tudo acontecia rápido, estávamos sempre assustados, eram encontros difíceis e rápidos, porque eu estava sempre sendo vigiado. Mesmo assim, um dia, ele me arranjou
um velho radinho de pilha e fiquei exultante. Isto, até chegar em casa e apanhar muito, além de ter que quebrar o radinho, eu mesmo, a marteladas. E assim foi seguindo
a vida, cada vez mais triste e estressante, até que completei 15 anos e papai me comunicou que, daquele dia em diante, teria que me sustentar sozinho, pois já era
um homem. Vi aí uma chance de ficar livre, mas logo notei que estava enganado. Minha esperança acabou-se quando soube que iria trabalhar numa fazenda da comunidade,
na lavoura, onde receberia pelo que produzisse. A fazenda foi o susto seguinte e eu não acreditaria se não tivesse passado por ele. Sem estradas razoáveis, era um
sacrifício chegar até lá. Não era sacrifício sair, simplesmente porque não se saía de lá: após o serviço de sol a sol na lavoura, à tardinha, éramos trancafiados
em verdadeiras senzalas onde, após ouvirmos a palavra do líder - exortando-nos contra as maldades do mundo -, ordenavam que dormíssemos. No dia seguinte, éramos
acordados de madrugada, com o sol nascendo. Tomávamos banho, comíamos e lá íamos nós de novo. Não podíamos conversar durante o trabalho, mas, mesmo assim, um dia
criei coragem e perguntei a um instrutor por que vivíamos naquele regime duro. Ele me respondeu que o mundo era muito mau e estávamos sendo treinados para, um dia,
sairmos dali. Neste dia, teríamos que saber ignorar as tentações, sermos fortes, comer só produtos plantados e colhidos em nossas fazendas e viver em comunidades
com nossa gente, sempre vigiando contra as tentações e os inimigos da consciência. Não entendi nada. Será que ele entendia e tinha certeza do que dizia?... A vida
foi correndo assim, eu completamente anestesiado e cada vez mais alienado em relação ao mundo. Comecei a perder os parâmetros e, lentamente, fui me esquecendo de
tudo e só vendo e acreditando naquela fazenda e nos nossos instrutores. Seria este mesmo o objetivo dos que nos dirigiam? Nunca tive salário e jamais peguei em dinheiro.
Meu pai havia dito que eu receberia pelo que produzisse, mas não explicou tudo. Eu recebia sim, mas em alimentação e roupas. Cartas ou notícias de casa ou de qualquer
outro local, nunca! Nosso mundo era o ali e o agora. Quando completei vinte e cinco anos, era um perfeito robô. Sabia executar tarefas mecânicas, mas nunca falava
ou ria. Havia perdido a vontade louca de fugir, que me dominara no princípio. Afinal, se fugisse, para onde iria? Minha realidade única era a fazenda. Onde ficava
o outro mundo do qual eu não tivera mais notícias? E alguém acreditaria na minha história? Certa madrugada nós acordamos com vozes, gritos e até um estampido ouvimos.
Alguém falou que estávamos sendo cercados pela Polícia. Tive dificuldade para entender, pois eu nem sabia mais o que era Polícia direito. Apático, não me interessava
por nada. Mas pude notar que havia homens fardados e armados lá e estavam muito bravos. Assustado, como um animal encurralado, eu ouvi um policial dizer a um instrutor
que alguém havia denunciado a organização e os dirigentes haviam sido presos na cidade. A fazenda estava sendo invadida e desativada e seríamos encaminhados a instituições
na cidade, que nos readaptariam à vida normal. Pela primeira vez em tantos anos, fiquei com muito medo, eu que pensava já não conseguir sentir emoção alguma. Tinha
certeza que não queria voltar para a cidade. Nem me lembrava mais dela ou onde ela ficava. Acuado, agachei-me no chão perto da cerca, encostei-me no mourão e comecei
a chorar como uma criança desamparada e apavorada. Descobri que ainda sabia chorar e chorei mais ainda. Lembrei-me da minha infância, de mamãe e solucei pedindo
socorro a ela. Dois homens começaram a brigar perto de mim, um capataz e um policial. Vieram mais homens de todos os lados. E a briga ficou feia. Nossos guardas
estavam enfrentando a polícia. Alguém sacou uma arma bem a meu lado.
E a última coisa de que me lembro e o último som que ouvi foi de um estampido. Desmaiei. Comecei a flutuar. Silêncio... Há cerca de um mês, acordei numa cama, um
quarto de residência alegre e feliz, cheia de sons e plantas. Pessoas delicadas me tratavam e me informaram eu tudo agora era diferente, que o pesadelo havia terminado.
Uma moça que também mora aqui me contou que eu dormi dois anos! Não entendi bem que doença é esta que me fez dormir tanto tempo, mas provocou um despertar tão bom...
Que me importa o nome da doença? Estou bem, tudo passou, é o que vale. No momento em que passam pela minha cabeça estas breves recordações, estou também descobrindo
de quem é a casa onde agora estou abrigado: é de minha mãe, que agora me abraça, com infinito carinho. Estou em paz. Que mais preciso?

MIRIAM

Sou Miriam e aqui estou a muitos anos. Nem me preocupo em contar quantos... Sou muito feliz e trabalho na recepção daqueles que chegam desarvorados, sem compreender
onde estão. Minha vida transcorreu toda no Estado do Rio de Janeiro, onde nasci. Lá, eu era médica e trabalhava com loucos. Sempre gostei de pesquisar a mente humana,
com muito carinho pelos meus pacientes. Cá, continuo médica. O trabalho é mais profundo e tenho maior capacidade de percepção dele. Cresci numa família comum, pai,
mãe, dois filhos homens e eu. Vivíamos num bairro de classe média, onde papai era advogado e minha mãe não trabalhava fora do lar. Meus irmãos seguiram a profissão
paterna e os três tinham escritório juntos, trabalhando com direito criminal. Papai tinha fama de excelente criminalista. Desde menininha eu dizia que queria ser
médica. Gostava de tratar de minhas bonecas, receitar para elas. Tratava até do cachorrinho... Ao começar a vida na faculdade, os desequilíbrios mentais me atraíram
logo de início e direcionei meu caminho para este lado. Nunca acreditei em loucura, pura e simplesmente como doença. Sempre achei que atrás de cada louco há algo
mais, algum tipo de pressão vinda de alguém muito parecido com ele, ou muito ligado a ele. A tortura mental do louco é muito grande: ele acredita na realidade de
suas alucinações e sofre com elas. Ninguém pensa nisto, na parte mais terrível, que é esta. O louco atravessa barreiras com muita facilidade e, em certos momentos,
maravilhava-me, quando vislumbrava uma perfeita e estranha lucidez no centro de desvarios. Quando me formei, fui trabalhar com meu tio, psiquiatra antigo e diretor
de um sanatório mais antigo ainda. Lá os pacientes eram tratados com muito carinho e com métodos criados por ele, que incluíam relaxamento, musicoterapia, exercícios
físicos, laborterapia, artes. A alta porcentagem de curas ou as grandes melhoras eram festejadas pela equipe. Numa época em que o louco era segregado, levava choques
elétricos e vivia isolado, amarrado, trancado, meu tio inventou, digamos assim, um novo método para tratar a loucura. E funcionava mesmo, apesar de parecer temerário.
Seus pacientes não ficavam trancafiados nem eram dopados. Eram, sim, constantemente vigiados e assistidos e, principalmente, amados pela equipe do hospital. Esta
equipe era toda formada por médicos e enfermeiros espíritas. Minha mãe não gostou muito da minha ida para lá, pois nunca aceitou o trabalho do irmão, que ela considerava
excêntrico e dizia que mexia com bruxarias. Só ela - na sua grande teimosia - não via que o trabalho dele estava sendo discutido até pela comunidade científica internacional.
Pobre mamãe que se fazia de cega! Com o tempo, eu comecei a me encantar com os espíritas e seu modo de ser e agir. Com a tranqüilidade e amor que imprimiam a seu
trabalho. E, para desespero de mamãe, sua única filha tornou-se espírita também...
Ela reagiu violentamente, dizendo que nunca mais queria me ver, que eu iria acabar muito mal, talvez louca também, pois ela sabia que quem mexe com espiritismo fica
louco. Maldisse a minha ingratidão, invocando os sacrifícios imensos que fez por mim e que de nada haviam valido... Coisas assim. Conversei muito com ela, mas...
Pobre mamãe que, mais uma vez, se negava a ver! Expulsa de casa por mamãe, que foi apoiada por papai e por meus irmãos, mudei-me definitivamente para o Sanatório.
Afinal, parecia que eu havia nascido mesmo para enfrentar barreiras, começando por tornar-me médica numa época em que as mulheres mal tentavam sair da cozinha e
dos afazeres domésticos. Aliás, sempre fui péssima na cozinha. Alguns colegas de curso costumavam dizer - e como! - que eu não era uma mulher ideal, que não entendiam
como alguém ia optar por se tratar comigo, ao invés de se tratar com um homem. E até coisas mais fortes. Deixa pra lá... Continuei trabalhando e aprendendo com
meu tio, presenciando fatos dignos de nota. Por anos e anos, vi loucos desenganados pela medicina tradicional se tornarem aptos à convivência familiar novamente.
Outros se acalmavam aos poucos e, embora não ficassem completamente curados, tornavam-se capazes de se lavarem, se vestirem, comerem sozinhos. Aconteciam coisas
maravilhosas no hospital! Por causa disso, ao longo dos anos, muitos dos antigos colegas me procuraram, se aproximaram de mim, chamando-me, desta vez, de pioneira.
Mas, deixa pra lá também... Tínhamos uma interna - Lourdes - cujo diagnóstico de esquizofrenia era dos piores possíveis e não deixava margens a especulações sobre
recuperação total. Ela já não era mais paciente. Era uma hóspede perpétua, abandonada pela família e pela sociedade. Pois não é que Lourdes, vez ou outra conseguia
nos surpreender com a lucidez com que previa os fatos? Sim, isto mesmo! Ela conseguia, no meio de todo o seu desequilíbrio, olhar para alguém e dizer, por exemplo:
"Olha, não saia hoje não, que você levará uma queda feia e se machucará bastante". Ela disse isto para um enfermeiro que não acreditou, saiu à noite para uma festa,
tropeçou nas escadas do clube, caiu e quebrou uma perna em dois lugares. Curiosamente, depois de fazer tais previsões, Lourdes melhorava consideravelmente por alguns
dias. Tentamos estudá-la, fazer uma bateria de exames, conversar bastante com ela. Titio nos fez desistir da idéia: não haveria resultado na nossa pesquisa, se quiséssemos
explicá-la apenas à luz da ciência. A nossa paciente era uma paranormal e, embora doente - talvez mesmo por não ter usado estas faculdades nas horas e momentos certos
- não havia perdido estas mesmas faculdades. Ou, outra teoria possível, talvez as tivesse adquirido - ou desenvolvido as que estavam latentes - em função da própria
doença mesmo. Quem saberia dizer? Titio era contra bombardeá-la com mais exames, remédios e interrogatórios. Ela já havia sofrido muito, dizia ele, pois nós a havíamos
encontrado na sarjeta, morando nas ruas, suja e humilhada, no mais completo abandono. Agora, devíamos respeitá-la, ajudá-la, protegê-la e deixar a vida seguir seu
curso. Lourdes freqüentava com gosto as reuniões que Titio fazia às terças-feiras à noite. Isto melhorava muito o estado geral dela, muito mais do que os remédios
que tomava. E ela, estranhamente para o caso, tinha inteira consciência disto. Tanto que, embora não tivesse nenhuma noção de tempo e hora, tinha uma espécie de
campainha interna que denunciava a terça-feira às 20 horas. E lá chegava ela, voluntariamente, na sala de reuniões, às vezes levando consigo um companheiro que encontrara
pelos corredores, amparando-o maternalmente e dizendo que ele melhoraria depois da reunião, o que de fato acontecia. E assim seguia a vida, tranqüila e cheia de
trabalho, resultados aparecendo em uns casos e noutros não. Mas, sempre com muita fé e felicidade, pois os fatos melhores eram mais freqüentes que os piores. Um
dia, mamãe acordou estranha. Gritava que alguém a perseguia.
Chorava e se escondia. Sentia-se muito mal, os olhos esbugalhados. Papai me telefonou, com pressa e assustado. Eu e titio acorremos rapidamente. E uma ambulância
levou mamãe para o nosso hospital. Eu e titio passamos a nos revezar na cabeceira de nossa doente, que passou os primeiros dias prostrada e que, depois, realmente,
apresentou um horrível quadro, cheio de alucinações, gritos, desespero profundo. Papai e meus irmãos nos avisaram que não teriam coragem de visitá-la. Nós nos tornamos
então sua única referência de família, o irmão e a filha que ela desdenhara e que agora a tratavam com todo carinho. Mamãe se acalmava muito perto de Lourdes, que
a protegia fraternalmente. Passamos a deixar as duas mais tempo juntas, sempre sob vigilância. Lourdes repetia que não havia perigo, numa estranha lucidez. Mas,
mesmo assim, ficávamos de olhos abertos, pois a situação era inusitada: uma louca estava tratando - não sabíamos bem como, mas víamos os excelentes resultados -
de outra louca. As duas irrecuperáveis. Juntas, melhoravam. Separadas, pioravam. Meses e meses eu e titio monitoramos as duas amigas. Depois de algum tempo, chegavam
a conseguir conversar com certa lucidez. Nestas horas, ninguém acreditaria que eram duas loucas, pois os assuntos eram quase sempre interessantíssimos! Quando não
discutiam as próprias doenças, discutiam as dos outros internos. Ou mesmo falavam de Deus, de prêmios e recompensas dos justos. Era bom ouvir as duas! Eu e titio
já sabíamos que tínhamos câncer, mas lutávamos bravamente contra as nossas próprias doenças, tentando prolongar o mais possível nossa permanência naquele local,
para conseguirmos ajudar mais. Sabíamos que precisavam de nós. Mas sabíamos também que ninguém é insubstituível e nos resignávamos. O importante era cumprir o dever
até ao fim, sem esmorecer ou lamentar. Na hora certa, apareceria alguém que ocuparia nosso lugar. Mesmo assim, nosso dia chegou primeiro o de titio, logo em seguida
o meu. Rapidamente nós dois nos reunimos aqui, onde continuamos a trabalhar juntos, na recepção, triagem e encaminhamento daqueles que chegam desorientados, perdidos,
sofridos. E hoje, enquanto estudo ao lado de titio, estamos esperando duas pessoas muito especiais, que necessitarão de tratamento logo no início, mas, temos certeza,
logo estarão no serviço ativo conosco do lado de cá: Mamãe e Lourdes.

TEREZA

Sou Tereza e sou freira. Desde os 18 anos e os anos mil, seiscentos e tantos... Eu queria ser freira desde menininha. Rezava muito e dizia que ia trabalhar só para
Jesus. Nunca me interessei por roupas, enfeites, festas, coisas de moça. Preferia me vestir discretamente, nunca usava maquiagem. E não tive festa de 15 anos, por
opção minha e desespero de minha mãe. Minha saída de casa, aos 18 anos, em direção ao Convento, foi dramática. Mais tarde soube que disseram que fui eu quem matou
mamãe, de tristeza e dor, pois logo depois que a filha única partiu, ela morreu do coração. Meu pai rompeu relações comigo, dizendo que eu havia levado a infelicidade
ao nosso lar. Missionária, resolvi pedir para trabalhar na África. Acreditava ter mais chances de ajudar, pois lá havia e há regiões paupérrimas. Atendida, fui parar
em uma aldeia no meio da selva, com mais duas freiras e muita dificuldade de comunicação com o resto do mundo. Éramos tudo lá, de médicas a enfermeiras, de mães
a professoras. Fazíamos o possível e o impossível com nossos recursos escassos. Mesmo assim, trabalhávamos de sol a sol - e como havia sol! No princípio, ficávamos
muito cansadas com o calor e o trabalho, mas depois fomos nos acostumando. Acompanhávamos rigorosamente os hábitos da tribo, tentando captar-lhes a confiança. O
pior era acordar de madrugada. Isto porque geralmente nos deitávamos muito tarde, depois de todos.
Ficávamos programando o dia seguinte. Éramos três para muito trabalho! E também era o único tempo de que dispúnhamos para rezar, colocar nossas relações com Deus
em dia. Depois, fui compreendendo que não era só nesta hora que rezávamos: nosso dia-a-dia era uma oração constante. Mas, naquela época, bem no princípio, sentia-me
culpada por não ter tempo para fazer adoração, jejuns e, principalmente, penitências. Como se não fizéssemos penitências constantemente! Às vezes, nem dormíamos
direito, na cabeceira de algum doente. Afinal, nossa casa tinha um anexo que era o único hospital local. De vez em quando, uma equipe da Cruz Vermelha passava por
lá e isto já era um sucesso, pois havia locais onde ela não passava nunca. Com o tempo, aprendemos a língua e os costumes da região. Procurávamos nos adaptar o mais
possível, incomodar o menos possível, sermos úteis na medida do possível. E, graças ao bom Deus, conseguimos. Conseguimos até ser amadas até às raias do impossível!
E amávamos muito aquele povo também! Encaramos festas, brigas, revoluções, lutas e tudo mais com toda força e fé. Conseguimos criar uma escola, precária é verdade,
mas onde as crianças aprendiam um mínimo de instrução e o máximo de amor a Deus e aos homens. Quanto a Deus, isto foi um pouco complicado no princípio, pois nos
chocávamos muitas vezes - ou quase todas às vezes - com a religião local. Fazíamos verdadeiras ginásticas para combinar os ensinamentos e mostrar que Deus é um só,
seja ele chamado de Deus ou Zambi, qualquer nome tenha. Tentávamos mostrar que o importante era fazer o Bem e ser bom. Músicas e cantos em manifestações religiosas
trazem alegria e não podem ser proibidas. Além do mais, fazem parte da cultura africana e os africanos não dispensam isto. Dançar e cantar faz parte da natureza
deles. Conseguimos colocar nossas letras religiosas dentro do ritmo musical deles e foi um sucesso! Incorporávamo-nos ao grupo e cantávamos e dançávamos também,
em louvor ao Pai! E foi aí que aconteceu a confusão. Estava bom demais para ser verdade e virou pesadelo. Uma supervisora de nossa Congregação, madre austera e conservadora,
fez uma inédita e inesperada visita de inspeção em nossa aldeia. Inédita, porque ela jamais viajava, vivia em Paris na sede mundial da Ordem e nunca se deslocava.
Ela quase morreu do coração quando assistiu nossa hora de oração com o pessoal da tribo! A reação foi imediata. Recebemos ordem de abandonar tudo e voltar para o
Brasil, onde nossos superiores resolveriam o que fazer. E não adiantou a aldeia inteira chorar e pedir. A irremovível Madre nos carregou com ela no dia seguinte,
imediatamente nos dando uma relação de penitências que devíamos cumprir, antes mesmo de nos confessarmos com o padre orientador de nossa Congregação. Depois de muitas
discussões e sofrimentos, foi resolvido que seríamos internadas numa clausura e não poderíamos ter mais contato com o mundo exterior. Devíamos terminar nossa vida
em penitência, pedindo perdão a Deus por tentarmos introduzir macumba herética em nossa fé. Desnecessário dizer que não entendemos nada. Nossas músicas eram lindas
e quase todas eram versões adaptadas de antigas canções religiosas, apenas em outro ritmo. Mas eles não pensaram assim. Obedientes ao nosso voto de obediência, nós
nos submetemos. Não adiantava mesmo tentar qualquer defesa, principalmente porque estávamos muito traumatizadas, acreditando mesmo que talvez tivéssemos feito algo
errado. Resolvida onde seria a clausura, foi marcado o dia da viagem. Recebemos ordem de manter silêncio total até chegarmos ao nosso destino. Era outra penitência.
Na madrugada chuvosa de uma sexta-feira, embarcamos no trem que nos levaria até a região montanhosa onde se localizava o Mosteiro que nos abrigaria. De nosso, não
pudemos levar nada, nenhuma recordação ou objeto particular. Apenas a roupa do corpo.

Para nos conduzir e entregar no destino foi designada uma Madre Corregedora, que em momento algum da viagem sequer olhou para nós, pobres pecadoras a caminho do
castigo. O trem corria pelos trilhos e cada vez entrava mais pelo interior da montanhosa região. Eu nunca gostei de velocidade, portanto achava que ele estava correndo
demais. Minhas duas amigas, em estado de total depressão, nem sequer se animavam a abrir os olhos e estender a visão pela janela. Neste estado, elas nem pareceram
notar o pesado solavanco e o descarrilamento. Mas eu notei. Inclusive vi perfeitamente quando nosso carro se soltou junto com outros e se precipitou no abismo, entre
gritos e barulhos de ferragens. Tive até tempo de me sentir enfim livre. E não senti queda nem dor. Ao contrário. Voei como um pássaro. Nem sei se devo contar isto,
pois não estou entendendo bem, embora esteja gostando muito. Mas, ao batermos lá embaixo, nós três nos levantamos sem nenhum ferimento, sorridentes e passando muito
bem. Alguém, também vestida de freira de nossa mesma Congregação, já nos esperava sorrindo. Será que foi acidente mesmo ou eu, de tão impressionada, me confundi
numa das violentas descidas curvas da estrada? Mas, sei lá... Apenas fomos informadas pela irmã que nos esperava que outra condução nos levaria de volta imediatamente
à nossa aldeia africana, onde deveríamos continuar nosso trabalho, pois estávamos sendo requisitadas lá. E faço este meu depoimento enquanto viajamos, desta vez
todas olhando animadamente pela janela de nosso interessante veículo (nunca vi um assim antes, deve ser porque sempre vivi afastada da civilização!), sob o olhar
sorridente de nossa condutora.

ALEXANDRE

Sou carioca da gema, alegre e feliz. Não é qualquer coisa que me aborrece, me tira do sério e estraga minha paz não. Sou conformado com a vida e o mundo e nunca
paro muito tempo para questionar as coisas. Que Deus seja servido! - é o meu lema. Sempre morei e trabalhei numa das favelas do Complexo do Alemão e poucas vezes
visitei os locais famosos da cidade, os cartões postais do Brasil. Contentei-me sempre com minha casa, de onde eu nunca precisei andar muito nem pegar condução para
ir trabalhar: ela fica justamente atrás do meu bar, o "Bar do Antônio". Antônio é o nome do pai do meu pai de criação. Trabalhando mais de noite que de dia, conhecendo
tudo e todos no lugar, jamais desejei algo da vida que não fosse minha paz e o meu sossego, trabalhando e vivendo. Nunca tive chance de estudar e pouco fui de escrever,
além de assinar meu nome. Já, quanto a dinheiro e números, sempre os conheci muito bem. Para que mais? Conhecendo-os, o controle do bar e seu movimento estão garantidos.
Minha distração maior: jogar dominó. Todo dia. O bar sempre foi o ponto do dominó e a aposta uma garrafa de cachaça. Estou um pouco triste porque há muito não vou
a casa, nem cuido do meu bar. Agora que levei este tiro e nem sei de onde ele veio, estou aqui no Hospital há muito tempo e não sei bem quando voltarei para casa.
Estou me sentindo muito bem e melhorando muito. Mas nem me falam em alta!... A enfermeira que conversa muito comigo me pediu para contar sobre minha vida, que estão
fazendo um trabalho com os pacientes, procurando saber tudo sobre eles. Como não sei escrever, ela me deu este gravadorzinho diferente dos que conheço e danado de
bonitinho. É nele que estou falando agora. Ela disse que ficarei muito feliz quando terminar de gravar, porque estarei ajudando muita gente com a gravação. Será?!
Não imagino como poderei ajudar. Não sou padre, nem pastor, médico ou enfermeiro. Nem tenho nada para contar, por mais que ela insista. Nunca me aconteceu nada diferente,
a não ser este tiro, do qual já disse não me lembrar muito bem.
Eu nem sabia que foi tiro: um enfermeiro é que me contou. Mas tudo bem, vou gravar. A enfermeira é muito boazinha e não custa nada fazer a vontade dela. Vamos lá...
Estou num quarto com um companheiro só, um sujeito muito grande e sério, que não gosta de falar muito. Ainda bem que não gosta, porque ele nem tem jeito de falar
demais, porque também levou um tiro e foi na boca. Cruzes! Ele ainda tem muita dificuldade para articular palavras. Mas gosto dele. Acho que vamos ser bons amigos
para sempre, pois, agora que ele está conseguindo se comunicar melhor, me contou que mora perto de mim. Mundo pequeno! Ele me contou um segredo brabo também: é viciado
em droga, mas nunca foi traficante, embora todos os vizinhos e até a família dele pensem que é. Nem nunca matou ou roubou para conseguir a erva. O coitado sempre
fez foi uma força danada para se livrar do vício. Mas, quando estava conseguindo, sempre aparecia alguém tentando convencê-lo a voltar... Meu companheiro se chama
Joaquim e me contou uma coisa muito séria: disse que, no dia em que levou o tiro, estava brigando com um bêbado que queria convencê-lo a comprar cocaína. Lutaram
e ele conseguiu tomar um revólver da mão do outro, que queria atirar nele. Saiu correndo com ele na mão, desesperado, sem notar que o adversário tinha outra arma.
Tropeçou, caiu e ouviu os tiros: um acidental, da arma que estava em sua mão e o seguinte que o outro disparou na direção dele e que, segundo soube depois aqui no
Hospital, atingiu em cheio a sua bochecha. Ele ficou agonizando no chão e ainda teve tempo de ver uma correria no bar da frente, pois alguém tinha sido atingido.
Seria a bala da sua arma? Desmaiou e acordou aqui, na cama ao lado da minha. Disse que eu fiquei em coma muito tempo, pois só acordei muitas semanas depois dele.
Joaquim me contou que, quando voltei do coma, fiquei muitos dias falando coisas esquisitas, chamando amigos e conhecidos, minha família. Falei que queria minha casa
e meus pais. Ele me perguntou se tenho família. Respondi que não. É verdade: meus pais me abandonaram quando eu era pequeno, fui criado por um pastor e depois fugi
da casa dele. Não entendo como fui ficar chamando por pessoas que não conheci como meus pais. Chamei muito por mamãe, eu que nunca a vi! Acho que foi efeito da anestesia,
pois eles devem ter me operado para tirar a bala. Os médicos daqui devem ser muito bons, pois tiraram a bala da minha cabeça e eu não fiquei maluco, só delirei uns
tempos. Tem gente que, quando não morre, fica doido, se leva tiro na cabeça... Pode ficar pateta também. Sorte a minha! Mas, voltando à minha vida, que é o que a
enfermeira me pediu, tenho muito pouco a mais para contar, além do que já falei. Tenho um vizinho, Seu Zé do Porto, que é muito velho e cheio de manias. Ele é meu
único amigo e deve estar muito preocupado comigo, pois estou demorando a voltar para casa e ainda não posso receber visitas. Seu Zé é a única novidade na minha vida
pacata e igual, pois toda sexta-feira, bem tarde da noite, ele me chama para acompanhá-lo, junto com outros amigos dele, que conheço pouco, mas que são muito legais
também. Todos carregam grandes galões com café com leite. Cestas de pão com manteiga também. Dá um trabalho danado ajudar a carregar aquela traquitana toda, mas
faço pelo Seu Zé. E é bom ver as pessoas que dormem nas ruas receberem aquele lanche quentinho! É a minha única diversão e a única coisa diferente que faço, além
do dominó no bar: sair com a turma do Seu Zé. Já estou com saudade deles... Pensando bem, até que tenho algo mais para falar, mas nem aconteceu ainda... Vou contar,
para melhorar a situação e deixar a enfermeira mais feliz: se eu não tivesse levado aquele tiro fora de hora e vindo parar no hospital, eu ia começar a ficar mais
tempo junto com Seu Zé sua turma. É que eles estavam acabando de construir uma casa para abrigar pessoas que já mexeram com drogas e queriam largar o vício. Todos
estavam ajudando, com dinheiro e material. Até eu cheguei a dar algum. Pouco, mas de coração. Tenho muita pena deste pessoal que mexe com droga.
Seu Zé disse um dia para mim que havia mais gente ainda conosco e que eu conheceria outros amigos dele qualquer dia. Bastava arranjar uma noite livre e eu iria com
ele na casa de uma pessoa, onde havia uma reunião que eu ia gostar muito. Não entendi bem reunião de quê, mas não faz mal. Cheguei mesmo a conversar com o Zé da
Mariquinha para ele ficar no bar uma noite por semana para mim. Ele concordou, mas, logo depois, aconteceu isto e vim para o hospital. Que azar! Turma boa a do Seu
Zé! Dá até orgulho de participar dela! Quando eu puder receber visitas, vou avisar para ele: quero ajudar mais na casa. E o Joaquim também. Falei com ele e ele ficou
entusiasmado. Será que a gente vai poder fazer alguma coisa de útil? O Joaquim é como eu: nem ler e escrever sabe... Mas já combinamos: quando sairmos daqui, ele
também vai para a turma do Seu Zé. Quem sabe a enfermeira também quer? Será que ela tem outra distração, além de cuidar de doentes? Agora, não tem mesmo mais nada
para falar. Quem mandou ter uma vidinha de nada? E será que a coitadinha da enfermeira, tão boazinha, vai ficar aborrecida comigo por eu ter falado tão pouco? Mas
juro: não tenho mesmo mais nada para contar...

ANDRÉ

Sou engenheiro, 35 anos, muito bem casado, dois filhos pequenos de 8 e 10 anos, boa situação financeira e social, atualmente em total ascensão profissional. E daí?
Adianta ficar falando nisso agora? Sei lá... Fico pensando se aquilo que a gente constrói durante toda a vida e, de repente, nota que é totalmente desnecessário,
serve para alguma coisa no futuro. No futuro do outro mundo. Gozado... Eu nunca pensei no outro mundo. Até que vim parar nele sem como nem por que... Não tenho saudades
nem mágoas, nem vontade de voltar para o anterior. Muito menos vontade de ficar por aqui... No momento estou totalmente apático, sem ação, procurando primeiro entender.
Apenas me recupero cada dia mais do acidente, onde o prédio inteiro desabou e eu estava num andaime do oitavo andar. Recuperação psicológica é claro. Pelo menos
aqui parece que as pessoas são muito mais sinceras do que lá. Todos me tratam muito bem e o velho professor de matemática que também se recupera aqui, já me garantiu
que, com o tempo, haveremos de começar a nos interessar pela nova vida, descobrindo nela motivos interessantes para prosseguir. Prosseguir para onde? Preciso reagir
cada dia mais e descobrir tudo... Nova vida! Encontro-me cheio de indagações e sem forças ainda para tentar entende-las e confirmá-las. Estou nascendo de novo? Acho
que é mais ou menos assim. Eu nunca me preocupei muito com religião não, nem sequer tive tempo para pensar que um dia poderia morrer. Também, um homem da minha idade
e em plena saúde não pensa mesmo nestas coisas. Havia muita vida pela frente. Havia. Agora há novamente muita vida pela frente, penso. Mas outra, diferente. Será
que é diferente mesmo? Para começar, aqui eu sou engenheiro como era lá? Para que? E valeu ter sido engenheiro lá? Tenho tantas perguntas sem resposta... É até engraçado
constatar como, de repente, todos os valores mudam. Não preciso mais de dinheiro, por exemplo. E eu corri atrás dele a vida inteira... De que será que precisarei
agora? Será que o professor Júlio já sabe algumas respostas? Lá, uma amiga me dizia que engenheiro tem concreto armado na cabeça e não se abala com nada. Não é bem
isto: engenheiro é matemático, sério. Não gosta de firulas. Sempre amei muito minha família, mas nunca fui de grandes emoções, nem dramático. Mas observador, frio,
mente sempre alerta. Tanto é que notei logo que havia morrido e que chegava em outro plano, de maca, tudo desconhecido para mim. Não me exaltei. Deitado na cama
do hospital - hospital?! - resolvi esperar calmamente por uma explicação lógica.
Mas raciocinei rápido e me levantei logo da cama: se eu estava morto, não podia estar sentindo seqüelas do acidente. Tinha que estar bem, pois o corpo machucado
havia ficado para trás. Não entendia bem como havia me dividido tão perfeitamente em dois, mas era óbvio. Sentei-me no sofá que havia perto da janela do quarto e
fiquei esperando. Sem susto, sem traumas. Apenas esperando. Não demorou muito e entrou um médico. Idoso, calmo e normal como o meu pai, que é médico também. Sentou-se
a meu lado, perguntou se eu estava bem. Foi a conversa mais surrealista do mundo: nenhum de nós dois, em hora alguma, falou em morte! Falamos do acidente, como se
o estivéssemos assistindo. Surpreendente! Ele me informou que fiquei muito machucado internamente. Mas que não devia me preocupar mais. Que todos os socorros foram
providenciados na hora para todos que caíram. Perguntei se havia mais gente ali, os operários, o encarregado, que estavam comigo. Respondeu que não. Haviam sido
encaminhados aos locais de direito. Fui informado que, mesmo com o controle magnífico que sabia manter, ainda devia permanecer no quarto por mais algum tempo, para
ambientação e descanso. Que eu seria visitado todas as tardes pelo meu vizinho de quarto, que já estava mais ambientado do que eu. Que não deveria me preocupar,
pois todas as explicações e informações viriam na hora certa. Que minha família estava bem. Aliás, disso eu tinha absoluta certeza: deixei muitos bens, uma mulher
equilibrada e tudo muito bem organizado. Lógico, tinham que estar bem. O meu vizinho de quarto, Júlio, professor de matemática pura, 63 anos, ótimo humor, é perfeitamente
equilibrado mentalmente. Disse que reagiu mais ou menos como eu ao acordar no hospital, depois do fulminante ataque cardíaco: não fez dramas nem perguntas demasiadas.
Tinha ligeira noção religiosa, mas o que valeu mesmo foi o autocontrole. Confessa que não esperava a perfeita organização que encontrou. Em poucos minutos ficamos
amigos, pois nos identificamos muito. Somos ambos tranqüilos, controlados, incisivos e diretos. Não gostamos de grandes manifestações de emoção e nem de descontroles.
Aliás, eu odeio exagero, seja ele de que tipo for. Exijo total equilíbrio emocional dos que me cercam, ou me afasto deles. O homem tem que saber usar sua mente,
dominar as emoções. Por falar em domínio de emoções, eu e Júlio estamos concordando em gênero, número e grau com todos os passos da pós-vida: calma, ambientação,
descanso, conversa, informações e explicações nos momentos certos. Nada precipitado. Excelente! Nossa mente está repleta de perguntas e sabemos que todas serão respondidas.
O pessoal aqui é sério. Temos consciência de que agora temos todo o tempo do mundo e vamos começar a nos organizar, para que não percamos os nossos princípios e
venha a alienação. Já esboçamos nosso programa de ação: a partir de amanhã, Júlio conseguiu autorização do médico para sairmos juntos por aí. Vamos andar pelos arredores
do hospital, dentro dos limites que nos forem permitidos, mas explorando ao máximo, primeiro o norte, depois o sul, o leste e o oeste. Não nos interessa a mínima
precipitar os acontecimentos. O local, pelo que posso observar da janela, é bem cuidado e extenso e todos - ou quase todos, suponho - os que se encontram em recuperação
aqui podem passear por ele. E lá vamos nós dois também, munidos de material para anotações. Nossa segunda etapa, depois que estivermos familiarizados com o local,
será pedir as informações que nos devem. Metodicamente. Já estamos fazendo uma relação das perguntas prioritárias, por escrito, para não nos esquecermos de nada.
Estamos fazendo um trabalho perfeito, nos mínimos detalhes. Nada nos escapa e - garanto - nem escapará. Só temos uma dúvida e um único problema, um pouco delicado
para contornar: o médico que nos visita diariamente e confere nosso estado psicológico, dizendo que é o responsável por nós. O homem é tranqüilo e sorridente demais.
Ele nos trata com toda educação e carinho.
Muito carinho, o que nos incomoda um pouco. Quando viu nossa bem elaborada relação de perguntas, deu um largo sorriso. Absurdo! Depois, comentou, nos abraçando paternalmente
pelos ombros que, enquanto fizermos o reconhecimento dos arredores, talvez encontremos respostas para muitas de nossas indagações... E muitas surpresas também. E
que talvez o nosso modo de pensar mude um pouquinho... Não queremos respostas aleatórias e vagas de leigos! Será que o velhinho não entendeu que somos pessoas organizadas
em busca de algo organizado?

ANACLETO

Sou operário da construção civil, 50 anos, casado, quatro filhos. Sei que estou muito mal, todo quebrado, na enfermaria do Pronto Socorro. Caí do andaime e a culpa
foi minha, que nunca respeitei nenhuma norma de segurança, a despeito dos avisos e exigências dos patrões. Sempre encontrei um modo de burlar vigilância e segurança.
Agora, aprendi a lição que Nosso Senhor Jesus Cristo me pregou e aceito a vontade Dele. Nosso Senhor Jesus Cristo seja louvado. Ele é quem sabe o que deve e por
que deve acontecer. Eu só não gostaria mesmo é de morrer agora. Ainda preciso fazer algumas coisinhas. Minha família está em dificuldade e preciso ajudar. Aquelas
coisas que sempre acontecem nas famílias: dinheiro, filhos com problemas... A Tininha, a minha menina mais nova, ficou grávida do filho do Agenor da venda. O Agenor
ficou uma fera quando soube e quer porque quer matar os dois, minha filha e o filho dele. Os dois estão mortos de medo - o Agenor é muito violento - e escondidos
na casa do meu irmão Zeca, esperando eu falar com o Agenor e acertar as coisas. Já o Adalberto, o meu mais velho, está bebendo muito, vive caindo pelas ruas, a Polícia
carregando ele. Uma tristeza! O Antônio - que é padrinho dele - ia me ajudar a arrumar uma clínica para internar ele. No dia em que eu caí, tínhamos combinado ir
lá, depois do serviço. Tereza, minha mulher, está com problema de veia arrebentada na perna e teve de deixar o emprego de empregada doméstica numa casa onde estava
há vinte anos. Ela não pode ficar de pé muito tempo. Gostava muito da família e a família gostava dela. A Tereza criou os filhos da dona da casa. Foi uma choradeira
a saída dela! Mas ela não pode ficar de pé muito tempo. Sente muita dor nas pernas inchadas. O médico falou que ela vai precisar operar e ficar de repouso muito
tempo. Repouso! Coitada da Tereza! Já viu pobre conseguir ficar de repouso? A Maria das Graças e a Maria das Dores arrumaram emprego fora e só aparecem no fim de
semana. Uma é arrumadeira e a outra babá. Na mesma casa. Graças a Nosso Senhor, as duas estão indo bem, não preciso me preocupar com elas por enquanto. Louvado seja
Nosso Senhor Jesus Cristo que está sendo servido! É... Só preciso melhorar depressa, para resolver o problema da Tininha e a internação do Adalberto. Ele é bom
moço, não merece o que está acontecendo com ele... É um problema, preciso sarar e não estou vendo muito jeito de acontecer isto logo não... É tanta dor no corpo
todo... E o Agenor que não me sai da cabeça. Vai ser uma luta para convencer o Agenor... Estou começando a ficar muito preocupado. Hoje esteve aqui um enfermeiro
diferente. Alto, sorridente, chegou muito cedo, o dia nem tinha clareado ainda! Que hora de acordar doente! Foi logo assentando perto de mim, na cama. Perguntou
pelas minhas dores, se haviam melhorado. Eu disse que não, principalmente a do peito. Ele disse que vão melhorar logo, com o novo tratamento. Falou que, hoje à noite,
volta para me transferir de hospital. Não gostei da conversa, ta parecendo chá da meia noite... Mas, eu sempre digo que Nosso Senhor Jesus Cristo é quem sabe e quem
resolve. Por via das dúvidas, perguntei pra ele se ele sabe quanto tempo ainda vou ficar internado em hospital.
Contei os problemas urgentes que vou ter que resolver. Ele respondeu que vou resolver tudo logo, logo, na hora certa. Agora, estou aqui esperando ele chegar, porque
já está tarde, já passou do jantar e o dia está escurecendo. Ai, meu Deus do Céu, é tanto problema! Agora, além das dores, dei para sentir uma coisa esquisita de
vez em quando. Parece que meus olhos ficam embaçados, como se eu tivesse chorado muito. Eu devia ter conversado mais com o compadre Sebastião. Ele é muito religioso
e ia me explicar direitinho como é a morte e depois dela. Pois não é que estou ficando com um medo danado de morrer? Já disse que não posso morrer agora! Mas Nosso
Senhor Jesus Cristo é quem manda... Só quero uma coisa se eu morrer: poder continuar trabalhando e ajudando. Não concordo com este negócio de morrer e ficar parado,
não! Tem que trabalhar, ajudar. Senão as coisas todas da vida e da morte perdem o sentido. E, se a minha morte for facilitar as coisas para ajudar à Tereza e às
crianças, até que vou tranqüilo... Ah, lá vem o enfermeiro e mais dois entrando na enfermaria e trazendo uma maca. Deve ser para me levar. Nosso Senhor Jesus Cristo
que me ajude! Não deve ser chá da meia noite não. Eu não estou com medo... Só esta dor no peito que aumenta toda hora e cada vez mais... Nosso Senhor Jesus Cristo
que me ajude!

FERNANDO

Se a gente contar como é ninguém acredita. Mas é terrível a sensação de cair, de notar que os aparelhos falharam e que só restam segundos até tudo se acabar. Muitas
vezes até que não se acaba. Acontece um milagre e a gente apenas sai todo quebrado e assustado, ressuscitado. Mas é um caso em mil. Meu trabalho sempre foi testar
motores aeronáuticos, no ar e em oficinas, em terra. Sempre fui bom e cuidadoso piloto. Um dia, aconteceu uma inundação muito grande numa cidade vizinha. Ofereci-me
logo para retirar as pessoas que estavam ilhadas. Meu patrão, homem bom, ofereceu o monomotor que ele usa para ir à fazenda e lá fui eu. Fiz várias viagens. Como
não havia campo de pouso, era preciso descer na estrada, recolher o pessoal e subir novamente, em condições muito precárias. A Polícia Rodoviária colaborava, interditando
um grande trecho rodoviário, para facilitar os trabalhos. Isto tudo está vindo à minha mente agora, após o último vôo, que não deu certo por falha técnica do motor
e me obrigou a fazer uma aterrissagem forçada no campo, ao lado de uma estrada vicinal. A última coisa de que me lembro são as fagulhas. E, deitado na grama, aguardei
socorro. E aí é que a história fica diferente, sobrenatural até. Nem sei se estou sabendo lidar bem com os fatos ainda. Esticado no gramado ao lado da estrada, vendo
o avião espatifado se incendiar, eu vi - e vi nitidamente - o meu corpo pegar fogo lá dentro da nave! Assustado, já começava a entrar em pânico, quando mãos finas
e macias passaram pela minha testa, me acariciando e acalmando. Desviei o olhar e deparei-me com linda moça, vestida de branco, sorrindo docemente e dizendo que
eu ficasse calmo, que estava tudo bem. Assentada a meu lado na grama, ela me olhava com carinho. Tolamente, perguntei se era eu, lá dentro, pegando fogo. Docemente,
ela respondeu que sim. Desesperado, eu quase desmaiei. Passei as mãos pelo corpo, apavorado. Novamente, ela me acalmou. Disse que eu estava a salvo, lá havia apenas
o meu corpo material. Comecei a não gostar da conversa. Perguntei num murmúrio apavorado:
- Quer dizer que eu morri?
- O que você entende por morte?
- O fim. O Nada. A Escuridão Total...
- Acaba de se dar mal... Não aconteceu o Fim, o Nada e nem a escuridão Total...
- Eu morri?! - minha voz era um fio dolorido.
- Você acaba de sair de um plano e entrar em outro. Mudar de roupa, digamos assim. Tudo continua.
- É?!
- É.
- Quem é você?
- Fui recrutada para ajudar você.
- Um anjo...
Ela parecia se divertir e riu gostosamente:
- Obrigada, mas não chego a tanto. Sou uma irmã mais experiente nestas coisas de morte...
- Se eu morri, por que as minhas costas doem? Ou melhor, o corpo todo dói. Alma dói? Sou uma alma, não sou?
Ela continuou rindo:
- Pelo que vejo, uma alma muito mal informada...
- Estou com medo... - balbuciei.
- É normal. Breve se sentirá melhor. O choque do desligamento foi muito repentino. Mesmo assim, você está consciente. Isto é bom.
- Tem gente que desmaia, é?
- Cada um se comporta de uma maneira. E todas as maneiras têm sua razão de ser. Você está se saindo muito bem, mantendo as principais funções mentais.
- E agora, o que vai acontecer?
- Estamos esperando socorro. Você ainda não pode se mover. O choque foi forte demais. Passará por um período de tratamento e adaptação. Uma onda de susto me tomou.
Peguei a mão dela com força:
- Mas você não vai sair de perto de mim, vai? Sabe, é que não conheço ninguém neste mundo...
- Anime-se. Breve descobrirá que conhece muito mais gente do que pode pensar agora. Mas sou responsável por você neste primeiro estágio e estarei sempre por perto.
Olhe lá, o pessoal está chegando.
Olhei e fiquei perplexo. De um lado, bombeiros e carros de polícia cercavam o avião no maior barulho e gritaria, atirando jatos de água e espuma para abafar o incêndio.
Curiosos paravam na estrada para olhar. Do outro lado, grande veículo parecia surgir de uma porta tridimensional no espaço. Eu me lembrei das visões bíblicas, tão
grande era a imponência da cena. Pensei no carro de fogo de Elias e coisas assim. Ao mesmo tempo, estranha onda percorreu o meu corpo e uma imensa e até então desconhecida
paz dominou a minha alma. A minha moça anjo da guarda passou as mãos docemente pela minha cabeça e eu adormeci sem sonhos.

MARGARIDA

Como estou gostando daqui! Tudo me faz bem. O ar, as pessoas, os fatos que se sucedem uns aos outros, sempre deliciosos! Até o meu trabalho agora é o mesmo de antes:
lido com flores. Só que as daqui são muito mais belas que as de lá. São umas edições melhoradas. E há espécies que eu desconhecia. Umas são luminosas! Uma apoteose
à noite! Eu tinha uma flora. Fazia pequenos projetos de decoração para casamentos e recepções. As flores vinham do meu próprio sítio. Vivi sempre entre plantas floridas
e considero isto uma benção. Família unida, papai e mamãe no sítio coordenando as plantações, eu e meus dois irmãos no vai-e-vem entre a cidade e o interior. Sempre
carregando flores. Papai era conhecido como cultivador de rosas e até chegou a criar uma nova espécie, quase azul.
Deu a ela o nome de mamãe: Olívia. Muitos anos depois, vim encontrar aqui a rosa que papai tentou criar! A rosa azul de tantas lendas! No tom exato que ele queria:
da cor dos olhos de mamãe. E, aqui, batizei-a também de Olívia, em homenagem ao amor dos dois. Aqui não tenho flora. Trabalho em uma das equipes que zelam pelos
jardins e parques. Cuidamos dos mínimos detalhes. Tudo é muito organizado e da turma fazem parte todos aqueles que têm ou tiveram alguma ligação com botânica, agronomia,
agricultura e tudo mais que tiver relação com o cultivo de plantas. Encontrei, quando cheguei, o Sr. Argemiro, velho amigo de papai, que tinha orquidários fabulosos.
Também aqui ele continua entre suas orquídeas, milhares de vezes mais belas! Todos têm orgulho de nossas plantas e procuramos montar os jardins de acordo com o local
onde se situam. Na minha equipe, por exemplo, temos uma norma de ação: nos arredores de um hospital, colocamos mais cores, tudo multicolorido, mais flores e menos
folhagens. Alegra mais o ambiente. Se há fontes minerais curativas, muitas florinhas brancas e luminosas - algumas prateadas no meio - em volta delas! Já nos jardins
públicos, damos atenção ao verde luxuriante e sombra de árvores frondosas, com frutos e flores coloridos. Caprichamos nos parques, onde pedras grandes e pequenas
se misturam aos seixos dos riachos e fios d'água, além de muitas heras e trepadeiras, folhas carnosas e musgos. E assim por diante. Tudo sempre com muita grama aveludada
e com diversos tons de verde. Colaboramos muito com a equipe do Sr. Alberico que, em vida, sempre cultivou plantas medicinais e foi um pesquisador universitário
e um curador dos pobres. Aqui, a mesma coisa. A equipe dele sempre fornece inspiração para pesquisas e receituário para a Terra. Todos continuam pesquisando e inspirando
os que receitam fitoterapia. Nosso dia é cheio com tantas atividades. E como gosto delas e das pessoas com quem lido! Agora mesmo, fomos chamados para fazer os jardins
internos de um novo hospital que abrigarão alienados, bem perto da crosta. Já estamos debruçados em plantas e projetos e Sr. Alberico, muito oportunamente, sugeriu
misturarmos plantas medicinais e ervas aromáticas nos jardins, pois, aqui, até o perfume delas tem efeito curativo intenso. Idéia maravilhosa e que terá excelente
resultado! Aprendemos aqui a grande inter-relação que existe entre o Homem e a Natureza-Mãe, muito maior do que a que pensávamos existir. Quanta coisa os seres humanos
ainda não sabem e, se soubessem quanto aproveitariam! E como viveriam melhores! E assim vou levando a minha vida de cá. De vez em quando, visito a família e já sei
que, breve, papai e depois mamãe, virão ter comigo. Já tenho reservado o lugar deles ao nosso lado e onde eu moro. Quero só ver a expressão alegre de papai quando
souber que vai lidar novamente com flores, mais precisamente com o cultivo experimental das rosas azuis. Estamos conseguindo muitas tonalidades de azul e vamos tentar
passar a tecnologia para nossos amigos da Terra. Mas as de lá jamais terão os tons das de cá, por causa da pureza vibracional daqui, que não é a mesma de lá. Infelizmente.
Paralelo às atividades práticas, eu estou fazendo um curso de Botânica, procurando me aprofundar cada vez mais no assunto. Acho que Deus me abençoou muito, pois,
tanto de cá como de lá, passo minhas horas entre flores e plantas e estou cada vez me especializando, mais e mais, no estudo delas. Não é uma maravilha?

TERESINHA

Meu nome é Teresinha, tenho oito anos, sou negra e gordinha, uma menina muito alegre. Há cinco anos moro aqui, num lar-escola especial para crianças que vieram da
Terra muito cedo. Somos tratadas com muito carinho e ninguém tem traumas ou coisa parecida, como certas crianças da Terra. Quando os pequeninos chegam aqui muito
cedo - o meu caso - alguns choram nos primeiros dias, querendo os pais. Imediatamente, são providenciados casais que - por vários motivos - não tiveram filhos quando
encarnados e que passam a cuidar da criança com todo afeto, suprindo as carências dos três. Muitas vezes - em quase todas - este afeto se estende tanto que retornam
juntos a Terra. O meu caso também. Aqui, na minha idade, as crianças têm um leque de conhecimentos muito grande e já compreendem que saíram do ambiente terreno
e se encontram em um plano melhor. Todos aprendem muitas outras coisas também e as inclinações de cada um são respeitadas. Tenho um colega que, aos sete anos, já
toca piano muito bem. Se ele não tivesse desencarnado, seria um grande pianista. Mas não faz mal, o projeto não foi abandonado: na próxima vida será. E muito melhor
do que seria. Na escola, além dos ensinamentos básicos, temos aulas de tudo àquilo para o qual pendemos mais. Aprendemos também as leis da vida e brincamos, brincamos
muito. Afinal, embora o nosso espírito tenha a idade dos tempos, somos crianças no momento. Quando eu cheguei aqui, aos três anos de idade, chorava muito. Carregava
um passado triste e violento, de criança de rua, abandonada à própria sorte. Em tão tenra idade, já havia passado por violência, abandono, frio e fome. Além de completa
rejeição da família. Desencarnei com pneumonia, debaixo de um viaduto, dentro de uma caixa de papelão, numa noite chuvosa. Meus irmãos haviam cheirado cola e os
adultos haviam bebido muito. Resultado: só no dia seguinte, me vendo roxa e fria, é que notaram o que havia acontecido. Dentro da mesma caixa de papelão, fui jogada
no depósito de lixo. Inacreditável? Não. Isto acontece todos os dias na miséria das ruas, onde as pessoas não perdem só a chance de viver com dignidade. Perdem os
sentimentos e viram robôs quase insensíveis. De que adianta ter sentimento? Não há futuro, não há amanhã... Não há nem hoje... Só compreendi isto tudo na medida
em que fui me educando na escola, onde o casal Alice e Alfredo, voluntário aqui, se tornou meus pais pelo coração. Agora, estou de mudança para a casa deles, aqui
perto, pois eles continuarão trabalhando na escola. Apenas ficaremos juntos em tempo integral, nos amando e reeducando para, breve, renascermos juntos como pais
e filha. Quando eu digo "reeducando juntos" é porque Alice e Alfredo têm suas mágoas e suas chances perdidas a reconquistar. Antes de virem para cá, ajudar às crianças
recém-chegadas sofreram muito. Passaram por locais que nem imaginamos existirem. Alice me contou que eles eram casados na Terra e se negaram a ter filhos, embora
tivessem todas as condições de educá-los. Abortavam sistematicamente, sem dó nem piedade. Quando se arrependeram já era tarde, estavam velhos, sozinhos e, pior,
com muito remorso. Remorso que não os livrou dos castigos e punições que eles mesmos se auto-impuseram, antes de serem chamados até a escola, onde receberam o convite
para ficar. Aprenderam então que há sempre alguém que tem piedade de nós e nos dá uma chance. Afeiçoou-se às crianças, tornaram-se os tios queridos de todas. E eu,
recém-chegada, chorando e com todas as seqüelas daqueles três anos de martírio, tornei-me a preferida deles. Com que carinhos cuidaram incessantemente de mim! Com
que olhares acompanharam minha recuperação e com que orgulhos hoje me chamam de Fofinha! E como eu amo os dois! Eles vão ter que partir para a Terra primeiro, onde
nascerão, crescerão e se casarão. Está tudo programado.
Enquanto isto eu ficarei aqui com tia Eunice, irmã de Alice, minha futura e querida mamãe. Neste período ficarei olhando por eles, ajudando-os e amando-os nos sonhos
deles. Quando então chegar a minha hora de descer, eles é que olharão por mim, pois estarei novamente pequenina e fraquinha, possivelmente levando ainda uma pequena
seqüela nos pulmões, que desaparecerá logo. Então, será a vez de tia Eunice, que olhará por nós três. Eu sou uma criança ainda, não sei julgar as coisas e talvez
ainda não consiga entender a profundidade delas. Mas, de uma coisa eu tenho certeza: aprendi a conhecer Deus e a ver como são profundos e perfeitos os Seus desígnios!

ALDO

Meu nome é Aldo e nasci em Roma há 40 anos, pai italiano e mãe brasileira. Sempre falei corretamente os dois idiomas, amando o Brasil como minha segunda pátria.
Periodicamente, passávamos férias brasileiras com a família de mamãe. Formei-me em engenharia mecânica e tornei-me executivo de uma fábrica de máquinas para agricultura,
onde conheci Alina, minha esposa. Casamo-nos e, logicamente, sugeri o Rio de Janeiro para a lua de mel. Ela aceitou exultante. O sonho começou então a virar pesadelo.
Nem eu consigo acreditar que fui assaltado e esfaqueado em plena luz do sol, no centro comercial movimentado. Mas fui. Era meu destino? Não sei. Cometi o erro comum
de todo turista desavisado, seja no Rio, em Hong Kong ou Nova York: carteira recheada e à vista e muita despreocupação ao abri-la. Simples, banal e fatal. Ensangüentado
no chão, juntou gente ao meu redor, enquanto minha mulher chorava e pedia socorro. Senti os olhos embaçarem pouco a pouco e uma nítida paralisia gelada nos membros
inferiores. Consegui ouvir alguém dizer que fui atingido no coração. Senti o fim. Tentei me dominar, mas nunca senti tanto pavor na minha vida. Já não controlava
meu organismo e tentava em vão levantar a mão em direção a Alina, num último adeus. Nem sequer consegui olhar para ela. Quanto mais meu corpo parava, mais minha
mente funcionava lúcida. Depois, a sensação de um túnel espiralado, azul e sem fim. E a calma flutuação dentro dele. Parecia que a gravidade deixara de existir,
a dor e o mundo estavam distantes. E eu só flutuava, flutuava. A sensação do líquido amniótico e do pré-nascimento me tomou. Sim, devia ser assim mesmo... Abri os
braços como asas, leve, livre e solto. Decidido agora a curtir e entender tudo, nenhum medo a mais. Calma e paz. Fechei os olhos e me deixei levar. Por quanto tempo
não sei. Estava bom demais para desejar sair daquele estado. Nem pensei em flutuar para trás, reagir, tentar voltar. Senti que era impelido sempre para frente e
era justamente o que eu queria... De repente, uma convulsão violenta me sacudiu e parei no ar, braços abertos, olhos arregalados pelo susto. Senti uma parada no
tempo. Ou uma parada do tempo. Um baque. Um breque. Assustado, olhei para cima, para os lados, para baixo. E vi. Em baixo. Como um cinema ao contrário. Eu em cima
e a tela em baixo. Estranho. Diferente. Vi levantarem meu corpo da rua. A ambulância em disparada. Alina ao meu lado, segurando minha mão e chorando, implorando
que não a deixasse só. Eu não estava com medo. Estava atônito. Queria entrar dentro do meu corpo, segurar firme a mão de Alina, falar o que estava acontecendo. Mas
nada. O corpo que eu via estava imóvel e frio, duro, estranho, não era mais eu. A minha vida estava em mim, de fora, e não nele, dentro dele. Era minha e não dele.
O tempo foi passando. Não sei se correram horas ou segundos. No hospital, os médicos dando choques, injeções, colocando e retirando aparelhos. Nada do corpo reagir.
Chorei quando ouvi o médico dizer que não havia mais nada a fazer e meu corpo foi coberto por um lençol pela solícita enfermeira que, rápido, tampou o espetáculo
da morte.
Mas eu chorei mesmo foi quando o meu corpo, vestido com a roupa que eu mais gostava, foi colocado num caixão cheio de flores. Parentes brasileiros acorreram e me
senti na absurda situação de quem assiste ao próprio velório! Só que do lado de fora da cena. O mais inacreditável é que, à medida que o tempo passava e a noite
chegava, foi se esvaindo o meu sofrimento, as cenas continuando a se desenrolar monótonas e eu me tornando um perfeito expectador do filme, mas perdendo gradativamente
o interesse por ele. Uma sensação de torpor começou a me tomar e uma vontade de descansar me dominou. Notei que, até àquela hora, tinha ficado muito tenso, com as
mãos crispadas e o peito doendo. Relaxei. Fechei os olhos. Desisti conscientemente de continuar vendo o filme, a cena final do meu próprio filme deixou de me atrair.
Soltei-me o mais que pude, abri novamente os braços e pernas, o peito doeu menos. Em minha mente, um "Pai Nosso" e, em meus olhos, lágrimas tranqüilas... Um balanço
suave se fez sentir, como um ninar de sonata, acompanhado de uma espécie de brisa leve. Novamente, a sensação de flutuar mansamente, de líquido amniótico... "É um
sonho", pensei, antes de entrar num estado que mais parecia um transe de paz... Ouvi sons, vozes e murmúrio de águas. Senti perfume. Apalpei e senti grama nas mãos,
aveludada e macia como nunca tinha sentido grama alguma. Abri os olhos com tranqüilidade. Rostos sorridentes se voltavam para mim. Uma senhora idosa, ajoelhada ternamente
ao meu lado, acariciava a minha testa. A pressão no peito era mínima. Olhei em volta. Estava num jardim belíssimo.
- Você acaba de chegar, meu filho...
- Chegar como? De onde e para onde?
- Cada um chega de um modo e existem motivos para todos os modos... Vem conosco, vem...
E, de mãos dadas com o terno grupo que me recebeu, entrei pelo jardim adentro, caminhando conduzido e feliz...

VERA

Ser "Miss" foi o máximo na minha vida! Afinal, ser aclamada como a mais bela mulher do momento tem seu sabor... Dos prêmios, nem falo: de jóias a carro do ano, de
viagem à Europa a roupa nova. Uma aura de sonho, da qual é quase impossível fugir depois. Da passarela ao casamento milionário foi um pulo só. Nova onda de sonhos
inundou minha vida de Cinderela! Duas filhas lindas, gêmeas, e o sucesso total! Eu não entendi na hora, não entendi depois e só agora estou começando a querer entender,
depois de muito esforço e ajuda de amigos daqui: por que a vida das pessoas muda repentinamente? Eu nunca fiz mal a ninguém, nunca prejudiquei nada nem ninguém e
minhas filhas sempre tiveram uma mãe dedicada e exemplar. Meu marido e eu construímos nossa felicidade lado a lado, ele no trabalho e eu garantindo um lar tranqüilo
e em paz. Vivíamos bem, com conforto e alegria. Pois não é que um câncer no fígado apareceu repentinamente e me consumiu em pouco tempo? Nós não nos conformamos:
choramos e lutamos juntos contra o mal que acabava comigo. Eu não podia ir embora: nós nos amávamos muito e nossas filhinhas eram pequenas demais ainda! Viajamos,
consultamos médicos e mais médicos, fiz mil tratamentos, mas o câncer foi mais veloz que nossas intenções de fugirmos dele. Eu me olhava no espelho e via o fim em
meu rosto envelhecido precocemente pela doença. Meu corpo se transformou e meus cabelos ficaram ralos. Chorava dia e noite, sem deixar que as crianças sentissem
o nosso drama. Quando o médico disse que não havia mais nada a fazer e que eu deveria ir para uma casa de saúde para ter um desenlace mais confortável e menos doloroso,
eu resolvi, conscientemente, não ir para o hospital.
Queria morrer junto aos meus, no meu outrora feliz lar. Providências foram tomadas, quarto adaptado, enfermeiras contratadas. Felizmente, não fiquei completamente
sem forças, estirada na cama. Conseguia me levantar, sentar um pouco. Continuava fazendo o possível para que as filhas queridas não notassem o meu sofrimento e não
ficassem traumatizadas. No entanto, não as deixei alienadas: conversei com elas, disse que mamãe teria que ir embora por ordem de Papai do Céu, mas que estaria sempre
com elas. Procurei tornar a idéia da minha morte extremamente simples e bem acessível a elas. Cheguei a banalizar o fim. Contei casos de mães que se foram e permaneceram
ao lado dos filhos, ajudando-os e amando-os do mesmo modo. Expliquei que nascer e morrer são fatos comuns na vida humana. Tornei as coisas as mais simples e fáceis
possíveis. Não deixei de falar que papai não iria comigo, portanto ficaria cuidando delas com o carinho de sempre. Que os três estariam sempre unidos e, um dia,
nos reuniríamos os quatro no Céu. A força que eu tinha para controlar a situação era inversamente proporcional à física que, um dia, acabou de vez. Mansamente. Ternamente.
Como sempre foi nossa vida. De um pulo, tive a impressão de estar no Céu quando, fraca mais inteiramente consciente, fui recolhida no Abrigo de Dona Carlota, uma
senhora meiga e bondosa que dirigia um lar perto da crosta terrestre, um dos primeiros abrigos dos que partiam da Terra e entravam no Novo Mundo. Recolhida a um
quarto bonito e florido eu fui muito bem tratada por todos e animada por Dona Carlota. Meu desânimo e saudade, minha falta de vontade de acreditar no que estava
acontecendo e porque estava acontecendo, tudo era combatido e explicado pela boa orientadora, com carinho maternal. Ela se afeiçoou muito a mim e parecia ter pena
da minha incompreensão inicial, da minha saudade de uma mocidade perdida, como eu dizia sorrindo para ela. Depois de algum tempo, começamos a sair juntas, primeiro
para passear nos jardins do Abrigo, depois para excursões maiores. Conversávamos horas e horas, andávamos, ela me apresentava a novos amigos. Freqüentávamos palestras
e reuniões na cidade que ficava próxima. Um dia perguntei a ela quando poderia ver minha família. Ela me informou que brevemente me levaria para vê-los e ajudá-los,
pois não estava fácil para Pedro trabalhar e cuidar das meninas, dando a elas assistência como a que eu dava. As duas tinham que ficar o dia inteiro entre babás
e escola e se ressentiam muito. Teríamos que encontrar uma solução. Chorei muito naqueles dias de revelação dos mundos: como ficara o que eu deixara e como seria
o definitivo, aonde eu chegara. Saudade mansa dos meus, mas imensa. Intuitivamente, eu sabia que a única solução possível era encontrar uma nova mãe para aquele
lar que foi o meu. E não me sentia com forças para conseguir enfrentar isto. Dormi chorando e sonhei com Pedro e as meninas. Abraçamo-nos com muito carinho e senti
o quanto estavam perdidos, chorosos e sentindo-se abandonados... Resolução tomada, no dia seguinte eu procurei Dona Carlota cedo. Estava pronta para lutar pela felicidade
dos meus. Não foi difícil para nós duas a provocação dos encontros de Pedro com Joana, a professora das meninas. E nem complicado jogar um nos braços do outro. Joana
era uma moça excelente e gostava muito das crianças que, por sua vez, se apegaram carinhosamente à professora, depois que eu me fui. Serviço executado com esforço,
resignação, confiança e lágrimas, o resultado é que hoje é um dia importante. Eu, Dona Carlota e amigos do Abrigo vamos descer à Terra. Mais precisamente para abençoarmos
com nossas preces o casamento de Joana e Pedro.

PAULA

Neste afazer sem fim, eu vou levando meu tempo do lado de cá, feliz por estar podendo colaborar com algo sadio, eu que em outras épocas incentivei prazeres e diversões
não muito apropriados, pois, muitas vezes, sólidos lares foram destruídos por eles. Felizmente, aqui não tenho tempo para nada e agradeço a Deus pela forma como
escolheu e encaminhou minha recuperação para voltar ao caminho D'Ele: ao lado de crianças. Eu nunca fui muito chegada aos pequeninos. Sempre pensei que criança dava
muito trabalho, acabando com a liberdade das pessoas. Evitei-as sempre, de todos os modos, saudáveis ou não. E como me arrependo! Aportei do lado de cá revoltada
e nem acreditando na Justiça Divina. Afinal, vinha de sofrer a vida toda ao lado de um homem covarde que, no fim, acabou me assassinando a facadas, numa noite de
bebedeira. Conseguiu escapar após o crime, para viver com documentos falsos em país vizinho. E muito bem, por sinal. Onde a Justiça Divina - pensava eu na época
- já que a dos homens sempre falha? Isto tudo minha mente virava e revirava, guardando as marcas dos machucados, enquanto eu perambulava sem rumo - até perder a
noção dos anos - num mundo desconhecido e feio, em estradas sem fim. As pessoas que encontrava pelo caminho me evitavam ou escarneciam de mim. Algumas até me jogavam
pedras. Pequenos insetos me picavam e eu ficava toda inchada. Gritava desesperada e ninguém me atendia ou sequer me ouvia. Quase sempre não havia mesmo ninguém por
perto e eu simplesmente berrava, berrava, até cansar... Uma loucura infernal! Fome, sede e frio constante. Quando chovia, eu me abrigava debaixo de vãos de pedras
ou de galhos secos de árvores doentias. Uma vez, um raio caiu bem em cima do local, me deixando desacordada por tempo que não sei determinar, se horas, dias... Acontecia
também de continuar andando, me molhando mesmo, sempre sem rumo e sem norte... Sem norte, sem rumo e sem morte, já que eu já estava morta... Não pensava mais no
passado e só sabia chorar. Chorava constantemente e cheguei a me habituar com as lágrimas escorrendo pelo rosto. Deixava-as à vontade, que escorressem como quisessem...
Um dia - ou uma noite? - parei em frente a uma grande casa de pedra cinzenta, que apareceu repentinamente no meio do meu caminho. Nem pensei em bater, porque ninguém
me receberia mesmo, tinha certeza. Era sempre assim: as pessoas não se aproximavam de mim... Fazia muito frio e me agachei junto ao muro, em prantos e - pela primeira
vez - me lembrando de rezar. Mentalmente, pedi socorro. Verbalmente, nem voz mais tinha. Acho que desmaiei de frio e de dor, pois não vi quando me levaram para dentro
e me colocaram em um leito aconchegante, onde só acordei um mês depois - me contaram - limpa e bem cuidada, mas ainda temerosa, triste, vazia, apática. Estava desacostumada
de ser bem tratada. Os dias se passavam e eu continuava presa à cama, agora por vontade própria, sem querer ouvir os conselhos de todos que cuidavam de mim, para
que reagisse e saísse para a luta da recuperação total. Vendo minha tristeza, uma irmã de caridade que dirigia o Serviço de Enfermagem me encaminhou ao Serviço de
Orientação da Casa Assistencial, anotando em meu prontuário que eu me encontrava restabelecida, mas inteiramente sem ânimo para recomeçar. Acho que foi um psicólogo
quem me atendeu. Um homem mais velho, muito simpático e sério, que foi logo direto ao assunto, sem rodeios:
- Com que então a moça não quer acordar para a realidade, não é mesmo?
- Eu estava tão desanimada, que respondi com um sorriso amarelo.
- E por quê? - insistiu ele, sem desanimar como eu.
- Porque não acredito que valha a pena.
- E o que vale a pena?
- Nada.
- Hum... Gostaria de ver um pequeno filme, antes de darmos prosseguimento à nossa conversa? Acredito que seria muito oportuno.
- Filme?! Aqui?!
Sem falar, ele puxou um cordão ao lado da janela que, imediatamente, ficou obstruída por tela alaranjada, que foi mudando de cor várias vezes, enquanto eu a olhava
hipnotizada. Calado, ele assentou-se perto de mim. As luzes se apagaram. E eu assisti perplexa à cena do meu assassinato, onde constatei que também estava bêbada.
E havia muita gente conosco dentro do quarto. Uns rindo, outros ajudando a dar força ao braço do assassino. Protestei imediatamente:
- Tudo bem que eu estava bêbada. Mas nós estávamos sozinhos.
- É o que você pensa.
E, friamente, me aplicando uma terapia de choque, ele falou, olhando fixamente para dentro dos meus olhos, para dentro de mim:
- Esqueceu-se dos filhos que assassinou? E dos filhos das outras que ajudou a matar? Estavam todos lá... Uma descarga elétrica não poderia ter tido efeito melhor
em mim, enquanto, cena rápida, a tela sumia e a sala ficava iluminada novamente.
- Por que me agride assim? - perguntei, num murmúrio.
- Porque quero ajudar você. Olhe só: durante a sua recuperação do lado de cá, foi amparada e protegida, mas, assim mesmo, manteve-se amuada, fazendo-se de vítima.
Vítima das facadas. Vítima da bebedeira dele. Vítima do destino. Vítima de tudo. Esqueceu-se, porém, das suas vítimas, que não foram poucas e que também se consideram
vítimas... E nada melhor que um susto, um choque como o que levou agora. Fará efeito benéfico, você verá. Quer um conselho? Afaste, neste momento, estas mazelas
da alma e do coração. Ressuscite como uma nova Paula. Não tenha dó de si mesma nem culpe o outro pelo seu destino. Seja dona do seu destino, pois só assim poderá
mudá-lo para melhor. Construa o seu futuro. Que tal?
- E como devo fazer?
- Até agora, você choramingou. E como sofreu até chegar a este momento de verdade! Nem você mesma consegue avaliar o próprio sofrimento! Acabe com isto tudo! Ninguém
precisa lembrá-la de sua dívida. Resgate-a apenas.
- Com crianças?
- É um dos caminhos. Há vários. Mas, já que pensou primeiro neste, é ele o seu caminho. Vamos lá: que tal ter filhos do coração?
Pela primeira vez eu sorri:
- Como?
- Que tal deixar o hospital hoje e começar a terapia do trabalho? Ou prefere se auto-atrasar na estrada?
- Trabalhar onde? Não sei fazer nada...
- É o que você pensa outra vez. Temos uma instituição vinculada ao hospital que se chama "Lar do Menino Jesus". Ela abriga crianças que foram abortadas conscientemente
pelas mães inconscientes. Com o carinho de todos, elas recuperam-se do choque, para recomeçar. Preciso falar mais?
- Não. Será que eu consigo?
- Abandone de vez suas dúvidas. Só não conseguirá se não quiser. Agradeça a Deus a oportunidade e vá em frente. É a melhor maneira de começar: dando o primeiro passo.
- Ainda me sinto muito desanimada, cansada, mas seja feita a vontade de Deus!
- Agora relaxe. Prepare a sua mente e o seu coração para o que der e vier.
Instintivamente recostei-me na poltrona e fechei os olhos. Ele postou-se atrás de mim e colocou as duas mãos abertas, uma de cada lado da minha cabeça. E orou em
voz alta:
- Senhor, ajuda esta irmã que agora reinicia nova jornada! Faz com que a sombra do esquecimento cubra os seus erros do passado, recobrando ela o vigor para o trabalho
reto e justo. Faz com que, no novo caminho, ela só possa ajudar e amar. E, no final, que ela obtenha o olvido total do ontem, obscurecido pelo brilho do hoje. Abençoa-a,
Senhor, e dá a ela a Tua Mão para que, no percurso, ela a segure todas as vezes que se sentir cansada e desanimada. E usa a Tua Mão, Senhor, para puxá-la sempre
para frente, encorajando-a a prosseguir. Finalmente, segue com ela, Senhor, lado a lado, pelos caminhos de cá e de lá. Com carinho, ele passou as mãos pelos meus
cabelos e terminou:
- Em nome de Jesus, eu te abençôo, minha filha. Vá em paz e não esqueça de segurar sempre na mão do Senhor!
Beijando a minha testa, ele me levantou da poltrona, indicando à atendente que me levasse logo para o "Lar do Menino Jesus", pois eu acabara de ter alta do hospital.

ÂNGELA

Nasci no mato, na lavoura, casebre de estuque, muitos irmãos, eu a mais velha, ajudando pacientemente a cuidar de todos. Com 16 anos e já grávida, acompanhei uma
família para a capital. Ao descobrirem meu estado não pensaram duas vezes: rua! De casa em casa, de rua em rua, tive mais três filhos. Sem condições de criá-los,
doei todos. Nunca mais tive notícias deles. Que tristeza, meu Deus! Com 25 anos e quase cega, abandonada nas ruas, fui recolhida por pessoas caridosas que me levaram
para um abrigo, onde eu ajudava a cuidar de velhinhos abandonados e era cuidada por minha vez. Com 35 anos a tuberculose me trouxe, envelhecida e cansada, mas resignada
e em paz. Desde menina nunca deixei de ir à missa, mas nunca entendi muito de religião, por mais que tentasse. Misturava as coisas na minha cabeça. Às vezes deixava
a missa para ir ao culto. Certa noite fiquei com medo e sumi de lá porque o pastor disse que ia me limpar. Limpar do quê? Esse negócio de religião era muito complicado
para mim, sempre achei que só fica fácil para pessoa de muitas letras. Gente como eu, que nunca conseguiu aprender nada, só tem que ter fé em Deus e não fazer o
mal. Mesmo que façam o mal para a gente, a gente não pode revidar. Deve perdoar. Aprendi com meu pai. Mas aqui religião fez falta para mim, pois me ajudaria a entender
melhor e mais rapidamente os fatos. Do passado, só me lembro bem da enfermaria do hospital e da tuberculose. Ouvia as enfermeiras conversarem e dizerem que o melhor
para mim seria morrer logo. Assustada e com medo, eu não tinha forças para perguntar por quê. Uma noite eu dormi e acordei de manhã noutra enfermaria. Graças a Deus!
O hospital era bem melhor que o outro e as enfermeiras não falavam que eu tinha que morrer. Ao contrário, me tratavam com remédios e uma sopa muito boa, que era
também remédio e eu tinha que tomar toda. Comecei a melhorar logo, a ficar com forças, poder falar e até me levantar da cama e andar pelo quarto. Eu conheci as outras
doentes. Todas se recuperando rápido. Só a Dona Luísa era enjoada, só falava em ir embora para casa, chorava e gritava. Dava um trabalhão para as enfermeiras e assustava
todo mundo. Ninguém queria ficar na cama ao lado dela. Eu e as outras nem queríamos pensar em voltar para casa, pois o hospital era muito melhor, nele havia comida
e carinho. Engordei um pouco e consegui me firmar nas pernas. Fiquei mais alegre, comecei a conversar e a sorrir mais. Perdi o medo. A enfermeira-chefe, então, disse
que eu havia progredido muito e me deixou andar no jardim em frente à enfermaria.
Esqueci de contar: que enfermaria bonita e diferente! Comprida e cheia de camas de um lado, do outro eram só portas grandes de vidro, abertas pra um jardim onde
corria um fio d'água entre pedras e seixos. Florinha coloria as beiradas. O murmurar da água embalava a gente! A coisa mais linda! Hospital muito bom! O jardim parecia
pequeno visto de dentro do quarto, mas quando comecei a andar entre suas plantas tão bonitas, vi que era grande e sem fim. Rodeava o prédio e entrava por dentro
dos corredores. Negócio mais bonito, meu Deus do Céu! Dentro e fora de casa tinha plantas e flores e o jardim entrava casa adentro! O hospital e o jardim eram uma
coisa só: bonito demais! Andando e andando, encantada com tudo que via, encontrei Dona Violeta que, nas horas vagas, também gostava de passear entre as plantas.
Nas horas de trabalho, ela era colaboradora na limpeza das enfermarias masculinas. Ficamos amigas e eu disse para ela que sempre fui faxineira e que, quando sarasse,
queria continuar sendo. Perguntei se podia trabalhar com ela. Ela respondeu que podia começar no dia seguinte. Achei aquilo esquisito e falei que precisava ter alta
antes, falar com a enfermeira-chefe. Ela me contou que eu tinha tido alta no dia em que me deixaram passear pelos jardins. O resto era comigo. Quase morri de alegria.
Não falei que o hospital era diferente? Olha aí a prova: que maneira engraçada de dar alta ao paciente... No dia seguinte, apareci cedo e bem disposta diante de
dona Violeta. Ela falou que, antes de começar, eu precisava saber que não estava mais na Terra. Tinha morrido lá e nascido aqui. Nem me abalei. Ao contrário, quase
morri outra vez, só que de alegria. As pessoas é que complicam as coisas. É tudo muito simples. Foi trabalhando e passeando pelos jardins nas horas de folga que
conheci o Joaquim, encarregado da limpeza também. Outra alegria! Do lado de cá só tem alegria, eu garanto! Eu e o Joaquim estamos noivos. Vamos nos casar, estudar
e trabalhar. Queremos nos preparar para, quando tivermos que voltar novamente à Terra, nos casarmos lá também e nenhum de nós viver abandonado e só, como foi da
última vez. A próxima será diferente!

TADEU FRÂNGELO, O FREI ÂNGELO

Frei Ângelo é meu apelido, porque dizem que pareço um anjo louro de olhos azuis e também porque gosto muito de celebrar missa. Para mim, qualquer hora é hora de
rezar. E o Sanatório inteiro recebe orações pelos corredores e me chama pelo apelido! Às vezes, simplificam e falam Frângelo. Não faz mal. Eu gosto. Se algum dia
eu sarar e puder estudar, quero ser médico. Preciso muito alertar as pessoas para a realidade do louco. Como o louco sofre meu Deus! Pensam que é só dopá-lo e tudo
bem. Não está bem não! Aí é que começa o pesadelo. O cérebro e a alma continuam, não sei bem explicar como. As alucinações, os medos, tudo passa a ser realidade.
Não é loucura não. Até as visões são reais. O louco vê e sente horrores. E nenhum remédio tira isso. Ao contrário. O medicamento pode, em certos casos, piorar as
coisas, pois, ao imobilizar e tirar as forças físicas do paciente deixa-o totalmente à mercê dos ataques de sua própria mente desgovernada. Remédio não derruba a
força mental que cria os monstros. Os ataques podem vir de dentro ou mesmo de outros fatores externos, de um mundo e de outro. Afinal, o doente mental tem trânsito
livre entre os mundos... O tratamento pra a loucura tem que ser reformulado, humanizado, com urgência. Por isso quero sarar e ser médico. Eu mesmo - para citar um
exemplo - só agora estou aprendendo a conviver com o meu mundo. No princípio lutei, chorei e sofri demais. Até que me apareceu o padre. Este que me acompanha sempre.
Por isso rezo e celebro missas. Pensam que é insanidade, mas não é não. O padre ficou com pena de mim e começou a me ajudar. Ensinou-me a rezar e celebro junto com
ele todos os dias.
Na minha intenção, na dele e na de todos da casa. Tentamos juntos, com todas as nossas forças, afastar as influências más e acalmar os doentes. Tiramos quem ou o
quê os ataca. Na força da prece e em nome de Jesus. Cada hora nós oramos num local, até no refeitório e nos banheiros já fomos. Limpamos os ambientes. Dona Maroquinhas,
a mais antiga da casa e caso perdido pela Medicina, foi a primeira paciente a sentir os efeitos do nosso trabalho. Ficou calma e até mais lúcida. Gostou e começou
a andar atrás de mim e do padre. Ela também vê o padre. Aliás, muita gente aqui vê o padre, menos quem deveria ver. Quando exageramos muito na reza, os enfermeiros
nos enchem de remédios e nos dopam. Sobra até para Dona Maroquinhas, coitada! Os meus medicamentos, de tão fortes, chegam a influenciar até o padre, que fica mais
cansado e diz que o ambiente ficou mais pesado. Aí, quando o efeito passa e voltamos à ativa, o trabalho fica muito maior porque, enquanto estamos semi-inconscientes,
os nossos inimigos aproveitam para invadir novamente o local. É um trabalhão danado depois! Tentei conversar com um médico. Contar para ele a minha história, pedir
que compreendesse melhor a dor e o sofrimento de nós todos, os loucos. Acho que fiquei muito entusiasmado e falei demais. Ele ouviu tudo calado. Depois, chamou dois
enfermeiros fortes, disse que eu surtei e estava muito excitado. Ganhei dois dias de camisa de força e uma injeção que me fez dormir até não poder mais. O padre
bem que lutou para me acordar. Eu podia ver a luta dele, mas não conseguia me mover, de tão dopado. Dizem por aqui que sou um louco que tem crises de forte excitação
e que posso cometer até um crime nestas ocasiões. Olha só! Eles é que estão cometendo crimes! Será possível, meu Deus do Céu, que ninguém entenda? O padre já me
avisou: hoje à noite saio deste corpo e ficarei mais livre. Mas não irei para longe não. Vamos ficar os dois por aqui mesmo, ajudando e trabalhando. Um dia - quem
sabe? - um médico ou alguém nos ouve?

JANIMAR

Estou aqui há dois meses, me restabelecendo num abrigo do acidente de automóvel que não me machucou externamente, mas gerou a pancada na cabeça e a hemorragia interna
que me trouxe para cá. Cheguei ao Abrigo São Geraldo muito cansado, mas consciente. Vim andando, ajudado pelos amigos que foram me buscar na Terra, ainda na estrada.
Eu vi tudo e não lutei. Nunca tive medo da morte e vejo que sempre tive razão. Eles me tiraram das ferragens e, ao sair, vi meu corpo agonizando lá. Todos se deram
as mãos - eu no meio um pouco atordoado - e saíamos - pasmem! - voando. Gostei demais de voar, mesmo ainda tentando compreender melhor o que me acontecia. Logo que
chegamos ao Abrigo fui levado a uma espécie de consultório, onde um senhor de branco me examinou e conversou bastante comigo, me deixando muito à vontade. Acabamos
rindo juntos. Ele ficou admirado da minha lucidez e me disse que não são todos que chegam assim. Pelo que ele falou pude ver que há infinitos modos de chegar. Perguntei
o que aconteceria em seguida e, ali mesmo, planejamos que, após a recuperação, eu voltaria logo ao trabalho. Ele disse e aconteceu: comecei a sentir sono, um sono
pesadíssimo. Levado para o quarto eu dormi uma semana e acordei bem disposto, pronto até para recomeçar a trabalhar, não sabendo ainda como e onde. Só não queria
ficar na inatividade. As minhas indagações foram respondidas no dia seguinte, numa entrevista com o mesmo e simpático senhor que me recebeu. Fiquei sabendo que trabalharia
no Intercâmbio, uma espécie de correio do lado de cá, onde se tenta a melhor comunicação possível com o lado de lá e a transmissão de informações e resultados de
pesquisas, tanto científicas como em outros campos.
Sempre fui comerciante de livros e gostei da idéia, pois aprecio muito a leitura e a troca de informações. Mal comparando, minha atividade seria como ler bons livros
e transmiti-los. Antes de começar no serviço, pedi para andar um pouco, conhecer melhor o local. Meu instrutor não se opôs, dizendo que eu aprenderia bastante com
os passeios. Ele parecia saber o que eu desejava, mas manteve-se reservado, sabendo que as coisas caminham como devem e só aconteceria o que estivesse previamente
marcado para acontecer. No fundo, o que eu queria mesmo era reencontrar parentes e amigos queridos. Ingenuamente, pensei que era só sair por ali e encontraria Clara,
Janice, Teodoro e outros. Andei semanas, conheci muita gente, fiz novos amigos, mas nada de quem queria encontrar! Comecei a sentir solidão e um pouco de revolta.
Assim eu não queria ficar não: sozinho e isolado não tinha sentido. Afinal, vivi uma vida inteira de trabalho duro, morri dignamente, comportei-me o melhor possível,
não dei escândalo nem trabalho e, chegando ao mundo da verdade, percebia que a ordem era recomeçar só?! Duro de entender... Foi ontem que encontrei o Seu Arthur,
num banco do parque. Muito conversador, ele foi logo se apresentando e perguntando quem eu era e o que procurava olhando para todos os lados com ansiedade. Não me
fiz de rogado para contar a minha história e a minha decepção. Ele arregalou os olhos, divertido:
- Com que então o amigo é da turma dos descontentes, os que procuram, procuram e não acham?
- Mais ou menos isso.
- E o que quer realmente encontrar?
- Minha família, por exemplo. Já disse para o senhor, agora mesmo. Já esqueceu?
Seu Arthur empertigou-se e estendeu a mão direita para mim, solenemente:
- Muito prazer!
- Hã?
- Muito prazer! Não quer encontrar seus parentes? Estou me apresentando: sou seu irmão Arthur! E estes que passam por aqui são todos nossos irmãos também. Olhe só
que família imensa acaba de encontrar!
Desapontado, dei um sorriso amarelo. Comecei a compreender e a me envergonhar. Seu Arthur continuou:
- Ainda se prende à família tão pequena da Terra? Coitadinho! Deve estar sofrendo muito mesmo! Nem sequer se lembrou de lembrar que somos todos irmãos? Claro que,
no seu devido tempo, encontrará os familiares da última existência. Mas isto não impedirá que já tenha encontrado todos os familiares de todas as existências! Olhe
só como as pessoas querem sofrer: você chegou aqui bem, não teve transição de dor nem sofrimento e, no entanto, não está sabendo aproveitar isto. Prendeu-se a um
detalhe: queria porque queria fulano e beltrano! Não me envergonhe amigo! Eu é que já estava envergonhadíssimo e sem palavras. Balbuciei:
- É não tinha pensado nisto... Olha só: todos os familiares de todas as existências... Todos irmãos... Não tinha pensado mesmo nisto...
- E não tinha mesmo. Desde que chegou, Dona Niêta foi a mãe que cuidou de você. E continuou sentindo-se só! Todos do Abrigo comportaram-se como seus irmãos queridos,
acompanhando sua recuperação e incentivando-o. Não foi mesmo?
- É...
- E você, ainda assim, quis sair andando por aí, perdendo tempo, procurando...
- É...
- Meu filho... Olhe bem para mim. Aqui neste banco, onde fico um bom tempo todos os dias nas minhas horas de folga, eu tenho encontrado todos os irmãos de todos
os tempos. Não precisei sair por aí...
- Estou entendendo agora...
- Pois é. Está entendendo, mas não conseguiu abrir os olhos ainda. Olhe para mim, meu filho. Abrace-me. Fui seu pai tantas vezes... Não se lembra?
Entre lágrimas, caí nos braços dele. Como podia ser tão esquecido?!

TEREZA CRISTINA

Eu chorava muito todos os dias. Não conseguia deixar de sentir saudades, embora já conformada com o que me aconteceu. Venci graças à tia Beatriz, incansável ao meu
lado, me ajudando e, ao mesmo tempo, me ensinando as realidades e segredos da nova vida. Quando cheguei, tinha 18 anos. Queria tanto fazer o meu curso de arquitetura,
me formar, casar, ter filhos, enfim, viver! Mas não deu tempo... O que eu queria não estava programado para mim... Num tranqüilo passeio de moto, na garupa de Júlio
e abraçada com ele, aconteceu: derrapagem, uma grande queda para nós dois e traumatismo craniano para mim. Tudo num local plano, que não oferecia perigo! Durante
os três dias em que agonizei no hospital, enxergava perfeitamente o lado de cá, embora ainda não soubesse onde era e pensasse que era um prolongamento do CTI. Quando
fechei os olhos do lado de lá, tornei a abri-los quase imediatamente noutra cama de hospital, tendo ao lado a tia Beatriz, que nunca mais se separou de mim. E espero
que não se separe nunca. Se não fosse pela minha querida tia, eu jamais teria me recuperado tão rápido. Foi a mãe que encontrei por cá. Através dela fiquei sabendo
que Júlio havia se machucado muito e estava em estado gravíssimo, mas se recuperaria, embora fossem permanecer seqüelas muito sérias. Combinamos que, logo que possível
para mim iria ajudá-lo de perto. Até lá, teríamos que fazer de tudo para que minha recuperação fosse rápida e proveitosa. Vontade de superar é que não me falta agora.
Já entendi perfeitamente que a vida real é a de cá. Solícita, tia Beatriz conversava muito comigo e me dava notícias de minha família, que ela também estava ajudando
a assistir. Fazia parte das atividades dela auxiliar jovens que chegavam cedo e suas famílias que ficavam para trás. Foi ela quem me comunicou que minha irmã Fátima
- totalmente inconsolável - viria me visitar em sonhos e precisávamos ajudá-la. Preveniu-me que eu devia encorajá-la e não chorar, para não complicar a situação,
deixando-a mais triste e transtornada do que já estava. Nossa missão era ajudá-la a superar a dor, pois éramos gêmeas idênticas e muito apegadas. As coisas não estavam
fáceis para ela longe de mim. À noite nós nos preparamos para receber Fátima. Antes, rezamos juntas, para que Jesus nos inspirasse e me ensinasse a consolar minha
irmãzinha. Colocamos muitas flores no quarto, para que ela guardasse a melhor das recordações do sonho que pensaria ter tido com a irmã morta. Música suave, preces
e flores. Tudo perfeito. Eu, excitadíssima e saudosa, aguardando o primeiro reencontro com alguém querido que havia ficado para trás. Já passava da meia noite na
Terra quando a nossa amiga e enfermeira Clotilde entrou em meu quarto conduzindo uma confusa e sonolenta Fátima. Assentou-a perto de mim e aplicou-lhe passe, para
que enxergasse, ouvisse e entendesse melhor o que se passava. Mal me viu, ela atirou-se em meu pescoço, chorando convulsivamente. Eu chorava mais do que ela (não
conseguia me controlar!) e ficamos muito tempo abraçadas. Recobrei-me e falei carinhosa:
- Olha, irmãzinha, eu não devia chorar, mas não resisti! Porém, não confunda minhas lágrimas. Aqui sou feliz, estou começando a entender os desígnios do Alto, me
recupero rapidamente e não estou sofrendo. Não há o menor motivo para lágrimas, creia-me.
- Você está sendo bem tratada?
Tia Beatriz aproximou-se e abraçou minha irmã com infinito carinho, dando uma resposta muda à pergunta dela que, sentindo-se bem e protegida, permaneceu abraçada,
perguntando num murmúrio:
- Mas é isto a morte?
A mesma querida tia nos abraçou as duas, aconchegando-nos junto ao coração e falou, com carinho de mãe:
- Morte não existe, filhas, pelo menos como vocês pensam! Depois que saímos da Terra tudo é começo e não há nenhum fim. Para trás ficam nossos sofrimentos e mazelas.
Na frente, nos esperam nossos sucessos e o resultado de nossas boas ações e nossos esforços no caminho do Bem. É todo um futuro para ser construído, com a consciência
e o conhecimento da imortalidade. Também eu um dia tive medo da morte, vendo nela o desconhecido. Por pouco tempo.
Encantei-me depois, diante da chance imensa de ajudar a todos aqueles que um dia amei muito. Como sou feliz hoje, preparando o ninho que um dia receberá, um a um,
os que me são caros! Enquanto isto eu me dedico à recepção de jovens, pois sempre gostei muito deles e, tal como lá, cá adotei todos eles como filhos do coração.
Fiquem tranqüilas filhas, a separação é passageira, muito, muito passageira mesmo. Um dia vocês estarão juntas e felizes novamente. Muito mais felizes do que antes.
E agora, fim do choro! Vamos conversar e nos alegrar, agradecendo a Deus a chance deste encontro. E você, Fátima, quando voltar, vai guardar nítida a lembrança destes
momentos e ficará muito mais tranqüila e feliz. Tranqüilizará toda a família, sim? Com um sorriso, Fátima concordou. E nos beijou com carinho. O papo entrou pela
noite adentro, nós três e Clotilde. Rimos, brincamos e até saímos para conversar um pouco no jardim interno. Falamos de nossos momentos bons do passado e fizemos
planos para novos encontros no futuro, preparando o futuro real. Madrugada, beijos e abraços e Clotilde levou minha irmã de volta ao lar, muito mais calma e conformada.
A lembrança que ela guardaria do "sonho" seria a alavanca que a ajudaria a reerguer-se do sofrimento, confiando num futuro melhor, fazendo-a pensar que, no final,
há algo melhor e nada se acaba. Seria também a semente fértil para que ela se espiritualizasse mais, procurasse mais as coisas do espírito. Tudo traria o maior e
melhor proveito para ela. Era um começo para Fátima também. Quanto a mim, começa hoje o meu programa efetivo de reintegração e caminhadas. Vou passear nos jardins
e fora do hospital, sempre com tia Beatriz. Preciso me recuperar rápido, para poder logo ajudar aos meus e amparar Júlio. Nós duas temos muitos planos... Se temos!

CARLOTA

Meu nome é Cristina. Moro aqui há tempos e nem me preocupo em contar os dias, aproveitando o trabalho como professora de adolescentes e estudando muito também, pois
pretendo ser médica na minha volta a Terra e quero levar uma boa bagagem de conhecimentos, que me possibilitará melhor minorar as dores alheias. Dou especial atenção
à Medicina Preventiva, pois acredito que nela está um dos campos mais promissores para o futuro da Humanidade. No entanto, interrompi temporariamente minhas atividades
depois que encontrei Vovó Carlota que, em vida, não me aceitou, por eu ser filha ilegítima, uma mancha para o seu nome. Descobri minha avó entre os que dormem a
quase um século, negando-se a acordar. Acontece que vovó foi criada dentro de rígidos e ultrapassados costumes e, ao chegar, levou tremendo choque por não encontrar
as coisas, pessoas e seres que esperava. Famosa e rica senhora, não encontrou sequer servos para atendê-la... Inconformada e assustada ela se fechou em sono profundo
e assim foi recolhida, continuando, porém, a dormir, cheia de pesadelos.
Foi assim que eu a achei, num dia em que fui visitar os adormecidos, no horário de preces em favor deles. Vestindo um antigo vestido comprido e rodado de rendas
acinzentadas, lá estava Vovó estendida em uma cama, sacudida pelos sonhos constantes, que refletiam bem o medo que ela sentia de acordar e encarar o desconhecido.
Ou o inesperado. Condoída, me aproximei, ajoelhando-me ao lado dela. Instintivamente peguei uma toalha e comecei a enxugar o suor abundante da sua testa e a alisar-lhe
os cabelos grisalhos e longos.
- Acorda vovó! - falei suavemente ao seu ouvido.
Nada aconteceu. Insisti:
- Acorda vovó! Depende exclusivamente de você! Vem comigo! Vou cuidar de você e apresentá-la à Realidade. O mundo aqui é lindo e, no entanto, você dorme... Acorda
vovó! Não se assuste quando despertar ao meu lado: isto não importa! Vou contar um segredo: eu sempre gostei de você, de seu porte elegante e fala macia. Eu gosto
muito de você, vovó! Acorda, por favor! Não se martirize voluntariamente. Vem comigo, vem... Vou cuidar de você até que esteja bem e em condições de compreender
tudo que se passou e se passa... Vem... Vem... O meu carinho estancou os pesadelos e o sono dela passou a ser tranqüilo. Feliz com o resultado obtido e com autorização
da direção da casa eu me coloquei a seu lado constantemente, chamando-a sempre e orando ao lado dela, cercando-a de Paz e Luz. O Amor faz realmente milagres e o
meu era sincero e desprendido. A velha senhora foi acordando aos poucos, suavemente, calmamente. Levou meses no processo de despertamento, sempre amparada pelas
minhas preces e pelo meu carinho, que não esmorecia. Quando Vovó Carlota me olhou pela primeira vez, ao abrir timidamente os olhinhos azuis, abracei-a em prantos.
Que felicidade! O sofrimento de um século de estagnação e as atuais vibrações de amor e preces produziram mudanças naqueles olhos que, agora, eram assustados e inquisidores,
mas portadores de paz e serenos. Com imenso carinho amparei-a e, abraçadas, saímos dali, em direção à Casa de Recuperação onde estamos até hoje, eu fazendo o papel
de neta, filha, irmã, enfermeira, amiga e companheira. Vovó sempre foi uma mulher de posses e poses, mas nunca teve momentos de maldade. Foi, sim, uma vítima passiva
da falsa educação que recebeu. Tudo que ela fazia era porque tinha recebido ensinamentos para agir naquele sentido. Jamais os questionou. Até aquele dia em que abriu
os olhos para mim e para a nova vida. A seguir, sorveu rapidamente os ensinamentos que recebia. Mulher forte, não teve dúvidas em reajustar conceitos e abandonar
preconceitos. Reconheceu a culpa pela estagnação em que permanecera e, imediatamente, lutou para recuperar-se rápido, poder consertar os erros e reconquistar o tempo
perdido. Companheiras inseparáveis, nós começamos logo a lutar e a progredir juntas, eu sempre ao lado dela, ajudando-a a levantar-se quando ameaçava tropeçar e
desanimar. Por sua vez, ela também me amparava com uma profunda ternura. Havia muito a fazer e nos organizamos. Fizemos planos, que incluíam aqueles que nos eram
caros e que, no momento, não podiam estar ao nosso lado. Vovó adquiriu condições e forças para me acompanhar e abraçou todas as oportunidades galhardamente. Remoçou,
sacudiu a poeira dos tempos. Abandonara o passado. Era agora uma jovem senhora junto à neta querida. Finalmente, pude voltar às minhas atividades de lecionar para
os jovens e estudar. Vovó incorporou-se ao novo mundo e, por sua vez, freqüentava aulas e reuniões, interessadíssima, já tendo o seu grupo de amigos e parceiros
de estudos, trabalho e passeios. Hoje participamos de uma reunião especial com nossos orientadores. Tratou-se de nossa volta à Terra como mãe e filha, onde reuniremos
em família, junto de nós, aqueles que amamos e que nos amaram. Estamos felicíssimas e vamos, de hoje em diante, começar os preparativos que serão longos. Mas, tenho
certeza, serão proveitosos. O Amor, mais uma vez, venceu!
OLÍVIO

Sou Olívio, 33 anos, desenhista, paraplégico de nascença, acostumado a nunca ficar de pé e a encarar preconceitos aí ao lado de vocês, na Terra. Nasci no sul do
país, em família remediada e já comecei o meu trajeto dando um tremendo susto em meus pais e irmãos: logo, logo, eles perceberam que o meu corpo só se desenvolvia
da cintura para cima e que as pernas eram dois fiapos inúteis. Foi um Deus nos acuda! Providências tomadas, tratamentos científicos e alternativos, nada, nada mesmo,
funcionaram. Sempre na cadeira de rodas tornei-me um jovem bonito, louro, de olhos claros, forte no tórax e nos braços e, principalmente, com um espírito que não
se deixou abater. Sensível à beleza das coisas e da vida, apesar de tudo. Ninguém conseguia entender minha alegria constante e muitos me diziam na cara que eu deveria
ser revoltado e não feliz como eu era! De certa forma eu entendia e entendo ainda os que não me entendiam... A barra nunca foi leve para mim. Devo muito à minha
mãe, que nunca saiu do meu lado. Mães são fantásticas! Nem mesmo elas notam a extensão e a força daquilo que conseguem fazer pelos filhos, acreditando que "foi uma
coisinha de nada, não foi preciso esforço algum...". Quando fiquei sem mãe e sem pai não me abati: conseguia sobreviver razoavelmente com meus desenhos e ilustrações
para livros, revistas e jornais, passando a viver com minha irmãzinha caçula, recém casada. Nunca parei para pensar por que eu era diferente, tão cruelmente diferente.
Não sei se foi uma barreira mental que eu mesmo criei para não pensar no doloroso assunto ou se foi uma resignação fatalista com a realidade imutável. Realidade
que me impediu de amar uma mulher, por exemplo. E de muitas outras coisas. Mas, que poderia fazer? Chorar? Adiantaria? Continuei sempre firme, procurando substituir
e compensar as minhas deficiências. E fui vivendo. Pouco, por sinal. Nada do que aconteceu comigo durante a passagem de lá para cá me surpreendeu. Sempre li muito
sobre espiritualismo e, principalmente, sempre ouvi muito. Nunca deixei de acreditar que as coisas têm uma razão de ser e que, mesmo que não as entendamos no momento,
um dia, fatalmente, cedo ou tarde, teremos uma explicação lógica para tudo que nos aconteceu ou acontece na vida. A fé nunca me abandonou e a esperança caminhou
sempre ao lado dela. Por isso tudo nem me assustei com minha chegada aqui, após uma súbita parada cardíaca, depois de violenta emoção. E nem me abalei com meu despertar
no hospital, ainda com as penas pequeninas e inúteis. Mas totalmente feliz, tranqüilo, leve, como se um grande peso tivesse sido tirado das minhas costas. Abri os
olhos em espaçoso quarto com as janelas abertas, por onde entrava luz e som de pássaros cantando. Senti a leveza do ar e ouvi, vindo de algum lugar por perto, música
baixa e suave. Relaxei o mais que pude. Fechei os olhos e comecei a rezar. Rezar à minha moda. Sem fórmulas ou frases feitas. Com o coração e com a alma. Só abri
novamente os olhos com a entrada de simpático e idoso senhor que, sem cerimônia, foi logo se assentando ao meu lado, na cama.
- E então, como está se sentindo?
- Bem, mas cheio de perguntas - respondi.
- Infelizmente não poderá, por enquanto, saber as respostas delas. Para o seu próprio bem, garanto-lhe. Vai passar por um período de repouso, onde dormirá bastante.
Não terá nenhum contato com o mundo de cá. Quando estiver bem forte e refeito, não acordará. Retornará à Terra, para reaver suas pernas. Perdeu-as lá em passado
distante. Vai recuperá-las lá. E só então reiniciará a jornada.
- Não poderei conhecer tudo aqui primeiro?
- Já conhece. E não terá tempo para rever tudo desta vez... Nem seria prudente. Confie em mim.
- Não é cruel isto?
- Não. É a Lei.
- Vim fora de hora?
- Veio antes da hora. Foi um acidente que não pôde evitar, não tem culpa. Mas retornará e continuará.
- Retornarei como?
- Será filho de sua irmã. Continuarão, portanto, juntos.
- Terei o mesmo problema?
- Não. Ao ser gestado, recuperará as suas pernas. Entendeu?
- Fantástico! Entendi. Mas queria ficar...
- Não demorará muito lá. Terá uma missão curta e tomará posse de suas pernas. E retornará vencedor, tenha fé em Deus.
- Pode me ajudar a recordar minha história pregressa?
- Não seria bom. Reavivaria boas recordações, mas acordaria outras que não são necessárias nem úteis agora. Você venceu uma etapa. Vença a outra e terá condições
melhores depois. Por ora, quanto menos contacto você tiver com o lado de cá, melhor. E não fique triste. Tudo tem sua razão de ser.
- Eu sei. Quem é o senhor?
- No momento, um amigo de muitas eras. Basta saber isto. Que Deus o abençoe!
E, tranqüilo, cá estou eu, acordando novamente depois de profundo sono, que nem sei quanto tempo durou, sem nem pensar em sair da cama ou pedir mais explicações
por enquanto. Algo lá no fundo de mim mesmo me diz para ter paciência, que estou no caminho certo, que tudo tem sentido e um dia compreenderei os segredos da Vida.
O curto momento atual faz parte do meu aprendizado e tenho que aproveitá-lo ao máximo. É o que farei. Irmãzinha querida, não chore que lá vou eu de novo!

PAULÃO

Eu quero apresentar o meu amigo Paulão. Nós só nos conhecemos melhor aqui, pois chegamos quase juntos, por caminhos bem diferentes, que só se cruzaram no final da
jornada de lá, marcando o início da de cá. No meu último dia aí conheci Paulão. Eu havia acabado de sofrer um acidente de carro e estava preso entre as ferragens,
aguardando um socorro que demorava. Consciente, mas muito machucado. Notava que as pessoas olhavam para mim com olhares surpresos, reprovadores, de susto, de pena.
Mas ninguém se atrevia a chegar perto, tentar ajudar antes da chegada dos bombeiros que deveriam serrar os ferros que me prendiam. Foi quando ouvi nitidamente uma
voz grossa, vinda de muito perto de meu ouvido esquerdo:
- Agüenta aí, amigo. Não posso fazer muito, mas vou tentar ajudar, falando e amparando-o, para que você saiba que tem alguém por perto e não perca a consciência.
Não é bom desmaiar nestas horas, sabia?
Olhei para o lado e vi um gordo rosto, negro e sorridente, onde sobressaíam dentes brancos e perfeitos, num sorriso amigo. Balbuciei:
- Quem é voe?
- Paulão. Vendo bilhetes de loteria aqui na esquina. Notei quando você bateu. Só não vi direito. Sou quase cego, sabe?
- Estou morrendo...
- Que nada! Fica firme! São só uns machucadinhos de nada!
Falava e esticava o braço, soltando rapidamente o nó de minha gravata, com aquela facilidade que a gente não consegue entender em quem é cego. Sorriu:
- Agora ficou melhor, não ficou? Não está sendo enforcado pela gravata... Vamos lá, reage! Está quase livre. Já ouço a sirene dos bombeiros...
Alguém, entre os que olhavam e nada faziam, advertiu Paulão, dizendo que ele não deveria tocar em mim. Ele ficou bravo e falou alto e com autoridade, dizendo que
jamais ficaria parado diante da chance de ajudar alguém. E o seu vozeirão sonoro calou o burburinho geral. Com rapidez ele conseguiu pegar o meu paletó, que se encontrava
no bando ao lado do meu e, fazendo uma bola com ele, amparou minha cabeça, para que ela não ficasse pendida para trás. Senti-me melhor. Podia não ser o mais certo
mesmo mexer comigo tão machucado, mas era reconfortante sentir que estava sendo ajudado. E, afinal, ele estava ele estava apenas calçando meu pescoço. Não estava
me trocando de lugar nem me puxando. Ouvi sirenes e desmaiei. Acordei já no hospital. Cansado, sonolento, doído, num amplo quarto de dois leitos. Abri os olhos devagar.
Corri o olhar pelo ambiente. Gostei do que vi. E, ao mesmo tempo em que constatava estar melhor, descobria no leito ao lado, ressonando, o mesmo rosto negro e simpático
que vi perto do meu antes de perder os sentidos. Lá estava o Paulão da loteria.
- Ei! - chamei. Acorda Paulão! Por que é que você está no hospital comigo? Por que me acompanhou para cá? Machucou-se também? Que é que houve?
Ele abriu os olhos, esfregou-os:
- Calmo lá, amigo! Já estou enxergando melhor, mas ainda não totalmente bem. Trataram bem dos meus olhos aqui. E, pelo que noto, trataram bem de você também. Quando
cheguei aqui passando mal, mas consciente, reconheci logo você no outro leito. Ainda não melhorou não? Faz um bom tempo que o acudi naquele acidente...
Pensei logo que aquela conversa estava meio destrambelhada e comecei a ficar preocupado, pois não estava entendendo nada e, pelo que sentia, o meu amigo pouco poderia
me esclarecer. Ou poderia? Tentei conversar:
- Que coincidência, rapaz! Não chegamos juntos e estamos no mesmo quarto!
Paulão respondeu com ares de professor, me deixando a duvidar da sanidade mental dele no momento:
- Coincidência não, amigo! Isto não existe. Se estamos juntos há uma razão de ser! Ficamos juntos na hora em que você morreu e agora estamos lado a lado depois que
eu também morri...
- Que conversa é esta?
- Conversa de gente séria, Ubaldo, meu amigo!
- Como sabe meu nome? O que está acontecendo?
- Vamos clarear as coisas. Estamos mortos e somos suficientemente esclarecidos para não entrarmos em pânico. E nem há motivos para tal. Você dormiu demais, mas eu,
logo que cheguei, entrei em contacto com o pessoal daqui, que é ótimo. Disseram-me que você sempre acreditou que a vida continuava. Eu também. Para que susto agora?
Realmente meu susto não era tão grande. Nem bem susto era. Apenas queria me situar no tempo e no espaço, pois acordei meio perdido. De fato, sempre li e estudei
muito, acreditando piamente na continuidade da vida. Senti que minha lucidez voltava rápido. Relaxei:
- Quer dizer que não estamos mais lá?
- Não. Você partiu antes de se retirado das ferragens e eu o segui um mês depois, atropelado. Sabe como é, não? Cego corre o risco de cair debaixo de um carro a
qualquer momento... Estou aqui há um mês.
- O que significa que dormi dois...
- Contando em tempo de lá, é isto mesmo. Mas o tempo daqui é diferente, sabe disto.
- Bem, eu não tinha ninguém mesmo do lado de lá...
- Nem eu.
Um sorriso largo iluminou o rosto de Paulão, que esclareceu:
- Incrível, meu amigo! Estou recuperando totalmente a visão!
- É... E eu não tenho curativos nem cicatrizes pelo corpo...
- E já que estamos constatando isto, devemos procurar logo uma maneira de trabalhar e ajudar àqueles que não têm ou não tiveram a nossa sorte e o nosso esclarecimento.
Concorda comigo?
- Será que já estamos em condições?
- Acredito que sim. Não é o espírito quem comanda? Nosso espírito não está doente, nem cego, nem machucado. Portanto é perfeitamente viável que nos levantemos agora
sem seqüela alguma. Tenho razão ou não?
- É... Pensando bem, é... Mas, nos livros que li falam que tem de haver um tempo de recuperação, de repouso e adaptação, sei lá...
- Falam também que cada caso é um caso. Acho que o nosso caso é bem simples... E já repousamos o bastante, não acha?
- Mas e a adaptação?
- Quer melhor adaptação do que entrosando e trabalhando? Ou vai dizer que quer descansar mais?
- Não. De modo algum! Tudo bem! Vamos logo à direção da casa procurar trabalho! Mas, escuta Paulão: por que estamos juntos? Nunca havíamos nos visto antes... Mesmo
tentando trazer à mente tudo que já li, não consigo imaginar uma razão...
- Eu consigo. Vidas passadas... Com o passar do tempo vamos descobrir o que nos liga. Mas, que há algo, há! Tenho certeza...
Sim, devia mesmo haver algo muito profundo, pois eu já simpatizava bastante com o novo amigo, como se o conhecesse há tempos. Perguntei:
- Já que você está tão animado, por onde acha que devemos pedir para começar? Será que poderemos escolher?
Paulão assentou-se na cama, sorrindo. E sua voz soou firme:
- Escolha. Submeteremos aos superiores o nosso pedido de onde gostaríamos de ficar. Eles resolverão. Quanto a mim, estou acostumado com tudo. Nenhum tipo de trabalho
me surpreenderá. Já você...
- Você o quê?
- Parece que teve uma vida menos trabalhosa que a minha... Talvez não saiba ainda como lidar com certos problemas. Acalme-se que isto não desmerece você!
- É... Tive facilidades, mas não felicidades. Não tive família, por exemplo. Filho único, órfão muito cedo, sem parentes e sem rumo no princípio da vida. E você?
- Acho que já nasci sem parentes... Se os tive, nunca os vi. Fui abandonado num banco de igreja, recém nascido e cego. Do banco para um hospital, depois uma creche
e depois uma instituição profissionalizante. Adulto, continuei a jornada, morando de favor nos fundos de um armazém e vendendo bilhetes de loteria. Foi o dono do
armazém quem me ensinou que a vida não se acaba, que devemos ser bons e que um dia descobriremos a razão das coisas. Ele foi a única família que conheci, digamos
assim. Bom o Sr. Jacó!
Paulão sorriu novamente, continuando:
- Não foi uma vida incomum, surpreendente ou interessante. Mas foi a minha vida. Valeu! Deve ter valido, é claro. Aprendi muito. Não me revoltei. Estou em paz. Só
ficou um desejo, mas acredito que vou realizá-lo em breve. Eu gostaria de ver as cores, flores, cores em movimento na brisa... Sempre quis saber como é um pássaro,
por exemplo. Mas só via sombras... Agora sei que acabou a escuridão. Disseram-me que logo enxergarei nitidamente. Estou feliz!
Ele se levantou e parou na minha frente, deixando de lado o olhar sonhador e caindo novamente na realidade:
- E então? Não quer levantar-se e sair por aí comigo? Digamos que vamos começar o trabalho de entrosamento e adaptação... Afinal, seria uma vergonha darmos mais
trabalho, fazendo alguém ter de cuidar de dois marmanjos, não é mesmo?
Obedeci e me levantei, leve como uma pluma, feliz até. Juntos, abrimos a porta do quarto. Juntos saímos, para a Vida! Sim, senhores, quero apresentar a todos o meu
amigo Paulão!

UBALDO SOBRE A AUTORA

Márcia Constantina 80 anos de trabalho do lado de lá - 50 dos quais dedicados ao serviço voluntário na Santa Casa de Misericórdia - estará de volta hoje Márcia Constantina,
mãe de três filhos, avó de oito netos na última romagem. Estamos nos organizando para recebê-la no salão principal, nós e todos os que foram assistidos por ela do
lado de lá. Somos muitos e junto conosco estão os também muitos amigos dela que de cá ficaram, dando apoio de retaguarda. Será uma bela e curta cerimônia de boas
vindas e reencontro, pois, segundo nos comunicou antes de ir, ela quer chegar e reassumir logo as suas funções numa das direções do Hospital dos Adormecidos. Afinal,
só foi mesmo a Terra para colaborar com Lídia, a filha de tantas vidas. Aproveitou o tempo e resolveu muitas e várias coisas pendentes para si e para outros amigos,
tal qual abelha operosa que nunca descansa. Volta tranqüila e coroada de mais êxitos. Dentro de algumas horas teremos de volta a nossa boa e amiga orientadora. Márcia
Constantina deixará o corpo às 18 horas da Terra, hora do Ângelus. Imediatamente será acolhida aqui, no Salão da Confraternização do Ministério da Recepção. Temos
certeza de que, dentro do tempo e horário da Terra, amanhã, às 8 da manhã, teremos a cadeira de Diretora de Buscas do Hospital dos Desaparecidos ocupada por Márcia
Constantina que, em seguida, talvez, já saia nalguma missão de procura dos sonolentos das estradas de cá...

Agnelo, Primeiro colaborador de Márcia de muitas eras... "Foi quando Chico Xavier lhe disse, despedindo-se de nós, em seguida, para atender outros companheiros
que o aguardavam, ansiosos para registrar-lhe a palavra sempre sábia e confortadora: 'Já que você é jornalista, permita Deus que doravante possa vir a ser, além
de jornalista, escritora e médium' ". "... cada vez mais nos convencíamos de que se tratava de experiência séria, narrada de modo bastante descontraído, em estilo
inquestionavelmente cinematográfico".

Trechos de depoimento de Elias Barbosa, médico, escritor e conferencista espírita de renome internacional, residente em Uberaba-MG, referindo-se a trabalhos da escritora
e citando uma passagem da vida dela, presenciada por ele. As pessoas preocupam-se muito com a morte, mesmo que não queiram reconhecer isto. E, principalmente, com
as clássicas perguntas: "como foi?", "morreu de quê?". Morte é estar em trânsito. E gente em trânsito é o que mais há. E toda gente, indo ou vindo, carrega consigo
uma bagagem cheia de sentimentos, desejos, tristezas, sonhos, fardos repletos de surpresas... É como se o Éter estivesse saturado de sentimentos, que transitam livremente,
carregados por seus viajantes. O futuro, saibam ou não seus caminhantes, é incessante caminho de progresso, passos e passos à frente. Narrar as ocorrências do caminho
é uma necessidade imperiosa e uma fonte de informação para quem ainda vem, para quem está chegando.

Roberto Pompeu de Toledo (revista "Veja", edição nº 1675, 15.11.2000), escreveu brilhante ensaio intitulado "A dureza da morte sem narração". Ele fala que existem
casos de soldados na guerra que, diante do ataque inimigo, escrevem cartas aos familiares; que passageiros de aviões perto da pane e da queda, rabiscam mensagens
aos parentes. E explica: "O problema é que se vêem em face não só da morte, mas de um tipo especial de morte - aquela em que não sobra ninguém para contar a história.
Então assumem eles mesmos a tarefa. Vale dizer que os aflige a perspectiva de uma morte sem narração. E à morte em que falta a narração falta algo fundamental".
Ele cita o jornalista americano Roger Rosenblatt (Revista Time, 06.11.2000): "Somos de uma espécie narradora. Existimos por força de contar histórias, de relatar
nossa situação."

Este livro contém histórias. Histórias contadas pelos próprios personagens delas, nos seus momentos cruciais e com sabor de eternidade. Justamente sobre a passagem
deles, a grande viagem.



33Nota: Este livro foi digitalizado por Joana Belarmino e sua
distribuição com fins comerciais é proibida pela Lei Brasileira de
direitos autorais.
Nota 2. A obra tem diversas ilustrações, cujas páginas não foram
escaneadas, mas optou-se por incluir textos descritivos das mesmas.
MAURICE DRUON
(da Academia Francesa~
O MENINO DO DEDO Verde
Tradução de
D. MARCOS BARBOSA
62~ edição
,
JOSÉ OLYMPIO
E D I T O R A "
Título do original francês
TISTO(,' LES POUC'IsS I B'RTS
~ Promotion et Diffir.sion Litt~~raire.s S.:l.. Genehrn
Direitos adquiridos para a língua hortuguesa, no Brasil, pela
LIVRARIA JOSI; OLYMPIO EDI'CORA S.A.
Rua da Glória, 344/4p andar
Rio de Janeiro, RJ -- República Federativa do Brasil
Printed irr Brazi! / Impresso no Brasil
ISBN 85-03-00137-3
Desenhos c capa dc
MARIE LOLJISE NERY
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editorcs de Livros, RJ
Druon, Maurice
DBGm O menino do dedo verde; tradução de D. Marcos Barbosa /
ilustrações de Marie Louise Nery. - 62. ed. -- Rio de Janeiro: ,Tosé
Olympio, 1998.
Literatura infanto-juvenil. I. Título.
98-0125 CDD - 028.7
SUMÁRIO
CAPÍTULO PRIMEIRO
No qual o autor, a respeito do nome de Tistu, tece
algumas considerações da mais alta importância . . 3
CAPÍTULO DOIS
No qual apresentamos ao mesmo tempo Tistu, seus
pais e a Casa-que-Brilha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
CAPÍTULO TR~S
No qual somos levados a conhecer Mirapólvora,
assim como a fábrica do Sr. Papai . . . . . . . . . . . . 17
CAPÍTULO QUATRO
No qual Tistu é mandado à escola, onde não fica . . 21
CAPÍTULO CINCO
No qual a preocupação pesa sobre a Casa-que-Bri-
Iha e no qual se decide, para Tistu, um novo siste-
ma de educação............................ 27
CAPfTULO SEIS
Onde Tistu recebe uma lição de jardim e descobre,
ao mesmo tempo, que possui polegar verde. . . .. . 33
CAPÍTULO SETE
No qual confiam Tistu ao Sr. Trovões, que lhe dá
uma lição de ordem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ~ 41
CAPÍTULO OITO
No qual Tistu tem um sonho horroroso, e o resulta-
do disso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
CAPÍTULO NOVE
No qual os sábios nada descobrem, mas o próprio
Tistu faz uma descoberta.................... 57
v
CAPÍTULO DEZ
No qual Tistu, de novo com o Sr. Trovões, recebe
uma lição de miséria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
CAPfTULO ONZE
No qual Tistu resolve ajudar o Doutor Milmales . . 71
CAPÍTULO DOZE
No qual o nome de Mirapólvóra se transforma . . . 79
CAPÍTULO TREZE
No qual se procura distrair Tistu . . . . . . . . . . . . . . 85
CAPfTULO QUATORZE
No qual Tistu, a propósito da guerra, faz a si pró-
prio novas perguntas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
CAPfTULO QUINZE
No qual Tistu tem uma aula de geografia, seguida
de uma de fábrica, e no qual o conflito entre os
Voulás e os Vaitimboras se estende de modo impre-
visto ..................................... 99
CAPfTULO DEZESSEIS
No qual se sucedem as mais espantosas notícias . . . . 109
CAPÍTULO DEZESSETE
No qual Tistu corajosamente denuncia a si próprio . . 117
CAPfTULO DEZOITO
No qual algumas pessoas grandes acabam renunci-
ando às suas idéias estabelecidas . . . . . . . . . . . . . . 125
CAPfTULO DEZENOVE
No qual Tistu faz uma última descoberta...... 133
CAPfTULO VINTE
No qual ficamos sabendo finalmente quem era Tistu . 141
vi
DADOS
BIOBIBLIOGRÁFICOS
DO AUTOR
O EXX - MINISTRO DA CULTURA MAURICE DRUON - da ACademia
Francesa desde 1966 - nasceu a 23 de abril de I918, em Paris.
Já em 1936 arrebatava prêmios e menções honrosas por sua apli-
cação nos estudos secundários, complementados no Liceu Michelet,
de onde saiu para a Sorbonne e a Escola de Cincias Políticas.
Aspirante de Cavalaria no início da Segunda Guerra Mundial,
participou ativamente da luta antinazista em I940, guando chegou
à Inglaterra via Espanha, a fim de se engajar nas chamadas For-
ças Francesas de Libertação. É quando participa de programas
de radiodijusão e - com o tio também escritor Joseph Kessel
em 1943 - compõe a letra do canto Les partisans, ainda hoje
ouvida com grande emoção pelo povo jrancês. Depois do desem-
barque aliado no continente europeu, Maurice Druon passa a
correspondente de guerra não só no seu pais, mas igualmente
na Alemanha e Holanda.
Já conhecido pelos artigos publicados pela imprensa antes
do conf lito, recebe o Prêmio Goncourt pelo romance Les grandes
familles, primeiro volume de uma saga histórica que já conta
vários tomos. Em 1953 a Comédie Française encena a sua peça
Un voyageur. Fica bastante conhecido por seus recitais histó-
ricos, que sempre alcançam vasta audiência.
Maurice Druon tem a sua obra marcada pela violência e vi-
gor característicos de sua vida pessoal, e - segundo críticos de
seu país - se distingue pela honestidade com que soube aliar fic-
ção literária com História, onde o choque das armas e o trágico
das paixões contam uma fase importante na literatura francesa
contemporânea. Até agora, a bibliografia de Maurice Druon
compreende:
Mégarée, teatro, 1941; Le sonneur de bien-aller, novela,

1943; Lettres d'un européen, ensaio, 1944; La derniêre brigade,
romance, 1951; Les grandes familles (La fin des hommens, I)
romance, 1948; La chute des corps (La fin des hommes, II),
romance, 1950; Rendez-vous aux enfers (La fin des homens,
III), romance, 1951 ; Remarques, ensaio, 1952; La volupté
d'être, romance, 1954; Un voyageur, teatro, I954; Le roi de
fer (Les rois maudits, I) romance histórico, 1955; La reine
etranglée (Les rois maudits, 11), romance histórico, 1955;
Les poisons de la Couronne (f.es rois maudits, 11I), romance
histórico, 19S6; L'hôtel de Mendez, novela, 1956; La loi des
mâles (Les rois maudits, IV), romance histórico, 1957; Tistou
les pouces verts ( O menino...), 1957; Alexandre le Dieu,
romance mitológico, 1958; La louve de France (Les rois
maudits, V) romance histórico, 1959; Les lis et le lion (Les
rois maudits, VI), 19b0; Des seigneurs de la plaine à I'hôtel
de Mendez, novelas, 1962; Les mémoires de Zeus, romance
mitológico, 1963; Paris, de César à Saint-Louis, ensaio histórico,
1964; Bernard Buffet, ensaio, 1964; Le pouvoir, notas e máxi-
mas, 1965; Les tambours de la mémoire, texto comemora-
tivo, 1965.
NOTA
À EDIÇÃO BRASILEIRA DE
O MENINO DO DEDO VERDE
HÁ CERCA DE sETE ANos a crítica francesa foí gratamente
surpreendida por Maurice Druon. Já consagrado por seus
romances históricos, oferecia de repente às crianças uma
obra prima de pura ficção, transbordante de humour e coe-
sia. Renovava-se, de certo modo, o milagre de Saint-Exupéry
com O Pequeno Príncipe, hoje um clássico, e não só da lite-
ratura ínfantil. Creio que não exageramos. Pois certas
obras não transcendem apenas as fronteiras dos países, mas
também ás fronteiras das idades: disfarçando a profundidade
de suas mensagens na singeleza de um livro para críanças,
dirigem-se realmente aos adultos. Só eles compreenderão
mil coisas ditas entre as linhas ou sugeridas por vários sím-
bolos. Mas nem por isso tais livros deixam de dar o seu
pleno recado às crianças, inclusive à criança que sobrevive
em nós . . .
Mas não param nesta ríca ambívalência as semelhanças
entre Tistu e o Pequeno Príncipe. Há outras ainda, gue
aproximam ambos da mais misteriosa personagem gue já
passou pela Terra, embora o seu nome não apareça uma
só vez em todo o texto.
Quando dizemos que um novo livro se assemelha a um
outro de grande êxito, comprometemos talvez o gue apre-
sentamos. Poder-se-á pensar numa simples cópia ou trans-
posiÇão, ainda que bem Jeita. Não é o que acontece neste
caso. Tistu tem uma vidinha inteiramente sua e as proezas
do seu dedo verde são inteiramente originais. Tradutor de
ambos os livros, só depois de terminado o trabalho, já numa
reflexão de ordem crítica, Joi que dei pela semelhança. O
livro é aliás dedicado a Dom Jean-Marie. Como na França
os bispos são tratados por Monseigneur e os leigos por
Monsieur, pergunto-me se Maurice Druon não terá home-
nageado um monge, guem sabe um antigo mestre, revivido
no velho jardineiro com sua mensagem de Paz. Se for assim,
o tradutor se alegra ainda mais por ter descoberto e tradu-
zido esta pequena obra prima.
D. MARCOS BARBOSA
X
O MENINO DO DEDO VERDE
A Dom Jean-Marie Charles-Roux
CAPITULO PRIMEIRO
No qual o autor, a respeito do nome
de Tistu, tece algumas
considerações da mais alta importância.
.Ilustração contendo o pai e a mãe que segura Tistu bebê nos braços
(nota da digitalizadora)

Tistu é um nome esquisito, que a gente
não acha em calendário algum, nem do nosso país nem
dos outros. Não existe um São Tistu.
Mas havia, no entanto, um menino a quem todos
chamavam Tistu . . . E é preciso explicá-lo.
Um dia, mal acabava de nascer e parecia um
grande pão no bercinho de vime, fora levado à igreja
para ser batizado. Um padrinho de chapéu preto e uma
madrinha de mangas compridas declararam ao padre
que ele se chamava João Batista. Nesse dia, como
quase todos os bebês em idênticas circunstâncias, o
coitadinho protestou, gritou, ficou vermelho de cho-
rar. Mas as pessoas grandes, que não compreendem os
protestos dos recém-nascidos e teimam em sustentar
suas idéias pré-fabricadas, garantiram com a maior
firmeza que o menino se chamava mesmo João Ba-
tista.
5
Mas em seguida, mal a mádrinha de manga com-
prida e o padrinho de chapéu preto o recolocaram no
berço, deu-se um fato curioso: as pessoas grandes já
não conseguiam pronunciar o nome que lhe haviam
dado, e puseram-se a chamá-lo de Tistu.
O fato, aliás, rião é tão raro assim. Quantos me-
ninos e meninas foram registrados no tabelião ou na
igreja com os nomes de José, Maria ou Antônio, e só
são chamados de Juca, Cotinha ou Tonico!
Isto prova simplesmente que as idéias pré-fabri-
cadas são idéias mal fabricadas, e que as pessoas gran-
des não sabem mesmo o nosso nome, como também
não sabem, por mais que o pretendam, de onde foi que
viemos, por que estamos aqui e o que devemos fazer
neste mundo.
Esta observação é muito importante e requer
ainda algumas explicações.
Se só viemos ao mundo para ser um dia gente
grande, logo as idéias pré-fabricadas se alojam facil-
mente em nossa cabeça, à medida que ela aumenta.
Essas idéias, pré-fabricadas há muito tempo, estão
todas nos livros. Por isso, se a gente se aplica à lei-
tura ou escuta com atenção os que leram muito, con-
segue ser bem depressa pessoa importante, igual a
todas as outras.
É bom notar que há idéias pré-fabricadas a res-
peito de qualquer coisa, o que é bastante prático, per-
mitindo-nos passar facilmente de uma para outra.
Mas, quando a gente veio à terra com determi-
nada missão, quando fomos encarregados de executar
certa tarefa, as coisas já não são tão fáceis. As idéias
pré-fabricadas, que os outros manejam tão em, re-
6
cusam-se a ficar em nossa cabeça: entram por um
ouvido e saem pelo outro, e vão quebrar-se no chão.
Causamos assim muitas surpresas. Primeiro, aos
nossos pais. Depois, a todas as outras pessoas grandes,
tão apegadas às suas benditas idéias!
E foi justamente o que aconteceu com o garoti-
nho, a quem chamaram Tistu sem consultá-lo.
7
CAPÍTULO DOIS
No qual apresentamos
ao mesmo tempo Tistu, seus pais
e a Casa-que-Brilha.
Ilustração de Tistu conforme a descrição do próximo capítulo.
Os cabelos de Tistu eram louros e cres-
pos na ponta. Como raios de sol que terminassem
num pequeno cacho ao tocar na terra. Tistu tinha
grandes olhos azuis e faces r rosadas e macias. Todo
mundo o beijava.
Porque as pessoas grandes, sobretudo de nariz
grande, rugas na testa e cabelo no ouvido, estão sem-
pre beijando as criancinhas de face macia e rosada.
Eles dizem que as crianças gostam, e isto é outra das
idéias que inventaram. Porque são eles, os grandes,
que gostam, e as crianças de face macia e rosada são
muito boazinhas em prestar-se a isso.
Todo mundo que via Tistu exclamava:
- Oh, que garoto bonito!
Mas Tistu não fícava vaídoso. A beleza lhe pa-
recia uma coisa inteiramente natural, E até se sur-
11
preendiá com o fato de todos os homens, todas as
mulheres e todas as crianças não serem como seus
pais e ele próprio.
Porque os pais de Tistu, é bom dizer logo, eram
também muito bonitos. Foi de tanto olhá-los que ele
se habituou a pensar que o normal é ser bonito, en-
quanto a feiúra lhe parecia uma exceção e mesmo uma
injustiça.
O pai de Tistu, que se chamava Sr. Papai, tinha
os cabelos negros cuidadosamente fixados com bri-
lhantina; era alto e se vestia com apuro; não se via
grão de poeira na gola do seu paletó, e perfumava-se
com água-de-colônia.
Dona Mamãe, loura e leve, tinha as faces macias
como a pele das flores, unhas vermelhas como pé-
talas de rosa, e espalhava em torno dela, quando
saía do quarto, o perfume de um buquê.
Realmente Tistu era um felizardo. Pois, além do
Sr. Papai e de Dona Mamãe, inteiramente dele, po-
dia servir-se ainda da imensa fortuna de ambos.
Com efeito, o Sr. Papai e Dona Mamãe, como
já perceberam, eram muito ricos.
Habitavam numa casa esplêndida, de rnuitos
andares, com pórtico, varanda, escadaria, escadinhas,
altas janelas dispostas de nove em nove, torrezinhas
guarnecidas com chapéus pontudos, tudo isso dentro
de um jardim maravilhoso.
Em cada aposento da casa havia tapetes tão es-
pessos e macios que a gente andava sem fazer baru-
Iho. Para brincar de esconder era ótimo, como tam-
bém para correr descalço, - coisa proibida, que fazia
Dona Mamãe dizer:
12
- Tistu, calce os chinelos, você vai se resfriar!
Mas Tistu nunca se resfriou por causa dos tapetes.
Havia também o corrimão da escada grande. Um
corrimão em cobre, muito polido, imenso S maiúsculo
que nascia nas alturas da casa e tombava como um
relâmpago de ouro sobre a pele de urso do vestíbulo.
Logo que se pilhava sozinho, Tistu montav a no
corrimão e deslizava vertiginosamente. Esse corrimão
era o seu tobogã particular, o seu tapete voador, o
seu caminho mágico, diariamente polido e lustrado
com furioso ardor pelo criado Cárolo.
Pois o Sr. Papai e Dona Mamãe gostavam de
tudo que brilha, e fazia-se grande esforço para que
eles ficassem contentes.
O cabeleireiro, graças à brilhantina de que já
falamos, conseguira fazer da cabeleira do Sr. Papai
um capacete de mil reflexos, que todo mundo admi-
rava. Os sapatos do Sr. Papai eram tão bem engraxa-
dos, tão bem lustrados, que davam a impressão, quan-
do ele andava, de irem chutando faíscas.
As unhas cor-de-rosa de Dona Mamãe, polidas
diariamente como o corrimão, brilhavam como dez
janelinhas ao levantar do sol. Em torno do pescoço,
orelhas, pulsos e dedos de Dona Mamãe, cintilavam
colares, brincos, pulseiras e anéis de pedras preciosas.
Quando saía à noite, para teatro ou baile, as estrelas
empalideciam.
O criado Cárolo, .graças a um pó que inventara,
tinha feito do corrimão a obra-prima que já sabemos.
Servia-se do mesmo pó para lustrar as maçanetas das
portas, os candelabros de prata, os lustres de cristal,
bem como os saleiros, açucareiros e fivelas.
13
Quanto aos nove carros que dormiam na garage,
quase era preciso, para vê-los, colocar óculos escuros.
Quando saíam juntos pela estrada e entravam pelas
ruas, o povo parava nas calçadas. Era como se a
Galeria dos Espelhos tivesse saído a passeio.
- Gente, é o Palácio de Versalhes! - excla-
mavam os mais cultos.
Os distraídos tiravam o chapéu, pensando tra-
tar-se de um enterro. As vaidosas aproveitavam para
contemplar-se nas portas e retocar a pintura.
Na cavalariça, nove cavalos lustrosos, cada qual
mais belo que o outro. Aos domingos, quando havia
visitas, instalavam os nove no jardim, para ornamen-
tar a paisagem. O Negrão ficava sob a magnólia, em
companhia de sua mulher Belinha. O pônei Ginástico
punha-se perto do quiosque. Diante da casa, sobre a
relva verde, alinhavam-se os seis cavalos groselha, raça
de cavalos vermelhos, extremamente raros, criados
pelo Sr. Papai, que muito se orgulhava deles.
Os moços da cavalariça, uniformizados de jóquei,
corriam de um cavalo ao outro com a escova na mão,
pois era preciso que brilhassem também, sobretudo aos
domingos.
- Meus cavalos devem ser como jóias! - dizia
o Sr. Papai a seus jóqueis.
Mas esse homem, tão amigo do fausto, era tam-
bém um homem bom, e todos se esforçavam por obe-
decer-Ihe. De modo que os jóqueis escovavam cuida-
dosamente os cavalos: nove pêlos para um lado, nove
para o outro. Tanto que as garupas dos cor de grose-
lha davam a impressão de enormes rubis.
14
' As crinas e as caudas eram trançadas com papel
prateado.
Tistu adorava todos esses cavalos. De noite, so-
nhava que estava dormindo com eles na palha dou-
rada da cavalariça. Durante o dia, ia a todo momento
visitá-los.
Quando comia chocolate, guardava cuidadosa-
mente o papel prateado, que entregava ao jóquei do
pônei Ginástico. Porque, de todos os animais, Gi-
nástico era o predileto. E isto se compreende, pois
Tistu e o pônei eram quase do mesmo tamanho.
Assim, vivendo na Casa-que-Brilha, junto ao cin-
tilante Papai e a perfumada Mamãe, no meio de belas
árvores, belos carros e belos cavalos, Tistu era um
menino imensamente feliz.
15
CAPÍTULO TRÊS
No qual somos levados a conhecer
Mirapólvora, assim como
a fábrica do Sr. Papai.
Ilustração da sala de jantar de Tistu, que vê as chaminés da fábrica do
pai. Ele está lanchando com sua mãe e um gato preto dorme embaixo da
mesa.
M irapólvora era como se chamava a ci-
dade onde Tistu nascera. Sua reputação e prestígio
provinham da casa e, sobretudo, da fábrica do Sr. Pa-
pai. Mirapólvora, à primeira vista, era uma cidade
como as outras: igreja, cadeia, quartel, mercado, bou-
tique. Mas essa cidade como as outras era conhecida
no mundo inteiro. Porque era em Mirapólvora que o
Sr. Papai fabricava canhões de todos os calibres, gran-
des ou pequenos, muito procurados. Canhões de bolso
ou com rodas; para trens, aviões, tanques ou barcos;
para atirar por cima das nuvens ou dentro d'água.
Sem falar na variedade de ultraleves, para serem trans-
portados a lombo de burro ou camelo nas regiões de
masiado pedregosas, onde não se pode abrir estrada.
Numa palavra, o Sr. Papai era negociante de
canhões.
19
Desde que se entendia por gente Tistu ouvia re-
petirem :
' - Tistu, meu filho, nosso negócio é excelente.
Canhão não é como guarda-chuva, que ninguém quer
comprar quando faz sol. Ou como chapéu de palha
,
que fica na vitrina quando chove. Canhão sempre se
vende, seja qual for o tempo!
Quando Tistu estava sem apetite, Dona Mamãe o
levava à janela e mostrava de longe, bem no fundo
do jardim, para lá do quiosque onde ficava o pônei
Ginástico, a monumental fábrica do Sr. Papai.
Dona Mamãe fazia Tistu contar as nove imen-
sas chaminés que lançavam fogo ao mesmo tempo; em
seguida, trazia-o de volta ao prato, dizendo:
- Tome sua sopa, Tistu, porque você precisa
crescer. Um dia você será o dono de Mirapólvora. Fa-
bricar canhões é muito cansativo, e não há lugar para
maricas em nossa família!
Ninguém tinha a menor dúvida: Tistu ficaria
com o lugar do Sr. Papai na direção da fábrica, como
este sucedera ao Sr. Vovô, de rosto emoldurado por
uma barba brilhante e a mão sempre pousada numa
carreta de canhão, suspenso à parede da sala num re-
trato a óleo.
E Tistu, que era um bom menino, se esforçava
por engolir a sopa de tapioca.
20
CAPÍTULO QUATRO
No qual Tistu é mandado
à escola,
onde não fica.
Ilustração representando o graamado, o jardim, animais, Tistu deitado
imaginando as letras através desse cenário.
A té os oito anos, Tistu não soube o que
era escola. Dona Mamãe, com efeito, tinha preferido
começar em casa a instrução do filho, ensinando-lhe
os rudimentos da leitura, da escrita e do cálculo. Os
resultados, é preciso reconhecer, não eram maus. Gra-
ças a belas figuras compradas especialmente, a letra
A se instalara na cabeça de Tistu sob a aparência de
um Asno, depois de uma Andorinha, depois de uma
ÁDuia. A letra B, sob a forma de uma Bota, de uma
Bola, de uriz Balão etc. Quanto às contas, serviam-se
de andorinhas pousadas nos fios dos postes. Tistu
aprendera não somente a somar e a subtrair, mas che-
aava mesmo a dividir, digamos, sete andorinhas por
dois fios . . . o que dava três andorinhas e meia para
cada fio. Como essa meia andorinha podia equili-
brar-se num fio, eis um outro problema que todos os
cálculos do mundo jamais poderão explicar!
23
Quando Tistu atingiu os oito anos, Dona Mamãe
considerou sua tarefa terminada. Era necessário con-
fiar Tistu a um professor de verdade.
Compraram pois para Tistu um belo avental de
xadrez, botinas novas que lhe machucavam os pés,
uma pasta, um tinteiro preto com figuras japonesas,
um caderno de uma linha e outro de duas, e manda-
ram-no, acompanhado pelo criado Cárolo, à escola de
Mirapólvora, que gozava de excelente reputação.
Todo mundo esperava que um menino tão bem
vestido, com pais tão belos e ricos, e que sabia divi-
dir e esquartejar andorinhas, realizasse prodígios nas
aulas.
Mas que decepção! A escola produziu em Tistu
um resultado imprevisível e lamentável.
Quando começava o lento desfile das letras que
caminham a passo pelo quadro-negro, quando come-
çava a se desenrolar a monótona corrente dos três-
-vezes-três, dos cinco-vezes-cinco, dos sete-vezes-sete,
Tistu sentia uma coceira no olho esquerdo e logo caía
no mais profundo sono.
Não é que ele fosse burro ou preguiçoso, nem
que estivesse cansado. Estava cheio da maior boa
vontade.
"Eu não quero dormir, eu não quero dormir"
,
repetia Tistu consigo mesmo.
Pregava os olhos no quadro e colava os ouvidos
à voz do professor. Mas sentia que a coceirinha es-
tava chegando . . . Tentava, por todos os meips, lutar
contra o sono. Cantava bem baixinho mha bela can-
ção que inventara:
24
i
Um quarto de andorinha . . .
Será a sua pata
ou será uma asinha?
Se fosse uma empada,
eu comia todinha!
Não adiantava. A voz do professor ia se trans-
formando numa canção de ninar; a noite descia sobre
o quadro-négro; Tistu ouvia o teto cochichar: "Por
aqui, por aqui, belos sonhos!", e a aula se transfor-
mava em aula de sonhar.
- Tistu! - gritava de repente o professor.
- Não foi de propósito, Professor - respondia
Tistu, acordando num sobressalto.
- Isso não interessa. Repita o que acabo de
dizer.
- Seis empadas . . . divididas por duàs andori-
nhas...
- Zero!
No primeiro dia de aula Tistu voltou para casa
com o bolso repleto de zeros.
No segundo dia, ficou de castigo por mais duas
horas, isto é, ficou mais duas horas a dormir na aula.
Na tarde do terceiro dia, o professor entregou a
Tistu uma carta para seu pai.
Na dita carta o Sr. Papai teve a desdita de ler
estas palavras:
"Prezado Senhor, o seu filho não é como todo
mundo. Não é possível conservá-lo na escola."
A escola devolvia Tistu a seus pais.
25
CAPÍTULO CINCO
No qual a Preocupação pesa sobre a Casa-que-Brilha
e no qual se decide, para Tistu,
um novo sistema de educação.
Ilustração mostrando a mãe muito preocupada em sua cama e o pai também,
preocupado, em frente ao espelho.
1~ preocupação é uma idéia triste que
nos comprime a cabeça ao despertar e permanece ali
o dia todo. A preocupação se serve de qualquer meio
para penetrar nos quartos; ela se insinua como o vento
no meio das folhas, monta a cavalo na voz dos pás-
saros, desliza pelos fios da campainha.
Naquela manhã, em Mirapólvora, a preocupação
se chamava: "Não é como todo mundo."
O sol não se decidia a levantar-se.
É bem aborrecido ter de acordar esse pobre
Tistu, dizia ele. Logo que abrir os olhos, vai lembrar-
se que foi expulso da escola . . . "
O sol pôs um abafador no seu dínamo e lançou
uns raiozinhos de nada, embrulhados em bruma; o
céu permaneceu cinzento em cima de Mirapólvora.
29
Mas a preocupação dispõe de outros recursos;
dá sempre um jeito de chamar a atenção. Ela se in-
filtrou, dessa vez, na grande sirene da fábrica.
E todo mundo em casa ouviu a sirene gritar:
- Não é como todo mu-un-undo! Tistu não é
como todo mu-un-undo!
Foi assim que a preocupação penetrou no quarto
de Tistu.
"Que será de mim?" perguntou a si próprio. E
afundou a cabeça no travesseiro, mas não conseguiu
adormecer de novo. Era desesperador, reconheçamos,
dormir tão bem na aula e tão mal na cama!
Siá Amélia, a cozinheira, resmungava sozinha,
acendendo o forno:
- Nosso Tistu não é como todo mundo? E
quem é que prova? Tem dois braços, duas pernas . . .
O criado Cárolo, polindo raivosamente o corri-
mão da escada, ficava repetindo:
- Tistu no ser como os otrros . . .
Cárolo, fazemos questão de declarar, tinha um
leve sotaque estrangeiro.
Na cavalariça, os jóqueis cochichavam:
- Não é como todo mundo, um garoto des-
ses . . . Você engole essa?
E como os cavalos participam das preocupações
dos homens, até os puros-sangue groselha pareciam
nervosos, batiam com as ferraduras, davam arrancos
nas rédeas. Três fios brancos apareceram de repente
entre a crina da Bonita.
Só o pônei Ginástico permanecia alheio a toda
essa agitação e comia tranqüilamente o seu feno, mos-
trando os seus belos dentes.
30
Mas exceto esse pônei, que bancava o indiferen-
te, todo mundo perguntava o que ia ser de Tistu.
E os que se faziam essa pergunta com aflição
maior eram, é claro, os pais do menino.
Diante do espelho, o Sr. Papai passava brilhan-
tina no cabelo, mas sem nenhuma alegria, quase auto-
maticamente.
"Eís um menino, pensava ele, que parece mais
difícil de educar do que um canhão!"
Rosada entre os travesseiros rosados, Dona Ma-
mãe, deíxou cair uma lágrima dentro do café com
leite.
- Se adormece na aula, como poderá apren-
der? - perguntava elá ao Sr. Papai.
- Talvez a distração não seja uma doença in-
curável - respondeu ele.
- Em todo caso, é menos perigoso que a bron-
quite - continuou Dona Mamãe.
- Mas, de qualquer modo, é preciso que Tistu
se torne um homem - disse o Sr. Papai.
Após esse violento diálogo, calaram-se um mo-
mento. "Que fazer? Que fazer?" pensavam os dois,
cada um em seu canto.
O Sr. Papai era ,homem de decísões rápídas e
enérgicas. Dirigir uma fábrica de canhões retempera
uma alma. Por outro lado, amava muito o filho.
- É muito simples - declarou ele. - Achei
a solução. Tistu não aprende nada na escola? Pois
bem, não vai mais pisar em escola alguma! Se os li-
vros o fazem dormir, fora com os livros! Vamos ex-
perimentar com ele um novo sistema de educação, já
31
que não é como todo mundo! Ele aprenderá as coisas
que deve saber, olhando-as com os próprios olhos.
Ensinar-lhe-ão, no local, a conhecer as pedras, o jar-
dim, os campos; explicar-lhe-ão como funciona a ci-
dade, a fábrica, e tudo que puder ajudá-lo a tornar-se
gente grande. A vida, afinal, é a melhor escola que
existe. Vamos ver o resultado!
Dona Mamãe aprovou com entusiasmo a decisão
do Sr. Papai. Quase lamentou não possuir outros fi-
lhos nos quais pudessem aplicar um sistema educativo
tão sedutor.
Para Tistu, adeus empadinhas comidas às pressas,
,
pasta a carregar nas costas, carteira onde a cabeça
tombava sozinha e punhados de zero a escorrerem do
bolso! Começava uma vida nova.
E o sol se pôs de novo a brilhar.
32
i
CAPÍTULd SEIS
Onde Tistu recebe uma lição de jardim
e descobre, ao mesmo tempo,
que possui polegar verde.
Ilustração mostrando Tistu no jardim, em companhia do jardineiro.
Tistu pôs chapéu de palha para ir à aula
de jardim.
Era a primeira experiência do novo sistema. O
Sr. Papai havia julgado melhor começar por aí. Uma
lição de jardim, afinal de contas, é uma lição de
terra, essa terra em que caminhamos, que produz os
legumes que comemos e o capim com que os animais
se alimentam, até ficarem bastante gordos para serem
comidos . . .
A terra, tinha declarado o Sr. Papai, está na ori-
gem de tudo.
"Tomara que o sono não venha!" - dizia Tistu
consigo mesmo, a caminho da aula.
O jardineiro Bigode, prevenido pelo Sr. Papai,
já esperava o aluno na estufa.
O jardineiro Bigode era um velho macambúzio,
de pouca conversa, e não lá muito amável. Uma ex-
35
traordinária floresta, cor de neve, brotava-lhe entre o
nariz e a boca.
Como descrever os bigodes de Bigode? Uma das
maravilhas da natureza. Nos dias de vento, quando o
jardineiro passava de pá ao ombro, era um verdadeiro
espetáculo: pareciam duas chamas que lhe saíssem do
nariz para queimar-lhe as orelhas.
Tistu bem que gostava do velho jardineiro, mas
tinha um pouco de medo.
- Bom dia, Sr. Bigode - disse Tistu, tirando
o chapéu.
- Ah! Você já chegou. . . Vamos ver do que
é capaz. Está vendo este monte de terra e estes vasos?
Você vai encher os vasos de terra e enfiar o polegar
bem no meio, para fazer um buraco. Depois ponha
tudo em fila, ao longo do muro. Então a gente coloca
nos buracos as sementes que quiser.
As estufas do Sr. Papai eram admiráveis e dig-
nas, em tudo, do resto da casa. Sob a proteção dos
vidros cintilantes, mantinha-se, graças a um aquece-
dor, um ar úmido e quente. Ali mimosas floresciam
em pleno inverno, crêsciam palmeiras importadas da
África, e cultivavam-se lírios pela sua beleza e jasmins
pelo seu perfume. E até orquídeas, que não são belas
nem cheiram, por um motivo inteiramente inútil para
uma flor: a raridade.
Bigode era o senhor daquele recinto. Quando
Dona Mamãe, aos domingos, trazia as amigas para
ver a estufa, ele postava-se à porta, de avental novo,
tão amável e falante quanto um cabo de enxada.
36
À menor tentativa de acender um cigarro ou to-
carem numa flor, Bigode saltava sobre a imprudente:
- Era o que faltava! Será que as senhoras que-
rem sufocar e estrangular minhas flores?
Tistu, ao realizar o trabalho que Bigode lhe con-
fiara, teve uma agradável surpresa: esse trabalho não
lhe dava sono. Ao contrário, dava-lhe um grande pra-
zer. Ele achava que a terra tinha um cheiro gostoso.
Um vaso vazio, uma pá de terra, um buraco com o
dedo, e o serviço estava pronto. Passava-se logo ao
seguinte. Os vasos iam-se alinhando rente ao muro.
Enquanto Tistu prosseguia o trabalho com afin-
co, Bigode dava lentamente uma volta pelo jardim. E
Tistu descobriu aquele dia por que ,é que o velho jar-
dineiro falava tão pouco com as pessoas: ele conver-
sava com as flores.
Vocês compreendem facilmente que depois de
cumprimentar cada rosa de um ramo, cada cravo de
uma touceira, já não há voz que chegue para distribuir
"Boa noite, meu senhor!" ou "Bom apetite, minha se-
nhora!" ou "Saúde!" quando alguém espirra, - todas
essas coisas, enfim, que fazem os outros dizerem:
"Como ele é bem educado!"
Bigode ia de uma flor a outra, preocupando-se
com a saúde de cada uma.
- Então, rosa-chá, sempre fazendo das suas!
Guarda os botões escondido para fazê-los abrir quan-
do ninguém espera . . . E você, trepadeira, está pen-
sando que é a rainha da montanha, querendo fugir
pelo alto dos caixilhos. . . Veja se isso são modos!
Em seguida, virou-se para Tistu e gritou-lhe de
longe :
37
- Então, é para hoje ou para amanhã?
- Um pouco de paciência, professor! Só fal-
tam três vasos - respondeu Tistu.
Apressou-se em terminar e foi ao encontro de Bi-
gode, na outra ponta do jardim.
- Pronto, acabei.
- Bom, vamos ver - resmungou o jardineiro.
Voltaram devagarinho, porque Bigode aprovei-
tava, ora para cumprimentar uma grande peônia pelo
seu belo aspecto, ora para encorajar uma hortênsia a
se tornar mais azul. . . De repente, eles pararam imô-
veis, boquiabertos, estupefatos, fora de si.
- Será que eu estou sonhando? - disse Bigode,
esfregando os olhos. - Você está vendo o mesmo
que eu?
- Estou, Sr. Bigode.
Ao longo do muro, ali mesmo, a poucos passos,
todos os vasos que Tistu enchera haviam florescido
em menos de cinco minutos!
Mas é precíso explícar : não se tratava de uma
tímida floração, hastes pálidas e hesitantes. Nada disso!
Em cada vaso se avolumavam as mais soberbas begô-
nias. E todas formavam, alinhadas, uma espessa sebe
vermelha.
- É inacreditável! - dizia Bigode. - É preciso
pelo menos dois meses para begônias assim!
Um prodígio é um prodígio. Primeiro, a gente o
constata. Depoís, procura explícá-lo.
Tistu perguntou:
' - Mas, se não se havia posto semente, Sr. Bi-
gode, de onde é que saíram estas flores?
- Mistério, mistério . . . - respondeu Bigode.
Em seguida, tomou bruscamente nas suas mãos
calejadas a mãozinha de Tistu.
- Deixe ver o polegar!
Examinou atentamente o dedo do menino, em
cima e embaixo, na sombra e na luz.
- Meu filho - disse enfim, após madura re-
' flexão - ocorre com você uma coisa extraordinária,
surpreendente! Você tem polegar verde . . .
- Verde! - exclamou Tistu muito espantado.
- Acho que é cor-de-rosa, e até que está bem sujo!
Verde coisa alguma!
Olhou seu polegar, muito normal.
- É claro, é claro que você não pode ver -
replicou Bigodç. - O polegar verde é invisível. A
coisa se passa por dentro da~ pele: é o que se chama
um talento oculto. Só um especialista é que descobre.
Ora, eu sou um especialista. Garanto que você tem
polegar verde.
- E para que serve isto de polegar verde?
- Ah! é uma qualidade maravilhosa - respon-
deu o jardineiro. - Um verdadeiro dom do céu! Você
sabe: há sementes por toda parte. Não só no chão, mas
nos telhados das casas, no parapeito das janelas, nas '
calçadas das ruas, nas cercas e nos muros. Milhares e
milhares de sementes que não servem para nada. Es-
tão ali esperando que um vento as carregue para um
jardim ou para um campo. Muitas vezes elas morrem
entre duas pedras, sem ter podido transformar-se em
flor. Mas, se um polegar verde encosta numa, esteja
onde estiver, a flor brota no mesmo instante. Aliás, a
prova está aí, diante de você! Seu polegar encontrou
na terra sementes de begônia, e olhe o resultado! Que
39
inveja que eu tenho! Como seria bom para mim, jar-
dineiro de profissão, um polegar verde como o seu!
Tistu não pareceu muito entusiasmado com a des-
coberta.
- Já vão dizer de novo que eu não sou como
todo mundo - resmungou.
- O melhor - replicou-lhe Bigode - é não
falar nada com ninguém. Que adianta despertar curio-
sidade ou inveja? Os talentos ocultos, em geral, trazem
aborrecimentos. Você tem o polegar verde, está aca-
i bado. Mas guarde para você, e fique em segredo entre
nós.
E no caderninho de notas, entregue pelo Sr.
Papái e que Tistu devia fazer assinar no fim 8e cada
aula, o jardineiro Bigode escreveu apenas:
"Este menino revela boas disposições para a jar-
dinagem."
40
Capítulo Sete
No qual confiam Tistu ao Sr Trovões, que lhe dá uma lição de ordem.
Ilustração mostrando a fábrica com seus trabalhadores.
O temperamento explosivo do Sr. Tro-
vões provinha sem dúvida de um longo convívio com
toda espécie de canhão.
O Sr. Trovões era o braço direito do Sr. Papai.
O Sr. Trovões tomava conta dos vários empregados
da fábrica, contando-os cada manhã, para ter certeza
de que não faltava nenhum; inspecionava cuidadosa-
mente o interior dos canhões, para verificar se não
estariam tortos; vistoriava as portas todas as noítes
para certificar-se de que estavam bem fechadas. E fre-
qüentemente ficava trabalhando até altas horas, a con-
trõlar o alinhamento dos algarismos nos grandes livros
de contas. O Sr. Trovões era o homem da ordem.
Foi por isso que o Sr. Papai pensou nele para
prosseguir, no dia seguinte, a educação de Tistu.
43
- Hoje será a lição de cidade e a lição de or-
dem! - gritou o Sr. Trovões, de pé no vestíbuló, como
se estivesse falando com um regimento.
Convém lembrar que o Sr. Trovões estivera no
exército antes de passar aos canhões. E, se não desco-
brira a pólvora, ao menos sabia usá-la.
Tistu deixou-se escorregar pelo corrimão da
escada.
- Faça o favor de subir de novo - disse-lhe
o Sr. Trovões - e de descer pelos degraus.
Tistu obedeceu, embora lhe parecesse inútil subir
para descer d^ê novo, uma vez que já estava embaixo.
' - O que é isso que você tem na cabeça? - per-
guntou o Sr. Trovões.
- Um boné de xadrez . . .
- Então coloque-o direito.
Não pensem que o Sr. Trovões fosse mau. Só que
tinha orelhas muito vermelhas e zangava-se por um
dá-cá-aquela-palha.
"Eu bem que preferia continuar minha educação
com o Bigode!" pensava Tistu. E pôs-se a caminho ao
lado do Sr. Trovões.
- Uma cidade - começou o Sr. Trovões, que
preparara bem sua aula - uma cidade se compõe
' como você pode ver, de ruas, monumentos, casas e
pessoas que moram nas casas. Na sua opinião, o que
é mais importante numa cidade?
- O jardim - respondeu Tistu.
- Não - replicou o Sr. Trovões. - O mais
importante numa cidade é a ordem. Vamos, portanto
visitar primeiro o edifício onde se mantém a ordem.
Sem a ordem, uma cidade, um país, uma sociedade
44
não passam de um sopro e não podem sobreviver. A
ordem é uma coisa indispensável. E, para manter a
ordem, é preciso punir a desordem!
"Decerto o Sr. Trovões tem toda a razão, pensou
Tistu. Mas para que gritar desse jeito? Que voz de
trovão! Será preciso fazer tanto barulho para manter
a ordem?"
Nas ruas de Mirapólvora, os transeuntes volta-
vam-se para eles, e Tistu se sentia constrangido.
- Tistu, não se distraia! Que é a ordem? -
perguntou o Sr. Trovões em tom severo.
- A ordem? Ë quando a gente está contente -
respondeu Tistu.
"Hum, hum!" resmungou o Sr. Trovões, e suas
orelhas ficaram mais vermelhas que de costume.
- Eu já reparei - prosseguiu Tistu sem se inti-
midar - que o meu pônei Ginástico, por exemplo,
quando está bem alimentado, bem penteado e tem a
crina trançada com papel de chocolate, se mostra
muito mais contente que quando está coberto de lama.
E sei também que o jardineiro Bigode sorri para as
árvores que estão bem podadas. A ordem não é isso?
Parece que esta resposta não satisfez ao Sr. Tro-
vões, cujas orelhas tornaram-se ainda mais vermelhas.
- E que se faz com as pessoas que espalham a
desordem? - perguntou ele.
- É claro que devem ser castigadas - respon-
deu Tistu, que supôs que "espalhar a desordem" fosse
alguma coisa como espalhar os chinelos pelo quarto
ou os brinquedos pelo jardim.
- São postos aqui, ~na cadeia - disse o Sr. Tro-
vões, mostrando a Tistu, num largo gesto, uma imensa
45
parede cinzenta, sem uma única janela, a que não é
muito normal numa parede.
- Cadeia é isso? - perguntou Tistu.
- Sim, é isso - disse o Sr: Trovões. - ~ o
edifício que serve para manter a ordem.
Eles foram acompanhando a parede e chegaram
diante de uma grade preta, muito alta, toda eriçada
em pontas. Atrás da grade preta viam-se outras grades
pretas, e atrás da parede triste, outras paredes tristes.
- Por que é que os pedreiros puseram essas
horríveis pontas de ferro por toda parte? - pergun-
.
tou Tistu.
- Para impedir que os prisioneiros fujam.
- Se esta cadeia não fosse tão feia - disse
Tistu - talvez eles tivessem menos vontade de fugir.
As faces do Sr. Trovões ficaram tão vermelhas
quanto as orelhas.
"Que menino esquisito!" pensou ele. "Toda sua
educação está por ser feita." E acrescentou em voz
alta:
Você devia saber que um prisioneiro é um
homem mau.
- E colocam o prisioneiro aqui para curar sua
maldade?
- Experimentam. Tentam ensinar-lhe a viver
sem matar e roubar.
- Mas eles aprenderiam bem mais depressa se
o lugar não fosse tão feio!
"Ah, ele é cabeçudo!" - pensou o Sr. Tróvões.
Tistu viu, atrás das grades, prisioneiros cami-
nhando em roda, de cabeça baixa e sem dizer palavra.
' 46
CAPÍTULO OITO
No qual Tistu
tem um sonho horroroso
e o resultado disso.
Ilustração mostrando uma prisão com flores no muro e nas grades.
Não há a menor dúvida. Tistu fazia a
si mesmo muitas perguntas. Até mesmo dormindo.
Na noite da lição de ordem ele teve um terrível
pesadelo. ~ claro que sonho é sonho, e não devemos
dar aos mesmos uma importância exagerada. Mas
ninguém pode evitar os sonhos.
Ora, Tistu quando estava dormindo, viu seu
pônei Ginástico inteiramente raspado e andando em
roda entre altas paredes escuras. E, atrás dele, os puros-
-sangue groselha, também de cabeça raspada, vestidos
com roupas de listras e os pés enfiados em ridículas
botinas, rodavam sem parar. De repente o pônei Gi-
nástico, olhando à direita e à esquerda para verificar
que ninguém o estava observando, tomou um impulso
e deu um salto para transpor a grade, mas foi cair
justamente em cima das pontas de ferro. Plantado lá
51
em cima, esperneava com seus quatro sapatos e relin-
chava de dor...
Tistu acordou sobressaltado, com a fronte ba-
nhada em suor e o coração aos pulos.
"Felizmente isso não passa de um sonho, disse
loáo consigo mesmo. Ginástico está na cavalariça e
"
os puros-sangue também.
Mas não conseguiu adormecer de novo.
"O que seria tão triste para cavalo deve ser ainda
pior para gente, pensou ele. Por que tornarem tão
feios aqueles pobres prisioneiros? Isso não pode aiu-
dá-los a melhorar . . . Tenho certeza de que, se me
fechassem ali, mesmo sem ter feito nada de ruim, eu
acabaria muito mau. Que será que a gente podia fazer
para que eles sofressem menos?"
Ele ouviu bater onze horas e depois meia-noite,
no campanário de Mirapólvora.
E, de repente, uma ideiazinha começou a fazer-
-lhe cócegas bem no fundo da cabeça.
"
E se a gente fizesse nascer flores para eles? A
ordem ficaria menos feia e os prisioneiros talvez se
tornassem mais comportados. Bem que eu podia usar
meu polegar verde! Vou falar com o Sr. Trovões. . "
Mas logo se lembrou que o Sr. Trovões ficaria todo
vermelho. E lembrou-se também do conselho de Bi-
gode: não falar a ninguém do seu polegar verde.
"É preciso que eu faça isso tudo sozinho, sem
ninguém saber."
Uma idéia que se instala em uma cabeça em
breve se torna uma resolução. E uma resolução só nos
deixa em paz quando a pomos em prática. Tistu per-
cebeu que não poderia mais dormir antes de executar
o seu plano.
Saltou da cama e procurou os chinelos. Um deles
se escondera debaixo da cômoda, e o outro . . . o outro
parecia rir-se dele, pendurado na maçaneta da janela.
Eis no que dá espalhar e jogar os chinelos para o alto!
Tistu deslizou para fora do quarto; os espessos
tapetes abafavam seus passos. Encaminhou-se deva-
garinho para o corrimão e deixou-se escorregar pela
barriga. Lá fora a lua estava cheia. Tinha as boche-
chas repletas de vento.
A lua gosta das pessoas que passeiam de noite.
Logo que viu Tistu de camisola branca no meio do
~ramado, aproveitou uma nuvem que passava perto
para uma vasta polidela em seu rosto de prata.
"
Se eu não tomar conta deste garoto, pensou ela,
vai acabar caindo num buraco!"
Reapareceu mais brilhante que nunca, e dirigiu
ainda um apelo a todas as estrelas da Via-Láctea, para
que colaborassem com seus milhares de raios.
Assim protegido pela lua e as estrelas, Tistu, ora
andando, ora correndo pelas ruas geladas, chegou sem
obstáculo até a cadeia.
Ele não estava muito tranqüilo, é claro, pois era
a sua primeira experiência.
"Queira Deus que meu polegar verde funcione
direitinho! E que o ,Bigode não se tenha enganado!"
Tistu foi aplicando o seu polegar por toda parte
que podia: no chão, no ponto em que a parede se
encontrava com a calçada, nos buracos entre as pedras,
ao pé de cada haste das grades. Fez um trabalho cons-
53
ciencioso. Não esqueceu nem mesmo as fechaduras do
portão de entrada e a guarita õnde o guarda dormia.
Quando acabou, voltou para casa, e logo ferrou
no sono.
O criado teve até dificuldade para acordá-lo, no
dia seguinte:
- Tistu precisar levantar!
O criado Cárolo, creio que já dissemos, falava
com forte sotaque estrangeiro.
Tistu tinha uma pergunta na ponta da língua,
mas faltou-lhe coragem para fazê-la. Felizmente, não
precisou esperar muito tempo para conhecer o resul-
tado do seu empreendimento noturno.
Porque a cadeia . . . meu Deus do céu! Um tiro
de canhão dado pelo Sr. Trovões na praça central de
Mirapólvora não teria feito mais barulho. Imaginem
o alvoroço de toda uma cidade diante de um aconte-
cimento igual! Imaginem o estupor dos mirapolvoren-
¡,,
ses ( era assim que se chamavam os habitantes de Mira-
pólvora), ao descobrirem que a cadeia da cidade se
I ~. ' transformara em castelo de flores, palácio de mara-
vilhas!
Antes das dez horas já a cidade inteira estava a
par da fabulosa notícia. Ao meio-dia, toda a popula-
ção se encontrava reunida ante o grande muro coberto
de rosas e das grades transformadas em latadas.
Nem uma só janela da cadeia, nem uma só grade
que não houvesse recebido sua ração de flores! As tre-
padeiras subiam, enroscavam-se, e caíam de novo; os
cactos, na parte superior dos muros, substituíam por
toda a volta as terríveis pontas de ferro.
54
CAPÍTULO NOVE
No qual os sábios nada descobrem,
mas o próprio Tistu
faz uma descoberta.
Ilustração mostrando uma tenda com sábios reunidos

As pessoas grandes têm a mania de
querer, a qualquer preço, explicar o inexplicável.
Ficam irritadas com tudo que as surpreende. E,
logo que acontece no mundo algo de novo, obstinam-se
em querer provar que essa coisa nova se parece com
outra que já conheciam há muito tempo.
Se um vulcão se extingue calmamente como um
cigarro, eis logo uma dúzia de sábios com lunetas
debruçando na cratera, escutando, cheirando, descen-
do por meio de cordas, esfolando os joelhos, enchendo
tubos de ar, fazendo gráficos, discutindo, em vez de
constatar simplesmente: "Este vulcão parou de fume-
gar; deve estar de nariz entupido!"
Afinal, será que já chegaram um dia a explicar
como é que os vulcões funcionam?
O mistério da cadeia de Mirapólvora forneceu às
pessoas grandes um bom pretexto para se agitarem.
59
Os jornalistas e fotóDrafos foram os primeiros a che-
gar, pois é esta a sua profissão. Ocuparam imediata-
mente todos os quartos do Hotel dos Embaixadores,
o único da cidade.
Em seguida acorreram de toda parte, de trem, de
avião, de táxi e até de bicicleta, os sábios qüe se cha-
mam botânicos e que se dedicam a esquartejar as
flores, dar-lhes os nomes mais difíceis e fazê-las secar
entre mata-borrões, para ver quanto tempo levam até
perder o colorido.
É uma profissão que requer muitos estudos.
Quando os botânicos se reúnem, eles formam um
conJresso. Havia, portanto, em Mirapólvora um con-
bresso de botânicos. Mas se existe uma infinita varie-
dade de flores, em compensação só conhecemos três
espécies de botânicos: os botânicos ilustres, os botâni-
cos afamados e os botânicos eminentes. Eles se cum-
primentam chamando-se: "Senhor. . . Senhor Profes-
sor . . . Meu prezado confrade . . . "
Como o hotel estava repleto de jornalistas que se
recusavam a deixá-lo, foi necessário instalar um acam
pamento na praça principal. Parecia um circo. Mas
bem menos divertido.
Tistu vivia ansioso.
- Se descobrem que fui eu - segredou ao
Bigode - vai ser um Deus nos acuda . .
- Não te preocupes - respondeu o jardineiro.
- Essa gente não sabe fazer nem mesmo um buquê.
Aposto os meus bigodes como nada descobrirão!
Com efeito, ao cabo de uma semana, durante a
qual examinaram a lente cada flor e cada folha, os
sábios continuavam na mesma.
60
As flores da cadeia não pasavam de flores iguais
às outras, era preciso reconhecer; sua única extra-
vagância era terem crescido numà noite. Então os
sábios começaram a discutir, acusando-se uns aos ou-
tros de mentira, fraude e ignorância. E então o acam-
pamento ficou igualzinho a um circo.
Mas um congresso deve sempre terminar com
uma declaração oficial. Os botânicos, portanto, aca-
baram redigindo a sua, cheia de palavras em latim,
para que ninguém pudesse entender; falaram de con-
dições atmosféricas particulares, de passarinhos que
teriam deixado cair as sementes, e da excepcional
fecundidade dos muros da cadeia, resultante de certo
uso que os cães de Mirapólvora faziam deles. Em se-
guida foram embora para um outro lugar onde haviam
descoberto uma cereja sem caroço, e Tistu recuperou
a antiga tranqüilidade.
E os prisioneiros no meio disso tudo? Vocês
devem estar com vontade de saber o que pensavam a
respeito.
Pois fiquem sabendo que a surpresa, agitação e
emoção dos botânicos nada foram em comparação
com o deslumbramento dos prisioneiros.
Como já não viam grades em suas celas, nem
arame farpado ou pontas de ferro sobre os muros,
esqueceram-se de fugir. Os mais resmungões pararam
de reclamar, tão entusiasmados estavam em contem-
plar o que os cercava; os maus perderam o costume
de zangar-se e brigar. A madressilva que brotava nas
fechaduras impedia às portas que fechassem, mas os
próprios ex-prisioneiros recusaram-se a ir embora, tal
o gosto que tomaram pela jardinagem.
61
E a cadeia de Mirapólvora foi apontada como
modelo em todo o mundo.
Quem ficara mais contente? Tistu, é claro. Ele
triunfava em segredo.
Mas cansa guardar um segredo.
Quando a gente está feliz, sente vontade de dizê-lo
e até mesmo de gritá-lo. Ora, Bigode nem sempre dis-
punha de tempo para ouvir as confidências de Tistu.
Assim ele se acostumou, quando sentia o peso do se-
gredo, a ir conversar com o pônei Ginástico.
As orelhas do Ginástico eram forradas de um
belo veludo bege, muito macio. Tistu, ao passar, gos-
tava de dizer-lhe algumas palavras.
- Ginástico, escuta bem o que vou te dizer e
não repete a ninguém - disse Tistu certa manhã ao
encontrar-se com o pônéi.
Ginástico mexeu com a orelha.
- Descobri uma coisa extraordinária - disse
Tistu em voz baixa. - As flores não deixam o mal ir
adiante.
62
CAPÍTULO DEZ
No qual T istu,
de hovo com o Sr. Trovões,
recebe uma lição de miséria.
Ilustração mostrando uma favela com um imenso jardim florido.
E preciso acontecimentos extraordiná-
rios para que se dêem férias às crianças. Uma cadeia
que floresce desperta sem dúvida uma grande, sur-
presa; mas a gente logo se habitua, e acaba áchando
natural que um gigantesco jardim se eleve em lugar de
muros cinzentos.
A gente se habitua a tudo, mesmo às coisas mais
estranhas.
E a educação de Tistu voltou a ser em breve a
principal preocupação do Sr. Papai e de Dona Mamãe.
- Eu penso que seria bom agora - dizia o
Sr. Papai - mostrar-Ihe um pouco o que seja a
miséria.
- E em seguida o que seja a doença - dizia
Dona Mamãe - para que ele cuide bem da saúde.
65
- Já que o Sr. Trovões lhe deu uma bela lição
de ordem, vamos confiar-lhe também a lição de mi-
séria.
Foi assim que Tistu aprendeu no dia seguinte,
conduzído pelo Sr. Trovões, que a míséria mora nas
favelas.
Haviam aconselhado a Tistu que vestisse para
essa visita uma roupa mais velha.
O Sr. Trovões lançou mão da mais forte voz de
trombeta para explicar a Tistu que as favelas ficavam
nas margens da cidade.
- As favelas são- um flagelo - declarou ele.
- E o que é um flagelo? - perguntou Tistu.
- Um flagelo ê uma desgraça grande que atinge
muita gente ao mesmo tempo.
O Sr. Trovões já não precisava dizer coisa al-
guma, pois Tistu jâ sentia o polegar coçando.
Mas o que o esperava era pior que uma cadeia.
Caminhos estreitos, lamacentos, malcheirosos, insinua-
vam-se entre tábuas apodrecidas, juntadas de qualquer
jeito. Essas tábuas pareciam formar casebres, mas tão
esburacados e oscilantes ao vento que a gente custava
a acreditar que conseguissem manter-se em pé. As
portas eram remendadas com papelão ou com velhos
pedaços de lata.
Ao lado da cidade limpa, de cimento e tijolos,
varrida cada manhã, a favela era como se fosse uma
outra cidade, repelente, que envergonhava a primeira.
Nada de postes, calçadas, vitrinas e caminhões de lim-
peza urbana.
"Um pouco de relva beberia essa água lamacenta
e tornaria os caminhos mais agradáveis; em seguida,
66
volúbeis e clematites em quantidade reforçariam os
pobres barracos, quase a desmoronar", pensava Tistu,
cujo polegar em riste ia deixando impressões digitais
em todas feiúras do trajeto.
Nos barracos vívía muíto mais gente do que eles
podiam conter; essa gente havia de ter, é claro, um
mau aspecto. "Vivendo apertados assim uns contra os
outros, sem um raio de sol, tornam-se pálidos como
as chicórias que o Bigode conserva na adega. Eu não
gostaria que me tratassem como um pé de chicória!"
Tistu resolveu fazer crescerem gerânios ao lango
das janelas, para que as crianças vissem um pouco
de cor.
- Mas por que toda essa gente mora em casi-
nhas de coelho? - perguntou de repente.
- Porque não possuem outra casa, é claro. Isso
é uma pergunta idiota - respondeu o Sr. Trovões.
- E por que é que eles não têm outra casa?
- Porque não têm trabalho.
- E por que é que eles não têm trabalho?
- Porque não têm sorte.
- Então, quer dizer que eles não têm coisa
alguma?
- Sim, e a miséría é isto.
"Pois amanhã" - disse Tistu consigo - "eles
terão ao menos algumas flores."
Ele viu um homem batendo na mulher e uma
criança fugir chorando.
- A miséria torna os homens ruins? - pergun-
tou Tïstu.
67
- Quase sempre - respondeu o Sr. Trovões,
que começóu a lançar uma fanfarrá de terríveis pa-
lavras.
De acordo com o seu discurso, a miséria devia
ser uma horrível galinha negra, de olhos ferozes, bico
adunco, de asas tão grandes quanto o mundo, cho-
cando continuamente horrendos pintinhos. O Sr. Tro-
vões os conhecia todos pelo nome: havia o pinto-roubo,
que se apoderava das carteiras dos transeuntes e assal-
táva os bancos; o pinto-embriáDuéz, que tomava um
aperitivo atrás do outro e acabava caído na sarjeta; o
pinto-vício, sempre à espreita de qualquer coisa deso-
nesta; o pinto-crime, sempre de revólver na mão; o
pinto-revolução, sem dúvida o pior de todos . . .
- Tistu você não está me ouvindo! - excla-
mou o Sr. Trovões. - Para começar, pare de encostar
' o dedo nessas imundícies! Que mania é essa de ficar
apalpando todas as coisas? Ponha as suas luvas.
lutar contra a miséria e suas terríveis conseqüências?
Pense um pouco . . . É preciso uma coisa que começa
com a letra o.
- Ouro?
- Não. É preciso ordem!
Tistu permaneceu um instante calado. Não pa-
recia muito convencido. E, quando acabou de refletir,
ele disse:
- Esta sua ordem, Sr. Trovões, o senhor tem
certeza de que ela existe? Eu não acredito.
68
As orelhas do Sr. Trovões ficaram tão verme-
lhas, tão vermelhas, que, já não pareciam orelhas, mas
tomates.
- Porque se a ordem existisse - prosseguiu .
Tistu na maior calma - não haveria miséria.
A nota recebida aquele dia por Tistu não foi das
melhores. O Sr. Trovões anotou no caderninho: "Me-
nino distraído e raciocinador. Os sentimentos genero-
sos privam-no do senso da realidade".
Mas no dia seguinte. . . Vocês já adivinharam.
No dia seguinte os jornais de Mirapólvora anunciavam
uma verdadeira inundação de volúbeis. Os conselhos
de Bigode haviam sido tomados ao pé da letra.
Arcos cor do céu velavam a feiúra dos barracos,
fileiras de gerânios debruavam os caminhos de relva. ''
Os quarteirões deserdados, cuja proximidade era evi-
tada de tão horríveis de se ver, haviam-se tornado os
mais belos da cidade. As pessoas iam visitá-los como
se visita um museu.
Seus habitantes resolveram, então, aprõveítar as
circunstâncias: Puseram uma borboleta bem à entrada ,'.
e cobravam cinco cruzeiros. Apareceram assim vários
empregos: de guia, de guarda, de fotóárafo e vende-
dor de cartão-postal.
Juntaram uma fortuna.
Para empregar esse dinheiro, resolveram cons-
truir entre as árvores um grande edifício com nove-
centos e noventa e nove apartamentos muito bonitos,
dotados de fogão elétrico, onde os antigos moradores
da favela pudessem viver confortavelmente. E, como
era preciso muita gente para construí-lo, ninguém
mais ficou sem trabalho.
69
Bigode não se esqueceu de dar os parabéns a
Tistu logo que pôde.
- Ah, esta das favelas, foi de tirar o chapéu!
Mas está faltando ali um pouco de perfume. De outra
vez, não esqueça do jasmim. Cresce depressa e é bas-
tante cheiroso.
Tistu prometeu, na próxima vez, caprichar bas-
tante.

Capítulo Onze
No qual Tistu resolve ajudar o Doutor Milmales
Ilustração com uma menina numa cama de hospital com um jardim à volta do
leito.
70
Foi ao visitar o hospital que Tistu ficou
conhecendo a menina doente.
O hospital de Mirapólvora, graças à generosidade
do Sr. Papai, era um belo hospital, muito grande, mui-
to limpo, e provido de tudo que fosse preciso para
cuidar de um doente. As largas janelas deixavam
entrar o sol, e as paredes eram brancas e luzidias. Tistu
não achou que o hospital fosse feio; pelo contrário.
No entanto ele sentiu . . . como explicá-lo . . . ele sen-
tiu que alguma coisa muito triste ali estava escondida.
O Dr. Milmales, diretor do hospital, via-se logo,
era um homem muito sábio e muito bondoso. Tistu
achou que ele se parecia um pouco com o jardineiro
bigode, um Bigode que não tivesse bigodes e que
usasse grossos óculos de tartaruga. E Tistu lhe disse
o que pensava.
73
- A semelhança deve decorrer - respondeu o
Dr. Milmales - de Bigode e eu termos uma tarefa
parecida: ele cuida da vida das flores, eu da vida das
pessoas.
Mas cuidar da vida das pessoas era imensamente
mais difícil; Tistu logo o compreendeu, só de ouvir o
Dr. Milmales. Ser médico era travar uma batalha
ininterrupta. De um lado a doença, sempre a entrar
, no corpo das pessoas; do outro a saúde, sempre que-
rendo ir embora. E depois, havia mil espécies de doen-
ça e, uma única saúde. A doença usava todo tipo de
máscara para que não a pudessem reconhecer: um
verdadeiro carnaval. Era preciso desmascará-la, desa-
nimá-la, pô-la para fora, e ao mesmo tempo atrair a
saúde, segurá-la, impedi-la de fugir.
- Você já esteve doente, Tistu? - perguntou
o Dr. Milmales.
- Nunca, Doutor.
Nunca mesmo
Realmente, o doutor não se lembrava de que o
tivessem chamado por causa de Tistu, enquanto Dona
Mamãe tinha muitas enxaquecas e o Sr. Papai sofria
às vezes do estômago. O criado Cárolo tivera uma
bronquite no último inverno. Mas Tistu, nada de nada.
Eis um garoto que desde o nascimento não sabia o que
fosse varicela, angina, resfriado. . . Um caso raro de
saúde perfeita!
Eu lhe agradeço muito a lição que me deu,
Dr. Milmales; ela me interessa muito - disse Tistu.
O Dr. Milmales mostrou a Tistu a sala onde se
preparavam pequenas pílulas cor-de-rosa contra tosse
pomada amarela contra bolhas e pós branquicentos
74
contra febre. Mostrou-lhe a sala onde a gente pode
olhar através do corpo de uma pessoa como através
de uma janela, para ver onde a doença se escondeu.
E mostrou-lhe também a sala com teto de espelho,
onde se cura apendicite e tanta coisa que ameaça
a vida.
"Se aqui ímpedem o mal de ir adiante, tudo devia
parecer alegre e feliz, pensava Tistu. Onde estará es-
condida a tristeza que estou sentindo? . . . "
O Dr. Milmales abriu a porta do quarto da me-
nininha doente.
- Vou deixar você aqui, Tistu. Venha depois
até meu escritório.
Tistu entrou.
- Bom dia - disse ele à menininha doente.
Ela lhe pareceu muito bonita, mas extremamente
pálida. Seus cabelos negros se desenrolavam pelo tra-
vesseiro. Teria mais ou menos a idade de Tistu.
- Bom dia - respondeu polidamente, sem mo-
ver a cabeça.
Seus olhos estavam pregados no teto.
Tistu sentou-se perto da cama, com o chapéu
branco sobre os joelhos.
- O Dr. Milmales me disse que as suas pernas
não andavam. Será que já melhorou no hospital?
- Não - respondeu a menina, sempre muito
polida; - mas isso não tem importáncia.
- Por quê? - perguntou Tístu.
- Porque não tenho lugar nenhum para ir.
- Pois eu tenho um jardim - disse Tistu, para
dizer qualquer coisa.
75
- Você tem muita sorte. Se eu tivesse um jar-
dim, talvez sentisse vontade de sarar para passear
entre as flores.
' Tistu logo olhou para o seu polegar, pensando:
"Se o problema é esse . . . "
Mas perbuntou ainda:
- Você não se aborrece muito nessa cama?
- Não muito. Fico olhando o teto. Conto os
buraquinhos. .
"Flores seria muito melhor" - pensou Tistu. E
se pôs a chamar interiormente: "Papoulas, papoulas!.
' Botões-de-ouro, margaridas, junquilhos!"
As sementes entraram pelas janelas, a não ser
que Tistu as tenha trazido nos sapatos.
- Mas, em todo caso, você não se sente infeliz?
- Para a gente saber se é infeliz, é preciso pri-
meiro ter sido feliz. Eu jã nasci doente.
Tistu compreendeu que a tristeza do hospital es-
tava escondida nesse quarto, na cabeça da menina.
Ele também estava ficando muito triste.
- Você recebe visitas?
- Muitas. De manhã, antes do almoço, a Irmã
Termômetro. Depois vem o Dr. Milmales; ele é muito
bonzinho, conversa comigo e me faz um abrado. À
hora do almoço, chega a Irmã Pílula. Depois, com a
merenda, entra a Irmã Injeção Que Dói. E, por fim,
vem um moço de branco, que acha que as minhas
pernas estão melhor. Amarra uma cordinha em cada
uma para que elas possam mover-se. Todos eles dizem
que eu vou sarar. Mas eu prefiro ficar olhando o teto,
que não me prega mentiras.
76
Enquanto ela falava, Tistu se tinha levantado e
entrara rapidamente em ação em torno da cama.
Para esta menina sarar, pensava ele, é preciso
que ela deseje ver o dia seguinte. Uma flor, com
sua maneira de abrir-se, de improvisar surpresas, po-
deria talvez ajudá-la. . . Uma flor que cresce é uma
verdadeira adivinhação, que recomeça cada manhã.
Um dia ela entreabre um botão, num outro desfralda
uma folha mais verde que uma rã, num outro desen-
rola uma pétala . . . Talvez esta menina esqueça a
doença, esperando cada dia uma surpresa . . . "
O polegar de Tistu não tinha descanso.
- Pois eu acho que você vai sarar - disse ele.
- Você também acha?
- Acho sim. Tenho certeza. Até logo!
- Até loDo! - respondeu polidamente a me-
nina doente. - Você tem a sorte de ter um jardim . . .
O Dr. Milmales esperava Tistu atrás de sua bran-
de mesa niquelada, repleta de livros.
- Então, Tistu - perguntou ele - que foi que
você aprendeu? Que sabe de medicina?
- Aprendi - respondeu Tistu - que a médi-
cina não pode quase nada contra um coração muito
triste. Aprendi que para a gente sarar é preciso ter
vontade de viver. Doutor, será que não existem pílulas
de esperança?
O Dr. Milmales ficou cspantado com tanta sabe-
doria num baroto tão pequeno. '
- Você aprendeu sozinho a primeira coisa que
um médico deve saber.
- E qúal é a sebunda, Doutor?
77
- É que para cuidar direito dos homens é pre-
ciso amá-los bastante.
Ele deu um punhado de caramelos a Tistu e pôs
uma boa nota em seu caderno.
Mas o Dr. Milmales ficou ainda mais espantado
no dia seguinte, quando entrou no quarto da menina.
Ela sorria: tinha despertado em pleno campo.
Narcisos brotavam em torno à mesa de cabeceira,
os cobertores eram um edredom de pervincas, a grama
crescia no tapete. E finalmente a flor, a flor em que
Tistu se desvelara, uma esplêndida rosa, que não pa-
~ rava de se transformar, de abrir uma folha ou um
botão, e que subia pela cabeceira da cama, ao longo
do travesseiro. A menina já não olhava o teto; ela con-
templava a flor.
De noite suas pernas começaram a mover-se. A
vida era boa.
CAPÍTULO DOZE
No qual o nome de
Mirapólvora se transf orma.
Ilustração onde Tistu aparece sentado com flores entre os dois
polegares, borboletas e lagartixas no chão.
Vocês pensam talvez que as pessoas
grandes já começassem a desconfiar de alguma coisa,
fazendo este raciocínio tão simples: "~ sempre nos
lugares em que Tistu passou na véspera que as flores
misteriosas aparecem. Logo, deve ser Tistu. Vamos
vigiá-lo!"
Mas vocês pensam isso porque sabem que Tistu
tinha polegar verde. As pessoas grandes, como já disse,
têm idéias preestabelecidas e nunca imaginam que
possa existir outra coisa além daquilo que já sabem.
De vez em quando surge um cavalheiro que revela
um pedaço do desconhecido. Comèçam por lhe rir na
cara. Algumas vezes levam-no para a cadeia, porque
ele perturba a ordem do Sr. Trovões. Mais tarde, quan-
do descobrem que tinha razão e já está morto, erguem-
lhe uma estátua. É o que se chama um gênio.
81
Não havia em Mirapólvora aquele ano nenhum
gênio que~pudesse explicar o inexplicável. E a Câmara
Municipal se achava desatinada.
A Câmara Municipal é ~ como a criada de uma
cidade. Deve cuidar da limpeza das calçadas, deter-
minar os locais onde as crianças podem brincar, os
mendigos pedir esmola e os ônibus recolherem-se du-
ránte a noite. Nada de desordem. Sobretudo isso: nada
de desordem. -
Mas a desordem se instalara em Mirapólvora. Já
não era possível prever, da noite para o dia, o local
, de um quarteirão ou de um jardim. As flores subiam
pela cadeia, escondiam as favelas, alastravam-se no
interior de um hospital! Se uma Câmara Municipal
fosse inclinar-se diante de uma fantasia destas, uma
cidade deixaria de ser uma cidade. Uma bela manhã
a catedral cismaria de transportar-se para outra praça,
e os ônibus mudariam de percurso para respirar o per-
fume dos campos, ou desceriam até o rio para refres-
car-se um pouco . .
Não, não e não! gritavam os vereadores de Mira-
pólvora, reunidos em sessão extraordinária.
Falava-se até em arrancar todas as flores.
O Sr. Papai pediu a palavra. O Sr. Papai era
muito ouvido na Câmara. E deu provas, mais uma
vez, de decisão e energia.
' - Meus senhores - disse ele - fazeis mal em
zangar-vos. Aliás é sempre perigoso zangar-se com
aquilo que não se compreende. Nenhum de nós co-
nhece as causas dessas florações repentinas. Arrancar
82
as flores? Quem pode garantir que não brotem de
novo? Por outro lado, somos forçados a reconhecer
que essas florações são mais úteis que nocivas. Já ne-
nhum prisioneiro tenta fugir da cadeia. As favelas se
transformaram num próspero bairro. As crianças do
hospital estão todas sarando. Por que nos irritarmos?
Coloquemos as flores na nossa jogada e procedamos
de modo a comandar os acontecimentos em vez de
irmos a reboque dos mesmos.
- Isso mesmo, isso mesmo, isso mesmo! - gri-
taram os vereadores. - Mas como fazê-lo?
O Sr. Papai prosseguiu seu discurso:
- Eu vos proponho uma solução ousada. É pre-
ciso mudarmos o nome da nossa cidade e passarmos
a chamá-la, de agora em diante, em vez de Mirapól-
vora, Miraflores. Com semelhante nome, quem poderá
se espantar com o fato de brotar flor por toda parte?
E se amanhã o campanário da igreja se transformar
numa corbeille de antúrios, daremos a impressão de ter
previsto esse embelezamento há muito tempo em nos-
sos planos de obra.
- Perfeito, bárbaro, genial! - urraram os ve-
readores, saudando o Sr. Papai com estrondosa salva
de palmas.
Assim, no dia seguinte, pois não havia tempo a
perder, organizou-se um soberbo cortejo com todos os
membros da Câmara Municipal, precedidos pela ban-
da de música, por meninos endomingados conduzidos
por dois padres, por uma delegação de avós que re-
presentavam a sabedoria, pelo Dr. Milmales represen-
83
tando a ciência, por um juiz representando a lei, por
dois prófessores representando a literatura e por um
oficial da reserva, uniformizado, representando o exér-
cito. Foram até à estação. Ali, sob as aclamações da
multidão em júbilo, inauguraram a nova tabuleta, onde
se lia em letras douradas: MIRAFLORES.
Foi um grande dia.
84
Í CAPÍTULO TREZE
No qual se procura
distrair T istu.
Ilustração mostrando uma selva com diversos animais, entre eles: leão,
macaco, tatu, etc.
Dona Mamãe estava ainda mais preo-
cupada que os vereadores municipais, mas por outras
razões. O seu Tistu já não era o mesmo.
O sistema de educação imaginado pelo Sr. Papaï
o tornara extremamente sério. Passava horas e horas
calado.
- Em que é que você está pensando, Tistu? -
perguntou-lhe um dia Dona Mamãe.
Tistu respondeu:
- Estou pensando que o mundo podia ser bem
melhor do que é.
Dona Mamãe fez uma cara zangada.
- Isto não são idéias para a sua idade. Vai
brincar com o Ginástico.
- O Ginástico pensa a mesma coisa - disse
Tistu.
87
I
Desta vez Dona Mamãe não se conteve:
-- É o cúmulo! - exclamou. - As crianças de
hoje vão consultar os pôneis!
Ela falou sobre o assunto com o Sr. Papai; ele ~
achou que o menino precisava de distrações.
- O pônei, o pônei . . . está bem. Mas é preciso
que não veja sempre os mesmos animais. Vamos man-
dá-lo ao Jardim Zoológico.
Mas ali também uma desagradável surpresa es-
perava Tistu.
Ele imaginara o Jardim Zoológico como um lugar
feérico onde os animais se apresentassem espontanea-
mente à admiração dos visitantes, uma espécie de
paraíso de animais: a jibóia faria ginástica em volta
da perna da girafa, o canguru meteria o ursinho no
bolso para levá-lo a passeio. . . Os jaguares, búfàlos,
rinocerontes, aves-do-paraíso, papagaios e micos, ima-
ginava-os circulando entre toda espécie de árvores e
plantas maravilhosas, como a gente vê nos livros de
figuras.
Em vez disso, só encontrou no Jardim Zoológico
velhas jaulas, onde leões sem pêlo dormiam tristemente
diante das gamelas vazias, onde os tigres estavam fe-
chados com os tigres, os macacos com os macacos.
Para dar um pouco de conforto a uma pantera que
descrevia círculos atrás das grades, tentou oferecer-lhe
um cachorro-quente. O guarda não deixou.
- É roibido, menino - gritou o guarda zan-
gaado. - Mantenha-se à distância. São animais ferozes.
- De onde vieram? - perguntou Tistu.
' - De muito longe. Da África, da Ásia, nem sei
de onde!
88
- Perguntaram a eles se queriam vir para cá?
O guarda deu de ombros e se afastou, resmun-
gando que zombavam dele.
Mas Tistu pusera-se a pensar. Achava primeiro
que o guarda não devia ocupar-se daquele trabalho,
uma vez que não gostava dos animais que lhe haviam
sido confiados. Pensava também que os animais de-
viam ter trazido entre seus pêlos algumas sementes dos
seus países, espalhando-as em volta deles . . .
A nenhum guarda do Jardim Zoológico ocorre
impedir que um menino esfregue o polegar no chão.
JuIDam simplesmente que o garoto gosta de espojar-se
no pó.
Foi por isso que alguns dias depois um imenso
baobá se erguia no cercado dos leões, macacos salta-
vam de um cipó ao outro, nenúfares boiavam no tan-
que do crocodilo. O urso tinha o seu pinheiro e o
canguru sua savana; as garças e os flamingos cor-de-
-rosa caminhavam entre os caniços; pássaros de toda
cor cantavam entre os maciços de jasmins. O Jardim
Zoológico de Mirapólvora tornara-se o mais belo do
mundo, e os vereadores logo o comunicaram às agên-
cias de turismo.
- Então você agora está trabalhando até com
plantas tropicais? Essa é forte, meu filho! - declarou
Bigode a Tistu a primeira vez que se encontraram.
- Foi tudo o que pude fazer por aqueles pobres
animais, que estavam tão aborrecidos longe de seus
países! - respondcu Tistu.
As feras, aquela semana, não comeram um só
guarda.
89
CAPÍTULO QUATORZE
No qual Tistu,
a propósito da guerra,
faz a si próprio novas
perguntas.
Ilustração mostrando a destruição de plantas e animais.
Quando os grandes falam em voz alta,
as crianças não os ouvem.
- Você está me ouvindo, Tistu?
E, Tistu respondia que sim com a cabeça, para
parecer obediente, mas não estava prestando a mínima
atenção.
Mas quando as pessoas grandes começam a falar
em voz baixa e a dizer segredos, logo os meninos
apuram o ouvido e procuram escutar justamente aquilo
que não lhes queriam dizer.~ Neste ponto são todos
iguais e Tistu não fazia exceção.
Há alguns dias que todo o mundo cochichava em
Mirapólvora. Pairava segredo no ar, e até nos tapetes
da Casa-que-Brilha.
O Sr. Papai e Dona Mamãe soltavam longos sus-
piros ao lerem os jornais.
93
O criado Cárolo e a cozinheira Siá Amélia sus-
surravam junto à máquina de lavar pratos. E até o
Sr. Trovões parecia ter perdido seu vozeirão de trom-
beta.
Tistu apanhava em pleno vôo palavras de mau
aspecto.
- Tensão . . . - dizia o Sr. Papai em voz so-
turna.
- Crise . . . -' respondia Dona Mamãe.
- AQravamento, aaravamento . . . - acrescen-
tava o Sr. Trovões.
Tistu julgou que se falava de uma doença, ficou
muito preocupado, e saiu de polegar em riste a pro-
curar o enfermo pela casa.
Uma volta pelo jardim mostrou-lhe que se enga-
nara. BiDode estava em forma, os puros-sangue caval-
gavam pela relva, Ginástico vendia saúde.
Mas no dia sebuinte uma outra palavra estava
em todas as bocas.
- Guerra . . . Era inevitável - constatava o
Sr. Papai.
- Guerra . . Pobre humanidade! - lamentava
Dona Mamãe, balançando a cabeça tristemente.
- Guerra . . . Mais uma! - frisava o Sr. Tro-
I vões. - Resta saber quem vai áanhar.
isso
- Guerra . . . Que desgraça! Quando é que
vai acabar! - gemia Siá Amélia, quase chorando.
- Guerre . . . otrra fez! - repetia o criado
Cárolo, que tinha, vocês já sabem, um leve sotaque
,
estrangeiro.
Como só se falava em voz baixa, Tistu entendeu
que a guerra devia ser uma coisa feia, uma doença
94
de gente brande, pior que a embriaDuez, mais cruel
que a miséria, mais perigosa que o crime. O Sr. Tro-
vões já lhe falara um pouco da guerra, mostrando-lhe
o monumento aos mortos de Mirapólvora. Mas o
Sr. Trovões falara com voz tão forte que Tistu não
entendeu direito.
Tistu não tinha medo. Estava longe de ser um
poltrão. Podíamos achá-lo áté um pouco imprudente.
Vocês já viram como ele faz o corrimão de tobogã.
Quando ia à piscina, era preciso impedi-lo de atirar-se
dez vezes em seáuida do trampolim dos campeões.
Tomava um impulso e zás. . . ei-lo no ar, de braços
abertos, dando o salto do anjo. Trepava em árvore
como macaco, chegando aos últimos galhos, para co-
lher cerejas que ninguém mais alcançava. Nem sabia o
que fosse vertigem. Não, francamente, Tistu não era
medroso.
Mas a idéia que ele fazia da guerra não tinha
nada a ver com a coragem ou o medo. Era, simples-
mente, uma idéia intolerável.
Quis informar-se melhor. A guerra seria mesmo
tão horrível como imaginava? Naturalmente foi Bi-
gode o primeiro que ele consultou.
- Senhor Bi~ode, será que não venho inco-
modá-lo? - perguntou ao jardineiro, que podava a
grama.
Bigode largou a tesoura.
- Absolutamente, meu filho.
- Sr. Bigode, o que é que o senhor pensa da
guerra?
O jardineiro fez uma cara espantada.
95
- Sou contra! - respondeu ele, alisando os
bigodes.
Por que é que o senhor é contra
Porque . . . porque uma guerrinha à-toa pode
aniquilar um grande jardim.
- Aniquilar? Que quer dizer aniquilar?
- Quer dizer destruir, suprimir, reduzir a pó . . .
- Será possível? E o senhor já viu - prosse-
áuiu Tistu - já viu com seus olhos jardins aniquila-
dos pela guerra?
" Ele mal podia acreditar. Mas o jardineiro não
estava brincando. Tinha baixado a cabeça, franzido
as sobrancelhas e retorcia o bigode entre os dedos.
- Antes não tivesse visto! - respondeu ele. -
Vi morrer em dois minutos um jardim repleto de flo-
res. Vi estufas saltarem em estilhaços de cristál. E
tantas bombas semeadas pelo jardim, que já ninguém
ousaria cultivá-lo! Até a terra estava morta.
Tistu sentia um nó na garganta.
- E de quem era esse jardim? - perguntou
ele.
- Era meu . . . - respondeu Bigode, dando-lhe
as costas para esconder seu sofrimento e retomar a
tesoura.
Tistu ficou um instante calado. Estava pensando.
Procurou imaginar o jardim, em torno dele, destruído
como o de Bigode, com as estufas em estilhaços e a
terra interditada para as flores. . . Lágrimas vieram-
-lhe aos olhos.
- Pois eu vou contar isso a todo mundo! -
exclamou ele. - É preciso que todos saibam. Vou
contar a Siá Amélia, vou contar ao Caírolo. .
96
- Ah, o Cárolo é aínda mais digno de pena do
que eu! Ele perdeu o seu país.
- O seu país? Perdeu o seu país na guerra?
Como é possível?
- Sim, foi isso mesmo. Seu país desapareceu
por completo. Nunca mais o encontrou. Por isso é
que ele está aqui.
"Bem que eu pensava que a Duerra era uma coisa
horrível, disse Tistu consigo mesmo. Pois a gente pode
perder um país como quem perde um lenço."
- E há uma coisa pior ainda - acrescentou
Bigode. - Você falou na Amélia, a cozinheira. Pois
a Amélia, coitada, perdeu o filho. Outros perdem um
braço, uma perna, ou então perdem a cabeça. Numa
guerra, todo mundo perde alguma coisa. .
Tistu achou que a guerra seria a maior, a mais
terrível desordem que há no mundo, pois cada um
perde aquilo que mais estima.
"Que será que a gente podia fazer para não dei-
xar a guerra passar?. .. perguntava a si próprio. O
Sr. Trovões deve ser contra a guerra, porque ele de-
testa a desordem. .Amanhã vou falar com ele."
97
CAPÏTULO QUINZE
No qual Tistu tem uma aula de geograf ia,
seguida de uma de fábrica,
e no qual o conflito entre os Voulás
e os Vaitimboras
se estende de modo imprevisto.
Ilustração mostrando o cenário da guerra: canhões, fumaça e maquinários.

O Sr. Trovões estava sentado atrás de
sua mesa. Recuperara a voz de trombone e trovejava
em três telefones ao mesmo tempo. O Sr. Trovões,
via-se logo, estava ocupadíssimo.
- É sempre assim quando estoura a guerra em
algum ponto do mundo - disse a Tistu. - Em Mira-
pólvora temos. o dobro do trabalho.
Por isso é que Tistu tinha observado que a sirene
da fábrica tocara duas vezes mais que de costume e
os operários eram duas vezes mais numerosos. As nove
chaminés lançavam tanta fumaça que o céu tinha fi-
cado escuro.
- Então eu volto quando o senhor estiver me-
nos ocupado - disse Tistu.
- O que é que você queria perguntar?
- Eu queria saber onde foi que esta guerra
estourou.
101
O Sr. Trovões levantou-se, levou Tistu para junto
de um grande globo terrestre, que fez girar, e colocou
o dedo bem no meio. -
- Você está vendo este deserto? - disse ele.
- Pois foi aqui.
Tistu viu, sob o dedo do Sr. Trovões, uma pe-
quena mancha cor-de-rosa, que parecia uma pastilha.
- Por que foi que a guerra se meteu aí, Sr.
Trovões?
- É muito fácil de entender.
Quando o Sr. Trovões dizia que qualquer coisa
era fácil de entender, Tistu ficava desconfiado; geral-
mente era muito complicado. Mas desta vez Tistu
estava resolvido a escutar direitinho.
- É muíto fácil - repetiu o Sr. Trovões. -
Esse deserto não pertence a ninguém .
"A ninbuém", repetiu Tistu interiormente.
- . . . Mas à direita se encontra a nação do's
Voulás e à esquerda a nação Jos Vaitimboras.
"Vou-lás . . . Vai-tim-bo-ras . . . ", repetiu de novo
Tistu; ele estava mesmo muito atento.
- . . . Ora, há algum tempo os Voulás anunciá-
ram que queriam esse deserto; os Vaitimboras respon-
deram que também queriam. Os Voulás se instalaram
numa ponta e os Vaitimboras na outra. Os Voulás
enviaram um telegrama aos Vaitimboras, dizendo-lhes
que se retirassem. Os Vaitimboras replicaram pelo rá-
dio que proibiam os Voulás de permanecerem onde
estavam. Agora os dois exércitos estão em marcha. E,
quando se encontrarem, travarão o combate.
- O que é que há nesta pastilha cor-de-rosa . . .
istò é, nesse deserto? Jardins? - perguntou Tistu.
3
102
- Claro que não, se é um deserto! Ali nâo há
coisa alguma. Só mesmo pedras . . .
- Então essa gente vai brigar por causa dessas
pedras?
- Eles querem o que está por baixo.
- Debaixo do deserto? E o que é?
- Petróleo.
- Por que querem eles essa coisa chamada pe-
tróleo?
- Para que os outros não o tenham. Querem
esse petróleo porque o petróleo é indispensável numa
guerra.
Tistu bem sabia que as explicações do Sr. Tro-
vões acabavam ficando dificílimas!
Fechou os olhos para pensar melhor.
"Se compreendi direito, os Voulás e os Vaitim-
boras estão em guerra por causa do petróleo, porque
o petróleo é indispensável para a guerra." Abriu de
novo os olhos.
- Mas isso é uma tolice! -- declarou ele.
As orelhas do Sr. Trovões ficaram escarlates.
- Tistu, será que você quer um zero?
- Não - respondeu Tistu. - O que eu queria
é que os Voulás e os Vaitimboras não entrassem em
combate.
Essa demonstração de bons sentimentos acalmou
provisoriamente a cólera do Sr. Trovões.
- Isso é claro, isso é claro - disse ele dando
de ombros. - Ninguém jamais quis a guerra. . . Mas
sempre existi u . . .
"O que é que eu poderia fazer? . . . pensava Tistu.
Colocar meu polegar na pastilha cor-de-rosa?"
103
T
;;
- É muito longe esse deserto? - perguntou ele.
'i) '..;,,.., .
- Fica no meio do caminho que vai daqui à
outra metade da Terra.
- Então a guerra não pode cheDar até Mira-
pólvora.
- Impossível não é. A gente sabe onde uma
guerra começa, mas nunca onde vai parar. Os Voulás
podem chamar em seu auxílio um grande país, e os
Vaitimboras pedir a ajuda de um outro. E os dois
grandes países entrarão em guerra. É o que se chama
uma extensão do conflito.
A cabeça de Tistu rodava como um motor.
"Afinal a guerra é uma espécie de tiririca que se
alastra pelo globo . . . Com que espécie de plantas
oderíamos combatê-la
- AQora, você vai acompanhar-me à fábrica -
disse o Sr. Trovões. - Você irá vê-la no auge da
produção. Será uma ótima aula.
Ele gritou algumas ordens nos seus três telefones,
e desceu em companhia de Tistu.
Este, logo que chegou, ficou surdo de tanto baru-
lho. Os martelos automáticos batiam com toda a força,
as máquinas roncavam como milhões de piorras.
Era preciso gritar para fazer-se ouvir, mesmo que
a gente tivesse a voz do Sr. Trovões.
Tistu também ficou cego com os repuxos de
faíscas que irrompiam de toda parte. O aço corria pelo
chão como riachos incandescentes. Fazia um calor
insuportável, e os homens pareciam minúsculos e
negros.
Após a oficina de fundição, Tistu visitou as de
polimento, de torno, de montagem, bem como as de
104
fuzís, metralhadóras, tanques, caminhões, etc. Porque
a fábrica do Sr. Papai fabricava tudo o que se rela-
cionasse com guerra, armas e munições.
O dia seguinte era dia de entrega, e embalava-se
o material com tanta precaução como se fósse por-
celana.
Finalmente o Sr. Trovões mostrou a Tistu dois
enormes canhões, compridos como torres de catedral,
e tão brilhantes que pareciam untados de manteiga.
Suspensos em correntes, os canhões deslizavam
lentamente pelo ar; depois foram depositados devaga-
rinho, devagarinho, em reboques de caminhões que
pareciam não ter fim.
- São esses canhões, Tistu, que fazem a riqueza
de Mirapólvora - exclamou com orgulho o Sr. Tro-
vões. - Podem demolir, a cada tiro, quatro casas tão
grandes como a sua.
Essa notícia não pareceu inspirar a Tistu o mes-
mo orgulho.
"Então, pensou ele, a cada tiro de canhãò, quatro
Tístu sem casa, quatro Cárolo sem escada, quatro
Amélias sem cozinha . . . Então é com essas máquinas
que se perde o jardim, o país, a perna, ou alguém da
familia . . . Esta é a verdade!"
E os martelos a baterem, as forjas a esquentarem.
- O senhor é a favor de quem, Sr. Tròvões? -
perguntou Tistu, fazendo grande esforço para ser ou-
vido naquele alarido que os cercava.
- O quê?
- Estou perguntando: O senhor é a favor de
quem nesta guerra?
-- Dos Voulás - gritou o Sr. Trovões.
105
- E papai?
- Também.
- Por quê?
- Porque são nossos amigos há muito tempo.
"É claro, disse Tistu consigo mesmo, se a gente
tem amigos que são atacados, deve ajudá-los a se de-
fenderem."
- Então esses canhões vão para os Voulás? -
prosseguiu ele.
- Só o da direita - áritou o Sr. Trovões. -
O outro é para os Vaitimboras.
- Como para os Vaitimboras? - exclamou
Tistu indignado.
- Porque eles também são bons fregueses.
Assim um canhão de Mirapólvora ia atirar contra
um outro canhão de Mirapólvora, e demolir um jar-
dim tanto de um lado como de outro!
- É o comércio . . . - acrescentou o Sr. Tro-
vões.
- Pois então, eu acho abominável o seu co-
mércio!
- O quê? - perguntou o Sr. Trovões abaixan-
do-se, porque o barulho dos martelos abafava a voz
de Tistu.
- Eu estou dizendo que o seu comércio é abo-
minável, porque . . .
Uma vasta bofetada o interrompeu. O conflito
entre os Voulás e os Vaitimboras acabava de se esten-
der de repente até a face de Tistu.
"Eis o que é a guerra! A gente pede uma explica-
ção, diz o que pensa, e zás, recebe uma bofetada. E
106
se eu te fizesse brotar urtiga no fundo das calças, quero
ver o que você fazía! pensava Tistu, com os olhos
cheios de láárimas olhando o Sr. Trovões. Sim, urtigas
ou cardos . . . "
Ele mal continha o polegar . . . E foi assím que a
idéia, a sua grande idéia lhe veio.
A aula de fábrica, vocês já previram, terminou
nesse ponto. Tistu ganhou um duplo zero, o Sr. Tro-
vões logo o comunicou ao Sr. Papai, que ficou muito
desgostoso. Seu Tistu, que devia lhe suceder e tornar-
se o dono de Mirapólvora, demonstrava realmente
poucas disposições para dirigir tão bela empresa.
- É preciso que eu converse com ele seriamente
- disse o Sr. Papai. - Onde está ele?
- Foi se refugiar junto ao jardineiro, como de
costume - respondeu o Sr. Trovões.
- Bem, veremos isto mais tarde. Por ora,
terminemos as embalagens.
Por causa da urDência das entregas, a fábrica
funcionava sem parar. As nove chaminés coroavam-
se a noite toda de grandes halos vermelhos.
Ora, aquela noite, o Sr. Papai, que não tivera
tempo de jantar e físcalízava o trabalho das várias
oficinas do alto de uma pequena torre envidraçada,
teve uma aJradável surpresa. Seu Tistu vòltara à fá-
brica e passava lentamente ao longo das caixas de
fuzis, subia nos caminhões, debruçava-se sobre os mo-
tores, esgueirava-se entre os imensos canhões.
"Tistu é fantástico! pensou o Sr. Papai. Está se
esforçando para recuperar os pontos perdidos com seu
duplo zero. . . ~lão se deve perder a esperança!"
107
Tistu, realmente, jamais parecera tão sério e tão
atarefado. Estava de cabelo em pé. A cada instante
tirava do bolso pequenos pedaços de papel.
"Parece até que está tomando notas, observou o
Sr. Papai. Queira Deus que ele não prenda o dedo, ao
enfiá-lo assim nas metralhadoras. Ora, é um bom me-
nino, que reconhece logo os seus erros . . . "
O Sr. Papai ia ter outras surpresas.
CAPÍTULO DEZESSEIS
No qual se sucedem as mais
espantosas notícias.
Ilustrações onde os canhões estão vomitando flores, e há diversos
policiais admirados.

Todo mundo sabe que os jornais só
falam de guerra usando letras maiúsculas. Essas letras
ficam enfileiradas num armário especial. E era justa-
mente diante desse armário de maiúsculas que o di-
retor de O Relâmpago de Mirapólvora, diário bem
conhecido, sofria terríveis hesitações.
Ia e vinha, suspirava, enxugava a fronte, o que
é sempre sinal de emoção e perplexidade. O homem
estava muito contrariado.
Mal pegava uma grande máiúscula, dessas que
são reservadas para as grandes vitórias, logo a punha
de lado. Ora escolhia uma das maiúsculas médias,
que servem para as guerras que se arrastam, para as
expedições que não terminam, para as retiradas im-
previstas. Mas essa maiúscula também não servia: vol-
tava para o armário.
111
Num certo momento pareceu decidir-se pelas
pequenas letras capitais, que se usam para as notícias
que põem todo mundo de mau humor, como: "Novo
imposto sobre as compotas", ou: "Falta de água por
dois dias". Mas essas letras também não resolviam o
caso. E o diretor de O Relâmpago suspirava cada vez
mais fundo. Realmente, era um homem no auge da
contrariedade.
Ele devia anunciar aos habitantes de Mirapólvora
,
seus fiéis leitores, uma notícia tão inesperada e de tão
graves conseqüências, que não sabia como se arran-
jar. A guerra entre os Voulás e os Vaitimboras havia
fracassado. E quem poderá convencer o público de
que uma guerra possa parar de repente, sem vencedo-
res, sem vencidos, sem conferências internacionais,
sem nada de nada?
Ah, o pobre diretor teria bostado de imprimir
em toda a extensão da primeira página, um título
sensacional, como por exemplo: "Fulminante avanço
dos Voulás" ou "Irresistível ataque das tropas Vai-
timboras".
Mas isso era impossível. Os repórteres enviados
até a pastilha cor-de-rosa eram categóricos: a guerra
não acontecera, e seu fracasso punha em questão a
qualidade das armas fornecidas pela Fábrica de Mi-
rapólvora, assim como a competência técnica do
Sr. Papai, de suas oficinas e de todo o pessoal.
Em suma, tratava-se de um verdadeiro desastre!
Experimentemos, com o diretor de O Relâmpago,
reconstituir o desenrolar dos trágicos acontecimentos.
112
Plantas trepadeiras e colantes se tinham enraiza-
do nas caixas de aranamento! Como se meteram lá?
Por que razão? Ninguém podia explicá-lo.
A hera, a briônia, a campanilha e a erva-de-pas-
sarinho formavam em vólta das metralhadoras e dos
revólveres um espesso emaranhado, que a visão do
meimendro negro vinha abravar.
Essas caixas, tanto os Voulás como os Vaitim-
boras acabaram desistindo de recuperá-las.
Os repórteres, nos seus relatórios, frisavam a
ação particularmente nociva da bardana, erva medi-
cinal cujos baáos vermelhos são munidos de ganchos.
A bardana se alastrara pelas baionetas. Que fazer
com fuzis que desabrochavam, com baionetas que não
mais espetavam, e que os mais belos buquês privavam
de toda eficácia? Só jogando no lixo.
Igualmente inaproveitáveis os magníficos cami-
nhões, tão conscienciosamente listrados de cinza e
amarelo! Espinheiros, carrapichos e urtiDas de toda
espécie brotavam fartamente nos assentos, provocan-
do 'imediata urticária nos motoristas. Fóram eles,
aliás, as únicas vítimas da guerra. As brancas enfer-
meiras condenaram à imobilidade e às compressas
mornas esses pobres soldados, que cruéis comichões
impediam de sentar.
Situa-se aqui o lastimável incidente causado por
uma espécie de não-me-toques. Que uma humilde flor
do campo possa desencadear o pânico entre combaten-
tes, isto se explica facilmente, quando sabemos que
é provida de cápsulas que explodem ao menor con-
tato.
113
Os motores estavam repletos dessa planta, que pu-
' lulava no carburador das autometralhadoras e no re-
servatório das motocicletas. Mal se dava partida, à
menor pressão no acelerador produziram-se e propa-
garam-se surdas explosões, que não causaram o mais
leve dano mas abalaram fortemente o moral das tropas.
Passemos aos tanques. Tinham as torres blo-
queadas. Roseiras bravas, às quais se misturavam a
madressilva e as buganvílias, lançavam raízes, cachos,
pedúnculos e ramos espinhentos em torno das engre-
nagens. Os tanques, portanto, estavam também fora
de combate.
Nem um só aparelho fora poupado pela miste-
riosa invasãol Surgiam plantas por todo lado, plantas
teimosas, ativas, como que dotadas de vontade própria.
Nas máscaras contra gases desenvolvia-se a aqui-
léia esternutatória. O repórter de O Relâmpago garan-
tia que a um metro dessas máscaras as pessoas já se
punham a espirrar cerca de cinqüenta espirros.
Ervas malcheirosas se alojavam no interior dos
porta-vozes. Os oficiais tiveram de renunciar a essas
cornetas onde cresciam arruda e alho-de-urso.
Mudos, imóveis, impotentes, os dois exércitos
haviam estacado, um diante do outro.
As más notícias voam. O Sr. Papai já estava a
par de tudo, e bem imaginamos em que estado de de-
sespero. Suas armas floresciam como acácias na
primavera.
Mantinha-se em constante contato com o dire-
tor de O Relâmpago, que Ihe fazia a leitura, pelo te-
lefone, dos mais pungentes telegramas. . . Só restava
114
uma esperança: os canhões, os famosos canhões de
Mirapólvora.
Pois, como dizia o Sr. Papai, dois exércitos imo-
bilizados podem ainda entrar em combate, desde que
disponham de bons canhões.
Esperou-se até à noite. Um último telegrama
desfez todas as ilusões.
Os canhões de Mirapólvora haviam atirado, não
resta dúvida; mas haviam atirado flores.
Uma chuva de amores-perfeitos, papoulas e mio-
sótis abatera-se sobre os contingentes dos Voulás; que
haviam respondido inundando os Vaitimboras de ge-
rânios, margaridas e beijos. Um general tivera o quépi
arrebatado por um buquê de violetas.
Não se conquista um país com rosas, e as bata-
lhas de flores nunca foram levadas a sério.
A paz foi imediatamente concluída entre os Vou-
lás e os Vaitimboras. Os dois exércitos se retiraram,
e o deserto cor de pastilha cor-de-rosa foi devolvido
ao seu céu, à sua solidão e à sua liberdade.
115
CAPÍTULO DEZESSETE
No qual Tistu
corajosamente
denuncia a si próprio:
Ilustração onde Tistu conversa com o pai e conta toda a verdade. Ao
lado o Sr Trovões mostra um canhão cheio de flores.

Há silêncios que despertam. Tistu sal-
tou da cama aquela manhã porque a grande sirene
não tocou. Foi à janela. A fábrica de Mirapólvora
estava parada; as nove chaminés não fumegavam.
Tistu correu ao jardim. Sentado em seu carri-
nho de mão Bigode lia o jornal, coisa que raramente
acontecia.
- Ah, você está aqui! - exclamou ele. - En~
matéria de trabalho bem feito, não podia ter. sido me-
lhor. Nunca teria imaginado que fosse tão bem su-
cedido!
Bigode irradiava alegria. Ele beijou Tistu, isto
é, envolveu-lhe a cabeça com seus bigodes.
Depois, com a ligeira melancolia dos homens
que terminaram sua tarefa, Bigode acrescentou:
- Já não tenho mais nada a lhe ensinar. Você
sabe mais do que eu, e anda mais rápido.
119
Vindo de um mestre como Bigode, esse elogio
aqueceu o coração de Tistu.
Do lado das cavalariças, Tistu encontrou Gi-
násticc.
- Que maravilha! - soprou-lhe Tistu na ore-
lha bege. - Fiz parar, com flores, uma guerra. . .
O pônei não pareceu nada surpreso.
- Por falar nisso - respondeu ele - Dostaria
muito de um feixe de trevo branco. É o que prefiro
para almoço, e cada vez há menos pelo campo. Pense
nisso, Tistu, quando houver tempo.
Essas palavras mergulharam Tistu numa grande
estupefação. Não porque o pônei tivesse falado . . .
isso já o percebera há muito . . . mas porque o pônei
mostrava saber que ele tinha o polegar verde.
"Felizmente Ginástico não fala com ninguém,
além de mim", disse Tistu consigo mesmo.
E voltou, pensativo, para casa. Aquele pônei,
via-se bem, sabia muita coisa.
Na Casa-que-Brilha as coisas não iam como de
costume. Primeiro, fato indiscutível, os vidros já não
brilhavam tanto. Amélia não cantava mais diante do
forno: "Tu não te lembras da casinha pequenina . . . ",
sua canção predileta. O criado Cárolo já não polia
o corrimão.
Dona Mamãe estava de pé desde as sete horas,
como nos dias de viagem. Tomava o café com leite
na sala de jantar; ou melhor, o café com leite estava
diante dela, e ela não tocava na xícara. Mal viu Tistu
atravessar a sala.
O Sr. Papai não fora ao escritório. Achava-se na
sala de visitas em companhia do Sr. Trovões, e ambos
120
andavam a passos largos, de modo descontrolado,
tanto que às vezes esbarravam um no outro e às vezes
davam-se as costas. Sua conversa rugia como se fosse
uma tempestade.
- Uma ruína! Uma desonra! Só resta fechar!
Quanto desemprego! exclamava o Sr. Papai.
E o Sr. Trovões respondia como o eco de um
trovão rolando pelas nuvens:
- Conspiração . . . Sabotagem . . . Atentado pa-
cifista . . .
- Ah, meus canhões, meus lindos canhões! -
prossebuia o Sr. Papai.
Tistu, no limiar da porta entreaberta, não ousava
interrompê-los.
`Eis como são as pessoas grandes, dizia consiQo
mesmo. O Sr. Trovões me afirmava que todo mundo
era contra a guerra, mas que era um mal inevitável,
contra o qual não se podia fazer coisa alguma. Eu
acabo de impedir uma guerra. Eles deviam estar con-
tentes, em vez de se zangarem!"
O Sr. Papai, esbarrando de novo no ombro do
Sr. Trovões, ~ritou, fora de si:
- Ah, se eu apanhasse o miserável que foi se-
mear flores nos meus canhões!
- Ah, se eu também o agarrasse! - respondia
o Sr. Trovões.
- Mas talvez não haja nenhum responsável. . .
Forças superiores . . .
- É preciso abrir um inquérito. É um caso de
alta traição!
Tistu, vocês já sabem, era um menino corajoso.
Abriu a porta, e colocou-se debaixo do grande lustre
121
de cristal, no centro do tapete de guirlandas, defronte
ao retrato do Sr. Avô. Tomou respiração, e disse:
- Fui eu que semeei flores nos canhões!
Em seguida, fechou os olhos, esperando o tapa.
Como o tapa não veio, abriu de novo as pálpebras.
O Sr. Papai tinha estacado num canto do salão
e o Sr. Trovões no outro. Eles olhavam Tistu mas
parecia que não o estavam vendo. Seria o caso até de
perguntar se tinham ouvido e compreendido.
"Não estão acreditando", pensou Tistu. E, para
confirmar sua confissão, enumerou suas proezas, como
quem dá a solução de uma charada:
- Os volúbeis na favela, fui eu! A cadeia, fui
eu! O edredom de pervincas para a menina doente,
fui eu! E o baobá na jaula do leão, fui eu também!
O Sr. Papai e o Sr. Trovões continuavam a brin-
car de estátuas. A idéia de Tistu florista a domicílio
não lhes podia entrar na cabeça. Tinham justamente
a cara de que iam abrir a boca para declarar: "Pára
de dizer tolices e deixa as pessoas brandes em paz!"
"Pensam que estou me gabando, pensou Tistu. É
preciso que lhes prove a verdade."
Aproximou-se então do retrato do Sr. Avô. Sobre
o canhão que servia de apoio ao venerando fundador
da Manufatura de Mirapólvora, encostou o polegar e
o manteve ali alguns sebundos.
A tela estremeceu ligeiramente, e viu-se brotar
da boca do canhão uma haste de junquilho, que deu
primeiro uma folha, depois outra, e em seguida as
campânulas brancas.
- Pronto! - disse Tistu. - Eu tenho polegar
verde.
122
Ele esperava que o Sr. Trovões ficasse escarlate e
o Sr. Papai todo branco. Mas foi o contrário.
O Sr. Papai deixou-se cair numa poltrona, com
o rosto cor de púrpura, enquanto o Sr. Trovões, páli-
do como cera, tombava no tapete.
Diante deste duplo espetáculo Tistu compreen-
deu que fazer brotar flores dentro dos canhões pertur-
bava profundamente a vida das pessoas grandes.
Saiu do salão com o rosto intacto, o que prova
que a coragem é sempre recompensada.
123
CAPÍTULO DEZOITO
No qual algumas pessoas grandes
acabam renunciando
às suas idéias estabelecidas.
Sr. Papai, como vocês já puderam
constatar ao longo desta narrativa, era um homem de
rápidas decisões.
Foi-lhe preciso, no entanto, uma semana inteira
para refletir sobre a situação e enfrentá-la.
Cercado de seus melhores engenheiros, reuniu
vários conselhos de direção, nos quais o Sr. Trovões
tomou parte. Depois fechou-se sozinho no seu escri-
tório e passou horas e horas com a cabeça entre as
mãos. Tomou uma porção de notas. Mas rasgou tudo.
Em suma, a situação se resumia nisto: Tistu ti-
nha polegar verde, usara o polegar verde, e parara,
com o polegar verde, a fábrica de Mirapólvora.
Porque, como era de esperar, os ministros da
guerra e os generais que se abasteciam normalmente
em Mirapólvora havíam logo retirado seus pedidos:
127
- É melhor a gente recorrer a um florista! -
diziam eles.
Havia, evidentemente, uma solução, que ocorreu
a muitas pessoas destituídas de imaginação: trancar
Tistu na cadeia, porque ele semeava a desordem, e
comunicar pela imprensa que o malfeitor já não estava
em condições de agir. Em seguida, depois de substi-
' tuir por canhões comuns os canhões floridos, como
exigia a justiça, remeter uma circular a todos os ge-
nerais, informando-lhes que a manufatura retomava a
fabricação de outrora.
Mas o Sr. Trovões . . . sim, até o Sr. Trovões se
opôs a semelhante solução.
- Não se levanta facilmente de uma queda
como essa! - disse ele sem gritar. - A desconfiança
irá pairar muito tempo sobre os nossos produtos. E
fechar Tistu na cadeia não adianta nada. Fará brotar
carvalhos, cujas raízes derrubarão as paredes, permi-
tindo-lhe a fuga. A gente não se pode opor às forças
da natureza.
Como o Sr. Trovões mudara! Suas orelhas, desde
o dia da queda no salão, haviam embranquecido. e
sua voz se acalmara. E depois (por que não dizê-lo?)
o Sr. Trovões não suportava imaginar Tistu em uni-
forme de forçado, andando em roda, embora numa
cadeia florida. A prisão é dessas coisas que a gente
encara tranqüilamente para as pessoas que não co-
nhecémos. Mas logo que se trate de um menino de
quem a gente gosta, é tudo diferente. Pois está aí uma
coisa que ninguém esperava: O Sr. Trovões, apesar
das suas arengas, dos seüs zeros, da sua bofetada, logo
que ouviu falar em prisão, descobriu que gostava de
128
Tistu, que se afeiçoara a ele, que não suportaria dei-
xar de vê-lo. São assim muitas vezes as pessoas que
falam grosso.
Aliás o Sr. Papai ter-se-ia oposto, em qualquer
hipótese, à prisão de Tistu. O Sr. Papai era bom,
como já disse. Era bom e era negociante de canhões.
À primeira vista, isso não parece compatível. Adorava
seu filho e fabricava armas para levar a orfandade aos
filhos dos outros. Isso acontece mais do que se pensa.
- Nós tínhamos conseguido dois sucessos -
disse ele a Dona Marpãe. - Fabricávamos os melhores
canhões e fazíamos de Tistu um menino feliz. Parece
que as duas coisas já não podem coincidir.
Dona Mamãe era suave, bela e bondosa. Uma
pessoa encantadora. Escutava sempre com o maior
interesse, e mesmo com admiração, as palavras do ma-
rido. Desde o triste caso da guerra dos Voulás ela se
sentia um pouco culpada, sem saber exatamente por
que motivo. As mães se julgam sempre um pouco cul-
padas quando os filhos perturbam a vida das pessoas
grandes e correm o risco de sofrer as conseqüências.
- Que fazer, meu caro, que fazer? - respon-
deu ela.
- O que me preocupa é tanto o destino de Tistu
quanto o da fábrica - prosseguiu o Sr. Papai.
Nós tínhamos uma idéia quanto ao futuro do menino:
imaginávamos que irïa suceder-me na fábrica, como
eu sucedera a meu pai. Ele tinha todo o seu caminho
traçado, fortuna, consideração . . .
- Era uma idéia estabelecida - disse Dona
Mamãe.
129
- Sim, uma idéia estabelecida e bem cômoda.
Agora, precisamos estabelecer uma outra. Esse me-
nino não sente gosto pelas armas, parece evidente.
- Dir-se-ia que sente inclinação pela horticul-
tura. . .
O Sr. Papai se lembrou das palavras do Sr. Tro-
vões: "A gente não se pode opor às forças da natu-
"
reza . . .
"É claro que nada podemos contra essas forças,
refletia o Sr. Papai; mas podemos pô-las a nosso
serviço."
Ele se levantou, deu três passos pela sala, voltou-
se, e puxou as pontas do colete.
- Minha cara esposa - disse ele - eis a mi-
nha decisão.
- Tenho a certeza de que é a melhor - disse
Dona Mamãe com os olhos marejados de lágrimas,
porque o rosto do Sr. Papai tinha naquele instante
alguma coisa de heróico, de comovente, e seus cabe-
i
los brilhavam como nunca.
- Nós vamos - declarou ele - transformar a
fábrica de canhões em fábrica de flores.
Os grandes homens de negócio têm o segredo des-
sas viravoltas repentinas, desses inesperados arrancos
em face de uma situação adversa.
Puseram imediatamente mãos à obra. O sucesso
foi fulminante.
A batalha a tiros de violetas e miosótis fizera cor-
rer muita tinta pelo mundo. A opinião pública já es-
tava preparada. Todos os acontecimentos precedentes,
as misteriosas florações e até mesmo o nome da ci-
130
dade, Miraflores, tudo concorreu para o rápido desen-
volvimento da nova empresa.
O Sr. Trovões, a quem foi confiada a publicidade,
fez estender pelas estradas da redondeza imensas fai-
xas, onde se lia:
"Plazntai flores que crescem na noite."
Ou então:
"As flores de Mira flores crescem até sobre o
canhão."
Mas seu melhor "slogan" foi sem dúvida:
"DiZei não à guerra, mas diZei-o com flores.
Os clientes afluíram, e a Casa-que-Brilha recupe-
rou a antiga prosperidade.
131
CAPÍTULO DEZENOVE
No qual Tistu
faz uma última descoberta.
Ilustração onde Tistu está chorando, abraçado ao cavalo.

As histórias nunca param onde a gente
imagina. Vocês pensavam talvez que tudo já estivesse
dito, e que já conhecessem Tistu muito bem. Pois
fiquem sabendo que nunca conhecemos ninguém com-
' pletamente. Nossos melhores amigos reservam sempre
surpresas.
É claro que Tistu já não fazia mistério a respeito
do polegar verde. Ao contrário, falava-se muito disto,
e Tistu se tornara um menino célebre, não só em Mi-
rapólvora (perdão, Miraflores), mas no mundo in-
teiro:
_ A fábrica ia às mil maravilhas. As nove chaminés
estavam cobertas, até em cima, de trepadeiras e flores
exuberantes. As oficinas recendiam os mais raros
perfumes.
Fabricavam-se tapetes de flores para o chão das
casas e tapeçarias para substituir as cortinas e o papel
135
de parede. Os jardins eram despachados em vagões.
O Sr. Papai tinha até recebido uma encomenda de
tapa-arranha-céu, porque as pessoas que viviam nos
apartamentos eram freqüentemente, ao que se dizia,
tomadas de uma espécie de febre, que as levava a se
jogarem pela janela do centésimo-tribésimo andar. Vi-
vendo tão distantes da terra, é compreensível que não
se sentissem muito normais, e julgava-se que as flores
fariam passar aquelas vertigens.
Bigode tornara-se o grande conselheiro das cul-
turas. Tistu não cessava de aperfeiçoar sua arte. Ago-
ra, ele inventava flores. Chegara a criar a rosa azul,
de que cada pétala parecia um pedaço do céu. E fora
bem sucedido em duas novas variedades de girassol:
o girassol nascente, cor de aurora, e o girassol poente
entre púrpura e cobre.
Quando acabava, ia brincar no jardim com a me-
nina que haviá sarado. Ginástico só comia do melhor
trevo branco.
- Então, está contente agora? - disse um dia
o pônei a Tistu.
- Sim, estou muito contente! - respondeu
Tistu.
- Você não se aborrece?
- De modo algum.
- Não sente vontade de nos deixar? Vai ficar
conosco?
- Mas é claro. Por que essas perguntas engra-
çadas ?
- Uma idéia . . .
- O que é que você quer dizer?~Já não acabou
a minha história? - perguntou Tistu.
136
- Vamos ver . . . vamos ver . . . - disse o pô-
nei, pondo-se a roer seus trevos.
Daí a alDumas manhãs, uma notícia correu pela
Casa-que-Brilha, deixando todos muito tristes. O jar-
dineiro Bibode não despertara.
- Bigode resolveu descansar para sempre -
explicou Dona Mamãe a Tistu.
- Posso ir vê-lo dormir?
- Não, não pode. Você não pode mais vê-lo.
Partiu para uma viagem longa, muito longa, e nunca
mais voltará.
Tistu não compreendia direito. "Não se viaja de
olhos fechados, pensou ele. Se está dormindo, podia
ter me dado boa noite. E se partiu, podia ter me dito
adeus. Isto não está nada claro; estão me escondendo
alguma coisa.
E foi sondar a cozinheira Amélia.
- O coitado do Bibode está no céu; agora é
mais feliz que nós - disse Amélia.
"Se é feliz, por que dizer que é coitado? Se é coi-
tado, como poderá ser feliz?" perguntava-se Tistu.
Cárolo tinha ainda uma outra opinião. Segundo
ele, Bigode estava debaixo da terra, no cemitério.
Era muita contradição.
Debaixo da terra ou no céu? Era preciso decidir.
O jardineiro não podia estar por toda parte ao mesmo
tempo.
Tistu foi ao encontro de Ginástico.
- Eu sei - disse o pônei. -- Bigode morreu.
Ginástico dizía sempre a verdade. Era um de seus
princípios.
137
" - Morreu? - exclamou Tistu. - Mas não
houve guerra..
- Não é preciso guerra para morrer - respon-
deu o pônei. - A guerra é apenas uma ajudante da
morte . . . Bigode morreu porque era muito velho.
Toda vida termina assim.
Tistu teve a impressão de que o sol perdia o seu
brilho, o prado se tornava escuro e o ar difícil de res-
pirar. São os sinais de um incômodo que as pessoas
grandes pensam que só elas sentem, mas que as pessoi-
nhas da idade de Tistu sentem também, e que se chama
desgosto.
Tistu envolveu com seus braços o pescoço do pô-
nei e pôs-se a chorar na sua crina.
- Chora, Tistu, chora - dizia Ginástico. - É
preciso. As pessoas brandes não querem chorar, e fa-
zem mal, porque as lágrimas belam dentro delas, e o
coração fica duro.
Mas Tistu era um menino diferente, que não se
dobrava em face da desgraça antes de Ihe pôr o dedo
em cima.
Enxugou suas lágrimas e pôs um pouco de ordem
em suas idéias.
"No céu ou debaixo da terra?" - repetia ele.
Resolveu ir ver de perto. No dia seguinte, após
o almoço, saiu do jardim e correu até o cemitério,
um pouco no flanco da colina. Um cemitério bonito,
cheio de árvores e nada triste.
"Parecem chamas da noite a brilhar durante o
dia", pensou Tistu ao passar pelos ciprestes negros.
Viu um jardineiro, de costas, varrendo uma aléia.
Sentiu de repente uma louca esperança. . . Mas o jar-
138
dineiro voltou-se. Era um simples jardineiro de cemi-
tério, sem a menor semelhança com o que Tistu
procurava.
- Por favor, o senhor sabe onde está o Sr. Bi-
gode? - perguntou-lhe Tistu.
- Terceira aléia â direita - respondeu o jar-
dineiro, sem interromper o trabalho.
"Então é aqui mesmo . . . " - concluiu Tistu.
Seguiu a direção indicada, caminhou entre as
sepulturas e deteve-se diante da última, novinha em
folha. Na lápide de pedra lia-se esta inscrição, com-
posta pelo professor:
Aqui jaz Mestre Bigode,
jardineiro dos melhores.
Unza lágrima por ele,
que foi amigo das flores.
E Tistu pôs mãos à obra. "Bigode não poderá
resistir a uma peônia. Sentirá vontade de conversar
com ela", pensava Tistu. Enterrou o polegar no chão
e esperou alguns instantes. A peônia brotou do solo,
subiu, desabrochou, e inclinou a cabeça, pesada como
um repolho, por sobre a inscrição da lápide. E ele
fez surgirem jacintos, cravos, lilases, mimosas e an-
gélicas. A sepultura, em poucos minutos, viu-se cer-
cada de um bosque. Mas continuou sepultura.
"Talvez uma flor que ele não tenha conhecido
pensou ainda Tistu. Mesmo quando a gente está muito
cansado, a curiosidade atrai . . . "
Mas a morte zomba dos enigmas. Ela é que os
propõe.
139
Uma hora inteira Tistu lançou mão da mais
fértil fantasia para fabricar plantas jamais sonhadas.
Inventou, assim, a flor-borboleta, com dois pistilos em
forma de antenas e duas pétalas estendidas, que se
agitavam à menor brisa. Tudo em vão.
Quando foi embora, de mão suja, cabeça baixa;
deixava atrás de si a mais surpreendente sepultura
que se tenha visto num cemitério. Mas Bigode não
respondera.
Tistu atravessou o prado, em busca de Ginás-
tico .
Você já sabe, Ginástico .
- Sim, eu sei - respondeu o pônei. - Você
descobriu que a morte é o único mal contra o qual as
flores nada podem . . .
E, como o pônei era um moralista, acrescentou:
- É por isso que os homens são muito tolos ao
procurar se prejudicarem uns aos outros, como fazem
constantemente.
Tistu, de nariz para cima, olhava as nuvens e
refletia.
140
CAPÍTULO VINTE
No qual ficamos sabendo
finalmente quem era Tistu.
Ilustração mostrando o cavalo comendo grama no jardim.

Ela o preocupava há vários dias; exigia
todos os seus cuidados; era só nela que ele pensava.
Ela, quem? A escada.
- Tistu está construindo uma escada - diziam
em Miraflores.
Mas era só o que sabiam. Uma escada para ser
colocada onde? Para quê? Por que uma escada e não
uma torre ou uma bandeira de flores?
Tistu desconversava.
Tenho vontade de fazer uma escada, só isso . . .
Escolhera o local, bem no centro do prado.
Uma escada, geralmente, é trabalho de carpintei-
ro. Mas Tistu não pretendia usar madeira cortada.
Começara por meter o polegar na terra, bem
fundo, em dois pontos bem distantes um do outro,
mais ou menos a distância dos seus braços bem abertos.
143
- É preciso que as raízes desta escada sejam
bastante fortes - explicava ao pônei, que acompanha-
va os trabaihos com grande interesse.
Duas árvores se ergueram, duas belas árvores
esguias, de ramos espessos. Em menos de uma semana
tinham atingido trinta metros. Cada manhã Tistu, fiel
aos ensinamentos de Bigode, dirigia-lhes um breve
discurso. O método deu o melhor resultado.
As árvores eram de rara qualidade. O tronco, em
sua elegância, lembrava o eucalipto, mas com a du-
reza do jacarandá. As folhas eram recortadas como
as da parreira, e os frutos brotavam verticalmente, em
pequenos cones, como pinhas do pinheiro.
Mas quando as árvores passaram dos sessenta
metros, as folhas de parreira deram lugar a espinhos
, azulados, e apareceram botões de veludo. Cárolo disse
então que as árvores eram de uma espécie muito co-
mum no seu país e a que chamavam sorveira.
- Isto, sorveira? - protestou a cozinheira
Amélia. - Não vê que está dando agora cachos bran-
cos e perfumados? Garanto que são abrunheiros, que
conheço muito bem, pois as flores servem para doce.
Mas nem Amélia nem Cárolo estavam errados
ou certos. Cada um via, naquelas árvores, a sua árvore
predileta. Eram árvores sem nome.
Em breve mediam mais de cem metros. Nos dias
de neblina já não se via mais onde acabavam.
Mas, dirão vocês, duas árvores, por mais altas
que sejam, jamais serão uma escada.
Foi então que sürgiu a glicínia. Uma álicínia di-
ferente, híbrida, fortemente cruzada com o lúpulo.
Apresentava ainda a particularidade de crescer na
144
horizontal entre os dois troncos. Apoiava-se solida-
mente num deles, dava um salto, atingia o outro, con-
tornava-o três vezes, fazia um nó com sua própria
haste, subia um pouco mais, e repetia a proeza em
sentido inverso. Assim se construíam os degraus da
escada.
O espetáculo foi quando essa glicínia, de uma vez
só, se cobriu de flores. Parecia correr do céu uma cas-
cata ~or de malva.
- Se Bigode está mesmo lá em cima, como in-
sistem em dizer - segredou Tistu ao Ginástico -
aproveitará esta escada para descer, nem que seja um
pouquinho.
- Você fica pondo coisas na cabeça! - respon-
deu o pônei.
- É que eu sofro por não poder vê-lo. . . e por
não saber . . . - respondeu Tistu.
A escada continuava a crescer. Fotografaram-na
para os jornais em cores, que escreviam a seu respeito:
"A escada de flores de Miraflores (ex-Mirapólvora)
é a oitava maravilha do mundo."
Se a gente perguntasse aos leitores quais eram as
sete primeiras, ficariam bem atrapalhados para res-
ponder. Faça a pergunta a seus pais, para ver uma
coisa!
Mas tudo isso não fez Bigode descer.
"Vou esperar ainda três manhãs, decidiu Tistu;
em seguida, sei o que me resta fazer."
Chegou a terceira manhã.
A lua se deitara, o sol não se levantara ainda e
as estrelas estavam caindo de sono, quando Tistu saiu
145
da cama. Não era mais noite, mas o dia não chegara
ainda.
Tistu vestia a sua longa camisola branca.
"Onde é que foram parar meus chinelos?" per-
guntou a si mesmo. Encontrou um debaixo da cama e
o outro em cima da cômoda.
Deixou-se escorregar pelo corrimão, saiu pé ante
pé, e chegou até a escada, no meio do prado. Ginástico
também estava lá. Tinha o pêlo triste, a orelha caída,
a crina emaranhada.
- Que é isso? Você já está de pé? - pergun-
tou-lhe Tistu.
- Não entrei ontem à noite na cavalariça -
respondeu o pônei. - Confesso que passei a noite in-
teira tentando roer o pé dessas árvores; mas a madeira
é dura demais. Meus dentes não conseguiram . . .
- Você quis então derrubar a minha bela es-
cada? - exclamou Tistu. - Porque, Ginástico?
Para impedir que eu suba?
- Foi, disse o pônei.
Gotas de orvalho começaram a cintilar pela relva.
E, ao mesmo tempo, Tistu viu duas lábrimas nos olhos
do pônei.
É preciso prestar muita atenção quando os cava
los choram. É sempre por uma coisa importante.
- Mas vamos, Ginástico, não soluce desse jeito,
senão você vai acordar todo mundo. Por que é que
você se preocupa? Você bem sabe que eu não sinto
vertigens. Eu vou só subir e descer. Já estarei de volta
quando o Cárolo se levantar . .
Mas Ginástico continuava chorando.
146
- Ah, bem que eu sabia . . . eu sabia que isso
ia acontecer . . . - repetia ele.
- Eu trarei uma estrelinha para você - disse
Tistu para consolá-lo. - Até logo, Ginástico.
- Adeus - disse o pônei.
Ele viu Tistu escalar os degraus e acompanhou a
sua ascensão.
Tistu ia subindo no mesmo ritmo, leve e ligeiro.
Dentro em pouco sua camisola de dormir parecia me-
nor que um lenço.
Ginástico espichava o pescoço. Tistu diminuía,
diminuía, já era menor que uma bola, que uma ervi-
lha, que uma cabeça de alfinete, que um grão de
poeira. Quando se tornou invisível, Ginástico afas-
tou-se tristemente, e foi roer a relva do prado, embora
não sentisse fome.
Mas Tistu, de sua escada, via ainda a Terra.
"Olha só, disse consigo mesmo, os prados são
azuis!
Deteve-se um instante. Daquelas alturas, tudo
muda. A Casa-que-Brilha brilhava ainda, num minús-
culo reflexo de diamante.
O vento se metia pela camisola de Tistu e a en-
chia com seu sopro.
"Vou segurar bem forte!" E prosseguiu a esca-
lada. Mas, em vez de se complicar, sua ascensão se
tornava cada vez mais fácil.
O vento se acalmara. Tudo o que fora barulho ou
ruído se tornava silêncio. O Sol faiscava como um fogo
gigantesco, mas sem queimar. A Terra não era mais
que uma sombra, mais que nada.
147
Tistu não percebeu logo que já não havia es-
cada. Somente deu por isso quando verificou que per-
dera seus caros chinelos e tinha os pés descalços. Já
não havia escada, e ele continuava a subir, sem difi-
culdade, sem fadiga. Uma Drande asa branca o roçou.
"Que engraçado! pensou ele. Uma asa sem pás-
saro . .
E de repente ele entrou numa enorme nuvem,
alva, sedosa, macia, onde já não enxergava mais
nada.
Essa nuvem lembrava a Tistu albuma coisa. .
uma coisa tão branca e tão suave . . . Sim, os bigodes
do Bibode, mil, milhões de vezes maior. Tistu subia
por uma barba imensa como uma floresta.
Ouviu então uma voz, uma voz parecida com a
de Bigode, mas imensamente mais forte, mais grave
e mais profunda . . . E ouviu essa voz dizer:
- Ah, você está aqui . . .
E ele desapareceu para sempre naquele mundo
invisível, do qual até as pessoas que escrevem histó-
rias não sabem coisa alguma.
No entanto, para que o Sr. Papai e a Dona Ma-
mãe e todos que o amavam não ficassem preocupados,
Tistu, pela última vez, mandou notícias suas por in-
termédio de Ginástico. Este pônei, como já dissemos,
sabia muita coisa.
A~sim que perdera Tistu de vista, pusera-se a
roer a relva do prado. E não estava com fome. Mas
roía, roía, apressava-se. Roía de um modo curioso,
' como se quisesse fazer um desenho ou seguir um tra-
çado. E, à medida que ia reendo, no lugar da relva
148
roída punham-se a brotar botões de ouro, bem junti-
nhos e espessos. Logo que acabou, foi descansar.
Quando os moradores da Casa-que-Brilha saíram
aquela manhã a chamar Tistu por todos os cantos,
viram no meio do prado dois chinelinhos e uma frase
escrita em belas letras douradas:
TISTU ERA um anjo!
149


Fim do livro







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