sexta-feira, 20 de novembro de 2015 By: Fred

{clube-do-e-livro} : Danielle steel AGORA E SEMPRE, Danielle Steel - A Avó Dan, Danielle Steel - A Casa da Rua da Esperanca-rev, Danielle Steel - A Dádiva, Danielle Steel - A Ventura de Amar (doc) (rev)

A AV� DAN.
Danielle Steel.
Copyright e 1999 by Danielle Steel.
Aos grandes amores, e �s pequenas bailarinas, cada qual acarinhado por si s� e jamais esquecido.
E, em especial,
� minha t�o amada Vanessa,
uma extraordin�ria
bailarina.
Que a vida te trate
com bondade, gentileza
e compaix�o.
Com todo o meu amor d.s.
PR�LOGO.
A caixa chegou numa tarde nevosa duas semanas antes do Natal. Muito bem embrulhada e atada com cordel, estava � minha espera na soleira da porta quando cheguei a casa com as crian�as. T�nhamos parado no parque no caminho para casa e eu ficara sentada
num banco a olhar pelas crian�as e a pensar de novo nela. Desde o servi�o religioso, h� uma semana atr�s, que povoava todos os meus pensamentos. Havia tanta coisa sobre ela que eu desconhecia, que apenas podia imaginar, tantos mist�rios que s� ela pod
ia desvendar. O meu maior desgosto era n�o lhe ter perguntado nada sobre a sua vida enquanto tivera oportunidade, partindo simplesmente do pressuposto de que n�o era importante. Afinal de contas, j� era velha, que import�ncia poderia a sua vida ter? P
ensava que sabia tudo sobre ela.
Era a av� de olhos brilhantes que adorava andar de patins comigo, mesmo aos oitenta anos, que fazia deliciosos biscoitos e conversava com as crian�as da cidade onde vivia como se fossem adultos e a entendessem perfeitamente. Era muito sensata e divert
ida, as crian�as adoravam-na e ficavam fascinadas com os truques com cartas que executava, quando a conseguiam convencer a isso.
Tinha uma voz meiga, tocava balalaica e cantava baladas antigas em russo. Parecia estar sempre a cantar ou a trautear. Permaneceu elegante e �gil at� ao fim, amada e admirada por todos os que a conheceram. A igreja estivera surpreendentemente cheia pa
ra uma mulher de noventa anos. No entanto, nenhum de n�s a conhecia na realidade, ningu�m sabia quem fora ou sequer imaginava o extraordin�rio mundo de onde viera. Sab�amos que nascera na R�ssia, que chegara a Ver-mont em 1917 e que casara com o meu a
v� pouco tempo depois. De resto, ach�vamos que sempre ali estivera e fizera parte das nossas vidas. Como sempre fazemos com os mais velhos, part�ramos do princ�pio de que sempre fora velha.
Nenhum de n�s a conhecia verdadeiramente e o que n�o me sa�a da cabe�a eram as perguntas por responder. Interro-
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gava-me por que raz�o nunca antes me ocorrera colocar-lhe essas quest�es, porque jamais procurara as respostas para essas perguntas?
A minha m�e falecera dez anos antes e talvez nem mesmo ela conhecesse as respostas, ou quisesse sequer conhec�-las. Fora sempre mais parecida com o seu pai, uma pessoa circunspecta, urna mulher sensata, uma verdadeira natural de Nova Inglaterra, embor
a o seu pai o n�o fosse. Tal como ele, era uma mulher de poucas palavras e de sentimentos imperscrut�veis. Acreditava que quanto menos se revelasse melhor e, da mesma forma, pouco interesse demonstrava na vida de outras pessoas. Ia ao supermercado qua
ndo os tomates ou os morangos estavam em promo��o, era uma pessoa pr�tica que vivia no mundo material e que pouco tinha em comum com a sua m�e. A palavra que melhor a descrevia era "pragm�tica", um termo que ningu�m utilizaria para descrever a sua m�e
, a av� Dan, como eu lhe chamava.
A av� Dan era uma pessoa m�gica. Parecia composta de ar, p�s de perlimpimpim e asas de anjo. M�e e filha pareciam n�o ter nada em comum e, na realidade, sempre me identifiquei mais com a minha av�, cuja ternura e carinho me tocaram de forma indel�vel.
A av� Dan era a pessoa que eu mais amava e de quem sentia tanta falta naquela tarde nevosa no parque. Falecera dez dias antes, com noventa anos de idade.
Quando a minha m�e morreu, com cinquenta e quatro, fiquei obviamente triste. Sabia que sentiria saudades dela, que sentiria falta da estabilidade e seguran�a que representava para mim. O meu pai casou com a melhor amiga da minha m�e um ano ap�s a sua
morte e nem isso me chocou muito. Tinha sessenta e cinco anos e um problema card�aco, por isso, precisava de algu�m que lhe cozinhasse as refei��es. Connie era uma velha amiga e fazia bem as vezes da minha m�e. A situa��o nunca me incomodou, compreend
ia-a at� muito bem. Nunca sofri muito com a perda da minha m�e, mas j� com a morte da av� Dan o mundo perdera para mim alguma da sua magia. Sabia que nunca mais a escutaria a cantar as suas melodias russas ou tocar a balalaica e que os meus filhos nun
ca se aperceberiam do que haviam perdido. Para eles, ela era apenas uma senhora muito velhinha com um olhar muito meigo
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e uma pron�ncia divertida, mas eu sabia exactamente o que perdera e nunca mais recuperaria. A av� Dan era um ser humano admir�vel, uma alma gentil, dif�cil de esquecer.
A caixa ficou em cima da mesa da cozinha durante bastante tempo, enquanto as crian�as viam televis�o, clamavam pelo jantar e eu acabava de prepar�-lo. Tinha ido ao supermercado naquela tarde e comprara os ingredientes necess�rios para confeccionar bol
inhos de Natal. Plane�ramos faz�-los naquela noite para que os pudessem levar para a escola no dia seguinte. Katie preferia fazer queques, mas Jeff e Mathew concordaram em fazer bolinhos em forma de sino, com decora��es encarnadas e verdes. Era a noit
e ideal para os fazer, pois Jack, o meu marido, ausentara-se por tr�s dias para uma s�rie de reuni�es em Chicago. Acompanhara-me ao funeral na semana anterior e mostrara-se carinhoso e compreensivo. Sabia o quanto ela significava para mim, por�m, tal
como a maioria das pessoas, tentara convencer-me de que a av� Dan tivera uma vida longa e cheia de alegrias, pelo que era aceit�vel que tivesse chegado ao fim. Aceit�vel para ele, n�o para mim. Sentia-me defraudada com a sua perda.
Mesmo aos noventa anos, a av� era ainda bela. Usava os seus longos cabelos brancos entran�ados e, em ocasi�es especiais, formava um coque com a tran�a. Toda a vida usara o cabelo daquela maneira. Para mim, tivera sempre o mesmo aspecto. As costas muit
o direitas, o corpo esguio, os olhos azuis que brilhavam quando olhava para n�s. Tamb�m fazia os mesmos biscoitos que eu planeara fazer naquela noite e ensinara-me a confeccion�-los, mas quando os faz�amos punha os seus patins e dan�ava graciosamente
por toda a cozinha. A av� fazia-me rir e, por vezes, chorar com as suas maravilhosas hist�rias sobre bailarinas e pr�ncipes.
Foi ela que me levou ao bailado pela primeira vez e, se tivesse tido oportunidade, teria adorado dan�ar com ela. Por�m, n�o havia nenhuma escola de bailado em Vermont e a minha m�e n�o queria que ela me ensinasse. Bem tentou uma vez ou duas, mas a min
ha m�e achava que era mais importante fazer os trabalhos de casa e ajudar o meu pai com as duas vacas que t�nhamos no celeiro. A dan�a n�o fez parte da minha vida enquanto crian�a, nem a m�sica. A magia e o mist�-
rio, o encanto e a arte, a curiosidade por mundos de horizontes mais alargados que o meu foram-me despertadas pela av� Dan ao longo de todas as horas que passava sentada na cozinha a ouvi-la.
Andava sempre de preto e parecia ser dona de um sem-n�mero de vestidos negros j� gastos e de chap�us bastante curiosos. Arranjava-se sempre bem e dela emanava uma esp�cie de eleg�ncia natural, embora o seu guarda-roupa nunca tivesse sido muito especta
cular.
O seu marido, o meu av�, morrera de pneumonia quando eu era crian�a. Certa vez, quando tinha doze anos, perguntei-lhe se o amara, se o amara de verdade. Fez um ar sobressaltado quando a surpreendi com a pergunta, mas aos poucos come�ou a sorrir, hesit
ando um pouco antes de me responder.
* Claro que sim - asseverou no seu sotaque russo. - Ele era muito bom para mini, um homem encantador.
N�o era bem a resposta que esperava. Queria era saber se se apaixonara loucamente, como uma das princesas das hist�rias que costumava contar-me.
O meu av� nunca me parecera muito garboso e era bastante mais velho do que ela. Das fotografias que vira conclu� que se parecia bastante com a minha m�e, com um ar s�rio e at� um pouco severo. Naquela �poca n�o era costume as pessoas sorrirem para as
fotografias. Era dif�cil imaginar o meu av� com a minha av�. Quando se conheceram em 1917, o ano em que ela desembarcou na Am�rica vinda da R�ssia, o av� tinha mais vinte e cinco anos que ela e perdera a mulher alguns anos antes. N�o tinha filhos e n�
o voltara a casar. A av� dizia que, quando se conheceram, estava muito sozinho e fora muito bom para ela, embora nunca revelasse mais pormenores. A av� devia ser linda nessa altura e ele deve ter ficado deslumbrado. Casaram dezasseis meses depois de s
e conhecerem. A minha m�e nasceu um ano depois e n�o tiveram mais filhos. O meu av� adorava a filha, provavelmente por esta se parecer tanto com ele. Era tudo o que eu sabia e sempre soubera. O que eu desconhecia era o que acontecera antes disso, quem
era a av� Dan enquanto jovem, de onde viera exactamente e porqu�. Os pormenores hist�ricos pareciam-me insignificantes quando era crian�a.
Sabia que frequentara uma escola de bailado em Sampe-tersburgo e que conhecera o czar, mas a minha m�e n�o gostava que me contasse essas coisas. Dizia que isso s� me encheria a cabe�a de ideias sobre pessoas e lugares que nunca conheceria e a minha av
� respeitava os desejos da filha. Fal�vamos das pessoas que conhec�amos em Vermont, dos lugares onde tinha estado, do que fazia na escola. Quando �amos patinar no lago gelado, ficava sempre com um ar sonhador durante algum tempo e eu percebia que esta
va a pensar na R�ssia e nas pessoas que l� conhecera. Independentemente do que dissesse, tudo isso fazia ainda parte dela e eu via que essas pessoas lhe eram ainda caras, mesmo passados cinquenta anos. Sabia que toda a sua fam�lia, o pai e os quatro i
rm�os, haviam morrido durante a guerra, combatendo pelo czar. Viera para a Am�rica, nunca mais vira nenhum deles e refizera a sua vida em Vermont. Mesmo assim, as pessoas que conhecera e amara permaneceram no seu cora��o, fazendo sempre parte de si, u
ma parte que n�o podia ser negada, por muito que a escondesse.
Certo dia, quando procurava no s�t�o um dos seus vestidos antigos para usar numa pe�a da escola, encontrei as suas sapatilhas num ba� aberto. Estavam bastante gastas e pareciam min�sculas na minha m�o. Apesar do cetim j� co�ado, n�o deixavam de ter um
aspecto m�gico. Mais tarde perguntei-lhe se eram suas.
* Bem - respondeu, surpreendida ao princ�pio, mas sorrindo depois, ao pensar nelas. - Usei-as na �ltima noite em que dancei com a Companhia de Bailado de Sampeters-burgo no Teatro Mariinsky. A czarina estava l�, bem como as gr�-duquesas. - Desta vez e
squeceu-se de p�r o seu ar culpado enquanto me revelava estas coisas. - Dan��mos O Lago dos Cisnes. Foi um espect�culo maravilhoso. Na altura, n�o sabia que seria o meu �ltimo. Nem sei porque guardei as sapatilhas. Tudo se passou h� tanto tempo, queri
da...
Com isto fechou a porta �s suas mem�rias e entregou-me uma caneca de chocolate quente com uma montanha de natas batidas enfeitadas com raspas de chocolate e canela.
Queria fazer-lhe mais perguntas sobre o bailado, mas desapareceu durante alguns momentos e regressou com o seu
bordado enquanto eu fazia os trabalhos de casa na mesa da cozinha. Nessa noite j� n�o tive oportunidade de lhe voltar a perguntar e, por fim, acabei por esquecer o assunto. Sabia que dan�ara numa grande companhia de bailado, todos sab�amos, mas era di
f�cil imagin�-la como prima baller�na. Era a minha av�, a av� Dan, a �nica na cidade com o seu pr�prio par de patins, que usava orgulhosamente com um dos seus vestidos pretos. De cada vez que ia � cidade, em especial ao banco, punha sempre um chap�u e
luvas, os brincos predilectos e o ar de quem ia fazer alguma coisa importante. Mesmo quando me ia buscar � escola no seu carro antigo tinha um ar digno e ficava sempre muito feliz por me ver. Era tanto mais f�cil ver quem ela era na altura e tanto ma
is dif�cil recordar quem fora. Compreendo agora que nunca quis que nos record�ssemos. Era aquilo em que se tornara: a vi�va do meu av�, a m�e da minha m�e, a av� que fazia biscoitos russos.
Por vezes, punha-me a imaginar se a av� Dan ficava acordada � noite a pensar no seu passado, a recordar o que sentira quando dan�ara O Lago dos Cisnes para a czarina e para as filhas. Teria esquecido tudo isso, grata pela vida que levava connosco em V
ermont? As suas duas vidas tinham sido com-pletamente diferentes, de tal forma que nos permitiu esquecer o seu passado, acreditar que era uma pessoa diferente do que havia sido na R�ssia. Deixou-nos acreditar nisso durante os anos que passou connosco
e n�s, em troca, permitimos que se esquecesse tamb�m, ou for��mo-la a isso, tornando-a a pessoa que quer�amos que fosse. Aos meus olhos, ela nunca fora jovem. Aos olhos da minha m�e, nunca fora bela, encantadora e bailarina. Aos olhos do seu marido, n
unca fora sen�o sua. Nem sequer gostava de ouvir falar do seu pai e dos irm�os, pois faziam parte de um mundo ao qual n�o queria que ela pertencesse mais. Talvez n�o quisesse que recordasse o passado.
Foi sua at� ao dia em que morreu e no-la deixou, se bem que acabasse por ser mais minha do que da minha m�e. Elas nunca foram muito chegadas, ao contr�rio de n�s. A av� Dan significava tudo para mim, as suas extravag�ncias fizeram de mim o que sou, fo
i a sua sagacidade que me encorajou a sair de Vermont. Depois de acabar a universidade fui para Nova Iorque, arranjei um emprego na �rea da publicidade, casei e

tive tr�s filhos. O meu marido � um homem bom, tenho uma vida que adoro e h� sete anos que n�o trabalho. Planeio voltar a faz�-lo um dia, quando as crian�as forem mais velhas e n�o precisarem tanto de mini, quando j� n�o sentir que devo estar em casa
com elas a fa/er biscoitos.
Quando for velha, quero ser como a av� Dan. Quero andar de patins na minha cozinha, ir patinar no gelo, como fazia com ela. Quero fazer rir os meus filhos e os meus netos e recordar as coisas que fazia por eles. Quero que se lembrem dos biscoitos de N
atal em forma de sino, de decorarmos a �rvore juntos, do chocolate quente que, tal como ela, lhes preparo enquanto fazem os trabalhos de casa. Quero que a minha vida signifique alguma coisa para eles e que o tempo que passamos juntos seja importante.
Por�m, tamb�m pretendo que saibam quem eu fui, porque vim para aqui, e que amo muito o pai deles.
N�o existem mist�rios na minha vida ou hist�rias secretas. N�o posso gabar-me de proezas como as dela, de dan�ar O Lago dos Cisnes enquanto a R�ssia imperial se encaminhava para uma revolu��o. N�o consigo sequer imaginar como a sua vida ter� sido ou o
quanto ter� deixado para tr�s quando veio para a Am�rica. N�o sei o que ser� nunca mais falar sobre isso e perder todas as pessoas que amamos, ou como ser� para uma pessoa vinda da R�ssia chegar a um local como Vermont. Gostava de saber por que motiv
o a av� nunca falou comigo sobre isso. Talvez porque n�o quer�amos que fosse Danina Petroskova, a bailarina. Apenas desej�vamos que fosse a av� Dan, a nossa m�e, a nossa esposa, a nossa av�. Isso tornava as coisas mais f�ceis para n�s, n�o t�nhamos de
sentir que �ramos menos importantes do que a sua vida passada, ou do que ela. N�o precis�vamos de conhecer ou sentir a sua dor, o seu sofrimento se, pura e simplesmente, n�o o conhec�ssemos. Agora, por�m, desejava ter sabido mais sobre ela, t�-la con
hecido nessa altura.
Coloquei o embrulho de lado enquanto fazia os sinos de Natal com Jeff e Matt. Depois, fiz os queques com Katie que conseguiu espalhar a farinha por cima dela e por toda a cozinha.
J� era tarde quando deitei finalmente as crian�as e Jack telefonou de Chicago. Tivera um dia cansativo, mas as reuni�es
tinham corrido bem. J� me esquecera por completo do embrulho e s� quando fui � cozinha buscar qualquer coisa para beber, passava j� da meia-noite, voltei a lembrar-me dele. Estava ainda ali � minha espera, com um pouco de massa de queque no cordel e p
� verde e vermelho dos enfeites dos sinos no papel.
Peguei no embrulho, sacudi-lhe a sujidade e sentei-me � mesa da cozinha com ele � frente. Demorei ainda alguns minutos a abri-lo. Fora enviado da casa de repouso onde a av� Dan passara o �ltimo ano de vida. J� l� tinha ido ap�s o funeral buscar todos
os seus pertences e agradecer tudo o que fizeram por ela. A maior parte das suas coisas estava muito gasta e pouco p�de ser aproveitado, apenas um molho de fotografias dos mi�dos e alguns livros. Fiquei com uma colect�nea de poesia russa que a av� gos
tava muito e deixei os outros para as enfermeiras. Tudo o que guardei da av�, e que era importante para ela, foi a sua alian�a de casamento, o rel�gio de ouro que o meu av� lhe oferecera antes de casarem e um par de brincos. A av� dissera-me certa vez
que o rel�gio fora o primeiro presente que o meu av� lhe dera. Nunca fora muito generoso com ela em termos de presentes ou j�ias, embora nunca lhe deixasse faltar nada. Havia ainda uma coberta de cama em renda que trouxe comigo e guardei no meu arm�r
io, mas tudo o resto foi doado, por isso, n�o podia imaginar o que estaria dentro do embrulho.
O papel escondia uma caixa quadrada grande e quando lhe peguei, constatei que era pesada. Um bilhete colado � tampa afirmava que fora encontrada por cima do guarda-vestidos da av�. Quando retirei a tampa, o que o interior da caixa me revelou fez-me su
ster a respira��o durante um momento. Estavam exactamente como as recordava, as pontas gastas e um pouco co�adas, as fitas desbotadas e sem brilho. Eram as sapatilhas de pontas da av�, as que eu vira anos antes no seu s�t�o. Eram o �ltimo par que usar
a antes de deixar a R�ssia. Havia ainda um medalh�o de ouro com a fotografia de um homem de barba e bigode bem aparados e um ar bastante elegante. Os olhos brilhavam, como os da av�, e pareciam sorrir para n�s, embora na verdade o homem n�o estivesse
a sorrir. Encontrei ainda fotografias de outros homens
fardados que presumi serem o seu pai e irm�os. Um dos rapazes parecia-se incrivelmente com ela. Havia tamb�m um pequeno retrato da sua m�e, que me pareceu j� ter visto, o programa da sua �ltima actua��o em O Lago dos Cisnes e uma fotografia de um grup
o de bailarinas sorridentes. No centro destacava-se uma rapariga muito bela, cujos olhos e fei��es nada mudaram desde ent�o. Era f�cil perceber que era Dani-na. Estava lind�ssima e obviamente feliz, sorria e todas as restantes raparigas olhavam para e
la com carinho e admira��o.
No fundo da caixa descobri um ma�o grosso de cartas atadas com uma fita azul j� desbotada. Verifiquei que estavam em russo, numa caligrafia simples, elegante e ao mesmo tempo masculina. Percebi que a resposta a todas as minhas perguntas se encontrava
ali, a revela��o dos segredos que ela nunca partilhara depois de deixar a sua terra natal. Tantas faces alegres, tantas pessoas que amara e abandonara por uma vida que n�o poderia ter sido mais diferente.
Peguei nas sapatilhas e acariciei cuidadosamente o cetim, pensando nela. Como fora corajosa, forte e o quanto deixara para tr�s. Perguntava-me se algumas daquelas pessoas estariam ainda vivas, se a av� fora igualmente importante para elas, se tamb�m g
uardariam fotografias suas. Pus-me a imaginar o homem que escrevera todas aquelas cartas, o que teria representado para ela e o que lhe teria acontecido, mas s� pela forma cuidadosa como a av� atara a fita, pelo facto de ter guardado as cartas durante
quase um s�culo e as ter levado para a casa de repouso, percebi, mesmo sem ser capaz de ler o seu conte�do, que aquele homem fora muito importante para ela e que a amara profundamente.
A av� tivera uma outra vida antes de entrar na minha, nas nossas vidas, marcada pela magia, pelo encanto, pela beleza, e t�o diferente da que tivera em Vermont. Recordei-me do ar austero que o meu av� tinha nas fotografias e desejei que aquele homem t
ivesse trazido alguma felicidade � av�, a tivesse amado. A av� levara os seus segredos consigo para o t�mulo e agora deixava-os a mim, com as suas sapatilhas, o programa d'O Lago dos Cisnes e as cartas dele.
Olhei mais uma vez para a fotografia no medalh�o e percebi instintivamente que as cartas eram dele. Mais uma vez
era assolada por mil perguntas para as quais n�o havia resposta. Lembrei-me de mandar traduzir as cartas para saber o que diziam, mas, ao mesmo tempo, senti que invadir os segredos que estas continham representava uma esp�cie de intrus�o. A av� n�o me
tinha dado as cartas, apenas as deixara, por�m, sabendo como �ramos chegadas, esperava que n�o se importasse. Afinal de contas, �ramos almas g�meas. Deixara-me centenas de recorda��es dos tempos que pass�mos juntas, das coisas que fizemos, dos contos
de fadas que me contava. Talvez n�o se importasse de partilhar comigo tamb�m aquela parte da sua vida. Esperava que n�o. O entusiasmo resultante da descoberta das cartas e das fotografias era indom�vel. N�o havia como escapar �s verdades que a av� es
condera toda uma vida.
Para mim, foi sempre velha, sempre minha, sempre a av� Dan, mas numa outra �poca, num outro local, tivera uma outra vida, marcada pelo bailado, pela felicidade, pelo amor, muito antes de entrar na minha, nas nossas vidas. Apenas me deixara alguns vest
�gios dessa vida, a lembrar-me que tamb�m fora jovem. Quando finalmente compreendi isso, olhei para a jovem bailarina sorridente no centro da fotografia e senti uma l�grima correr-me pela face abaixo ao mesmo tempo que sorria e segurava as sapatilhas.
Enquanto o velho cetim cor-de-rosa me acariciava a face, olhei para o molho de cartas na esperan�a de que este me revelasse por fim a sua hist�ria. Senti que havia muito para contar.
CAPITULO 1.
Danina Petroskova nasceu em Moscovo em 1895. O seu pai era oficial do Regimento de Litovsky e os quatro irm�os eram tamb�m militares. Altos, elegantes e muito amigos, traziam-lhe chocolates sempre que a visitavam. O mais novo tinha mais doze anos do q
ue Danina. Quando estavam em casa cantavam, brincavam com ela, deixavam-na empoleirar-se nas suas costas a fazer de conta que eram os seus cavalos e faziam sempre muito barulho. Danina adorava ser o centro das aten��es dos irm�os. Era �bvio para qualq
uer pessoa que a amavam muito.
O que Danina recordava da m�e era o seu belo rosto e os modos brandos, um perfume que cheirava a l�rios e que cantava para ela adormecer depois de lhe ter contado bonitas hist�rias sobre a sua inf�ncia. Estava sempre a rir e Danina adorava-a. Morreu d
e febre tif�ide quando a filha tinha cinco anos e, a partir da�, tudo mudou na vida da pequena Danina.
O pai n�o fazia a m�nima ideia do que fazer com a filha. N�o estava preparado para tomar conta de uma crian�a, especialmente t�o nova e rapariga. Visto que tanto ele como os filhos estavam no ex�rcito, contratou uma mulher para tomar conta da filha, m
as ao fim de dois anos percebeu que a situa��o n�o podia continuar daquela forma e que tinha de a resolver depressa. Por fim, encontrou o que lhe pareceu ser a solu��o perfeita e partiu para Sampetersburgo para tratar dos preparativos. Ficou muito bem
impressionado com Madame Markova; era uma mulher extraordin�ria e a escola e companhia de bailado que dirigia proporcionariam a Danina n�o s� um lar, como tamb�m um bom futuro. Se esta provasse ter o talento necess�rio, poderia ali viver enquanto pud
esse dan�ar. Seria uma vida dif�cil e que requereria muitos sacrif�cios, contudo o pai de Danina acreditava que a filha seria capaz. A sua esposa tamb�m gostava muito de ballet e teria ficado muito contente com a sua decis�o. Seria muito dispendioso m
ante-la ali, mas achava que o sacrif�cio que teria de fazer seria bem recompensado se, no futuro, a filha se revelasse uma grande
bailarina, o que considerava muito prov�vel, pois Danina era uma menina invulgarmente graciosa.
O pai e dois dos irm�os acompanharam-na a Sampeters-burgo em Abril, depois de ela ter completado sete anos. Enquanto contemplava a sua nova casa, todo o seu corpo tremia. Estava aterrorizada e n�o queria que a deixassem ali, mas n�o havia nada que pud
esse fazer ou dizer para os impedir. Ainda em Moscovo, suplicara ao pai que n�o a mandasse para a escola de bailado; ele limitara-se a argumentar que era uma oportunidade que mudaria a sua vida, que um dia se tornaria uma grande bailarina e ficaria fe
liz por ter ido para l�.
No entanto, no dia fat�dico n�o conseguia pensar na vida que estava a ganhar, apenas no que estava a perder. Manteve-se muito direita, segurando a sua pequena mala, enquanto uma senhora j� idosa lhes abria a porta. Conduziu-os atrav�s de um vest�bulo
escuro e Danina escutou algu�m a gritar ao longe, o som de m�sica, vozes, e alguma coisa a bater ruidosamente no ch�o. Todos os sons em seu redor lhe pareceram estranhos e sinistros, as salas que atravessavam escuras e frias. Chegaram por fim ao gabin
ete onde eram aguardados por Madame Markova. Era uma mulher de cabelo escuro, que usava penteado em rolo, rosto p�lido sem rugas, e olhos azuis que pareciam atravessar Danina. Assim que p�s os olhos na crian�a, esta sentiu uma enorme vontade de chorar
, mas n�o se atreveu a tal, pois estava demasiado assustada.
* Bom dia - cumprimentou Madame Markova num tom �spero. - Est�vamos � tua espera - disse, soando a Danina como o Diabo �s portas do Inferno. - Ter�s de trabalhar arduamente se quiseres viver connosco - advertiu enquanto Danina acenava que sim com a ca
be�a, j� que o n� que tinha na garganta a impedia de falar. - Compreendes o que te digo? - Falava de forma muito clara e Danina olhou para ela com o terror que sentia estampado no rosto. - Deixa-me olhar para ti - disse ent�o, rodeando a secret�ria. V
estia uma saia preta comprida e um pequeno casaco, tamb�m preto, sobre um maillot. A roupa era exactamente da mesma cor do cabelo. Examinou as pernas de Danina, levantou-lhe a saia para as observar melhor e pareceu satisfeita com o que viu. Olhou para
o pai de Danina e acenou com a cabe�a.
� Depois informamo-lo do progresso da menina, coro
nel. Como lhe disse, o bailado n�o � para qualquer um.
� Ela � uma boa menina - observou com carinho, e
ambos os irm�os sorriram orgulhosamente.
� Agora, podem deixar-nos - disse ent�o Madame
Markova, percebendo que a crian�a estava prestes a entrar em
p�nico. O pai e os irm�os despediram-se dela. As l�grimas
corriam-lhe pela cara abaixo. Pouco tempo depois, deixaram-
-na sozinha com a mulher que a partir da� comandaria a sua
vida. Um profundo sil�ncio instalou-se no gabinete depois de
eles partirem. Nem a professora nem Danina pronunciaram
uma �nica palavra e o �nico som que se ouvia eram os solu
�os reprimidos da crian�a.
� Agora podes n�o acreditar em mini, minha querida,
mas ser�s feliz aqui. Um dia, esta ser� a �nica vida que quere
r�s ou conhecer�s.
Danina olhou para ela com desconfian�a. Madame Markova levantou-se, deu a volta � secret�ria e estendeu a Danina a sua longa e graciosa m�o.
* Vem comigo, vamos conhecer os teus futuros amigos.
N�o era a primeira vez que Madame Markova acolhia
crian�as t�o novas. Na verdade, at� preferia que tal acontecesse, pois, se fossem de facto dotadas, essa era a �nica maneira de as treinar convenientemente, de fazer com que o ballet fosse a sua �nica vida, o seu �nico mundo, a �nica coisa a que aspir
ariam. Para al�m disso, existia qualquer coisa na crian�a que a intrigava. Havia nela algo de resplandecente e de m�gico e, enquanto percorriam os corredores longos e frios de m�os dadas, a professora sorria de satisfa��o sem que Danina disso se aperc
ebesse.
Pararam em cada aula durante breves momentos, come�ando pelos que j� entravam em espect�culos. Madame Markova queria que ela visse aquilo por que teria de lutar, a emo��o da forma como dan�avam, a perfei��o do estilo e a disciplina necess�ria para a a
tingir. Da�, passaram para os bailarinos mais novos, j� artistas dignos de honra e que a podiam inspirar. Por fim, pararam na aula com a qual ela iria exercitar-se e dan�ar. Ao observ�-los, Danina nem conseguia imaginar como seria algum dia capaz de d
an�ar como eles. Ou-
viu-se ent�o uma pancada seca que fez Danina estremecer de medo. Madame Markova acabava de bater no ch�o com a bengala que transportava para esse fim.
A professora fez sinal � classe para parar e Madame Markova apresentou Danina, explicando que viera de Moscovo para viver ali com eles. Seria agora a aluna mais nova e provavelmente a mais infantil, j� que os outros estavam habituados a ser regidos po
r uma disciplina severa que os fazia parecer mais velhos. O aluno mais novo at� ent�o era um rapaz da Ucr�nia que tinha nove anos. Havia algumas raparigas com quase dez e uma com onze. J� dan�avam h� dois anos e Danina teria de trabalhar muito para co
nseguir acompanh�-los. � medida que o resto das crian�as sorria para ela e se apresentava, uma a uma, Danina come�ou a sorrir timidamente. Era como ter muitas irm�s em vez de apenas irm�os, pensou. Quando, ap�s o almo�o, a levaram para ver o seu lugar
no dormit�rio, j� se sentia integrada. � noite, quando se foi deitar na sua cama pequena, dura e estreita, adormeceu a pensar no pai e nos irm�os. Tinha muitas saudades deles, mas a rapariga da cama ao lado, ao ouvi-la chorar, levantou-se e foi conso
l�-la e, em pouco tempo, havia mais raparigas sentadas em seu redor. Contaram-lhe v�rias hist�rias de bailados, das maravilhosas coisas que partilhavam, da emo��o de dan�ar Copp�lia e O Lago dos Cisnes para o czar e a czarina. O que contavam era t�o e
mocionante que Danina em breve esqueceu as suas tristezas e adormeceu.
No dia seguinte, acordaram-na �s cinco da manh� e deram-lhe o seu primeiro maillot e um par de sapatilhas. Tomavam o pequeno-almo�o todos os dias �s cinco e meia e, �s seis, estavam j� na sala de aula a fazer exerc�cios de aquecimento. Por volta da ho
ra do almo�o, Danina sentia-se j� completamente integrada. Madame Markova viera repetidas vezes ver como ela estava e todos os dias observava o seu progresso, pois queria certificar-se de que aprendia bem a t�cnica antes de come�ar sequer a dan�ar. Pe
rcebeu de imediato que a pequena menina receosa que viera de Moscovo era uma crian�a extraordinariamente graciosa e com um corpo perfeito para ser bailarina. Estava talhada para a vida que o pai escolhera para ela e, em pouco tempo, tornou-se claro pa
ra
todos os professores que Danina Petroskova nascera para ser bailarina.
Tal corno Madanie Markova prometera no primeiro dia, a vida de Danina na escola era muito rigorosa, exigindo trabalho �rduo e sacrif�cios maiores a cada dia que passava. Nos primeiros tr�s anos, a sua determina��o nunca fraquejou ou diminuiu. Aos dez
anos vivia apenas para dan�ar e lutava constantemente pela perfei��o. Os seus dias contavam catorze horas de trabalho passadas quase exclusivamente na sala de aulas. Parecia nunca se cansar e sempre determinada em ultrapassar o que aprendera. Madanie
Markova estava muito satisfeita com ela e n�o se cansava de o repetir ao seu pai nas visitas regulares que este lhe fazia. Tamb�m ele ficava sempre muito contente com os progressos da filha e feliz por ter tomado a decis�o certa.
Quando veio assistir � sua primeira grande actua��o em palco, tinha ela catorze anos, Danina interpretou o papel da rapariga que dan�a a mazurca com Franz, no bailado Coppclia. Por esta altura, fazia j� parte do corpo de bailado, n�o sendo mais uma me
ra aluna, e isso agradava bastante ao pai. Foi uma actua��o maravilhosa e Danina esteve magn�fica. A sua precis�o, eleg�ncia, estilo e talento n�o passaram despercebidos a ningu�m. Havia l�grimas nos olhos do pai quando a viu dan�ar e nos de Danina qu
ando o abra�ou nos bastidores ap�s o espect�culo. Fora a noite mais bela da sua vida e tudo o que queria fazer era agradecer ao pai por a ter trazido para a escola de bailado. O ballet era a �nica vida que conhecia e a �nica que desejava.
Dan�ou o papel da Fada dos Lilases em A Bela Adormecida um ano mais tarde e, aos dezasseis anos, fez um desempenho not�vel em La Bayad�re. Aos dezassete era j� prima ballerina e a sua actua��o em O Lago dos Cisnes foi de tal forma deslumbrante, que ni
ngu�m a esqueceu. Madanie Markova sabia que, em alguns aspectos, faltava a Danina uma certa maturidade, pois pouco conhecia da vida ou do mundo. No entanto, a sua t�cnica e o seu estilo eram t�o extraordin�rios que a distanciavam das suas colegas.
Por essa altura, a czarina tinha j� reparado nela, bem como as suas filhas. Com dezanove anos, em Abril de 1914,
Danina dan�ou numa actua��o privada para o czar no Pal�cio de Inverno. Em Maio, foi mais uma vez convidada a dan�ar para a fam�lia imperial na sua resid�ncia de Peterhof e a jantar com eles juntamente com Madame Markova e mais algumas estrelas do corp
o de bailado. Foi uma festa e uma homenagem com um significado maior para si do que para qualquer outro dos presentes. Ser reconhecido pelo czar e pela czarina era a maior honra, o �nico tributo que ansiara, por isso, colocou uma pequena fotografia da
fam�lia imperial ao lado da sua cama. Gostara especialmente de conhecer a gr�-duquesa Ol-ga, alguns meses mais nova do que ela, e o czar�viche, que tinha apenas nove anos, mas que achou Danina muito bela, tal como toda a gente que a conhecia.
� medida que atingia a maturidade, Danina adquiriu uma graciosidade rara, uma docilidade e porte, alguma mal�cia e um espl�ndido sentido de humor. N�o era pois de admirar que o czar�viche a adorasse. Era um rapaz muito delicado e estivera doente duran
te toda a inf�ncia. Apesar da sua fragilidade, Danina brincava com ele e tratava-o como uma pessoa normal. Era uma crian�a sensata com uma grande nobreza de sentimentos e falava constantemente de Danina. Ela parecia-Ihe t�o forte, t�o saud�vel.
Danina prometeu a Alexei que o deixaria assistir a uma das suas aulas, se a sua sa�de e Madame Markova o permitissem, embora n�o lhe passasse pela cabe�a que recusasse uma visita de tal import�ncia. Devido � hemofilia de que sofria, havia sempre dois
m�dicos perto dele para se certificarem de que n�o lhe acontecia nada. Tinha um ar t�o doente, t�o fr�gil, e, ao mesmo tempo, t�o caloroso, af�vel e afectuoso. A czarina ficara muito enternecida ao ver a dedica��o que Danina demonstrava pelo filho.
Em consequ�ncia, Madame Markova recebeu um convite da czarina para que viesse passar uma semana a Livadia, a resid�ncia de Ver�o da fam�lia imperial na Crimeia, e trouxesse Danina com ela. Era uma honra enorme, mas, ainda assim, Danina sentiu alguma r
elut�ncia em aceitar o convite. N�o suportava a ideia de abandonar as aulas e os ensaios por sete dias. A sua vida, mon�stica, severa, esgotante, austera e brutalmente exigente, reclamava tudo dela e ela concedia-lhe tu-
do o que tinha, por isso, h� muito que excedera as expectativas de Madame Markova. Esta levou cerca de um m�s a convenc�-la a aceitar o convite e, mesmo assim, s� porque lhe fez ver que seria uma afronta para a czarina n�o aceitar.
Foram as suas primeiras f�rias, a primeira vez na vida, desde os sete anos de idade, em que os seus dias n�o come�avam �s cinco da manh� com exerc�cios de aquecimento, aulas �s seis e ensaios �s onze, em que n�o esfor�ava o corpo at� ao limite durante
catorze horas. Foi a primeira vez que Danina se atreveu a brincar e adorou.
Parecia quase infantil aos olhos de Madame Markova. Brincava com as filhas do czar no mar, rindo e chapinhando com elas. Era sempre muito meiga com Alexei, demonstrando por ele um afecto muito maternal, que comovia a czarina. Todas as crian�as ficaram
espantadas ao perceber que Danina n�o sabia nadar. A vida austera e disciplinada que levava nunca lhe deixara tempo livre para aprender mais nada a n�o ser dan�ar.
No quinto dia de f�rias, Alexei adoeceu de novo na sequ�ncia de uma pequena pancada que recebera na perna quando se levantava da mesa de jantar, ficando confinado � cama durante os dois dias que se seguiram. Danina fazia-lhe companhia, contando-lhe hi
st�rias da sua inf�ncia com o pai e os irm�os, da vida na escola e dos restantes bailarinos. Ele escutava-a durante horas at� adormecer de m�os dadas com ela, que depois sa�a do quarto p� ante p� para se juntar aos outros. Sentia muita pena dele, lame
ntando as limita��es que a doen�a impunha � sua vida. Era t�o diferente dos seus irm�os ou dos rapazes com quem treinava na escola, vigorosos e saud�veis.
Alexei estava ainda fraco, mas sentindo-se melhor, quando Danina e Madame Markova deixaram Livadia em meados de Julho e embarcaram no comboio imperial de regresso a Sampetersburgo. Haviam sido umas f�rias maravilhosas e Danina jamais esqueceria ter br
incado com a fam�lia imperial como se fossem amigos de longa data, a beleza da paisagem e Alexei a tentar ensin�-la a nadar sentado numa cadeira de jardim.
* N�o, n�o � assim, minha pateta... Assim... - gritava enquanto lhe demonstrava as bra�adas e ela tentava p�r em
pr�tica os ensinamentos. Depois, ambos riam descontrolada-mente quando Danina n�o conseguia e se punha a fingir que se afogava.
Alexei escreveu-lhe certa vez uni pequeno bilhete declarando que sentia a sua falta. Era �bvio que, embora tivesse apenas nove anos, estava apaixonado por Danina. Divertida com a descoberta, a m�e confessou-o a uma amiga. O filho estava a ter a sua pr
imeira paixoneta, aos nove anos, por uma bailarina que era muito bela e uma pessoa extraordin�ria. Duas semanas ap�s a sua estada id�lica em Livadia, o mundo transformava-se num turbilh�o e os tristes eventos de Sarajevo catapultaram finalmente o pa�s
para a guerra. No dia um de Agosto a Alemanha declarou guerra � R�ssia. Ningu�m acreditava que o conflito durasse muito tempo, presumindo que as hostilidades terminassem com a batalha de Tannenberg, no final de Agosto. Contrariamente ao que se previa
, a situa��o piorou.
Apesar da guerra, Danina dan�ou Giselle, Copp�lia e La Bayad�re mais uma vez naquele ano. As suas capacidades atingiam um ponto alto e nunca havia o m�nimo elemento de desilus�o nas suas actua��es, eram tudo o que deviam ser e mais. O que Danina levav
a para o palco era precisamente o que Madame Markova pressentira anos antes. Para al�m de tudo, possu�a a dedica��o e resolu��o necess�rias. Danina n�o se permitia distrac��es e n�o demonstrava qualquer interesse por namoros ou pelo mundo fora das par
edes da escola. Vivia, respirava, trabalhava e existia apenas para o ballet, ao contr�rio de algumas das suas colegas que Madame Markova olhava com desd�m. Apesar do talento e trabalho �rduo, deixavam-se demasiadas vezes distrair ou encantar por homen
s e por promessas de amor. Para Danina, o ballet era o que impulsionava a sua vida, o que a fazia viver, era a verdadeira ess�ncia da sua alma. N�o havia nada mais para al�m do ballet, era a �nica coisa para a qual vivia. Em resultado, era uma bailari
na perfeita.
O espect�culo da v�spera de Natal desse mesmo ano foi magn�fico. O pai e os irm�os estavam na primeira fila e o czar e a czarina tamb�m n�o faltaram. Todos ficaram deslumbrados com a forma como dan�ou; fora, sem d�vida, a sua me-
lhor actua��o de sempre. No final, foi cumpriment�-los ao camarote imperial e perguntou imediatamente por Alexei. Deu � czarina uma das rosas que lhe haviam oferecido com a recomenda��o de que a levasse ao filho. Quando regressou aos bastidores, Madam
e Markova percebeu que estava mais cansada que o habitual. Fora uma noite longa e estafante e, se bem que Danina n�o o admitisse, sentia-se exausta.
No dia seguinte, levantou-se como habitualmente �s cinco da manh�, embora fosse dia de Natal, e �s cinco e meia estava j� a fazer exerc�cios de aquecimento. As aulas s� come�ariam ao meio-dia, mas n�o concebia desperdi�ar uma manh� inteira. Temia perd
er alguma das suas capacidades, se n�o treinasse meio dia, ou um minuto que fosse, mesmo no dia de Natal.
Madame Markova deu por ela �s sete da manh� e, depois de observ�-la durante algum tempo, achou que os seus exerc�cios pareciam um pouco estranhos. Havia em Danina uma rigidez e deseleg�ncia pouco caracter�sticas. Depois, muito devagar, como que em c�m
ara lenta, come�ou a resvalar em direc��o ao solo. Os seus movimentos eram t�o graciosos que a sua queda parecia ensaiada e absolutamente perfeita. S� depois de permanecer ca�da durante o que lhe pareceu uma eternidade � que Madame Markova e duas outr
as alunas perceberam que estava inconsciente. Correram para ela imediatamente e ajoelharam-se ao seu lado no ch�o. As m�os de Madame Markova tremiam quando as encostou �s faces e costas da sua pupila e sentiu o calor ardente que o seu corpo emanava. Q
uando Danina abriu os olhos, a sua mentora percebeu que estavam febris e v�treos e que durante a noite fora consumida por alguma doen�a misteriosa.
� Danina, porque te levantaste da cama, se estavas t�o
doente? - lamentou Madame Markova, fora de si. Todos ti
nham j� ouvido falar da gripe que grassava por Moscovo, mas
at� ent�o ainda n�o se registara qualquer caso em Sampeters-
burgo. - N�o devias ter vindo dan�ar - repreendeu-a cari
nhosamente e temendo o pior. Parecia que Danina nem se
quer a escutava.
� Tinha de ser... Tinha de ser - sussurrou Danina. Per
der uma aula, um ensaio, ou mesmo um �nico exerc�cio, era
mais do que podia suportar. - Tenho de me levantar... - disse, come�ando depois a balbuciar. Um dos jovens rapazes que costumava dan�ar com ela ergueu-a nos bra�os e, sob a direc��o de Madame Markova, levou-a para a cama. Deixara o grande dormit�rio n
o ano anterior e dormia agora num quarto com apenas seis camas. Era t�o espartano e gelado como o dormit�rio onde vivera durante onze anos, mas sempre tinha um pouco mais de privacidade. As restantes bailarinas vieram todas acotovelar-se para a entrad
a do quarto para verem como Danina estava. A not�cia do seu desmaio espalhara-se j� por toda a escola.
"Ela est� bem?", "O que aconteceu?", "A Danina est� t�o p�lida, madame", "O que ir� acontecer", "Temos de chamar um m�dico", diziam as colegas. A pr�pria Danina estava demasiado cansada para explicar, demasiado confusa para reconhecer algu�m. A �nica
coisa que conseguia vislumbrar era a figura esguia e alta de Madame Markova, que amava como se fosse sua m�e, de p� ao fundo da cama. Estava, por�m, muito cansada para ouvir o que lhe dizia.
Madame Markova mandou toda a gente sair do quarto, receando que mais algu�m fosse contagiado, e pediu a uma das professoras que trouxesse ch�. Quando levou a ch�vena aos l�bios de Danina, esta nem sequer conseguiu sorver o ch�. Estava demasiado doente
e fraca e quando tentou sent�-la, segurando-a nos seus bra�os, Danina quase desmaiou. Nunca na vida se sentira t�o doente. Nessa tarde, quando o m�dico chegou, j� sabia que iria morrer, e nem sequer se importava. Do�a-lhe cada cent�metro do corpo e p
arecia-lhe que os bra�os e pernas lhe haviam sido cortados � machadada. Cada toque, cada movimento, cada vez que a sua pele ro�ava contra os len��is �speros, sentia o corpo a arder. A �nica coisa em que pensava ali deitada entre o del�rio e a dor era
que, se n�o regressasse �s aulas e aos ensaios rapidamente, morreria.
O m�dico confirmou os receios iniciais de Madame Markova e pouco fez para a acalmar. Era, de facto, gripe, e o m�dico admitiu que nada poderia fazer pela bailarina. Havia pessoas a morrer �s centenas em Moscovo. Madame Markova chorava ao ouvir as dura
s palavras do m�dico. Tentou incentivar Danina a ser forte, mas esta come�ara a sentir que n�o
seria capaz de ganhar aquela batalha e isso aterrorizava ainda mais a sua mentora.
� Tenho o mesmo que a mam�, tenho febre tif�ide? -
murmurou, demasiado fraca para falar alto ou esticar o bra�o
e tocar em Madame Markova, ali mesmo ao seu lado.
� Claro que n�o, querida. Isto n�o � nada - mentiu. -
Tens trabalhado de mais, � s� isso. Tens de descansar durante
alguns dias e depois ficar�s boa.
As palavras de Madame Markova n�o enganavam ningu�m, e menos ainda Danina que, mesmo delirante, conseguia aperceber-se da situa��o desesperada em que se encontrava.
� Estou a morrer - disse serenamente nessa noite e com
tal convic��o que a professora que lhe fazia companhia saiu
do quarto a correr para ir chamar Madame Markova. Ambas
as mulheres choravam quando entraram no quarto; Madame
Markova secou as l�grimas antes de se sentar ao lado de Dani
na. Levou um copo de �gua aos l�bios dela, mas esta nem os
conseguiu abrir. N�o tinha nem vontade, nem for�a para be
ber. A febre continuava alt�ssima, os olhos vidrados.
� Estou a morrer, n�o �? - murmurou para a sua men
tora
� N�o o permitirei - disse Madame Markova. - Ainda
n�o dan�aste Raimonda e eu planeava que isso acontecesse este
ano. Seria uma pena morreres sem sequer teres tentado. -
Danina tentou sorrir, embora n�o conseguisse. Sentia-se de
masiado doente para responder.
� N�o posso faltar aos ensaios amanh� - pressagiou Da
nina algum tempo depois enquanto Madame Markova lhe fa
zia companhia. Era como se sentisse que, se n�o dan�asse,
morreria. O ballet era o sangue que corria nas suas veias.
O m�dico regressou na manh� seguinte, aplicou v�rios cataplasmas e deu-lhe algumas gotas de um l�quido azedo para beber. No entanto, a situa��o parecia n�o se alterar. No final da tarde, Danina estava muito pior e � noite estava completa-mente deliran
te, gritando coisas sem sentido, murmurando entre dentes e rindo de pessoas que imaginava ver ou de coisas que s� ela ouvia. Foi uma noite intermin�vel para toda a gente, e de manh� Danina parecia devastada. A febre estava
t�o alta que era dif�cil imaginar que tivesse sobrevivido tanto tempo e imposs�vel acreditar que n�o a matasse.
* Temos de fazer alguma coisa - disse Madame Marko-
va, visivelmente perturbada. O m�dico insistira que n�o havia
mais nada que pudesse fazer, mas talvez outro m�dico se lem
brasse de tentar outra coisa. Num acto desesperado, Madame
Markova enviou nessa mesma tarde um bilhete � czarina ex
plicando-lhe a situa��o e perguntando se n�o teria nenhuma
sugest�o ou saberia de algu�m que pudesse ajudar Danina.
Fora montado um hospital numa parte do Pal�cio de Catarina
em Tsarskoie Selo, no qual a czarina e as gr�-duquesas trata
vam dos soldados feridos. Talvez houvesse a� algu�m que pu
desse ter alguma ideia para salvar Danina. Madame Markova
estava disposta a tentar fosse o que fosse para salvar a sua pu
pila. Algumas pessoas tinham conseguido sobreviver � gripe
em Moscovo, todavia tal parecia ser mais uma quest�o de sor
te do que algo mais cient�fico.
A czarina n�o perdeu tempo a escrever uma resposta e enviou imediatamente o mais novo dos dois m�dicos que cuidavam do seu filho. O mais velho, o vener�vel Dr. Botkin, fora tamb�m acometido por uma ligeira gripe, mas o Dr. Nikolai Obrajensky, que Dani
na conhecera naquele Ver�o em Livadia, estava � porta da escola de ballet a perguntar por Madame Markova muito antes da hora do jantar. Ficou muito aliviada ao v�-lo, murmurando qualquer coisa sobre a generosidade da czarina enquanto o cumprimentava.
Estava ainda t�o preocupada com o estado de Danina, que nem reparou nas extraordin�rias semelhan�as entre o m�dico e o pr�prio czar.
* Como est� ela? - perguntou o m�dico. Era f�cil per
ceber pela express�o de Madame Markova que a jovem baila
rina n�o estava melhor. Nem mesmo ele, tendo j� visto v�rios
casos de gripe no hospital, esperava encontrar Danina t�o
doente, t�o esgotada pela doen�a que a consumia h� j� dois
dias. Estava desidratada, delirante e, quando lhe mediu a tem
peratura, teve de repetir a opera��o para acreditar no que o
term�metro indicava. Depois de a ter examinado cuidadosa
mente, as suas esperan�as que sobrevivesse eram escassas. Vol
tou-se ent�o para Madame Markova com uma express�o
sombria:
* J� deve adivinhar o que lhe vou dizer, n�o �? - disse num tom complacente. Via nos olhos de Madame Markova o quanto amava Danina. Era como uma filha para ela.
� Por favor... N�o vou suportar tal coisa... - declarou,
enterrando a cara nas rn�os, demasiado exausta para aguentar
o golpe que estava prestes a sofrer. - Ela � t�o jovem, t�o ta
lentosa, s� tem dezanove anos... N�o pode morrer... N�o po
de deixar que isso aconte�a - disse furiosamente, olhando de
novo para o m�dico, desejando ler nos seus olhos o que as
palavras n�o lhe concediam: esperan�a, j� que n�o lhe podiam
garantir certezas.
� N�o posso fazer nada por ela - declarou com sinceri
dade. - Nem sequer aguentaria a viagem at� ao hospital.
Talvez, se resistir mais alguns dias, possamos lev�-la - acres
centou numa tentativa de animar Madame Markova, mas sa
bia que as hip�teses de isso acontecer eram quase nulas e ela
tamb�m. - O que podemos fazer � tentar mante-la fresca
com compressas molhadas em �gua fria para fazer baixar a fe
bre e obrig�-la a beber o m�ximo que conseguir. O resto est�
nas m�os de Deus, tnadame. Talvez Ele precise mais dela do
que n�s. - O seu tom era am�vel, por�m n�o podia mentir.
Ele pr�prio se admirava que Danina tivesse resistido at� �que
le momento. Sabia de pessoas que morriam no primeiro dia
em que a gripe se manifestava e Danina j� ia no segundo.
� Fa�a o que puder, mas lembre-se de que n�o poder�
operar milagres. Agora, s� nos resta rezar e esperar que Deus
nos ou�a - acrescentou o Dr. Obrajensky melancolicamen
te. N�o acreditava que Danina sobrevivesse.
* Compreendo - anuiu Madame Markova.
Sentou-se perto de Danina de novo e voltou a medir-lhe
a temperatura. Subira um pouco, mas Madame Markova estava j� a aplicar-lhe as compressas frias. Eram os alunos que lhas traziam, embora n�o permitisse que entrassem no quarto com medo que Danina os contagiasse. As cinco raparigas que ocupavam o quarto
de Danina tinham sido mudadas para o dormit�rio principal.
* Como est� ela agora? - inquiriu Madame Markova
uma hora depois de estar a aplicar as compressas no peito,
bra�os e testa de Danina. Tremia constantemente e estava
branca como os len��is em que repousava.
� Est� mais ou menos na mesma - respondeu o m�dico
ap�s a ter examinado. N�o queria confessar a Madame Mar-
kova que, na realidade, at� lhe parecia um pouco pior. -
N�o melhorar� assim t�o depressa. - Se � que alguma vez
melhoraria, pensou o m�dico. Ficou deslumbrado com a for
mosura de Danina ali deitada e inanimada � sua frente. Era de
uma beleza rara, as suas fei��es muito delicadas, o corpo ele
gante e gracioso. Os longos cabelos escuros espalhavam-se
por toda a almofada, o seu semblante era o de algu�m �s por
tas da morte. O m�dico tinha agora a certeza de que Danina
n�o sobreviveria at� ao dia seguinte.
� N�o h� mais nada que possamos fazer? - inquiriu
Madame Markova, desesperada.
� Reze - disse com convic��o. - J� chamou os pais
dela?
� S� tem o pai e quatro irm�os. Pelo que ela me contou,
foram enviados para a frente.
A guerra rebentara alguns meses antes e o regimento a que o pai e os irm�os pertenciam fora um dos primeiros a ser enviado para combater. Danina sentia muito orgulho nisso e mencionava-o frequentemente.
� Ent�o, n�o h� mais nada que possa fazer. Temos de es
perar e ver o que acontece. - Olhou depois para o rel�gio.
Estava com Danina h� j� tr�s horas. Tinha de regressar a
Tsarskoie Selo para examinar Alexei e ainda demoraria uma
hora a chegar. - Voltarei de manh� - prometeu, embora
temesse que por essa altura Deus j� tivesse tomado conta do as
sunto. - Mande-me chamar, se achar que precisa de mini. -
Deu-lhe ent�o as indica��es para sua casa, se bem que, quan
do regressasse talvez fosse j� tarde de mais para Danina. Vivia
para l� de Tsarskoie Selo com a mulher e dois filhos. Tinha
apenas trinta e nove anos, mas era extremamente respons�vel,
competente e bondoso, raz�es pelas quais estava encarregue
de velar pela sa�de do czar�viche. Parecia-se muito com o
czar, tinha as mesmas fei��es distintas, a mesma altura e at�
usava a barba cortada da mesma forma, embora o cabelo fosse
mais escuro, quase da mesma cor do de Danina.
� Obrigada por ter vindo, doutor Obrajensky - disse
Madame Markova enquanto o acompanhava � porta. O per-
curso at� � porta principal era longo e afastava-a de Danina, todavia, percorrer os corredores frescos era um al�vio e, ao abrir a pesada porta, a lufada de ar frio que entrou surpreendeu-a e reanimou-a ao mesmo tempo.
� Gostava de poder fazer mais alguma coisa por ela e por
si... - acrescentou o m�dico. - Vejo que a situa��o � muito
dolorosa.
� Ela � como uma filha para mini - balbuciou Madame
Markova com os olhos cheios de l�grimas. O m�dico tocou-
-Ihe ent�o no bra�o para a encorajar. Sentia-se totalmente
impotente.
� Talvez Deus seja misericordioso e decida poup�-la -
opinou o Dr. Obrajensky. Madame Markova s� conseguiu
assentir com a cabe�a, a emo��o impedia-a de proferir uma
�nica palavra. - Voltarei amanh� de manh� bem cedo.
� Ela come�a os aquecimentos �s cinco da manh� -
disse Madame Markova, como se isso fosse ainda relevante.
Ambos sabiam que n�o.
� Ela trabalha muito, n�o �? � uma bailarina extraordi
n�ria - elogiou, embora n�o acreditasse que a voltasse a ver
dan�ar.
� Alguma vez a viu dan�ar? - inquiriu Madame Mar
kova.
� Apenas uma vez, em Giselle. Foi um espect�culo mara
vilhoso - respondeu. Era f�cil perceber como aquele assunto
era dif�cil para Madame Markova.
� � ainda melhor em O Lago dos Cisnes e A Bela Ador
mecida - acrescentou com um sorriso triste.
� Estou ansioso por ver - disse gentilmente enquanto
se despedia de Madame Markova que, depois de fechar a porta,
se encaminhou a passos largos de volta ao quarto de Danina.
Foi uma noite inesquec�vel de tristeza e desespero para Madame Markova, e de febre, del�rio e terror para Danina. Por fim, quando a manh� despontou, Danina parecia j� n�o pertencer ao mundo dos vivos. A sua mentora continuava � sua cabeceira, exausta,
sem se atrever a deix�-la nem por instantes. O m�dico regressou �s cinco da manh�.
* Obrigada por ter vindo t�o cedo - sussurrou. A at
mosfera era j� de perda e tristeza. At� Madame Markova re-
conhecia agora que Danina n�o conseguiria ganhar aquela batalha. Estava inconsciente desde a manh� do dia anterior.
� Estive toda a noite preocupado com ela - admitiu o
m�dico. Percebia pela cara de Madame Markova que a noite
fora longa. Danina quase n�o respirava. Tomou-lhe o pulso,
mediu-lhe a temperatura e ficou surpreendido ao descobrir
que estava um pouco mais baixa, embora o pulso estivesse
fraco e irregular.
� Est� a lutar bravamente. � uma sorte ser jovem e sau
d�vel.
Por�m, mesmo os mais jovens estavam a morrer aos milhares em Moscovo, em especial as crian�as.
� Ela ingeriu alguma �gua? - inquiriu o m�dico.
� H� v�rias horas que n�o - confessou Madame Marko
va. - N�o consigo faz�-la engolir e tenho medo que sufoque.
O m�dico concordou. N�o havia mesmo mais nada que pudessem fazer, mas, ainda assim, organizara o seu dia de modo a que pudesse ficar na escola de ballet durante v�rias horas. O seu colega, o Dr. Botkin, melhorara o suficiente para ser capaz de olhar p
or Alexei, se fosse necess�rio. O Dr. Obra-jensky queria estar com Danina caso esta morresse, quanto mais n�o fosse para consolar a sua mentora.
Ficaram sentados silenciosamente lado a lado durante horas. O m�dico ia observando Danina e, ap�s algum tempo, sugeriu a Madame Markova que aproveitasse para ir descansar, mas ela recusava-se a abandonar a sua amada bailarina.
Era j� meio-dia quando Danina emitiu um som angustiado e se agitou um pouco. Parecia estar em sofrimento; contudo, quando o m�dico a examinou mais uma vez, n�o notou qualquer altera��o no seu estado. Apenas se admirava como conseguira resistir tanto t
empo. Era uma verdadeira homenagem � sua juventude, � sua for�a e � sua condi��o f�sica. At� ent�o, mais ningu�m da escola fora contagiado, s� Danina.
�s quatro da tarde, o Dr. Obrajensky continuava ali, n�o querendo ir-se embora antes de tudo terminar. Madame Markova acabara por se deixar dormir sentada na cadeira. Danina come�ou a ficar agitada, gemendo e mexendo-se desconforta-velmente, mas Madam
e Markova estava demasiado exausta para a ouvir. O m�dico examinou-a e verificou que o seu co-
ra��o estava fraco e irregular e que, para al�m disso, evidenciava dificuldades em respirar. Tinha a certeza de que era um sinal de que o fim estava pr�ximo. Eram os sintomas que esperava. Desejava poder minimizar o seu sofrimento, embora n�o houvesse
nada que pudesse fazer, a n�o ser estar ali. Segurou-lhe na m�o, depois de lhe tomar o pulso mais uma vez, e acariciou-lha suavemente enquanto observava o seu belo rosto, t�o doente e t�o atormentado. Era penoso olhar para ela e n�o poder fazer nada
para a salvar. Queria fazer com que Danina desejasse viver e acariciou a sua testa ao de leve. Ela agitou-se de novo e balbuciou qualquer coisa. Parecia estar a falar com um amigo ou com algum dos seus irm�os. Depois, disse uma �nica palavra, abriu os
olhos e olhou para o m�dico. Era algo que ele presenciara centenas de vezes, era uma �ltima centelha de vida antes do fim. Ainda com os olhos bem abertos, Danina proferiu:
� Mam�, estou a ver-te.
� Est� tudo bem, Danina, eu estou aqui. Daqui a pouco
tudo ter� terminado.
� Quem � voc�? - perguntou Danina com uma voz
rouca e rude, como se conseguisse v�-lo claramente. O seu
del�rio fazia-a ver algu�m, mas era muito improv�vel que fos
se o m�dico quem vislumbrava.
� Sou o seu m�dico - respondeu. - Estou aqui para a
ajudar.
� Ah... - retorquiu, fechando de novo os olhos e recli
nando a cabe�a na almofada. - Vou ver a minha m�e.
O m�dico recordou-se do que Madame Markova dissera sobre Danina j� s� ter o pai e os irm�os e entendeu o que ela queria dizer, mas n�o a deixou continuar.
� N�o quero que fa�a isso - exclamou com firmeza. -
Quero que fique aqui comigo. Precisamos de si, Danina.
� N�o, tenho de ir... - asseverou, ainda com os olhos
fechados e voltando a cabe�a para o outro lado. - Vou chegar
atrasada �s aulas e Madame Markova vai zangar-se comigo.
Eram as �nicas frases que pronunciara em dois dias e era �bvio que Danina queria abandon�-los, ou sabia que teria de o fazer.
* Tem de ficar aqui para poder ir �s aulas ou Madame
Markova e eu ficaremos muito zangados. Abra os olhos, Danina... Abra os olhos e veja-me!
Para grande surpresa do Dr. Obrajensky, Danina abriu-os e olhou directamente para ele.
� Quem � o senhor? - perguntou de novo, com uma
voz muito fraca. Desta vez, o m�dico tinha a certeza de que
ela conseguia v�-lo. Encostou a palma da m�o contra a sua
testa e, pela primeira vez em dois dias, verificou que estava
bastante mais fresca.
� Sou o Nikolai Obrajensky, o seu m�dico. Foi a czarina
que me enviou para cuidar de si.
Ela acenou com a cabe�a e fechou de novo os olhos durante um instante. Depois, abriu-os e sussurrou-lhe:
* Eu vi-o com o Alexei no Ver�o passado, em Livadia.
Recordava-se. Era sinal que ganhara a batalha. Havia ainda um longo caminho a percorrer, mas, incrivelmente, parecia que o feiti�o se quebrara. O m�dico queria gritar de alegria, por�m considerou que seria melhor n�o comemorar antes do tempo. Podia se
r ainda a tal �ltima centelha de vida antes do final. N�o confiava por completo no que os seus olhos acabavam de testemunhar.
� Ensin�-la-ei a nadar este Ver�o, se ficar aqui - brin
cou o m�dico, lembrando-se de como se haviam divertido.
Danina tentou esbo�ar um sorriso, mas estava ainda demasia
do doente para conseguir fazer algo mais que olhar para ele.
� Tenho de dan�ar - disse, soando preocupada. - N�o
tenho tempo para aprender a nadar.
� Claro que tem. Ter� de descansar durante bastante
tempo.
Ela abriu bem os olhos enquanto o ouvia e Nikolai sentiu-se novamente encorajado. Danina estava bem consciente do que ele lhe dizia.
� Amanh� tenho de ir �s aulas.
� Acho que ainda devia ir esta tarde - tro�ou, e desta vez
ela sorriu, embora, na realidade, n�o passasse de um esgar. -
Est� a ficar muito pregui�osa - continuou o m�dico, sorrin
do e sentindo-se como se tivesse ganho a maior das batalhas.
N�o tivera a menor esperan�a de vencer. H� uma hora atr�s,
Danina parecia morta e agora estava ali, consciente e a falar.
� Acho que est� a ser muito pateta - murmurou. -
Hoje n�o posso ir �s aulas.
� Porque n�o?
� N�o tenho pernas - disse, preocupada. - Acho que
ca�, n�o as sinto.
O m�dico assustou-se e deslizou a m�o por baixo dos len��is para lhe tocar nas pernas. Perguntou-lhe se sentia alguma coisa. Sentia tudo, estava apenas fraca de mais para as mexer.
* Est� apenas debilitada, Danina - assegurou. - N�o se
preocupe que vai ficar boa.
O Dr. Obrajensky tamb�m sabia que se de facto ela sobrevivesse, o que parecia poss�vel, embora n�o estivesse ainda totalmente fora de perigo, a sua convalescen�a levaria meses e Danina teria de ser tratada com muito cuidado para que a recupera��o foss
e completa.
� Vai ter de se portar muito bem, dormir muito, alimen
tar-se como deve ser e beber muitos l�quidos - recomendou
e, como que para lho provar, ofereceu-lhe um pouco de
�gua. Ela bebeu apenas um gole, mas j� era qualquer coisa.
Quando pousou o copo na mesa-de-cabeceira, Madame Mar-
kova acordou sobressaltada, temendo que alguma coisa terr�
vel tivesse acontecido enquanto dormia. Ao inv�s, viu Dani
na, ainda fraca, por�m viva, a sorrir para o m�dico.
� Meu Deus, � um milagre - exclamou, tentando re
primir l�grimas de al�vio e exaust�o. Estava quase t�o esgotada
quanto Danina e devastada pelo terror de quase ter perdido a
sua bailarina preferida. - Minha filha, sentes-te melhor?
� Um pouco - asseverou, e depois, olhando de novo
para o m�dico, proferiu: - Acho que me salvou a vida.
� N�o, n�o fui eu. Bem gostaria de receber os louros
por tal vit�ria, mas n�o fiz nada. Limitei-me a ficar aqui sen
tado. Madame Markova fez bem mais por si do que eu.
� Foi Deus - argumentou Madame Markova - e a tua
pr�pria for�a.
Madame Markova queria perguntar ao m�dico se Danina estava fora de perigo, contudo sabia que n�o lhe podia fazer tal pergunta em frente dela. Danina parecia estar bem melhor, plenamente consciente e mais forte. O risco de a perder fora t�o grande que
Madame Markova estava ainda a tremer.
� Quando poderei voltar a dan�ar? - perguntou Dani-
na, fazendo Madame Markova e o m�dico rirem. Estava de
facto melhor.
� Posso garantir-lhe que na pr�xima semana ainda n�o
poder� dan�ar - confessou ele, sorrindo.
Na realidade, n�o poderia voltar a dan�ar nos pr�ximos meses, mas o m�dico sabia que era ainda demasiado cedo para lho dizer. Pressentia que, se lhe dissesse a verdade, ficaria arrasada.
� Se prometer portar-se bem e fazer tudo o que eu dis
ser, em breve estar� de p� e a dan�ar.
� Tenho um ensaio importante amanh� - insistiu Danina.
� Acho que ter� de faltar. N�o tem pernas, lembra-se?
� Como? - perguntou Madame Markova, preocupada.
O Dr. Obrajensky apressou-se a explicar.
� H� pouco, a Danina n�o sentia as pernas, mas est� tu
do bem. Est� apenas muito fraca por causa da febre.
Algum tempo depois, quando tentaram sent�-la para que bebesse mais �gua, descobriram que nem sentar-se conseguia. Mal aguentava levantar a cabe�a da almofada.
� Sinto-me um peda�o de cordel - disse Danina elo
quentemente, fazendo o m�dico sorrir.
� Olhe que n�o se parece nada com um. Tem muito
melhor aspecto. De facto, acho que vou voltar aos meus res
tantes doentes antes que se esque�am de mim.
Passava das seis da tarde e ele j� ali estava h� treze horas. Prometeu voltar na manh� seguinte. Enquanto se encaminhavam para a porta, Madame Markova agradeceu-lhe profusamente e perguntou-lhe o que deveria esperar de agora em diante.
* Uma demorada convalescen�a - confessou. - Deve
r� ficar pelo menos um m�s na cama ou arrisca-se a ficar
doente de novo e, desta vez, poder� n�o ter tanta sorte.
Madame Markova tremeu s� de pensar nisso.
� Passar-se-�o v�rios meses at� que possa voltar a dan�ar.
Talvez tr�s ou quatro, ou at� mais - advertiu o m�dico.
� Se for necess�rio, atamo-la � cama. J� viu como ela �.
Amanh� de manh� j� estar� a suplicar que a deixemos dan�ar.
� Ela pr�pria ficar� surpreendida ao perceber como est�
debilitada. Ter� de ser muito paciente, pois a recupera��o levar� tempo.
* Compreendo - disse Madame Markova, agradecendo-lhe uma vez mais quando se despedia. Depois de fechar a porta, dirigiu-se ao quarto de Danina, pensando no que acontecera e na sorte que tinham tido. Estava tamb�m eternamente grata � czarina por lhes t
er enviado o m�dico. Pouco pudera fazer, mas t�-lo ali fora uma enorme ajuda, j� para n�o falar da sua dedica��o.
Madame Markova ficou � porta do quarto de Danina, olhando para a jovem que tanto amava. Parecia uma crian�a ali deitada na cama, a dormir com um sorriso no rosto.
CAPITULO 2.
Fiel � sua promessa, o Dr. Obrajensky voltou para examinar Danina no dia seguinte, mas desta vez s� chegou depois de almo�o, pois sabia que a sua doente estava fora de perigo. Ficou muito satisfeito ao verificar que Danina j� se alimentava e bebia bas
tante �gua. Mal tinha ainda for�a para levantar a cabe�a da almofada, por�m sorriu assim que ele entrou no quarto. Estava obviamente feliz por v�-lo.
� Como est� o Alexei? - perguntou-lhe logo que o
viu.
� Est� muito bem. Bem melhor do que a Danina. Estava
a jogar �s cartas com as irm�s, e a ganhar, quando o vi esta
manh�. Pediu-me que lhe desejasse r�pidas melhoras. � tam
b�m esse o desejo da czarina e das gr�-duquesas.
O Dr. Obrajensky era tamb�m o portador de uma carta que a czarina enviara a Madame Markova. O m�dico conhecia o conte�do de tal missiva, j� que a czarina lhe pedira conselho sobre o assunto.
Madame Markova n�o abandonara ainda a cabeceira de Danina, mas parecia bem mais recomposta. Quando leu a carta da czarina, abriu muito os olhos, como que n�o acreditando no que lia. Olhou para o Dr. Obrajensky, surpreendida, e ele respondeu-lhe afirma
tivamente com um aceno de cabe�a. A ideia fora dele. A czarina convidava Danina a convalescer numa das suas pequenas casas reservadas a h�spedes. Ali poderia ser bem tratada e fazer a demorada recupera��o de que necessitaria sem se atormentar dia ap�s
dia com a vis�o das colegas a prepararem-se para as aulas e para os ensaios. Tsarskoie Selo era um local sossegado onde poderia ser bem vigiada, tratada e poderia convalescer da melhor forma para que voltasse a dan�ar.
Depois de deixarem o quarto de Danina naquela tarde, o m�dico perguntou a Madame Markova o que achava do convite da czarina. Estava ainda bastante surpreendida, por�m, n�o restavam d�vidas de que era um convite muito lisonjea-dor. No entanto, Madame M
arkova n�o fazia ideia de como
Danina reagiria � ideia. Era t�o apegada ao ballet, que n�o imaginava afastar-se dele nem que fosse por um instante, mesmo n�o podendo dan�ar. Ainda assim, Madame Markova concordava que estar ali, ver as colegas e n�o poder dan�ar com elas a levaria �
loucura em pouco tempo.
� Talvez lhe fa�a bem afastar-se por uns tempos - ad
mitiu Madame Markova -, mas n�o sei se conseguiremos
convenc�-la a ir. Mesmo sem poder dan�ar, suspeito que pre
ferir� ficar. H� doze anos que n�o sai daqui, excepto no Ve
r�o passado quando esteve em Livadia.
� Mas ela gostou de l� estar, n�o gostou? Seria uma con
tinua��o das f�rias. Para al�m disso, l� conseguirei vigi�-la
melhor. Ser� dif�cil para mini vir at� aqui tantas vezes e du
rante tanto tempo como nos dois �ltimos dias. Tenho as mi
nhas responsabilidades para com o czar�viche.
� Tem sido muito am�vel - admitiu Madame Marko
va. - N�o sei o que ter�amos feito sem si.
� N�o fiz absolutamente nada - confessou com mod�s
tia -, a n�o ser rezar, tal como a senhora. Ela teve muita
sorte. Receio que a czarina e os filhos fiquem muito desa
pontados se n�o aceitar o convite.
Em seguida, relembrou a Madame Markova algo que ela j� sabia.
� E um convite bastante invulgar. Acho que a Danina
iria gostar.
� Quem n�o gostaria? - riu Madame Markova. - Te
nho pelos menos uma d�zia de bailarinas, se n�o mais, que fi
cariam mais do que felizes de poder tomar o lugar da Danina
em Tsarskoie Selo. O problema � que a Danina � diferente.
N�o quer sair daqui, pois teme perder alguma coisa. Nunca
sai para ir a uma loja, para passear, ou sequer para ir ao teatro.
S� dan�a, dan�a, dan�a, e quando n�o est� a dan�ar est� a ob
servar os outros a faz�-lo. Para al�m de tudo, � muito apegada
a mim, talvez por j� n�o ter m�e.
Era �bvio que Madame Markova a amava muito.
* H� quanto tempo est� ela aqui? - perguntou o m�di
co. Sentia-se fascinado pela bailarina e via-a como uma deli
cada ave que aterrara aos seus p�s com uma asa partida. Que
ria fazer tudo o que pudesse para a ajudar, at� interceder por
ela junto do czar e da czarina, o que n�o era dif�cil, pois tamb�m gostavam muito de Danina. Era imposs�vel n�o admirar algu�m com uni talento t�o grande.
� Est� connosco h� doze anos - respondeu Madame
Markova.-Desde os sete. Agora tem dezanove, quase
vinte.
� Talvez umas pequenas f�rias lhe fa�am bem - afir
mou o m�dico num tom s�rio, pois achava realmente que tal
seria importante para a sua recupera��o.
� Concordo, o problema ser� convenc�-la. Falarei com
ela quando estiver uni pouco mais forte.
O m�dico continuou a visit�-la todos os dias e, quando Danina se sentia um pouco melhor, Madame Markova abordou o assunto. Danina ficou surpreendida e feliz com o convite, mas n�o fazia qualquer ten��o de o aceitar.
� N�o posso deix�-la - disse simplesmente a Madame
Markova. Tamb�m se sentia desanimada com o facto de ter
estado �s portas da morte e considerava a escola de bailei o seu
lar. Para al�m disso, n�o queria convalescer no meio de estra
nhos, ainda que pertencentes � realeza.
� N�o me vai obrigar a ir, pois n�o? - perguntou,
preocupada. Contudo, assim que tentou levantar-se, aperce
beu-se da gravidade da sua doen�a, bem como Madame Mar
kova. Nem sequer conseguia sentar-se numa cadeira sem
quase desmaiar e ter de ser amparada para n�o cair. Tamb�m
tinha de ser carregada ao colo at� � casa de banho.
� Precisa de cuidados constantes - explicou-lhe o m�
dico numa das suas visitas. - E ainda vai precisar durante al
gum tempo, Danina. Ser� um fardo muito grande para as pes
soas do ballet. Est�o todas muito ocupadas para cuidarem
de si.
Danina sabia que isso era verdade e que tinha j� sido um estorvo para todos, principalmente para Madame Markova, mas, ainda assim, n�o queria deix�-los. A escola de ballet era a sua casa e os colegas e professores a sua fam�lia. N�o suportava a ideia
de os deixar e, nessa noite, quando Madame Markova voltou a falar no assunto, Danina chorou.
* Porque n�o aceitas ir apenas por algum tempo? - su
geriu Madame Markova. - S� at� estares um pouco mais
forte. � um convite t�o am�vel e de certeza que acabar�s por gostar de l� estar.
* Tenho medo - declarou.
No dia seguinte, Madame Markova insistiu com Danina para que aceitasse o convite. Para al�m de acreditar que seria bom para ela, temia ofender a czarina ao declinar t�o generosa oferta. Era raro, se n�o inaudito, ser convidado para convalescer em Tsar
skoie Selo e Madame Markova estava muito grata ao Dr. Obrajensky por ter tido semelhante ideia. Provara ser n�o s� muito am�vel, mas deveras sol�cito e genuinamente preocupado com o bem-estar de Danina. As suas visitas di�rias animavam-na muito. Em te
rmos psicol�gicos estava quase bem, s� o seu corpo n�o estava capaz de se recompor t�o depressa.
� Acho que devias ir - afirmou Madame Markova se
riamente. No final da semana, chegou a um acordo com o
m�dico. Danina tinha de ir, quer quisesse quer n�o. Era para
seu pr�prio bem. Sem os cuidados necess�rios, poderia nunca
recuperar por completo e arriscar-se-ia a jamais voltar a dan
�ar. Madame Markova acabou por ter de dizer tudo isto a
Danina.
� E se a tua teimosia te custar o bailei? - inquiriu aspe
ramente.
� Cr� que isso pode acontecer? - perguntou Danina.
Os seus olhos espelhavam o terror que a ideia lhe causara.
� Pode acontecer, sim - respondeu Madame Markova
preocupada. - Estiveste muito, muito doente, minha queri
da. N�o deves agora tentar o destino sendo teimosa ou insen
sata.
Danina fora convidada a ficar indefinidamente, at� estar recuperada e apta a regressar ao ballet. Era um convite excepcional e ela bem o sabia. Estava a ser infantil ao n�o querer abandonar a seguran�a do ambiente familiar e das pessoas que conhecia.
� E se for apenas por algumas semanas? - perguntou.
Era uma pequena concess�o da sua parte, mas, pelo menos, j�
era um come�o.
� Ainda n�o conseguir�s dan�ar daqui a algumas sema
nas. Vai pelo menos por um m�s e depois veremos como te
sentes nessa altura. Se n�o gostares de l� estar, podes sempre regressar e continuar a tua convalescen�a aqui. Fica pelo menos um m�s. Sabes que se quiseres podes ficar mais tempo. Prometo que te vou visitar sempre que puder.
Era um compromisso dif�cil para Danina, por�m acabou por concordar. No dia da partida chorou ao pensar que iria abandonar os amigos e a sua mentora.
� N�o te estamos a enviar para a Sib�ria - protestou
Madame Markova carinhosamente.
� � como me sinto - confessou Danina, sorrindo por
entre as l�grimas. - Vou ter tantas saudades suas - disse, se
gurando a m�o de Madame Markova com firmeza.
A czarina enviara um tren� coberto especial para levar Danina. Era quente e confort�vel e fora revestido com peles e pesados cobertores. A czarina n�o poupara nada. O Dr. Obra-jensky viera para a acompanhar durante a viagem, mas antes verificara se tu
do estava a postos na casa de h�spedes. Trazia tamb�m uma mensagem de Alexei, que mal podia esperar para a ver e afirmava ter um novo truque de cartas para lhe ensinar.
Todas as bailarinas e bailarinos vieram � porta para se despedir dela e todos acenaram quando o tren� partiu. Danina estava t�o nervosa que o Dr. Obrajensky teve de lhe dar a m�o e, mesmo antes de chegarem a Tsarskoie Selo, sentia-se j� exausta das em
o��es provocadas pela partida.
� O ballet � toda a minha vida. N�o conhe�o mais nada.
Estou l� h� tanto tempo que n�o imagino estar em mais lado
nenhum, nem apenas por minutos - explicou durante o ca
minho, mas ele j� se tinha apercebido disso e, como sempre,
mostrou-se am�vel e compreensivo.
� N�o perder� nada por se afastar uns tempos. Pelo con
tr�rio, recuperar� a sua for�a e eles estar�o � sua espera quan
do regressar. Ser� ainda melhor do que nunca, confie em
mini.
Ela assim fez e sentiu-se grata pelo seu apoio e companhia durante a viagem. Era t�o agrad�vel estar com ele. Era f�cil perceber por que motivo toda a fam�lia imperial gostava do Dr. Obrajensky.
Assim que chegaram, instalou-a confortavelmente na pe-
quena casa de h�spedes, mais luxuosa do que ela alguma vez imaginara. O quarto estava todo revestido a cetim cor-de-rosa e a sala de estar a azul e amarelo. Havia antiguidades por todo o lado, uma cozinha para preparar as suas refei��es, quatro criado
s para a servirem e duas enfermeiras. Meia hora depois de chegar, a czarina veio visit�-la, trazendo Alexei consigo para que lhe pudesse mostrar o tal truque. Ambos ficaram estupefactos ao ver quanto a doen�a a debilitara e contentes por ter aceite co
nvalescer ali. N�o ficaram muito tempo para n�o a cansar e quando partiram o m�dico saiu com eles, prometendo voltar na manh� seguinte para ver se ela estava a "portar-se bem".
Era estranho encontrar-se ali naquela noite, sem todas as pessoas que conhecia em seu redor e as raparigas que habitualmente dormiam no seu quarto. Apesar do ambiente luxuoso, sentia-se sozinha. Ficou surpreendida quando a enfermeira entrou no quarto,
pouco depois de a ter ajudado a deitar, e lhe anunciou que tinha uma visita. O Dr. Obrajens-ky voltara para a ver. Eram oito horas e ela apenas o esperava na manh� seguinte, por isso, ficou surpreendida com a visita.
* Ia para casa - explicou - e lembrei-me de vir ver
como estava.
Olhou para ela atentamente de onde se encontrava e confirmou as suas suspeitas. Danina estava um pouco melanc�lica.
� Pressenti que estaria a sentir-se sozinha.
� E verdade - confessou, interrogando-se como conse
guira adivinhar. Parecia compreend�-la t�o bem. - Deve
achar-me tola - acrescentou, envergonhada por parecer t�o
ingrata.
� Claro que n�o - acalmou-a ele, puxando uma cadeira
para junto da cama dela. - Est� habituada a viver rodeada de
muita gente. - Vira o quarto em que dormia com outras
cinco bailarinas e apercebera-se das condi��es de vida ofereci
das pela escola. - � uma grande mudan�a para si ver-se aqui
sozinha - disse. Danina era ainda t�o jovem, tinha apenas
dezanove anos. Em alguns aspectos era muito disciplinada e
madura, mas infantil e superprotegida noutros. - H� alguma
coisa que possa fazer para tornar as coisas mais f�ceis?
� N�o. Gosto muito das suas visitas - disse Danina, sor
rindo para o m�dico. A visita daquela noite enternecera-a
muito, pois ele parecia ter entendido exactamente o que ela
estava a sentir.
� Ent�o, terei de a visitar mais vezes - prometeu ele.
Era-lhe mais f�cil agora ir v�-la, pois a casa ficava apenas a
uma curta dist�ncia a p� do Pal�cio de Alexandre. Sabia que
Alexei e as irm�s estavam j� a planear fazer-lhe companhia,
era essa a inten��o deles e o objectivo da vinda dela para ali.
� N�o ficar� sozinha durante muito tempo e em breve po
der� dar passeios e ir at� ao pal�cio, quando estiver mais forte.
� Danina ainda n�o conseguia atravessar o quarto sem ajuda.
� Prevejo que em pouco tempo se sentir� melhor.
De repente come�ou a sentir-se uma tola por achar que estava sozinha. Toda a gente se mostrava t�o atenciosa com ela. Apesar de ter saudades dos amigos e de Madame Marko-va, sentia-se feliz por haver decidido ir.
* Obrigada por ter tratado de tudo - disse, agradecida.
* Estou muito feliz por aqui estar.
� Estou feliz que tenha vindo, Danina - afirmou sere
namente, parecendo ao mesmo tempo descontra�do e um
pouco cansado. Era o final de um dia bastante longo para o
m�dico, e Danina tinha a certeza de que deveria estar desejo
so de voltar para casa para junto da mulher e dos filhos. Sen
tia-se culpada por o reter ali, mas gostava muito da sua com
panhia. - Teria ficado muito desapontado, se n�o tivesse
vindo.
� Tamb�m eu - admitiu Danina com um sorriso que
tocou profundamente o cora��o do m�dico, embora ela n�o
o soubesse. - Esta casa � magn�fica - admirou, olhando em
seu redor ainda maravilhada com o luxo que a cercava. Nun
ca vira uma coisa assim.
� Logo vi que ia apreciar - sorriu ele.
� Era dif�cil n�o gostar - confessou.
� Vai ter muitas saudades de dan�ar, n�o �? - pergun
tou ele, conhecendo j� a resposta, por�m fascinado com a sua
vida no ballet.
� Vivo para dan�ar - disse Danina. - � a �nica vida
que conhe�o, a �nica que desejo. N�o imagino existir sem o
ballet. N�o ser capaz de dan�ar representaria talvez a minha morte.
Ele anuiu com a cabe�a, observando os seus olhos, as suas faces. Adorava falar com ela e agora que se sentia melhor demonstrava um sentido de humor encantador.
* Voltar� a dan�ar em breve, Danina. Prometo.
Tinha ainda um longo caminho a percorrer antes de estar
bem forte para o fazer e ambos sabiam disso.
� Ter� de se entreter com outra coisa entretanto - re
matou ele. Tinha j� trazido uma pilha de livros e Danina pro
metera a si mesma que os iria ler. No ballet nunca tinha tem
po para ler nada.
� Gosta de poesia? - perguntou cautelosamente, n�o
querendo parecer pedante, embora a poesia fosse uma das
suas paix�es.
� Muito - disse ela.
� Trarei alguns livros de poesia amanh�. Gosto muito de
Pushkin. Talvez tamb�m aprecie.
Danina lera alguns poemas de Pushkin h� alguns anos e adoraria conhecer melhor a sua obra, j� que agora tempo era coisa que n�o lhe faltava.
* Venho visit�-la amanh� depois de examinar o Alexei.
Talvez possa almo�ar aqui consigo, para que n�o se sinta t�o
sozinha.
Em seguida levantou-se, mas parecia relutante em ir-se embora.
� Ficar� bem esta noite, n�o �? - inquiriu. Estava preo
cupado com ela, n�o queria que se sentisse infeliz.
� Fico bem - garantiu com um sorriso. - Prometo.
Agora, v� para casa para junto da sua fam�lia ou pensar�o que
sou muito aborrecida.
� Eles compreendem o que � viver com um m�dico.
Vejo-a ent�o amanh� - disse j� � porta. Ela acenou-lhe da
cama, pensando mais uma vez como era am�vel e a sorte que
tinha em conhec�-lo.

CAPITULO 3.
O livro que o Dr. Obrajensky trouxe no dia seguinte era t�o belo que quando ele lhe leu algumas passagens Danina n�o conseguiu conter as l�grimas. Estava lentamente a abrir-Ihe a porta para um mundo que ela desconhecia. Come�ara a ler naquela manh� um
dos romances que o m�dico lhe trouxera e, durante o almo�o, conversaram sobre ele. Tal como os livros de poesia que lhe emprestara, aquele romance era um dos preferidos de Nikolai. O tempo que passaram a conversar voou como se fossem minutos e ambos
ficaram surpreendidos ao verificar que eram j� quatro da tarde.
O Dr. Obrajensky teve de partir e Danina, embora o m�dico detestasse ter de admiti-lo, estava exausta.
� N�o deveria cans�-la - confessou com remorsos. -
Logo eu, o seu m�dico!
� Sinto-me bem - afirmou, tendo adorado o tempo
que passaram a conversar. Almo�ara na cama e ele ficara nu
ma pequena mesa ao p� dela.
� Agora, quero que durma - disse o m�dico carinhosa
mente. Depois ajudou-a a deitar-se e arranjou-lhe as almofa
das. Era uma tarefa que uma enfermeira poderia fazer, por�m
gostava de o fazer por Danina. - Durma o m�ximo que
conseguir. Vou jantar ao pal�cio hoje � noite, mas venho ver
como se sente quando regressar a casa, se n�o se importar.
Tinha feito o mesmo na noite anterior e ela adorara, pois fizera-lhe ver que n�o estava sozinha.
* Gostava muito - disse Danina, j� sonolenta. Ele desli
gou as luzes e saiu p� ante p� do quarto. � porta, voltou-se
para lhe dizer adeus. Os seus olhos estavam j� fechados e,
quando o m�dico deixou a casa de h�spedes, Danina estava j�
a dormir profundamente, s� acordando por volta da hora do
jantar.
Quando abriu os olhos viu um desenho ao seu lado. Ale-xei viera visit�-la durante a tarde e a enfermeira dissera-lhe que estava a dormir. Deixara-lhe ent�o um desenho que a re-tratava a tentar nadar, corno no Ver�o anterior. Tal como a
maioria dos rapazes da sua idade, Alexei adorava provoc�-la. Sentia-se � vontade com ela, pois Danina era da mesma idade das suas irm�s.
Tomou uma sopa ao jantar e estava a beber um ch� quando o Dr. Obrajensky voltou para a visitar depois do jantar no pal�cio. Estava muito bem-disposto e contou-lhe todos os pormenores da noite. Jantava com a fam�lia imperial v�rias vezes por semana.
* S�o pessoas maravilhosas - declarou. Era um grande
admirador do czar e da czarina. - T�m tantas responsabilida-
des, tantas preocupa��es. Os tempos s�o dif�ceis, especialmen
te agora com a guerra. Tem tamb�m havido alguma agita��o
nas cidades e, claro, a sa�de do Alexei preocupa-os muit�s
simo.
A hemofilia de que o czar�viche sofria era um problema que exigia a presen�a constante de um m�dico ao seu lado. Era por este motivo que o Dr. Obrajensky passava tanto tempo com a fam�lia imperial, embora partilhasse tal responsabilidade com o Dr. Bot
kin.
* Deve ser duro para si - disse Danina - ter de estar
tanto tempo afastado da sua fam�lia, dos seus filhos.
Danina sabia que a sua esposa era inglesa e que tinham dois rapazes, com doze e catorze anos.
* O czar e a czarina compreendem a minha situa��o e
convidam sempre a Marie, mas ela nunca me acompanha, de
testa eventos sociais. Prefere estar em casa com os rapazes, ou
sentada a coser. N�o tem qualquer interesse pelo meu traba
lho ou pelas pessoas para quem trabalho.
Danina quase n�o acreditava no que ouvia, especialmente porque o m�dico n�o era um empregado como outro qualquer. Interrogava-se se a mulher n�o teria ci�mes. Era dif�cil acreditar que fosse assim t�o anti-social. Talvez fosse t�mida ou n�o se sentiss
e � vontade em tais ocasi�es.
* Tamb�m n�o fala muito bem russo, o que ainda lhe
dificulta mais as coisas. Nunca se deu muito ao trabalho de
aprender.
Era um motivo de disc�rdia entre os dois, embora n�o o tivesse admitido. Seria um pouco desleal queixar-se de Marie a Danina. As duas mulheres pareciam t�o diferentes. Uma t�o
cheia de vitalidade, a outra t�o cansada, infeliz, entediada, constantemente desencantada com a vida.
Mesmo ap�s a doen�a, a energia e entusiasmo de Danina eram contagiantes. As suas longas conversas com o m�dico eram tamb�m uma nova experi�ncia. Para al�m dos rapazes com quem dan�ava na escola, nunca tivera amigos ou sequer um namorado, e quanto aos
irm�os, raramente os via. Estavam sempre demasiado ocupados para a visitar. Vinham a Sampetersburgo v�-la dan�ar uma vez por ano e o pai pouco mais do que isso. As responsabilidades que detinham no ex�rcito impediam-nos de se afastarem muitas vezes.
Com Nikolai Obrajensky tudo era diferente. Estava a tornar-se um amigo, algu�m com quem podia conversar. Confessou-lho naquela noite e ele ficou muito contente. Adorava conversar com ela, partilhar os seus livros, as suas opini�es sobre poesia e, naqu
ela noite, verificou que a amizade que partilhavam era muito agrad�vel. Quase falara de Danina a Marie antes de ela vir para a casa de h�spedes. J� o fizera uma vez, embora s� de passagem, referindo que fora chamado � escola de ballet por uma das bail
arinas ter apanhado gripe. Marie nunca lhe perguntara nada sobre o assunto e, assim que Danina melhorou, decidiu n�o dizer mais nada. Em alguns aspectos, era melhor manter a amizade que os unia em segredo.
H� anos atr�s n�o o teria feito, mas agora, ao fim de quinze anos, descobrira que pouca ou nenhuma vontade tinha de contar a Marie fosse o que fosse sobre a sua vida. Ela n�o demonstrava qualquer interesse nele e a maior parte do tempo n�o tinha nada
para lhe dizer. Houve um per�odo em que passaram um mau bocado, pois Marie queria voltar para Inglaterra ou, pelo menos, mandar os filhos estudar para l�. Nikolai opunha-se � ideia, queria os rapazes perto dele. Agora, ela nem sequer estava zangada po
r causa disso, era-lhe com-pletamente indiferente, embora n�o perdesse uma oportunidade para lhe dizer o quanto detestava a R�ssia. Pelo contr�rio, o tempo que passava com Danina era muito agrad�vel. Esta adorava a sua vida, n�o se queixava, era uma p
essoa feliz.
� Os seus filhos s�o parecidos consigo? - perguntou
Danina por acaso.
� As pessoas dizem que sim - afirmou sorrindo. - Eu
n�o penso assim. Acho que se parecem mais com a m�e. S�o umas crian�as maravilhosas. Est�o a tornar-se uns homens. Ainda os vejo como crian�as e tenho de me lembrar continuamente de que j� n�o o s�o. Ficam muito zangados comigo quando os trato assim.
S�o bastante independentes. Em breve ser�o uns homens e ir�o para o ex�rcito servir o czar.
Ao escut�-lo, Danina lembrou-se dos irm�os. Tinha saudades deles e, desde que a guerra fora declarada no Ver�o anterior, preocupava-se ainda mais com o seu bem-estar.
Falou-lhe ent�o deles e o m�dico sorria ao ouvi-la, por�m, quando o tratava por "doutor" olhava-a tristemente. Fazia-o sentir-se t�o velho, t�o distante, e n�o o amigo que ela via nele.
Embora se tivessem conhecido no Ver�o anterior, s� agora, desde que adoecera, o conhecera melhor. A amizade que os unia crescia cada vez mais.
* Podia tratar-me por Nikolai - prop�s. - Parece-me
mais simples.
Era tamb�m muito mais pessoal, mas isso nem sequer passou pela cabe�a de Danina, pois o m�dico sugerira-o de forma bastante natural. Sorriu, parecendo mais uma crian�a que uma jovem mulher. A amizade deles era perfeitamente inocente e inofensiva.
� Claro, se prefere assim. Posso continuar a trat�-lo de
modo mais formal em frente de outras pessoas - disse Dani
na, consciente da sua posi��o e da diferen�a de idades entre
eles. O m�dico tinha mais vinte anos do que ela.
� Parece-me razo�vel - concordou, contente com o
acordo que haviam firmado.
� Terei a oportunidade de conhecer a sua esposa en
quanto aqui estiver? - inquiriu Danina com alguma curiosi
dade.
� Duvido - disse com sinceridade. - Ela raramente
vem ao pal�cio. Tal como disse, detesta sair e declina todos os
convites da czarina, excepto talvez uma vez por ano, quando
se sente obrigada.
� Isso prejudic�-lo-� junto da fam�lia imperial? - per
guntou Danina sem rodeios. - A czarina n�o se aborrece
com isso?
* Que eu saiba, n�o. De qualquer forma, � demasiado
discreta para o demonstrar. Acho que compreende que a mi
nha esposa n�o � uma pessoa de trato f�cil.
Era o primeiro verdadeiro vislumbre que tinha da sua vida privada. Na realidade, embora falassem sobre muitas coisas, Danina nada sabia sobre a vida pessoal do m�dico. Imaginava-o com uma fam�lia carinhosa e uma vida familiar feliz.
� A sua esposa deve ser muito t�mida - concluiu Da
nina.
� N�o, n�o me parece - confessou com um sorriso tris
te. Havia tantas diferen�as entre Danina e Mane. - Ela n�o
gosta de usar roupa de cerim�nia ou vestidos de noite. E tipi
camente inglesa. Gosta de andar a cavalo, de ca�ar e de estar
na propriedade do seu pai em Hampshire. Tudo o resto a
aborrece.
N�o referiu "incluindo eu", mas gostaria de o ter feito. H� muito tempo que o casamento deles era uma desilus�o para ambos, especialmente para ele, e a �nica excep��o eram os rapazes. Nikolai e Marie eram muito diferentes. Ele era emotivo, sincero, bo
ndoso. Ela era fria, distante e indiferente. Detestava a vida do marido e, quando se zangavam, chamava-Ihe o c�ozinho de sal�o do czar. Nikolai estava farto de a ouvir queixar-se. Era f�cil perceber por que motivo Marie n�o tinha amigos, sendo t�o fri
a e ciumenta. At� os filhos n�o suportavam mais as suas queixas. Tudo o que queria era voltar para Inglaterra e esperava que o marido largasse tudo e a seguisse. Certa vez, Nikolai avisara-a de que, se quisesse regressar definitivamente, teria de o fa
zer sem ele.
� Por que raz�o detesta assim tanto a R�ssia? - pergun
tou Danina.
� Diz que � por causa do Inverno. Em Inglaterra o tem
po tamb�m n�o � muito melhor, embora aqui seja mais frio.
N�o gosta das pessoas nem do pa�s e at� a comida detesta -
lamentou, esbo�ando depois um sorriso. Era uma antiga lita
nia que ambos conheciam.
� Talvez come�asse a gostar mais, se aprendesse russo -
sugeriu Danina.
* J� lhe tentei explicar isso. � a forma de ela n�o se comprometer a ficar. Enquanto n�o falar russo, n�o pertence-
r� verdadeiramente a este lugar, ou pelo menos � o que pensa, embora isso n�o lhe torne a vida mais f�cil.
Haviam sido uns longos quinze anos de casamento, mas n�o contara nada disso a Danina, nem o quanto se sentia sozinho, ou feliz por estar ali a conversar com ela. Se n�o fossem os filhos, h� muito que teria deixado Mane regressar a Inglaterra. N�o havi
a j� nada entre eles, a n�o ser as crian�as.
* O pai come�ou a assust�-la com a guerra. Afirma que
um dia haver� uma revolu��o. Diz que o pa�s � grande de
mais para ser controlado e que o czar n�o tem punho forte
para o fazer, o que � rid�culo. No entanto, acredita piamente
nisto.
Danina escutou-o, preocupada. N�o percebia nada de pol�tica. Estava sempre muito ocupada com a dan�a para se aperceber do que se passava no mundo.
� Tamb�m acredita nisso? - perguntou com um ar gra
ve. - Acha que vai haver uma revolu��o? - inquiriu, con
fiando plenamente na opini�o de Nikolai.
� Nem por um instante - respondeu. - O meu sogro
sempre foi um pouco alarmista. A R�ssia � demasiado pode
rosa para deixar que uma coisa dessas aconte�a, tal como o
czar. E s� mais uma desculpa para ela se queixar do pa�s. Afir
ma que estou a arriscar a vida dos nossos filhos. Sempre se
deixou influenciar muito pelo pai.
Danina tinha sempre ideias t�o novas e um esp�rito t�o aberto. Fora exposta a t�o pouco, para al�m do bailado, que era como observ�-la a descobrir o mundo em seu redor, um mundo que ele adorava partilhar com ela. Comparada com Danina, Marie parecia t�
o extenuada, revoltada e amarga, e viver na R�ssia n�o melhorara nem um pouco a sua maneira de ser.
Outrora, Marie fora uma mulher bela e interessada. A medicina e a carreira do marido fascinavam-na, mas agora tinha ci�mes da posi��o que detinha junto da fam�lia imperial, bem como de v�rias outras coisas. Danina n�o era nada assim, mas tamb�m n�o po
dia esquecer de que Marie era dezassete anos mais velha do que ela. Nikolai tinha trinta e nove e a mulher era tr�s anos mais nova.
Danina ficou aliviada com o que o m�dico dissera sobre a revolu��o.
� Acha que a guerra terminar� brevemente? - pergun
tou-lhe, e ele sorriu para a tranquilizar, embora o n�mero de
baixas fosse at� ent�o enorme. Toda a gente esperara que a
guerra tivesse acabado h� meses, todavia, n�o mostrava sinais
de terminar t�o cedo.
� Espero que sim - alvitrou.
� Estou preocupada com o meu pai e com os meus ir
m�os - admitiu Danina.
� V�o ficar bem, vai ver.
Conversar com ele fazia-a sentir-se muito melhor. Niko-lai fez-lhe companhia durante mais algum tempo e depois levantou-se para ir embora. Danina estava de novo cansada e ele tinha de regressar a casa. N�o podia adiar a partida para sempre.
* Vemo-nos amanh� - prometeu enquanto sa�a.
Danina ficou a pensar nas coisas que Nikolai dissera sobre
a mulher. Parecia preso numa situa��o dif�cil e Danina interrogava-se se n�o haveria alguma coisa que ele pudesse fazer para a melhorar. Talvez insistir para que Marie aprendesse russo, ou viajar de vez em quando com ela at� Inglaterra. Parecia-lhe es
tranho que Marie n�o quisesse partilhar da posi��o que o marido detinha. Depois come�ou a pensar se Nikolai n�o estaria desnecessariamente deprimido com o assunto. Talvez estivesse apenas cansado, pensou para consigo. A guerra desanimava qualquer um.
Era poss�vel que os seus coment�rios sobre a esposa estivessem relacionados com isso e com outras preocupa��es que n�o mencionara.
Nunca lhe ocorreu, nem por um instante, que o m�dico quisesse mais alguma coisa dela ou que a visse como algo mais que uma amiga. Afinal de contas, era casado e tinha uma fam�lia e mesmo que tivesse algumas queixas da esposa, as coisas n�o seriam t�o
m�s como as pintava. Como o seu mundo se circunscrevia ao ballct, para Danina tudo era muito simples e o casamento sagrado. Tinha a certeza de que Nikolai era mais feliz com Marie do que admitia.
Nas duas semanas que se seguiram, Nikolai n�o voltou a falar da esposa. Danina era j� capaz de tomar as refei��es � mesa e, numa tarde soalheira de Janeiro, levou-a a dar um pequeno passeio pelos jardins da casa de h�spedes. O ar pare-
cia retemperar-lhe a for�a e, de bra�o dado, riam e conversavam. Ela j� lera algumas colect�neas de poesia que ele lhe emprestara, bem como quatro dos seus romances preferidos. Nessa tarde, quando Alexei veio tomar ch� com Danina, Ni-kolai fez-lhes co
mpanhia. Depois do ch� jogaram �s cartas e Alexei ganhou, protestando alegremente quando Danina o acusou de ter feito batota.
� Isso � que n�o! - ripostou. - Tu � que jogaste mui
to mal, Danina - explicou sem rodeios e Danina fingiu
ofender-se.
� Como te atreves! Joguei muito bem. Estou convencida
de que fizeste batota.
Nikolai divertia-se a observar a boa disposi��o que reinava entre ambos.
� N�o fiz nada batota e, se continuas a acusar-me, quan
do for czar mando cortar-te a cabe�a.
� Acho que isso j� n�o. se faz, pois n�o? - respondeu
Danina, voltando-se depois para Nikolai.
� Se eu quiser, fa�o - anunciou Alexei, maravilhado
com a possibilidade. - E talvez mande tamb�m cortar-te os
p�s, para que n�o possas mais dan�ar, e as m�os, para que
nunca mais jogues �s cartas.
� De qualquer maneira, se me decapitares, acho que n�o
poderei fazer nenhuma dessas coisas. A decapita��o resolveria
logo o problema - disse Danina, sorrindo.
� Por via das d�vidas, mando cortar-te o resto! -
A ideia parecia-lhe fant�stica. Depois, de repente, olhou para
ela com interesse e perguntou-lhe: - Posso ir um dia a Sam-
petersburgo ver-te dan�ar? Gostaria muito.
� Tamb�m eu - respondeu Danina, enternecida.
� Mas s� quero que regresses daqui a muito tempo. -
E depois lembrou-se. - A minha m�e pediu-me que te per
guntasse se j� te sentes suficientemente bem para vires jantar
connosco - despejou de uma s� vez e depois voltou-se para
Nikolai. - Pode ser?
* Talvez na pr�xima semana. Ainda � um pouco cedo.
Danina s� ali estava h� duas semanas e ainda n�o parecia
muito forte.
* N�o trouxe nada para usar - lamentou ela. -
� Podes ir de camisa de noite - disse Alexei pronta
mente. - De certeza que ningu�m reparar�.
� Que vergonha! - exclamou Danina, rindo da ideia,
embora, na verdade, n�o tivesse nenhum vestido que se ade
quasse a um jantar com a fam�lia imperial.
� Tenho a certeza de que uma das minhas irm�s poder�
emprestar-te qualquer coisa - ofereceu Alexei, educadamen
te, j� que a gr�-duquesa Olga tinha mais ou menos a mesma
estatura de Danina
� Tamb�m l� estar�? - perguntou Danina a Nikolai.
Sentia-se t�o bem ao seu lado, que seria mais f�cil se ele tam
b�m estivesse presente. Jantar com a fam�lia imperial era ainda
bastante intimidante.
� E prov�vel - respondeu. - Ainda n�o ouvi nada so
bre o assunto, mas, se estiver de servi�o nessa noite, l� estarei.
Nikolai sabia que, mesmo que n�o tivessem planeado inclu�-lo, poderia fazer uns ajustes na escala de turnos de modo a que estivesse de servi�o naquela noite. Ambos os m�dicos eram bastantes flex�veis em termos de hor�rio, e o seu colega tinha mais mot
ivos para ir para casa � noite do que ele.
Nikolai levou por fim Alexei'de volta ao pal�cio e Danina deitou-se para dormir um pouco. Quando acordou, ficou surpreendida por ver o m�dico de novo ali e, ainda por cima, de sobrancelhas franzidas.
� Passa-se alguma coisa? - perguntou, preocupada. N�o
percebia o que significava a express�o nos seus olhos e ele
tamb�m n�o sabia bem como dizer-lhe.
� Queria apenas ver como estava. Temia que a Danina
tivesse andado demasiado esta tarde, tendo em conta que foi a
primeira vez que saiu.
� Estou bem - garantiu, sentando-se na cama e olhan
do para ele. Estava ansiosa por come�ar a fazer exerc�cio, mas
sabia que ainda n�o podia e isso era muito frustrante. Interro
gava-se sobre quanto tempo demoraria at� que pudesse reco
me�ar a dan�ar. Receava que os seus m�sculos e ligamentos
tivessem esquecido que era uma bailarina. - Dormi duas ho
ras. Foi divertido jogar �s cartas com o Alexei.
� A prop�sito, ele faz mesmo batota. Consegue ganhar-
-me sempre - disse o m�dico com um sorriso largo.-
A Danina bem o encostou contra a parede, e ele adorou. Falou todo o caminho em decapit�-la e de como isso seria sangrento e o quanto iria adorar.
� N�o sei se isso ser� um comportamento muito impe
rial - sorriu Danina ironicamente, gostando de ver Nikolai
de novo e interrogando-se se ia a caminho do pal�cio para
jantar. Naquela noite era a sua vez de ficar de servi�o.
� Tentarei vir ver como se sente depois do jantar, mas
talvez j� seja tarde e, para al�m disso, acho que se sentir� can
sada por causa do passeio de hoje.
A enfermeira trouxe-lhe o tabuleiro com o jantar. Danina estava a recuperar muito bem. Recebera nessa tarde unia carta de Madame Markova que lhe dizia para n�o ter pressa em regressar. Ainda assim, Danina sentia-se culpada por n�o dan�ar.
Madame Markova contara-lhe todas as novidades e dissera-lhe que uma das bailarinas tamb�m apanhara gripe, embora, felizmente, n�o fosse grave. Estivera doente durante dois dias e nunca tivera febre. Fora bem mais afortunada do que Danina.
O m�dico deteve-se ali durante mais algum tempo � conversa e depois, com alguma relut�ncia, partiu para jantar no pal�cio. Danina ficou sentada na cama a beber o seu ch� e a pensar nele. Era um homem am�vel, com um bom cora��o e ela sentia-se grata pe
la sua amizade. Se n�o fosse ele, nem sequer estaria ali, na casa de h�spedes do czar, rodeada de luxo e mimada por todos. Era extraordin�rio pensar como tinham sido carinhosos e a sorte que tivera em ter sobrevivido e vindo para ali.
Nikolai n�o voltou para a ver naquela noite e Danina presumiu que o jantar terminara muito tarde ou que Alexei n�o estivesse bem ou que ele tivera que dar aten��o � fam�lia para a qual trabalhava t�o diligentemente. Ficou na cama a ler um dos livros q
ue o m�dico lhe emprestara e permaneceu acordada at� tarde para o terminar. Na manh� seguinte, acabara ela de se vestir, Nikolai passou pela casa de h�spedes para ver como se sentia a sua doente.
* Dormiu bem? - perguntou, sol�cito. Danina sorriu,
disse que sim e devolveu-lhe o livro, declarando que gostara
muito. Satisfeito, ele entregou-lhe mais tr�s.
� A czarina falou sobre si a noite passada. Quer fazer
uma pequena festa em sua honra, apenas com alguns amigos
de Sampetersburgo, nada de muito cansativo. Acha que j� se
sente com for�as para tal? - perguntou, parecendo preo
cupado. Advertira a czarina de que talvez fosse ainda cedo de
mais.
� Talvez daqui a uns dias... O que acha?
� Acho que est� a fazer excelentes progressos. S� n�o
quero que se canse. Eu pr�prio a levarei e, assim que se sentir
fatigada, trago-a de volta.
� Obrigada, Nikolai - disse ternamente.
Depois foram dar um pequeno passeio pelo jardim. Estava frio e o vento soprava mais forte do que no dia anterior, por isso, trouxe-a de volta para dentro dali a poucos minutos. Nikolai segurava-lhe ainda a m�o quando entraram, mas nenhum deles parecia
dar-se conta disso. As faces de Danina estavam bem rosadas e os olhos brilhavam.
Parecia bem mais saud�vel, embora estivesse ainda longe de poder regressar ao ballet. Come�ara a exercitar-se meia hora por dia com o consentimento do m�dico; no entanto, na opini�o deste, apenas poderia voltar a dan�ar em Abril. Teria de estar comple
tamente curada e bem forte antes de sequer come�ar a pensar nisso. Tinha ainda longos meses de recupera��o � sua frente, todavia, nem um nem o outro achava a ideia desencorajante. Danina sentia saudades das pessoas do ballet, que eram no fundo a sua f
am�lia, mas, em poucas semanas, come�ara a sentir-se em casa ali. E agora o jantar que a czarina queria organizar intrigava-a.
Nikolai almo�ou com ela naquele dia, como fazia habitualmente, e partiu pouco tempo depois para tratar dos seus afazeres no pal�cio, regressando no final da tarde e mais uma vez depois de jantar. Era uma rotina com a qual ambos se sentiam bem.
No dia seguinte, Nikolai tinha j� dado permiss�o � czarina para organizar o jantar em honra de Danina. Apenas os amigos mais �ntimos seriam convidados, bem como alguns familiares e, claro, as crian�as. O czar estava mais uma vez na frente de batalha c
om as suas tropas, por isso, n�o iria estar presente.
Na semana seguinte, as gr�-duquesas mandaram a Danina alguns vestidos para ela experimentar. Dois deles ficavam-lhe muito bem. Era um pouco mais magra do que as gr�-duquesas, especialmente desde que adoecera, mas, fazendo uns ajustes, o preferido de D
anina servia-lhe na perfei��o. Era um vestido de veludo azul debruado a pele de marta que lhe real�ava muito bem as formas. Tinha tamb�m uma capa, um chap�u e um regalo a condizer, o que permitiria que percorresse a pequena dist�ncia entre a casa de h
�spedes e o pal�cio sem apanhar frio.
Na noite do jantar, Danina estava t�o entusiasmada que mal conseguia conter-se. Deixara-se ficar na cama toda a tarde para estar bem descansada. Nikolai veio busc�-la ainda ela estava a acabar de se arranjar. Enquanto esperava, folheou uni dos livros
de poesia que emprestara a Danina e serviu-se de uma ch�vena de ch� do samovar de prata que se encontrava em cima da mesa. Quando sentiu a porta do quarto a abrir-se, olhou para cima, segurando ainda a ch�vena, e sorriu maravilhado. Danina estava desl
umbrante e os seus sedosos cabelos escuros eram da mesma cor da pele que debruava o vestido.
� Est� magn�fica - declarou com um olhar de admira
��o. - Receio que v� fazer sombra a toda a gente, incluindo
as gr�-duquesas e a czarina.
� Duvido, mas � muito am�vel da sua parte - agrade
ceu com uma v�nia, como faria em palco, por�m, quando se
ergueu sentiu como as suas pernas estavam ainda fracas. N�o
havia palavras que descrevessem o que Nikolai sentira quando
olhou para ela. N�o podia imaginar por que motivo aquela
criatura t�o delicada, t�o elegante, graciosa e encantadora sur
gira na sua vida. Ficara t�o deslumbrado pela sua beleza como
pelo seu car�cter e energia. Nunca conhecera ningu�m assim.
� Est� realmente linda, minha querida. Vamos? - per
guntou. Ela acenou com a cabe�a e ele ajudou-a a p�r a capa
de pele enquanto Danina comentava mais uma vez a genero
sidade das gr�-duquesas.
Percorreram a pequena dist�ncia at� ao pal�cio no tren� de Nikolai, que n�o se esqueceu de trazer um cobertor bem espesso para a tapar. A noite estava fria, mas o c�u mostrava-
* se limpo e muito estrelado. Cada uma das estrelas parecia reflectir-se nas velas que bruxuleavam nas janelas do pal�cio. Levou-a depressa para dentro e conduziu-a a um grande sal�o todo decorado a seda e brocado, m�rmore, malaquite e pe�as de arte.
Era, ainda assim, uma divis�o menos formal que muitas outras e, com o fogo a arder na lareira, as velas e a calorosa recep��o que recebeu, Danina nunca se sentira t�o bem e t�o feliz. Estar ali com a fam�lia imperial e Nikolai era como um sonho.
Alexei n�o a largou durante todo o jantar. Ficou sentado a um dos lados, como havia pedido, e Nikolai no outro, para que pudesse observar o seu "estado de sa�de" de mais perto. Por�m, tudo o que havia para observar naquela noite era a alegria e o praz
er que todos sentiam em conhec�-la. Toda a gente a achava graciosa, bela e encantadora.
Fizeram-lhe perguntas sobre o ballet e ficaram surpreendidos ao ver que estava bem informada sobre muitos outros assuntos. Gra�as a Nikolai, lera e aprendera bastante nas �ltimas semanas. Absorvia novas informa��es muito rapidamente e recordava-se de
tudo o que lhe ensinavam. Ao escut�-la agora, Nikolai sentia-se muito orgulhoso, como se ela fosse sua filha.
Por fim, um pouco depois das onze, quando reparou que Danina come�ara a ficar um pouco p�lida e menos animada, decidiu que era mais sensato lev�-la de volta. Disse qualquer coisa discretamente � czarina e depois informou Danina que era melhor retirar-
se. Fora uma noite muito excitante e, embora tivesse adorado cada minuto, n�o o contrariou. Por mais que detestasse admiti-lo, sentia-se exausta e Nikolai sabia-o. Sorria ainda quando, j� a caminho de casa, recostou a cabe�a para tr�s e admirou as est
relas.
Enquanto a conduzia para dentro, manteve-se muito junto a ela e colocou-lhe o bra�o em redor dos ombros. Danina inclinou a cabe�a contra o seu bra�o, cansada e grata por tudo o que fizera por ela.
* Diverti-me tanto, Nikolai. Obrigado por ter permitido que eu fosse. Toda a gente foi t�o am�vel comigo, foi uma noite maravilhosa. � uma pena que o czar n�o tenha podido estar presente. Toda a gente sentiu a falta dele - comentou.
Depois, sorriu para Nikolai e tornou a repetir: - Foi uma festa inesquec�vel.
* Toda a gente ficou deslumbrada consigo, Danina.
O conde Orlovsky achou-a deveras encantadora.
O conde j� tinha mais de oitenta anos e namoriscara descaradamente Danina toda a noite, todavia, at� a pr�pria esposa se divertira com a situa��o, pois durante os sessenta e cinco anos de casamento fizera o mesmo, e nada mais, com cada mulher bonita q
ue conhecia.
� O Alexei ficou muito triste por n�o ter jogado �s car
tas com ele - lembrou enquanto tirava a capa. Era uma sen
sa��o estranha regressarem assim a casa juntos e falarem sobre
a festa como se fossem um casal. - N�o joguei �s cartas, pois
n�o queria parecer indelicada com os outros convidados -
explicou.
� Podem jogar �s cartas um outro dia. Talvez amanh�, se
ambos se sentirem bem. Receio que ele v� estar bastante can
sado. E a Danina? - inquiriu, olhando para ela, preocupado.
- Como se sente?
Os seus olhos resplandeciam de emo��o e pareciam mais azuis do que nunca quando lhe respondeu.
* Sinto-me feliz e maravilhosa, como se tivesse tido a
noite mais bonita da minha vida.
Continuou a sorrir para Nikolai enquanto este caminhava na sua direc��o.
* Nunca conheci ningu�m como a Danina - confessou
quando j� se encontravam frente a frente, e naquele momen
to esqueceu por completo quem ela era. N�o era uma prima
ballerina ou sequer a sua doente. Era a amiga, a mulher por
quem se sentia deslumbrado e come�ara a amar, mesmo sem
esperar que tal acontecesse. - � verdadeiramente extraordi
n�ria - murmurou, e depois surpreendeu-a com o que de
clarou em seguida: - Danina, amo-a.
E, sem esperar por uma resposta, inclinou-se para ela, to-mou-a nos bra�os e beijou-a. Danina ficou surpreendida ao perceber como ele era forte e, sem pensar, abra�ou-o com for�a e beijou-o de volta, mas, no instante seguinte, libertou-se dos seus bra
�os e olhou para ele, aterrorizada. O que fora aquilo? O que iriam fazer agora?
� Eu n�o... N�o podemos... N�o sei como isto aconte
ceu - gaguejou, angustiada. As l�grimas come�avam a cor
rer-lhe pelas faces abaixo. Era o primeiro homem que beijara
ou que a beijara a ela. Aos dezanove anos, abrira-lhe uma
porta que sempre se mantivera fechada e, agora, Danina n�o
sabia o que havia de fazer.
� Sei como isto aconteceu, Danina - disse Nikolai,
aparentando estar mais calmo do que na realidade se sentia.
O seu cora��o batia apressadamente ao pensar que podia per
d�-la, pois, com aquele gesto ousado, talvez a tivesse afastado
para sempre. Acontecesse o que acontecesse, n�o poderia per
d�-la. - Apaixonei-me por si no primeiro instante em que a
vi. Nunca pensei que sobrevivesse �quela noite, mas a sua
imagem perseguia-me. Era uma ave ferida que eu achava que
n�o seria poupada. N�o fazia ideia de quem era, n�o sabia na
da sobre si at� agora, at� ter vindo para aqui e termos conver
sado todos os dias. Agora, amo tudo em si, o seu cora��o
bondoso, a sua vivacidade... Danina, n�o posso viver sem si.
- Era ao mesmo tempo uma confiss�o de amor e um pedido
de clem�ncia, e ela sabia-o.
� Mas o Nikolai � casado - contrap�s com um olhar
triste. - N�o podemos fazer isto, temos de esquecer o que
aconteceu.
� O meu casamento n�o passa de uma formalidade. De
ve ter percebido isso do pouco que lhe contei. Nunca fiz
nada assim na vida, juro. � a primeira mulher que amo verda
deiramente. N�o sei se eu e a Marie alguma vez nos am�mos,
pelo menos desta forma. Hoje em dia, ent�o, apenas nos tole
ramos. Danina, juro-lhe, ela odeia-me.
� Talvez esteja enganado e n�o compreenda a fundo os
sentimentos dela ou a infelicidade que sente por viver na
R�ssia. Talvez n�o fosse m� ideia mudarem-se para Ingla
terra.
Danina andava de um lado para o outro, agitada e perturbada e, mais do que nunca, Nikolai temia perd�-la. Depois, voltou-se para ele e proferiu as palavras que ele mais receava. N�o declarou que n�o o amava, pois assim que Danina o beijara percebera q
ue o sentimento era rec�proco, embora ela n�o o admitisse.
� Tenho de regressar a Sampetersburgo. � imperativo
que v�. N�o posso ficar aqui.
� N�o pode, n�o est� ainda suficientemente forte para
viver naquelas casernas g�lidas ou voltar a dan�ar. A sua re
cupera��o ainda demorar� meses. Vai ficar doente de novo e
isso ser� desastroso para si - argumentou com as l�grimas a
correrem-lhe pelas faces. - Peco-lhe, n�o se v� embora -
implorou, n�o suportando a ideia de se afastar dela.
� N�o posso estar perto de si... Ambos sabemos que os
nossos cora��es ocultam um terr�vel segredo, um pecado
monstruoso pelo qual seremos castigados.
� H� quinze anos que suporto a minha penit�ncia. N�o
pode condenar-me a essa vida para sempre.
� O que quer dizer com isso? - inquiriu, abrindo os
olhos de espanto e cobrindo a boca com a m�o, como que
horrorizada com o que ele lhe propunha.
� Que farei qualquer coisa por si. Deixo a minha mu
lher, a minha fam�lia... Danina, farei qualquer coisa para ficar
consigo.
� N�o pode fazer isso ou sequer afirm�-lo. N�o suporto
pensar que faria uma coisa t�o horr�vel... Nikolai, pense nos
seus filhos!
� Pensei neles um milh�o de vezes todos os dias desde
que a conheci, mas j� n�o s�o crian�as. T�m doze e catorze
anos e em pouco tempo ser�o uns homens. N�o posso viver
com uma mulher que n�o suporto para o resto da minha vida
por causa deles... Ou renegar a �nica mulher que alguma vez
amei. Danina, n�o se afaste de mini, por favor... Conversare
mos melhor sobre isto. Prometo que n�o farei nada que n�o
queira.
� Ent�o, n�o dever� voltar a falar sobre o que aconteceu.
Nunca mais. Temos ambos de esquecer o que me disse. N�o
posso ser mais nada para si do que j� sou. A sua vida � aqui,
com o czar e a sua fam�lia. A minha � no ballet. N�o me pos
so entregar a si. N�o tenho nada para lhe oferecer. A minha
vida pertence ao ballet, at� ser velha de mais para dan�ar e en
t�o, entreg�-la-ei �s crian�as, como Madame Markova.
� Est� a dizer-me que tem de ser freira para ser bailarina?
�- perguntou. Era a primeira vez que ouvia tal ideia, embora
soubesse, pelas longas conversas que haviam tido, que Danina nunca antes estivera apaixonada.
� Madame Markova afirma que uma vida impura, uma
vida que envolva homens, � uma fonte de distrac��es. N�o se
pode ser uma grande bailarina e, ao mesmo tempo, uma me
retriz - declarou Danina rudemente, surpreendendo Ni-
kolai.
� N�o sugeri que se tornasse uma meretriz, Danina.
O que quis dizer foi que a amava e que quero casar consigo,
se a Marie aceitar o div�rcio.
� E eu estou a dizer-lhe que n�o posso. Perten�o ao bal-
let, � a minha vida, � tudo o que conhe�o, nasci para dan�ar.
Para al�m disso, n�o deixarei que destrua a sua vida por mini.
� Nasceu para amar e para ser amada, para estar cercada
por um marido e filhos que a adorem, e n�o para dan�ar em
salas cheias de correntes de ar e p�r em risco a sua sa�de at�
morrer ou at� estar demasiado velha e desgastada para servir
para mais alguma coisa. Merece mais do que isso e quero ser
eu a dar-lho.
� Mas n�o pode - protestou Danina com uma voz an
gustiada. - E se a Marie n�o concordar com o div�rcio?
� Ela vai adorar poder regressar a Inglaterra. O div�rcio
� um pre�o que n�o se importar� de pagar para reconquistar a
sua liberdade.
� E o esc�ndalo? O czar j� n�o permitir� que se aproxi
me da fam�lia. Tornar-se-ia um proscrito. N�o permitirei que
o fa�a. Tem de me esquecer - rematou em pranto.
� Esquecerei tudo o que dissemos esta noite - proferiu
a custo -, se prometer ficar aqui. N�o falarei mais no assun
to. Tem a minha palavra de honra.
� Est� bem - concordou Danina.
Suspirou e voltou-se de costas. Parecia desesperadamente infeliz, mas n�o tanto quanto ele. Nikolai desejava abra��-la, mas sabia que n�o podia.
* Vou pensar nisso - conseguiu ainda dizer, por�m n�o
se voltou para olhar para ele. N�o podia, pois continuava a
chorar. - Agora, � melhor ir.
Ele n�o lhe viu o rosto, apenas as costas muito direitas e o cabelo brilhante que lhe ca�a em cascata pelos ombros. Ansiava toc�-los, abra��-la.
* Boa noite, Danina - despediu-se, com uma voz que espelhava a tristeza que sentia. Um instante depois, ela escutou a porta fechar-se e voltou-se, solu�ando.
Danina ainda n�o acreditava no que tinham feito e no que ele dissera; no entanto, o pior de tudo, era saber que tamb�m o amava. Para al�m disso, era um homem casado e ela n�o podia deixar que destru�sse a sua vida, perdesse o seu trabalho ou os filhos
por causa dela. Amava-o demasiado para permitir tal coisa. Tamb�m tinha as suas obriga��es para com o ballet. Lembrava-se bem dos constantes e terr�veis avisos de Madame Markova. A sua mentora sempre lhe dissera que era diferente, que n�o precisava d
e um homem, que deveria manter-se pura e viver para a sua arte; o ballet deveria vir primeiro que qualquer outra coisa na sua vida. Assim fora at� ent�o; por�m, com Nikolai percebera que as coisas poderiam ser diferentes. Uma vida com ele significaria
a felicidade eterna, mas preferia renunciar a ela, se, para a ter, ele tivesse de abandonar tudo o que mais amava.
Sabia que deveria regressar a Sampetersburgo, mas n�o suportava deix�-lo, nem a ideia de n�o o ver todos os dias. O mesmo acontecia com ele. Agora, tudo o que tinham a fazer era fingir que nada acontecera, o que n�o seria f�cil, por�m Danina estava de
terminada em consegui-lo. Enquanto se encaminhava para o quarto e despia o vestido, sentiu os joelhos a tremer violentamente e teve de sentar-se. Pensou nos l�bios dele junto aos seus e recordou o que sentira quando este a beijara, mas, independenteme
nte do que sentia, sabia que nunca poderiam ficar juntos. No entanto, se permanecesse ali, poderiam pelo menos ver-se. Ao espelho, olhando o seu pr�prio reflexo, Danina interrogou-se mais uma vez como as coisas haviam chegado �quele ponto. Fazer de co
nta que nada acontecera iria ser uma tarefa bem dif�cil.
CAPITULO 4.
Nikolai n�o veio v�-la nos dois dias que se seguiram e nem sequer compareceu no pal�cio. Finalmente, enviou-lhe dois livros com um bilhete onde explicava que apanhara uma constipa��o e que n�o quisera contagi�-la. Afirmava ainda que iria v�-la assim q
ue pudesse. Danina n�o sabia se isso seria verdade ou n�o, mas, ainda assim, a sua aus�ncia era conveniente, dando aos dois tempo para se controlarem e tentarem esquecer o que acontecera.
S� que, sem as visitas de Nikolai, deambulava pela casa, tentava em v�o dormir e, no fim do primeiro dia, tinha uma terr�vel dor de cabe�a e recusou tomar qualquer coisa que a aliviasse. As enfermeiras acharam-na estranhamente irrit�vel e rabugenta e
ela desculpou-se mil vezes pelo seu mau humor, culpando a enxaqueca. No fim do segundo dia estava desanimada, perguntando-se se ele n�o estaria zangado, se se arrependera de tudo o que fizera e dissera, se nunca mais o veria. Suportava enterrar o segr
edo que partilhavam no fundo do seu cora��o, mas, compreendia agora, o que n�o aguentava era n�o voltar a v�-lo.
Quando ele apareceu por fim, Danina encontrava-se na pequena sala de estar a ver a neve cair no jardim e a pensar nele e n�o o sentiu entrar. Quando se voltou e o viu ali, correu sem pensar para os seus bra�os, dizendo-lhe que sentira muito a sua falt
a. Ao princ�pio, Nikolai n�o entendeu o que queria dizer. N�o percebia se ela mudara de ideias e queria aceitar a sua proposta ou se aquelas palavras apenas significavam que tivera saudades dele.
* Tamb�m tive saudades tuas - proferiu numa voz ainda enrouquecida. Danina percebeu que a sua desculpa para a n�o ter vindo ver fora sincera e ficou aliviada. - Muitas - reafirmou, sorrindo. Desta vez n�o cometeu a imprud�ncia de a beijar. Resolvera a
ceitar a sua sugest�o e estava determinado a n�o pisar de novo o risco, a menos que ela tomasse a iniciativa de o fazer. Danina tamb�m n�o fez men��o de o beijar, dirigindo-se directamente ao samovar para lhe servir
uma ch�vena de ch�. A m�o tremia-lhe ao estender-lha, mas estava radiante.
� Estou t�o contente por teres estado realmente doen
te... N�o era bem isto que queria dizer... - corrigiu, rindo
pela primeira vez em dois dias. - Temia que n�o quisesses
voltar a ver-me.
� Sabes que isso n�o � verdade - confessou com um
olhar que lhe dizia tudo o que desejava ouvir. Estava muito
contente por v�-lo. - N�o queria que ficasses doente depois
de tudo por que passaste. J� me sinto bem melhor.
� Fico contente por sab�-lo - disse Danina, um pouco
constrangida ali perto dele, mas continuando a olh�-lo inten
samente. Nikolai parecia-lhe ainda mais formoso, alto e forte.
No fundo do seu cora��o, sabia que ele agora lhe pertencia, o
que o tornava ainda mais perfeito.
� Estiveste muito doente? - perguntou solicitamente.
Estava deslumbrante no seu vestido de l� cor-de-rosa que a
fazia parecer ainda mais nova. Na noite do jantar no pal�cio,
o vestido de veludo azul conferira-lhe uma apar�ncia mais
madura. Agora parecia uma rapariguinha e Nikolai teve von
tade de a beijar.
� N�o estive t�o doente como tu, gra�as a Deus. J� estou
bem.
� N�o devias andar na rua com esta neve - admoestou.
� Queria ver como estava o Alexei - explicou ele, em
bora os seus olhos tamb�m dissessem outra coisa. Quisera
principalmente v�-la a ela.
� Ficas para o almo�o? - perguntou Danina educada
mente. Ele respondeu que sim com um aceno de cabe�a e
sorriu satisfeito com o convite.
� Gostava muito - disse ent�o, e ambos pensaram que
podiam passar algum tempo juntos, como tinham feito at�
�quele momento, sem revelar o seu segredo mesmo um ao
outro. Todavia, Danina come�ara j� a interrogar-se sobre o
que aconteceria quando regressasse a Sampetersburgo dali a
um m�s ou dois. Esquecer-se-iam um do outro ou ele iria vi
sit�-la? O tempo e o amor que partilhavam tornar-se-iam
apenas uma lembran�a agrad�vel? A ideia de partir era j� pe
nosa.
Conversaram at� quase ao fim da tarde. Danina devolveu-Ihe alguns dos livros e ele prometeu vir v�-la de novo quando sa�sse do pal�cio. Quando partiu, tudo parecia ter voltado ao normal. N�o regressou naquela noite, mas enviou-lhe um bilhete. Alexei n
�o estava bem e Nikolai e o Dr. Botkin iam passar a noite no pal�cio. A hemofilia de que Alexei sofria fazia com que necessitasse de cuidados constantes e Nikolai achara que n�o era sensato deix�-lo naquela noite. Danina compreendeu e enroscou-se na c
ama com um dos livros que ele lhe trouxera, aliviada por o ter visto de manh�. A sua aus�ncia depois do que se passara na noite do jantar fora bastante penosa. A dor de cabe�a havia desaparecido no momento em que o vira.
Foi novamente um al�vio v�-lo reaparecer na manh� seguinte para tomar o pequeno-almo�o, mas n�o p�de deixar de reparar que, de repente, havia algo de mais intenso entre ambos. Embora tivessem concordado n�o voltar a discutir o que sentiam um pelo outr
o, era �bvio que as visitas de Nikolai eram tudo para si e que este ficava ansioso quando n�o estava perto dela. No entanto, estavam ainda convencidos de que conseguiriam controlar a chama que ardia entre eles. Danina mostrava-se decidida a conter-se
e nunca mais falar sobre isso at� que morresse, mas Nikolai duvidava cada vez mais que o conseguisse, embora soubesse que teria de faz�-lo ou arriscar-se-ia a perder Danina para sempre.
Naquele dia, Nikolai falou longamente sobre Alexei e explicou-lhe em pormenor a natureza da sua doen�a. Tal levou-os a uma discuss�o sobre o prazer de ter filhos. Nikolai disse-lhe que n�o deveria privar-se desse prazer e que tinha a certeza de que se
ria uma m�e extremosa. Danina apenas abanou a cabe�a e recordou-lhe o seu compromisso para com o ballet. Ele respondeu-lhe mais uma vez que considerava o seu zelo pouco razo�vel e pouco saud�vel.
� Madame Markova nunca me perdoaria se eu deixasse
o ballet - explicou. - Dedicou-nos toda a sua vida e conti
nuar� a faz�-lo. Espera o mesmo de mim.
� Porqu� de ti mais do que dos outros? - perguntou de
forma contundente. Ela respondeu com um olhar traquinas:
� Porque sou a melhor bailarina da companhia.
� E tamb�m a mais modesta - brincou. - Tens raz�o,
�s mais dotada, mas, ainda assim, isso n�o � motivo para que
desistas da tua vida.
� O ballet � mais do que dan�ar, Nikolai. � uma forma
de vida, um sentimento, uma parte da nossa alma, uma reli
gi�o.
� Es doida, Danina Petroskova, mas eu amo-te - rema
tou. As palavras escaparam-se-lhe sem querer. Olhou na di
rec��o de Danina, aterrorizado; por�m, ela nada disse. Sabia
que fora um acidente, por isso decidira ignor�-lo.
Como, ap�s um nev�o de dois dias, parara de nevar, decidiram passear pelo jardim. Uns instantes depois, Danina come�ou a bombarde�-lo com bolas de neve. Nikolai adorava estar com ela. O seu esp�rito infantil e a imensa dedica��o �quilo em que acredita
va tornavam-na uma jovem extraordin�ria. Quando a deixou naquela tarde depois de ter passado a noite de servi�o no pal�cio, ambos se sentiam novamente � vontade um com o outro. A nuvem que se abatera sobre eles nos �ltimos dias parecia ter-se dissipad
o e ambos se sentiam confiantes de que conseguiriam viver de acordo com as restri��es impostas por Danina. No final de mais uma semana, tudo parecia ter voltado ao normal.
Nikolai vinha visit�-la duas vezes por dia ou mais, sempre que podia. Almo�avam ou jantavam juntos frequentemente e, por vezes, chegava ainda a tempo de tomar o pequeno-almo-�o com ela.
O tempo foi impiedoso naquele m�s, o que os for�ou a estar sempre dentro de casa; por�m, no final de Janeiro, o tempo come�ou a melhorar, tal como a sa�de de Danina. A sua convalescen�a progredia muito bem, mas o seu regresso ao ballet estava ainda lo
nge e Danina tamb�m n�o o for�ava. Quando viera, pedira a Madame Markova que apenas a deixasse ficar um m�s, embora o m�dico tivesse recomendado que ficasse at� Mar�o ou Abril. Quando voltou a escrever a Madame Markova, disse-lhe que concordara em fic
ar at� o m�dico achar que estava curada. Era exactamente o que precisava e Madame Markova ficou aliviada ao sab�-lo.
As gr�-duquesas vinham tomar ch� com Danina sempre que n�o estavam ocupadas a tratar dos feridos de guerra ou a
estudar. Alexei tamb�m adorava vir jogar �s cartas com ela. Danina parecia um membro da fam�lia e era tratada como tal. Foi Alexei quem lhe anunciou certo dia que queria que ela fosse ao baile que iria ser organizado pelo czar e pela czarina no dia um
de Fevereiro. Era o primeiro que davam em largos meses. A czarina entristecera-se ao ver que as filhas h� muito n�o se divertiam, sempre ocupadas com as suas fun��es no hospital, e convencera o marido de que um baile alegraria toda a gente. Depois de
convidar Danina, Alexei informou a m�e de que gostaria que ela fosse convidada.
A czarina afirmou que nada lhe daria mais prazer e, sem mesmo esperar por uma resposta, enviou-lhe, como anteriormente para o jantar informal, uma s�rie de vestidos. Desta vez, eram ainda mais deslumbrantes e Danina ficou maravilhada.
Havia vestidos de seda, de cetim, de veludo e brocado, dignos de uma rainha ou de uma czarina. Danina quase se sentia constrangida de os usar. Por fim, escolheu um de cetim branco, com um corpete de brocado entretecido de fios de ouro e bem justo � ci
ntura. Parecia, como Alexei comentara quando ela o experimentou, uma princesa de um conto de fadas. Nikolai ainda n�o o tinha visto, mas j� ouvira comentar que o vestido era maravilhoso. A capa de cetim branco que fazia conjunto com o vestido era reve
stida com o mesmo brocado do corpete e guarnecida a arminho.
O vestido era, de facto, deslumbrante e, com os seus cabelos escuros, Danina estava mais bela que nunca. O vestido parecia-lhe o mais belo que jamais vira ou alguma vez sonhara usar. Nikolai ficou contente por saber que ela aceitara o convite da czari
na. Tal como anteriormente, advertiu-a de que n�o se cansasse e que regressasse a casa assim que se sentisse fatigada, mas n�o tinha quaisquer objec��es a que comparecesse ao baile e ofereceu-se mais uma vez para a acompanhar.
O baile era um evento raro nos dias que corriam, pois a fam�lia imperial cancelara todos os acontecimentos sociais formais devido � guerra. Poderia passar-se muito tempo at� que se organizasse outro. O czar regressaria da frente expressamente para a o
casi�o e toda a gente se alegrava com o facto de ele estar presente.
� A tua mulher n�o vir� nem a este baile? - perguntou
Danina cautelosamente a Nikolai no dia anterior ao baile. Ele
abanou a cabe�a com um ar aborrecido. No passado, teria di
to a Marie que era muito indelicado da sua parte recusar o
convite, contudo, desta vez nem sequer se importava, por ra
z�es �bvias para Danina. J� prometera a si mesma que dan�a
ria com ele uma ou duas vezes, se a convidasse, mas que isso
n�o significaria nada. A revela��o que lhe fora feita h� duas
semanas parecia ter passado para segundo plano. Eram mais
uma vez apenas amigos e nada mais comprometedor.
� Claro que n�o - respondeu Nikolai. - Ela detesta
bailes e qualquer coisa que n�o envolva cavalos. - Depois,
mudou de assunto e sorriu ao revelar-lhe que Alexei confes
sara que Danina estava "muito bem" no vestido que a m�e lhe
emprestara. S� que "muito bem" n�o preparara de forma al
guma Nikolai para o que veria quando Danina emergiu do
quarto com o vestido de cetim branco e brocado debruado a
arminho. Parecia uma jovem rainha com o cabelo preso em
cima, formando uma coroa de pequenos carac�is, e os brin
cos de p�rola que eram a �nica coisa que a m�e lhe deixara.
Danina estava contente por se ter lembrado de os trazer con
sigo.
Nikolai ficou sem f�lego quando a viu e, durante um momento, n�o foi capaz de pronunciar uma �nica palavra. Tinha os olhos marejados de l�grimas e s� rezava para que Danina n�o reparasse.
� Estou bem? - perguntou nervosamente, como faria a
um dos irm�os.
� Nem sei o que dizer. Nunca vi ningu�m t�o belo co
mo tu.
� N�o sejas pateta - repreendeu, sorrindo -, mas obri
gada. O vestido � maravilhoso, n�o achas?
� Em ti, sim.
A cintura dela era do tamanho da de uma crian�a e o cor-pete revelava um pouco do seio, sem ser vulgar ou ofensivo. De fraque, Nikolai era o acompanhante perfeito e, de bra�o dado, encaminharam-se para o Pal�cio de Catarina. O pal�cio ficava tamb�m em
Tsarskoie Selo. Era bem mais grandioso e ornamentado que o Pal�cio de Alexandre, onde a fam�lia im-
perial residia, e fora remodelado por Catarina, a Grande. O projecto original era da autoria de Rostrelli. As bel�ssimas c�pulas de ouro tornavam-no extremamente formal e cerimonioso. A czarina preferia usar o Pal�cio de Catarina apenas para eventos o
ficiais, embora actualmente parte dele estivesse a ser utilizado para cuidar dos soldados feridos que voltavam da frente.
Mesmo entre os magn�ficos vestidos, j�ias e membros de fam�lias reais, Danina causou grande sensa��o. Toda a gente queria saber quem era, de onde vinha. V�rios jovens nobres estavam convencidos de que era uma princesa. O seu porte r�gio e a forma grac
iosa como se movia atra�am a aten��o de todos. Assim que viu a czarina, agradeceu-lhe discretamente o vestido que escolhera.
* Fique com ele, minha querida. Nenhuma de n�s o
conseguir� usar da mesma forma que a Danina.
Percebeu de imediato que a czarina estava a ser sincera, ficando ainda mais sensibilizada com a sua cont�nua generosidade e bondade.
O jantar para quatrocentos convidados foi um sucesso. Ap�s o jantar, os cavalheiros retiraram-se durante um curto espa�o de tempo para a famosa Sala de �mbar, juntando-se novamente aos restantes convidados na Sala do Trono onde decorreu o baile. Foi u
ma noite magn�fica. O entusiasmo e energia de Danina pareciam intermin�veis. Estava emocionada s� de estar ali. Era uma noite que jamais esqueceria.
Quando Nikolai a convidou para dan�ar sentiu o cora��o agitar-se, mas nem por um instante permitiu que se recordasse do que ele lhe confessara h� duas semanas atr�s. Esse cap�tulo da vida deles estava j� encerrado. Tudo o que agora existia entre ambos
, dizia Danina para consigo mesma, era camaradagem e amizade. No entanto, o olhar dele enquanto dan�avam dizia algo bem diferente. Nikolai sentia-se extremamente orgulhoso dela e o modo como a segurava expressava a Danina tudo o que n�o lhe podia dize
r. At� o czar comentou qualquer coisa com a esposa enquanto dan�avam.
� Parece-me que o Nikolai est� apaixonado pela nossa
h�spede - disse em jeito de observa��o.
� N�o creio, meu querido - negou a czarina. Vira-os
juntos em v�rias ocasi�es e nunca reparara em nada de impr�prio na amizade ou no comportamento deles.
� � uma pena que esteja casado com aquela desagrad�vel
inglesa - disse o czar, e a czarina respondeu-lhe com um
sorriso. Tamb�m n�o gostava de Marie.
� Acho que o Nikolai est� apenas preocupado com o
bem-estar da Danina - declarou, totalmente convencida do
que afirmava.
� Est� lind�ssima naquele vestido. � um dos teus?
A czarina trazia um espectacular vestido de veludo vermelho ornamentado com um conjunto de j�ias de rubis pertencentes � m�e do czar. Era uma mulher muito bela e o czar amava-a muito. Ambos estavam felizes por ele se encontrar de novo em casa e podere
m esquecer a guerra por alguns momentos.
� Na verdade, o vestido � da Olga, mas assenta muito
bem � Danina. Disse-lhe para ficar com ele.
� Ela � muito bonita - confessou e depois sorriu para a
mulher. - Mas tamb�m tu, meu amor. Os rubis da minha
m�e ficam-te muito bem.
Por fim, pararam de dan�ar para circularem entre os convidados. A festa estava a ser um sucesso. Nikolai e Danina dan�aram durante metade da noite. Era dif�cil acreditar que estivera t�o doente e, nos bra�os dele, n�o se sentia nem um pouco cansada. J
� passava da meia-noite quando ele finalmente insistiu para que ela se sentasse um pouco a fim de descansar antes que ficasse completamente exausta. Danina estava a divertir-se tanto que n�o queria parar de dan�ar nem por um minuto.
Nikolai trouxe-lhe uma ta�a de champanhe. As faces de Danina estavam coradas, os olhos mais azuis do que nunca e o peito atraente e macio. Nikolai teve de se obrigar a desviar o olhar durante um momento; por�m, quando olhou novamente para ela, descobr
iu que n�o conseguia resistir-lhe e, instantes depois, estavam a dan�ar outra vez e ela parecia-lhe mais feliz e bela que nunca.
* Sinto-me um fracasso como guardi�o da tua sa�de -
confessou Nikolai enquanto dan�avam mais uma valsa. A �ni
ca vez que dan�ara com a mulher fora no dia do casamento.
* Deveria obrigar-te a ir para casa descansar, mas n�o consigo. Receio que v�s ficar exausta ao ponto de te sentires doente amanh�.
* Ter� valido a pena - argumentou, olhando-o nos
olhos. Nikolai desejou que a noite n�o terminasse nunca.
Passava j� das tr�s horas da manh� quando resolveram partir, contando-se entre os �ltimos convidados a sair da festa. Fora uma noite inesquec�vel. O czar e a czarina agradeceram a presen�a de Danina e, tal como Nikolai, exprimiram o desejo de que n�o
tivesse prejudicado a sua sa�de ao deixar-se ficar at� t�o tarde quando talvez devesse estar a descansar.
* Amanh� fico o dia todo na cama - prometeu, e a
czarina recomendou-lhe que fizesse isso mesmo. Seria uma
pena se adoecesse de novo por causa da festa.
Sentiu-se ainda bem-disposta quando chegaram a casa. A noite estava maravilhosa, o c�u estrelado, o ch�o coberto de neve e Danina n�o deixava de pensar na festa. Tinha dan�ado com v�rias pessoas, mas a maior parte da noite fora passada nos bra�os de N
ikolai, o que muito lhe agradara. Comentava ainda alegremente a festa quando entraram em casa e ele a ajudou a tirar a capa de arminho. Tal como acontecera durante toda a noite, n�o conseguia tirar os olhos dela e deixar de admirar a sua beleza. Era,
sem d�vida, a mulher mais encantadora que estava na festa.
� Queres beber alguma coisa? - perguntou Danina. Es
tava demasiado excitada para ir dormir e n�o queria que a
noite terminasse ainda. Nikolai era da mesma opini�o, por is
so, serviu-se de um pouco de brande e foram sentar-se frente
� lareira a conversar sobre a festa. Danina surpreendeu-o sen
tando-se aos seus p�s com o seu magn�fico vestido e recostan
do a cabe�a nos seus joelhos. Pensava no baile e sorria distrai-
damente para a lareira enquanto ele lhe acariciava o cabelo e
saboreava o prazer de a ter ali encostada a si.
� Nunca esquecerei esta noite - asseverou Danina, feliz
por estar ali com ele, n�o desejando mais nada.
� Nem eu - declarou Nikolai, acariciando-lhe o bra�o
com a m�o e pousando-a depois sobre o seu ombro. Danina
parecia-lhe t�o delicada, t�o fr�gil. - Sinto-me t�o feliz
quando estou contigo - confessou, temendo ir novamente
longe de mais e ofend�-la. Era t�o dif�cil reprimir o que sentia.
� Tamb�m eu, Nikolai. Somos muito afortunados por
nos termos encontrado - disse, n�o tencionando provoc�-lo,
mas antes celebrar a amizade que os unia. S� que as palavras
dela tornavam a situa��o ainda mais dif�cil para Nikolai.
� Fazes-me sonhar de novo - afirmou tristemente -
com coisas das quais desisti h� muito. - Aos trinta e nove
anos, sentia que grande parte da sua vida pertencia j� ao pas
sado, um passado de esperan�as perdidas, desilus�es, dissabo
res. Agora, desde que a conhecera, atrevera-se a sonhar de
novo, mas n�o podia concretizar tal sonho ao lado da mulher
que amava. - Adoro estar contigo.
Depois, seritindo-se demasiado longe dela, deixou-se escorregar para o ch�o e ficaram, lado a lado, olhando o lume e pensando nos seus sonhos. Colocou ent�o o bra�o em redor dos ombros dela e disse-lhe:
� N�o quero magoar-te nunca, Danina. Quero que sejas
sempre feliz.
� Sinto-me feliz aqui - disse do fundo do cora��o, em
bora tamb�m fosse feliz no ballet. Na verdade, nunca conhe
cera a infelicidade, apenas longas e �rduas horas de trabalho,
uma severa disciplina e uma grande devo��o pela raz�o da sua
vida, o bailado. A sua vida fora sempre marcada pela paix�o.
Voltou-se para ele e reparou que havia l�grimas nos seus
olhos, como ao princ�pio da noite, quando a vira sair do
quarto. Desta vez via-as claramente. - Est�s triste, Nikolai?
- Sabia que a vida dele n�o era f�cil. Embora preferisse n�o
pensar nisso, sabia que era muito infeliz em casa com uma
mulher que n�o o amava.
� Talvez um pouco, mas feliz por estar aqui contigo.
� Mereces mais do que isso - confessou-lhe, perceben
do que Nikolai exigia muito pouco dela e, todavia, lhe entre
gava o seu cora��o completamente. De repente, sentiu-se in
justa para com ele. Silenciara-o por motivos ego�stas, para n�o
se sentir incomodada, pois n�o sabia como agir, mas, no fun
do, obrigara-o a negar os seus sentimentos. - Mereces ser
muito feliz por todo o bem que fazes a todos que te rodeiam.
D�s tanto de ti a tanta gente... E a mim - acrescentou.
� Desejava ter mais para te dar. A vida por vezes � cruel,
n�o achas? S� encontramos aquilo que procuramos quando j�
� tarde de mais para o termos.
� Talvez n�o seja - murmurou Danina, sentindo-se
atra�da por ele como nunca se sentira por nenhum homem,
excepto quando a beijara. Nikolai n�o se atreveu a perguntar-
-Ihe o que queria dizer com aquilo, limitando-se a olh�-la
intensamente. Os olhos de Danina chamavam-no com uma
sinceridade e amor t�o evidentes, que n�o havia maneira de
interpretar mal o convite que lhe dirigiam.
� N�o quero magoar-te... Ou aborrecer-te. Amo-te de
masiado para o fazer - disse, tentando reprimir tudo o que
sentia por ela.
� Amo-te, Nikolai - declarou e, sem hesita��es ou re
ceios, tomou-a carinhosamente nos bra�os e beijou-a. Era tu
do o que ambos sonhavam. Ao contr�rio da primeira vez,
n�o foram apanhados de surpresa.
Beijaram-se longamente frente ao lume e mantiveram-se abra�ados at� que o fogo se extinguiu e Danina come�ou a tremer, de frio e da emo��o que sentia.
* Vem, ainda te constipas, meu amor. Vou deitar-te e
depois vou-me embora - murmurou ele, conduzindo-a de
pois ao quarto. - Queres que te ajude a tirar o vestido? -
perguntou solicitamente quando reparou que era uma tarefa
complicada para uma s� pessoa. Danina aceitou a ajuda, pois,
de outra forma, teria de dormir com o vestido, j� que n�o
havia nenhuma empregada ali �quela hora para a ajudar.
Danina mais parecia uma crian�a enquanto ele a desabotoava e ajudava a sair do vestido, que revelava o corpo jovem, elegante e �gil de uma bailarina. Ela mirava-o com um olhar que era um misto de inoc�ncia e desejo.
* J� � muito tarde para ires para casa - sussurrou cautelosamente, n�o sabendo bem o que lhe dizer, ou como diz�-lo. Nunca fizera nada assim e nem imaginava como seria, mas tamb�m n�o conseguia imaginar n�o estar com ele.
� O que queres dizer? - segredou Nikolai, parecendo
confuso.
� Fica comigo. N�o temos de fazer nada que n�o quei
ramos. Apenas te quero aqui comigo. - O lugar dele era ali
e ambos o sabiam.
� Oh, Danina - exclamou, sabendo que era o in�cio de
uma nova vida e o fim de anos de desilus�o. Era para ambos
um momento pleno de esperan�a.
� Quero tanto ficar aqui contigo. - Era tudo o que
sempre desejara desde o momento em que a conhecera e
mais ainda desde que chegara ali. Nikolai compreendia agora
que fora por isso que fizera tudo o que estava ao seu alcance
para a trazer para ali.
Despiram-se lentamente e, algum tempo depois, encontravam-se na sua cama grande e confort�vel, aconchegados debaixo dos cobertores. Danina olhou para ele por entre a escurid�o e soltou umas risadinhas.
� De que te ris, minha tonta? - perguntou ele, ainda
sussurrando, como se algu�m os pudesse ouvir, embora �que
la hora n�o houvesse ali ningu�m. Estavam completamente
sozinhos com o segredo e o amor que partilhavam.
� � engra�ado... Tinha tanto medo do que sentia por ti
e dos teus sentimentos e agora, aqui estamos, como duas
crian�as atrevidas.
� Crian�as atrevidas n�o, meu amor, crian�as felizes. Ao
fim e ao cabo, talvez tenhamos direito a isto... Talvez fosse o
que o destino ditou para n�s. Nunca amei nenhuma mulher
como te amo a ti, Danina. - E com isto beijou-a intensa
mente e a paix�o que sentiam fez com que lhe ensinasse tudo
o que ela nunca conhecera ou sonhara vir a conhecer. A pai
x�o, o encanto e o amor que ambos haviam desejado estavam
presentes, � espera que ela os descobrisse. Enquanto Danina
dormia nos seus bra�os abra�ou-a carinhosamente e sorriu,
agradecendo a generosidade dos deuses por a terem colocado
no seu caminho.
� Boa noite, meu amor - segredou-lhe antes de ador
mecer.

CAPITULO 5.
O segredo que partilhavam cresceu entre eles como um prado de flores silvestres na Primavera. Nikolai vinha v�-la todos os dias, como habitualmente, mas agora ficava durante mais tempo, conciliando as suas visitas com as suas obriga��es no pal�cio. A
noite, quando terminava os seus afazeres, voltava para perto dela e dormiam juntos. Dissera � esposa que agora precisava de ficar no pal�cio todas as noites por causa de Alexei. Marie parecia nem sequer importar-se com isso; portanto, n�o tinha quaisq
uer objec��es a que ficasse fora toda a noite.
Danina estava maravilhada. Nikolai ensinara-lhe coisas que a uniriam a ele de alma e cora��o para sempre. Partilhavam tudo, as esperan�as, os sonhos, os medos de inf�ncia. Apenas temiam perder-se um ao outro. N�o tinham ainda resolvido o que acontecer
ia quando Danina regressasse ao ballet, embora ambos soubessem que, mais tarde ou mais cedo, esse dia chegaria. Nessa altura, teriam ent�o de decidir alguma coisa relativamente ao futuro; por enquanto, Nikolai n�o tinha dito ainda nada � sua mulher.
At� l�, queriam apenas desfrutar do amor que sentiam um pelo outro, livres de qualquer decis�o definitiva. No meio de tanta felicidade, Fevereiro passou a correr e Mar�o tamb�m. Estava ali h� tr�s meses quando come�ou finalmente a falar, com m�goa, do
regresso ao ballet. S� a ideia fazia-a tremer. Madame Markova j� lhe perguntara v�rias vezes quando planeava regressar aos treinos e �s aulas. Levaria meses a recuperar o que perdera durante a convalescen�a. Comparados com a esgotante rotina do balle
t, os modestos exerc�cios que ali praticava n�o representavam nada. Por fim, com muita pena sua, prometeu que regressaria a Sampetersburgo no final de Abril; por�m, a ideia de deixar Nikolai era agora quase insuport�vel.
Falaram seriamente sobre o seu regresso tr�s semanas antes de Danina partir. Nikolai achava que estava na altura de falar com Marie. Ia sugerir-lhe que regressasse a Inglaterra com os
filhos. O malogro em que o seu casamento se transformara devia terminar. No entanto, n�o tinha ainda a certeza do que Danina queria fazer quanto ao bailei. Era urna decis�o que s� ela poderia tomar.
� O que achas que a Marie dir� quando lhe contares?
� Acho que ficar� aliviada - disse completamente con
vencido disso, embora n�o tivesse a certeza de que ela concor
dasse com o div�rcio. Nikolai preferia n�o lhe falar de Dani
na por enquanto. Havia raz�es mais do que suficientes para
p�r fim ao casamento sem ter de complicar ainda mais as
coisas.
� E os rapazes? Achas que ir� deixar-te v�-los? - per
guntou com um ar preocupado. Era com isto que se ator
mentara antes de iniciarem a rela��o e o motivo por que
hesitara tanto em se entregar a Nikolai. Todavia, como ele
mesmo afirmara, tal n�o podia ter sido evitado, pois o destino
assim o ditara. Danina percebia agora que a sua hesita��o n�o
passara de uma fantasia.
� N�o sei o que far� em rela��o aos rapazes. Talvez s� os
possa ver quando forem mais velhos. - A ang�stia que tal
lhe provocava era �bvia nos seus olhos e n�o passou desper
cebida a Danina. - E Madame Markova? - perguntou ele
de volta. Era uma quest�o igualmente complicada para ela,
embora mais simples aos olhos de Nikolai.
� Falarei com ela quando regressar a Sampetersburgo -
respondeu, tentando acalmar o receio que sentia ou a sensa
��o de que iria tra�-la. Madame Markova esperava tanto dela
e dera-lhe tanto, que ficaria devastada se Danina abandonasse
o bailei. Contudo, para Danina tudo mudara entretanto. A sua,
vida pertencia agora a Nikolai e n�o podia ignorar tal facto.
Miraculosamente, o amor que partilhavam parecia ter passado despercebido a todos, excepto pelas criadas da casa de h�spedes que, at� ent�o, se haviam demonstrado muito discretas. Ningu�m da fam�lia imperial comentara fosse o que fosse com Nikolai, e m
esmo Alexei, que passava bastante tempo com ambos, n�o notara nada de diferente entre eles.
Nas �ltimas tr�s semanas que antecederam a separa��o, uma esp�cie de desespero apoderou-se dos dois amantes. Os tempos id�licos e perfeitos que haviam passado estavam pres-
tes a terminar. Era o in�cio de uma nova vida e Danina estava preocupada. Se abandonasse o ballet para ficar com Nikolai, onde iria viver e quem a sustentaria? Se ele conseguisse o div�rcio, o esc�ndalo n�o lhe custaria a posi��o que detinha junto da
fam�lia imperial? Havia muita coisa a ponderar, mas ele j� lhe prometera que encontraria uni local para viver e a sustentaria, embora Danina n�o quisesse transformar-se num fardo para ele. Por isso, achava melhor permanecer no ballet at� Marie partir
para Inglaterra.
Nikolai decidiu falar com Marie apenas depois de Danina partir, de modo a proteg�-la do esc�ndalo que a sua resolu��o pudesse provocar em casa e no pal�cio. Parecia a ambos a decis�o mais sensata. Ele iria v�-la � escola de ballet assim que pudesse pa
ra lhe comunicar o que acontecera e, ent�o, poderiam fazer planos para o futuro. O ballet tamb�m precisava de tempo para encontrar uma substituta para Danina. Embora tivesse estado doente durante meses, continuavam ainda a contar com ela para espect�c
ulos nesse Ver�o e no Inverno seguinte. Era poss�vel, explicara a Nikolai, que tivesse de esperar at� ao fim do ano para deixar o ballet, mas ele compreendera a situa��o. Apesar das obriga��es de cada um - Nikolai no pal�cio e Danina nas longas sess�e
s de treinos a que teria de dedicar-se - tentariam passar o m�ximo de tempo poss�vel juntos. Danina sentia-se pronta para tudo, forte e mais feliz do que nunca com o amor que sentia por ele e as promessas que haviam feito um ao outro.
Apesar disso, a �ltima semana foi uma agonia para os dois. Passavam todos os momentos que podiam juntos e, pela primeira vez, a czarina notou que havia algo que os unia e concordou com o que o marido lhe dissera durante o baile. Tinha quase a certeza
de que Danina e Nikolai estavam apaixonados. Na altura, o czar encontrava-se em Sampetersburgo de licen�a e a czarina comentou com ele as suas suspeitas.
� N�o o censuro - disse � esposa uma noite, enquanto
Nikolai e Danina passavam uma das �ltimas noites juntos na
casa de h�spedes. - Ela � muito bela.
� Achas que ele deixar� a esposa? - perguntou a czari
na. O czar respondeu-lhe que n�o podia adivinhar as loucuras
alheias. - E se o fizer; isso incomoda-te? - questionou-o mais uma vez e o chefe da fam�lia imperial ponderou a quest�o, indeciso quanto ao que faria relativamente ao assunto.
* Depende do modo como o fizer. Se for feito de fornia
discreta, talvez n�o tenha grandes consequ�ncias, mas se se
tornar um esc�ndalo com grandes repercuss�es, terei de pen
sar melhor.
Era uma decis�o sensata que tranquilizou um pouco mais a czarina. N�o queria perder Nikolai como m�dico de Ale-xei. Interrogava-se tamb�m se Danina deixaria o bailei. Era ainda muito jovem, dedicara toda a sua vida � dan�a e era a mais famosa prima ba
llerina da companhia de bailado. Para a czarina, a op��o de Danina seria um pouco como abandonar o convento, ou seja, uma decis�o bem dif�cil de tomar. Sabia tamb�m que o ballct tudo faria para n�o a deixar partir, por isso, tinha pena de Danina e esp
erava que tudo corresse bem a ambos se, de facto, decidissem embarcar numa nova vida a dois. Todos se haviam afei�oado muito a Danina nos meses que ali passara.
Na noite anterior � sua partida, a fam�lia imperial deu um pequeno jantar em que estiveram presentes as gr�-duquesas e o czar�viche, alguns amigos mais chegados, os dois m�dicos e uma mancheia de pessoas que tamb�m tinham simpatizado muito com Danina.
Foi com grande emo��o que agradeceu a presen�a de todos, se despediu e prometeu voltar. A czarina convidou-a a ir passar o Ver�o a Livadia, como acontecera no ano anterior, e prometeu que a iriam ver dan�ar assim que regressasse aos palcos.
� Desta vez, ensino-te mesmo a nadar - prometeu Ale-
xei e presenteou-a com unia coisa que Danina sabia lhe era
muito querida. Era um pequeno sapo de jade de Faberg� que
Alexei adorava por ach�-lo muito feio. Ainda assim, ofere
ceu-lho embrulhado num desenho que fizera para esse efeito.
As irm�s ofereceram-lhe poemas e aguarelas feitos especial
mente para ela, bem como unia fotografia da fam�lia com Da
nina. Estava ainda muito comovida quando chegou � casa de
h�spedes na companhia de Nikolai para a sua �ltima noite
juntos.
� N�o suporto imaginar que nos vamos separar amanh�
* disse ela tristemente depois de terem feito amor. Permaneceram nos bra�os um do outro a conversar at� de manh�. Da-nina n�o podia acreditar que a sua estada ali tivesse terminado, mesmo com a perspectiva de uma nova vida juntos. Na noite anterior, q
uando regressaram do jantar, Nikolai oferecera-lhe um medalh�o de ouro preso a uma corrente com a fotografia dele. Parecia-se tanto com o czar naquela fotografia que, ao princ�pio, Danina at� ficou um pouco confusa. Mas era de facto Nikolai e ela prom
eteu-lhe que o usaria sempre.
As �ltimas horas foram uma agonia e ambos choravam quando ele a colocou no comboio que faria o curto percurso de volta a Sampetersburgo. Danina n�o quisera que Nikolai a acompanhasse com medo que Madame Markova percebesse imediatamente o que acontecer
a entre ambos. Acreditava que a sua mentora possu�a poderes ocultos e que era omnisciente e omnividente. Nikolai concordara, pois ia nessa mesma tarde falar com Marie. Prometeu a Danina que lhe comunicaria de imediato o resultado da conversa.
Contudo, enquanto permanecia na plataforma a ver o comboio afastar-se e a acenar-lhe, sentia que um cap�tulo da sua vida que tanto amara, estava prestes a encerrar-se. Danina manteve-se debru�ada na janela at� j� n�o o distinguir. Acenava-lhe de volta
e com a outra m�o apertava o medalh�o. Enquanto o comboio se afastava, Nikolai ainda gritara que a amava e beijara-a tantas vezes antes de sa�rem de casa, que ela tivera de pentear-se duas vezes e ainda sentia os l�bios doridos. Eram como duas crian�
as for�adas a separar-se dos pais. A ideia fez Danina recordar-se do dia em que o pai a levara para ir viver na escola de bailei. Estava agora t�o aterrorizada como nesse dia, possivelmente at� mais.
Madame Markova encontrava-se � sua espera na esta��o quando chegou a Sampetersburgo. Parecia mais alta, mais magra e mais severa do que nunca. Danina achou que a sua mentora envelhecera e sentiu-se como se tivesse estado ausente durante muitos anos. M
adame Markova beijou-a terna-mente e parecia muito contente por v�-la. Apesar de tudo o que acontecera enquanto estivera fora, sentira muitas saudades da sua mentora.
* Est�s com �ptimo aspecto, Danina. Pareces feliz e descansada.
� Obrigada, Madame Markova. Toda a gente foi muito
simp�tica para mim.
� Foi o que depreendi das tuas cartas - disse Madame
Markova. A sua voz revelava um tom, uma severidade que
Danina esquecera. Era o que levava toda a gente a exceder as
suas capacidades para lhe agradar. A viagem de t�xi at� � es
cola decorreu calmamente e Danina tentou preencher os si
l�ncios que se instalavam com as suas aventuras no seio da fa
m�lia imperial e as festas a que fora, mas ficou com a distinta
impress�o de que, de alguma forma, desagradara � sua mento
ra. Tal fez com que ansiasse ainda mais pela vida que deixara
para tr�s em Tsarskoie Selo. No entanto, sabia que agora era
altura de voltar �s suas obriga��es.
� Quando recome�arei as aulas? - perguntou Danina
enquanto o t�xi percorria as ruas que ela t�o bem conhecia.
� Amanh� de manh�. Sugiro que comeces a exercitar-te
esta tarde para te preparares. Presumo que nada fizeste para
manter a fornia durante a tua convalescen�a - alvitrou Ma
dame Markova. Para al�m dos poucos exerc�cios di�rios que
Danina executara, Madame Markova presumira bem e n�o
pareceu nada satisfeita quando Danina o confirmou, acenando
que sim com a cabe�a.
� O m�dico n�o achou prudente, madame - explicou e
nem sequer se deu ao trabalho de mencionar a meia hora de
exerc�cios que fazia diariamente, pois sabia que, para a sua
mentora, isso representaria um esfor�o insignificante.
Madame Markova continuou a olhar em frente e nada disse. O ambiente entre ambas anuviava-se.
Quando Danina come�ou a vislumbrar o velho edif�cio da escola de ballet, o seu cora��o encheu-se de tristeza. Fora colocada no seu antigo quarto; por�m, em vez de sentir que regressava a casa, apercebeu-se de forma ainda mais intensa da dist�ncia que
a separava de Nikolai e das noites que haviam passado na magn�fica casa de h�spedes. N�o imaginava passar uma noite sem ele, mas teria de ser. Tinham ambos um longo caminho a percorrer individualmente at� que pudessem estar de novo juntos, talvez para
sempre.
Danina pensara dizer alguma coisa a Madame Markova sobre os seus planos assim que chegasse; por�m, decidira es-
perar at� ter not�cias de Nikolai sobre o div�rcio e o regresso de Marie a Inglaterra. Tudo dependeria do andamento das coisas, mas, por baixo da blusa, o medalh�o dava-lhe algum conforto e esperan�a.
Toda a gente estava a fazer aquecimentos, ou a ensaiar, ou a exercitar-se quando Danina chegou e n�o havia ningu�m no quarto que deixara h� quatro meses atr�s. Este parecia-lhe agora estranho e feio. Apressou-se a vestir um maillot e a colocar as sapa
tilhas e correu escada abaixo para o est�dio onde habitualmente fazia os aquecimentos. Quando l� chegou, viu Madame Markova sentada a um dos cantos a observar os outros. A sua presen�a fez Danina sentir-se um pouco constrangida, mas n�o perdeu tempo e
foi fazer exerc�cios para a barra. Ficou estupefacta ao descobrir que o seu corpo se tornara pouco flex�vel, os movimentos desajeitados e que as pernas se recusavam a fazer aquilo para que haviam sido treinadas.
� Tens muito trabalho � tua frente, Danina - comen
tou Madame Markova asperamente. Era verdade. O corpo
tornara-se seu inimigo em apenas quatro meses, e n�o fazia
nada do que esperava dele. Nessa noite, quando se foi deitar,
cada m�sculo que usara pela primeira vez em quatro meses
estava dorido. Mal conseguiu dormir com tantas dores e cus
tou-lhe muito levantar-se no dia seguinte. O efeito dos �lti
mos meses de indol�ncia e felicidade fora brutal, n�o menos
que o rigoroso treino a que se entregou �s cinco da manh�.
Estava na primeira aula �s seis e trabalhou at� �s nove horas
da noite, quase sempre sob a vigil�ncia de Madame Markova.
� Parece que o teu dom n�o se desperdi�ou - disse de
forma bem severa ap�s a primeira aula, avisando-a depois,
ainda mais rispidamente, que nunca recuperaria o que havia
perdido se n�o ultrapassasse os seus limites. - Se n�o estive
res disposta a pag�-lo com sangue, Danina, n�o o mereces -
continuou, visivelmente furiosa, ao ver o que a sua pupila
preferida perdera nos meses em que estivera ausente. Recor
dou-lhe ainda que o seu lugar como prima ballerina n�o era al
go que o ballet lhe devesse, mas uma honra que teria de con
quistar se pretendesse recuperar a sua posi��o.
Danina estava em l�grimas quando se deitou naquela noi-
te. Ent�o, no final do segundo dia, completamente exausta, escreveu a Nikolai a contar-lhe os horrores por que estava a passar e o quanto sentia a falta dele, mais do que julgara poss�vel quando se haviam separado.
A tortura a que a sujeitaram continuou e, no final da primeira semana, Danina lamentava j� ter regressado ao ballet, principalmente porque o iria deixar. Para que servia tudo aquilo e o que teria de lhes provar, se ia voltar para Nikolai e deixar de d
an�ar? No entanto, achava que devia terminar de forma honrosa, que o devia ao ballet, e, mesmo que isso a matasse, estava determinada a cumpri-lo. No entanto, no estado de exaust�o e de sofrimento em que se encontrava, esse objectivo parecia-lhe n�o s
� desej�vel como altamente prov�vel.
No fim da segunda semana, Madame Markova chamou-a ao seu gabinete. Danina estranhou, interrogando-se sobre o que isso quereria dizer. Nos �ltimos treze anos, raramente l� tinha estado, embora soubesse de outras bailarinas que emergiam de l� sempre em
l�grimas para, muitas vezes, abandonarem o ballet em poucas horas. Danina questionava-se se era esse o seu destino agora. Madame Markova estava sentada muito hirta � sua secret�ria, frente a Danina, e olhou-a bem fundo nos olhos antes de come�ar a fal
ar.
* J� percebi o que aconteceu pela forma como dan�as e pelo modo como tens trabalhado. N�o precisas de me contar nada, se n�o quiseres - disse sem rodeios. Danina planeava contar-lhe tudo, embora n�o dessa forma, n�o naquele momento. Esperava not�cias
de Nikolai; por�m, at� ent�o, nem um bilhete enviara e j� come�ava a ficar preocupada. Madame Markova tinha raz�o: por vezes, o seu amor por Nikolai distra�a-a e n�o lhe permitia que se entregasse completamente � dan�a como outrora. Era mais um fen�me
no espiritual do que f�sico, o que tornava ainda mais espantoso o facto de a sua mentora ter descoberto.
* N�o estou a entender, madame. Tenho trabalhado arduamente desde que cheguei - retorquiu Danina com vontade de chorar. N�o estava habituada a ser repreendida ou a ver o seu trabalho depreciado pela sua mentora. Madame Markova sempre se orgulhara muit
o dela. Agora era �bvio que j� n�o. Na verdade, estava furiosa com Danina.
� Tens trabalhado muito, mas n�o o suficiente. Falta-te
a convic��o, n�o te entregas totalmente. Sempre te disse que
a rnenos que estejas disposta a conceder cada gota de sangue,
cada peda�o de alma e cora��o, n�o ser�s nada. N�o te maces
com o bailado, vai vender flores para a rua, vai limpar casas
de banho para qualquer parte que sempre ser�s mais �til. N�o
h� nada pior do que uma bailarina sem nada para dar.
� Estou a esfor�ar-me, madame. Estive ausente muito
tempo. N�o estou ainda t�o forte como antes - explicou-se
Danina, j� com as l�grimas a correrem-lhe pelas faces abaixo.
Todavia, Madame Markova n�o demonstrava qualquer emo
��o para al�m de desd�m e raiva. Olhava para Danina como
se esta a tivesse tra�do.
� � do teu cora��o que estou a falar, da tua alma, n�o
das tuas pernas. Essas recuperar�o, o teu cora��o jamais, se o
deixaste em outra parte. Tens de escolher, Danina. Com
o bailado � sempre uma quest�o de op��o. A menos que
queiras ser como as outras. Nunca o foste. Eras diferente.
N�o podes ter ambas as coisas. N�o podes ter um homem, ou
homens, e ser uma grande prima ballerina. Nenhum homem
vale a tua carreira... Nenhum homem merece o bailado. No
final, acabar�o por te desiludir. Est�s a enganar-te a ti mesma.
Voltaste para mim completamente oca, como uma qualquer
bailarina do corpo de baile. N�o �s ningu�m. J� n�o �s uma
prima ballerina - bradou Madame Markova. Foi um choque
tremendo para Danina, que quase lhe quebrou o cora��o.
� Isso n�o � verdade. Ainda tenho o meu dom, apenas
tenho de trabalhar mais.
� J� te esqueceste de como isso se faz. J� n�o te preo
cupas. H� algo na tua vida que amas mais do que o ballet.
Posso v�-lo, at� cheir�-lo. A tua dan�a tornou-se pat�tica. -
S� de ouvi-la, Danina arrepiava-se, e ao olhar para os olhos
da sua mentora percebeu que n�o tinha segredos para ela. -
� um homem, n�o �? Por quem te apaixonaste? Que homem
vale isto tudo? Ser� que tamb�m te ama? �s louca se sacrifica
res tudo por ele.
Houve ent�o um grande sil�ncio entre as duas, enquanto Danina pesava as palavras e o que iria dizer-lhe.
* � um homem maravilhoso - revelou finalmente - e
amamo-nos muito.
� Agora �s uma meretriz como as outras, as mais reles
que dan�am para se divertirem e para quem o ballet nada sig
nifica. Devias era estar a dan�ar nas ruas de Paris e n�o no
Mariinsky. N�o pertences aqui. Fartei-me de te dizer que n�o
podias ser como elas. Tens de escolher, Danina.
� N�o posso desistir da minha vida para sempre, madame,
por muito que ame o bailado. Quero fazer o que est� certo,
quero ser uma grande bailarina, quero ser justa para consigo,
mas tamb�m o amo.
� Ent�o, o melhor � ires embora agora. N�o me fa�as
perder tempo ou o dos teus professores. Ningu�m te quer
aqui a menos que sejas o que foste anteriormente. Menos que
isso, n�o vale a pena. Tens de escolher, Danina, e se o esco
lheres a ele, estar�s a tomar a decis�o errada. Posso garantir-
-to. Ele nunca te poder� dar o que aqui te damos. Nunca
mais ter�s a sensa��o de estares no palco consciente de que
ningu�m esquecer� a tua actua��o. Eras assim quando partiste.
Agora, n�o passas de uma simples bailarina.
Danina n�o podia acreditar no que estava a ouvir, embora as palavras j� lhe fossem familiares. J� conhecia de cor a opini�o de Madame Markova para quem o bailado era uma religi�o sagrada � qual se devia sacrificar a pr�pria vida. Ela assim fizera, por
isso esperava que toda a gente seguisse o seu exemplo. Danina tamb�m o fizera at� ent�o, mas agora j� n�o podia. Queria que a sua vida fosse algo mais do que a actua��o perfeita.
� Quem � esse homem? - perguntou Madame Marko
va por fim. - Se � que isso importa...
� Para mim importa, madame - rematou Danina respei
tosamente, ainda acreditando que podia fazer as duas coisas,
terminar tudo de fornia honrosa e partir para os bra�os de
Nikolai.
� Que quer ele de ti?
� Casar comigo - confessou Danina a meia voz, en
quanto Madame Markova olhava para ela com repugn�ncia.
� Ent�o, o que fazes aqui?
Era muito complicado explicar e Danina tamb�m n�o o queria fazer.
* Queria terminar as coisas consigo de forma honesta,
talvez continuar durante o pr�ximo ano, se me quiserem, se trabalhar arduamente e melhorar.
� Porqu� incomodares-te? - perguntou. Depois olhou
desconfiada para Danina e provou mais uma vez ser omnis
ciente, tal como sempre suspeitara.
� Ele j� � casado?
Seguiu-se mais um profundo sil�ncio, mas, desta vez, Danina n�o respondeu.
* Es ainda mais tola do que eu pensava, pior do que
qualquer uma dessas meretrizes. A maioria delas ainda arranja
marido, engorda e tem filhos. N�o valem nada, mas tu ent�o,
desperdi�as o teu talento num homem que j� tem mulher.
Enoja-me pensar no que andas a fazer e n�o quero saber mais
nada sobre isso. Agora, Danina, quero que trabalhes como
costumavas, como �s capaz de fazer, como me deves, e den
tro de dois meses quero que me digas que tudo est� termina
do e que sabes que esta � a tua vida e sempre ser�. Tens de
sacrificar tudo por ela, tudo... E s� ent�o ter� valido a pena,
s� ent�o conhecer�s o verdadeiro amor. O bailado � o teu
amor, o teu �nico amor. Esse homem � um disparate. N�o
significa nada para ti, apenas te magoar�. N�o quero ouvir
nem mais uma palavra sobre isto. Agora, volta ao trabalho. -
Com um aceno de m�o, indicou-lhe a porta de forma t�o di
recta e intransigente que Danina saiu do gabinete de imediato
e voltou �s aulas a tremer com o que acabara de ouvir.
Era esse o tipo de sacrif�cio que a sua mentora esperava. Queria que desistisse de tudo, at� de Nikolai, mas Danina n�o podia, n�o queria. N�o lhes devia isso. N�o tinham o direito de esperar isso dela. N�o queria ser mais uma louca fan�tica sem vida
para al�m do bailado, sem filhos, sem marido, sem recorda��es para al�m dos espect�culos que se sucediam ao longo do ano e que, no fundo, nada significavam.
Danina tentara explicar isso a Nikolai, tentara dizer-lhe o que o bailei esperava dela; por�m, ele n�o acreditara. Era isto que queriam, a sua alma e a promessa de que terminaria tudo com Nikolai, mas ela n�o o faria, independentemente do que isso lhe
custasse. A raiva que sentia f�-la trabalhar ainda com mais afinco nas aulas e na barra. Come�ou a fazer os aquecimentos �s quatro da manh� e continuava a treinar at� �s dez
da noite. N�o comia, n�o parava, n�o dormia. N�o fazia mais nada a n�o ser impelir o seu corpo a ultrapassar o limite. Era o que queriam dela.
Duas semanas mais tarde, quando Madame Markova a chamou novamente ao seu gabinete, estava escanzelada e exausta e n�o fazia a m�nima ideia do que a mentora lhe teria para dizer desta vez. Talvez lhe fosse ordenar que deixasse o ballct, o que at� seria
um al�vio. Era incapaz de se esfor�ar mais e ainda n�o tivera not�cias de Nikolai. J� se tinham passado tr�s semanas desde a separa��o e o sil�ncio dele quase a levava � loucura. N�o respondera a nenhuma das suas cartas. De repente, interrogou-se se
haviam sequer sido enviadas. Deixara-as no sal�o de entrada, como sempre fizera, junto do restante correio do ballct, mas talvez estivessem a ser postas de parte e colocadas no lixo. Pensava sobre isso quando entrou no gabinete de Madame Markova e est
remeceu quando o viu ali sentado. Era Nikolai e parecia estar em amena conversa com Madame Markova. Quando Danina entrou, voltou-se para ela e sorriu. S� de o ver ali, sentiu o cora��o bater mais forte e as pernas quase sem for�a.
� O que est� a fazer aqui? - indagou, espantada. Inter
rogava-se se Nikolai contara tudo � sua mentora, mas com
preendeu imediatamente pelo olhar dele que nada revelara.
Apressou-se a explicar a sua presen�a, ou antes o pretexto que
o levara ali, para que Danina soubesse o que haveria de dizer.
� Vim ver como estava, Miss Petroskova, por ordem do
pr�prio czar, visto que ningu�m soube nada de si desde que
partiu. A czarina andava muito preocupada - esclareceu,
sorrindo amavelmente para Madame Markova, que fez um ar
um pouco constrangido e desviou o olhar por alguns se
gundos.
� N�o receberam as minhas cartas? Ningu�m? - espan
tou-se Danina com um olhar horrorizado quando ele confir
mou as suas suspeitas. - Tenho-as deixado para serem envia
das, como sempre fa�o. Talvez n�o estejam a ser enviadas -
protestou Danina. Madame Markova continuou a olhar para
a secret�ria e n�o pronunciou uma �nica palavra.
� E como se tem ent�o sentido? Est� bastante p�lida e
bem mais magra do que quando nos deixou. Receio que es-
teja a esfor�ar-se demasiado. � isso? N�o pode exagerar dessa forma depois de ter estado t�o doente.
� Ela tem de treinar de novo - declarou Madame Mar-
kova bruscamente - e ganhar disciplina. O corpo dela es
queceu quase tudo o que aprendeu. - Todavia, Danina sabia
t�o bem como a sua mentora que isso n�o era verdade. Niko
lai parecia preocupado.
� Tenho a certeza de que recuperar� a sua antiga forma
muito em breve - asseverou de forma am�vel. - Ainda as
sim, n�o dever� exagerar. Sabe disso com certeza, Madame
Markova - concluiu com um sorriso, parecendo muito for
mal e profundamente preocupado. - E agora, poderia con
versar em privado com a minha doente? Trago uma mensa
gem pessoal do czar e da czarina.
Era imposs�vel lutar contra um argumento daqueles e, apesar do olhar de desaprova��o de Madame Markova, Danina e Nikolai deixaram o gabinete juntos. Era �bvio que desconfiava do m�dico, mas n�o tinha a certeza se seria ele a raz�o por que Danina a atr
ai�oara e, claro, n�o se atrevia a acus�-lo de nada. Ao inv�s, deixou-os abandonar o seu gabinete calmamente. Danina conduziu-o ao pequeno jardim no andar t�rreo. Fazia ainda um pouco de frio e teve de colocar um xaile sobre os ombros. Nikolai estava
preocupado por v�-la t�o magra e cansada e ansiava por abra��-la.
� Est�s bem? - sussurrou enquanto se sentavam no ban
co do pequeno jardim. - Sinto tanto a tua falta... E fiquei
t�o preocupado quando n�o tive not�cias tuas.
� Devem deitar as minhas cartas fora. A partir de agora,
passarei a envi�-las eu mesma - declarou, embora s� Deus
soubesse quando lhe dariam algum tempo livre para o fazer.
- O que aconteceu? - perguntou, preocupada, mas sorrin
do para ele. Estava t�o feliz por o ver. - Est� tudo bem con
tigo, Nikolai?
� Claro... Danina, amo-te... - declarou, angustiado.
A dor que a aus�ncia dela lhe provocara fora quase insupor
t�vel.
� Tamb�m te amo - murmurou ela e entrela�aram os
dedos.
Sem que disso se apercebessem, Madame Markova vigia-
va-os de uma janela do andar superior e, embora n�o conseguisse perceber o que diziam, viu-os de m�os dadas e teve assim a confirma��o das suas suspeitas. Apertou ent�o os l�bios, que formaram um tra�o fino de desprezo e determina��o.
* J� falaste com a Marie? - perguntou Danina.
O sobrolho de Nikolai carregou-se antes de acenar que sim com a cabe�a.
� Uns dias depois de tu partires - confirmou, mas n�o
parecia contente com o resultado da conversa. Danina perce
beu de imediato que algo n�o correra bem.
� O que disse ela?
Fora uma horr�vel troca de palavras e a desuni�o entre ambos acentuara-se desde ent�o, mas Nikolai n�o fazia ten��es de perder aquela batalha.
* N�o vais acreditar, Danina. Ela n�o quer regressar a
Inglaterra. Pretende ficar na R�ssia. Depois de quinze anos
a amea�ar que se ia embora e a atirar-me � cara o quanto de
testava viver aqui, agora que lhe ofere�o a liberdade, n�o
quer ir-se embora.
Danina estava obviamente desiludida com o que acabara de ouvir e teve mesmo de fazer um esfor�o para conter as l�grimas.
� E o div�rcio?
� Tamb�m n�o quer divorciar-se. N�o v� raz�o para nos
separarmos. Admite estar t�o infeliz quanto eu, mas afirma
que a felicidade no casamento j� n�o lhe diz nada e que n�o
quer passar pela humilha��o de um div�rcio. Ainda que quei
ramos viver juntos, n�o posso casar contigo, Danina.
Nikolai parecia devastado. Nunca esperara uma tal reac��o da esposa. Quisera dar-lhe tudo, uma casa, respeitabilidade, seguran�a, filhos, uma vida completamente nova, mas, agora, tudo o que Danina poderia ser para ele era uma amante. Seria ela a humil
hada e n�o Marie.
� Algu�m sabe de n�s? O czar? - perguntou Danina,
preocupada.
� Acho que suspeita de alguma coisa, por�m n�o creio
que desaprove. Gosta verdadeiramente de ti e tem feito ques
t�o de mo dizer mais do que uma vez.
� N�o te preocupes :- confortou-o Danina com um
suspiro. - Tudo se h�-de resolver a seu tempo. De qualquer forma, tenho de terminar as coisas por aqui. Est�o muito descontentes comigo por ter estado tanto tempo ausente e Ma-dame Markova amea�a p�r-me no corpo de baile e n�o permitir que dance como
prima ballcrina. Diz que j� n�o dan�o como dantes. Gostaria de voltar a dan�ar como quando sa� daqui e isso sempre te daria mais tempo para convencer a Marie a partir ou a dar-te o div�rcio. Ternos de ser pacientes - continuou, tentando corajosamente
parecer mais optimista.
* N�o sei se consigo ser paciente - reclamou Nikolai
com um olhar infeliz. - Sinto tanto a tua falta. Quando po
der�s voltar a visitar-nos?
Os dias sem ela eram mais intoler�veis do que imaginara.
� Talvez este Ver�o, se me deixarem ter f�rias. Madame
Markova fala em obrigar-me a ficar aqui a treinar sozinha
quando os outros partirem de f�rias para compensar o tempo
que perdi durante a convalescen�a.
� Ela pode fazer isso? N�o � justo - protestou Nikolai,
revoltado. Queria t�-la junto dele.
� Pode fazer o que bem entender. Nada � justo aqui.
Veremos. Falarei com ela quando a altura se aproximar. Por
agora, temos de ter paci�ncia e esperar.
De qualquer forma, Nikolai queria mais tempo para conversar calmamente com Marie e tentar pelo menos que partisse para Inglaterra ou concordasse com algum tipo de separa��o.
� Venho ver-te de novo daqui a poucas semanas, "por
ordem do czar" - disse, sorrindo. - Receber�s as cartas que
eu te enviar?
� Talvez, se as colocares num sobrescrito com o selo im
perial - respondeu ela com um olhar matreiro que o fez
sorrir.
� Pedirei ao Alexei que as enderece por mim. - E de
pois, sem dizer mais nada, inclinou-se para ela e beijou-a. -
N�o te preocupes, meu amor, arranjaremos uma solu��o.
N�o poder�o manter-nos afastados para sempre. Apenas ne
cessitamos de mais tempo para encontrar a melhor solu��o.
Mas n�o demasiado tempo, n�o suporto estar longe de ti. -
Estava prestes a beij�-la de novo, quando sentiram a porta que dava para o jardim abrir-se e viram Madame Markova a olhar fixamente para eles.
* Pretendes passar o resto do dia com o teu m�dico, Da-
nina, ou a trabalhar? Talvez devesses estar num hospital, se
est�s ainda t�o doente e o czar est� t�o preocupado contigo.
Tenho a certeza de que encontraremos um bom hospital p�
blico para ti, se preferes isso a dan�ar aqui.
Danina estava j� de p� ao lado de Nikolai, que falou antes de ela poder.
� Lamento, madame, se tomei demasiado do tempo de
Miss Petroskova. N�o era a minha inten��o. Estava simples
mente preocupado.
� Ent�o, bom dia, doutor Obrajensky.
Toda a sua gratid�o por ter salvo a vida de Danina h� cinco meses atr�s desaparecera, especialmente agora que sabia que era ele o inimigo que teria de combater para reaver a sua melhor bailarina. J� n�o lhe restavam quaisquer d�vidas sobre isso.
Nikolai beijou Danina na face antes de partir. Ela recomendou-lhe que mandasse cumprimentos seus a todos e, com um �ltimo aperto de m�o, abandonou o jardim e regressou �s aulas. Nikolai sentiu-se despojado ao abandonar o edif�cio onde ela vivia e trab
alhava como escrava dezoito horas por dia. S� desejava poder lev�-la consigo, em vez de se ver obrigado a deix�-la ali.
De volta �s aulas, Danina tentava desesperadamente concentrar-se e n�o pensar nele enquanto Madame Markova a observava. Era implac�vel na sua vigil�ncia. Quando, duas horas depois, fez por fim um intervalo, a sua mentora niirou-a com um claro desprezo
, desaprova��o e raiva.
* Ent�o, ele disse-te que n�o pode deixar a mulher?
Que ela n�o concorda com o div�rcio? Que palerma, Danina
Petroskova. Isso � uma hist�ria muito, muito antiga. Vai con
tinuar a fazer-te promessas e a quebr�-las at� te partir o cora
��o e te custar a tua carreira como bailarina. Nunca deixar� a
mulher, acredita! - exclamou Madame Markova, que pare
cia falar por experi�ncia. Alguma coisa muito amarga do seu
passado a magoara, algo que jamais perdoara ou esquecera. -
Foi isso que ele te disse?
Madame Markova pressionava Danina, mas esta nunca admitiria que fora isso mesmo que Nikolai lhe viera dizer. Sabia que nunca a magoaria e n�o se preocupava com o que a sua mentora pensava dele ou com os fantasmas que do passado a assombravam.
� Trazia uma mensagem para mini do czar e da czarina
- respondeu Danina calmamente.
� E o que dizia? - inquiriu. Danina n�o lhe revelou
que queriam que os fosse visitar nesse Ver�o. Isso seria o gol
pe final na rela��o entre ambas. Sabia que n�o lho podia di
zer j�.
� Apenas que t�m saudades minhas e que estavam preo
cupados com a minha sa�de.
� Que simp�tico da parte deles. Que amigos t�o impor
tantes tens agora! Olha que j� n�o te ajudar�o quando n�o
puderes dan�ar, n�o te querer�o para nada, e por essa altura o
teu m�dico j� te ter� esquecido h� muito - ripostou Mada
me Markova com uma amargura que Danina desconhecia na
sua mentora.
� N�o necessariamente, madame - retorquiu Danina
com altivez. Depois, rodou nos calcanhares e dirigiu-se para a
aula seguinte. J� n�o estava para aguentar tudo o que lhe dizia
calada e n�o se importava que Marie n�o concordasse com o
div�rcio ou n�o quisesse partir para Inglaterra. Podiam, ainda
assim, ter uma vida a dois. Estava disposta a ficar com ele, ca
sado ou n�o.
A partir dessa altura, cada dia daquele m�s de Maio foi uma agonia, agravada pelas cr�ticas e acusa��es constantes de Madame Markova. Danina era acusada de ter o passo trocado, de estar fora de tempo e de os seus movimentos serem uma desgra�a. Madame
Markova gritava-lhe que os seus bra�os se moviam como dois troncos de madeira, que as pernas estavam sempre hirtas e que os saltos eram pat�ticos. Fazia tudo o que podia para levar Danina ao ponto de ruptura. Queria que lutasse pela dan�a e desistisse
de tudo o resto.
Apesar de tudo, Danina aguentou, e Nikolai veio v�-la novamente em Junho, trazendo uma carta pessoal da czarina. Era o convite para que fosse passar o m�s de Agosto inteiro a Livadia com a fam�lia imperial. Danina n�o acreditava que tal
fosse poss�vel. Nada mudara em rela��o a Nikolai no m�s que passara. Marie estava cada vez mais inflex�vel em mudar-se para Inglaterra e tornava as coisas muito dif�ceis no que dizia respeito aos filhos, o que surpreendia Nikolai ainda mais.
� Deve ser comum as pessoas fazerem isso. T�m de tor
nar as coisas mais dolorosas, como Madame Markova tem fei
to comigo. � o seu tipo de vingan�a pessoal, pois na ideia de
les j� n�o lhes pertencemos. Se a czarina quiser realmente que
eu v�, ter� de ordenar a Madame Markova que me deixe ir,
pois, caso contr�rio, n�o poderei aceitar o convite.
� N�o podem fazer-te isso - queixou-se Nikolai. -
N�o �s escrava deles.
* Mais valia ser - disse com um ar exausto.
Quando partiu, prometeu a Danina que seria o pr�prio
czar a dar essa ordem a Madame Markova.
Ao chegar ao pal�cio, Nikolai contou tudo ao czar e pediu a sua ajuda para levar Danina para Livadia. O czar ficou bastante comovido com as palavras do m�dico e prometeu fazer o que pudesse, embora, do que conhecia do ballet, soubesse que eram muito r
igorosos e exigentes com os seus melhores bailarinos.
* Talvez nem me d�em ouvidos. Acham que apenas res
pondem a Deus e nem sei se a Ele o escutam - avisou o
czar, sorrindo.
A carta que chegou �s m�os de Madame Markova em Julho n�o podia ser ignorada, nem mesmo por ela. O czar explicava que a sa�de do czar�viche dependia da presen�a de Danina em Livadia, pois Alexei apegara-se extraordinariamente � bailarina e ficara inco
nsol�vel com a sua aus�ncia. Assim, o czar pedia a Madame Markova que permitisse a Danina juntar-se a eles.
Quando Danina foi chamada ao gabinete da sua mentora, os olhos desta faiscavam de raiva que tentava conter, cerrando os l�bios. As suas �nicas palavras foram que acompanharia Danina durante a sua estada de um m�s em Livadia. Todavia, n�o era isso que
Danina queria ouvir e estava disposta a lutar pelo que achava justo. Trabalhara arduamente para o ballet durante tr�s meses quase at� ao ponto de exaust�o e agora deviam-lhe esse tempo junto de Nikolai. Era tudo o que queria e n�o se contentava com me
nos.
� N�o, madame - declarou, apanhando a mentora com-
pletamente de surpresa. O seu tom era o de uma mulher
adulta e j� n�o o de uma crian�a obediente.
� N�o ir�s? - perguntou Madame Markova, estupefac
ta. A batalha estava ganha, pensou, e os seus l�bios come�a
ram a esbo�ar um pequeno sorriso, o primeiro que Danina
vislumbrava desde que voltara, em Abril, a sua mentora enca
rando Danina como uma traidora. - N�o queres v�-lo? -
indagou. Era tudo o que desejava ouvir, a guerra fora ganha
mais facilmente do que esperara.
� N�o, quero ir sozinha. N�o h� raz�o nenhuma para
que tamb�m venha. N�o preciso de acompanhante, madame,
mas agrade�o a gentileza de se oferecer para me acompanhar.
J� me sinto bastante � vontade com a fam�lia imperial e acho
que pretendem que v� sozinha.
De facto, o convite n�o mencionava Madame Markova e ambas o sabiam.
� N�o permito que v�s sem mim - declarou Madame
Markova, enraivecida.
� Ent�o, terei de explicar ao czar que n�o poderei acatar
a sua ordem - retorquiu Danina com um olhar de determi
na��o que Madame Markova nunca antes vira na sua pupila.
Ficou ainda mais decepcionada com Danina, mirando-a com
um olhar glacial.
� Muito bem. Poder�s ir por um m�s, por�m, n�o te ga
ranto que ainda sejas prima ballerina quando estrearmos Giselle
em Setembro. Pensa muito bem nisso, Danina, antes de te
precipitares.
� N�o h� nada para pensar, madame. Se for essa a sua de
cis�o, submeter-me-ei a ela.
Todavia, ambas sabiam que Danina estava a dan�ar melhor do que nunca. Reconquistara toda a sua for�a e mestria e acrescentara-lhe algumas t�cnicas novas e bem mais dif�ceis. A sua arte era agora uma mistura de maturidade, disciplina e talento, e os re
sultados do seu trabalho e amadurecimento n�o podiam ser ignorados.
* Come�amos os ensaios no dia um de Setembro, como
sabes. Quero-te aqui no �ltimo dia de Agosto. - Foi tudo o
que Madame Markova lhe disse antes de sair de rompante do
gabinete, deixando Danina sozinha.
Duas semanas mais tarde, Danina estava a bordo do comboio, sem acompanhante, e a caminho de Livadia, pensando na amizade perdida entre si e a sua mentora. Tinha a certeza de que Madame Markova nunca lhe perdoaria. N�o dirigira uma �nica palavra a Dani
na antes de esta partir e evitara-a propositadamente quando fora despedir-se dela. A amizade entre ambas terminara por causa do seu amor por Nikolai, mas agora Danina n�o faria nada para o perder ou deixaria escapar uma oportunidade de estar com ele.
N�o havia nada mais importante do que isso. Nem mesmo o ballet.
CAPITULO 6.
O tempo que Danina e Nikolai passaram juntos em Liva-dia foi id�lico. Ficaram numa casa de h�spedes, pequena e discreta, onde viveram juntos, desta vez abertamente, e eram tratados como marido e mulher tanto pelo czar como pela czarina, que pareciam c
ompreender a situa��o em que os amantes se encontravam.
O tempo esteve �ptimo, as crian�as estavam maravilhadas por v�-la de novo e, fiel � sua palavra, Alexei at� a "ensinou" a nadar e Nikolai ajudou "um pouco".
A �nica coisa que agora lamentava era que n�o tivesse conhecido os seus filhos; por�m, isso n�o era por enquanto poss�vel. Marie ainda n�o concordara com o div�rcio, mas, pelo menos, tinha ido passar o Ver�o com o pai a Hampshire e levara os rapazes c
om ela. Nikolai esperava que estar de novo em Inglaterra a recordasse do quanto gostava da sua terra natal e a fizesse querer mudar-se para l�. Contudo, tal parecia-Ihe uma perspectiva demasiado optimista, j� que Marie fazia ten��es de continuar casad
a com ele, nem que fosse s� para o atormentar.
� N�o importa, meu amor. Somos felizes assim, n�o so
mos? - recordou-lhe Danina quando voltaram a falar no di
v�rcio. Estavam t�o felizes por poderem estar juntos durante
um m�s inteiro. Tomavam todos os dias o pequeno-almo�o
sozinhos no terra�o e o resto das refei��es com a fam�lia im
perial. Passavam o dia todo com eles, mas as longas e apaixo
nadas noites eram passadas nos bra�os um do outro.
� Quero dar-te mais do que uma casa de empr�stimo
por bondade do czar - disse Nikolai melancolicamente uma
manh�, odiando Marie mais do que nunca por n�o lhe dar a
liberdade que merecia.
� Um dia teremos mais do que isso e eu posso continuar
a dan�ar enquanto tiver de o fazer - confortou-o Danina,
mais conformada com o seu destino do que ele. Nikolai
preocupava-se com ela.
� Aquela mulher ainda acaba por te matar se continuares
por l� durante muito mais tempo - queixou-se. O que quer que Madame Markova sentisse por Nikolai, esse sentimento era rec�proco. Desde que Danina regressara ao bailei, h� quatro meses atr�s, estava mais magra do que nunca e ficara exausta com a viagem
desde Sampetersburgo. Era desumana a forma como a obrigavam a trabalhar.
Desta vez, Danina teve o cuidado de se exercitar bem todos os dias para que n�o perdesse a tonicidade muscular durante a sua estada em Livadia. A czarina at� mandara instalar uma barra especialmente para ela. Alexei adorava passar horas a v�-la pratic
ar e dan�ar. Depois dos exerc�cios, dava longos passeios a p� com Nikolai.1 Estava em perfeita forma f�sica quando o m�s chegou ao fim, mas, ap�s aquele per�odo de felicidade completa, n�o suportava a ideia de o deixar outra vez.
� N�o podemos continuar assim para sempre, a ver-nos
apenas por alguns minutos uma vez por m�s quando me vais
visitar. N�o me importa ter de dan�ar, mas n�o suporto estar
longe de ti - disse-lhe Danina tristemente. E n�o existiriam
mais f�rias at� Dezembro. A fam�lia imperial j� a convidara a
passar o Natal com eles em Tsarskoie Selo. Podia at� ficar na
mesma casa de h�spedes onde convalescera. Por�m, o Natal
estava ainda a quatro meses de dist�ncia e, at� l�, Danina teria
de suportar muita coisa. Seriam quatro meses de inferno �s
m�os de Madame Markova, a ser castigada por amar um ho
mem mais do que o ballct. Era uma forma de vida doentia.
� Quero que deixes de dan�ar no Natal - disse-lhe fi
nalmente Nikolai na �ltima noite que passaram juntos. -
Havemos de encontrar uma maneira de resolver a situa��o.
Talvez possas ensinar ballet �s gr�-duquesas ou a algumas das
damas de companhia. Pode ser que eu te consiga arranjar uma
pequena casa perto do pal�cio, para que possas ficar perto de
mim. - Era a �nica esperan�a que lhes restava, se Marie n�o
concordasse mesmo com o div�rcio.
� Logo veremos - volveu ela. - N�o deves arriscar to
da a tua vida por mim. A Marie pode arranjar-te problemas
junto do czar ou provocar um terr�vel esc�ndalo. N�o preci
sas disso.
� Falarei com ela novamente quando regressar de Ingla
terra e depois irei visitar-te.
Contudo, assim que Danina partiu para Sampetersburgo, Alexei adoeceu e a presen�a de Nikolai foi necess�ria a toda a hora durante as seis semanas que se seguiram. O m�s de Outubro ia j� a meio quando p�de finalmente ir v�-la. Madame Markova mantivera
Danina como prima ballerina, e esta dan�ara Giselle, como prometido.
Desta vez, Nikolai s� trazia m�s not�cias: Alexei continuava doente, embora um pouco melhor - o suficiente para que pudesse ausentar-se por umas horas - e duas das gr�-duquesas tinham apanhado gripe, o que tamb�m o mantinha bastante ocupado. Danina ac
hou-o muito cansado e triste, embora obviamente feliz por a ver.
Marie regressara de Inglaterra h� duas semanas ainda mais convencida a n�o se divorciar. Come�ara a ouvir boatos sobre Danina e amea�ava provocar um grande esc�ndalo. Na verdade, Marie estava a fazer chantagem com o marido, a mante-lo como ref�m e, qu
ando este lhe perguntara a raz�o, declarara que ele tinha a obriga��o de a tratar com respeito e de n�o envergonhar os filhos, embora admitisse nunca o ter amado. Achava humilhante ser trocada por outra mulher, especialmente uma bailarina, e dissera-o
como se Danina fosse uma prostituta, o que o enraiveceu ainda mais. Seguiu-se uma intermin�vel discuss�o que n�o os conduziu a parte alguma. Danina percebeu que Nikolai estava bastante deprimido por causa disso.
Voltou mais uma vez em Novembro e Madame Markova quase n�o o deixou v�-la; por�m, Nikolai foi t�o insistente que, por fim, Madame Markova j� n�o tinha mais desculpas para lhe dar. No entanto, s� permitiu que Danina o visse por meia hora, devido aos en
saios. O �nico consolo para ambos era saberem que estariam juntos durante tr�s semanas no Natal e no Ano Novo. Por agora, s� viviam para isso.
Nikolai vinha assistir a todas as suas actua��es, ou a tantas quantas podia. O pai de Danina veio tamb�m assistir a uma, como fazia todos os anos, mas infelizmente n�o estiveram no mesmo espect�culo, por isso n�o p�de apresent�-lo ao pai.
A trag�dia abateu-se sobre a fam�lia de Danina na semana antes do Natal. O irm�o mais novo, e o seu preferido, foi morto na frente oriental durante uma batalha e Danina estava
de luto por ele aquando da sua �ltima actua��o e continuava ainda muito triste quando Nikolai veio busc�-la para a levar para Tsarskoie Selo. Saber que n�o voltaria a ver o seu querido irm�o magoava-a muito e at� Alexei comentou com os pais que Danina
parecia muito abatida e bem mais calada do que o habitual quando regressou da visita que lhe fez mal ela chegou.
Por�m, o Natal com a fam�lia imperial era m�gico e a sua disposi��o melhorou na companhia de Nikolai. Mais uma vez, como acontecera durante o Ver�o em Livadia, Danina e Nikolai ficaram juntos na casa de h�spedes. Falavam do amor que sentiam um pelo ou
tro e de como era maravilhoso o tempo que passavam juntos, mas pouco podiam dizer sobre o futuro.
Marie continuava firme na sua decis�o. Ainda assim, Nikolai come�ara a ver pequenas casas para Danina e estava determinado em poupar dinheiro suficiente para lhe comprar uma, de modo a que pudesse deixar de dan�ar e come�assem a viver juntos. Todavia,
ambos sabiam que isso levaria o seu tempo, talvez at� bastante. Danina prometera a si mesma, e a Nikolai, que continuaria a dan�ar at� � Primavera e talvez at� ao final do pr�ximo ano.
Assim que regressou ao ballet, come�ou a sentir-se doente. Comia ainda menos do que anteriormente e, quando Nikolai a visitou no final de Janeiro, ficou bastante preocupado com a sua apar�ncia. Estava magra e p�lida.
� Trabalhas demasiado - queixou-se, como era habi
tual, embora desta vez com mais veem�ncia. - Acabar�o por
te matar se n�o parares, Danina.
� N�o se morre por dan�ar - brincou, detestando ter
de admitir que n�o se sentia bem. N�o queria ser mais uma
preocupa��o para ele, com Marie ainda intransigente e o cza-
r�viche doente outra vez. Nikolai j� tinha problemas de so
bra, mas a verdade � que Danina se sentia cada dia com mais
vertigens e quase desmaiara duas vezes numa aula. Ningu�m
parecia notar que n�o andava bem. Em Fevereiro sentia-se
t�o doente que certa manh� nem conseguiu levantar-se da
cama.
Nessa tarde ainda se obrigou a dan�ar, mas, quando Ma-
dame Markova a viu, estava completamente p�lida e sentada numa banco com os olhos fechados.
� Est�s doente outra vez? - perguntou Madame Mar
kova com um tom acusador, ainda relutante e incapaz de lhe
perdoar por manter um caso amoroso com o m�dico do czar.
Nem sequer tentava esconder o facto de achar tudo aquilo
uma vergonha e distanciara-se de Danina.
� N�o, estou bem - disse, quase sem voz. No entanto,
Madame Markova ficou preocupada e decidiu vigi�-la nos
dias que se seguiram. Quando Danina quase desmaiou num
dos ensaios ao fim da noite, Madame Markova apercebeu-se
disso instantaneamente e correu a ajud�-la.
� Queres que chame um m�dico? - perguntou, desta
vez com melhores modos. Danina estava a dar ao ballet tudo
o que tinha e mais, mas isso j� n�o chegava para satisfazer a
d�vida que Madame Markova achava que tinha para com ela.
Fora impiedosa, por�m, ao v�-la t�o doente at� ela se compa
decera. - Queres que chame o doutor Obrajensky? - per
guntou, para des�nimo da sua pupila.
Danina teria ficado mais do que feliz por ter uma desculpa para o ver; todavia, n�o queria assust�-lo, pois tinha a certeza de que estava muito doente. J� passara mais de um ano desde que adoecera com gripe e, nos dez meses que haviam decorrido desde
que regressara ao ballet, esfor�ara-se t�o violentamente que agora come�ava a acreditar que acabaria por destruir a sua sa�de, tal como Nikolai previra.
Sentia a cabe�a constantemente � roda, j� n�o conseguia comer nada sem vomitar e mal conseguia p�r um p� frente ao outro. No entanto, continuava a dan�ar dezasseis e dezoito horas por dia e, � noite, quando se deitava para dormir, sentia que acabaria
por morrer durante o sono. Talvez Nikolai tivesse raz�o, pensou uma noite deitada na cama com vontade de vomitar, mas sem for�as para se levantar. Talvez o ballet acabasse mesmo por mat�-la.
Cinco dias mais tarde, era incapaz de se levantar da cama e sentia-se t�o mal que nem se importava com o que Madame Markova decidisse fazer com ela. Tudo o que Danina queria era ficar ali deitada e morrer. Apenas lamentava n�o voltar a ver Nikolai e i
nterrogava-se sobre quem iria dar-lhe a not�cia depois de falecer.
Estava deitada de olhos fechados, sem�-inconsc�ente, vendo o quarto rodar � sua volta sempre que os abria, quando come�ou a sonhar que Nikolai estava ali junto � sua cama. Sabia que isso n�o podia ser verdade; pensou se n�o estaria novamente delirante
, como quando tivera gripe. At� o ouvia falar com ela, chamar o seu nome e depois virar-se para falar com Madame Markova, perguntando-lhe por que raz�o n�o o tinham chamado mais cedo.
� Ela n�o queria que eu o chamasse - ouviu a vis�o de
Madame Markova responder. Depois abriu os olhos e viu-o
ali. Mesmo que a vis�o n�o fosse real, pensou, era tal e qual
Nikolai. Sentiu ent�o o calor da sua m�o enquanto lhe toma
va o pulso e viu-o inclinar-se at� junto de si e perguntar-lhe
se conseguia ouvi-lo. Danina foi apenas capaz de assentir com
a cabe�a, pois estava demasiado fraca at� para falar.
� Temos de a levar para o hospital - disse de imediato
a vis�o. Desta vez, Danina n�o tinha febre.
Nikolai n�o sabia o que se passava com ela, excepto que estava muito doente e que n�o conseguia aguentar nada no est�mago h� j� tantos dias que parecia estar a morrer. Enquanto a examinava, os seus olhos encheram-se de l�grimas.
� Obrigaram-na a trabalhar at� � morte, madatne - de
clarou Nikolai com uma f�ria que quase n�o controlava. -
Se ela morrer, ter� de prestar contas a mim, e ao czar -
acrescentou ainda. Ao ouvi-lo falar, Danina apercebeu-se de
que n�o era nenhuma vis�o e que n�o estava a sonhar. Era
mesmo Nikolai.
� Nikolai? - chamou debilmente. Ele segurou-lhe na
m�o outra vez e sussurrou ao aproximar-se dela.
� N�o fales, meu amor, tenta descansar. Eu estou aqui.
- Ouviu-o ent�o falar de ambul�ncias e hospitais e tentou
dizer-lhe que n�o precisava, que era desnecess�rio, pois ape
nas queria ficar ali deitada na cama e morrer com ele ao seu
lado a segurar-lhe a m�o.
Nikolai mandou ent�o toda a gente sair e examinou-a calmamente, recordando com saudade o seu belo corpo. H� dois meses que n�o a via e nada mudara entre eles. Continuavam a amar-se como sempre, mas, por enquanto, Danina ainda pertencia ao ballet e ele
a Marie. Ambos se come�avam a
interrogar se alguma vez ficariam juntos, ou se seria sempre assim.
� O que aconteceu? Consegues dizer-me?
� N�o sei... Sempre a sentir-me mal... - murmurou,
adormecendo enquanto falava e acordando outra vez com
v�mitos violentos. No entanto, h� muito que o seu est�mago
nada tinha para vomitar, nem b�lis. Para Danina era mais f�cil
n�o comer nem beber para n�o ter de andar a vomitar a toda
a hora, mas continuava a dan�ar dezasseis horas por dia e a es
for�ar-se at� n�o poder mais.
� Fala comigo, Danina - insistiu, acordando-a de novo.
Come�ava a temer que entrasse em coma devido � inani��o,
desidrata��o e grau de exaust�o em que se encontrava. O bal-
let for�ara-a a dan�ar at� ao limite e agora o seu corpo estava
a ceder � constante press�o e � falta de alimento. - O que
sentes? H� quanto tempo est�s assim? - insistia Nikolai, j�
muito inquieto.
Madame Markova continuava � espera que decidisse se queria ou n�o lev�-la para o hospital, para que chamasse uma ambul�ncia. Nikolai n�o tinha a certeza, mas estava a ficar cada vez mais assustado.
� H� quanto tempo te sentes assim? - perguntou mais
uma vez. N�o estava assim t�o mal da �ltima vez que a vira,
embora n�o tivesse bom aspecto e at� lhe tivesse confessado
que nos �ltimos tempos n�o andava a sentir-se muito bem.
� Um m�s... dois meses - respondeu a custo.
� Andas a vomitar desde essa altura? - inquiriu, j� hor
rorizado. H� quanto tempo n�o se alimentaria conveniente
mente? E quanto tempo sobreviveria assim? Agradeceu a
Deus que Madame Markova o tivesse por fim mandado cha
mar. Na verdade, esta temera as consequ�ncias de n�o o fazer,
dada a liga��o de Danina � fam�lia imperial. Para al�m disso,
apesar da raiva que sentia contra a sua pupila, ainda a amava e
ficou aterrorizada com o aspecto dela.
� Danina, fala comigo. Quando � que isto come�ou
exactamente? Tenta recordar-te - pressionou-a enquanto ela
abria os olhos e tentava lembrar-se de quando come�ara a
sentir-se doente. Parecia-lhe h� uma eternidade.
� Em Janeiro, quando regressei das f�rias de Natal -
afirmou, por fim. J� se tinham passado quase dois meses.
Tudo o que Danina queria agora era dormir e que Niko-lai parasse de falar.
* Sentes dores em algum lado? - perguntou ele en
quanto lhe apalpava o corpo. Ela n�o se queixava de nada.
Estava apenas excessivamente fraca e malnutrida, fam�lica na
realidade. Nikolai ainda pensou que fosse o ap�ndice, embora
n�o houvesse sinais de infec��o, ou uma �lcera que tivesse re
bentado. No entanto, Danina garantiu-lhe que nunca vomi
tara sangue ou qualquer coisa escura e estranha.
N�o havia outros sintomas para al�m do facto de andar a vomitar h� cerca de dois meses e de estar quase inconsciente e demasiado fraca para se mexer. Nikolai nem se atreveu a lev�-la para o hospital at� perceber melhor o que se passava. N�o acreditava
que fosse tuberculose ou tifo, embora n�o fosse imposs�vel e, nesse caso, j� estaria em fase terminal. No entanto, Nikolai achava que n�o era isso.
Auscultou-lhe os pulm�es e o cora��o. O pulso estava fraco, mas continuava sem perceber o que se passava. Por fim, perguntou-lhe uma coisa que sabia que ela ia achar indelicada; por�m, n�o era apenas o seu amante, era tamb�m o seu m�dico e precisava d
e saber a resposta. O corpo estava t�o esgotado que n�o era invulgar que a sua natureza feminina deixasse de se manifestar m�s ap�s m�s. Depois lembrou-se de outra coisa. Tinham sido sempre t�o cuidadosos... Excepto depois do Natal e apenas uma vez ou
duas.
Examinou-a mais uma vez e percebeu de imediato o que se passava. Suavemente, apalpou-lhe o fundo do abd�men e sentiu uma pequena protuber�ncia, grande o suficiente para lhe confirmar o que nem suspeitara. Danina estava quase de certeza gr�vida de dois
meses e esfor�ara-se tanto que poderia ter morrido. Caso estivesse gr�vida, no estado em que se encontrava, era um milagre que n�o tivesse perdido o beb�.
* Danina - sussurrou quando ela voltou a acordar -,
acho que est�s gr�vida.
Danina abriu os olhos, espantada. Pensara nisso uma vez ou outra, mas pusera de parte tal ideia. N�o podia ser, n�o podia pensar nisso; por�m, quando ele lho disse, percebeu que era verdade e fechou os olhos outra vez, deixando escapar uma l�grima.
� O que faremos agora? - murmurou, olhando para ele
desesperada. Isto destruiria a vida de ambos e agora � que
Marie, por vingan�a, nunca consentiria no div�rcio.
� Tens de regressar comigo. Podemos viver na casa de
h�spedes at� te sentires mais forte - sugeriu ele, mas isso era
apenas uma solu��o tempor�ria e ambos o sabiam. Tinham
agora problemas bem maiores a resolver.
� E depois? - inquiriu Danina com um olhar triste. -
N�o posso ir viver contigo, tu n�o podes casar comigo, o czar
tira-te o cargo, n�o temos ainda dinheiro para comprar uma
casa e, se o teu diagn�stico se confirmar, n�o poderei dan�ar
por muito mais tempo. - Sabia de v�rias raparigas que conti
nuavam a dan�ar enquanto podiam, mas eram inevitavelmen
te descobertas depois de um m�s ou dois e banidas. Algumas
at� perdiam os beb�s devido aos �rduos treinos e ensaios.
A situa��o piorara para os dois.
* Juntos encontraremos uma solu��o - confortou-a Ni-kolai, muito preocupado.
N�o podia sequer dar-lhe um lugar para morar, quanto mais um lar para criarem o beb�, mas n�o imaginava nada mais belo do que uma crian�a nascida do amor entre ambos. Como haveriam de o sustentar quando j� n�o pudesse dan�ar? As poupan�as de ambos era
m m�nimas e ela ganhava mais fama do que dinheiro. Marie e os rapazes tamb�m consumiam tudo o que ele ganhava.
* Logo veremos o que havemos de fazer - repetiu Ni-
kolai carinhosamente enquanto a abra�ava, mas ela apenas
abanava a cabe�a e chorava. Estava desesperada. - Deixa-me
levar-te comigo. Ningu�m precisa de saber por que motivo
est�s doente. Temos de falar sobre isto.
Contudo, ela sabia melhor do que ningu�m que n�o havia nada a conversar. A concretiza��o dos seus sonhos estava ainda bem longe no futuro.
* Tenho de ficar - declarou Danina, pois a ideia de se
mover dali fazia-a sentir-se ainda mais doente. Desta vez, n�o
podia ir com Nikolai, embora ele detestasse ter de a deixar,
principalmente agora, sabendo que esperava um filho seu.
Ficou com ela at� bem tarde e disse a Madame Markova que receava uma �lcera grave e que seria melhor lev�-la para
a casa de h�spedes do pal�cio at� ela melhorar. Foi Danina quem o contrariou e disse a Madame Markova que n�o queria sair dali, que se sentia demasiado doente e que poderia convalescer t�o rapidamente ali como em Tsarskoie Selo, o que n�o era verdade,
e todos o sabiam. � claro que Madame Markova ficou muito satisfeita e tomou a recusa como um sinal de que a rela��o com Nikolai estava a chegar ao fim. Era a primeira vez que Danina contrariava uma decis�o tomada por ele.
� Somos perfeitamente capazes de cuidar bem dela aqui,
doutor, embora talvez sem o conforto de Tsarskoie Selo -
disse Madame Markova com um tom sarc�stico. Nikolai fi
cou zangado por Danina n�o querer ir consigo e, depois de
Madame Markova deixar o quarto, tentou ainda, em v�o,
convenc�-la.
� Quero-te comigo. Quero cuidar de ti, Danina. Tens
de vir comigo.
� Por quanto tempo? Um m�s, dois? E depois? - per
guntou, lastimosa. Para ela havia apenas uma solu��o, mas
n�o disse nada a Nikolai. Sabia de outras raparigas que o ha
viam feito e sobrevivido. Tamb�m queria acima de tudo ter
aquele beb�, por�m n�o tinham hip�teses de o criar. Talvez
mais tarde, mas n�o agora, nas circunst�ncias em que se en
contravam. Tinham de enfrentar a realidade e talvez Nikolai
n�o estivesse pronto para a encarar. Na verdade, nem ela sa
bia bem se estaria.
� Tens de ir, Nikolai. Podes voltar daqui a uns dias.
� Voltarei amanh� - declarou e partiu extremamente
alarmado com a situa��o. Apenas se tinham descuidado uma
vez ou duas e aquilo era a �ltima coisa que esperara. Agora,
tinha de a ajudar a encontrar uma solu��o. Sabia bem que a
culpa era sua, mais do que dela, portanto, sofria ao pensar que
era Danina quem estava a pagar por isso.
Quando regressou no dia seguinte, nenhum dos dois tinha uma solu��o simples para resolver a situa��o. N�o podiam sustentar um beb�, nem sequer um local onde este pudesse viver. Danina bem sabia que n�o era poss�vel, embora ele insistisse que sim, e ne
m sequer tentou argumentar com ele. Limitava-se a ficar ali deitada, sentindo-se muito infeliz,
chorando silenciosamente e continuando a vomitar. Nikolai obrigava-a a comer e a beber o m�ximo que conseguisse e parecia-lhe um pouco mais forte, mas sentia-se t�o mal que quase n�o acreditava que estava a melhorar. Tamb�m ele chorava, sentindo-se im
potente. Sabia que Danina iria ficar melhor dentro de um m�s ou dois; por enquanto, por�m, era obrigado a v�-la sofrer.
Quando partiu, Danina foi falar com uma das outras bailarinas. Segundo o que ouvira dizer, a rapariga com quem ia falar, Valeria, j� o tinha feito duas ve/es. Valeria disse-lhe onde deveria ir e com quem deveria falar e at� se ofereceu para a acompanh
ar. Danina aceitou e agradeceu a ajuda da colega.
As duas raparigas sa�ram discretamente na manh� seguinte quando os restantes se encontravam na igreja. Era domingo e Madame Markova estava na missa, como era seu h�bito. Danina encontrava-se demasiado doente para ir e Valeria inventou uma enxaqueca. T
iveram quase de atravessar a cidade e Danina parava de cinco em cinco minutos para vomitar, mas por fim chegaram ao seu destino, um bairro pobre e cheio de lixo por toda a parte.
Era uma casa pequena e sombria com umas cortinas muito sujas na janela. O aspecto da mulher que abriu a porta fez Danina estremecer; por�m, Valeria garantiu que seria r�pido e bem feito. Trouxera todas as suas economias, e ficara horrorizada ao saber
quanto lhe iria custar.
A mulher que se autodenominava "enfermeira" fez a Danina uma s�rie de perguntas. Queria ter a certeza de que a gravidez n�o ia j� muito avan�ada, mas dois meses pareceram n�o a preocupar. Depois de lhe pedir metade do dinheiro que trouxera, conduziu-a
a um quarto no fundo da casa. Os len��is e cobertor pareciam imundos e havia manchas de sangue no ch�o que ningu�m se preocupara em limpar depois da sa�da da �ltima pessoa que recorrera aos servi�os da "enfermeira".
A mulher, j� de uma certa idade, lavou as m�os numa bacia de �gua que se encontrava no canto do quarto e aproximou um tabuleiro de instrumentos, garantindo que estavam lavados. Danina achou-os horr�veis e voltou a cara para o outro lado.
* O meu pai era m�dico - explicou a "enfermeira",
mas Danina n�o queria saber as refer�ncias da mulher, apenas
que tudo terminasse depressa.
Sabia que, se Nikolai desconfiasse das suas inten��es, tudo faria para a impedir e que, se descobrisse, talvez nunca lhe perdoasse. N�o podia pensar agora nisso. O pior era que ambos desejavam esse beb�, embora n�o o pudessem ter. Tinha de fazer aquil
o pelos dois, por mais terr�vel que fosse e ainda que a pudesse matar. Enquanto pensava nisto, a "enfermeira" ordenou-lhe que tirasse a roupa. As m�os de Danina tremiam descontroladamente. Deitou-se ent�o na cama imunda apenas de camisola, a mulher ex
aminou-a e acenou com a cabe�a, sentindo, tal como Nikolai, o pequeno incha�o no fundo da sua barriga.
Nada por que j� passara durante a vida a preparara para aquela humilha��o e horror. A repugn�ncia que sentia f�-la vomitar; por�m, isso n�o era uni entrave para a "enfermeira" que assegurou a Danina que tudo seria muito r�pido. Disse-Ihe ainda que pod
ia ficar uns instantes at� se sentir com for�as para andar, mas que depois teria de partir. Se surgisse algum problema, deveria chamar um m�dico e nunca regressar ali. Depois do trabalho feito, o resto ficava � responsabilidade de Danina. N�o a deixar
ia entrar se resolvesse regressar, disse-Ihe a mulher, de forma um pouco sombria.
* Vamos ent�o come�ar - disse a "enfermeira" com um
ar decidido. Gostava de tratar das suas "doentes" rapidamente,
antes que lhe causassem problemas, e o facto de Danina con
tinuar a vomitar n�o a impediu de prosseguir. No entanto,
Danina pediu-lhe que esperasse um minuto e depois fez-lhe
sinal com a m�o que j� estava pronta, demasiado assustada pa
ra falar.
Seguindo as instru��es da "enfermeira", agarrou-se aos ferros da cama. Depois, com um bra�o, esta segurou-lhe uma das pernas para baixo ao mesmo tempo que lhe ordenava que n�o se mexesse. O problema era que as pernas de Danina n�o paravam de tremer.
O que Valeria lhe contara n�o a preparara para a intensa dor que sentiu quando a mulher introduziu dentro si um dos seus instrumentos. Danina tentou n�o gritar ou sufocar no seu
pr�prio v�mito. A dor parecia n�o terminar e o quarto come�ou a rodar � sua volta, at� que, por sorte, desmaiou. De repente, a mulher estava a aban�-la e havia uma compressa h�mida sobre a sua testa. A "enfermeira" declarou-lhe que j� podia levantar-s
e. Tinha terminado.
* Acho que ainda n�o consigo p�r-me de p� - disse
Danina, ainda d�bil.
O cheiro a vomitado empestava o quarto e a vis�o de uni balde de sangue perto da cama quase a fez desmaiar de novo. Sem esperar, a mulher ajudou-a a p�r-se de p� e a vestir-se. Cambaleava enquanto a mulher lhe punha um amontoado de trapos entre as per
nas. Era tudo demasiado insuport�vel. Arrastou-se ent�o para a outra sala onde a amiga a esperava, mas mal conseguia distingui-la de t�o tonta que se sentia. Ficou estupefacta ao perceber que n�o tinha ainda sequer passado uma hora desde que chegaram.
Valeria parecia preocupada, embora aliviada. Tendo j� passado pelo mesmo, sabia melhor do que ningu�m o inferno por que Danina passara.
* Leva-a para casa e deita-a - disse a "enfermeira", se
gurando a porta da rua para elas passarem. Tiveram sorte em
encontrar um t�xi por ali. Mais tarde, Danina nem se lembra
va da viagem de regresso � escola de ballet, apenas de subir
para a cama e sentir os trapos entre as pernas e a dor lanci
nante que a mulher lhe deixara no interior. N�o conseguia
pensar em nada, nem em Nikolai, nem no beb�, nem no que
acabara de fazer. Limitou-se a estender-se na cama com um
gemido e, no espa�o de segundos, ficou inconsciente.
CAPITULO 7.
Quando Nikolai veio visit�-la nessa tarde, encontrou-a a dormir profundamente com a roupa vestida. N�o fazia ideia de onde teria ido ou o que fora fazer, por isso, ficou aliviado por estar ao menos a dormir, at� olhar para ela com mais aten��o. A sua
cara estava muito p�lida e os l�bios um pouco arroxeados. Quando lhe tomou o pulso ficou apavorado e quando a tentou acordar descobriu que n�o conseguia. Percebeu de imediato que n�o estava a dormir, mas inconsciente. E quando, quase por instinto, lhe
puxou os cobertores para baixo, verificou que estava imersa numa po�a de sangue que alastrara em seu redor. Estava a perder sangue h� horas.
Desta vez n�o hesitou um segundo. Mandou uma das bailarinas chamar uma ambul�ncia e come�ou a despir Danina. Estava quase morta e n�o fazia ideia da quantidade de sangue que perdera, embora o que via em seu redor lhe parecesse imenso. Os trapos que lh
e encontrou no meio das pernas revelaram-lhe tudo o que acontecera.
* Oh, meu Deus... Danina.
N�o havia nada que pudesse fazer para travar a hemorragia. Precisava de ser operada e talvez nem isso a salvasse. Assim que soube o que se passava, Madame Markova correu para o quarto de Danina. A cena que l� se lhe deparou n�o deixava margens para d�
vidas. Nikolai estava sentado ao seu lado, segurando-lhe na m�o enquanto as l�grimas lhe corriam pela face abaixo. O seu ar de desespero chegou mesmo a comover Madame Markova, mas, assim que esta entrou no quarto, a ang�stia e a afli��o de Nikolai tra
nsformaram-se rapidamente em raiva.
� Quem � que a deixou fazer isto? - berrou. - Sabia
de alguma coisa? - continuou num tom de acusa��o e f�ria.
� N�o sabia de nada - protestou Madame Markova. -
Provavelmente ainda menos do que o doutor. Deve ter sa�do
quando est�vamos na missa - explicou, temendo pela vida
de Danina.
� H� quanto tempo foi isso?
� H� quatro ou cinco horas.
� Meu Deus... N�o compreende que isto pode mat�-la?
� Claro que sim!
O terror que sentiam quase os levava a estrangular-se um ao outro, mas, felizmente, a ambul�ncia chegou e Danina foi levada para um hospital que Nikolai conhecia bem e este contou � equipa m�dica o pouco que sabia sobre o sucedido. Danina n�o voltou a
recuperar a consci�ncia at� � opera��o, e s� passadas duas horas � que o cirurgi�o veio falar com ele e com Madame Markova, sentados em sil�ncio na sala de espera vazia, olhando um para o outro.
� Como est� ela? - perguntou Nikolai imediatamente;
por�m, o cirurgi�o n�o parecia nada satisfeito. Fora quase
uma trag�dia e Danina estava a receber a quarta transfus�o de
sangue.
� Se ela sobreviver - disse o m�dico com um ar grave -,
ainda poder� ter filhos, mas � muito cedo para tirar conclu
s�es. Perdeu uma enorme quantidade de sangue e, quem quer
que lhe tenha feito aquilo, � um carniceiro.
Descreveu ent�o a situa��o a Nikolai em termos m�dicos e, para al�m da hemorragia que se recusava a estancar, temiam tamb�m uma grave infec��o.
� N�o ser� f�cil para ela - explicou o cirurgi�o a Mada
me Markova, que j� n�o conseguia conter as l�grimas. - De
ver� permanecer aqui durante v�rias semanas, talvez at� mais.
Saberemos melhor amanh� de manh�, se sobreviver. Por ago
ra, fizemos tudo o que pod�amos por ela.
� Posso v�-la? - perguntou Nikolai, aterrorizado com
o facto de o cirurgi�o n�o lhes poder dar garantias de que
Danina sobreviveria.
� N�o pode fazer nada por ela agora - explicou o m�
dico. - Ainda n�o est� consciente e talvez n�o fique t�o de
pressa.
� Gostava de estar junto dela quando acordasse - pediu
Nikolai. Estava horrorizado com o que acontecera. Recrimi
nava-se por n�o ter suspeitado de nada e n�o ter podido im
pedi-la. Teriam pensado numa solu��o. Danina n�o precisava
de ter arriscado a vida para resolver o problema. Tudo se re
solveria, pensava ele. Toda a noite reflectira na maneira de
resolver o problema.
Deixaram Nikolai entrar na sala de cirurgia onde Danina estava a recuperar. Ainda lhe parecia p�lida, apesar de todas as transfus�es que j� recebera. Sentou-se silenciosamente ao seu lado e segurou-lhe na m�o. Apertou-a com carinho ao mesmo tempo que
chorava e se recordava dos momentos que haviam passado juntos e do quanto a amava. Queria matar quem a tinha posto assim.
Na sala de espera, Madame Markova parecia devastada e partilhava dos mesmos sentimentos de Nikolai. No entanto, era imposs�vel consolarem-se mutuamente. Apesar de unidos pela mesma m�goa e pelo amor � mesma pessoa, encaravam-se como inimigos.
Era j� quase meia-noite quando finalmente Danina se mexeu, emitindo um gemido dorido. Os seus l�bios estavam secos e mal conseguia abrir os olhos; por�m, quando voltou a cabe�a viu-o ali ao seu lado e sentiu um n� formar-se na garganta, ao lembrar-se
vagamente do que acontecera e do que fizera ao filho de ambos.
� Oh, Danina... perdoa-me... - disse Nikolai de ime
diato chorando como uma crian�a. Depois abra�ou-a e im
plorou que lhe perdoasse por a ter colocado naquela situa��o.
Nem sequer a recriminou pelo que fizera. Era demasiado tar
de para isso e Danina tinha j� pago um pre�o muito elevado
pela decis�o que tomara. - Como � que isto aconteceu?
Porque n�o falaste comigo antes de o fazer?
� Sabia... que nunca... permitirias... Desculpa - expli
cou tamb�m no meio de l�grimas. Ambos choraram pelo fi
lho que perderam. Nikolai sabia, s� de olhar para ela, que de
correria muito tempo at� que se recompusesse do que
acontecera. De manh�, o cirurgi�o declarou que Danina esta
va fora de perigo e Nikolai quase chorou de al�vio. Por res
peito, foi dar a not�cia a Madame Markova que, pouco de
pois, partiu sem ver Danina. O m�dico dissera que estava
ainda muito doente para receber visitas e Nikolai concordou
com ele.
N�o saiu do seu lado durante toda o dia e s� no princ�pio da noite � que foi a casa mudar de roupa, ver como estava Alexei e perguntar ao Dr. Botkin se este poderia continuar a substitu�-lo. Explicou que tinha uma amiga gravemente
doente no hospital e que precisava de estar com ela e, embora o colega n�o o perguntasse, sabia de quem se tratava.
� Ela vai ficar bem? - perguntou o Dr. Botkin, assusta
do com o ar angustiado e destro�ado do seu colega. Fora urna
noite de agonia para Nikolai.
� Espero que sim - respondeu.
Voltou para o hospital j� a noite ia avan�ada e ficou junto dela toda a noite, mais uma vez sem dormir. Danina alternava entre per�odos inconscientes e conscientes, murmurando, falando com pessoas que s� ela via. Gritou o seu nome mais do que uma vez,
pedindo-lhe ajuda. Dilacerava-lhe o cora��o v�-la naquele estado, mas n�o arredou p� dali, acariciando-lhe a m�o e pensando no futuro e nos filhos que esperava ainda pudessem ter.
S� dois dias depois � que a hemorragia parou por completo e as transfus�es come�aram a ajud�-la. Estava ainda muito fraca para se sentar e era ele quem a alimentava. Dormia numa cama improvisada ao seu lado. Depois de a ver um pouco melhor, atreveu-se
por fim a dormir. Estava exausto, mas eternamente grato por Danina ter sobrevivido.
� Como te sentes hoje? - perguntou-lhe num tom ca
rinhoso, observando os c�rculos negros em torno dos seus
olhos. Estava ainda um pouco p�lida.
� Um pouco melhor - mentiu. N�o se lembrava de
outras raparigas que tivessem ficado t�o mal numa situa��o se
melhante, embora n�o fosse raro ouvir-se falar de mulheres
que acabavam por morrer. Na verdade, Danina nunca se
apercebera verdadeiramente do risco que corria e, ainda que
soubesse, teria tomado a mesma decis�o. N�o tivera escolha e,
mesmo agora, com Nikolai ao seu lado, sabia que nunca po
deriam ter tido aquele filho. Teria destru�do tudo, a carreira
dele, a dela. N�o havia espa�o para uma crian�a nas suas vi
das. Mal havia para ambos, apesar de se amarem muito. Era
uma vida de momentos roubados, apenas com a esperan�a e a
promessa de um futuro. N�o era ainda uma vida na qual pu
dessem incluir uma crian�a.
� Quero que venhas comigo para Tsarskoie Selo - dis
se-lhe sabendo que ela o estava a ouvir. Danina abriu os
olhos. - Podes ficar de novo na casa de h�spedes. Ningu�m
precisa de saber por que motivo est�s doente ou o que aconteceu. - Por�m, Nikolai sabia que durante bastante tempo estaria fraca de mais para sair do hospital e havia ainda o risco de infec��o, que poderia ser fatal. Tanto Nikolai como o cirurgi�o est
avam ainda muito preocupados com o seu estado de sa�de.
� N�o posso fazer isso outra vez. N�o posso abusar da
boa vontade da czarina - explicou, embora n�o houvesse
nada que mais desejasse do que estar com ele. Adorava a do
�ura que se instalava quando estavam juntos, mas n�o podia
abandonar novamente o ballet, pois sabia que desta vez Mada-
me Markova n�o a aceitaria de volta nem lhe perdoaria,
doente ou n�o. Pagara um pre�o elevado pela �ltima conva
lescen�a e precisava do ballet. Nikolai n�o podia ajud�-la, n�o
era livre para casar com ela ou capaz de a sustentar. Tinha de
contar consigo mesma.
� S� poder�s voltar a dan�ar daqui a muito tempo -
disse ele carinhosamente. Depois decidiu contar-lhe a ideia
que tivera. - Quero que penses uma coisa. Considerei mi
lhares de maneiras de resolver o nosso problema enquanto
n�o acordavas. N�o podemos continuar assim. A Marie nunca
consentir� no div�rcio e Madame Markova nunca permitir�
que abandones o ballet. Quero estar contigo, Danina, quero
que tenhamos uma vida juntos, longe de tudo isto e das pes
soas que nos querem separar. Quero estar contigo sempre,
longe daqui, num local onde possamos come�ar de novo.
N�o podemos casar, mas ningu�m precisa de o saber. -
E depois acrescentou: - Num outro local at� poder�amos ter
os nossos pr�prios filhos.
Danina baixou os olhos quando o ouviu pronunciar aquelas palavras e Nikolai apertou-lhe a m�o. Ambos sentiam a perda daquele filho.
� N�o existe nenhum lugar onde possamos fazer isso.
Para onde ir�amos? Como nos sustentar�amos? Se Madame
Markova decidir desacreditar-me, nenhuma outra companhia
de ballet me aceitar�. - Danina pensava em Moscovo e nou
tras cidades da R�ssia, ele n�o. O seu plano era bem mais au
dacioso.
� Tenho um primo na Am�rica, num local chamado
Vermont. Fica no Nordeste da Am�rica que ele afirma ser muito parecido com a R�ssia. Tenho dinheiro guardado suficiente para as passagens at� l�. Poder�amos viver com ele nos primeiros tempos. Eu encontrarei um emprego e tu podes ensinar ballet algure
s, a crian�as.
Danina sabia que Nikolai falava ingl�s perfeitamente por causa da mulher, mas ela n�o. Para al�m disso, n�o se imaginava a viver num mundo t�o distante do seu e s� a mera ideia era assustadora.
� Como haver�amos de fazer, Nikolai? Podes praticar
medicina l�? - perguntou, estupefacta com a ideia dele.
� A seu tempo, sim. Teria de voltar a estudar l�. Claro
que levaria algum tempo, mas entretanto poderia fazer outras
coisas.
O qu�, perguntava-se enquanto o escutava. Limpar est�bulos? Tratar de cavalos? A situa��o parecia-lhe insol�vel. N�o havia com certeza nenhuma escola de ballet em Vermont, onde quer que isso fosse. Quem ensinaria? Quem contrataria qualquer um dos dois
? Como chegariam � Am�rica?
* Tens de deixar-me ir para a frente com isto. E a nossa
�nica esperan�a, Danina. N�o podemos permanecer aqui.
Todavia, partir implicava uma s�rie de trai��es e abandonos: os filhos e a mulher, o czar e a fam�lia que haviam sido t�o am�veis com ele, Madame Markova e o ballet. Dera-lhes tudo, a sua vida, a sua alma, o seu cora��o, o seu corpo e em troca o balle
t dera-lhe uma vida, a �nica que conhecia, e um lar. O que faria nessa terra chamada Vermont? E se ele se fartasse e a abandonasse l�? Era a primeira vez que pensava nisso; por�m, a ideia assustava-a e Nikolai podia ver perfeitamente o medo nos seus o
lhos.
� N�o sei... � t�o longe... E se o teu primo n�o nos qui
ser l�?
� Vai querer com certeza. � um homem generoso.
� mais velho do que eu, vi�vo e sem filhos. J� me convidou
repetidas vezes para o ir visitar. Se eu lhe disser que precisa
mos da ajuda dele, n�o hesitar� em faz�-lo. Tem uma casa
grande e algum dinheiro. � dono de um banco e vive sozi
nho. Vai receber-nos com prazer. Danina, � a �nica esperan
�a que temos de um futuro juntos. Temos de come�ar algures
e esquecer tudo o que conhecemos aqui.
Por muito que Danina quisesse estar com ele, n�o tinha a certeza de ser capaz de abandonar tudo e partir para o desconhecido.
� N�o penses nisso agora. Primeiro tens de ficar boa e
depois logo falaremos outra vez. Entretanto, escreverei ao
meu primo e verei o que me diz - rematou Nikolai.
� Ningu�m nos perdoaria - lembrou, aterrorizada.
� E se ficarmos aqui... o que teremos? Alguns minutos
juntos, alguma semanas por ano quando a czarina te convidar
para Tsarskoie Selo ou para Livadia? Quero ter uma vida
contigo. Quero acordar ao teu lado todas as manh�s, cuidar
de ti quando estiveres doente.... N�o quero que uma coisa
destas volte a acontecer-te.... Danina, quero ter filhos contigo
- declarou do fundo do cora��o. Tamb�m desejava a vida
que ele acabara de descrever, mas teriam de magoar toda a
gente que amavam para poderem ser livres.
� E o meu pai e os meus irm�os? - argumentou. A sua
fam�lia, a sua vida estavam aqui, na R�ssia. N�o podia voltar
as costas a tudo isso por amor a ele, e, no entanto, Nikolai es
tava disposto a faz�-lo, e tinha tanto a perder quanto ela. Te
ria de abandonar os filhos, a mulher e a carreira para poder
concretizar esse sonho.
� Tu pr�pria me disseste que nunca v�s a tua fam�lia -
recordou-lhe e, na verdade, h� dois anos que os irm�os e o
pai estavam na frente. - De certeza que ficariam felizes por
ti - declarou Nikolai, esfor�ando-se ao m�ximo para a con
vencer. - N�o poder�s dan�ar para sempre, Danina.
Quando ouviu isto, lembrou-se de tudo o que Madame Markova sempre lhe dissera.
� Depois posso dedicar-me ao ensino, como Madame
Markova.
� Tamb�m podes ensinar em Vermont. Talvez at� possas
abrir uma escola de ballet. Eu ajudar-te-ei - afirmou Nikolai.
Parecia t�o seguro de que tudo correria bem.
� Tenho de pensar nisso - disse ela, exausta s� com a
perspectiva de ter de tomar uma decis�o de tal monta e acar
retar com as consequ�ncias para o resto da vida.
* Descansa agora. Falaremos melhor mais tarde.
Danina acenou que sim com a cabe�a e deixou-se nova-
mente dormir. Todavia, teve pesadelos horr�veis, com lugares desconhecidos e assustadores. N�o parava de sonhar que se desencontrava de Nikolai e que percorria ruas e ruas � sua procura, sem nunca o encontrar. Acordou a chorar e assustada, mas Nikolai
n�o estava ao seu lado. Deixara-lhe uma mensagem a dizer que fora ver como estava Alexei e que voltaria na manh� seguinte.
Permaneceu no hospital durante duas semanas e, quando teve alta, o m�dico ordenou-lhe que ficasse na cama outros quinze dias. Nikolai queria que ela fosse para Tsarskoie Selo, por�m Madame Markova op�s-se terminantemente. Queria Danina no ballet e con
trap�s que a viagem seria muito extenuante. Desta vez, Danina nem sequer tinha for�as para a contrariar. A sua mentora estava muito determinada e relutante em deix�-la escapar-se das suas m�os outra vez. N�o a queria mais quatro meses a "recuperar" em
Tsarskoie Selo com o amante. Desta vez foi intransigente e, face � ferocidade das suas objec��es, Danina voltou para o ballet.
Tal como acontecera quando adoecera com gripe, Nikolai vinha v�-la todos os dias e fazia-lhe companhia at� serem horas de ir tratar das suas obriga��es. Ficava sentado ao seu lado no quarto enquanto ela descansava ou davam pequenos passeios pelo jardi
m da escola de ballet. Nikolai aproveitava para lhe ir falando de Vermont e do seu primo. Estava convencido de que esta era a �nica solu��o e queria partir assim que pudessem. Sugeriu que embarcassem no princ�pio do Ver�o, ou seja, dali a poucos meses
.
* Nessa altura, a temporada j� ter� acabado. Poder�s assim terminar o que est�s a fazer, Danina. Tens de te decidir por uma data e depois fazer por cumpri-la. N�o haver� nunca o momento ideal para partir, temos de aproveitar o momento enquanto podemos
- explicou.
Nessa altura, Danina j� teria vinte e dois anos e ele faria quarenta e um, uma boa altura para come�arem uma vida nova na Am�rica. Centenas de outros j� o haviam feito, alguns por raz�es t�o ou mais complicadas que as suas.
Danina prometeu pensar nisso, e era o que fazia, a toda a hora. N�o parava de reflectir no que seria mudar-se para uma terra que desconhecia. Madame Markova percebeu facilmen-
l
te que algo se passava. A sua pupila continuava cansada e p�lida e, por vezes, quando o m�dico partia, parecia muito infeliz. Nikolai pedia-lhe que o seguisse at� ao fim do mundo, que confiasse cegamente nele; por�m, apesar de todo o seu amor por ele,
achava o pedido muito ambicioso.
* Est�s preocupada, Danina - disse-lhe cautelosamente
Madame Markova uma tarde quando veio visit�-la. Nikolai
acabara de sair e, mais uma vez, tinham falado da mesma coi
sa, do futuro, de Vermont, do primo, de abandonar a R�ssia
e o ballet. - Ele est� a pedir-te que nos deixes, n�o �? -
perguntou, mas Danina n�o lhe respondeu. N�o queria men
tir ou dizer-lhe a verdade. - � sempre assim. Apaixonam-se
por quem somos e depois querem tirar-nos isso mesmo. Ga
ranto-te que se nos deixares isso acabar� por te matar, Dani
na. N�o ser�s nada e, quando ele te abandonar por algu�m
mais fascinante ou mais jovem, lamentar�s toda a tua vida a
decis�o que tomaste - concluiu.
As palavras de Madame Markova soavam como uma senten�a de morte e, de certa forma, at� o eram. Todavia, Danina estava a trocar a vida que conhecia ali por algo que tamb�m desejava ardentemente. Seria o fim da sua vida como bailarina, mas o in�cio de u
ma outra ao lado de Nikolai. No entanto, para a alcan�ar teria de sacrificar tudo o que conquistara at� ent�o, tal como ele.
� Se o Nikolai te amasse de verdade, Danina, n�o te pe
diria que nos deixasses - argumentou a sua mentora.
� E quando for velha, o que terei se ficar aqui?
� Uma vida que te orgulhar�s de recordar, em vez de
uma vida de desonra, que � tudo o que te poder� dar. � um
homem casado e a sua mulher nunca o deixar�. Ser�s sempre
a sua amante, a bailarina com quem ele dorme, nada mais.
Todavia, o que existia entre ambos era bem mais do que isso e Danina sabia-o.
� A madame faz as coisas parecerem vulgares, mas n�o o
s�o - disse com um tom infeliz.
� Mas � precisamente o que s�o sempre, n�o te enganes!
Muito rom�nticas ao princ�pio, um sonho que parece tornar-
-se realidade e um dia, quando se acorda, descobre-se que,
afinal, era um pesadelo. Esta � a �nica vida que alguma vez ter�s e que significar� alguma coisa para ti. Foi para isto que trabalhaste e treinaste t�o arduamente. Vais deitar tudo a perder por um homem que nem sequer pode casar contigo? Olha bem para
o que te aconteceu. Achas que foi muito bonito? Muito rom�ntico?
Eram palavras muito cru�is que desanimavam Danina e ainda lhe colocavam mais d�vidas no cora��o. E se Madame Markova tivesse raz�o? E se Nikolai a abandonasse um dia? E se detestasse Vermont, se se arrependesse de ter abandonado o ballet e n�o fossem
felizes juntos? Quem poderia saber a resposta a essas perguntas? N�o havia certezas nos planos de Nikolai, apenas promessas, esperan�as, sonhos e anseios. No entanto, estava disposto a desistir da medicina por ela, da seguran�a que tinha, da vida que
conhecera durante quinze anos com a fam�lia. Estava pronto a sacrificar tudo por ela. Porque n�o podia fazer o mesmo por ele?
* Tens de pensar nisso muito cuidadosamente e tomar a decis�o certa - advertiu Madame Markova, para quem a resolu��o correcta era, claro, ficar no ballet e esquecer Nikolai. Por�m, Danina sabia que n�o podia fazer isso. Deixar o ballet agora poderia d
estruir a sua vida, mas perder Nikolai seria a sua morte. Enquanto pensava nisso, apercebeu-se do medalh�o por baixo da blusa e sentiu-se reconfortada. Amava-o profundamente, talvez at� o suficiente para arriscar tudo e segui-lo. Agora, o que tinha a
fazer era pensar e escutar o seu cora��o.
Madame Markova deixou-a ent�o entregue aos seus pensamentos. J� espalhara as sementes que queria e esperava que germinassem e vingassem. Queria que Danina sentisse o horror de abandonar tudo por uma vida de arrependimento e infelicidade. Valia certame
nte a pena meditar sobre isso.
O bailado era tamb�m a �nica vida que Madame Markova conhecia, a �nica que alguma vez desejara. Esse era o legado que pretendia deixar a Danina, o elo sagrado passado de professora para aluna e assim sucessivamente. Era um voto quase divino.
Ficar significava desistir da esperan�a de um futuro com Nikolai. De certa forma, significava perder a esperan�a; po-
r�m, deixar a R�ssia implicava desistir de quem era para sempre. Era uma escolha angustiante e, fosse qual fosse o caminho que decidisse tomar, exigiria sacrif�cios quase insuport�veis. Tudo o que Danina podia fazer era rezar para que tomasse a decis�
o correcta.
CAPITULO 8.
Danina esteve um m�s sem dan�ar e s� regressou �s aulas no primeiro dia de Abril. Teve de novo de se esfor�ar bastante para recuperar o que havia perdido, embora desta vez o tenha conseguido mais rapidamente. Estava mais forte e a sua sa�de bem melhor
.
Dali a uma semana voltou aos ensaios e, nos princ�pios de Maio, estava de volta aos palcos. J� se passara mais de um ano desde a sua longa convalescen�a na casa de h�spedes do czar. Num ano, pouco mudara entre ambos. Ainda se amavam loucamente, Nikola
i continuava casado e a viver com a mulher e os filhos e ela andava ainda no ballet; por�m, n�o estavam mais pr�ximos de encontrar uma solu��o para o seu problema. Marie Obrajensky estava mais do que nunca convencida a n�o conceder o div�rcio ao marid
o, e as poupan�as dos dois amantes n�o chegavam para enfrentarem o futuro juntos. Tudo o que sabiam com certeza era que continuavam a querer uma vida a dois. Como consegui-la era o desafio que lutavam cons-tantemente por vencer.
Danina n�o se decidira ainda a partir com Nikolai para Vermont. Achava que era um risco muito grande, uma terra muito long�nqua, desconhecida e demasiado estranha. Ele continuava a tentar convenc�-la, da forma mais diplom�tica que conseguia.
Uma das gr�-duquesas adoeceu em Junho e ambos os m�dicos ficaram bastante ocupados. Nikolai tinha muito pouco tempo livre para visitar Danina e, por mais que quisesse, n�o podia abandonar o pal�cio. No princ�pio de Julho deu-se mais uma trag�dia: o ir
m�o mais velho de Danina foi morto em Czernoivitz. Era o segundo que perdia e pela carta do pai percebeu que ficara devastado com a morte do filho. Estava junto dele quando haviam sido bombardeados e, por milagre, fora poupado, mas o seu filho primog�
nito n�o e morrera instantaneamente. Danina n�o recebeu bem a not�cia e durante semanas andou deprimida e sem reac��o. A guerra afectava toda a gente, mesmo no ballet. Havia bailarinas que t�-
nham perdido irm�os, amigos, pais, e uma das professoras perdera ambos os filhos em Abril. Mesmo no pequeno e isolado mundo do ballet, era imposs�vel ignorar a guerra.
Nesse ano Danina s� ansiava por mais umas f�rias com Nikolai e com a fam�lia imperial em Livadia. Desta feita, Ma-dame Markova n�o fez qualquer tentativa de se opor. Desde a �ltima doen�a de Danina, fizera umas esp�cies de pazes com Nikolai. Sabia que
de bom grado lhe roubaria a sua bailarina, mas esta n�o dava sinais de querer sair dali ou abandonar o ballet por ele. Acreditava que Danina nunca teria a coragem suficiente para partir e, por isso, sentia-se segura. Afinal, a vida de ambas era o bal
let.
O czar estava com as suas tropas em Mogilev e n�o poderia juntar-se � fam�lia nesse Ver�o; por isso, a czarina e os filhos tiveram apenas a companhia de ambos os m�dicos e de Danina. Eram j� todos velhos amigos e Danina e Nikolai sentiam-se mais feliz
es do que nunca. Era sempre uma �poca perfeita para ambos, um per�odo que parecia suspenso no tempo, protegido de um mundo hostil e aparentemente long�nquo. Na seguran�a de Livadia, sentiam-se escudados dos problemas que habitualmente enfrentavam.
Faziam piqueniques todas as tardes, davam longos passeios a p� e de barco e nadavam. Danina sentia-se de novo uma crian�a e n�o deixava de brincar com Alexei. A sua sa�de n�o estivera famosa naquele ano e o czar�viche n�o tinha ainda muito bom aspecto
; por�m, rodeado pela fam�lia e pelas pessoas que amava, parecia feliz.
Nikolai tentou abordar de novo o assunto da partida para Vermont, mas as respostas de Danina eram sempre muito vagas. Tinham-lhe sido atribu�dos pap�is importantes em todos os bailados que iam fazer naquele ano. Madame Markova sabia exactamente como m
ante-la ern Sampetersburgo. Concordaram ent�o em n�o voltar a falar de Vermont at� ao Natal, ou seja, at� ao final da primeira parte da temporada. Era um acordo que angustiava Nikolai e que apenas fizera porque n�o a queria pressionar de mais.
O acordo acabou no entanto por se revelar uma b�n��o, pois o seu filho mais novo adoeceu com febre tif�ide em Setembro e esteve �s portas da morte. Foi necess�ria toda a pe-
r�cia de Nikolai e do Dr. Botkin para o salvar. Danina ficou aterrorizada e enviava diariamente cartas a Nikolai, preocupada com o rapaz e apoiando-o naquele momento de afli��o, pois sabia o quanto amava os filhos. Teria sido desastroso, dizia para si
mesma, se estivessem em Vermont e o rapaz acabasse por n�o resistir. Nikolai nunca se perdoaria por n�o ter podido fazer nada pelo filho. A situa��o s� serviu para a convencer ainda mais de que seria um erro fugirem para a Am�rica. Todas as pessoas q
ue amavam estavam ali e tinham demasiadas obriga��es que n�o podiam ignorar ou abandonar.
Apesar da doen�a que a enfraquecera no ano anterior, a sua t�cnica melhorara e Danina dan�ava ainda melhor do que anteriormente. Cada vez que actuava, as pessoas falavam dela durante semanas e o seu nome era conhecido por toda a R�ssia. Era de facto a
maior jovem bailarina da sua �poca. Nikolai orgulhava-se muito disso e estava cada vez mais apaixonado pela sua bailarina. Sempre que podia, ia assistir aos seus espect�culos e, em Novembro, acabou por conhecer o pai e um dos irm�os de Danina. J� s�
tinha dois e o outro fora ferido h� pouco tempo, mas estava em Moscovo a recuperar bem.
O pai e o irm�o n�o faziam ideia do que Nikolai representava para Danina ou do quanto ela o amava, mas simpatizaram muito com ele. Nikolai desejou-lhes sorte quando partiram e felicitou o coronel pela sua talentosa e extraordin�ria filha, o que fez o
velho senhor brilhar de orgulho. N�o era dif�cil perceber o quanto a amava. Sempre soubera que traz�-la para o ballet em crian�a fora a decis�o mais correcta. Acreditava que Danina ali permaneceria para o resto da vida, nunca lhe ocorrendo que conside
rava abandonar a dan�a um dia.
Por fim, quando o Natal chegou, Danina s� queria partir para Tsarskoie Selo para estar junto de Nikolai na pequena casa de h�spedes. Tudo seria t�o simples se viver ali fosse uma poss�vel solu��o, mas n�o era. Apenas podiam estar verdadeiramente junto
s quando Danina ia passar f�rias com a fam�lia imperial.
Nikolai foi o seu acompanhante ao baile de Natal. A fam�lia imperial j� n�o dava os grandiosos bailes que costumava organizar antes da guerra, mas, ainda assim, reuniu mais de uma centena de amigos.
Danina parecia uma princesa com o vestido que a c/arina lhe ofereceu. Era de veludo vermelho guarnecido a arminho branco. Estava t�o deslumbrante como a czarina num dos seus espectaculares vestidos. Os convidados n�o paravam de comentar a sua beleza,
a sua eleg�ncia, o seu talento, e Nikolai sentia-se um pr�ncipe garboso ao seu lado.
* Diverti-me muito esta noite! E tu, Nikolai? - per
guntou-lhe enquanto se dirigiam para casa depois da festa. Es
tavam tamb�m convidados para almo�ar no pal�cio no dia se
guinte. Os bailes da fam�lia imperial eram sempre muito
animados e, com Nikolai ao seu lado, sentira que formavam
um verdadeiro casal. Estavam juntos h� quase dois anos.
A �nica coisa que perturbara a festa tinham sido vins pequenos grupos aqui e ali a discutirem rumores recentemente surgidos sobre a eventualidade de uma revolu��o. Parecera-Ihe absurdo, embora j� se tivessem registado dist�rbios em v�rias cidades e o
czar se recusasse a control�-los. Afirmava que as pessoas tinham o direito de se expressar e que assim sempre existia a oportunidade de demonstrarem o que pensavam. S� qvie os tumultos j� se haviam estendido a Moscovo e o ex�rcito estava cada vez mais
preocupado. O pai e o irm�o de Danina referiram esse facto na �ltima visita que lhe tinham feito.
Danina e Nikolai falavam sobre isso quando chegaram � casa de h�spedes e, desta vez, Nikolai admitiu que come�ava a ficar inquieto com o estado do pa�s.
* Acho que o problema � bem maior do que a maioria
pensa - disse com a testa franzida. - E o czar est� a ser in
g�nuo ao recusar-se a p�r um fim � contesta��o.
Ou talvez n�o pudesse. Tinha tantas outras coisas com que se preocupar, como a guerra e o n�mero gigantesco de baixas sofridas na Pol�nia e na Gal�cia, que a agita��o em Moscovo lhe parecia insignificante quando comparada com a guerra e o que esta j�
custara a tantas fam�lias russas.
� A ideia de uma revolu��o parece t�o absurda - acres
centou Danina. - N�o consigo sequer imaginar que uma tal
coisa possa suceder aqui. O que aconteceria?
� Quem sabe? Talvez n�o muita coisa. Provavelmente
nada. � um bando de descontentes a fazer barulho. Pode ser
que incendeiem algumas casas, roubem uns tantos cavalos e j�ias, d�em uma li��o aos mais ricos, e voltem para as suas terras. Talvez n�o passe da�. A R�ssia � um pa�s demasiado grande e poderoso para alguma vez mudar, embora uma tal revolu��o possa to
rnar a vida mais complicada e perigosa para o czar e a fam�lia. Felizmente, est�o bem protegidos.
� Se acontecer alguma coisa - disse-lhe Danina en
quanto ele a ajudava a tirar o vestido -, quero que tenhas
muito cuidado. - Compreendia que as coisas tamb�m po
diam complicar-se muito para ele.
� H� um solu��o simples para esse problema - decla
rou, abordando de novo o assunto de Vermont. Prometera
n�o falar mais sobre isso at� ao Natal e cumprira a sua parte
no acordo. Para al�m disso, pensara mais cuidadosamente na
quest�o desde que a haviam discutido pela �ltima vez em Se
tembro e continuava esperan�ado em conseguir convenc�-la
da sensatez do seu plano.
� Que solu��o? - perguntou inocentemente ao mesmo
tempo que tirava os brincos, um presente de Natal de Niko-
lai. Eram umas p�rolas com dois pequeninos rubis presos por
baixo. Danina adorava-os e ficavam-lhe muito bem.
� Vermont - recordou-lhe ele. - N�o h� revolu��es
na Am�rica e tamb�m n�o t�m uma guerra � porta. Pod�amos
ser felizes l� e tu sabe-lo.
Danina j� n�o tinha mais desculpas para adiar aquela conversa e queria muito ficar com ele; no entanto, parecia nunca haver um momento em que se sentisse pronta para deixar o ballet e fazer uma coisa t�o dr�stica como a que Nikolai lhe pedia. A situa�
�o entre ambos era agora mais ou menos confort�vel e talvez um dia Mane concordasse com o div�rcio.
� Talvez um dia - disse melancolicamente. Queria ter a
coragem suficiente para o acompanhar, mas, ao mesmo tem
po, n�o conseguia imaginar-se a abandonar o mundo que t�o
bem conhecia. Havia um n�mero igual de raz�es que a puxa
vam em ambas as direc��es. Madame Markova e o ballet de
um lado, e Nikolai e tudo o que lhe prometia do outro. Uma
vida feliz a dois numa nova terra e o ballet, a raz�o da sua vida.
� Prometeste-me que falar�amos sobre isto no Natal -
relembrou-lhe um pouco desanimado. Come�ava a temer
que Danina jamais abandonasse o ballet e nunca pudessem ter mais do que tinham agora, a n�o ser que a sua mulher morresse ou mudasse de ideias, ou ele herdasse uma grande soma de dinheiro. Por�m, nenhuma dessas hip�teses parecia prov�vel. Ali, Danina
apenas poderia ser sua amante e n�o poderiam viver juntos, a menos que deixasse o ballet. Ainda assim, Nikolai n�o poderia comprar-lhe uma casa e sustent�-la e ambos sabiam disso. Vermont era a �nica esperan�a que tinham de alguma vez poderem ficar ju
ntos e come�arem uma nova vida. Os sacrif�cios que tal exigia de cada um ainda a fazia recuar perante uma decis�o.
� Come�o outra vez os ensaios depois do Dia de Reis...
- disse Danina, em jeito de desculpa.
� Claro, e continuar�s a dan�ar at� ser Ver�o outra vez,
depois vir� a temporada de Outono, dan�ar�s O Lago dos Cis
nes de novo, e em seguida mais um Natal. Ficaremos velhos,
a continuar assim - queixou-se, olhando para ela com a tris
teza e a ang�stia que sentia espelhadas nos olhos. - Nunca
ficaremos juntos, se ficarmos aqui.
� N�o posso simplesmente desaparecer, Nikolai - argu
mentou com carinho, pois compreendia bem o que ele lhe
pedia e o que isso implicava. - Tenho uma d�vida para com
o ballet.
� Tens uma d�vida ainda maior para contigo, meu
amor. E para comigo. Eles n�o far�o nada por ti quando fores
velha e j� n�o puderes dan�ar. Ningu�m te ajudar� nessa altu
ra e j� n�o poder�s contar com Madame Markova. Temos de
contar um com o outro.
� Poder�s contar sempre comigo - prometeu Danina.
Ele pegou-lhe ent�o ao colo e levou-a at� � cama onde ha
viam feito amor pela primeira vez. Tinham uma vida maravi
lhosa nos poucos momentos em que estavam juntos, t�o dife
rente da que ele conhecia com Marie ou da que ela alguma
vez sonhara vir a ter.
� Talvez um dia te fartes de mim - disse j� ensonada e
enroscada nos bra�os dele depois de terem feito amor.
� N�o te preocupes com isso - assegurou ele, sorrindo
e beijando-lhe o ombro. - Nunca me fartarei de ti, Danina.
Vem comigo - sussurrou-lhe ao ouvido e ela acenou que
sim com a cabe�a antes de se deixar dormir.
� Irei uni dia - murmurou ainda.
� N�o demores muito, meu amor - recomendou ele,
receoso. Queria abandonar a R�ssia com Danina antes que
acontecesse alguma coisa. Parecia dif�cil de imaginar, mas era
poss�vel que os rumores de uma revolu��o se tornassem reali
dade. Havia j� pessoas em cargos elevados que o confirma
vam, embora o czar se recusasse a admiti-lo. As pessoas co
me�avam a ficar preocupadas, mas Nikolai n�o queria alarmar
Danina, embora pretendesse lev�-la para longe antes que fosse
tarde de mais ou acontecesse alguma trag�dia. N�o queria
contar-lhe muitos pormenores, pois os seus receios pareciam
ainda disparatados e tudo o que Danina conhecia era o ballet.
Pouco ou nada sabia sobre o mundo em seu redor, um mun
do que se tornava mais assustador a cada dia que passava.
Tal como planeado, no dia seguinte almo�aram com a fam�lia imperial, e Danina ensinou a Alexei um truque de magia que aprendera com um bailarino parisiense que viera a Sampetersburgo. Alexei mostrou-se maravilhado com o truque. Foi uma tarde muito agr
ad�vel. Desta vez, Danina ficou durante mais de duas semanas e s� regressou ao ballet no dia anterior aos ensaios. N�o esquecera os seus exerc�cios di�rios, mas antes do in�cio da temporada havia sempre longos dias de ensaios.
* Tenho mesmo de regressar aos ensaios e aos treinos -
explicou enquanto fazia as malas no �ltimo dia. Detestava ter
de se ir embora e j� alargara a sua estada at� ao limite do ra
zo�vel, pois estava a dan�ar t�o bem que decidira ampliar as
f�rias de Natal, encurtando assim um pouco o per�odo de en
saios. - Odeio ter de te deixar - admitiu.
Passaram o resto da tarde na cama a fazer amor, a proferir promessas e a partilhar segredos. Nunca fora t�o feliz com ele e nunca se tinham amado tanto como naquele momento.
Quando Danina partiu no dia seguinte, Nikolai prometeu ir assistir ao seu pr�ximo espect�culo.
� Primeiro temos de ensaiar - lembrou-lhe antes de se
despedirem na esta��o.
� Irei ver-te daqui a alguns dias.
� Fico � tua espera - advertiu ela.
Fora um dos per�odos mais felizes que jamais haviam tido
e Danina estava decidida a pedir a Madame Markova que lhe concedesse outra semana de f�rias na Primavera. Tinha a certeza de que a sua mentora ficaria furiosa com a ideia; por�m, se dan�asse bem nos pr�ximos tr�s meses, talvez concordasse. At� ent�o,
mostrava-se muito satisfeita por Danina n�o ter feito nada de insensato ou dr�stico e estava quase convencida de que nunca o faria. A altura para tal parecia j� ter passado e Madame Markova esperava s� que se fartassem um do outro. Permitir que Danina
o visse ocasionalmente parecia satisfaz�-los e, a seu tempo, sem d�vida que se cansariam de uma rela��o que n�o teria futuro. Madame Markova sabia que no cora��o de Danina o ballet acabaria por sair vencedor. Tinha a certeza.
Danina come�ou a exercitar-se nessa mesma tarde assim que chegou. �s quatro da manh� do dia seguinte estava novamente a trabalhar e �s sete tiveram in�cio os ensaios. Estava em boa forma e j� conhecia t�o bem o papel que iria desempenhar que parecia a
t� um pouco desatenta. Brincou com algumas das outras bailarinas nas costas da professora e executou uns passos novos. Fez ent�o um salto que deslumbrou toda a gente e um bonito p�s de deux com um dos bailarinos.
Era j� quase noite quando pararam para comer alguma coisa. Estavam a dan�ar h� quase dez horas, o que n�o era invulgar, e Danina sentia-se cansada, embora n�o excessivamente. Executou ainda um salto antes de parar, mas algu�m se sobressaltou ao v�-la
desequilibrar-se na chegada ao ch�o e escorregar ao longo do est�dio com um dos p�s num �ngulo pouco natural. Um profundo sil�ncio abateu-se sobre a sala enquanto esperavam que se levantasse. Danina estava muito branca e agarrada ao tornozelo em sil�n
cio. Toda a gente correu ent�o para ela e a professora atravessou o est�dio para ver o que acontecera. Estava � espera de encontrar uma distens�o grave ou uma bailarina que estaria muito dorida na manh� seguinte; todavia, contrariamente ao que esperav
a, o que viu foi o p� de Danina num �ngulo quase imposs�vel com a perna. Estava, como � �bvio, em choque e quase inconsciente.
� Levem-na para a cama j� - gritou ent�o a professora.
Os dentes de Danina estavam cerrados, a sua face branca co
mo a cal. Ningu�m tinha d�vidas do que acontecera. Tinha
partido, e n�o distendido, o tornozelo. Uma senten�a de
morte, caso se confirmasse, para uma prima ballerina ou para
qualquer bailarina. N�o se ouvia um �nico som, uma s� pala
vra, apenas o ocasional arquejar de Danina enquanto a trans
portavam para o quarto. Um momento depois encontrava-se
estendida na sua cama. Sem uma palavra, a professora cortou-
-Ihe os collants, usando um pequeno canivete afiado que trazia
sempre consigo para situa��es como aquela. O tornozelo in
chara j� muito e o p� continuava no mesmo �ngulo horr�vel.
Danina olhou para ele horrorizada.
� Chamem um m�dico j�! - gritou uma voz da entra
da. Era Madame Markova. Havia um m�dico que costuma
vam chamar nessas situa��es. Era muito bom a tratar de dis
tens�es, entorses e ligamentos e j� os ajudara em ocasi�es
anteriores. No entanto, o que Madame Markova viu quando
entrou no quarto quase lhe partiu o cora��o. Num �nico ins
tante, com um �nico salto, tudo terminara para Danina.
O m�dico n�o tardou a confirmar os piores receios. O tornozelo estava, de facto, gravemente partido e Danina teria de ser levada para o hospital para ser operada, de modo a que o osso fosse recolocado 110 seu lugar. N�o havia mais nada a fazer. Uma de
zena de m�os apertaram a de Danina enquanto a transportavam para a ambul�ncia. Toda a gente chorava, embora ningu�m de forma t�o desesperada como Danina. J� vira aquilo acontecer outras vezes e sabia exactamente quais as consequ�ncias. Depois de quinz
e �rduos anos dentro daquelas quatro paredes, a sua promissora carreira terminava aos vinte e dois anos.
Foi operada naquela noite e a perna foi imobilizada e engessada. Para qualquer pessoa, a opera��o teria sido um sucesso. A perna manter-se-ia direita e, mesmo que ficasse a coxear um pouco, seria quase impercept�vel. No caso de Danina, era uma trag�di
a. O tornozelo ficara danificado e n�o seria capaz de suportar o seu peso de modo a que pudesse voltar a dan�ar. N�o havia maneira de recuperar a flexibilidade e for�a necess�rias e n�o existiam palavras para a consolar.
A sua carreira chegara ao fim com um pequeno e disparatado salto. Para al�m do tornozelo, tamb�m a sua vida ficara destru�da naquele instante.
Chorou toda a noite, quase t�o desesperadamente como quando perdera o filho de Nikolai. A vida que perdera desta vez era a sua. Era o fim de um sonho, um final tr�gico que se contrapunha a um come�o brilhante. Madame Markova estava ao seu lado, lutand
o para conter as l�grimas. Danina fizera os sacrif�cios necess�rios, empenhara-se de alma e cora��o, mas o destino n�o lhe sorrira. A sua vida como bailarina, a �nica que conhecera e pela qual estivera disposta a morrer durante quinze anos, chegara ao
fim.
No dia seguinte foi enviada de volta � escola de ballet. As restantes bailarinas vinham visit�-la ao quarto, sozinhas ou aos pares, com flores, com palavras carinhosas, com pena, como se a viessem chorar. Na verdade, sentia-se como se estivesse morta
e, de certa forma, estava. J� sentia que n�o pertencia ali e era apenas uma quest�o de tempo at� que tivesse de reunir as suas coisas e partir. Era demasiado jovem para ensinar e, de qualquer maneira, n�o podia. Era o fim, a morte de um sonho.
S� dois dias depois reuniu coragem para escrever a Nikolai que, assim que recebeu a carta, veio imediatamente, incapaz de acreditar no que acontecera, apesar de toda a gente lho ter explicado em pormenor logo que chegou. Todas as bailarinas o conhecia
m e simpatizavam muito com ele e contaram-lhe vezes sem conta como Danina ca�ra e a sua express�o, tombada no ch�o agarrada ao tornozelo.
V�-la ali deitada com a perna toda engessada e um olhar de desespero no rosto confirmou tudo o que as bailarinas lhe haviam dito. Todavia, por muito terr�vel que a situa��o fosse para Danina, para ele representava um raio de esperan�a. Era a sua �nica
hip�tese de uma nova vida. Sem isso ela nunca teria abandonado o ballet, mas Nikolai sabia que n�o poderia falar-lhe do assunto por agora.
Desta vez, quando sugeriu lev�-la com ele, Madame Markova n�o discordou. Sabia que seria melhor para a sua protegida n�o estar ali, pelo menos por enquanto, a ouvir os sons, as vozes e as pessoas que lhe eram familiares a irem e virem
das aulas e dos ensaios. J� n�o pertencia ali. Podia um dia voltar, embora n�o para dan�ar, mas, por agora, era menos doloroso que n�o estivesse ali. Para seu pr�prio bem, o passado tinha de ser enterrado o mais cedo poss�vel. Dois ter�os da sua vida,
e a �nica que conhecera at� se apaixonar por Niko-lai, estavam irremediavelmente perdidos.
CAPITULO 9.
Danina ficou muito aliviada por regressar � casa de h�spedes, e toda a fam�lia ficou contente de a ver e a acarinhou. A recupera��o foi lenta e dolorosa e quando finalmente p�de tirar o gesso, mais de um m�s depois de ter ca�do, o tornozelo parecia fr
aco e encolhido. Mal conseguia firmar-se na perna esquerda e chorou da primeira vez que caminhou. Coxeava tanto que o seu corpo parecia deformado. Era uma mera sombra da ave graciosa que fora.
* Vais melhorar, Danina, prometo - garantiu Nikolai.
- Acredita em mim. Tens de ter coragem e esfor�ar-te bas
tante.
Mediu-lhe ambas as pernas e verificou que tinham o mesmo tamanho, por isso, o coxear advinha meramente do facto de a sua perna estar ainda muito fraca. Nunca mais dan�aria, mas continuaria a andar de forma normal. A czarina e as crian�as mostraram-se
muito sol�citas.
S� v�rias semanas depois � que Danina conseguiu atravessar o quarto sem bengala e ainda coxeava quando, no final de Fevereiro, recebeu uma carta que a informava que Madame Markova adoecera. Tinha pneumonia e, embora n�o fosse muito grave, j� n�o era a
primeira vez que adoecia e Danina sabia que podia ser perigoso. Apesar de n�o ter muita for�a na perna e n�o se equilibrar muito bem, insistiu em ir tratar dela. Ainda usava a bengala para percorrer dist�ncias maiores e o m�dico recomendara-lhe que n
�o se esfor�asse muito, por�m achava que devia regressar ao ballet pelo menos at� Madame Markova recuperar. A sua mentora estava mais debilitada do que aparentava e Danina temia pela sua vida.
� � o m�nimo que posso fazer - argumentou com Ni
kolai que, embora compartilhasse dos seus sentimentos, se
opunha � sua ida. Tinham-se j� registado tumultos em Sam-
petersburgo e em Moscovo e n�o gostava muito da ideia de
a ver partir sozinha. Alexei n�o estava bem, por isso ele n�o a
poderia acompanhar.
� N�o sejas tonto, vai correr tudo bem - insistiu Dani-
na e, depois de um dia a argumentar com ele, conseguiu que concordasse em deix�-la ir sozinha. - Estou de volta daqui a uma semana ou duas, assim que ela melhorar. Madame Mar-kova fez o mesmo por mim.
Nikolai compreendia bem o poderoso la�o que as unia e tamb�m sabia que Danina ficaria destro�ada se n�o pudesse ir.
Levou-a ao comboio no dia seguinte, aconselhou-a a ter cuidado e a n�o se cansar, entregou-lhe a bengala e despediu-se dela com um beijo e um abra�o. Danina garantiu-lhe que ficaria bem. Detestava v�-la afastar-se de si e tinha pena de n�o poder acomp
anh�-la, mas compreendia a situa��o e f�-la prometer que apanharia um t�xi directamente da esta��o para a escola de ballet.
Para sua surpresa, quando chegou a Sampetersburgo viu grupos de pessoas nas ruas a gritar e a manifestar-se contra o czar e soldados a tentar manter a ordem. N�o ouvira nada sobre aquilo em Tsarskoie Selo e ficou espantada por se lhe deparar aquele cl
ima de tens�o na cidade. Afastou rapidamente a preocupa��o da sua mente e dirigiu-se � escola de ballet. Pensava apenas em Madame Markova e a sua esperan�a era que a sua mentora e velha amiga n�o estivesse muito doente. Ficou desanimada ao verificar q
ue estivera muito mal e que a doen�a a debilitara extraordinariamente.
Danina mantinha-se ao seu lado todos os dias, alimentava-a e tentava anim�-la. Ficou mais aliviada quando, ao fim de uma semana, come�ou a ver algumas melhoras, mas Madame Markova parecia ter envelhecido anos em poucas semanas e mostrava-se muito depr
imida. O movimento constante para c� e para l� enquanto tratava de Madame Markova fez com que o tornozelo inchasse e lhe provocasse dores. � noite, ia deitar-se exausta e os dias pareciam passar num �pice. Dormia numa cama improvisada no gabinete da s
ua mentora, pois a sua antiga cama tinha j� sido confiada a outra bailarina.
Estava a dormir profundamente na manh� do dia onze de Mar�o quando uma multid�o de pessoas se concentrou numa rua n�o muito longe da escola de ballet. Os gritos e os primeiros tiros acordaram-na e fizeram-na levantar-se para ver o que se passava. Muit
as bailarinas tinham j� abandonado as salas de aula e concentravam-se no grande sal�o de entrada. As mais
corajosas espreitavam pelas janelas e diziam que apenas se viam alguns soldados a passar apressadamente a cavalo. Ningu�m fazia ideia do que estava a acontecer e s� mais tarde se soube que o czar ordenara por fim ao ex�rcito que travasse a revolu��o e
que mais de duas centenas de pessoas tinham sido mortas. Os tribunais, o arsenal, o Minist�rio do Interior e v�rias esquadras de pol�cia tinham sido incendiadas. As pris�es haviam sido abertas � for�a pelo povo.
Ao fim da tarde, os tiros deixaram de se ouvir e, apesar das alarmantes not�cias daquele dia, a noite passou-se com relativa calma. No entanto, na manh� seguinte, soube-se que os soldados se tinham recusado a acatar as ordens de disparar contra os man
ifestantes e haviam retirado para os quart�is. Era o in�cio da Revolu��o.
Alguns dos bailarinos aventuraram-se a sair da escola nessa tarde; por�m, regressaram rapidamente e barricaram as portas do edif�cio. Estavam em seguran�a ali, mas as not�cias que recebiam eram cada vez mais assustadoras. A quinze de Mar�o souberam qu
e o czar abdicara em seu nome e do czar�viche em favor do seu irm�o, o gr�o-duque Mikhail, e que regressava da frente para Tsarskoie Selo para ser preso. Era imposs�vel compreender, quanto mais assimilar, o que estava a acontecer em seu redor. Tal com
o os outros, Danina n�o conseguia entender tudo o que se passava. As informa��es eram contradit�rias e confusas.
S� uma semana mais tarde, a vinte e dois de Mar�o, � que Danina recebeu finalmente um bilhete de Nikolai, trazido por um guarda que fora autorizado a abandonar Tsarskoie Selo.
"Estamos sob pris�o domicili�ria. Posso entrar e sair, mas n�o sou capaz de abandonar a fam�lia. Todas as gr�-duquesas apanharam sarampo e a czarina est� muito preocupada com elas e com o Alexei. Fica onde est�s, em seguran�a, meu amor. Irei ter conti
go assim que puder. Rezo para que possamos estar novamente juntos em breve. N�o te esque�as que te amo, mais do que � pr�pria vida. N�o te aventures para o meio do perigo. Acima de tudo, mant�m-te em seguran�a at� eu chegar. Com todo o meu amor, N."
Leu o bilhete vezes sem conta, segurando-o entre as m�os tr�mulas. Era inacredit�vel. O czar tinha abdicado e o resto da fam�lia estava sob pris�o domicili�ria. Danina arrependeu-se de os ter deixado. Se estavam em perigo, preferia estar junto deles e
morrer ao lado de Nikolai, caso fosse necess�rio.
Nikolai veio ter com ela j� quase no final de Mar�o. Viera a cavalo desde Tsarskoie Selo, pois essa era a �nica forma de poder viajar, e tinha um ar exausto. Os soldados que guardavam a fam�lia imperial haviam-no deixado sair e prometeram-lhe que pode
ria regressar. Foi com um olhar de desespero que lhe disse, bem claramente, � porta do gabinete de Madame Markova, que teriam de abandonar a R�ssia assim que tratasse de tudo.
� Aproximam-se tempos terr�veis. N�o h� forma de pre
ver o que acontecer�. J� convenci a Marie a partir para Ingla
terra com os rapazes. Partem na pr�xima semana. Ela ainda �
inglesa, por isso n�o ter� problemas em abandonar o pa�s, mas
poder�o n�o ser t�o simp�ticos connosco, se ficarmos aqui.
Quero s� esperar at� que as gr�-duquesas melhorem e assegu
rar-me de que a fam�lia fica em seguran�a. Depois tratarei das
passagens para a Am�rica e iremos para junto do meu primo
Viktor.
� N�o acredito no que se est� a passar - confessou Da
nina, horrorizada com o que ouvia. Parecia que, numa ques
t�o de semanas, o mundo que conheciam se transformara de
forma irreconhec�vel. - Como est�o eles? Muito assustados?
- perguntou, preocupada. Tinham j� passado por tanto no
�ltimo m�s.
� N�o, s�o todos extremamente corajosos - respondeu,
tamb�m apreensivo. - Assim que o czar regressou, toda a
gente ficou mais calma. Os guardas s�o bastante razo�veis,
mas a fam�lia n�o pode abandonar o pal�cio.
� O que lhes ir�o fazer? - inquiriu, temendo pelos seus
amigos.
� Nada, com certeza. Foi todavia um grande choque.
Fala-se na ida deles para Inglaterra, para junto dos primos,
mas ter� ainda de haver negocia��es. Talvez fiquem em Liva-
dia enquanto esperam. Se isso acontecer, acompanh�-los-ei e
depois voltarei para aqui. Tens de te preparar, meu amor.
Desta vez Danina n�o contrap�s argumentos ou ponderou a sua decis�o. Sabia com certeza que iria com ele. Antes de partir naquela noite, Nikolai depositou nas suas m�os um rolo de notas. Disse-lhe que comprasse as passagens para ambos, de forma a que p
udessem partir nas pr�ximas semanas. Tinha a certeza de que, por essa altura, a fam�lia imperial j� estaria confortavelmente instalada e poderia deix�-los para se juntar a ela.
Foi com uma sensa��o de medo que Danina o viu partir. E se lhe acontecesse alguma coisa? Depois de montar o cavalo, voltou-se e sorriu para ela, dizendo-lhe que n�o se preocupasse, pois junto da fam�lia imperial estava ainda mais seguro do que ela. Af
astou-se ent�o a galope e Danina voltou para dentro agarrando firmemente o dinheiro que lhe deixara.
Foi um longo e angustiante m�s � espera de not�cias de Nikolai e tentando perceber o que se passava pelos rumores que se ouviam nas ruas. O destino do czar parecia ainda incerto e dizia-se que ficariam em Tsarskoie Selo, que iriam para Livadia ou para
Inglaterra. N�o havia not�cias certas, apenas rumores, e as duas cartas que recebera de Nikolai tamb�m n�o adiantavam mais nada ao que j� sabia. Mesmo em Tsarskoie Selo, nada era definitivo ou certo, ningu�m sabia onde ou como tudo terminaria.
Danina poupou o m�ximo que p�de enquanto esperava por not�cias mais concretas de Nikolai e foi com grande pesar que vendeu o pequeno sapo de Faberg� que Alexei lhe dera, pois sabia que assim que estivessem em Vermont precisariam de todo o dinheiro que
pudessem juntar.
Conseguiu contactar o pai atrav�s do seu regimento e, numa breve carta, contou-lhe o que planeava fazer. Por�m, mais uma vez, a carta que recebeu dele era portadora de m�s not�cias. O terceiro dos seus quatro irm�os fora morto e o pai exortava-a a faz
er o que Nikolai sugeria. Lembrava-se de o ter conhecido, embora ainda n�o fizesse ideia de que ele era casado. Encorajava-a portanto a ir com ele para Vermont e disse-lhe que a contactaria l�. Poderiam regressar assim que a guerra terminasse. Pedia-l
he entretanto que rezasse pela R�ssia, desejava-lhe boa viagem e declarava que a amava.
Danina ficou em choque quando leu a carta, incapaz de
acreditar que perdera mais um dos seus irm�os. De repente foi invadida pela ideia de que nunca mais voltaria a ver o pai ou o irm�o que lhe restava. Os dias eram uma constante agonia, sempre preocupada com a fam�lia imperial e com Niko-lai. Comprou po
r fim as passagens para um navio que partiria no final de Maio, mas s� no dia um desse m�s teve novas de Nikolai. A sua carta era mais uma vez curta, pois quisera envi�-la o mais r�pido poss�vel.
"Por aqui est� tudo bem e continuamos a aguardar not�cias. Todos os dias nos dizem uma coisa diferente e ainda n�o h� nada definido quanto � ida para Inglaterra. � uma situa��o um pouco constrangedora para eles, mas toda a gente se mant�m bem-disposta
. Parece que partir�o para Livadia em Junho. Tenho de ficar com eles at� l�. N�o posso abandon�-los agora, como compreender�s. A Mar�e e os rapazes partiram a semana passada. Irei juntar-me a ti em Sampetersburgo no final de Junho, prometo. At� l�, me
u amor, mant�m-te em seguran�a e pensa apenas em Vermont e no nosso futuro l�. Se puder, irei ver-te por algumas horas."
As m�os tremiam-lhe enquanto lia a carta e n�o conseguiu conter as l�grimas ao pensar nele, nos irm�os que perdera, em todos os homens que haviam morrido e nos sonhos que ficavam por cumprir. Acontecera tanta coisa em t�o pouco tempo. Era imposs�vel f
icar indiferente.
No dia seguinte, Danina foi trocar os bilhetes para um navio que largava para Nova Iorque no final de Junho.
Madame Markova tinha entretanto recuperado da pneumonia e, tal como toda a gente, estava muito preocupada com o futuro. Danina contou-lhe tudo o que planeava fazer com Nikolai e a sua mentora n�o se op�s a que partisse com o amante. J� n�o podia dan�a
r e o perigo em Sampetersburgo e por toda a R�ssia era consider�vel. Madame Markova ficou at� aliviada por saber que Danina ficaria em seguran�a e admitiu finalmente que acreditava que Nikolai seria bom para ela, quer casassem ou n�o, embora tivesse e
speran�a de que um dia isso acontecese.
Contudo, mesmo sabendo que partiria para um lugar se-
guro com ele dentro de um m�s, Danina n�o deixava de se sentir constantemente perseguida por tudo o que deixaria para tr�s: a fam�lia, os amigos, a sua terra natal e o �nico mundo que conhecera, o ballet.
Nikolai j� lhe revelara que o primo lhe oferecera emprego no seu banco e que viveriam com ele o tempo que quisessem at� terem dinheiro suficiente para comprar uma casa. Para al�m disso, Nikolai planeava frequentar as aulas que fossem necess�rias para
que um dia pudesse exercer medicina na Am�rica. As perspectivas eram animadoras. Tudo parecia cuidadosamente planeado, embora Danina soubesse que demoraria muito tempo at� que conseguissem atingir os seus objectivos. Por agora, o �nico pensamento que
lhe ocupava o esp�rito era sair da R�ssia, mas Vermont parecia-lhe t�o distante, que bem poderia ser num outro planeta.
Uma semana antes de partirem, Nikolai veio v�-la de novo e mais uma vez com not�cias pouco animadoras. A czarina adoecera h� alguns dias. Estava exausta e sob uma enorme press�o e, embora o Dr. Botkin estivesse ainda com a fam�lia imperial, Nikolai n�
o tinha coragem de os abandonar. A viagem para Livadia fora adiada mais uma vez, estando agora marcada para Julho. Continuavam tamb�m � espera que os primos ingleses concordassem com a sua transfer�ncia para Inglaterra, mas, at� agora, n�o tinham cheg
ado a nenhum acordo.
� S� quero v�-los bem instalados - explicou, e Danina
acenou afirmativamente com a cabe�a, pois tamb�m se preo
cupava com os seus amigos. Estiveram uma hora a conversar,
a abra�ar-se, a beijar-se e a aproveitar o pouco tempo que es
tavam juntos. Madame Markova foi preparar qualquer coisa
para Nikolai comer. Fora uma longa e poeirenta cavalgada
desde Tsarsko�e Selo.
� Eu compreendo, meu amor - assegurou Danina,
apertando-lhe a m�o. S� desejava poder voltar com ele para
Tsarskoie Selo e ver de novo a fam�lia imperial. Escreveu
uma carta �s gr�-duquesas e a Alexei, expressando a sua com
preens�o e prometendo que voltariam a ver-se. Nikolai do
brou-a e colocou-a no seu bolso.
Explicara a Danina toda a situa��o e o que a pris�o domi-
cili�ria implicava. Podiam passear pelos jardins e por todo o recinto do pal�cio, mas n�o podiam abandon�-lo. Disse-lhe ainda que havia pessoas que se iam colocar junto aos port�es em sinal de solidariedade ou para os criticar por coisas que n�o tinha
m feito. As palavras de Nikolai feriam-lhe o cora��o e, mais do que nunca, desejou estar junto deles para lhes poder dar o seu apoio e fazer tudo o que pudesse por eles.
Foi mais uma vez com o cora��o desfeito que viu Nikolai partir naquela noite, embora soubesse que tinha mesmo de regressar a Tsarskoie Selo. Desta vez, trocou os bilhetes para um navio que partiria no dia um de Agosto. Nikolai prometera que j� estaria
de volta a Sampetersburgo nessa altura. Era a terceira vez que adiavam a partida e tinham j� passado tr�s meses desde o in�cio da revolu��o. Uma eternidade, pensava Danina, que continuava � espera de Nikolai.
Por essa altura, alguns dos bailarinos e bailarinas tinham j� partido para as suas terras e os seus pa�ses, embora a maioria tivesse decidido ficar. Todos os espect�culos haviam sido cancelados h� meses, mas Madame Markova prometera que, assim que se
sentisse com mais for�a, as aulas seriam retomadas ao ritmo normal e convidou Danina a assistir �s aulas. Era a �nica coisa que poderia agora fazer no ballet, mas j� nem se importava. Tudo em que pensava agora, � medida que os dias se arrastavam, era
em Nikolai e nos seus amigos. O fim do m�s aproximou-se e ele regressou para a visitar. Desta vez, o futuro da fam�lia imperial estava decidido. A viagem para Li-vadia fora vetada pelo governo provis�rio por se considerar demasiado perigosa, visto que
teriam de atravessar algumas cidades consideradas hostis. Assim sendo, partiriam para To-bolsk, na Sib�ria, no dia catorze de Agosto. Nikolai olhou ent�o cautelosamente para Danina, pois havia mais qualquer coisa que lhe queria dizer e n�o sabia bem
como reagiria � sua decis�o.
� Irei com eles - comunicou de forma t�o natural que
a princ�pio Danina pensou que n�o tinha compreendido bem.
� Para a Sib�ria? - perguntou, chocada. O que queria
ele dizer com isso?
� Consegui permiss�o para os acompanhar na viagem e
regressar imediatamente a seguir. Danina, n�o os posso aban-
donar agora. Tenho de ir at� ao fim e assegurar-me de que ficam em seguran�a. At� haver not�cias dos seus primos ingleses, ficar�o exilados em Tobolsk. Livadia seria um local mais agrad�vel, mas o governo pretende que fiquem o mais isolados poss�vel,
para sua pr�pria seguran�a. A fam�lia est� muito angustiada com a situa��o e n�o tenho coragem de os abandonar assim. T�m sido como uma fam�lia para mim.
� Eu compreendo - disse com os olhos a encherem-se
de l�grimas. - Tenho tanta pena deles. Os guardas s�o com
preensivos?
� Bastante. Muitos dos empregados j� se foram embora,
mas, para al�m disso, pouco mudou dentro do pal�cio.
Ambos sabiam que a vida na Sib�ria seria bem diferente e, tal como Nikolai, Danina estava preocupada com Alexei.
* E por isso que pretendo ir - asseverou. - O doutor
Botkin tamb�m vai e ficar� com eles. A decis�o foi dele e, de
certa forma, isso permite-me deix�-los para me vir juntar a ti.
Danina ia acenando com a cabe�a � medida que o escutava, mas havia ainda algo mais a dizer.
* Danina... - come�ou, e ela pressentiu de imediato
que havia algo de amea�ador na sua voz. Podia quase adivi
nhar o que estava prestes a dizer-lhe. - N�o quero que v�s
trocar as passagens de novo. Quero que embarques sem mim.
A cidade est� cada vez mais perigosa. Pode acontecer-te algu
ma coisa e eu n�o posso vir ter contigo ou proteger-te, espe
cialmente quando estiver a caminho da Sib�ria.
Mesmo naquele momento, ir e vir de Tsarskoie Selo para Sampetersburgo tornara-se uma prova��o.
� Quero que partas para a Am�rica no dia um de Agosto
como planeado. Eu irei para a Sib�ria com a fam�lia imperial
daqui a umas semanas e apanharei um barco para me juntar a
ti assim que regressar a Sampetersburgo. Sentir-me-ei muito
melhor se souber que est�s l� e o Viktor olhar� por ti. N�o
me contraries, e faz o que te pe�o - disse Nikolai severa
mente, antecipando a resist�ncia que ela iria oferecer, mas,
para sua surpresa, e com as l�grimas a correrem-lhe pelas fa
ces, Danina concordou.
� Eu compreendo. Ficar aqui � perigoso. Irei... E tu ir�s
ter comigo assim que poss�vel. - Sabia que n�o valia a pena
argumentar com ele, pois Nikolai tinha raz�o. O que a atormentava era a ideia de partir sem ele, mas, visto que Nikolai ia para a Sib�ria com o czar, era melhor partir antes dele. - Quando achas que poder�s embarcar para te juntares a mim?
* No final de Setembro, tenho a certeza. Ficarei muito
mais descansado se souber que est�s em seguran�a longe daqui
- confessou. Abra�ou-a ent�o enquanto ela chorava, ansian
do pelo momento em que ficariam finalmente juntos. Nikolai
j� sabia que Marie e os rapazes estavam bem e felizes por vol
tar a Inglaterra. Agora, queria ver tamb�m Danina em segu
ran�a. Sabia que o primo cuidaria bem dela. Viktor tinha j�
prometido fazer tudo o que pudesse por eles e Nikolai con
fiava nele. Podia assim viajar para a Sib�ria com a fam�lia im
perial, livre de preocupa��es. Partiria depois para a Am�rica
onde recome�aria uma nova vida.
Contara a Marie os seus planos antes de ela partir e, surpreendentemente, esta mostrara-se bastante compreensiva e prometera que o deixaria ver os filhos sempre que quisesse, embora Nikolai soubesse, tal como ela, que se passariam v�rios anos at� que
pudesse regressar � Europa. A farsa em que o seu casamento se tornara tinha j� ido longe de mais e, no seu cora��o, Nikolai sentia-se mais casado com Danina do que com Marie. As formalidades e as burocracias j� n�o significavam nada para si.
Marie desejara-lhe sorte antes de partir, e ele e os rapazes choraram na despedida. Marie n�o. Estava aliviada por deixar a R�ssia e h� muito que n�o sentia mais nada pelo marido. Nikolai sentia-se agora livre para continuar a sua vida, assim que cump
risse as suas obriga��es para com a fam�lia imperial.
* Regressarei daqui a um dia ou dois - prometeu antes
de voltar para Tsarskoie Selo. - Poderemos ficar num hotel
at� tu partires. - Queria estar com ela de novo, t�-la nos
seus bra�os e v�-la partir para um local seguro. Dali a cerca
de um m�s estariam de novo juntos, mas antes precisava de
estar com ela. Tinham-se passado cinco meses desde que che
gara a Sampetersburgo para vir tratar de Madame Markova, e
esse tempo parecia a ambos uma eternidade.
O mundo que os rodeava mudara completamente no espa�o desses cinco meses e mudaria de novo quando se reunis-
sem em Vermont. Nada seria o mesmo para eles, talvez fosse melhor, rezava Nikolai. Preferia partir com Danina; por�m, a sua consci�ncia nunca lho permitiria. Primeiro tinha de se assegurar de que a fam�lia imperial ficava em boas m�os. Era o m�nimo qu
e podia fazer por eles, depois de toda a generosidade e compreens�o que sempre haviam manifestado para com ele durante todos os anos em que estivera ao servi�o da fam�lia.
Como prometido, voltou para junto de Danina tr�s dias antes de ela embarcar. Danina estava a observar uma aula com Madame Markova quando ele chegou. Olhou instintivamente para a porta e viu-o ali a olhar para ela. Chegara o momento da partida e das de
spedidas, o momento que Danina sempre temera. Madame Markova apercebeu-se do mesmo e ficou paralisada no banco em que ambas estavam sentadas. Danina olhou para ela durante um bocado e depois levantou-se e caminhou na direc��o de Nikolai. Tinha j� as m
alas feitas e estava pronta para partir. Enquanto guardava o resto das suas coisas e Nikolai a esperava na entrada, Madame Markova veio ter com ela ao quarto e ficou a olhar para as suas malas. Tudo o que Danina possu�a coubera facilmente em duas mala
s velhas. Olharam ent�o uma para a outra, mas nenhuma pronunciou uma �nica palavra durante algum tempo. Danina estava sem coragem para falar e a mulher que fora como uma m�e para ela durante quinze anos parecia devastada.
� Nunca pensei que este dia chegasse - disse Madame
Markova com uma voz tr�mula. - E nunca pensei que te
deixaria ir quando o momento chegasse... Agora, estou con
tente por ti. Quero que sejas feliz, Danina, e, para isso, tens
de partir.
� Vou sentir tanto a sua falta - balbuciou Danina, dan
do dois passos na sua direc��o e abra�ando-se a ela. - Volta
rei para a visitar - prometeu, mas, no fundo do seu cora��o,
Madame Markova sabia que a sua bailarina preferida n�o vol
taria. N�o podia acreditar que a crian�a que amava, agora
uma mulher, partiria para sempre. Era a �ltima vez que se ve
riam.
� Nunca esque�as tudo o que aqui aprendeste, o que
significou para ti, o que foste quando aqui estavas. Leva tudo
contigo no teu cora��o. N�o poder�s deixar o ballet para tr�s, pois ele faz parte de ti.
� N�o quero deix�-la - lamentou-se Danina, angustiada.
� Tem de ser. O Nikolai juntar-se-� a ti na Am�rica as
sim que puder e l� ter�s uma vida boa com ele. Acredito nis
so e desejo-o para ti.
� Quem me dera poder lev�-la comigo - murmurou
Danina, abra�ando-se mais a ela, relutante em deix�-la.
� Estarei sempre contigo e uma parte de ti estar� sempre
comigo. Aqui - disse, apontando para o cora��o. - Agora,
� melhor ires. - Agarrou ent�o uma das malas de Danina e
dirigiram-se para a sala onde Nikolai as esperava. Percebeu de
imediato que a despedida fora dif�cil e foi ajud�-la com as
malas.
� Est�s pronta? - perguntou. Danina assentiu com a ca
be�a e encaminhou-se para a porta da frente. Madame Mar-
kova seguiu-a lentamente, n�o tirando os olhos dela, aprovei
tando cada segundo da sua presen�a.
Assim que chegaram � porta, esta abriu-se de repente, deixando entrar uma crian�a. Tinha oito ou nove anos e trazia uma mala. A m�e colocou-se orgulhosamente ao seu lado. Era uma menina muito bonita com duas longas tran�as loiras que olhava expectante
para Danina.
� �s bailarina? - perguntou, sem embara�o.
� Fui, mas j� n�o sou mais - respondeu. Madame Mar-
kova e Nikolai aperceberam-se do quanto lhe custou pro
nunciar aquelas palavras.
� Eu vou ser bailarina e vou viver aqui para sempre -
adiantou a menina com um sorriso.
Danina sorriu tamb�m e recordou-se do dia em que o pai a trouxera para a escola de ballet. Estava bem mais assustada do que aquela menina, era bastante mais nova e n�o tinha m�e para a acompanhar.
* Acho que ser�s muito feliz aqui - assegurou-lhe Da
nina, sorrindo entre as l�grimas. - Ter�s de trabalhar muito,
muito, muito todos os dias, a toda a hora. Ter�s de amar o
ballet mais do que qualquer coisa no mundo, ser capaz de re
nunciar a tudo o que mais gostas e acreditar que esta ser� a
tua vida a partir de agora.
Como se explica isto a uma crian�a de nove anos? Como se consegue que ame o ballet acima de tudo o resto? Como se ensina a sacrificar e a dar tudo o que se tem at� quase � morte? Ser� que se ensina ou j� nasce connosco? Danina n�o tinha a resposta. Af
agou apenas os cabelos da menina quando passou por ela e olhou para Madame Markova a chorar. Sabia ainda menos como dizer adeus ap�s tantos anos de sacrif�cio, de trabalho, de amor. Para Danina era o final da hist�ria. Para si o ballet terminara, para
aquela crian�a ia come�ar.
* Olhe bem por ela - disse Madame Markova carinhosamente a Nikolai enquanto a m�e e a crian�a entravam no edif�cio. Depois, apertando a m�o de Danina pela �ltima vez, voltou-se e afastou-se para que n�o a vissem chorar. Danina ficou ainda a olhar para
ela durante um bocado e depois abandonou o edif�cio pela �ltima vez. J� n�o pertencia ao ballet e jamais voltaria a pertencer. Aquele era o momento que receara toda a sua vida. J� n�o fazia parte daquele mundo e ia abandon�-lo para sempre. A porta do
edif�cio fechou-se ent�o silenciosamente atr�s de si.
CAPITULO 10..
Passaram o �ltimo dia em Sampetersburgo a passear pelas ruas e a visitar locais de que ambos gostavam. Era uma litania de recorda��es e ang�stias e, a certa altura, Danina j� nem se lembrava do motivo por que tinha de partir. Se gostavam tanto daquela
cidade, porqu� partir? No entanto, n�o podiam iludir-se mais. Era altura de abandonar o seu pa�s natal, principalmente agora com a revolu��o no seu auge. Sem ela, no entanto, Marie nunca teria partido para Inglaterra e nunca libertaria Nikolai, e Dan
ina n�o teria para onde ir, agora que j� n�o podia dan�ar. N�o deixava de ser ir�nico. Tinham de percorrer milhares de quil�metros para um mundo novo para que pudessem ter uma vida a dois, mas sabiam que valia a pena. A partida era o que mais custava;
por�m, mais um dia e estaria no navio e dali a um m�s Nikolai estaria com ela. De certa forma, parecia uma grande aventura.
De regresso ao hotel onde se haviam instalado sob o nome dele, compraram o jornal e leram as �ltimas not�cias da guerra. Eram angustiantes e imposs�veis de ignorar.
Nessa noite jantaram no quarto para aproveitar os �ltimos momentos em que estavam juntos. Tinham tanto para dizer um ao outro, tantas promessas a formular, tantos sonhos para construir. Os tr�s dias e noites que passaram juntos haviam voado num �pice.
Mal tinham dormido nesse tempo para n�o perder um �nico instante. As malas de Danina estavam feitas, os seus poucos tesouros e recorda��es prontos a seguir consigo. Levava at� os vestidos que a czarina lhe oferecera, embora soubesse que faziam agora
parte do passado. Nikolai aproveitava para mandar tamb�m duas malas, como que para lhe provar que iria mais tarde ter com ela.
Por vezes, Danina questionava-se sobre a forma como iriam explicar aos seus filhos, se tivessem algum, como fora a sua vida. Iriam com certeza achar que se assemelhava a um conto de fadas. Talvez tudo o que houvesse a fazer era esquec�-la, guardar as
recorda��es, os programas dos espect�culos, as fotografias, os vestidos, as sapatilhas, e espanej�-los de
quando em vez s� para olhar para eles. Ou talvez at� isso fosse demasiado doloroso. Sabia que quando deixassem Sampe-tersburgo teria de fechar a porta ao passado, para sempre.
Nessa noite deitaram-se cedo e ficaram nos bra�os um do outro sem dormir, mas o Sol nasceu rapidamente e, para grande pesar de ambos, tiveram de se levantar para enfrentar a despedida. Danina antecipava j� a dor que a aus�ncia de Ni-kolai lhe provocar
ia.
O carregador levara todas as malas para baixo e Danina sentia-se como uma crian�a prestes a abandonar o lar para sempre.
* Prometo, Danina, irei ter contigo o mais r�pido poss�
vel, independentemente da situa��o do pa�s. Nada me impe
dir� - garantiu a caminho do porto, lendo a inquieta��o nos
seus olhos. O cora��o de Danina despeda�ava-se de cada vez
que pensava que o ia deixar para tr�s, especialmente sabendo
que viajaria para a Sib�ria com a fam�lia imperial e que depois
teria de regressar a Sampetersburgo.
Nikolai ajudou-a a instalar-se no camarote. Danina ia partilh�-lo com outra mulher, mas, como esta ainda n�o chegara, escolheu a cama que preferia. De repente, come�ou a temer a viagem e confessou-o a Nikolai. Sem ele, sentir-se-ia muito sozinha e est
aria sempre preocupada com o seu bem-estar.
* Tamb�m terei muitas saudades tuas - disse, sorrindo.
- A cada instante. Tem muito cuidado contigo, minha que
rida. Vais ver, estarei junto de ti num piscar de olhos.
A sirena do navio fez-se ent�o ouvir, indicando aos visitantes que estava na altura de irem para terra. Nikolai abra�ou-a ainda durante um grande bocado. J� n�o se importavam que fossem vistos abra�ados em p�blico, pois aos olhos um do outro eram j� m
arido e mulher.
� Amo-te, nunca te esque�as disso. Irei assim que puder.
Cumprimentos ao meu primo. Ele � um pouco calado, mas
boa pessoa. Vais com certeza simpatizar com ele - garantiu
Nikolai.
� Vou sentir tanto a tua falta - confessou, j� a chorar.
A emo��o era mais forte do que ela.
� Eu sei - disse ele com carinho. - Tamb�m eu. -
E beijou-a longamente enquanto a sirena tocou pela �ltima
vez e as pranchas de embarque come�aram a ser retiradas.
� Deixa-me ficar contigo - disse, desesperada, tentando
convenc�-lo. - N�o quero partir. Talvez me deixem ir con
tigo para a Sib�ria - continuou. Teria feito qualquer coisa
para ficar com ele.
� Nunca o permitiriam, Danina, sabes bem - contra
p�s. N�o queria dizer-lhe que era uma viagem perigosa, mas
isso n�o era segredo para ningu�m.
� Lembra-te apenas do quanto te amo - recordou-lhe
ele. - Lembra-te disso at� eu estar junto de ti. Amo-te mais
do que qualquer coisa na vida, Danina Petroskova... - Seria
a �ltima vez que a trataria assim. Tinham j� concordado
que em Vermont ela usaria o seu nome, Obrajensky, para que
ningu�m desconfiasse de que n�o eram casados.
� Amo-te tanto, Nikolai - declarou e, instintivamente,
levou a m�o ao medalh�o. Estava ali, seguro em torno do seu
pesco�o.
� Ver-te-ei em breve - prometeu uma �ltima vez; bei
jou-a e desceu a correr a �ltima prancha de embarque. Dani
na chegou-se � amurada e ficou a v�-lo no porto a olhar para
ela.
� Amo-te! - gritou ela. - Tem cuidado!!! - Acenou-
-Ihe adeus e ele acenou-lhe de volta. Momentos depois o na
vio come�ou a afastar-se do porto. Danina sentiu o cora��o
disparar e interrogou-se por que fora t�o est�pida a ponto de
o deixar convenc�-la a partir sozinha. Tinha a sensa��o de ter
tomado a decis�o errada, mas sabia que agora devia de ser co
rajosa por ele. Haviam j� passado por tanto, que bem podia
fazer mais aquele sacrif�cio, deix�-lo terminar a sua miss�o e
depois juntar-se a si em Vermont, para que pudessem por fim
come�ar uma nova vida como marido e mulher.
Ficou a dizer-lhe adeus at� j� quase n�o o distinguir, mas Nikolai continuava l� a acenar-lhe, elegante e forte, o homem que conquistara o seu cora��o h� dois anos atr�s e que ela sabia que iria amar para sempre.
* Amo-te, Nikolai - murmurou para o vento. Ficou
ainda na amurada durante bastante tempo com as l�grimas a
correrem-lhe pelo rosto e a pensar nele enquanto segurava o
medalh�o. Nem sequer sabia ao certo por que chorava. Ni
kolai tinha raz�o. Havia tanto por que ansiar, tanto pelo qual
deviam estar agradecidos, tanta coisa � sua espera em Ver-mont. Estava tudo apenas a come�ar. N�o tinha raz�es para chorar, mas temia que esta fosse a �ltima vez que o tivesse visto. Que disparate, pensou para si mesma, que motivos teria para pensar t
al coisa? Olhou ent�o para o c�u � medida que as �ltimas gaivotas se despediam do navio. N�o podia perd�-lo agora. Tal n�o podia acontecer, e, com um suspiro e um �ltimo olhar para o seu pa�s natal, dirigiu-se para o camarote. N�o podia perder Nikolai
, disse para si mesma. Independentemente do que acontecesse, am�-lo-ia sempre e n�o haveria nada que os separasse.
EP�LOGO
As respostas, como sempre acontece, estavam bem perto de mim. Mandei traduzir as cartas e todas elas eram cartas de amor que Nikolai Obrajensky escrevera � minha av�. Contavam uma hist�ria que me comoveu muito e explicavam muita coisa.
O resto soube atrav�s de duas das suas amigas com quem conversei quando voltei a Vermont no Ver�o seguinte para passar uma semana na casa da av� com os meus filhos e o meu marido.
Encontrei os vestidos da czarina num ba� no s�t�o, o mesmo em que a av� os trouxera. Estavam muito desbotados e o arminho j� tinha amarelecido e, sessenta anos volvidos, mais pareciam trajes de teatro. Fiquei surpreendida por nunca os ter descoberto n
as minhas incurs�es pelo s�t�o quando era crian�a, mas o ba� estava velho e gasto e escondido num canto. As malas dele tamb�m ainda l� estavam, cuidadosamente etiquetadas: Dr. Nikolai Obrajensky. A av� nunca tivera coragem de as desfazer depois de che
gar a Vermont.
Os programas do ballet e as fotografias dela com as outras bailarinas tinham agora um novo significado para mim e as sapatilhas de pontas pareciam, de alguma forma, sagradas. Nunca me apercebera da import�ncia que tinham para ela. Sabia que fora baila
rina, por�m nunca compreendera o que tivera de sacrificar para o ser. Tentei explic�-lo aos meus filhos e os olhos deles abriram-se de curiosidade enquanto lhes contava a hist�ria. Quando mostrei as sapatilhas a Katie e lhe disse que tinham sido da av
� Dan, ela inclinou-se e beijou-as. O gesto teria feito a minha av� sorrir.
Tal como temera quando o navio partiu em Setembro de 1917, nunca mais voltou a ver Nikolai. Foi para Tobolsk com a fam�lia imperial conforme combinado, mas as circunst�ncias fizeram com que acabasse por ficar tamb�m sob pris�o domicili�ria. A sua devo
��o pela fam�lia imperial acabou por lhe custar a liberdade e, em Julho de 1918, foi executado juntamente com eles. Uma breve carta de algu�m que n�o reco-
nheci informou a av� da morte de Nikolai quatro meses depois. Posso apenas imaginar o que a leitura de tal carta lhe ter� provocado, pois mesmo eu, passados todos estes anos, fiquei com os olhos cheios de l�grimas quando li a tradu��o. Deve ter sentid
o que o mundo terminava tamb�m para ela.
Por�m, antes de morrer, avisara-a na sua �ltima carta de que havia rumores de uma execu��o. Por muito cruel que tal pudesse parecer, ele tentara prepar�-la. Apesar de tudo, as palavras de Nikolai revelavam um tom surpreendentemente animador e corajoso
. Dizia-lhe que n�o devia desistir de lutar, que tinha de encontrar felicidade na sua nova vida e lembrar-se dele e do seu amor com alegria e n�o tristeza. Confessava-Ihe ainda que, no seu cora��o, se sentira casado com ela desde o dia em que a conhec
era, que lhe concedera os anos mais felizes da sua vida e que a �nica coisa que lamentava era n�o ter embarcado naquele navio com ela. Nesse dia, a av� deve ter percebido que nunca mais o veria. O destino n�o podia ser alterado. O destino dela era ter
uma outra vida, com todos n�s, num local bem distante e diferente de tudo o que conhecia. O destino dele n�o era ficar com ela.
O pai e o �nico irm�o que lhe restava foram mortos no final da guerra e Madame Markova morreu de pneumonia dois anos depois de a av� partir.
Uma a uma, perdeu todas as pessoas que amara. Perdeu tudo, o seu pa�s, a carreira, a fam�lia, o ballet e o homem que amava.
No entanto, nunca houve nada de tr�gico ou triste na av�. Deve ter sentido muito a falta deles, em especial de Nikolai. O seu cora��o devia doer de cada vez que pensava neles, mas nunca me disse nada. Era simplesmente a av� Dan, com os seus chap�us en
gra�ados, os patins, os olhos brilhantes e os biscoitos deliciosos. Como pudemos ser t�o cegos? Como pudemos pensar que aquilo era tudo o que a av� era? Como pude acreditar que a velha senhora que usava aqueles vestidos negros j� gastos era a mesma pe
ssoa que sempre fora? Por que motivo achamos que as pessoas idosas foram sempre idosas? Porque n�o fui capaz de imagin�-la no seu vestido de veludo vermelho guarnecido a arminho ou a dan�ar O Lago dos Cisnes para o czar? Porque nunca me disse nada? Gu
ardou todos os seus segredos para si mesma.
Viveu com o primo de Nikolai durante onze meses enquanto esperava por ele e mais um m�s at� saber que fora executado. Tal como Nikolai lhe prometera, o primo foi muito am�vel. Era um homem calado, com as suas pr�prias mem�rias, os seus desgostos, as s
uas perdas. A av� deve ter sido como um raio de sol para ele, embora lhe parecesse uma crian�a. Era vinte e cinco anos mais velho. Tinha quarenta e sete quando ela chegou e ela vinte e dois. Deve ter sabido sempre o quanto Nikolai significava para ela
. Cinco meses ap�s a morte de Nikolai, dezasseis depois de ter chegado a Vermont, casou com o primo dele, o meu av�, Viktor Obra-jensky. At� hoje, n�o sei ao certo se alguma vez o amou. Presumo que sim. Devem ter sido amigos. O av� era sempre muito ge
ntil com ela, embora muito calado, e a av� falava dele sempre com carinho e admira��o; por�m, agora n�o consigo deixar de me perguntar se alguma vez amou o meu av� como amou o seu primo. Duvido, embora acredite que, de alguma forma, o amasse. Nikolai
fora a paix�o da sua vida, o sonho da sua juventude.
Tanta coisa que nunca soube, tantos sonhos que nunca imaginei. A av� era de facto um mist�rio. Tenho agora as pe�as desse mist�rio: o ba�, as sapatilhas, o medalh�o e as cartas, mas a av� manteve o resto com ela - as mem�rias, as conquistas, as pessoa
s que tanto amou. A �nica coisa que lamento foi ter sabido t�o pouco sobre ela enquanto ainda estava connosco.
A av� Dan, o que representou para mim, viver� no meu cora��o para sempre. A mulher que foi antes disso pertenceu a outras pessoas e manteve-as junto a si no seu cora��o, nas suas mem�rias, nas cartas e no medalh�o. Ainda o deveria amar para levar as c
artas consigo para a casa de repouso. Deveria continuar a l�-las ainda, ou ent�o, de tanto as ler, j� as sabia de cor.
Agora, quando fecho os olhos, a av� n�o � velha, os seus vestidos n�o s�o pretos ou gastos e j� n�o est� a fazer biscoitos... Est� a sorrir para mim, bela e jovem como outrora, a dan�ar com as suas sapatilhas, e Nikolai Obrajensky sorri e observa-a. A
credito que, algures, est�o finalmente juntos.
Fim.


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Danielle Steel - A Dádiva
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